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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-graduação em História Social Doutorado em História DE PÉTALAS E PEDRAS: A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO Pablo Francisco de Andrade Porfírio Rio de Janeiro Abril/2013

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Page 1: DE PÉTALAS E PEDRAS: A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO Tese UFRJ - Pablo Por… · Pablo Francisco de Andrade Porfírio Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História

Programa de Pós-graduação em História Social

Doutorado em História

DE PÉTALAS E PEDRAS:

A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO

Pablo Francisco de Andrade Porfírio

Rio de Janeiro

Abril/2013

Page 2: DE PÉTALAS E PEDRAS: A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO Tese UFRJ - Pablo Por… · Pablo Francisco de Andrade Porfírio Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História

Programa de Pós-graduação em História Social

Doutorado em História

DE PÉTALAS E PEDRAS:

A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO

Pablo Francisco de Andrade Porfírio

Tese de doutorado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em História Social do Instituto

de História da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, sob a orientação da Profª. Drª. Maria

Paula Nascimento Araújo.

Rio de Janeiro

Abril/2013

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Porfírio, Pablo Francisco de Andrade.

De pétalas e pedras: a trajetória de Francisco Julião / Pablo

Francisco de Andrade Porfírio – Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2013.

xiv, 296f.: il.

Orientador: Maria Paula Nascimento Araújo

Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de História/ Programa de

Pós-graduação em História Social, 2013.

Referências Bibliográficas: f. 283-294.

1. Francisco Julião. 2. Trajetória. 3. Exílio. 4. Redemocratização.

5. Memória. I. Araújo, Maria Paula Nascimento. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-

graduação em História Social. III. Título.

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DE PÉTALAS E PEDRAS: A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO

PABLO FRANCISCO DE ANDRADE PORFÍRIO

ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Paula Nascimento Araújo

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de

História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de doutor em História Social.

Aprovada por:

__________________________________________

Presidente, Profa. Dra. Maria Paula Nascimento Araújo

_________________________________________

Prof. Dr. Alberto Del Castillo Troncoso

_________________________________________

Profa. Dra. Angela de Castro Gomes

_________________________________________

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro

_________________________________________

Profa. Dra. Marieta de Moraes Ferreira

Rio de Janeiro

Abril de 2013

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, quero agradecer a meus pais, Fátima e Francisco, e a minha irmã,

Fabiana, pelo apoio irrestrito que recebi durante todos os anos de minha formação

universitária. Sem eles teria sido muito mais difícil. A eles dedico a tese.

Os professores e alunos do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ

foram parte fundamental nessa caminhada. Agradeço a todos que, direta ou indiretamente,

contribuíram com minha pesquisa durante esses últimos quatro anos, com destaque para os

professores Dr. Carlos Fico, pelas sugestões durante o seminário de linha, Drª Marieta de

Moraes Ferreira, pela atenta leitura da tese, Dr. Antonio Carlos Jucá, pelo esforço para

garantir a bolsa sanduíche, Drª Monica Grin, pela ajuda no final do doutorado. Agradeço à

professora Drª. Maria Paula Araújo, minha orientadora, que foi uma importante interlocutora,

com quem tive a liberdade para debater. As reuniões de orientação sempre foram momentos

de aprendizagem e de muita alegria.

Ainda no PPGHIS-UFRJ construí amizades que tornaram a experiência do doutorado

e a vida no Rio de Janeiro algo inesquecível. Agradeço a ajuda e o companheirismo que

recebi de Naiara Damas, Dani Carvalho, Siméia Lopes, Carlos Augusto, Leandro Braga,

Carlos Eduardo, Letícia Guterres, Francisco Aimara, Adrianna Setemy, Moacir Maia e do

meu querido irmão Jonas Vargas.

Quero agradecer também aos amigos da UFPE e de Recife, com quem compartilho

anos de universidade com muita alegria e que foram fundamentais desde a elaboração do

projeto até a finalização dessa tese. Márcio Vilela, Humberto Miranda, Juliana Andrade,

Emília Vasconcelos, Hélder Remigio, Elizabet Souza, Erinaldo Cavalcanti, Joana D’arc, Ana

Maria de Souza, Juliana Sampaio, Márcia Santos, Marcelo Mac Cord recebam um abraço e

meu muito obrigado por, pacientemente, me escutarem falar sobre Francisco Julião durante os

últimos quatro anos, pelas sugestões e incentivos e por terem lido várias partes e capítulos da

tese, realizando valiosas indicações de mudanças. Agradeço ainda ao apoio de Celso Castilho,

que como professor da Vanderbilt University, conseguiu, por meio do sistema de bibliotecas,

importantes documentos utilizados nesse trabalho.

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Aos professores Dr. Antonio Montenegro e Drª. Regina Beatriz Guimarães agradeço a

parceria de trabalho, a confiança depositada nessa pesquisa, as trocas de experiência e a

amizade. Foi um privilégio tê-los como leitores desse trabalho.

Os cinco meses em que vivi no México foram fundamentais para a tese e para a vida.

Nesse ponto, meus agradecimentos aos professores e funcionários da Escuela Nacional de

Antropología e Historia – ENAH – que gentilmente me receberam, em especial à professora

Drª. Martha Cahiuch, ao Dr. José Luis González e ao Dr. Druzo Maldonado Jiménez. No

Instituto MORA, agradeço ao Dr. Jorge Castañeda e ao Dr. César Navarro pelas preciosas

informações para a pesquisa nos acervos da Secretaria de Relaciones Exteriores e do Archivo

General de la Nación. Ao Dr. Alberto Del Castillo, por toda a ajuda, atenção, companheirismo

e amizade que me dedicou durante esses anos de doutorado. Sua visão de mundo me inspirou

nesse trabalho.

Também à Pamela Geraldine por toda ajuda durante esses últimos meses e por ter

tramitado o processo para que eu pudesse acessar os documentos sobre Julião existentes no

Archivo General de la Nación. À Jacinto Munguía pela esclarecedora conversa sobre os

arquivos produzidos pelos sistemas de informação e vigilância do México. Ao padre Ángel

Sanchez por todo seu esforço em conseguir-me um encontro com a senhora Marta Rosas.

Desejo registrar um agradecimento especial a todos que trabalham nos arquivos,

fundações, centros de pesquisa e bibliotecas que visitei. Sei da dedicação dessas pessoas em

oferecer um bom atendimento, apesar das dificuldades cotidianas provocadas, sobretudo, pela

falta de estrutura física e de material de trabalho. Na busca por documentos e informação,

quero agradecer ao companheirismo de Bruna Dourado, que me ajudou na extenuante

pesquisa no acervo da hemeroteca e do DOPS, ambos no Arquivo Estadual Jordão

Emerenciano. Ainda à Veldene Costa pela colaboração com a investigação no Arquivo do

Itamaraty, em Brasília. Também à Clarisse Pereira pelo competente trabalho de organização

final da tese. Claro que todos os problemas persistentes são de total responsabilidade do autor.

À CAPES por haver financiado essa pesquisa, incluindo os cinco meses de doutorado

sanduíche.

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Resumo

Esse trabalho de tese produz uma trajetória para Francisco Julião Arruda de Paula, advogado,

deputado estadual e federal pelo Partido Socialista Brasileiro e dirigente das Ligas

Camponesas no Nordeste do Brasil até 1964. Com o golpe civil-militar neste ano, foi preso.

Conseguiu asilo político na Embaixada do México em 1965. Viveu como exilado nesse país

até 1979. Durante esse período publicou alguns livros e escreveu artigos semanais para a

Revista Siempre! Esteve próximo a representantes do Partido Revolucionário Institucional e

de políticos de esquerda da América Latina. Sua imagem de líder camponês radical e

guerrilheiro ocupou várias páginas da imprensa dos Estados Unidos, Brasil e de outros países,

sobretudo nos anos 1960. No final da década de 1970, Julião retornou ao Brasil e passou a

lutar para ressiginificar as representações sobre seu passado. Assim, o objetivo maior desse

trabalho ao construir a trajetória de Francisco Julião é compreender como o seu passado de

líder das Ligas Camponesas, considerado como político radical e agitador social, foi

apresentado pela imprensa, por políticos da situação e da oposição, por trabalhadores rurais e

por si mesmo no período da redemocratização do Brasil. Analisar como Julião transitou nessa

sociedade que construía um novo pacto social no final da década de 1970 e anos 1980.

Palavras-chave: Trajetória, memória e redemocratização.

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Resumen

En esta tesis de doctorado se produce una trayectoria de Francisco Julião Arruda de Paula,

abogado, diputado estatal y federal por el Partido Socialista Brasileño y dirigente de las Ligas

Campesinas en el Noreste de Brasil hasta 1964. Año en el que fue detenido después del golpe

civil-militar. Consiguió asilo político en la embajada de México en 1965, viviendo como

exiliado en ese país hasta 1979. Durante ese tiempo publicó algunos libros y escribió artículos

semanales para la revista Siempre! Estaba cerca de los representantes del Partido

Revolucionario Institucional y de políticos de izquierda de América Latina. Su imagen de

líder campesino radical y de guerrillero ocupó varias páginas de la prensa en los Estados

Unidos, Brasil y otros países. A finales de 1970, Julião regresó a Brasil y pasó a luchar para

resignificar las representaciones acerca de su pasado. Así, el objetivo principal de este trabajo

es construir la trayectoria de Francisco Julião, buscando entender cómo su pasado de líder de

las Ligas Campesinas, considerado como político radical y agitador social, fue presentado por

la prensa, por los políticos de la situación y la oposición, por los trabajadores agrícolas y por

él mismo durante la redemocratización de Brasil. Se analiza cómo Julião se movió en esta

sociedad que construyó un nuevo pacto social en la década de 1970 y 1980.

Palabras-clave: Trayectoria, memoria y democratización.

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Lista de figuras

Figura 01 - Parte do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião em 1962. ..............54

Figura 02 - Parte do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião em 1962. ..............55

Figura 03 - Contracapa do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião. ...................56

Figura 04 - Julião e camponeses do Engenho Galiléia. ..........................................................66

Figura 05 - Passeata em Recife de apoio a Cuba, abril de 1961. ............................................68

Figura 06 - Francisco Julião discursando na sede das Ligas Camponesas em Recife. Ao lado,

um trabalhador rural. ................................................................................................................70

Figura 07 – Capa do Jornal La Prensa. ...................................................................................91

Figura 08 - Desayuno (café da manhã) em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista

Siempre! ................................................................................................................................121

Figura 09 – Desayuno em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista

Siempre!..................................................................................................................................122

Figura 10 - Grupos de camponeses que ocuparam o Engenho Coqueiro. ............................157

Figura 11 – Arraes e Julião em Coqueiro. ............................................................................158

Figura 12 – Nem PTB nem PS. ............................................................................................167

Figura 13 – Capa do disco Julião, verso e viola. ..................................................................207

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Lista de Abreviaturas

ABC – Santo André, São Caetano e São Bernardo

ABI – Associação Brasileira de Imprensa

ACM – Acción Católica Mexicana

ALEPE – Assembleia Legislativa de Pernambuco

AP – Ação Popular

APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano

APERJ – Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

APML – Ação Popular Marxista-Leninista

ARENA – Aliança Renovadora Nacional

CBA – Comitê Brasil pela Anistia

CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia

CDCP – Divisão de Censura de Diversões Públicas

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CEHIBRA - Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira

CIA – Central Intelligence Agency

CIDDE – Carta Internacional de Direitos e Deveres Econômicos

CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CIDOC – Centro Intercultural de Documentación

CIF – Centro Intercultural de Formación

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

COBEM – Comitê dos Brasileiros Exilados no México

CODE – Confederação Democrática

CODENO - Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste

COLMEX – Colegio de México

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura

CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.

DFS – Dirección Federal de Seguridad

DGI – Dirección General de Investigaciones

DOPS-PE – Departamento de Ordem e Polícia Social - Pernambuco

DSI-MJ – Divisão de Segurança e Informação - Ministério da Justiça

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FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação

FETAPE – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco

FGV – Fundação Getúlio Vargas

FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INPC – Índice Nacional de Preços ao Consumidor

ITT – International Telephone & Telegraph

JC – Jornal do Commercio

LAHOI – Laboratório de História Oral e Imagens

Lc23s – Liga Comunista 23 de Septiembre

M.R.L. – Movimento Revolucionário Liberal

MAIP – Movimento de Apoio à Imprensa Popular

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de outubro

MST – Movimento dos Sem-Terra

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

OEA – Organização dos Estados Americanos.

ONU – Organização das Nações Unidas

PAN – Partido Acción Nacional

PB – Paraíba

PC do B – Partido Comunista do Brasil

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PDS – Partido Democrático Social

PDT – Partido Democrático Trabalhista

PETROMEX – Petróleos Mexicanos

PFL – Partido da Frente Liberal

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POLOP – Organização Revolucionária Marxista Política Operária

PORT – Partido Operário Trotskista

PP – Partido Progressista

PR – Partido Republicano

PRI – Partido Revolucionário Institucional

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSD – Partido Social Democrata

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PT – Partido dos Trabalhadores

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

RN – Rio Grande do Norte

RS – Rio Grande do Sul

SAIP – Sociedade de Apoio à Imprensa Popular

SAPPP – Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco

SNI – Serviço Nacional de Informação

SORPE - Serviço de Orientação Rural de Pernambuco

SRE – Secretaria de Relaciones Exteriores

SSM – Secretariado Social Mexicano

STM – Superior Tribunal Militar

SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste

SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária

UDN – União Democrática Nacional

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas

UNAM – Universidad Nacional Autónoma de México

UP – Unidade Popular

URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

USAID – Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional

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Sumário

Introdução ....................................................................................................................12

Capítulo 1: A fabricação de um revolucionário. .......................................................24

1. Rua do Imperador. Recife, Brasil. 1944. ...........................................................29

2. Várzea, um bairro afastado. Recife, 1955. .........................................................33

3. Vitória de Santo Antão – Pernambuco; novembro de 1956. .............................40

4. União Soviética, China e Cuba; entre 1957 e 1960. ..........................................43

5. Cuba; 1960 a 1963. ............................................................................................46

6. Belo Horizonte, 1961. ........................................................................................59

7. De volta aos Estados Unidos. 1961. ...................................................................64

Capítulo 2: Limites, possibilidades: a vida longe de Brasil. ....................................72

1. Asilo político. .....................................................................................................76

2. Tempos difíceis. .................................................................................................82

3. A capa do La Prensa. .........................................................................................89

4. Novos lugares, outros ditos. .............................................................................100

5. Redes políticas. ................................................................................................112

6. A embaixada do Brasil, outra vez. ...................................................................125

Capítulo 3: Refazendo o passado, produzindo o futuro: seis relatos. ...................131

1. Um plano de assassinato. .................................................................................144

2. Houve quem lembrasse, ontem, Francisco Julião. ...........................................149

3. A prisão. ...........................................................................................................159

4. As permanências e rupturas. ............................................................................163

5. Bom Jardim, novembro de 1979. .....................................................................168

Capítulo 4: O retorno dos exilados: anistia e reinserção política. .........................170

1. Anistia. .............................................................................................................172

2. Regresso. ..........................................................................................................181

3. Duas cartas. ......................................................................................................185

4. Culpado. ...........................................................................................................188

5. Moderado. ........................................................................................................192

6. O disco. ............................................................................................................194

7. Censura. ...........................................................................................................198

8. O disco, novamente. .........................................................................................202

Capítulo 5: Novos pactos: transitar pela redemocratização. .................................209

1. Caminhos. ........................................................................................................211

2. Reforma eleitoral e mudança de rota. ..............................................................215

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3. Cartilha(s). .......................................................................................................220

4. As Cartas. .........................................................................................................224

5. A derrota nas Diretas Já e as novas cartas. .....................................................234

6. Entre conversas e decisões. ..............................................................................241

7. Os pactos. .........................................................................................................259

8. Atos finais. .......................................................................................................262

O fim. ..........................................................................................................................270

1. Recife, julho de 1999. .....................................................................................270

2. Uma prova mais concreta da morte. ................................................................270

3. Últimas considerações. ....................................................................................272

Fontes ..........................................................................................................................275

Bibliografia .................................................................................................................283

Anexo ..........................................................................................................................295

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Introdução

No dia 1° de janeiro de 1955, Francisco Julião conheceu o Engenho Galiléia e seus

moradores. Os camponeses o receberam com aplausos, foguetes e pétalas de rosas, que as

mulheres mais idosas faziam chover sobre sua cabeça. A alegria dessas pessoas relacionava-se

ao fato de que agora poderiam recorrer ao advogado e deputado pelo Partido Socialista

Brasileiro para defendê-las.

Enquanto Julião caminhava pelo corredor humano formado, pensava o quanto aquela

gente nutria esperanças em mudar suas vidas. No seu discurso, agradeceu a carinhosa

recepção e assumiu o compromisso de trabalhar pela Sociedade Agrícola ali fundada. Disse

ainda: “Olhe, eu vou fazer tudo para que essas pétalas não se transformem em pedras”1.

Nos próximos cinco anos, ele conseguiria fazer uma articulação política para aprovar o

projeto de lei de desapropriação do Engenho Galiléia em favor dos seus moradores. Por suas

ações junto aos camponeses, tornar-se-ia um conhecido líder de esquerda no Brasil e nas

Américas, adorado por uns, temido e odiado por outros. Naqueles anos de Guerra Fria, sua

atuação era provavelmente discutida em reuniões de governo, como em Cuba e nos Estados

Unidos2. Preso em 1964, foi exilado no México no ano seguinte, de onde manteve contato

com lideranças políticas latino-americanas, como Salvador Allende, presidente do Chile

(1970-1973)3.

Em 1979, regressou ao Brasil beneficiado com a Lei de Anistia. Integrou-se ao Partido

Democrático Trabalhista e buscou produzir uma reinserção política, que envolveu tentativas

de desconstrução, reconstrução e ressignificação das memórias existentes sobre a sua atuação

no período anterior ao golpe civil-militar de 1964.

Atualmente, Francisco Julião é uma referência pouco lembrada. Não existe um

instituto que organize e divulgue seus livros e documentação. Tampouco há um memorial

sobre o movimento que liderou, as Ligas Camponesas4. Em geral, as citações a ele na

1 As informações desses primeiros parágrafos foram retiradas da entrevista concedida por Francisco Julião a

Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV. p. 53. 2 A CIA produziu relatórios que registraram a preocupação do governo dos Estados Unidos em relação às ações

de Francisco Julião, que também realizou algumas visitas a Cuba, onde era recebido diretamente por Fidel

Castro. Essas questões serão analisadas no capítulo 1. 3 Mais informações no capítulo 2.

4 Refiro-me aqui especialmente ao estado de Pernambuco, onde surgiram as primeiras Ligas Camponesas e no

qual Julião atuou fortemente. Na Paraíba existe um Memorial das Ligas Camponesas, localizado na cidade de

Sapé, onde no início década de 1960 funcionou uma das maiores Ligas Camponesas em número de associados.

A Liga de Sapé era liderada por João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. Pode-se conhecer melhor esse

memorial por meio do site http://www.ligascamponesas.org.br/.

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historiografia e na imprensa restringem-se a nomeá-lo como o líder de um movimento

camponês, cujos discursos, em um período de polarização política, aterrorizavam os grupos de

direita e causavam problemas para os da esquerda.

Neste sentido, é possível pensar em uma aproximação da trajetória do personagem

principal dessa tese com a do ex-presidente João Goulart. Os historiadores Jorge Ferreira e

Angela de Castro Gomes consideram que Jango é lembrado, quando isso ocorre, muito mais

por ter protagonizado os últimos momentos de uma fase política do Brasil, ou seja, o período

democrático entre a derrubada da ditadura de Getúlio Vargas e o golpe civil-militar de 19645.

Nesse caso, a sua trajetória é “encapsulada” no acontecimento do golpe e assim é apresentada,

em geral, por avaliações pouco favoráveis, tanto pela esquerda quanto pela direita. “Jango é

um presidente esquecido ou lembrado em chave muito crítica/negativa”, relacionada, muitas

vezes, a radicalização política que teria ocorrido no período do seu governo6.

Em geral, Francisco Julião também é lembrado por meio desse viés da radicalização,

que teria caracterizado os primeiros anos da década de 1960. Entretanto, ao contrário do ex-

presidente, que morreu no exílio, o ex-deputado alcançou a anistia, regressou ao Brasil e

buscou promover sua reinserção política. Nesse momento, ele teve a possibilidade de

promover deslocamentos de memória, circular em outras redes políticas e romper com a

cápsula que haveria aprisionado seu passado em um determinado formato, sob uma chave

crítica negativa de leitura. Assim, nesse trabalho, procurei analisar como as ações do líder

camponês, consideradas radicais, foram lembradas por Julião, pela imprensa e por seus

aliados e adversários políticos no momento de construção de uma nova democracia para o

país.

Parte das referências historiográficas7 sobre ele reforça este lugar de crítica. Jorge

Ferreira, no livro João Goulart: uma biografia, procura mostrar como o presidente foi

atingido pela radicalização promovida por algumas pessoas e grupos sociais. Entre esses

5 GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

p. 7. 6 GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces. Op. Cit.

7 Há poucos livros que tenham se debruçado para escrever sobre a vida de Francisco Julião ou uma parte dela.

Pode-se citar uma dissertação7 defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São

Paulo, que trata especificamente do período do exílio – CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida

de exílio de Francisco Julião. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. – e dois livros escritos pelo jornalista Vandeck Santiago

– SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: Luta, paixão e morte de um agitador – Coleção Perfil Parlamentar

Século XX. Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco. Recife, 2001;._________ Francisco Julião, as

Ligas e o golpe militar de 64. Recife: COMUNIGRAF, 2004.

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estaria o então dirigente das Ligas Camponesas, que falava “bravatas”, segundo o autor, ao

anunciar a existência de milhares de camponeses armados no Nordeste do Brasil8.

O historiador Thomas Skidmore já havia construído uma leitura semelhante. Sem

adjetivar as ações e os discursos de Francisco Julião, colocava-o como um dos

“radicalizantes” que atuou durante o governo de Jango. Para o autor, a radicalização

relacionava-se “a crença de que cada um estava em condições de ganhar mais com o

desmoramento da política democrática”9. Dessa perspectiva era tomada a ação do líder das

Ligas Camponesas, que em princípios de 1961 esteve em Cuba e em novembro desse mesmo

ano atuou com destaque no Congresso Nacional de Camponeses em Belo Horizonte, onde foi

aprovada a proposta de reforma agrária radical. Essas atuações são apropriadas pelas análises

de Skidmore ao considerar que, após o congresso, a violência na zona rural tornou-se mais

frequente e a radicalização política nesse setor aumentou, causando problemas para o governo

de João Goulart10

.

Destaco ainda dois outros livros publicados em espanhol, um sobre a história do Brasil

e outro acerca da América Latina, que estabelecem uma relação entre o dirigente das Ligas e o

golpe civil-militar de 1964. No primeiro caso, Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez

escreveram História de Brasil: una interpretación, lançado pela Universidade de Salamanca,

em 2009, no qual afirmam que “as Ligas Camponesas, lideradas pelo advogado Francisco

Julião, provocaram a direita com a ameaça de uma revolução camponesa socialista, seguindo

o exemplo da Revolução Cubana”11

.

Nessa linha de análise, o cientista político Alain Rouquié12

, ao tratar sobre a América

Latina no seu livro Introdución al extremo Occidente, publicado pela editora Siglo XXI, em

1989, afirmou: “Assim, sabemos que as Ligas Camponesas organizadas por Francisco Julião

no Nordeste brasileiro foram um dos detonadores da mobilização que conduziu ao golpe de

Estado de 1964”13

.

Esse tipo de abordagem insere-se em uma construção social que aponta as ações das

Ligas Camponesas e de seu líder, com seus discursos classificados de radicais e

revolucionários, como contribuintes para o golpe. Nesse trabalho de tese, saber se Francisco

8 FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 500.

9 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 1930-1940. 7 ed. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1982. p.

273-274. 10

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 1930-1940. Op. Cit. p. 273-279. 11

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História de Brasil: una interpretación. 1º Ed. Salamanca

Ediciones, 2009. p. 557. 12

Foi embaixador da França no Brasil entre 2000 e 2003. 13

ROUQUIÉ, Alain. América Latina. Introducción al extremo occidente. Siglo Veintiuno editores, 1989. p. 114.

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15

Julião era radical ou se o movimento que liderou funcionou como estopim para o golpe não é

uma questão. O interesse é investigar o funcionamento das nomeações e instituições de

lugares sociais, como os de culpado e radical, na sua trajetória, principalmente, no período de

redemocratização do Brasil. Nessa perspectiva, como contraponto às abordagens que o

apresenta exclusivamente pelas suas ações anteriores de 1964, esse estudo privilegia articular

outros momentos que marcaram sua trajetória: a experiência do exílio (1965-1979), o regresso

ao Brasil em 1979 e sua atuação durante o processo de abertura política do país. Escrever

sobre os caminhos desenhados por Francisco Julião nesses períodos permite uma análise

matizada sobre a ditadura civil-militar no Brasil. Afinal, apesar de uma considerável parte da

historiografia reduzir sua história de vida ao pré-1964, ele viveu as principais dinâmicas

políticas existentes durante os governos militares: a prisão, o exílio, a anistia e a

redemocratização.

Deve-se ressaltar que neste trabalho o golpe de 1964 e a instituição da ditadura civil-

militar são compreendidos a partir da relação entre setores da sociedade civil e os militares.

Os estudos sobre as sociedades e seus regimes autoritários e ditatoriais têm renovado-se nos

últimos anos dentro dessa perspectiva. Para o caso do Brasil, pode-se destacar o trabalho de

Angela de Castro Gomes, que na década de 1980 ofereceu uma nova leitura sobre o

populismo do governo de Getúlio Vargas, até então compreendido por meio da simples

manipulação das massas e de sua repressão. A historiadora mostrou como havia interesses

compartilhados entre o Estado e os trabalhadores, que proporcionou o estabelecimento de

apoios e compromissos14

. Essa forma de abordagem também pode ser pensada para as

análises do golpe e a ditadura instalada em 1964. A fórmula que apresenta um governo

opressor contra uma sociedade oprimida já não é possível. Estudos recentes sobre a temática,

com interpretações destacando os enlaces e apoios, começam a ser apresentados pela

histografia15

.

14

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª Ed. Rio de Janeiro. Ed. FGV, 2005 15

Alguns dos trabalhos que realizam essa discussão: A coletânea organizada por Denise Rollemberg e Samantha

Quadrat constrói um panorama temático atualizado sobre a relação entre sociedade civil e regimes autoritários no

Brasil e América Latina. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos

regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010. A dissertação de Aline Presot apresenta as grandes mobilizações contra o governo de Jango e o

apoio ao golpe. PRESOT, Aline Alves. As marchas da família com Deus pela liberdade e o golpe militar de

1964. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

O livro de René Dreifuss foi pioneiro na construção de ligações entre grupos civis e militares ao analisar a

atuação de uma burguesia multinacional por meio do complexo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos

Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que promoveu ações para desestabilizar o governo de João

Goulart DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 6ª Ed.

Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2006. No livro sobre o populismo organizado por Jorge Ferreira, Daniel Aarão

no artigo O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita argumenta como havia

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16

Trata-se de considerar que já não cabe individualizar culpados e localizar em suas

ações as justificativas para o golpe. A construção de um discurso de acusação, entretanto,

deve ser analisada. Assim que, quando Francisco Julião foi/é lembrado pelo radicalismo

praticado antes de 1964, deve-se problematizar quem produziu tal discurso, quais seus efeitos

e usos.

Pode-se aqui trazer outra questão proposta por Daniel Aarão Reis. O historiador

argumenta que a partir da segunda metade da década de 1970, com a campanha da Anistia, se

produziu uma memória, na qual as esquerdas revolucionárias defensoras da luta armada

metamorfosearam-se em resistência democrática16

, “apesar do fato de que elas não eram de

modo nenhum apaixonadas pela democracia, francamente desprezadas em seus textos”17

.

Ainda nessa construção de memória, poucos foram os setores da sociedade civil que

continuaram se reconhecendo com a ditadura ou desejavam com ela ser identificados. No

início dos anos 1980, quase todos haviam resistido democraticamente18

aos governos militares

e os movimentos de apoio ao golpe de 1964 tratados de serem esquecidos. É nesse momento

de ressiginificações que Francisco Julião regressa ao Brasil e busca desconstruir/reconstruir a

sua memória de incendiário líder das Ligas Camponesas que teria contribuído para a

mobilização golpista dos militares. Analisar a trajetória nesse período possibilita discutir que

esse movimento de ressignificação da memória apresentou diferentes sentidos e resultados.

Alguns grupos conseguiram produzir novas leituras para suas opções e ações passadas,

enquanto outros encontraram mais dificuldades ou mesmo impossibilidade para tal operação.

Essa questão de atualização da memória inscreve-se no campo dos embates políticos acerca

das leituras do passado, como afirmar a historiadora Maria Paula Araújo: “uma disputa

política entre diferentes partidos e organizações de esquerda sobre a história e a memória, não

apenas da ditadura e do golpe de 64, mas das próprias lutas políticas do país”19

.

Assim, o objetivo maior desse trabalho ao construir a trajetória de Francisco Julião é

compreender como o seu passado de líder das Ligas Camponesas, considerado como político

radical e agitador social, foi apresentado pela imprensa, por políticos do governo e da

uma classe média temerosa pelo processo de intensificação das reivindicações populares por distribuição de

renda e poder, que agiu, por exemplo, independentemente do complexo IPES/IBAD. AARÃO REIS, Daniel. O

colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In: FERREIRA, Jorge. O populismo e

sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 319-377. 16

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: O golpe e a ditadura militar:

quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004. p. 48. 17

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. ZAHAR, 2000. p.70. 18

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. Op. Cit. p. 50. 19

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Uma História Oral da Anistia no Brasil: Memória, testemunho e

superação. In: MONTENEGRO, Antônio Torres; RODEGHERO, Carla S.; ARAÚJO, Maria Paula (Orgs.).

Marcas da Memória: História oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. p. 68

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17

oposição, por trabalhadores rurais e por si mesmo no período da distensão e abertura política

do Brasil. Produzir uma análise de como parte daquela sociedade, que já não se reconhecia

com a ditadura militar, nem aceitava tê-la gestado, recebia, após 14 anos de exílio, a um dos

mais destacados personagem político do pré-64, acusado por alguns de ter conspirado contra a

democracia com seus discursos de reforma agrária na lei ou na marra e suas ameaças de

promover levantes de camponeses armados. Mas também, analisar como o próprio Francisco

Julião transitou nessa sociedade do Brasil que construía um novo pacto social no final da

década de 1970 e anos 1980, com os debates e a aprovação da lei da Anistia e a transição para

um governo civil.

Ele, que havia estado no Brasil durante os momentos iniciais do regime civil-militar –

até dezembro de 1965 – exilou-se no México, onde viveu sob um regime autoritário ou para

utilizar a famosa frase do escritor Vargas Llosa, uma dictadura perfecta20

. Assim, também

experienciou as práticas de um governo repressor, que torturava e assassinava, mas, ao

mesmo tempo, buscava produzir uma imagem democrática ao receber exilados e contar com o

trabalho e apoio de vários intelectuais para justificar e reforçar seu discurso nacionalista e

revolucionário. Foi com essa vivência de exílio que Francisco Julião regressou ao Brasil em

1979 e procurou construir uma reinserção política para si.

Assim, escrever a sua trajetória é caminhar pelos vários cenários políticos do Brasil e

de parte da América Latina no século XX. Passar por um dos períodos mais tensos da Guerra

Fria, no início dos anos 1960, pelo avanço de movimentos que desejavam a revolução e a

instalação de governos identificados com o comunismo e o socialismo, como em Cuba e no

Chile. Mais ainda, transitar pela construção de regimes autoritários e ditatoriais, pela

montagem de sistemas estatais de vigilância, torturas e assassinatos, pelo exílio e pelos

processos de redemocratização. Investigar parte das vivências de Julião nesses diferentes

cenários e períodos rompe com a unicidade dos discursos que prendem sua experiência de

vida às Ligas Camponesas e, em geral, reforçam aquela perspectiva crítica negativa de leitura

20

A expressão foi utilizada pelo escritor Vargas Llosa para se referir aos governos do Partido Revolucionário

Institucional – PRI – no México, durante a realização do Encuentro Vuelta: la experiencia de la libertad, em 30

de agosto de 1990. Esse evento reuniu cerca de 40 pensadores e escritores do mundo, vários deles ganhadores do

Premio Nobel. Em mesa de debate mediada pelo historiador mexicano Enrique Krauze, Vargas Llosa apontava o

caráter antidemocrático do governo priista. Enquanto Octávio Paz havia afirmado a necessidade do partido

promover um processo de democratização interna, Vargas Llosa, em resposta, ressaltava a urgência por uma

democratização da sociedade e situava México entre as ditaduras da América Latina: “a ditadura perfeita não é

Cuba de Fidel Castro: é México, porque é uma ditadura de tal modo camuflada que chega a parecer que não é,

porém que de fato tem todas as características de uma ditadura”. Ver KRAUSE, Enrique. La dictadura perfecta.

Disponível em: <http://www.letraslibres.com/blogs/blog-de-la-redaccion/la-dictadura-perfecta>. Acesso em 23

fev. 2013.

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da sua atuação política. Esse lugar colocado como hegemônico para sua vida desconsidera a

análise desses outros aspectos:

Como foi o exílio do ex-dirigente das Ligas no México? Qual sua atuação em um país

que já havia produzido uma revolução em 1910, realizado uma reforma agrária e entre os anos

1960 e 1970 vivia sob uma forte repressão estatal a movimentos sociais? Quais foram suas

escolhas dentro do processo de anistia de 1979? Como rememorava seu passado? Após

retornar ao Brasil, como atuou no período de abertura política? Como participou de

importantes momentos políticos da década de 1980, como a Diretas Já e a transição política

para um governo civil?

Essas questões são norteadoras da escrita desse texto. Elas foram pensadas em

ressonância com a estratégia que Joseph Frank utilizou para a tessitura da biografia de Fiódor

Dostoiévski. Para Frank, as pessoas que procuram ler sobre a trajetória de um grande escritor

estão interessadas nele enquanto escritor. Desse modo, a vida privada de Dostoiévski foi

subordinada à descrição das suas relações com a história literária e sociocultural21

.

Francisco Julião se tornou internacionalmente conhecido pelo seu trabalho como

político de esquerda e líder de um movimento camponês. Assim, escolhi apresentá-lo

predominantemente a partir dessa perspectiva, analisando os cenários políticos no qual

transitou e as relações que estabeleceu. A sua vida privada não foi alvo desse trabalho, apesar

de aparecer em alguns momentos. Entretanto, deve-se ressaltar que o cenário macro em que

Julião transitou não é tomado como determinante em suas escolhas. Não se abandonou o

micro em função do macrossocial. Não há ainda uma contradição dessas dimensões, mas sim

uma tensão e a partir dela procurou-se explorar as multiplicidades dos espaços e

possibilidades de relações existentes e, entre elas, quais foram as escolhas de Julião22

.

Em praticamente todo o período abordado nessa tese, Francisco Julião viveu sob

governos autoritários e ditatoriais, seja no Brasil ou no México. Esses regimes instituíram

dispositivos, para utilizar um termo de Michel Foucault retomado por Giorgio Agamben, que

trata de uma rede de práticas e mecanismos linguísticos, jurídicos, técnicos e militares

operacionalizada no jogo do poder para orientar em certa direção, condicionar

21

FRANK, Joseph. Dostoiévski: os Anos de Provação (1850-1859). São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 1999. p. 13-14. 22

Estou dialogando com as reflexões realizadas por Jacques Revel para quem a variação da escala de observação

não significa mudar o tamanho do objeto, mas modificar sua trama e o conteúdo da representação. E no caso

dessa tese de doutorado, a representação sobre a trajetória de Francisco Julião. REVEL, Jacques. Microanálise e

construção do social. In: ______ (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed.

FGV, 1998. p. 15-39.

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19

comportamentos e bloquear ações. O dispositivo tem uma função estratégica concreta e se

inscreve sempre numa relação de poder23

.

No caso da ditadura, essa função está ligada à vigilância, à eficiência do controle

social e à repressão. Mas também, ao combate em torno da verdade a ser estabelecida por

meio de um conjunto de regras que confere efeitos de poder ao verdadeiro24

. As ditaduras e

seus processos de redemocratização produziram condições de funcionamento político e social,

nas quais se definia o que poderia ser dito e quem estaria qualificado para se pronunciar,

atendendo a determinadas exigências25

.

Essa maquinaria, que se buscou descrever na tese em seus diferentes momentos e

espaços, de acordo com os percursos seguidos por Julião, não deve ser entendida como um

aparelho monolítico de eficácia plena. Ou seja, que todos foram integrados a sua engrenagem

e sendo aqueles que ficaram de fora considerados como os resistentes, tomados como

marginais ou rebeldes. Nesse trabalho, penso como as pessoas transitaram pela maquinaria

social da ditadura e principalmente do seu processo de transição política. Mais

especificamente, analiso como Francisco Julião o fez, realizando negociações, apropriações,

composições, deformações, ajudando a reforçar algumas lógicas de funcionamento e a

instituir outras.

Assim, em cada momento de sua trajetória abordado nessa tese buscou-se as posições

ocupadas por ele, procurando identificar essas práticas supracitadas. Neste caso, inspira-me as

considerações de Pierre Bourdieu, em seu clássico texto sobre a Ilusão biográfica, no qual

afirma que os “acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no

espaço social” e não uma série única de acontecimentos sucessivos26

. O único fator constante

nessa trajetória é o nome próprio.

Há um aspecto que não se deve esquecer: as escolhas de colocações e deslocamentos

realizadas em cada momento da vida de um biografado ocorrem diante de um futuro

indefinido. Como nos alerta Benito Bisso Schmidt, “se hoje esse futuro já é passado, e os

resultados das escolhas feitas conhecido, o biógrafo precisa recuperar o drama da liberdade

23

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 29. 24

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 13. 25

FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. 14ª. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 36-37. 26

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos

e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000. p. 189-190.

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20

dos personagens”27

. Procurei estar sempre atento a essa dimensão, não obstante o risco

constante de se fazer uma escrita teleológica.

Em várias partes da tese, abordei o período pré-1964 para oferecer ao leitor as

representações dos acontecimentos produzidas, por exemplo, em 1962 ou mesmo 1964, e

depois as construídas em 1979, no período da anistia, por meio dos relatos de memória. A

forma como as ações anteriores ao golpe civil-militar foram recordadas e os sentidos e usos

que se ofereceu a elas influenciaram nas escolhas e nas possibilidades de atuação de Francisco

Julião no período da redemocratização.

Essa é a produção de uma memória voluntária, no sentido oferecido por Gilles

Deleuze ao estudar a obra de Marcel Proust e isso significa que “ela não se apodera

diretamente do passado, mas o recompõe com os presentes”28

. A historiadora Regina

Guimarães alerta que os relatos orais devem ser mergulhados nos múltiplos contextos em que

foram produzidos, conectados a diferentes práticas, bem como confrontados com outras

fontes. Deve-se ainda identificar os “jogos de linguagem, produtores de efeitos encenativos

[…] por mais rico que seja qualquer relato acerca de trajetórias individuais, o que mais

importa é a sua especifidade nas articulações com a memória coletiva”29

.

Nesse sentido, analisei os relatos de memória elaborados por Francisco Julião ou sobre

ele enquanto produtores de efeitos e como um texto onde “se inscrevem desejos e

reproduzem-se modelos”30

. Com efeito, procurei articulá-los com o presente da

redemocratização e seus múltiplos contextos, onde passou a circular uma memória social na

qual poucos tiveram qualquer envolvimento com a ditadura militar, como afirma Daniel

Aarão.

No passado representado por esses relatos, Francisco Julião estava associado,

sobretudo, a imagem de líder das Ligas Camponesas. Caminhou com ela durante todo o

período do regime civil-militar, inclusive quando não viveu no Brasil. Procurou lhe conferir

novos significados, fazer outros usos e promover alguns esquecimentos.

As opções de Francisco Julião estiveram relacionadas aos lugares instituídos por ele e

por aqueles que o consideravam um dos responsáveis pela radicalização do pré-1964 e, por

27

SCHMIDT, Benito Bisso. Em busca da terra da promissão: a história de dois líderes socialistas. Porto Alegre:

Palmarinca, 2004. p. 24. 28

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2006. p. 54. 29

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração - memórias e práticas culturais. Mato Grosso

na primeira metade do Século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006. p. 46. 30

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração - memórias e práticas culturais. Mato Grosso

na primeira metade do Século XX. Op. Cit. p. 47.

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21

conseguinte, pelo golpe. A sua história foi construída pelas tentativas de sair desses lugares,

construir linhas de fuga. Convido o leitor a seguir esses caminhos.

...

Antes, contudo, e como esse é um texto acerca da trajetória de um indivíduo, creio que

pode interessar ao leitor saber como me aproximei dessa temática. Durante a dissertação de

mestrado pesquisei documentos referentes ao movimento camponês no final dos anos 1950

até 1964 em Pernambuco. Investigava como se produziu e circulou uma ideia de medo em

relação à mobilização dos trabalhadores rurais, consideradas como subversão comunista.

Francisco Julião aparecia nesse momento como uma dos principais lideranças de

esquerda do país, junto com Miguel Arraes e Leonel Brizola, por exemplo. Mas, avançando

para as décadas seguintes, sobretudo os anos 1980, enquanto esses dois últimos voltaram a ter

destaque no cenário político nacional após o exílio, o primeiro praticamente havia

desaparecido. Isso me despertava sentimentos de surpresa, curiosidade, intriga, que

impulsionaram o meu interesse na investigação. Descobri que Julião havia concedido várias

entrevistas, algumas bem longas, a partir do final dos anos 1970. Existia um interesse sobre

sua memória, bem como uma disposição dele, que depois passei a entender como

necessidade, em falar sobre o seu passado.

Esse foi o ponto de partida tomado para produzir a sua trajetória. Por meio dela

procuro representar os que não conseguiram uma inserção política no pacto social instituído

com a redemocratização do Brasil. Para além de Julião, pode-se citar Gregório Bezerra, ex-

deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil, entre 1946 e 1948, e também importante

líder camponês no início dos anos 1960.

Essa história está contada em cinco capítulos, que ora vos apresento.

A fabricação de um revolucionário é o primeiro. Nele investigo alguns dos caminhos

que possibilitaram a Francisco Julião, um advogado com um pequeno escritório no centro da

cidade do Recife na década de 1940, interessado por literatura e com algumas publicações,

transformar-se em um revolucionário de esquerda com destaque na imprensa nacional de

internacional, no início dos anos 1960. Utilizei para tanto de um vasto conjunto documental

produzido na época pela polícia política, de relatos de memória e de matérias de jornais e

revistas.

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22

O segundo capítulo intitulado Limites, possibilidades: a vida longe do Brasil trata do

período de exílio no México entre 1965 e 1979. Procurei analisar como atuou o ex-líder das

Ligas Camponesas, conhecido por seus radicais discursos em favor da reforma agrária, e quais

redes políticas e sociais ele estabeleceu em um país que ao mesmo tempo exaltava um

passado revolucionário e reprimia violentamente manifestações sociais contestatórias. A

documentação utilizada consistiu em textos publicados por Francisco Julião no México,

matérias de jornais, relatórios e correspondências da diplomacia mexicana e da diplomacia

brasileira, bem como entrevistas realizadas. Esse capítulo foi resultado das atividades

desenvolvidos no doutorado sanduíche realizado na Escuela Nacional de Antropología e

Historia – ENAH, Cidade do México, sob a orientação do professor Dr. Alberto Del Castillo

Troncoso. No arquivo da Secretaria de Relaciones Exteriores e no Archivo General de la

Nación tive acesso à documentação diplomática fundamental para as discussões

desenvolvidas nessa parte da tese. As outras fontes foram encontradas na Hemeroteca

Nacional e na biblioteca do Instituto de Filologia da UNAM e ainda nas bibliotecas de El

Colégio de México e do Instituto Mora.

O capítulo seguinte analisa os diversos relatos de memória produzidos pelo então

exilado nos últimos anos em que viveu no México, contrapondo-os com outras fontes

documentais – jornais, revistas e material produzido e apreendido pela polícia. Refazendo o

passado, produzindo o futuro: seis relatos apresenta as leituras realizadas por Francisco

Julião sobre o seu passado e discute como em vários momentos elas estavam articuladas com

o processo de distensão política no Brasil e a preparação para uma possível volta ao país.

O retorno dos exilados: anistia e reinserção política é o título do quarto capítulo, no

qual apresento a volta de Francisco Julião ao Brasil e suas primeiras ações. O objetivo

principal foi analisar como ele transitou naquele momento de anistia e abertura política,

quando se tentava instituir um discurso de conciliação nacional, que rejeitava

posicionamentos considerados radicais. Mas também, identificar os grupos aos quais se

integrou e como operou com o seu passado de ex-dirigente das Ligas Camponesas. A

documentação utilizada consistiu em matérias de jornais e revistas, relatos de memória e

cartas.

Por fim, o quinto capítulo intitulado Novos pactos: transitar pela redemocratização

trata das eleições de 1982 e 1986, bem como do movimento de Diretas Já. Procurei

apresentar as opções políticas existentes e quais as escolhas de Francisco Julião, como as

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justificou, como foram lidas por outras pessoas e quais os resultados. Para isso, recorri a

entrevistas, reportagens, cartas e textos escritos pelo próprio Julião.

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24

Capítulo 1 - A fabricação de um revolucionário

Washington, Estados Unidos. 1961. O governador do Rio Grande do Norte, Aluízio

Alves, estava em Washington, EUA, buscando recursos financeiros para o seu estado.

Dirigiu-se ao escritório da Aliança para o Progresso, responsável por elaborar e executar

“ações que visavam oferecer auxílio para o desenvolvimento das áreas mais pobres da

América Latina”1. O Nordeste do Brasil era uma região prioritária.

A viagem do governante brasileiro parecia fadada ao fracasso. O presidente da Aliança

para o Progresso, o embaixador Teodoro Moscoso, estava de férias na Austrália e os

diretores afirmaram que nada poderiam resolver. Como última opção, procurou Roberto

Campos, embaixador do Brasil em Washington. Durante a conversa, este se propôs a tentar

uma audiência com o presidente dos EUA, John Kennedy. Não era algo simples, sobretudo

porque se vivia um período de campanha eleitoral para governadores e o presidente Kennedy

viajava pelo interior do país.

Roberto Campos, no entanto, conseguiu marcar um encontro no Departamento de

Estado. Aluízio Alves foi recebido pelo casal Kennedy. O presidente, “que parecia ser um

homem sem rodeios e devidamente preparado para as audiências” 2, mostrou-se bastante

interessado em ouvir um relato sobre o Nordeste do Brasil.

A audiência foi iniciada com uma explanação do governador do Rio Grande do Norte

sobre a situação da Aliança para o Progresso no Brasil. Queixava-se de que nenhuma ação

havia saído do papel. O presidente John Kennedy escutava de forma atenciosa e realizava

breves perguntas para obter informações sobre alguns detalhes. Ao final, chamou um dos seus

assessores. Solicitou que Teodoro Moscoso estivesse em Washington para uma reunião com

Aluízio Azevedo. O embaixador teve que suspender suas férias na Austrália e o governador

do Rio Grande do Norte conseguiu 25 milhões de dólares em recursos.

Porém, John Kennedy, que interrompeu sua viagem pelo interior dos Estados Unidos,

aproveitou a oportunidade para obter informações sobre a situação política do Brasil.

1 EISENHOWER, Milton S. A Aliança para o Progresso: Raízes históricas. In: DREIER, John C. (org). A

Aliança para o Progresso: problemas e perspectivas. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,

1962. 2 Essa foi uma observação feita por Celso Furtado, então Superintendente da SUDENE, a partir de um encontro

que teve com o presidente John Kennedy em Washington. FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. 3a edição. Rio

de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989. p. 114.

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25

Perguntou sobre a experiência parlamentarista que o país começava a viver e no meio de suas

questões, disparou: e a articulação política de Francisco Julião na área rural do Nordeste3?

Essa história foi contada por Aluízio Alves em seu livro de memórias intitulado “O

que eu não esqueci”, que narra com destaque vários momentos de sua atuação política. O

autor produz um relato sobre seus encontros com representantes do governo dos EUA,

ressaltando aquele com o presidente John Kennedy.

Os fatos, ditos não esquecidos por Aluízio Alves, resultaram de um trabalho da

memória, que opera com a seleção e a produção, acrescenta, subtrai, ordena de uma nova

forma. A história de sua estada no Departamento de Estado norte-americano é aqui tomada

como ponto de partida para uma linha de investigação: sobre o interesse e a preocupação que

os EUA demonstravam em relação ao Nordeste do Brasil e, neste caso, a um determinado

personagem político: Francisco Julião.

O governo de John Kennedy (1961-1963) implantou o programa da Aliança para o

Progresso. O objetivo do recém-eleito presidente era criar, para a América Latina, novas

políticas para ampliação das oportunidades profissionais, educativas e de desenvolvimento de

projetos nas áreas de saúde, saneamento, alimentação e outras. A Aliança para o Progresso

utilizava ideias do Plano Marshall e era chefiada por Adolph Berle, responsável no governo

Franklin Roosevelt (1933-1945) pela implantação da política da Boa Vizinhança4. Apesar de

implantado por Kennedy, a concepção de outra forma de atuação sobre a América Latina

baseada na melhoria das condições de vida das populações pobres e não apenas no

aparelhamento das forças armadas já estavam sendo pensada no governo do presidente

Eisenhower. A hostil recepção a seu vice, Rixard Nixon, em visita a alguns países América do

Sul em 1958, alertou o governo norte-americano sobre a péssima imagem dos EUA que

circulava nessa região. Em 1959, o Conselho de Segurança Nacional passou a dar maior

importância à abordagem do Secretário Assistente para Assuntos Interamericanos, Roy

Richard Rubbottom, para quem as ações na América Latina deveriam se concentrar em

questões sociais e econômicas5. O lançamento da Operação Pan-americana pelo presidente

Juscelino Kubitschek, em 1958, também fortaleceu a ideia de que era necessária uma

mudança significativa na forma de agir.

3 Esta narrativa do encontro de Aluízio Alves com Jonh Kennedy foi construída a partir das informações contidas

no capítulo X do seguinte livro: ALVES, Aluízio. O que eu não esqueci: reminiscências políticas, 1933-2000.

Rio de Janeiro. Léo Christiano Editorial, 2001. 4 GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009. p. 57. 5 FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos

e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 23-26.

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26

Nesse debate, o Nordeste do Brasil tornou-se um dos principais pontos de atuação da

Aliança para o Progresso, que investiu milhares de dólares, por meio de uma cooperação

técnica com a Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste – SUDENE. Com essas

ações, os Estados Unidos desejavam se fazer mais presentes e atuantes em uma das áreas da

América Latina onde se acreditava existir um dos maiores focos de ação comunista no início

da década de 1960. Para o governo norte-americano, a pobreza dessa região era considerada

um dos principais fatores responsáveis pela aproximação dos trabalhadores, especialmente

camponeses, com o comunismo e seus representantes6.

Em uma audiência com o ex-presidente Juscelino Kubitstheck, Kennedy havia

afirmado, por mais de uma vez, que a situação do Brasil era prioritária e mais grave do que a

de Cuba, sobretudo devido à sua posição-chave nos assuntos do hemisfério7. O presidente dos

Estados Unidos demonstrava-se interessado e também quiçá preocupado com uma pessoa em

especial: Francisco Julião. Advogado, durante o curto governo Kennedy, ele exercia seu

segundo mandato (1959-1962) como deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro em

Pernambuco. Ao final, em novembro de 1962, foi eleito deputado federal também pelo PSB8.

Qual seria a “articulação” de Francisco Julião, referida por John Kennedy, segundo as

memórias de Aluízio Alves, que colocava este político brasileiro tão presente nas

preocupações do líder norte-americano? Havia discursos e imagens acerca daquele advogado

que circulavam em diversos veículos da imprensa dos Estados Unidos. O jornal The New York

Time, no dia 31 de outubro de 1960, publicou em sua primeira página uma reportagem com o

título “A Pobreza do Nordeste do Brasil Gera Ameaça de Revolta”. O texto do jornalista Tad

Szulc mostrava como a pobreza dos trabalhadores rurais era explorada por movimentos

sociais, como as Ligas Camponesas, segundo ele, infiltradas por agentes comunistas9.

Francisco Julião era apontado como uma das principais lideranças desse movimento e teria

6 MONTENEGRO, Antônio Torres. Labirintos do medo: o comunismo (1950-1964). In: ______. História,

Metodologia, Memória. São Paulo: Ed. Contexto, 2010. p. 151-183; PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo,

Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: Ed. UFPE, 2009. p. 59. 7 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961 – 1964. 7

a ed.

Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan; Brasília, DF: EdUnB, 2001. p. 94. 8 O Partido Socialista Brasileiro (1947-1965) foi fundado em 06 de agosto de 1947 no Rio de Janeiro, durante a

segunda Convenção Nacional da Esquerda Democrática, e extinto em 27 de outubro de 1965 pelo Ato

Institucional nº 2. A Esquerda Democrática, formada em meados de 1945, era integrada por um grupo de

intelectuais e políticos da tendência socialista que desejavam consolidar a oposição ao Estado Novo. Na

convenção realizada em agosto de 1947 a Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro,

tendo João Mangabeira como primeiro presidente. ABREU, Alzira Alves (Coord.). Dicionário Histórico-

biográfico brasileiro pós-1930. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed. FGV; CPDOC, 2001. p. 4410. 9 The New York Times. 31 out. 1960. p. 01. Ver também a discussão feita por MONTENEGRO, Antônio Torres.

Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em tempo de revolução. In: ______. História, Metodologia, Memória.

São Paulo: Ed. Contexto, 2010. p. 73-100.

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27

relações com os considerados líderes mundiais do comunismo. No período da reportagem, ele

tinha visitado a China de Mao-Tsé Tung. Também já havia estado em Cuba, naquele ano,

junto com a comitiva do então deputado e candidato a Presidência do Brasil, Jânio Quadros.

Missões do governo dos Estados Unidos foram mobilizadas, no início da década de

1960, para investigar in loco o que estava acontecendo no Nordeste do Brasil e também

conhecer e coletar informações sobre Francisco Julião. Em 1961, assessores do presidente J.

Kennedy realizaram uma longa viagem por países da América Latina. Visitaram o Brasil e

chegaram a Pernambuco. Arthur Shelesinger, um dos assessores, conheceu lugares muito

pobres, conversou com várias pessoas, entre elas Celso Furtado, superintendente da

SUDENE, e fotografou diversas situações. Ao retornar para os Estados Unidos, foi

questionado por Kennedy: “Quais os países que davam a Castro o maior apoio? Qual a

capacidade que tinha Castro de provocar violência simultânea e concentrada em vários

países?” 10

.

Arthur Shelesinger em sua resposta, quando se referiu ao Brasil, deve ter citado o

nome de Francisco Julião como um dos líderes das Ligas Camponesas, movimento que

apoiava Fidel Castro. Isso, contudo, era algo possível de se identificar, até mesmo para quem

vivesse nos Estados Unidos e não tivesse acesso às informações dos relatórios

governamentais.

Ainda em 1961, a jornalista Helen Jean Rogers que trabalhava para a rede de TV e

rádio ABC esteve em Pernambuco, a fim de realizar uma série de entrevistas e locações sobre

os movimentos sociais de camponeses. Recebida por Celso Furtado, a jornalista e sua equipe

visitaram feiras livres, luxuosas casas de senhores de engenho e entrevistaram camponeses.

Acompanharam também Francisco Julião em uma ação para mobilização de trabalhadores.

No Alto do Pascoal, uma localidade pobre nos morros da zona norte do Recife, os norte-

americanos presenciaram um encontro entre Julião e alguns dos seus correligionários e

simpatizantes. Conheceram o carisma e a facilidade de comunicação que ele tinha com as

camadas mais carentes da população. Escutaram seu discurso, no qual dizia esperar a união de

todos para realizar uma revolução igual a de Cuba, seguindo o exemplo do “grande Fidel

Castro”11

.

O material produzido a partir das gravações realizadas em Pernambuco foi

10

SCHLESINGER JUNIOR, Arthur M. Mil dias: John Kennedy na Casa Branca. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed.

Civilização Brasileira. 11

Ocorrência n° 54, 23 fev. 1961. Coleção Francisco Julião - Prontuário Dops. Mp 01. FUNDAJ. Ver também

PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964). Op. cit. p. 50.

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transformado em um média-metragem intitulado The Troubled Land, exibido no horário

nobre da emissora ABC, alcançando uma extraordinária repercussão12

.

De outro modo, a Central Intelligence Agency – CIA – registrava em seus relatórios

secretos, no início da década de 1960, a atuação das Ligas Camponesas no Nordeste do Brasil,

enfatizando a influência exercida pelos comunistas sobre este movimento. Um dos textos

afirmava que as “Ligas Camponesas lideradas pelo pro-comunista Francisco Julião estão

centralizadas no Nordeste e integram uma estrutura comunista de exploração das deficiências.

Existem 80 – 100 por toda a região, com um total de 60 a 80 mil membros” 13

. A CIA

destacava a dimensão do movimento e classificava Francisco Julião como o líder. Em outro

relatório da mesma agência, ele é definido como alguém que:

[…] tem indicado uma longa admiração por Fidel Castro e Mao Tse-Tung e

[ilegível] tem declarado desde o início deste mês: “Pela lei ou pela força nós

exigimos a reforma agrária, a reforma urbana e a reforma financeira”. Julião,

que se descreve como um marxista, mas não um comunista, prognosticou

que a revolução logo começaria no centro do Brasil14

.

A relação com Fidel Castro e o uso da força nas estratégias políticas eram aspectos

constantes nos textos produzidos sobre Julião e que circulavam nos EUA. O jornal Miami

Daily News informava, em março de 1963, que o “líder esquerdista das Ligas Camponesas do

empobrecido Nordeste brasileiro, não fez hoje qualquer mistério das suas táticas. A única

maneira de combater o que denomina de influência dos EUA na América Latina, disse ele, é

pela força”15

.

Tal afirmação teria sido dita em uma entrevista concedida ao correspondente George

Arfeld, da Associet Press, em Havana. Francisco Julião iria reunir-se com Fidel Castro para

organizar um congresso de solidariedade à Revolução, a ser realizado dentro de alguns meses

no Brasil.

A mesma reportagem também apresentava a preocupação do governo norte-americano

com o grande fluxo de latino-americanos em Cuba, pois “o chefe de Inteligência dos Estados

Unidos John McCone chocou Washington com seu testemunho de que 1500 latino-

americanos estiveram em Cuba no ano passado. […] Um dos latino-americanos que fez

12

FURTADO, Celso. A Fantasia desfeita. Op. Cit. p. 109. 13

Relatório da CIA – Drought in the Brazilian Northeast. 18 maio 1962. p. 12. Disponível em:

<http://www.foia.cia.gov>. Acessado em 25 nov. 2007. 14

Relatório da CIA - Leftist gains in Brazil. 15 dez. 1961. p. 33–34. Disponível em: <http://www.foia.cia.gov>.

Acessado em 25 nov. 2007. 15

Miami Daily News. 03 mar. 1963. Recorte integrante do prontuário de Francisco Julião. Prontuário Guanabara

n° 48.214. Caixa 2176. APERJ.

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freqüentes viagens a Cuba é Francisco Julião”, que ainda segundo o jornal, “declara liderar

cerca de dois milhões e meio de camponeses na luta pela terra”16

.

A reportagem do Miami Daily News publicava ainda uma pequena fotografia de

Francisco Julião, apresentando-o como um líder pronto para o enfrentamento, com seu

exército de camponeses. Entre 1961 e 1963, o seu nome circulou em diversas reuniões e

relatórios do governo John Kennedy. Naquele momento da Guerra Fria, a preocupação dos

Estados Unidos com o avanço do comunismo na América Latina estava também relacionada à

ação daquele líder de um movimento camponês no Nordeste do Brasil17

.

1 – Rua do Imperador. Recife, Brasil. 1944

Neste endereço, no 1° andar de um prédio no centro da cidade, funcionava o escritório

do advogado Francisco Julião. Em agosto de 1944, ele enviou uma correspondência ao seu tio

Pedro. Nela, abordava os problemas enfrentados por seu pai, Adauto Barbosa de Paula, com

os moradores do Engenho Espera.

Foi nas terras dessa propriedade, no município de Bom Jardim, agreste de

Pernambuco, que Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 16 de fevereiro de 1915. O

engenho pertencia a sua família. Ali aprendeu as primeiras letras, sob a vigilância rígida de

16

Miami Daily News. 03 mar. 1963. Op. Cit. 17

O historiador Carlos Fico no primeiro capítulo do seu livro O grande irmão discorre sobre a Aliança para o

Progresso e a visão produzida pelos governos dos Estados Unidos acerca do Brasil no período que antecedeu ao

Golpe civil-militar de 1964. Pontua sua análise com os elementos e dinâmicas da Guerra Fria. Nesse sentido, faz

algumas referências às Ligas Camponesas, cujos significados de suas ações, segundo ele, eram exagerados pela

imprensa, concordando com Celso Furtado, que afirmava ser este movimento “um proto-sindicalismo de

reivindicações sobre-modo modestas”. Nessa análise, deve-se levar em consideração que, na década de 1960,

Celso Furtado estava em um campo político oposto a Francisco Julião, sendo por isso um constante crítico de

suas ações. As avaliações produzidas por seu relato de memória, utilizadas por Carlos Fico, estavam informadas

também por essa disputa. Em relação ao exagero da imprensa sobre o significado das Ligas Camponesas, deve-

se pensar que na dinâmica da Guerra Fria as avaliações poderiam apresentar tons mais fortes. Contudo, acredito

que essa questão do exagero é um falso problema. Seria necessário analisar os efeitos produzidos pelas

reportagens publicadas no Brasil e nos EUA acerca desse movimento camponês e da atuação de um dos seus

principais líderes, Francisco Julião. Anthony Leeds no texto Brazil and myth of Francisco Julião, de 1964,

procurou caracterizar também como exagerada a preocupação com o alcance das atividades de Julião. Tratou de

desfazer aquilo que identificou como um mito, afirmando que o líder das Ligas Camponesas era um

latifundiário, organizava as atividades das Ligas fora da área onde estavam suas terras, era um advogado,

profissão da elite social, e era deputado. Considerava-o como uma liderança populista, no sentido de manobrar as

massas para benefício próprio. Mas, apesar de todas essas questões, o próprio Leeds parte da ideia de que se

formou um mito Francisco Julião. É esse o ponto que me interessa para essa tese, ou seja, independente se Julião

iria ou não promover mudanças radicais na sociedade, isso o golpe de 1964 não nos permitiu saber, quais as

imagens e as memórias foram conformadoras desse mito e como elas circularam e foram apropriadas nas

décadas seguintes. LEEDS, Anthony. Brazil and myth of Francisco Julião. In: Joseph Meier & Richard

Weatherhead, eds., Politics of Change in Latin America. New York: Praeger. 1964.

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30

sua mãe, Maria Lídia Arruda de Paula18

.

Logo depois, ainda menino, veio morar e estudar em Recife, onde realizou o então

curso secundário, ingressando, posteriormente, na tradicional Faculdade de Direito. Durante o

período universitário, adquiriu junto com um colega, Antônio Alcoforado de Almeida, um

colégio em Olinda – Instituto Monsenhor Fabrício, que oferecia formação primária para

meninas. Além da administração escolar, também ministrava aulas particulares de

Matemática, Inglês e História19

.

O empreendimento educacional não foi bem sucedido e após finalizar o curso de

Direito, em 1939, Francisco Julião constituiu uma banca de advocacia, “sem muito

entusiasmo”20

, segundo ele próprio. Em 1944, a carta enviada ao tio Pedro seguiu em papel

timbrado do seu escritório. Em seu segundo parágrafo, afirmava:

De algumas semanas para cá espalhou-se a notícia na Espera de que o Sr.

havia dado ordem aos moradores da sua parte de terra arrendada a papai para

que os mesmos não dessem cumprimento aos seus deveres relativamente à

“condição”a que são obrigados por contrato e como é de praxe, naquela

zona. Como, realmente, alguns desses moradores se venham esquivando de

dar a “condição” referida, fato que nunca sucedeu, desde que papai é seu

rendeiro, porque ache o Sr. incapaz de um ato dessa natureza, desejo que nos

preste melhores esclarecimentos, a fim de fazer cessar essa exploração em

torno do seu nome21

.

O objetivo da carta era resolver um desentendimento entre irmãos. O advogado

procurava compreender porque a condição22

- uma das formas de exploração do empregador

sobre o camponês - não estava sendo cumprida por alguns moradores que viviam nas terras

arrendadas a seu pai, Adauto, por seu tio, Pedro. Para o autor da correspondência, o

cumprimento dos deveres por parte dos trabalhadores rurais, além de estar em contrato, era de

praxe naquela região. E, naquele momento, assim deveria seguir.

Uma cópia do documento citado faz parte do dossiê que a polícia política em

18

Informações extraídas da entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes.

CEHIBRA. Fundação Joaquim Nabuco. 21 set. 1982. p. 01. 19

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 04. 20

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. 21

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 340. DOPS/PE. APEJE/SSP: 17817. 22

Segundo Caio Prado Jr. a condição “consiste na obrigação imposta ao trabalhador a quem foi concedido

terreno para uso próprio, de dar tanto ou quantos dias de trabalho ao empregador. Esses dias de trabalho são em

regra pagos a preço inferior ao nível corrente da região, e às vezes são mesmo concedidos gratuitamente, isto é,

não são remunerados”. PRADO JR., Caio. Nova contribuição para a análise da questão agrária no Brasil. 1962.

p. 93. apud DABAT, Christine Rufino. Moradores de engenho: relações de trabalho e condições de vida dos

trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores

sociais. Recife: Ed. UFPE, 2007. p. 330.

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Pernambuco construiu sobre Francisco Julião durante os vários anos em que o investigou e

perseguiu. Há poucas referências sobre este período da década de 1940 e os primeiros anos da

seguinte. Além desta carta, o material produzido ou coletado pela polícia apresenta um

advogado que organizava comícios da Associação Recifense de Defesa da Paz e da Cultura e

anunciava seus serviços, em 1951, no jornal Folha do Povo, do Partido Comunista do

Brasil23

.

Uma cópia da lista de atividades de Julião, produzida pela polícia, indicava que a

ligação do bacharel em direito com esse jornal remetia ao início dos anos 1950. Neste

momento ele era presidente da Sociedade de Ajuda a Imprensa Popular e promoveu algumas

campanhas a fim de arrecadar dinheiro e comprar uma linotipo para a Folha do Povo24

.

De outro modo, os relatos de memória de Francisco Julião ressaltam, já para a década

de 1940, o desenvolvimento das ações do advogado junto aos camponeses. “Foi um trabalho

de muitos anos. Basta dizer que comecei essa coisa em 1940. Eu saí da faculdade em

dezembro de 39 e, em 40, comecei a visitar os camponeses”25

. Aqui não se deve perder de

vista que na narrativa de uma vida, como afirma Daniel James, “em parte os elementos

discordantes são, em um sentido formal, subsumidos, reconfigurados segundo o modelo

dominante da epopeia romântica”26

.

Nos anos 1940, Julião desenvolvia uma advocacia que ele mesmo chamava de “clínica

geral”. Ou seja, atuava em diversas áreas do Direito, apesar de estudar um pouco mais a

questão familiar. Trabalhou em vários casos de desquite e investigação de paternidade e

atuou, ainda, defendendo prostitutas e camponeses.

Para a polícia, o que parecia mais importante a ser registrado, neste período, era a sua

ação junto à imprensa popular. Esta era constituída por uma rede de jornais do Partido

Comunista, que circulavam nos principais centros urbanos. Em 1947, o PC havia criado o

Movimento de Apoio à Imprensa Popular – MAIP – e pouco depois, em Recife, a Sociedade

23

Prontuário Individual de Francisco Julião. Nº 11442. Doc. nº 345 e 379. Op. Cit, Aproveito aqui para algumas

poucas considerações sobre o PCB – Foi fundado em março de 1922 com o nome de Partido Comunista do

Brasil, alterado para Partido Comunista Brasileiro durante sua conferência nacional realizada em 1961. Sobre

essa trajetória partidária há uma consolidada historiografia, da qual cita três: AARÃO REIS FILHO, Daniel. A

revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990; PANDOLFI, Dulce

Chaves. Camaradas e companheiro: história e memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995;

BRANDÃO, Gildo Marçal. Esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista – 1920-1964. São Paulo:

HUCITEC, 1997. Ver ainda o verbete sobre o PCB em ABREU, Alzira Alves (Coord.). Dicionário Histórico-

biográfico brasileiro pós-1930. Op. Cit. 24

Prontuário Individual de Francisco Julião. Nº 11442. Doc. nº 52. Op. Cit, 25

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV. p. 09. 26

JAMES, Daniel. Doña María: historia de vida, memoria e identidad política. 1a ed. Buenos Aires: Manantial,

2004. p. 168.

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de Apoio à Imprensa Popular – SAIP, dirigida por Francisco Julião27

.

Registrou-se ainda que o advogado havia recebido uma correspondência do escritor

Jorge Amado. Nela falava-se sobre uma campanha, liderada pelo então presidente da SAIP,

para arrecadar 15 milhões de cruzeiros a serem destinados a imprensa popular28

. A polícia

estava atenta e parecia mapear as suas possíveis ligações com os comunistas.

Havia também outra área de atuação daquele jovem advogado. Com 36 anos, ou seja,

em 1951, ele publicou seu primeiro livro: Cachaça. Constituída por seis contos, a obra

abordava o problema do excessivo consumo de álcool entre os trabalhadores do campo,

incentivado, muitas vezes, pelos proprietários rurais que usavam a cachaça para pagar aos

seus empregados. Francisco Julião parecia estrear com certa pompa no campo literário, afinal

seu livro recebeu um prefácio, com elogios, escrito por Gilberto Freyre:

Li os contos do Sr. Francisco Julião com atitude de leitor que pede ou exige

desse gênero de literatura que lhe desperte a emoção, a sensibilidade e o

gosto de descobrimento: descobrimento de pequenos aspectos ignorados ou

pouco conhecidos da natureza humana. Embora um tanto caricaturesco em

algumas páginas, creio que em nenhum dos seus contos o Sr. Francisco

Julião desaponta o leitor29

.

No início dos anos 1950, uma carreira literária parecia ganhar fôlego. Entretanto, ela

competiria com outra, a político-partidária. No período da redemocratização pós-1945, Julião

filiou-se ao Partido Republicano30

. Neste, concorreu ao cargo de deputado federal, ficando na

terceira suplência. Após romper com o PR, migrou para o Partido Socialista Brasileiro, com o

qual disputou o pleito de 1954, sendo eleito deputado estadual.

Esta foi uma difícil vitória. O advogado tornou-se deputado por meio do quociente

eleitoral do partido, visto que conseguiu se eleger com apenas 480 votos. Sobre esta questão a

polícia registrou em 29 de dezembro de 1954: “Advogado. Proclamado candidato vitorioso,

no pleito de 3.10.1954”31

. E quase um mês depois, em 27 de janeiro de 1955, acrescentou:

27

LIRA, Ana Paula Araújo. Folha do Povo: a voz popular no jornalismo diário recifense (1935-1960). In: Anais

do V Congresso Nacional de História da Mídia. São Paulo, jun. 2007. Disponível em:

<www.intercom.org.br/papers/outros.hmidia2007/resumo>. Acessado em 15 nov. 2011. 28

Processo SECOM 34.646/65. BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.17. Cx. 584. fl. 05. 29

JULIÃO, Francisco. Cachaça (contos). Prefácio Gilberto Freyre. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. p.

15. 30

Partido político de âmbito nacional fundado em agosto de 1945 e extinto em 27 de outubro de 1965 pela AI

nº2. Sua principal liderança foi Artur Bernardes, ex-presidente da República (1922-1926). Seus principais

quadros políticos saíram da UDN – União Democrática Nacional – após a promulgação do novo código eleitoral

em fevereiro de 1945. ABREU, Alzira Alves (Coord.). Dicionário Histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Op.

Cit. p. 4355. 31

Processo SECOM 34.646/65. Op. Cit.

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33

“Eleito pelo PSB, com 480 (?) votos”32

. Sim, a polícia parecia surpresa com a quantidade de

votos33

que fez de Francisco Julião deputado estadual.

Em um dos seus relatos de memória, de 1977, ele narrou como havia sido

surpreendido com o resultado:

Eu voltava do interior – como sempre, ia defender camponeses – e encontrei

a casa cheia. Todo mundo dizendo: “Olhe, você acaba de ser eleito deputado

estadual”. Eu perguntei: “Mas como?” E responderam: “É que se somaram

os diversos companheiros do partido e a soma de tudo deu o quociente

eleitoral e você está eleito deputado”. Eu disse: “Mas é uma surpresa

tremenda. Bem, agora vou ter duas tribunas: a tribuna judiciária e a tribuna

política. Já é interessante”34

.

A vitória eleitoral, por mais surpreendente, entrou harmoniosamente nesta narrativa

que se apresentava, retomando Daniel James, como a “epopeia romântica”, neste caso, de

formação de um líder dos camponeses. Assim, ser eleito ratificaria uma escolha anterior por

uma trajetória de luta em defesa destes trabalhadores.

De todo modo, ser levado à condição de deputado estadual oferecia uma maior

visibilidade pública para as suas ações em favor dos direitos dos camponeses ou das

prostitutas. Meses após a eleição de 1954, em janeiro do ano seguinte, um grupo de

trabalhadores procurou a Francisco Julião. Eles eram de Vitória de Santo Antão, município da

Zona da Mata de Pernambuco. Vinham de um engenho chamado Galiléia.

2 – Várzea, um bairro afastado. Recife, 1955.

Era manhã de um domingo ensolarado em Recife. Pela Avenida Caxangá, a carroça,

puxada a cavalo, trazia um grupo de pessoas. Eram quatro homens que com seu transporte

avançavam lentamente pela via, cujo tráfego estava bastante reduzido. Um deles carregava

consigo alguns papéis amarrados com barbante.

32

Processo SECOM 34.646/65. Op. Cit. O Almanaque de dados eleitorais organizado por Wanderley Guilherme

dos Santos diz que Francisco Julião recebeu exatamente 497 votos, o que se aproximava da informação

apresentada pela polícia. Julião foi o último candidato eleito para a Assembleia Legislativa de Pernambuco no

pleito de 1954. Em todo o Brasil, ficou à frente apenas, em número de votos, de João Leopoldo de Menezes

Sobrinho, que ganhou a eleição para deputado estadual no Amazonas com 250 votos. SANTOS, Wanderley

Guilherme dos (Org.) Votos e partidos: almanaque de dados eleitorais: Brasil e outros países. Ed. FGV. Rio de

Janeiro, 2002. p. 74 33

Francisco Julião, em entrevista ao CPDOC, informa que obteve 495 votos. Apesar de não haver exatidão em

relação a esta informação, as variações são pequenas, reafirmando que o advogado foi eleito pelo quociente

eleitoral do partido. 34

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 32.

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34

Após deixarem aquela avenida, que cortava bairros afastados do centro da cidade do

Recife, seguiram por uma rua local até pararem em frente a um casarão, em estilo colonial. O

lugar parecia um sítio, visto a quantidade de árvores que existia ao redor da residência, com

destaque para as bananeiras e as mangueiras. Situava-se no bairro da Várzea, cortado pelo rio

Capibaribe35

.

A pessoa que trazia aqueles papéis chamava-se José Ayres dos Prazeres. Ele adentrou

a casa, enquanto os outros permaneceram fora. Passou por uma ante-sala pouco iluminada e

alcançou o escritório. Daí avistou uma sala de visitas, a sua esquerda, onde se encontravam

sentados dois homens lendo jornais. Os leitores não se assustaram, pareciam acostumados

com certo fluxo de gente na casa. Um deles levantou a cabeça, tirando os olhos do jornal e

fixando-os no visitante, que estava de pé, a sua frente, ainda com os papéis na mão.

- O que é que você quer? – perguntou Jonas de Souza, levantando-se da cadeira.

- Quero falar com o deputado – respondeu José dos Prazeres.

O outro homem, que continuava sentado, dobrou o Diario de Pernambuco,

posicionando-lo em seu colo, ao mesmo tempo em que respondia:

- Eu sou o deputado.

Ali estava Francisco Julião, deputado estadual eleito pelo Partido Socialista Brasileiro.

A conversa ganhou fôlego. José dos Prazeres começou a apresentar os motivos que o

levara a procurar o advogado e deputado. Relatou um conflito entre os moradores do Engenho

Galiléia e o proprietário, Oscar Beltrão. Ao final, desejava que o parlamentar os defendesse

neste embate.

Jonas de Souza, também advogado, enquanto escutava a conversa, analisava os papéis

apresentados pelo trabalhador. Eram os documentos de uma Sociedade Agrícola criada por

moradores daquele engenho. Precisavam ainda ser registrados em cartório e terem firma

reconhecida.

José dos Prazeres já havia procurado ajuda do governador do estado, Cordeiro de

Farias, e de deputados na Assembleia Legislativa de Pernambuco, sem, contudo, obter êxito.

Em meio a sua busca, alguém indicou o advogado Francisco Julião, que já era conhecido em

alguns setores sociais por defender camponeses na justiça. A indicação foi bem sucedida.

Após apresentar suas demandas, o morador do Engenho Galiléia escutou aquilo que ansiava:

- Eu os defenderei, sentenciou o político recém eleito e não empossado, que no

35

Esta informação está em MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo

de revolução. In: ______. História, Metodologia, Memória. Op. Cit. p. 82.

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35

domingo seguinte foi conhecer aquelas terras e a seus moradores36

.

Este era mais um encontro entre o advogado e um grupo de camponeses. De acordo

com o relato de Julião, ele já estava, há aproximadamente 15 anos, realizando ações em favor

de trabalhadores rurais, defendendo, da forma que era possível, estas pessoas na justiça contra

a exploração e os crimes praticados por diversos proprietários37

.

Mas deve-se pensar, como ressalta Antônio Montenegro, na dimensão do acaso

daquele encontro. Os camponeses “poderiam ter chegado à casa do deputado e este estar

viajando, estar em reunião e mesmo não querer recebê-los naquele domingo”38

. Ainda,

poderiam ter desistido de procurá-lo, visto que já haviam tido uma audiência com o próprio

governador e visitado gabinetes de diversos políticos e escritórios de outros advogados, sem

sucesso.

E qual o problema enfrentado por aquelas pessoas quando procuraram Francisco

Julião? No Engenho Galiléia, de fogo morto39

, eles criaram uma sociedade de ajuda mútua. A

Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco – SAPPP – deveria auxiliar

seus associados em momentos de dificuldade, como nos funerais. Por falta de recursos, muitas

pessoas utilizavam, para enterrar seus mortos, um caixão pertencente à prefeitura de Vitória

de Santo Antão, que após o sepultamento era devolvido, a fim de, posteriormente, ser usado

novamente. Com as contribuições pagas àquela sociedade, o trabalhador garantiria caixão e

sepultura, evitando ser enterrado em vala comum, considerado uma humilhação pela grande

maioria40

.

36

Esta narração do encontro entre Francisco Julião e os camponeses do Engenho Galiléia tomou por base as

impressões, as informações e os diálogos apresentados por Joseph Page, no capitulo III, do seu livro: A

revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1972. A principal

fonte utilizada pelo autor para construir a história da visita dos trabalhadores rurais a casa do deputado socialista

foi entrevistas que o mesmo realizou com Jonas de Souza, entre o período de julho de 1967 e junho de 1969.

Joseph Page era um estudante norte-americano do curso de Direito, que esteve no Brasil por seis vezes, entre os

anos de 1963 e 1971. O seu livro é constituído pelas informações coletadas durante este período, quando

conversou com várias das pessoas citadas no decorrer da obra e mesmo participou ou estava presente a alguns

dos acontecimentos descritos. Neste sentido, pode-se entendê-lo como uma produção de memória. Contudo, o

livro também foi construído em diálogo com diversas fontes de imprensa e apoiado em uma vasta bibliografia. 37

Francisco Julião, em sua entrevista ao CPDOC, narra como teria sido sua atuação entre o período de 1940 a

1955, antes do aparecimento das Ligas Camponesas. Ver Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia

Camargo em 1977. Op. Cit. p. 26-30. 38

MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução. Op. Cit. 39

Assim eram chamados os engenho que já não produziam açúcar. 40

O jornalista Antônio Callado identificou esta preocupação dos camponeses com o rito de sepultamento em

entrevistas que fez com moradores do Engenho Galiléia, em 1959, quando viajava por Estados do Nordeste do

Brasil, mais especificamente, Ceará, Paraíba e Pernambuco. Os registros produzidos foram utilizados na escrita

de algumas reportagens publicadas no Jornal Correio da Manhã. Callado havia sido convidado pela CODENO –

Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste – e incentivado pelo economista Celso Furtado para

observar in loco a situação de miséria em que vivia a maior parte da população daquela área do país. Acabou

também identificando como o dinheiro público destinado ao combate à seca beneficiava os grandes proprietários,

que haviam estruturado uma “indústria da seca”. As reportagens conseguiram ampla repercussão. Foram

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36

A SAPPP ajudaria os seus integrantes a pagar os débitos com o proprietário do

engenho, Oscar Beltrão. Desejava também instituir um advogado e contratar uma professora.

Segundo Francisco Julião, a Sociedade Agrícola visava ainda conseguir crédito para financiar

alguns implementos e aumentar sua produção de alimentos. Funcionaria como uma

cooperativa41

.

Os trabalhadores chamaram Oscar Beltrão para ser o presidente de honra. A princípio,

ele aceitou. Houve festa para a fundação da SAPPP e o proprietário parecia satisfeito, até

porque um dos camponeses, “Zezé da Galiléia, sugeriu que um dos propósitos colaterais

poderia ser criar um fundo especial, onde os membros incapacitados pela doença ou acidente

poderiam buscar ajuda para pagar as suas rendas”42

.

Dentro de um curto período, entretanto, o dono do Engenho Galiléia rompe com a

Sociedade Agrícola e exige sua extinção, ameaçando aumentar o foro43

e expulsar aqueles que

não o pagassem. Há duas versões principais para o rompimento: uma informa que outros

proprietários passaram a identificar naquela organização um foco de possível organização

comunista; a outra afirmar que o filho de Oscar Beltrão estava planejando usar as terras para

criação de gado e por isso desejava expulsar os moradores44

.

De uma forma ou de outra, os trabalhadores resolveram não acatar a ordem do

proprietário e buscaram ajuda. Pelas reportagens de Antonio Callado para o Correio da

Manhã e pelo relato de Joseph Page, o encontro entre Francisco Julião e os moradores do

Engenho Galiléia parecia marcar o início da saga das Ligas Camponesas, como ficou sendo

nomeada a SAPPP45

.

utilizadas pelo governo do presidente Juscelino Kubitscheck na obtenção de um maior apoio da opinião pública

para o desenvolvimento de novas políticas para o Nordeste, entre elas a criação da SUDENE. As matérias foram

publicadas em edições dos meses de setembro, novembro e dezembro de 1959. No ano seguinte, ganharam

formato de livro intitulado “Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco”. Para a informação dos caixões

emprestados pela prefeitura de Vitória de Santo Antão, ver CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os

galileus de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960. p. 34-35. 41

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 54. 42

PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op. Cit. p. 53. 43

Valor cobrado anualmente pelo proprietário para o uso da terra pelo trabalhador. 44

A primeira hipótese é apresentada por AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1982. p. 61; e por MORAIS, Clodomir. História das Ligas Camponesas no Brasil. In: STEDILE, João

Pedro (org.). A questão agrária no Brasil. História e natureza das Ligas Camponesas (1954-1964). São Paulo:

Expressão Popular, 2006. p.29. Joseph Page também compartilha desta primeira hipótese, apesar de apresentá-la

em conjunto com a segunda. PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op.

Cit. p. 54. 45

Tal denominação para a SAPPP foi dada pelo jornal Diario de Pernambuco e adotada pelos trabalhadores. A

imprensa buscava criar uma relação de continuidade entre essa organização camponesa de meados da década de

1950 com as Ligas Camponesas fundadas pelo Partido Comunista a partir de 1945, as quais fracassaram muito

em decorrência da repressão sofrida pelo partido e seus integrantes ao ser posto na ilegalidade, em 1947. Afirma-

se que esta foi uma estratégia para transferir esta condição de clandestinidade do partido para àquela sociedade.

Mas talvez, este discurso pode ter sido produzido tomando por base a aproximação de Julião a setores do PCB. e

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37

Em determinado momento, na memória do advogado, residente no casarão do bairro

da Várzea, a visita dos camponeses se constituiu como um acontecimento natural, um estágio

quase obrigatório em sua “epopeia romântica” de defesa dos trabalhadores rurais. Assim

recordava o encontro: “Aqui viemos, pois queremos ter um advogado para nos defender e

sabemos que você defende camponeses. Quando me buscaram, já sabiam, naturalmente, que

eu era um velho defensor de camponeses”46

.

Levando-se em consideração que os moradores do Engenho Galiléia procuraram

outros meios e pessoas para resolverem seu problema e só depois buscaram a Francisco

Julião, por indicação de alguém, pode-se imaginar que o advogado não ocupava uma posição

de liderança ou de destaque entre os camponeses em meados da década de 1950.

Neste período, aconteciam algumas iniciativas para debater a questão agrária no país.

A realização de congressos e conferências nacionais e regionais passou a mobilizar e reunir

camponeses. A II Conferência Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, por

exemplo, realizada em São Paulo, 1954, contou com representantes de 16 estados, somando

308 participantes. Ao fim, decidiu-se pela criação da União dos Lavradores e Trabalhadores

Agrícolas – ULTAB47

, ligada ao Partido Comunista.

Ainda em 1954, ocorreu o I Congresso Nordestino de Trabalhadores Agrícolas.

Realizado na cidade de Limoeiro, interior de Pernambuco, o evento foi orientado pelo Partido

Comunista, com a liderança do operário Pedro Renaux Leite. No final houve um confronto

entre a polícia e vários trabalhadores, muitos oriundos da cidade de Goiana, sob a

coordenação do camponês João Tomás e do bancário José Raimundo da silva, integrantes do

PCB48

.

Ao receber em sua casa um grupo de quatros pessoas que representavam os demais

moradores do Engenho Galiléia, Francisco Julião não se encontrava apenas com camponeses

em busca de ajuda. Tratava com pessoas que já participavam das lutas agrárias. Além de José

dos Prazeres, integravam a comissão o seu irmão, Amaro do Capim, Paulo Travassos e José

Francisco de Souza49

, mais conhecido como Zezé da Galiléia. Os três primeiros tinham

ligações com o Partido Comunista e atuaram na organização das Ligas Camponesas da década

de 1940.

a participação de integrantes comunistas na fundação da SAPPP, viabilizando assim a ideia de uma recriação das

Ligas Camponesas da década de 1940. 46

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 53. 47

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 58. 48

MORAIS, Clodomir. História das Ligas Camponesas no Brasil. Op. Cit. p. 27. 49

Nos diversos relatos sobre este encontro, não há uma unanimidade em relação à presença de Paulo Travassos.

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38

Apesar de ter se retirado oficialmente do PCB em 1947, José dos Prazeres participava

da mobilização de trabalhadores rurais para as organizações do partido. Especificamente

atuava na Liga Camponesa da Iputinga, ao mesmo tempo em que se dirigia para o campo,

agindo junto a camponeses em disputa com latifundiários50

.

Apesar de não ter encontrado indícios de que os representantes da SAPPP já

conhecessem a Francisco Julião, no início de 1955, ele estava próximo ao Partido Comunista.

Talvez tenha sido algum dos seus integrantes quem indicou o nome do deputado, que era do

PSB e recebeu o apoio do PCB nas eleições suplementares de 1955. O jornal comunista Folha

do Povo, integrante da Imprensa Popular, para quem Francisco Julião fazia campanha, a fim

de arrecadar recursos, sendo dirigente da Sociedade de Apoio à Imprensa Popular – SAIP,

publicou em janeiro de 1955, notícias sobre este apoio. No dia 07, estampou na capa: “Nas

eleições complementares, comunistas apóiam o nome de Francisco Julião”. Já no dia 09, diz:

“recebido com entusiasmo o apoio dos comunistas ao nome de Francisco Julião”; e conclui na

edição de 16 de janeiro com o lançamento da palavra de ordem, “Garantir a vitória de

Francisco Julião”51

.

A SAPPP conseguiu aos poucos estruturar uma rede de apoios, não se restringindo a

Julião. Formou-se um comitê político interpartidário constituído pelos também deputados

Ignácio Valadares e José Dias da Silva, ambos da União Democrática Nacional - UDN, Paulo

Viana de Queiroz e Clodomir Morais, do PTB, pelo prefeito de Jaboatão, Cunha Primo e pelo

advogado Djacir Magalhães. Francisco Julião não atuava sozinho no Engenho Galiléia,

estando o Partido Comunista representado por Clodomir Morais, deputado eleito pelo Partido

Trabalhista Brasileiro, e pelo advogado Djacir Magalhães52

. Além deles, Paulo Travassos,

integrante do grupo que foi à casa do advogado, era um militante comunista, cuja atuação se

deu no Espírito Santo até 1945, quando veio para Pernambuco fugindo da perseguição

policial.

Durante a década de 1950, Francisco Julião dedicava-se de forma cada vez mais

intensa a política. O escritor de Cachaça vai perdendo espaço para o político atuante. Outra

publicação só acontece em 1961, com o romance Irmão Juazeiro. Sobre essa questão, ele teria

afirmado: “Eu tinha certas pretensões literárias, que abandonei para me dedicar

50

MORAIS, Clodomir. História das Ligas Camponesas no Brasil. Op. Cit. p. 28-29. 51

Sobre estas informações das matérias publicadas no jornal Folha do Povo, ver AZEVEDO, Fernando. As

Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 62. 52

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 62; MORAIS, Clodomir. História das Ligas

Camponesas no Brasil. Op. Cit. p. 30.

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39

exclusivamente ao problema do camponês”53

.

O advogado havia ampliado consideravelmente sua ação política e essa era uma opção

que ocupava cada vez mais espaço na sua vida. Em 1954, conquistou a oportunidade de atuar

na Assembleia Legislativa de Pernambuco, onde seus discursos e suas ações ganhariam uma

maior ressonância. Em seguida foi procurado por um grupo de camponeses e militantes

políticos, organizadores de uma Sociedade Agrícola, que já em seu início, possuía 123

associados54

, um estatuto e registro público assinado pelo juiz Rodolfo Aureliano55

. Durante

os 15 anos anteriores, nos quais Francisco Julião advogou também para camponeses, mas não

só, parecia não haver encontrado condições tão favoráveis para o desenvolvimento de um

trabalho político.

Em agosto de 1955, as suas atividades no meio rural já ganhavam registro na polícia:

A delegacia do Recife recebeu uma comunicação reservada de que o

sindicado [Francisco Julião] em companhia do jornalista Clodomir Morais e

outros comunistas têm viajado por várias cidades do interior do Estado, onde

convocam reuniões com os trabalhadores agrícolas, com o fim de doutriná-

los para as hostes vermelhas, prometendo-lhes melhores dias56

.

Suas ações em defesa dos camponeses aumentaram rapidamente. Estava a principio

trabalhando com integrantes do Partido Comunista, relacionando-se com antigos militantes da

questão agrária, que procuravam se reinserir no campo, depois da repressão às Ligas fundadas

pelo partido na década de 1940.

Este caminho escolhido pelo advogado era difícil. Os espaços de atuação política no

meio rural pareciam já ser bastante disputados. Além disso, havia uma forte repressão

policial, que Francisco Julião logo sofrerá mais intensamente. Entretanto, o decorrer da

segunda metade da década de 1950 lhe oferece novas possibilidades, que ele utilizará para

ampliar e amplificar suas ações. Estas, em dezembro de 1956, continuavam sendo

investigadas por parte da polícia e foram anotadas da seguinte forma nos registros da

Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco:

Antigo militante do PC, sempre pronto a desenvolver quaisquer atividades

que venham ao encontro dos planos que lhe são confiados. Na Câmara

53

Esta frase encontra-se transcrita na apresentação do livro Cachaça escrita pelos filhos de Francisco Julião:

Anatilde, Anatailde, Anatólio e Anacleto Julião. JULIÃO, Francisco. Cachaça (contos). Op. Cit. p. 08. 54

Informação contida na carta enviada pela diretoria da SAPPP a Oscar Beltrão, convidando-o a tomar posse do

cargo de presidente de honra da referida sociedade agrícola. Acervo Dops-PE. 55

PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op. Cit. p. 53. 56

Processo SECOM 34.646/65. Op. Cit.

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40

Estadual é sempre um dos cabeças de quaisquer movimento de tendência

comunista. Sua ação subversiva está indo além da Capital, além de uma ação

simplesmente instrutiva, chegando agora à prática pessoal, incentivando com

sua presença, movimentos tendentes a perturbação da paz no Estado.

Organizou pessoalmente a SOCIEDADE AGRÍCOLA E PECUÁRIA DOS

PLANTADORES DE PERNAMBUCO, para [que] sua ação fosse mais

ampla e eficiente. O objetivo dessa sociedade é amotinar os camponeses,

levando-os à rebelião e à prática de atos criminosos57

.

Aos olhos da polícia, aparecia um indivíduo que deixava de realizar simplesmente

ações designadas pelo Partido Comunista, do qual era considerado um antigo militante, e

iniciava o planejamento e a execução de uma “prática pessoal”. Sua ação passava a ser

relacionada à “rebelião” e a “atos criminosos”. Para a DOPS-PE e setores da imprensa,

Francisco Julião vai se individualizando com os signos da agitação e do perigo a “paz no

Estado”.

3 - Vitória de Santo Antão – Pernambuco; novembro de 1956.

O mandato como deputado estadual já era exercido há mais de um ano. As ações junto

aos camponeses no interior de Pernambuco se intensificavam. Em paralelo, a polícia do

Estado aumentava sua vigilância em relação ao político socialista. No final do ano de 1956, o

seu prontuário individual, uma espécie de arquivo personalizado onde a DOPS-PE guardava

documentos produzidos e apreendidos sobre o prontuariado, aumentava de volume

rapidamente58

.

Em novembro daquele ano, vários telegramas foram enviados da cidade de Vitória de

Santo Antão para o Secretário de Segurança Pública de Pernambuco e depois encaminhados a

DOPS-PE.

Senhores de engenho Vitória comunicam vossência deputado Francisco

Julião vem mantendo nesta cidade, num desrespeito frontal nossas

constituições democráticas uma sociedade nitidamente comunista onde

congrega trabalhadores rurais município, enganando-os com promessas

irrealizáveis, fomentando descontentamento e revoltas no seio da

população59

.

57

Processo SECOM 34.646/65. Op. Cit. 58

O prontuário individual de Francisco Julião, número 11442, encontra-se no Arquivo Público Jordão

Emerenciano, em Recife-PE. É quase certo que o material disponível atualmente não significa tudo o que lá foi

depositado. Um ou outro documento deve ter sido extraviado, excluído ou mesmo destruído. 59

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 237. Op. Cit.

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41

Os motoristas daquele município também apelaram ao “[…] alto espírito patriótico

vossência sentido ser destruída sociedade comunista desta cidade dirigida pelo deputado

Francisco Julião”60

. A direção do Ginásio 3 de Agosto afirmava estar “revoltada contra

atitudes indignas deputado Francisco Julião, protesta junto vossência sentido seja esmagado

reduto vermelho desta cidade”61

.

As mobilizações realizadas pelos camponeses associados à SAPPP aumentaram em

quantidade e em tamanho no ano de 1956. Os proprietários de terra que alertaram Oscar

Beltrão, dono do Engenho Galiléia, da possibilidade de aquela Sociedade Agrícola vir a ser

um foco de organização comunista, já haviam saído do campo das probabilidades. Para eles e

outros setores sociais da cidade de Vitória de Santo Antão a SAPPP era um “reduto

vermelho”, fomentadora de descontentamento e revoltas, sendo mantida e dirigida por

Francisco Julião, que deste modo, segundo outro telegrama, “trai miseravelmente mandato lhe

foi conferido bravo povo pernambucano”62

.

As mensagens enviadas no dia 18 de novembro de 1956 ao Secretário de Segurança

Pública de Pernambuco também demonstravam forte apoio ao delegado da cidade. O capitão

Jesus Jardim de Sá tornara-se figura de destaque e admiração para algumas pessoas desta

cidade, pois havia evitado uma “hecatombe de consequências imprevisíveis”63

. No dia

anterior, ele prendeu o deputado estadual Francisco Julião, que se reunia com camponeses

daquele município.

Segundo Joseph Page, o delegado tratou de cortar a linha telefônica entre Recife e

Vitória, reprimiu a concentração de camponeses e tomou o deputado como prisioneiro, depois

de um confronto corpo a corpo entre os dois. Julião teria ainda desafiado o delegado para um

duelo à bala64

, o que não ocorreu. O parlamentar foi transportado até a capital, onde foi

entregue a um coronel do exército, ajudante de ordem do governador Cordeiro de Farias65

, e

depois rapidamente libertado. Na Assembleia Legislativa recebeu apoio dos outros políticos,

que mesmo não lhe sendo simpáticos, rechaçaram a violenta quebra da imunidade

parlamentar.

O capitão Jesus Jardim foi afastado de suas funções até a conclusão do inquérito

60

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 239. Op. Cit. 61

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 242. Op. Cit. 62

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 250. Op. Cit. 63

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 246. Op. Cit. 64

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador – Coleção Perfil Parlamentar

Século XX. Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco – Coleção Perfil Parlamentar Século XX,

2001. p. 93. 65

PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op. Cit. p. 64.

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42

instaurado. Um delegado especial foi designado para investigar o caso. A mobilização

daqueles camponeses integrantes da SAPPP saía do engenho e tornava-se cada vez mais

pública. Ao mesmo tempo, Francisco Julião passava, aos poucos, a ser identificado como um

dos líderes daquele movimento. A DOPS-PE começou a direcionar alguns dos seus agentes, a

fim de realizarem uma vigilância constante sobre o deputado. Em determinados períodos,

foram produzidos relatórios diários sobre o que acontecia na sua residência66

. Apesar destes

não trazerem informações detalhadas, serem poucos e curtos, percebe-se um aspecto que se

repetia e começava a chamar atenção dos agentes: o grande número de pessoas a frequentar,

em diversos horários, a casa do parlamentar.

Mas, de volta ao episódio da prisão em Vitória de Santo Antão, é possível ainda se

fazer algumas conjecturas: a ação do delegado Jesus Jardim pode ter ocorrido sob orientação

de algum superior. Ele provavelmente não agiu de forma isolada, pelo menos no planejamento

da sua atitude. Quiçá o governador tivesse conhecimento, mesmo por conversas de bastidores,

sobre o que poderia acontecer naquele município. Afinal, o general Cordeiro de Faria não

apoiava a SAPPP desde seu início. Uma comissão de camponeses do Engenho Galiléia o

havia procurado e após esse encontro o governador teria comentado com os seus funcionários

ser aquilo uma atitude “sediciosa”67

. Em 1957, um ano após o episódio da prisão, o capitão

Jesus Jardim de Sá foi promovido a major, ultrapassando 10 outros policiais militares, que

estavam à sua frente na escala de promoção68

. Talvez uma recompensa por serviços prestados.

Além disso, a polícia já investigava o Engenho Galiléia desde 1955. Isto é o que

afirmava o relato do agente n° 118 de agosto deste ano: “Designado por V.S. para em

companhia do inv. N° 194 e o auxiliar Aluízio [...], fazer uma diligencia no Engenho Galiléia

no município de Vitória de Santo Antão, a fim de constatar o que de verdade estava

acontecendo no referido Engenho […]”. Ao final, definia o investigador:

[…] este pessoal obedece fielmente seus dirigentes e orientadores, como

sejam FRANCISCO JULIÃO, JOSÉ DOS PRAZERES e CLODOMIR

MORAIS, elementos estes que no dia 21 do corrente tomaram parte em uma

grande reunião na residência de JOSÉ FRANCISCO DE SOUZA, vulgo

ZEZÉ, resultando mais uma vez ficarem completamente doutrinados sobre

qualquer movimento contrário […]69

.

66

Esses relatórios estão no prontuário 11442 de Francisco Julião. A leitura deles, entretanto, não oferece muitas

informações dos nomes de pessoas que freqüentavam sua casa. Isto pode significar que em sua maioria eram

trabalhadores do meio rural, cuja identificação tornava-se, a princípio, mais difícil. 67

PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op. Cit. p. 54. 68

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador. Op. Cit. p. 94. 69

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 228. Op. Cit.

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43

Uma parte da polícia constatava, em meados de 1955, que camponeses do Engenho

Galileia não mais obedeciam ao dono da propriedade e sim aos dirigentes de uma sociedade

agrícola identificada com o Partido Comunista. Isto representaria a quebra de uma ordem

estabelecida há muitos anos e mantida, inclusive, com a contribuição da própria instituição

policial, sempre pronta para reprimir qualquer movimento de insatisfação dos trabalhadores

rurais.

Naquele mesmo ano, no mês de setembro, realizou-se em Recife o I Congresso

Camponês de Pernambuco, com a presidência do então deputado federal pelo PTB Josué de

Castro e a presença de três mil camponeses. Neste congresso, a SAPPP, que em seu início

deveria atuar apenas no Engenho Galileia, transformou-se em uma associação estadual,

adquirindo uma estrutura orgânica que baseara a atuação das Ligas Camponesas, como

passará a ser nomeada aquela sociedade agrícola70

. José Ayres dos Prazeres foi eleito o

presidente das Ligas e após o congresso os camponeses se organizaram e marcharam pelas

principais ruas do centro do Recife71

.

Passado pouco mais de um ano, a prisão efetuada pelo delegado Jesus Jardim poderia

ser uma forma mais direta de ameaçar o deputado, considerado pela polícia um dos dirigentes

das Ligas Camponesas, e tentar enfraquecer a mobilização dos trabalhadores. Talvez um aviso

de que a sua imunidade parlamentar não lhe traria qualquer tipo de garantias. Possivelmente,

desejava-se acabar logo com qualquer forma de liderança política, contestatória de uma ordem

social existente, a se formar no meio rural.

Os relatórios de agentes da DOPS-PE mostravam, contudo, o crescente número de

pessoas que frequentavam a casa de Francisco Julião. O deputado e advogado seguiria

mobilizando ainda mais pessoas. Era carismático e tornara-se popular, o que, para a polícia,

significaria ser algo ainda mais perigoso.

4 – União Soviética, China e Cuba; entre 1957 e 1960.

As Ligas Camponesas cresceram e se expandiram para diversos municípios dentro e

fora de Pernambuco. No final de 1959, elas já eram conhecidas nacionalmente,

principalmente por meio da imprensa. As reportagens de Antônio Callado publicadas no

Correio da Manhã72

e debatidas no Congresso Nacional, bem como o editorial do jornal O

70

Ver a nota 43 deste capítulo. 71

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 67. 72

Ver CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco. Op. Cit.

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Estado de São Paulo, de fevereiro de 1960, debatendo a desapropriação do Engenho

Galileia73

em favor dos camponeses, contribuíram na promoção e repercussão nacional

daquele movimento.

Ao mesmo tempo, o nome de Francisco Julião passou a circular com mais intensidade

nos meios políticos do Brasil, associado diretamente as Ligas Camponesas. O deputado

também iniciou uma série de viagens internacionais, que contemplaram, entre outros, países

cujo regime era comunista. Em 1957 esteve na União Soviética, participando de uma missão

econômica-parlamentar que saiu do Nordeste. Em 1960, integrou uma reunião internacional

de juristas, que ocorreu em Sofia, na Bulgária. Daí seguiu com uma delegação de advogados e

magistrados brasileiros, argentinos e chilenos para a China continental, a convite da delegação

de juristas deste país asiático. Ainda naquele ano, pouco antes das eleições presidenciais, foi a

Cuba a convite de Jânio Quadros, candidato a presidente da República, que formou uma

comitiva para aquela viagem74

.

Francisco Julião estabelecia os primeiros contatos com países onde o comunismo,

mesmo de diferentes formas, era praticado. As leituras marxistas sobre este tema, realizadas

desde a juventude, agora seriam contrapostas ou completadas pela experiência.

Da China, mais especificamente da cidade de Xangai, onde esteve em 1960, ele

escreveu um cartão postal para o líder do Partido Comunista no Brasil, Luís Carlos Prestes.

Prestes:

A China já é mais do que tudo quanto ouvi do ilustre amigo. Pelo que tenho

visto e sentido dentro de dez anos este povo terá constituído a mais perfeita

sociedade sem classe sobre a Terra porque é dono de uma mão de obra

inesgotável com todas as matérias primas à disposição, tudo isso conduzido

com humildade, paciência e sabedoria.

Com as saudações do Julião75

.

O texto era informal, próprio de um postal. O líder comunista brasileiro é chamado

apenas por Prestes e o advogado socialista assina, simplesmente, Julião. Indicava-se que a

China já havia sido tema de debate entre os dois. Talvez, nesta conversa, o dirigente do

Partido Comunista tenha minimizado possíveis avanços ocorridos naquele país com a

73

Para mais informações sobre o processo de desapropriação e sobre o editorial do jornal O Estado de São

Paulo, ver PORFIRIO, Pablo F. de A. Medo, comunismo e revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: Editora

Universitária da UFPE, 2009. p. 23-57 74

Estas informações constam no depoimento de Francisco Julião prestado a polícia em 07 de julho de 1965, na

cidade de Niterói-RJ, Fortaleza de Santa Cruz. Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 13 e

14. Op. Cit. 75

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 293. Op. Cit.

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Revolução Chinesa de 1949. Pode também ter feito algumas críticas a este processo,

assumindo uma postura da URSS, que discordaria da posição de vanguarda oferecida aos

camponeses.

Para Francisco Julião, a China que ele conhecia e apresentava por meio daquele cartão

postal, em novembro de 1960, caminhava para ser uma sociedade perfeita. Estaria ele

realizando uma comparação entre o país asiático e o Brasil e, naquele momento, pensando na

concepção de uma revolução, baseada na mobilização popular, sobretudo camponesa, como a

liderada por Mao-Tsé-Tung? Humildade, paciência e sabedoria seriam aspectos que o

organizador das Ligas Camponesas tomaria para si? Os dois últimos estariam dialogando com

a estratégia desenvolvida pelo Partido Comunista, a partir de 1958, quando se definiu que a

revolução brasileira ocorreria por meio de etapas, com a aliança entre as forças populares e a

burguesia nacionalista, para a derrubada do latifúndio? Teria Luis Carlos Prestes realizado

esta leitura? Não se sabe nem se ele recebeu o postal. Estes são apenas pensamentos possíveis

para aquele período, quando Francisco Julião parecia estar próximo a dirigentes do Partido

Comunista. Mas também, quando as Ligas Camponesas cresciam rapidamente e começavam a

ser consideradas como um grande movimento de massas, capaz de ameaçar o status quo no

meio rural e promover mudanças. Esta é uma informação que não se deve perder de vista.

As viagens internacionais permitiram a Francisco Julião conhecer novas experiências

políticas. Ofereceu encontros e possibilidade de se tornar mais conhecido nos setores políticos

no Brasil. Podem também ter indicado novos caminhos para sua própria trajetória. Além de

escrever a Luís Carlos Prestes diretamente da China comunista, foi a Cuba na comitiva de

Jânio Quadros, então candidato a presidência da república, vitorioso, meses depois, com

expressiva votação. Apesar desta viagem, Julião apoiou, na eleição de 1960, o candidato

adversário, Marechal Henrique Lott. Em 1957, na União Soviética, havia encontrado com o

então vice-presidente da república, João Goulart, que teria lhe dito: “A União Soviética é o

paraíso das crianças”76

.

Em 1960, Francisco Julião era dirigente de um movimento de massa em franca

expansão, transitava por países considerados como as principais experiências de esquerda do

período e conversava com importantes políticos brasileiros. Nos anos seguintes, buscou a

condição de uma liderança nacional, marcada pelo discurso da reforma agrária. Passaria então

a debater os rumos da chamada revolução brasileira, questionando e discordando frontalmente

da tese etapista defendida pelo Partido Comunista. Contudo, será a aproximação ao governo

76

Informação contida no depoimento de Francisco Julião, na Fortaleza de Santa Cruz, Niterói-RJ, em 07 jul.

1965. Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 17. Op. Cit.

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de Cuba e a inserção de sua imagem na dinâmica da Guerra Fria que o transformarão em um

potencial revolucionário da América Latina.

5 – Cuba; 1960 a 1963.

Aquele mundo, onde circulava o dirigente das Ligas Camponesas, vivenciava a

atmosfera da chamada Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética, consideradas

superpotências depois da II Guerra Mundial. A peculiaridade daquele conflito, segundo Eric

Hobsbawn, “era a de que em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra

mundial”77

. Apesar disso, havia momentos de forte tensão promovida pela ameaça do uso de

armas nucleares e por declarações radicais, que abalaram “os nervos de várias gerações”78

.

Aproximadamente, três anos antes da visita de Francisco Julião a China, o comandante da

revolução comunista naquele país, Mao Tsé Tung, teria declarado a Palmiro Togliatti, líder

italiano: “quem lhe disse que a Itália deve sobreviver? Restarão três milhões de chineses, e

isso será o bastante para a raça humana continuar”79

.

A declaração de Mao Tsé Tung, referia-se a uma possível inevitabilidade de um

confronto nuclear, que provocaria a derrota total do capitalismo80

. Ela circulava em um

mundo no qual governos ocidentais eram cada vez mais anticomunistas. Para os Estados

Unidos, a política de combate ao comunismo foi considerada uma cruzada e seus presidentes

deveriam liderá-la.

Quando John F. Kennedy foi eleito em 1960, a ameaça comunista dentro dos EUA era

praticamente inexistente. A marcha de confronto era internacional e aliava o objetivo de

promover a derrota dos chamados vermelhos a uma política de sustentação e expansão da

supremacia norte-americana. Assim, Kennedy afirmava: “vamos moldar nossa força e nos

tornar os primeiros de novo. Não os primeiros se. Não os primeiros mas. Mas primeiros e

pronto. Quero que o mundo se pergunte não o que o sr. Kruschev está fazendo. Quero que

eles perguntem o que os Estados Unidos estão fazendo”81

.

Apesar de ter estado bastante debilitada em sua economia no final da Segunda Guerra

Mundial, a União Soviética apresentou um quadro de melhoras em suas finanças e de

77

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,

1995. p. 224. 78

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit. p. 227. 79

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit. 80

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit. 81

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit. p. 234.

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conquistas tecnológicas entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960. A liderança da

corrida espacial82

, naquele momento, e a perspectiva do desenvolvimento na produção de

bens de consumo promoveram uma maior confiança de diversos setores sociais,

principalmente de esquerda, naquele projeto de socialismo83

.

Em paralelo, os soviéticos adquiriam ainda mais influência política no chamado bloco

do Terceiro Mundo84

, apoiando movimentos de libertação nacional e em favor do socialismo

em alguns países da Ásia e da África. A Revolução Cubana, a independência da Argélia e a

Guerra do Vietnã ofereciam ganhos políticos e territoriais para o socialismo e exigiam reações

do lado dos norte-americanos. Dentro da dinâmica da Guerra Fria, as tensões se acentuavam.

Destes últimos acontecimentos, a Revolução Cubana, 1959, tocará diretamente os

caminhos de Francisco Julião. Quando ele esteve em Cuba, em 1960, na comitiva de Jânio

Quadros, Fidel Castro ainda não havia tornado aquela revolução oficialmente socialista, o que

ocorreria apenas no ano seguinte. Em 1959, inclusive, o comandante cubano visitou, em um

movimento diplomático, os Estados Unidos e vários países da América Latina, como o Brasil.

Neste, encontrou-se com o presidente Juscelino Kubitschek e declarou, em um programa de

televisão, que a Revolução Cubana não deveria ser exportada, pois a revolução deveria

ocorrer de acordo com as condições internas de cada país85

.

De qualquer modo, o então organizador das Ligas Camponesas, quando esteve em

Cuba, observou de perto a experiência de um movimento revolucionário, que não seguia os

padrões tradicionais da esquerda marxista-leninista do período. Naquele caso, a tomada do

governo ocorreu sem a dependência de um partido de vanguarda, como no modelo russo. Este

era o exemplo de um país, dos considerados periféricos da América Latina, Ásia e África, que

adquiria uma nova posição dentro da dinâmica da Guerra Fria.

O chamado Terceiro Mundo, desde meados da década de 1950, começou a ser

apresentado como o último reduto, onde poderia ocorrer uma revolução social. Segundo Eric

82

Lançamento do satélite de comunicação, Sputnik (1957), envio da sonda Lunik II à Lua (1959) e do primeiro

homem ao espaço, Yuri Gagarin (1961). 83

BARÃO, Carlos Alberto. A influência da Revolução Cubana sobre a esquerda brasileira nos anos 60. In:

MORAES, João Quartim de; AARÃO REIS FILHO, Daniel (orgs.). História do Marxismo no Brasil. Campinas,

SP: Editora da UNICAMP, 2007. p. 231. 84

A expressão Terceiro Mundo denominava o grupo de países considerados subdesenvolvidos, que não eram

partícipes do capitalismo desenvolvido e nem do socialismo europeu. Em 1955, os países que se reuniram na

Conferência de Bandung, Indonésia, convocada pelo grupo de Colombo (Índia, Paquistão, Ceilão, Birmânia e

Indonésia), da qual participaram mais outros 29 países da Ásia e da África, apresentaram-se como sendo um

Terceiro Mundo. A proposta inicial era manter uma posição de eqüidistância em relação aos EUA e a URSS.

Entretanto, o apoio dos soviéticos ao Egito, no confronto do Canal de Suez, possibilitou-lhes o acesso político a

países da África e da Ásia. 85

BARÃO, Carlos Alberto. A influência da Revolução Cubana sobre a esquerda brasileira nos anos 60. Op.

Cit. p. 233.

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Hobsbawn, aquele grupo de países representava a maioria das pessoas do mundo e “parecia

um vulcão prestes a entrar em erupção”86

. Nesta região se davam os principais confrontos

indiretos entre EUA e URSS durante a Guerra Fria e nela se desenvolviam movimentos

populares de contestação ao status quo, que chamavam cada vez mais atenção dos norte-

americanos e da Europa Ocidental.

A agitação social existente neste Terceiro Mundo animava os velhos revolucionários,

bem como os românticos de esquerda, incluindo também liberais humanitários e social

democratas, que não aceitavam as imobilizações promovidas pelos partidos e nem se

contentavam com conquistas de seguridade social e salários crescentes87

. Estes aspectos

contribuíram para dar visibilidade a movimentos considerados revolucionários crescentes em

países da América Latina, África e Ásia.

Por outro lado, os Estado Unidos também dirigiam suas atenções para estas regiões.

Reduzindo a escala para a América Latina, vê-se que os norte-americanos começaram a se

preocupar intensamente ao perceberem que um regime comunista tinha se instalado em uma

ilha, localizada a poucos quilômetros de sua costa. O medo de tal situação política se alastrar

a outros países da América favoreceu na elaboração e lançamento, na I Conferência de Punta

Del Este, em 1961, da Aliança para o Progresso, programa que, como citei no início do

capítulo, visava financiar e executar projetos, a fim de atender a população mais pobre do

continente.

Para os Estados Unidos era inaceitável a possibilidade de mais outro país da região

promover uma revolução comunista. O jovem presidente Kennedy se elegeu garantindo

empenhar suas forças para que isto realmente não acontecesse. Várias missões políticas,

jornalísticas e acadêmicas foram enviadas a diversos países da América Central e do Sul, a

fim de registrar e avaliar um possível perigo que a supremacia norte-americana estaria

sofrendo na região. Afinal John Kennedy já havia profetizado: “vamos moldar nossas forças e

nos tornar os primeiros de novo”.

Francisco Julião viajava por este mundo e visualizava diferentes formas de ações

políticas e revolucionárias. De Cuba, contudo, deve ter apreendido a possibilidade de se fazer

uma revolução sem a liderança do Partido Comunista, mas com a mobilização popular sob o

comando de um líder.

Além disso, também começaria a perceber que as suas ações e seus discursos criavam

ressonâncias naquela tensa e bipolar configuração internacional. Afinal, ele passou a ser

86

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit. p. 424. 87

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Op. Cit.

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assunto em matérias jornalísticas nacionais e internacionais. Teria ainda identificado o quanto

parte da América Latina poderia estar interessada em suas ideias, bem como os velhos

revolucionários europeus. Era hora de acelerar as mobilizações e radicalizar os discursos e

ações, inspirados, sobretudo, na experiência cubana.

Em seu relato de memória de 1977, ele recordava: “Eu mesmo fui a Cuba várias vezes

e senti a força, o peso, a importância que tinha o movimento de Fidel Castro. Isso, de certo

modo, me influenciou”88

. E mais adiante, sentenciava: “porém, nós, que íamos a Cuba,

vínhamos acelerados. Muita gente trazia a ilusão de implantar Cuba na América Latina, quer

dizer, transformar os Andes em uma Sierra Maestra”89

.

A ilusão apresentada em 1977 talvez fosse a certeza do próprio Francisco Julião no

início da década de 1960. Em uma de suas idas a Cuba, ele esteve presente ao lançamento da

Segunda Declaração de Havana, 1962, onde se afirmou a necessidade da via revolucionária

para solucionar os problemas da América Latina. Este documento ainda apontou que a área

geográfica prioritária para o início da luta era o campo, por meio da organização dos

trabalhadores, que também contaria com o apoio e a participação de operários, intelectuais e

da pequena burguesia progressista.

Francisco Julião tinha uma proximidade política em relação a Fidel Castro e também a

Ernesto Che Guevara. Esta foi inclusive uma das perguntas dirigidas a ele, após o golpe de

1964, em um dos interrogatórios ocorridos em Niterói, Rio de Janeiro, onde esteve preso. No

caso, o depoente foi “perguntado se em princípio de 1961 viajou para Cuba, como convidado

de FIDEL CASTRO (sic), para assistir as festividades de comemoração do aniversário da

Revolução Cubana”90

. Antes, foi questionado se havia sido “recebido em Cuba com honras

de Chefe de Estado”91

. Além das viagens a ilha, Francisco Julião liderou o Comitê de

Solidariedade a Cuba e diversas manifestações de apoio aquele país, depois da tentativa de

invasão norte-americana pela Baía dos Porcos.

Para os interrogadores do Rio de Janeiro, a reposta foi a de que nunca havia sido

recebido em Cuba com honras de Chefe de Estado e nem convidado pelo próprio Fidel Castro

para visitar aquele país. Esta era uma estratégia para se livrar da nomeação de comunista e

minimizar as ligações com o regime cubano.

Contudo, Celso Furtado, realizando uma crítica as atitudes de Francisco Julião, no seu

88

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 122. 89

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 169. 90

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 22. Op. Cit. 91

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 13. Op. Cit.

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livro de memórias “A Fantasia Desfeita”, da década de 1980, diz-nos da relação do advogado

dos camponeses com o governo revolucionário cubano. Na Conferência da Organização dos

Estados Americanos, ocorrida em Punta Del Este – Uruguai, o presidente da SUDENE –

Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – conversou com Ernesto Che Guevara,

representante de Cuba naquela reunião, sobre o Nordeste do Brasil e assim rememora.

A conversa encaminhou-se para o Nordeste e logo pude dar-me conta de que

ele havia absorvido a visão mítica que Francisco Julião transmitia a

interlocutores que tudo ignoravam da Região. Ele imaginava as Ligas

Camponesas como vigorosas organizações de massa, capacitadas para pôr

em xeque qualquer iniciativa da direita, visando modificar a relação de

forças em benefício próprio. Superestimava Julião como líder e como

organizador, e subestimava as estruturas de poder enraizadas secularmente

no Nordeste92

.

Os projetos de ação idealizados e praticados por Celso Furtado e Francisco Julião

eram diferentes. O primeiro executava o planejamento do Governo Federal, em parceria com

o Governo do Estado de Pernambuco, chefiado por Miguel Arraes desde 1963, no qual se

focava o desenvolvimento econômico do Nordeste, com a progressiva diminuição da pobreza.

O segundo intensificava as mobilizações da massa camponesa por meio das Ligas e acreditava

na força revolucionária do movimento que comandava.

O relato do ex-superintendente da SUDENE indicava, contudo, um aspecto que desejo

ressaltar: Francisco Julião era tomado por Ernesto Che Guevara como líder de um movimento

capaz de promover mudanças sociais e barrar “iniciativas da direita”. Além de mostrar o

quanto os dois pareciam já ter dialogado, a memória de Furtado sugere que as ideias de Julião

circulavam e ganhavam espaços políticos fora do Brasil.

A propagação de folhetos e cartilhas, escritos pelo advogado das Ligas Camponesas,

convocando os trabalhadores rurais para a mobilização e a luta pela reforma agrária, alcançou

partes da América do Sul, no início da década de 196093

. Os textos, bastante conhecidos no

Nordeste do Brasil, foram traduzidos para o espanhol e distribuídos por iniciativa dos Partidos

Socialistas do Uruguai, Chile e Peru94

.

Não se tem como fazer uma cartografia da circulação destes textos. Entretanto, é

possível pensar no destaque adquirido por seu autor entre militantes e políticos da esquerda na

92

FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. Op. Cit. p. 119. 93

No depoimento à polícia, Francisco Julião afirmou que os textos traduzidos foram: Guia do camponês, ABC

do camponês, Cartilha do camponês e o Hino do camponês. Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442.

Doc. n° 22. Op. Cit. 94

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 22. Op. Cit.

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América Latina. No material apreendido pela DOPS-PE e constituinte do prontuário

individual de Francisco Julião, encontram-se duas cartas endereçadas ao deputado. Uma

oriunda da Colômbia e a outra da Venezuela. As duas são datadas de 1962.

A correspondência venezuelana era assinada por Carlos Mujica e afirmava em um dos

trechos:

[…] dadas minhas escassas possibilidades econômicas, me dirijo a você para

pedir a edição de seu livro: Cartas sin Respuestas, me interei de que ele seria

editado por meio de uma matéria da imprensa, no qual você era entrevistado

sobre a Conferência de Punta del Este95

.

A carta não informava em qual jornal, de que lugar, ocorreu a publicação. Pode-se

imaginar algum periódico da própria Venezuela. A respeito do livro intitulado Cartas sin

Respuestas, não há indicação de que foi publicado, pelo menos não com esse título. Carlos

Mujica, praticamente, nada fala sobre o conteúdo da entrevista. Apenas diz referir-se a

Conferência de Punta del Este. Como a carta é de 1962, poder-se-ia afirmar que talvez

Francisco Julião estivesse expressando suas ideias sobre a situação da Revolução Cubana e,

muito provavelmente, acerca da Aliança para o Progresso, aprovada naquela reunião por

todos os países latino-americanos, com exceção de Cuba96

.

Da Colômbia chegou a carta de Luis Carlos Sander, que se apresentou como soldado

do Movimento Revolucionário Liberal (M.R.L). O seu texto felicitava a Francisco Julião por

um manifesto escrito e publicado no diário El Tiempo, de Bogotá, o qual se referia a

independência de Cuba, a grande China comunista e a URSS. Ainda afirma: “Me permito

felicitar-lo por este artigo, o qual, tem o melhor sentido cristão e se desta maneira seguirem

escrevendo os homens da América Latina, as coisas tomarão um rumo distinto ao qual temos,

nos povos oprimidos”97

.

Mesmo a carta quase não se referindo ao conteúdo do artigo, é possível pensar que

Francisco Julião tenha utilizado de passagens bíblicas para sua mensagem política, como

ocorria em vários de seus cordéis e folhetos lidos para os camponeses em Pernambuco.

Também poderia ter aproximado personagens do cristianismo e representantes de regimes

95

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 341. Op. Cit. 96

A Aliança para o Progresso foi aprovada na Conferência de Punta del Este em agosto de 1961. A Declaração

dos Povos da América apresentava este programa do governo dos Estados Unidos como um convênio

interamericano, enumerando as metas a serem alcançadas e os compromissos assumidos pelos países signatários

da Carta de Punta del Este. AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo:

Alameda, 2007. p. 140. 97

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 344. Op. Cit.

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comunistas. O advogado das Ligas Camponesas, em seu depoimento a polícia de 07 de julho

de 1965, em Niterói-RJ, afirmou que “realmente em alguns documentos alinhou MAO-TSÉ-

TUNG e FIDEL CASTRO ao lado de CRISTO, SÃO FRANCISCO DE ASSIS e outros

santos, tendo em vista o radicalismo de todos eles”98

. É possível imaginar que essas práticas

estivessem presentes no documento publicado no diário El Tiempo, de Bogotá.

Naqueles primeiros anos da década de 1960, os textos de Francisco Julião circulavam

seja por meio da tradução de cartilhas e folhetos, seja pela publicação de artigos e manifestos

na imprensa de países da América Latina. A documentação indica que isto ocorreu no

Uruguai, Chile, Peru, Colômbia, Venezuela, mas é provável que em outros lugares também,

como Cuba.

Há, entretanto, outro elemento presente na carta de Luis Sander a que se deve um

pouco mais de atenção. A missiva encontra-se destinada ao “Señor Francisco Julião, líder del

M.P/ Castrista y ligas campesinas”. No decorrer do texto, ainda refere-se ao destinatário

como sendo um dos líderes da revolução social99

. Estes termos da carta indicavam um

movimento realizado por Julião de modo cada vez mais intenso; aproximava sua imagem e

ações à Revolução Cubana e ao seu líder, Fidel Castro. Mas também, informava uma posição

pela qual o advogado das Ligas Camponesas e deputado socialista parecia lutar, nos idos de

1962: a de liderança revolucionária.

As linhas de ação aprovadas na Segunda Declaração de Havana fortaleciam a atuação

de Francisco Julião no Nordeste do Brasil. Afinal, definia-se a estratégia de expansão da via

revolucionária pelo continente, bem como se elegia o campo e o campesinato como

prioritários para o início da luta. Nestes termos, ele passaria a ser uma importante peça na

engrenagem da proposta cubana, visto que estava à frente de um movimento que mobilizava

milhares de trabalhadores rurais, em um importante país da América Latina e em uma região

estratégica na geopolítica do Atlântico.

A Fidel Castro interessava acelerar o processo revolucionário. Para Francisco Julião

também. Os dois passaram a ter um “relacionamento estreito”100

, que envolvia também uma

forte admiração da parte do brasileiro:

98

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 18. Op. Cit. 99

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 344. Op. Cit. 100

“[…] Com duas ou três viagens que fiz a Cuba, cheguei a ter um relacionamento estreito com Fidel Castro”,

afirmou Francisco Julião em entrevista a Dênis Moraes. MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64: vinte e

cinco anos depois, as forças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo,

1989. p. 225.

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Realmente Fidel Castro exerceu sobre mim uma influencia poderosa. A

Revolução Cubana me causou um profundo impacto. Sobretudo a figura de

Fidel. Uma figura forte, carismática, um homem que transluzia sinceridade,

honestidade nas suas palavras, na maneira de ser. […] Quem poderia resistir

ao impacto de um homem que saía de uma revolução vitoriosa? E nós aqui

vivíamos em uma região tão miserável, com certas características

semelhantes a Cuba101

.

Este relato é de 1983. Apesar dos deslocamentos da memória, que serão mais bem

analisados adiante, deve-se atentar para as indicações de como a figura de Fidel Castro

influenciou Francisco Julião com a possibilidade de se fazer uma revolução vitoriosa em uma

região que se assemelhava a Cuba. Estes elementos, provavelmente, impulsionaram o

dirigente das Ligas Camponesas a adotar posturas e discursos mais radicais, intensificando a

mobilização de trabalhadores e produzindo um ambiente de revolução social.

A aproximação com Cuba e seu líder aparecia no material de propaganda utilizado por

Francisco Julião em sua campanha para deputado federal, em 1962. O candidato criou um

folheto de quatro páginas. Na parte interior, apresentou sua trajetória política, destacando a

atuação junto aos trabalhadores rurais. Suas ações eram representadas por desenhos e havia

uma narrativa para cada quadro de imagem.

Em uma sequência que relatava as viagens internacionais para URSS, Cuba e China,

aparece o seguinte quadrinho:

101

MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares repensam seus

mitos, sonhos e ilusões. Op. Cit. p. 81

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Fig. 1 – Parte do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião em 1962. Fonte: Prontuário Individual de

Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 562. DOPS/PE. APEJE/SSP: 17817.

Francisco Julião aparece discursando ao lado de Ernesto Che Guevara (à direita) e de

Fidel Castro (à esquerda), que está com o seu braço direito levantado, vibrando, juntamente à

população, com o discurso de solidariedade à Revolução Cubana.

Seguindo a sequência de quadros, encontra-se ainda outro com referência a Cuba.

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Fig. 2 – Parte do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião em 1962. Fonte: Prontuário Individual de

Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 562. Op. Cit.

Em um palanque com faixas onde se viam escritas palavras de ordem, Julião

discursava, com um tom de ameaça: “Se os ianques invadirem novamente Cuba, os

camponeses do continente se levantarão em armas!”. De acordo com o texto abaixo da

imagem, o quadrinho representava a participação do dirigente das Ligas na Conferência de

Punta Del Este, no Uruguai, quando ficou decidida a expulsão de Cuba da Organização dos

Estados Americanos – OEA.

Os desenhos da propaganda eleitoral de 1962 podem ser aproximados dos relatos de

memória de 1983. As referências a Cuba relacionavam Francisco Julião com uma experiência

revolucionária vitoriosa. Tornava-a cada vez mais presente para Pernambuco e para o

Nordeste. Utilizava-a para animar e mobilizar, principalmente, os camponeses participantes

das Ligas e dizer o quão próximo aquela experiência poderia estar do Brasil.

Julião apresentava-se ao lado dos vitoriosos revolucionários da América Latina.

Comandaria exércitos de trabalhadores armados, ao mesmo tempo em que era escutado e

aplaudido por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Sua rede política era internacional e

amedrontaria aos inimigos. Afinal, ele seria um revolucionário.

O folheto deve ter sido amplamente distribuído. O seu formato em quadrinhos o

tornava atrativo e acessível a grande parte da população. Mas, os textos explicativos também

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cumpriam uma função política mais refinada, de confirmar a produção de uma liderança

revolucionária.

Abaixo segue a última imagem, que tomava toda a contracapa do material de

propaganda. Apesar de o folheto ser de 1962, a fotografia é de uma passeata do ano

anterior102

.

Fig. 3 – Contracapa do folheto de propaganda eleitoral de Francisco Julião. Fonte: Prontuário Individual de

Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 563. Op. Cit.

Estes desenhos, textos e imagens não estavam relacionados apenas a uma campanha

eleitoral. Dialogavam com a dinâmica da Guerra Fria, onde discursos radicais, como o de

102

Em 1961, Francisco Julião e outros representantes de esquerda organizavam manifestações para promover um

apoio a Cuba, sobretudo após o episódio da Baía dos Porcos, em abril daquele ano. Uma das mobilizações

ocorreu à noite, nas ruas do Recife, onde centenas de pessoas marcharam com tochas acessas e grandes painéis,

pintados pelo artista plástico Aberlado da Hora, representando as figuras de Francisco Julião, Fidel Castro e Mao

Tse-Tung. Diario de Pernambuco. Abril de 1961. APEJE. A foto foi produzida por um fotógrafo norte-

americano e circulou em uma revista dos Estados Unidos, como se verá a seguir.

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Mao Tsé-Tung, reproduzido no início deste tópico, ganhavam visibilidade e circulação. A

associação à imagem de Fidel Castro e ao uso das tochas, levadas por pessoas que pareciam

camponeses, buscavam imprimir um caráter revolucionário, de agitação incendiária e quebra

de status quo para a figura de Francisco Julião.

Neste ponto, ele estaria se utilizando de dois medos para potencializar seu discurso de

campanha: um mais ligado à política internacional anticomunista, que temia a expansão do

modelo cubano. A revista Life de junho de 1961, ou seja, dois meses depois da realização da

passeata, onde a fotografia acima foi produzida, publicou uma reportagem sobre a influência

política de Fidel Castro na América e descrevia esta imagem e a atuação de Julião, alardeando

o perigoso do avanço de uma revolução comunista nessa região103

. As imagens de capa e

contracapa do material de propaganda foram recortes das fotografias publicadas pela Life. A

revista não tinha uma rede de divulgação no Brasil, logo poucos acessaram ao discurso visual

do periódico, que discutirei adiante. Contudo, o uso das imagens na propaganda política

demonstrava, mais uma vez, o desejo de Francisco Julião em se apresentar próximo a Fidel

Castro e à experiência revolucionária cubana, reforçando inclusive o que afirmava a

publicação norte-americana.

De outro modo, ele estaria se dirigindo a latifundiários e grupos de oposição que o

acusavam de mandar incendiar canaviais. Eram recorrentes as notícias, nos principais jornais

do Estado, de que as Ligas Camponesas, sob o comando do então deputado estadual pelo

PSB, seriam responsáveis pelo incêndio de toneladas de cana-de-açúcar104

.

A publicação e a circulação desta imagem, em um material de propaganda,

demonstrariam que Julião não estava refém das acusações de incendiário105

. Ao contrário,

poderia estar induzindo a se ver os incêndios como uma possibilidade de ação. Ele parecia

bastante confiante no sucesso das Ligas Camponesas, sobretudo na conquista de uma reforma

agrária por meio de uma revolução. Parecia usar imagens como essa para desafiar as elites e

incentivar os trabalhadores rurais para um processo de radical mudança que ele acreditava

estar próximo e sob sua liderança.

Em uma entrevista concedida por Jarbas Araújo, que no início da década de 1960 era

103

Esta reportagem da Life será melhor apresentada nas páginas adiante. 104

Antônio Montenegro afirma que os incêndios nos canaviais muitas vezes eram acidentais ou mesmo

acordados entre os camponeses e os latifundiários para facilitar e acelerar a colheita. Contudo, na imprensa, eles

eram apresentados como atos de desordem e subversão, integrando um conjunto de práticas que produziam o

medo do comunismo em Pernambuco no início da década de 1960. MONTENEGRO, Antônio Torres.

Labirintos do medo: o comunismo (1950-1964). Op. Cit. 105

Em seus relatos de memória, Julião sempre negou ter ordenado ou organizado qualquer ação desse tipo.

Quando era deputado estadual teria proposto na Assembleia Legislativa que fosse aberto um processo de

investigação sobre os incêndios nos canaviais, o que nunca se efetivou.

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integrante do movimento estudantil, foram relembrados os comícios no centro da cidade de

Recife, dos quais Francisco Julião participava. Em sua memória surgem palanques, oradores

exaltados e locutores que inflamavam a população. Um deles gritava, certa vez: “Este é o

comício de Francisco Julião Arruda de Paula! […] Isto é um comício de sangue!”106

. Ao final,

o deputado socialista queimava um exemplar do jornal Diario de Pernambuco, um dos

maiores em termos de circulação, pertencente ao grupo Diarios Associados e ligado a

latifundiários. É importante lembrar que os comícios ocorriam na conhecida pracinha do

Diário, centro do Recife, que como o nome indica situava-se em frente à sede do referido

periódico.

Não encontrei outras fontes que pudessem oferecer elementos relacionados a essa

memória de Jarbas Araújo. Mas, os comícios ocorreram no período da campanha eleitoral de

1962 e o uso do fogo representaria em várias situações a destruição do status quo, seja pelo

incêndio do canavial ou mesmo de um tradicional jornal ligado à elite econômica do Estado.

Assim, nesses comícios eram distribuídos os folhetos de propaganda política,

incendiados os jornais e entoado os versos: “Julião, Julião, queremos revolução. Só se faz

reforma agrária pela boca do canhão”. Ou ainda: “Camponês sem terra é operário sem pão;

panela vazia é tambor da revolução; viva a reforma agrária com Francisco Julião”. Havia

também a famosa frase “Reforma agrária radical na lei ou na marra”, que era afixada em

diversos lugares por meio de cartazes. Estes, contudo, tiveram sua circulação condenada pelo

Tribunal Eleitoral de Pernambuco, o que não significava o total cumprimento da sentença e

nem que a frase não fosse gritada nas praças e ruas107

.

Cuba, principalmente depois da Segunda Declaração de Havana, parecia acelerar

ainda mais Francisco Julião para discursos e posições mais radicais. A dinâmica da Guerra

Fria oferecia ainda mais visibilidade para as ações daquele considerado, principalmente pelos

Estados Unidos, como seguidor e representante de Fidel Castro no Brasil, afinal para a CIA

“as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, receberam a benção de Fidel Castro e,

pelo menos até recentemente, apoio financeiro”108

.

Ainda neste ano eleitoral de 1962, a Agência Americana para o Desenvolvimento

Internacional – USAID – instalou-se em Recife. O objetivo era coordenar a aplicação do

dinheiro a ser investido pela Aliança para o Progresso. “A decisão de estabelecer uma grande

106

Entrevista realizada com Jarbas Araújo em 19 set. 2011 para o projeto Marcas da Memória, coordenado pelo

professor Dr. Antônio Montenegro (UFPE). LAHOI/UFPE. 107

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 573. Op. Cit. Para os versos ver também

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador. Op. Cit. p. 71 108

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador. Op. Cit. p. 80.

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missão da USAID no Recife fez do Nordeste um caso singular, visto ter sido a única região do

mundo julgada merecedora de ter sua própria missão”109

. E com a missão, crescia também

rapidamente o número de norte-americanos que passaram a viver em Recife e circular pela

região110

. O Nordeste do Brasil, onde Francisco Julião liderava as Ligas Camponesas, recebia

uma ostensiva atuação dos EUA. Talvez eles fizessem a mesma avaliação, realizada por

Lorde Dundee, consultor do governo britânico, também em 1962: “caso o Brasil se tornasse

comunista a Guerra Fria no hemisfério ocidental e muito provavelmente no mundo estaria

perdida”111

.

6 – Belo Horizonte, 1961.

A palavra de ordem “reforma agrária radical na lei ou na marra” passou a ser estratégia

de luta para as Ligas Camponesas no início dos anos de 1960. Além de intensificar o processo

de reivindicação pela terra, significava um caminho para a revolução, inspirado, como já se

mostrou, no considerado vitorioso modelo cubano. Mas, aquelas palavras, gritadas a plenos

pulmões por Francisco Julião, representavam também uma ruptura com o Partido Comunista e

sua forma de pensar o movimento revolucionário no Brasil. O diálogo que existia entre o

então advogado e depois deputado estadual com os comunistas na década de 1950, passou a

ser bastante limitado, sendo mais comum, nos anos seguintes, as divergências e trocas de

acusações que preenchiam algumas páginas da imprensa.

O momento onde esta ruptura foi, talvez, mais acentuada ocorreu no I Congresso

Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, em

novembro de 1961. A reunião convocada pela União dos Lavradores e Trabalhadores

Agrícolas do Brasil - ULTAB112

contou com a participação de algumas outras associações

rurais, a maioria sob o comando dos comunistas. As Ligas Camponesas estavam em minoria,

apresentando, segundo Fernando Azevedo, uma bancada de 215 delegados, em um total de

cerca de 1400113

. Apesar de em menor número, o seu principal dirigente, Francisco Julião,

ocupou a mesa ao lado do primeiro-ministro Tancredo Neves e do Presidente da República

109

PAGE, Joseph. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Op. Cit. p. 154. 110

Segundo Moniz Bandeira, em 1962, de acordo com estatísticas oficiais, cerca de 5000 norte-americanos

entraram no Brasil. Entre o final da década de 1950 e início da seguinte, este número girava em torno de 1500 ou

um pouco mais. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961 –

1964. Op. Cit. p. 136. 111

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador. Op. Cit. p. 81. 112

A ULTAB foi fundada em 1954, em São Paulo, sob a liderança de Lindolfo Silva, militante do PCB. 113

Outros autores estimam em 1600 o número total de delegados.

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João Goulart.

Deve-se ressaltar que o Partido Comunista chegava a Belo Horizonte alicerçado na

Declaração de Março de 1958 e nas resoluções do seu V Congresso, de agosto de 1960, que

marcaram uma negação das estratégias de enfrentamento violento para a conquista do

governo, defendidas em outros documentos do final da década de 1940 e começo da seguinte.

Em 1958, propunha-se a formação de uma frente única com a burguesia nacional,

camponeses e operários que se oporiam ao atraso representado pelo imperialismo norte-

americano e pelas relações semifeudais, praticadas pelos latifundiários. O caminho pacífico

foi o eleito para ser seguido, fortalecendo o regime democrático vigente no Brasil,

valorizando-se a legalidade constitucional e a participação eleitoral, os quais promoveriam

vitórias e avanços sociais para a população. As resoluções do V Congresso mantiveram estas

ideias, apesar de se desejar estimular mais as lutas sociais e ressaltar a luta do proletariado

pela hegemonia na frente única114

.

A opção revolucionária defendida por Francisco Julião estava cada vez mais distante

da via pacífica e das legalidades constitucionais, apesar dele participar das eleições de 1958 e

1962. A proposta do então deputado estadual no Congresso de Belo Horizonte radicalizava o

processo de reforma. Seu discurso afirmava: “A reforma agrária será feita na lei ou na marra,

com flores ou com sangue”115

. Os congressistas foram tomados por esta perspectiva radical. O

PCB, naquela reunião, saiu derrotado em suas propostas, oriundas do seu V Congresso.

O encontro de Belo Horizonte talvez tenha demonstrado a líderes nacionais, como o

Presidente da República, João Goulart, e o Primeiro-ministro, Tancredo Neves, que aí

estiveram presentes, a força de mobilização, o carisma, a radicalidade e a liderança exercidas

por Francisco Julião. Neste sentido, aponta a memória de João Pinheiro Neto, ministro do

trabalho de Goulart, que viu o advogado e dirigente das Ligas discursar em uma reunião

sindical ocorrida em Salvador, no Teatro Castro Alves: “Julião era uma fera na tribuna e nos

comícios, pregava com ardor de incendiário o fim do direito da propriedade”116

.

Os seus discursos estavam apoiados na certeza que ele tinha do sucesso do projeto

revolucionário a partir das Ligas Camponesas, o qual envolvia forte mobilização popular e a

estratégia da construção de guerrilhas. O primeiro fator, Francisco Julião já havia conseguido,

visto a expansão acelerada das Ligas no Nordeste do Brasil. O segundo não estava a cargo

114

AARÃO REIS FILHO, Daniel. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Ed.

Brasiliense, 1989. p. 24-25. 115

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 270. 116

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Op. Cit. p. 372.

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dele, apesar da sua ciência, mas sim de Clodomir Morais, que seria expulso do PCB.

Alguns integrantes do movimento das Ligas Camponesas se deslocaram para campos

de treinamentos, onde seriam preparados para a guerrilha. O governo da China teria enviado

instrutores para o Brasil. Segundo Alexina Crespo, primeira esposa de Francisco Julião, três

chineses vieram ao país e chegaram a se reunir com seu marido e com Clodomir Morais. Ela

ainda afirma que quando esteve na China, acompanhada dos filhos, foi recebida por Mao Tse-

Tung, a quem pediu armas117

.

Entre os campos de treinamento guerrilheiro, o que ficou mais conhecido foi o de

Dianópolis, em Goiás. Este foi descoberto pelo coronel Nicolau José de Seixas, em uma

investigação sobre caixas de geladeiras entregues na cidade, que não tinha energia elétrica.

Segundo Flávio Tavares, o coronel, chefe do Serviço de Repressão ao Contrabando,

encontrou, no lugar de refrigeradores, um farto material com referência a Cuba, textos e

imagens de Fidel Castro e Francisco Julião, manuais de combate, planos de implantação de

focos de sabotagem e de sublevação armada das Ligas Camponesas, além da contabilidade

dos recursos financeiros enviados pelo governo cubano com a finalidade de montar campos de

guerrilha. Nicolau Seixas tinha encontrado, em 1962, aquilo que se pretendia como um

acampamento guerrilheiro118

.

Todo o material apreendido foi entregue ao presidente João Goulart, que o repassou,

em mãos, para o ministro cubano Zepeda, enviado por Fidel Castro, não sem antes expor sua

profunda insatisfação frente à intervenção cubana no território brasileiro. Jango,

provavelmente, sentia a ameaça de sofrer um golpe de setores da esquerda.

O ministro cubano embarcou de regresso à ilha com o material. Contudo, não chegou.

Antes de fazer uma escala em Lima, no Peru, o avião caiu e todos os passageiros morreram.

Parte daqueles papéis, que demonstraria o envolvimento das Ligas Camponesas e de

Francisco Julião com Fidel Castro, teria parado nas mãos de agentes da CIA119

.

Em Cuba, a notícia da prisão de integrantes das Ligas que participavam de treinamento

guerrilheiro chegou por meio de um telegrama. Luiz Alberto Moniz Bandeira, que no início

dos anos 1960 era chefe da seção de política do Diário da Noite, estava reunido com Ernesto

Che Guevara e ao se referir à possibilidade de militantes das Ligas Camponesas serem

descobertos e presos em atividades de treinamento de guerrilhas, escutou: “Já estão presos” e

117

Informações extraídas da entrevista de Alexina Crespo a Vandeck Santiago. SANTIAGO, Vandeck.

Francisco Julião, as Ligas e o golpe militar de 64. Recife: COMUNIGRAF, 2004. p. 69. 118

TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 77-78. 119

TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. Op. Cit. p. 78.

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pôde ler ao telegrama que noticiava a prisão do irmão de Julião e outros militantes120

.

Há um debate sobre a ciência ou não de Francisco Julião em relação aos campos de

guerrilha121

. Ele sabia da existência, mas muito provavelmente a logística dos mesmos estava

sob o controle de Clodomir Morais. De qualquer modo, é possível que o então deputado

alicerçasse seus discursos mais inflamados, onde dizia possuir milhares de camponeses

armados, no apoio financeiro e técnico recebido de Cuba e nos dispositivos que Clodomir

tentava organizar. Deve-se, entretanto, lembrar que as Ligas Camponesas, em 1962-1963,

possuíam milhares de integrantes, apresentando uma crescente horizontalidade, mas

praticamente inexistia uma verticalidade organizacional. Havia diversas correntes de

pensamento e lideranças que fragilizava o movimento e não oferecia um mínimo de

uniformidade de ação. O próprio Francisco Julião admitia que agitar era fácil, difícil era

organizar.

De qualquer modo, apesar dos problemas, o dirigente das Ligas acreditava na

viabilidade da revolução não só no Brasil, mas na América Latina, seguindo o modelo

cubano. Ele já havia produzido uma imagem de liderança na parte latina do continente.

Assustava latifundiários e governantes e possuía milhares de seguidores. Apresentava-se

como e entre os revolucionários e de acordo com a Segunda Declaração de Havana, da qual

esteve presente ao lançamento, “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”122

.

No seu prontuário individual da DOPS-PE, há um documento de cinco páginas, sem

data, manuscrito em folhas pequenas, tamanho de bloco de anotações, timbrado com a

inscrição da Secretaria de Segurança Pública – Delegacia Auxiliar – PE. Em formato de

relatório, escrito com vários erros gramaticais e uma letra difícil de entender, talvez

indicadora da pressa na qual fora redigido, o documento apresenta a síntese de uma reunião

entre membros do Partido Comunista, com destaque para David Capistrano, e líderes das

Ligas Camponesas, Francisco Julião e Clodomir Morais. A reunião ocorreu em Cavaleiro,

bairro da cidade de Jaboatão dos Guararapes, atualmente localizado na região metropolitana

do Recife. O agente da DOPS, que elaborou o texto, não o assinou, nem informou o seu

número de identificação. Por sinal, ele devia estar infiltrado naquele encontro de

representantes das esquerdas, pois fez um resumo daquilo que teria visto e ouvido.

120

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961 – 1964. Op. Cit.

p. 15. 121

Ver ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de

Janeiro: MAUAD, 2001; SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a esquerda brasileira

e a influência da Revolução Cubana. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007. 122

ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Op. Cit. p.

23.

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De acordo com o documento, o assunto central tratado referia-se a proposta de

revolução que deveria ser adotada, tentando os dois grupos, sem muito entusiasmo, atingirem

um consenso. Passo a apresentar trechos do documento, corrigindo alguns equívocos de

escrita, mas mantendo a construção. De início, “Julião propôs-se a fazer uma revolução a

curto prazo, sendo contra a esta ideia, David Capistrano, Valentim e outros, que assistiram a

reunião”123

. Clodomir Morais saiu em defesa da proposta do companheiro e a leitura do

relatório deixa a entender que foi retrucado com a afirmação de que não tinham armas para

aquele tipo de ação. Clodomir respondeu: “vocês não podem afirmar que não temos armas,

elas aparecerão na ocasião precisa”124

.

O agente da DOPS interessou-se em registrar outra consideração da reunião:

É opinião de Julião, que a revolução deve ser feita o quanto antes, pois com

demora o governo irá procurando melhorar as condições do camponês e

estes irão perdendo o animo, mesmo com a reforma agrária que se encontra

em marcha, e em caso de ser dado terra aos camponeses pelo governo ou por

quem quer que seja, os camponeses ficarão satisfeitos e não tomarão parte

em qualquer movimento125

.

É possível que Francisco Julião estivesse se referindo ao governo João Goulart e as

reformas de base. O receio de elas diminuírem o ânimo dos camponeses apontava para as

disputas políticas e o poder de mobilização de setores da população, neste caso os

trabalhadores rurais, que conferiria autoridade para um determinado projeto revolucionário.

Para tanto, o deputado socialista também desejava receber o apoio dos integrantes do Partido

Comunista, fortalecendo sua ação.

Poderia ser aquele encontro uma última tentativa para aproximar as estratégias de ação

entre Julião e o PC. A iniciativa não foi bem sucedida. Os comunistas presentes consideraram

que a ideia dele “era um suicídio em massa”126

. O advogado retrucou com a seguinte

afirmação: “que contava com meios no sul do país, e que a revolução ele faria, quer o PC

quisesse ou não”127

. Neste momento parece que houve uma exaltação dos ânimos entre os

presentes e “a ala do PC foi ainda taxada por Julião – os membros do PC em Pernambuco que

divergiram de Julião – como sendo as mulheres do partido”. Dito isto, o clima esquentou

ainda mais e o investigador da DOPS registrou a quase ocorrência de “uma cena de pugilato

123

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 351. Op. Cit. 124

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 351. Op. Cit. 125

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 352. Op. Cit. 126

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 353. Op. Cit. 127

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 353. Op. Cit.

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entre os membros do PC e Julião e Clodomir”128

. As esquerdas chegavam às vias de fato.

Francisco Julião havia construído uma imagem de revolucionário que percorria

diversos países da América, recebia apoio de Fidel Castro e chegou a ser considerado como

uma peça da engrenagem na expansão da revolução para o restante do continente. Mas, no

Brasil, apesar de conseguir mobilizar as massas, ele se isolava politicamente, inclusive, entre

os setores da própria esquerda que o considerava agressivo em seus discursos e por demais

radical em suas propostas de ação. O relatório da DOPS mostrava um Julião que nas

negociações com a esquerda, usava das mesmas posições radicais presentes em seus comícios

e outras manifestações públicas.

Termino este tópico apresentando a imagem do revolucionário produzida pelo relato

de memória de Jarbas Araújo, já citado. O estudante estava preso, em 1964, no quartel do 7°

Regimento Olinda, quando chegou o dirigente das Ligas.

E uma das prisões que eu estava era no 7º RO. […] E uma noite, era noite de

eclipse da lua. Tudo escuro. Foi o dia em que Julião foi preso e chegou lá,

nesse quartel. E a gente olhava da grade da prisão e os soldados da guarda

não sossegavam. Se viravam para um lado, se viravam para o outro,

pensando que os comunistas iam invadir e tirar Julião de lá. Aí Julião chega,

com uma botinha amarela, dessas de couro cru, ele chutou a porta da grade.

Julião era brabo (sic) que só. Chutou a porta da grade, entrou. Aí no outro

dia tinha visita de familiares da gente […] Levavam maçã, uva, pêra […] ele

tava sozinho, a gente falou, ofereceu se ele queria alguma coisa, e ele disse

pra gente: “Sou revolucionário, não como guloseimas”, arrasou comigo129

.

O relato fala do medo produzido pelo prisioneiro que chegava. A escuridão de um

eclipse criava um clima mais aterrorizante para soldados, tementes de uma invasão comunista.

Jarbas apresenta imagens que circulavam na década de 1960 e passaram a integrar e

direcionar as memórias sobre Francisco Julião. Ele era o “brabo”, o agressivo ou o violento. A

narrativa informa que a imagem do revolucionário, de ideias extremistas, seja pelas

negociações políticas com o PC, seja por não aceitar “guloseimas”, sobreviveu.

7 – De volta aos Estados Unidos. 1961.

A revista Life130

, com grande circulação nos Estados Unidos e em outros países da

América Latina, produziu uma extensa reportagem sobre a influência de Fidel Castro no

128

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 354. Op. Cit. 129

Entrevista realizada com Jarbas Araújo em 19 set. 2011. Op. Cit. 130

A revista Life foi criada em 1936.

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continente americano em 1961. Por meio de várias fotografias, mostrava as manifestações de

apoio a Cuba que ocorriam em diversos países, inclusive no Brasil, e destacava Francisco

Julião como um dos principais colaboradores.

Deve-se atentar que a Life faz parte de um grupo de revistas ilustradas, marcado pela

forte presença de um jornalismo fotográfico, popularizado na primeira metade do século XX.

Tais publicações se caracterizaram por considerar o uso das imagens como um meio de captar

a atenção de leitores-consumidores131

.

As revistas ilustradas, durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria,

conseguiram aumentar suas vendas de exemplares, principalmente nos Estados Unidos. A

dinâmica internacional expandiu o interesse e favoreceu a sua circulação em amplos setores

sociais, especialmente a classe média. Produzia-se uma expectativa na população que

aguardava as reportagens sobre a guerra e depois os movimentos sociais, notadamente de

esquerda, no período da Guerra Fria132

.

Mas também, essas revistas, desde os anos 1930, passaram a desenvolver um estilo de

jornalismo fotográfico que incorporava imagens da vida cotidiana e tomadas espontâneas de

personagens considerados relevantes. Desejava-se aproximar do leitor o dia-a-dia e as formas

de vida das pessoas que se destacavam, por exemplo, no cinema, nos esportes e na política.

131

MANJARREZ, Maricela González Cruz. Momentos y modelos em la vida diária. El fotoperiodismo em

algunas fotografias de la ciudade de México, 1940-1960. In LOS REYES, Aurélio de (Coord.). Historia de la

vida cotidiana en México. Siglo XX. La imagen, espejo de la vida? Tomo V. Volumen 2. Ciudad de México: El

Colégio de México; Fondo de Cultura Económica. p. 230. 132

MANJARREZ, Maricela González Cruz. Momentos y modelos em la vida diária. El fotoperiodismo em

algunas fotografias de la ciudade de México, 1940-1960. Op. Cit. p. 232.

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Fig. 04 – Julião e camponeses do Engenho Galiléia. Fonte: Revista Life – 02 jun. 1961.

A imagem133

acima, produzida pelo fotógrafo Andrew St. George, foi publicada na

revista Life, de junho de 1961, em uma reportagem sobre a influência de Fidel Castro na

América Latina 134

. Mostrava uma concentração de trabalhadores rurais, no Engenho Galiléia,

133

Neste trabalho a fotografia é tomada como um documento histórico e por isso torna-se necessário conhecer o

momento em que foi produzida, sua intenção e o uso social no qual foi inserida. Especificamente para as

fotografias que circularam na imprensa, faz-se necessário obter informações sobre o autor, em que meio circulou

e as relações deste com a sociedade. Assim deve-se remeter aos contextos políticos e editoriais que cercavam o

ato fotográfico. Especificamente para a sequência de imagens publicadas pela revista Life, que passarei a

analisar, se levará em consideração o ordenamento e sistematização das fotografias, que dão forma a um discurso

visual, cujo objetivo é promover certas mensagens e conteúdos para o leitor. Sobre discurso visual, estou

dialogando com CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la

fotografía y la construcción de un imaginario. México: Instituto Mora: IISUE, 2012. p. 17. Para o objetivo de

buscar as mensagens produzidas pelas imagens, relacionando-as com um panorama cultural, inspirei-me também

nas reflexões de Ana Maria Mauad, Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos

de representação social pela classe dominante no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. 1990. Tese

(Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense,

Niterói. 1990. Ver introdução. 134

As demais fotografias dessa reportagem também foram produzidas por Andrew St. George. Ele, Gordon

Parks e Dmitri Kessel viajaram pela América Latina durante o primeiro semestre de 1961, com o propósito de

registrarem a miséria e a pobreza da região. As imagens circularam em três reportagens publicadas pela revista

Life. A primeira em 02 de junho de 1961 mostrava, com fotografias de Andrew George, a influência de Fidel

Castro na América Latina. A segunda, datada de 16 de junho, trazia imagens de Gordon Parks e abordava a

pobreza de uma família moradora de uma favela do Rio de Janeiro. Em 30 de junho foi publicada a última

reportagem, que trazia fotografias de Dmitri Kesses e falava sobre a presença dos Estados Unidos na Bolívia.

Ver TACCA, Fernando. O caso Flávio. In: Projetos Especiais Studium. Disponível em:

<http://www.studium.iar.unicamp.br/caso_flavio/index.html>. Acessado em 12 jan. 2012.

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rodeando Francisco Julião. O periódico procurava apresentar, por meio de fotografias, um

pouco do cotidiano de atividades do advogado dos camponeses em Pernambuco. Segundo

Manjarrez, a revista Life, muitas vezes, conferia mais espaço e importância às imagens do que

aos textos. O intenso uso de fotografias visava produzir um maior sentido de veracidade135

.

Em um pequeno texto, a revista norte-americana construiu uma breve trajetória do

fotografado. Ele, como um jovem advogado, “foi compelido pela compaixão humana” para

ajudar camponeses extremamente pobres, que em pouco tempo perceberam a força de sua

união. Neste momento, segundo a revista, Francisco Julião teve a oportunidade de descobrir

duas coisas: “o programa de reforma agrária da China vermelha e de Cuba, e o fato de que ele

[…] tinha carisma”. Estes fatores aliados à constatação de que o “poder estabelecido” não

viabilizaria uma reforma agrária, sendo a única forma a mobilização dos camponeses,

transformou Julião em um revolucionário, o qual “naturalmente encontrou seu caminho nos

braços do comunismo”. Ele era a “frente de ataque de Fidel Castro entre os camponeses

pobres”136

.

A revista selecionou elementos que caracterizariam o líder dos camponeses, “amado

entre seus seguidores”137

. Tomado pelo sentimento de compaixão, mobilizou trabalhadores

rurais por meio de seu carisma. Estes elementos estariam representados na fotografia anterior.

Em primeiro plano na imagem está Francisco Julião, liderança dos trabalhadores rurais,

encostado no portal de uma casa de taipa, recebendo os aplausos de um grupo de camponeses,

localizado do lado de fora, em um plano inferior. Com as mãos para o alto, o movimento de

aplaudir se confunde com o de rezar ou dar graças aos céus, comum às práticas religiosas.

Poderia também estar sendo dado graças ao próprio Julião, já que havia da parte de alguns

camponeses um sentimento de veneração ao advogado, que em momentos mais exaltados

aproximar-se-ia de um culto. Por vezes beijavam-lhe a mão e algumas mulheres se

ajoelhavam em um gesto para tomar a benção138

.

Por outro lado, a imagem de Francisco Julião, sua fisionomia magra, os cabelos fartos

e escuros e os traços indígenas, faziam-no parecer com qualquer outro trabalhador,

distinguindo-lo apenas a forma de vestir, pois usava um paletó e não levava um chapéu, como

ocorria com a maioria dos demais trabalhadores que o cercavam. A simplicidade dos

135

MANJARREZ, Maricela González Cruz. Momentos y modelos em la vida diária. El fotoperiodismo em

algunas fotografias de la ciudade de México, 1940-1960. Op. Cit. p. 233. 136

Revista Life. 02 de junho de 1961. p. 88. 137

Revista Life. Op. Cit. 138

Essas observações sobre a veneração a Francisco Julião foram realizadas pela jornalista Lêda Barreto em seu

livro: BARRETO, Lêda. Julião, Nordeste, Revolução. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1963. p. 62.

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elementos constitutivos daquela imagem merece ser recapitulados: um líder, postado de pé no

portal de uma casa de taipa, rachada, e um grupo de pobres camponeses que o aplaude com as

mãos para o alto.

Deve-se pensar que neste momento circulava pela América a ideia por meio da qual as

massas de pobres trabalhadores rurais constituíram-se como elemento fundamental para a

promoção de uma revolução. Essa associação estava relacionada com a primeira fotografia da

reportagem.

Fig. 05 - Passeata em Recife de apoio a Cuba, abril de 1961. Fonte: Revista Life, Op. Cit.

Os camponeses, identificados por seus chapéus, carregavam tochas, faixas de apoio a

Cuba e um painel com a imagem de Fidel Castro. Marchavam pelas ruas de Recife, à noite,

sob uma neblina provocada pela fumaça. Esses elementos davam existência social e sentido a

essa fotografia139

, quando interagiam com o título: “ajuda dos vermelhos, pequenos tumultos,

chega a revolução: o impulso ameaçador do Castrismo”. Mas também, quando se

139

Para Ulpiano Besera Meneses as imagens apresentam apenas materiais físico-químicos intrínsecos. É a

interação social que lhes conferem uma existência social e um ou mais sentidos. MENESES, Ulpiano T. Bezerra.

Fontes Visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, proposta cautelares. Revista Brasileira de

História. São Paulo, v. 23, nº 45, 2003. p. 18.

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relacionavam com aquela ideia de que a revolução era promovida pela ação dos comunistas

junto aos trabalhadores pobres. A Aliança para o Progresso foi criada levando-se em

consideração esta lógica e tentando combatê-la. Circularia, essa fotografia, pelos EUA como a

comprovação desta teoria e como afirmação da necessidade de ações, como o programa

elaborado pelo governo John Kennedy? É provável que sim. E ao mesmo tempo em que isto

justificaria a execução de uma cruzada anticomunista, elegia Francisco Julião como um

perigoso revolucionário da América Latina, apresentado pela revista Life, por meio do registro

daquilo que seriam suas atividades cotidianas: mobilizar camponeses, promover marchas e

pequenos tumultos, fazer a revolução140

.

Afirmava ainda a publicação que o dirigente das Ligas Camponesas havia sido

“convidado de honra de Fidel Castro em Cuba”141

e ao regressar ao Brasil dirigia-se aos

camponeses com a seguinte mensagem: “em Cuba, os problemas da terra se resolveram

quando os camponeses foram colocados no poder”142

. Tal mensagem estava inserida em uma

página totalmente ocupada por uma fotografia de Julião, que discursava a frente de um

enorme painel, onde o artista plástico Abelardo da Hora143

havia pintado seu rosto. Ao lado,

um camponês, olhar fixo e ameaçador, com seu instrumento de trabalho sobre o ombro.

140

Segundo artigo do professor Fernando Tacca, a edição com fotografias de Andrew St. George, na qual

aparece Francisco Julião, denunciava um envolvimento político da revista Life com as ações do Departamento de

Estado norte-americano. Ver TACCA, Fernando. O caso Flávio. Op. Cit. Ver também CRUZ, Maria Alice da.

Miséria e ideologia demarcam território em guerrilha midiática. In: Jornal da UNICAMP, 04 a 10 de abril de

2011. Ano XXV, nº 489. p. 06-07. Pode-se dizer que a produção da revista Life se aproximava de questões

apresentadas pelo governo do presidente John Kennedy para justificar uma ação mais direta na América Latina.

Contudo, penso que se utilizando apenas das matérias não se pode precisar se essa aproximação era apenas

temática, para atender a um interesse cada vez maior do público norte-americano sobre o assunto, ou havia uma

ação conjunta entre o governo dos EUA e a direção da Life. De qualquer modo a reportagem confirmaria a

necessidade de uma atuação norte-americana na região. 141

Revista Life. Op. Cit. 142

Revista Life. Op. Cit. 143

Integrou o Partido Comunista antes de 1964 e fez parte do Movimento de Cultura Popular – MCP,

desenvolvido na gestão de Miguel Arraes na prefeitura do Recife, a partir de 1960.

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Fig. 06 – Francisco Julião discursando na sede das Ligas Camponesas em Recife. Ao lado, um trabalhador rural.

Fonte: Revista Life. Op. Cit.

Deve-se perceber a tomada do fotógrafo para Francisco Julião. Realizada de baixo

para cima, criava para o leitor a percepção de profundidade e um destaque ainda maior a sua

presença, que se faz duplicada.

Ao leitor são oferecidas duas imagens; uma atual que se conecta com outra, a imagem

virtual ou imagem mental144

. A fotografia de Julião é vista e lida por meio da representação de

um líder do movimento camponês e revolucionário comunista. Esta imagem, que seria

“mental ou virtual”, não estava dada na fotografia, mas foi produzida pelo texto da revista e

relacionava-se com a imagem atual, reproduzida acima e ocupante de toda uma página da

Life. Como nos sugere Deluze, “as duas imagens não param de correr uma atrás da outra, em

torno de um ponto de indistinção entre o real e o imaginário”145

. A produção desta indistinção

entre as imagens atual e virtual faz da fotografia publicada algo ainda mais legível do que

visível146

. Não há a tradução em imagens da informação jornalística, mas a produção de uma

narrativa que se apoiou na iconografia147

.

144

DELEUZE, Gilles. Conversação. 1972-1990. Col. TRANS. Rio de Janeiro: Editora 34. p. 69. 145

DELEUZE, Gilles. Conversação. 1972-1990. Op. Cit. p. 69. 146

DELEUZE, Gilles. Conversação. 1972-1990. Op. Cit. p. 70. 147

Discussão sobre jornalismo visual. Ver GUNTHERT, André. Le croc Du diable. Disponível em: <

http://www.arhv.lhivic.org/index.php/2008/11/25/874-le-croc-du-diable>. Acessado em 24 set. 2012.

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Além de Andrew St. George, a revista norte-americana teria enviado a Pernambuco

mais um repórter, unicamente para acompanhar e fotografar Francisco Julião seja na

Assembléia Legislativa, seja em seu escritório ou junto aos camponeses. “Bateriam umas

duzentas fotos do Julião. E, bem à americana, bateram-lhe trezentas”148

.

Ao apresentar a imagem de um Francisco Julião, denominado como revolucionário e

próximo a Mao Tse-Tung e a Fidel Castro, a revista Life, para finalizar sua reportagem,

anunciava: “com a faca no ombro, os trabalhadores da cana-de-açúcar, que em 1961 ainda

vivem em condições de servidão, […] poderão um dia tornar Julião mestre do Brasil”149

. A

frase dava sentido à foto da página ao lado, na qual o instrumento de trabalho do camponês

ganhava o significado de arma. O olhar intimidador pertencia a uma pessoa fora de si, como

se estivera em transe, hipnotizada pelas propostas e ações de Francisco Julião, que haveriam

transformado o trabalhador pobre em um potencial comunista. A disposição final das imagens

mostra os principais personagens de uma revolução de esquerda que avançava na América

Latina. Assim, estava de um lado o dirigente das Ligas Camponesas, discursando, atuando, e

do outro o camponês, resultado dessa atuação, pronto para transformar seu líder no “mestre do

Brasil”, ou seja, colocar um representante do comunismo no controle do país.

Essa hipótese não se efetivou. Os governos militares, a partir de 1964, trataram de

reprimir, torturar e assassinar vários dos trabalhadores que o apoiavam. Francisco Julião foi

preso e exilou-se no México. Mas, as suas imagens narrativas, produzidas em seus discursos

em praças públicas, no Congresso Nacional e em reuniões com camponeses, ou aquelas

construídas sobre ele, aliadas as suas imagens visuais, publicadas em material de propaganda

política ou na imprensa, circularam nacional e internacionalmente, descrevendo-o, definindo-

o, procurando permear, governar e direcionar o pensamento de diversos grupos sociais sobre

ele. Estas imagens narrativas e visuais construíram referências e signos, que, por diversos

anos, alimentaram memórias individuais, mas também coletivas acerca daquele advogado,

deputado, líder das Ligas Camponesas, místico, agitador, revolucionário150

.

148

Diario de Pernambuco. 18 nov. 1979. p. A11. APEJE. 149

Revista Life. 02 de junho de 1961. p. 89. 150

Relação entre memória e imagem: CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. La memória histórica y los usos de

la imagem. In: História Oral. v. 13, n.1, jan-jun 2010. p. 87-101.

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Capítulo 2 - Limites, possibilidades: a vida longe do Brasil

Aproximava-se das 13 horas quando o embaixador do Brasil chegou a Secretaria de

Relaciones Exteriores, em Tlatelolco, na Cidade do México. João Baptista Pinheiro foi

recebido pelo Chanceler Antonio Carrillo Flôres, chefe daquela Secretaria, a quem entregou

suas cartas credenciais.

O encontro foi rápido, cerca de 15 minutos, nos quais prevaleceu o clima de

cordialidade, segundo informações do jornal Novedades. Ao final, em uma breve declaração,

o diplomata brasileiro disse que “muitos são os laços que unem Brasil e México, porém o

principal é o de amizade”1.

Assim, em agosto de 1969, apresentava-se, oficialmente, o novo embaixador do Brasil

ao México2. Para além das declarações oficiais, da exaltação dos laços de amizade e das

visitas cordiais, a missão do diplomata carregava todo o interesse que a ditadura militar do

Brasil tinha em relação às atividades dos exilados que viviam naquele país.

Meses depois, ocorreu o desembarque dos presos políticos brasileiros em terras

mexicanas. Suas liberdades eram uma das exigências para o final do sequestro do embaixador

dos Estados Unidos, Charles Elbrick, realizado por integrantes do Movimento Revolucionário

8 de outubro – MR-8. A reivindicação foi atendida pelo governo do presidente Emílio

Garrastazu Médici e os presos receberam asilo político do México. Os novos exilados, mesmo

que por pouco tempo, se juntavam aos mais antigos, como o Padre Francisco Lage e o ex-

dirigente das Ligas Camponesas, Francisco Julião, que haviam chegado a dezembro de 1965.

Com vários brasileiros vivendo no México, o governo militar procurava manter-se

informado acerca das ações desenvolvidas pelos mesmos. Não era uma tarefa simples. Um

dos caminhos seria obter informações diretamente dos órgãos de segurança mexicanos, que

realizavam um mapeamento das ações dos exilados.

Em 07 de novembro de 1969, a circular secreta nº 292 do Ministério de Relações

Exteriores do Brasil pedia ao embaixador João Baptista Pinheiro informações sobre os órgãos

de segurança do México3. No ofício de resposta, o diplomata ressaltava o quanto era difícil ou

quase impossível atender essa solicitação.

1 Novedades. 07 de agosto de 1969. p. 07. Hemeroteca Nacional, UNAM. México, D.F.

2 João Baptista Pinheiro substituiu a Frank Moscoso.

3 Não tive acesso a Circular Secreta nº 292, mas sim a sua resposta, o Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro

de 1969.

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Conforme Vossa Excelência pode avaliar, é extremamente difícil, senão

quase impossível, obter por meios diretos esse tipo de informação,

sigilosamente guardados, porquanto o seu conhecimento fora dos meios

responsáveis poderia comprometer a própria segurança do país4.

Apesar da impossibilidade sugerida a princípio, a resposta de João Baptista Pinheiro se

constituiu em um relato de oito páginas. O caminho trilhado para alcançar as informações ali

apresentadas é revelado logo no terceiro parágrafo: “Dada a natureza tão delicada do assunto,

conversei a respeito com o Chanceler Carrillo Flôres que, dando ênfase ao fato de que o fazia

como amigo (grifo no original), deu-me as informações seguintes.”5

Disse que a Secretaria de Relaciones Exteriores não possuía um dispositivo de

segurança, apenas os usuais para a proteção das comunicações cifradas. A produção de

informações e contra-espionagem era realizada pela Secretaria de Gobernación, que

preparava e repassava os informes. Este órgão também era responsável por realizar as

investigações sobre qualquer tipo de movimento relacionado à política interna mexicana6.

As informações passadas pelo chanceler Antonio Carrillo Flôres pareciam superficiais.

A ressalva, contudo, de que se fazia “como amigo”, com o grifo do embaixador, poderia

significar que João Batista Pinheiro estava conseguindo ganhar um pouco de confiança de

parte da diplomacia mexicana e ampliando as relações entre os dois países. Isso talvez era o

que se desejava demonstrar ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, tendo em vista a

missão de se obter dados acerca dos exilados e possivelmente desempenhar um maior controle

sobre eles. Uma maior aproximação entre os países poderia estar sendo construída7.

4 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Coordenação-Geral de Documentação Diplomática –

CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores. p. 01. 5 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit.

6 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit.

7 As relações diplomáticas entre México e Brasil ficaram estremecidas após o Golpe civil-militar de 1964. A

doutrina Estrada, praticada pela diplomacia mexicana, afirmava que o país não poderia manter relações com

governos impostos pela força. No final de abril de 1964, o embaixador mexicano no Rio de Janeiro, Alfonso

García Robles, foi chamado para regressar ao seu país. No mês seguinte, Pio Corrêa deixou a embaixada no

México e retornou ao Brasil. As respectivas embaixadas não foram fechadas e passaram a ser chefiadas por seus

encarregados de negócios e conselheiros. Na embaixada mexicana no Rio de Janeiro havia muito trabalho, visto

estar povoada por vários brasileiros que esperam um salvo-conduto, a fim de seguirem para o exílio. A tensão e o

distanciamento entre os países eram crescentes, apesar de haver uma relação diplomática manifestada no caso

dos asilados políticos. Em novembro de 1964 Frank Moscoso foi escolhido para ocupar a vaga deixada por Pio

Corrêa. Tempos depois, chegou ao Brasil Vicente Sanchéz Gavito para ser o novo embaixador mexicano. O

clima tenso diminuiu, porém não houve uma grande aproximação entre os países, reforçada também por certo

distanciamento do México em relação ao restante da América Latina, praticado no governo do presidente

Gustavo Díaz Ordaz (1964-1970). Essa situação mudará com o seu sucessor, o presidente Luis Echeverría (1970-

1976). PALACIOS, Guillermo. Intimidades, conflictos y reconciliaciones. México y Brasil, 1822-1993.

Colección Latinoamericana. Secretaria de Relaciones Exteriores: México, 2001. p. 295- 310.

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Passadas algumas semanas da conversa com Carrillo Flôres, o embaixador do Brasil

foi recebido pelo Secretário de Gobernación, Mario Moya Palencia8. Parecia que a

impossibilidade de obter informações, ressaltada pelo diplomata brasileiro no início do seu

relato, havia sido substituída por novos caminhos de diálogos entre os governos.

O que teria dito João Baptista Pinheiro ao Secretário apontava alguns objetivos mais

específicos daquela missão da diplomacia brasileira.

Acrescentei-lhe a preocupação do Governo Brasileiro com os vários

movimentos subversivos organizados do exterior para promover agitações

em toda América Latina e a conveniência em unificarmos métodos e

instrumento de atuação nacional e conjunta contra esses inimigos comuns9.

Mario Moya Palencia passou então a informar as funções desenvolvidas por dois

outros órgãos do governo mexicano: a Dirección General de Investigaciones Políticas y

Sociales e a Dirección Federal de Seguridad. O primeiro estava relacionado com a ordem

político-social e o segundo com a segurança interna e externa do país. Para o embaixador

brasileiro, a DFS corresponderia, “grosso modo, ao nosso S.N.I.”10

– Serviço Nacional de

Informação. Era dirigido pelo Capitão do Exército Fernando Gutiérrez Barrios e mantinha

uma rede de investigação, produção e transmissão de dados, diariamente analisados e

repassados à Presidência da República e as devidas Secretarias.

Mesmo com a referida dificuldade em acessar informações, o embaixador brasileiro

conseguiu encontros com os chefes do sistema de segurança do México. Ainda naquela

reunião com o Secretário de Gobernación, Fernando Gutiérrez Barrios foi convocado para

oferecer algumas explicações. Ele “prontificou-se a estabelecer enlace com esta Embaixada,

no que se refere ao terrorismo na América Latina, vigilância dos asilados, movimento de

chegada e partida de brasileiros, principalmente em trânsito ou provenientes de Cuba”11

.

Nesse mesmo encontro, o diplomata brasileiro conseguiu alguns dados sobre os

exilados. Em relação aos que chegaram naquele segundo semestre de 1969, João Baptista

Pinheiro foi informado da vigilância exercida pelas autoridades mexicanas, de modo a

8 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. Mario Moya Palencia acabara de substituir, na

Secretaria de Gobernación, a Luis Echeverría, que estava candidato a Presidência da República. 9 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. O embaixador brasileiro afirma ter preparado um

memorando secreto com as aspirações do governo brasileiro frente a Secretaria de Relações do México. Informa

que tal documento seguia em anexo ao Ofício nº 1.089. Contudo, o memorando não existe no conjunto

documental existente no Itamaraty, assim como nenhum dos anexos citados no texto do referido ofício. 10

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 11

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit.

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impedi-los de receber qualquer tipo de financiamento oriundo do exterior. Por isso, segundo o

diplomata, treze desses exilados partiram para Cuba, quando terminou o período no qual suas

hospedagens eram pagas pelo governo do México. E ressaltou que esses procedimentos de

monitoramento foram realizados “de acordo com entendimentos havidos entre esta

Embaixada e o então Secretário de Gobernación, Licenciado Luis Echeverría – atual

candidato à Presidência da República”12

. Era por meio desse canal de negociação estabelecido

entre Brasil e México que o embaixador tentava ampliar suas ações.

Ainda no decorrer do ofício produzido por João Baptista Pinheiro, dois nomes são

citados em tópicos, podendo indicar que durante a reunião eles tenham sido pauta de uma

discussão demorada, talvez porque preocupassem mais ao governo do Brasil. Um deles era

Flávio Tavares, jornalista, que chegou juntamente com os outros presos políticos libertados

em 1969. Sobre ele, informava o ofício nº 1089: “Flávio Tavares aqui teria permanecido

como elemento de ligação entre os asilados que foram para Cuba, os locais e os que por aqui

transitam. Está o mesmo sendo continuamente vigiado pelas autoridades mexicanas”13

.

O outro integrava, o Movimiento Latinoamericano de Liberación, que por sua vez se

relacionaria com o Centro Intercultural de Documentación – CIDOC14

. Estava-se referindo a

Francisco Julião, caracterizado por João Baptista Pinheiro, como “agitador brasileiro, e que

depois de vários protestos desta Embaixada contra as suas repetidas entrevistas publicadas em

revistas locais, foi advertido de que estava violando o direito de asilo (grifo no original).

Prossegue, entretanto, escrevendo livros de proselitismo à causa”15

.

O Ofício nº 1089 apresentava, assim, a intenção e o esforço do governo brasileiro, por

meio de sua embaixada, em aproximar-se dos órgãos de segurança mexicanos16

para obter

informações sobre os exilados brasileiros e colaboração para controlá-los e combatê-los,

principalmente pela oposição que faziam à ditadura militar instalada em 1964. Desejava-se

uma aproximação com as autoridades mexicanas para combater os considerados movimentos

subversivos, agitadores da América Latina. Procurava-se criar inimigos comuns aos dois

países. Entre eles, encontrava-se o exilado Francisco Julião, que integraria o Movimiento

12

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 13

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 14

Mais adiante farei referências específicas ao Centro Intercultural de Documentación. 15

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 16

Desejava-se também conseguir uma reunião com a Secretaria mexicana equivalente ao Ministério da Defesa, o

que não foi possível. “Como verificará Vossa Excelência, não nos foi aberta a possibilidade de contactos com o

Ministério da Defesa”, afirmava João Baptista Pinheiro. Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op.

Cit.

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76

Latinoamericano de Liberación, em cujo estatuto se defendia o uso da luta armada e das

guerrilhas como estratégia de ação17

.

Afirmava o embaixador brasileiro que Francisco Julião já havia sido advertido pelo

governo do México por suas declarações em entrevistas concedidas nos primeiros anos do

exílio. Teria conseguido a mobilização diplomática do Brasil junto aos órgãos de segurança

mexicanos torná-lo um “inimigo comum” aos dois países?

1 - Asilo político

Era noite de natal, 1965. Havia um intenso movimento de pessoas na embaixada do

México no Brasil, situada em um dos prédios com vista para a Baía da Guanabara, Rio de

Janeiro. Ali acontecia uma ceia natalina. Os participantes eram brasileiros exilados a espera

de um salvo-conduto para sair do país. Naquela ocasião, recebiam a visita de seus familiares

para a tradicional festa cristã do final do ano. Entre eles estavam Francisco Julião, João

Barbosa do Nascimento e o padre Francisco Lage. Ao sacerdote foi entregue uma caixa na

qual, para sua surpresa, encontravam-se os paramentos necessários à celebração de uma

cerimônia religiosa. Julião pôde contar com a companhia de Regina de Castro, sua esposa na

época, e sua filha, Izabela, com pouco mais de um ano de vida. Foram distribuídos presentes

para as crianças. Às 22 horas houve uma missa, seguida da ceia, regada com bebidas, músicas

e muita conversa18

.

Segundo o relato19

de Francisco Julião, todo o evento foi patrocinado pelo embaixador

mexicano Vicente Sanchéz Gavito, que era frequentemente lembrado pelo ex-deputado

brasileiro por uma frase: “El asilo político no se negocia, se hace”20

. Isto teria dito o

diplomata ao ser consultado sobre a possibilidade de aceitá-lo como asilado político. A busca

anterior em outras embaixadas não havia sido exitosa. A primeira foi a da Iugoslávia. Sua

ideia era ir a este país e depois seguir para Argélia, onde estava Miguel Arraes. O seu pedido

de asilo foi negado. Seguiu para a embaixada do Chile, que também não o aceitou, apesar da

17

Está é uma informação do embaixador João Batista Pinheiro. Não encontrei outro documento que indicasse

uma ligação entre Francisco Julião e o Movimiento Latinoamericano de Liberación. 18

Informações retiradas do artigo de Francisco Julião publicado na Revista Siempre!. 09 de fevereiro de 1977. p.

45. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 19

Revista Siempre!. 09 de fevereiro de 1977. p. 45. Op. Cit. 20

“O asilo político não se negocia, se faz”. Revista Siempre!. 09 de fevereiro de 1977. p. 45. Op. Cit.

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77

insistência do seu advogado, Sobral Pinto21

. Ainda nesse tempo, recorreu ao Partido

Comunista e ao movimento de Ação Popular – AP – com o intuito de conseguir se esconder e

permanecer no Brasil. As duas organizações afirmaram que estavam com seus dispositivos

lotados e não o tinham como receber. Novamente perseguido pela polícia, Francisco Julião

não encontrava apoio por parte de organizações de esquerda e percebia que era cada vez mais

difícil quem o aceitasse, seja para o exílio, seja para a clandestinidade. “Não havia um

lugarzinho para mim! Além disso, eu tinha muito cheiro de Cuba e cheirar a Cuba era cheirar

a pólvora, o que não convinha naquele momento”22

. Era difícil encontrar quem desejasse

associar-se a ele. O ex-dirigente das Ligas Camponesas parecia não ter mais para onde ir, nem

o que fazer.

A sua rede política e social de apoio havia se enfraquecido ou praticamente

desaparecido em pouco mais de um ano após o Golpe civil-militar, período em que esteve

preso em Brasília, Recife e Rio de Janeiro. Ele foi capturado por policiais em junho de 1964,

no interior do Estado de Goiás, onde se escondia na Fazenda Bauzinho, disfarçado como

camponês de nome Antônio Ferreira da Silva, dono de uma bíblia, um cachorro chamado

Tenente e um rádio transístor23

.

Libertado por um habeas corpus conseguido junto ao Superior Tribunal Federal, em 27 de

setembro de 1965, passou um mês migrando por várias casas no Rio de Janeiro e ainda

buscando, sem sucesso, algumas possibilidades para continuar no Brasil. Perseguido outra vez

pela polícia, por fim consegue o asilo na embaixada do México. Com o auxílio do jornalista,

escritor e amigo Antonio Callado, em 28 de outubro de 1965, ingressa àquela representação

diplomática e por isso se dizia sempre agradecido pelo aceite, depois de vários rechaços.

Uma semana após aquela ceia de natal, os exilados brasileiros desembarcavam no

aeroporto da Cidade do México. Já se contavam os últimos minutos do ano de 1965, quando

um avião da VARIG aterrissou. Em suas primeiras e rápidas declarações à imprensa, ainda no

aeroporto, Francisco Julião reafirmou a gravidade do problema agrário no Brasil e apontou

que a única solução seria “a liquidação total do latifúndio mediante uma reforma agrária

21

Ver a entrevista concedida por Francisco Julião ao Jornal O Pasquim. 12 e 19 de Janeiro, 1979. p. 13.

Fundação Biblioteca Nacional. 22

JULIÃO, Francisco. Esperança é meu signo. In: CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa; RAMOS, Jovelino

(Coord.) Memórias do Exílio, Brasil 1964-19??. V. 1. Editora Livramento: São Paulo, 1978. p. 290. 23

O período de aproximadamente três meses entre o dia do Golpe civil-militar de 1964 e a prisão de Francisco

Julião está narrado no livro Até quarta, Isabela, escrito pelo ex-dirigente das Ligas Camponesas, quando se

encontrava preso em Recife. O texto foi composto por cartas destinadas a sua filha recém-nascida, Izabela, cujo

nome aparece no título do livro com a grafia diferente. JULIÃO, Francisco. Até quarta, Isabela! Rio de Janeiro:

Ed. Civilização Brasileira. No próximo capítulo, esse momento de sua vida voltará a ser abordado.

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78

integral”24

. Expressou seus agradecimentos ao Governo e ao povo do México e elogiou a

atuação de Vicente Sanchéz Gavito25

.

A embaixada do México no Rio de Janeiro, após o golpe de 1964, era responsável por

uma grande quantidade de concessões de asilo político26

. Entre a chegada a embaixada e a

viagem com destino ao México, alguns procedimentos deveriam ser seguidos. No mesmo dia

em que recebeu Francisco Julião, Vicente Sanchéz Gavito encaminhou uma notificação ao

Ministério de Relações Exteriores do Brasil sobre o asilo outorgado27

. Ainda em 28 de

outubro enviou ao México um telegrama cifrado, no qual também comunicava sua decisão28

.

Passados dois dias, encaminhou a mensagem confidencial nº 701 ao Secretario de

Relaciones Exteriores, Chanceler Antonio Carrillo Flôres, na qual informou alguns dados

sobre o recém exilado. Nome, lugar e data de nascimento, profissão, estado civil e o número

da carteira de advogado encontravam-se relatados no início da página29

. Em seguida aparecia

o tópico “Observações Gerais”, no qual se resumia a situação de Francisco Julião ao pedir

asilo:

Acusado pelas autoridades militares, foi detido pela Justiça Militar com

fundamento na “Lei de Segurança do Estado”. Foi posto em liberdade

mediante habeas corpus (grifo no original) do Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, novas ordens de detenção podem ser executadas, pois a vigência

do “Ato Institucional número 2” cancelou os efeitos do habeas corpus (grifo

no original). Interrompeu-se o funcionamento normal dos tribunais

ordinários e o citado Ato expressamente dispõe que é competente à Justiça

Militar julgar os civis acusados de delitos políticos. Como se sabe que os

agentes da polícia política (DOPS) redobraram seus esforços por localizá-lo,

não dispõe de outro recurso que não seja o asilo político30

.

24

El Día. 31 de dezembro de 1965. Hemeroteca Nacional. UNAM. México, D.F. 25

El Día. 31 de dezembro de 1965. Op. Cit. 26

Em abril de 1964, dias após o Golpe civil-militar, a representação diplomática do México no Rio de Janeiro

havia realizado um levantamento do número de exilados em algumas Embaixadas. O resultado foi apresentado à

Secretaria de Relaciones Exteriores – SRE por meio de telegrama cifrado. “[…] asilados distribuidos en

embajadas siguientes: México 35, Uruguay 19, Yuguslavia 18, Paraguay 6, Perú 5, Chile 5, Argentina 2 y

Colombia 1”. Tradução de Telegrama Cifrado. Pasta Asilo Político – III 2904-8. Fl. 117. Arquivo Histórico

Genaro Estrada – Secretaria de Relaciones Exteriores - SRE. México, D.F. Segundo Guillermo Palacios, entre 1º

de abril e 15 de dezembro de 1964, 86 brasileiros haviam pedido asilo na Embaixada do México, dos quais 77

conseguiram salvo-conduto para saírem do país e 09 desistiram da solicitação. PALACIOS, Guillermo.

Intimidades, conflictos y reconciliaciones. México y Brasil, 1822-1993. Op. Cit. p. 304. 27

Cópia 700/516”65” de 28 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Arquivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria de Relaciones Exteriores - SRE. México, D.F. 28

Tradução de Telegrama Cifrado nº 1589 de 28 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco

Julião - III 2983-12. Op. Cit. 29

Anexo a Mensagem Confidencial nº 701 de 30 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco

Julião - III 2983-12. Op. Cit. 30

Anexo a Mensagem Confidencial nº 701 de 30 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco

Julião – III 2983-12. Op. Cit.

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79

O fluxo de informações era contínuo e por seu turno a Dirección General del Servicio

Diplomatico31

– Departamento de America del Sur, em 30 de outubro, enviou a Secretaria de

Gobernación um Correograma Urgente, no qual expressava oficialmente o asilo político

concedido a Francisco Julião. Esse documento era uma confirmação, pois o informe já havia

sido transmitido anteriormente por telefone32

.

Em 04 de novembro, a Subsecretaria de Gobernación expediu uma resposta por meio

de um Memorandum, que expressava o desejo do Subsecretario em receber as cópias das

comunicações produzidas sobre o referido assunto. Ele queria estar apto para informar ao

Secretario de Gobernación acerca das resoluções do caso33

.

O asilo político de Francisco Julião passava assim por várias autoridades diplomáticas

e mobilizava setores do governo tanto no México, quanto no Brasil. Não era um processo

automático, sem trâmites, como desejava representar o exilado ao reproduzir uma frase do

embaixador Sanchéz Gavito em referência ao seu pedido: “El asilo político no se negocia, se

hace”.

Francisco Julião viveu dois meses em um quarto improvisado na embaixada do

México, onde acabou por familiarizar-se com a paisagem da Baía de Guanabara. Esperava

receber o salvo-conduto do governo brasileiro e assim ter o direito de sair do país. Para tanto

o Ministério da Justiça e o Serviço Nacional de Informação – SNI – foram consultados, a fim

de saber se ele tinha alguma condenação por crime comum, o que inviabilizaria o direito ao

asilo34

. Ao mesmo tempo, integrantes do governo mexicano desejavam estar informados de

todo o processo. Poderiam estar avaliando as possíveis implicações de receber aquele ex-

dirigente das Ligas Camponesas, considerado por várias pessoas no Brasil e nas Américas

como um radical líder de esquerda.

O processo de asilo político de Francisco Julião apresentava interrogações, hesitações,

negociações. Poucas horas após sua chegada àquela embaixada, o comunicado de concessão

do seu asilo seguiu para o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, um trâmite

31

Direção integrante da Secretaria de Relaciones Exteriores – SRE. 32

Correograma Urgente de 30 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 33

Subsecretaria – Memorandum 373 de 04 de novembro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco

Julião - III 2983-12. Op. Cit. 34

Processo SECOM 34.646/65. BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.17. Cx. 584

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80

obrigatório. Poucas horas depois, o embaixador Vicente Sanchéz Gavito recebeu uma ligação

em sua casa. No outro lado da linha falava o Ministro Vasco Leitão da Cunha35

.

Na conversa pairava um tom de dúvida. Os representantes de ambos os países não

tinham segurança quanto à concessão do exílio para Francisco Julião. Vasco Leitão perguntou

se o embaixador sabia que o ex-deputado estava amparado por um habeas corpus. A resposta

afirmativa foi acrescida da seguinte colocação: “se tivesse me apresentado o problema na

antivéspera, haveria negado o exílio”36

.

Um dia antes desta conversa, o governo militar decretou o Ato Institucional nº 2.

Vicente Gavito baseou sua decisão para concessão do asilo político nos termos apresentados

pelo Ato, que cancelou o efeito do habeas corpus e tornou competência da Justiça Militar o

julgamento dos acusado por crimes políticos37

. O AI-2 garantiu o asilo político para Francisco

Julião.

Sobre sua decisão, o embaixador afirmou no Correo Aereo enviado à Secretaria de

Relaciones Exteriores: “Ao analisar o que disse o Chanceler brasileiro no curso da conversa

que estou resumindo, rogo a você levar em conta que eu estava muito seguro da força da

minha posição”38

. Vasco Leitão havia lhe advertido por telefone sobre uma possível polêmica

em decorrência daquela decisão. Apesar da segurança de sua posição, o embaixador mexicano

respondeu ao ministro brasileiro com a seguinte frase: “Não desejo polêmicas com ninguém e

como tenho a mais absoluta confiança em ti, farei o que você disser”39

.

O Ministro de Relações Exteriores ficou surpreso com a resposta e tamanha

cooperação, segundo Vicente Gavito. O brasileiro propôs então que o embaixador não

“formalizasse o asilo” e lhe oferecesse um tempo para analisar a situação40

. O diplomata

mexicano aceitou a proposta e a partir daquele momento tentou retirar do setor

35

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 36

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião – III 2983-12.

Op. Cit. 37

Essas considerações foram escritas por Vicente Sanchéz Gavito no anexo a Mensagem Confidencial nº 701 de

30 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit. Com o Ato

Institucional nº 2, as instâncias inferiores da justiça civil ordinária deixaram de ter jurisdição sobre os crimes

políticos. Para Anthony Pereira, o AI-2 representa o principal ponto de virada do regime, uma vitória dos

partidários da chamada linha-dura. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de

direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 38

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 39

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 40

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit.

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radiotelegráfico o seu telegrama cifrado nº 211, endereçado a Secretaria de Ralaciones

Exteriores41

, no qual dizia: “Hoje, quinta-feira, concedi asilo político a Francisco Julião

Arruda de Paula. Aéreo envio detalhes”42

.

Outra conversa entre os dois voltou a ocorrer quatro horas depois. Durante este

período, existiu a possibilidade de Julião ficar sem o asilo político, que já o havia sido negado

por outras embaixadas. Apesar da segurança que Sanchéz Gavito depositava em sua decisão,

poderia ceder a uma pressão do governo brasileiro.

Passadas as horas, o telefone da casa do embaixador do México toca outra vez. Era

Vasco Leitão que do outro lado expunha a sua conclusão: “um dos efeitos do Ato

Institucional nº 2 era conceder jurisdição exclusiva a Justiça Militar sobre casos desta

natureza e que, em tal situação, não temos outro remédio do que formalizar o asilo”43

.

Francisco Julião estaria assim mais próximo de ir-se para o exílio, após o posicionamento do

Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Além disso, Vasco Leitão comprometeu-se a

conseguir rapidamente o salvo-conduto44

necessário para se deixar o país na condição de

asilado.

A chegada ao México foi, assim, antecipada por dúvidas, negociações, trocas de

correspondências, ligações telefônicas e pedidos de informações. Não havia uma recepção

inquestionável por parte do governo deste país, como se desejava produzir ao recordar a frase

que teria dito o embaixador Sanchéz Gavito: “el asilo político no se negocia, se hace”.

Ademais, a atuação de um dos ministros do presidente Castelo Branco foi parte integrante

para a confirmação do asilo.

Desse modo chegou Francisco Julião ao México. Não foi recebido por políticos, nem

líderes sociais, mas alguns jornalistas. Não tinha dinheiro e provavelmente não conseguiria

41

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 42

Tradução de Telegrama Cifrado nº 1589 de 28 de outubro de 1965. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco

Julião - III 2983-12. Op. Cit. 43

Correo Aereo nº 709 de 4 de novembro de 1975. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Op. Cit. 44

O governo era obrigado a conceder o documento àqueles que haviam recebido asilo político de outro país. Era

a garantia para uma partida em segurança. Contudo, havia uma demora proposital com intuito de causar

desconforto e uma espera angustiante. ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro:

Record, 1999. p. 67. Segundo Francisco Julião, a angustia por viver vários meses em um quarto na embaixada do

México contribuiu para o suicídio do secretário particular de João Goulart, Eugenio Caillard. “Possuído por uma

insuportável mania de perseguição, não suportou a angústia de viver entre quatro paredes”. Citado em JULIÃO,

Francisco. Esperança é meu signo. Op. Cit. p. 291. A demora na expedição do salvo-conduto também

ocasionava problemas para a própria embaixada. Vicente Sanchéz Gavito enviou informativos a Secretaria de

Relaciones Exteriores no México relatando os altos custos para manter os asilados por um longo período – três

meses no caso de Julião. Ver Pasta Asilo Político - III 2904-8. Arquivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria de

Relaciones Exteriores - SRE. México, D.F.

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exercer sua profissão de advogado45

. Desembarcava com a sua segunda esposa, Regina de

Castro, com quem havia se casado em janeiro de 1964 e tinha uma filha, Izabela, e mais dois

meninos, filhos do primeiro casamento de Regina46

. Não tinha um lugar político e social

assegurado no seu novo país. Contava apenas com a sua imagem de líder de um conhecido

movimento camponês da América Latina, naqueles anos 1950 e início dos 1960.

2 - Tempos difíceis

Assim como outros exilados, quando chegaram à Cidade do México, Francisco Julião

e sua família hospedaram-se no Hotel Canadá, à Rua 5 de maio, centro histórico. Estava

próximo ao Zócalo da capital, esplanada onde se situam o Palácio Nacional e a Catedral.

Depois de dois ou três dias, entretanto, a família teria se mudado para um apartamento, onde

viveu aproximadamente por um mês.

A saúde do ex-dirigente camponês não parecia ser das melhores, pois estaria enfermo,

sofrendo com as reações provocadas pela altitude da nova cidade47

. Seu tipo físico não era dos

mais fortes. Ao contrário, sempre demonstrou certa fragilidade, em alguma medida agravada

pelo período de mais de um ano no qual esteve preso. Do seu nariz escorria sangue

constantemente, por encontrar-se a 2.234 metros acima do nível do mar. Esse motivo

contribuiu para que a família migrasse da Cidade do México para Cuernavaca48

, que estava

um pouco mais abaixo e era conhecida por suas agradáveis condições climáticas, pelas quais

recebeu o título de cidade da eterna primavera.

Não se sabe muito bem as condições que possibilitaram essa migração interna. Chegar

a um novo país, com pouco dinheiro, sem dominar a língua, com três crianças, uma delas,

Izabela, ainda por completar dois anos de vida, eram fatores que dificultavam qualquer

45

Para conseguir emprego, o exilado deveria obter uma autorização especial da Secretaria de Gobernación, além

de pagar um imposto. Quando chegava ao país, o exilado era levado a um hotel por funcionários da Dirección de

Población da Secretaria de Gobernación, recebia uma quantia em dinheiro e tinha sua hospedagem paga, em

geral, por um mês. Estas informações foram apresentadas em CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na

vida de exílio de Francisco Julião. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 26-27 46

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA. Fundação

Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. p. 80. Do seu primeiro casamento, com Alexina Crespo, nasceram

quatro filhos: Anatólio, Anacleto, Anataílde e Anatílde. Nesse período da chegada de Julião ao México, tanto

Alexina como os filhos estavam vivendo em Cuba, para onde foram em 1962, devido a ameaças recebidas pelo

seu então esposo, Julião, e pela família. Os filhos receberam bolsa de estudo do governo de Fidel Castro. 47

Informações retiradas da entrevista concedida por Francisco Julião ao Jornal O Pasquim. 19 de Janeiro de

1979. p. 14. Op. Cit. 48

Cuernavaca está localizada no Estado de Morelos e a cerca de 80 km da Cidade do México.

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tomada de decisão e, por conseguinte, uma mudança. Francisco Julião narra que um dia foi

convidado por um amigo para almoçar, em Cuernavaca, na casa de David Alfaro Siqueiros, o

renomado muralista mexicano e integrante do Partido Comunista. “Eu fui lá, almocei, mas na

realidade eu não tinha dinheiro para voltar à Cidade do México. Ainda assim, depois do

almoço, eu me despedi, mas o senhor Siqueiros pediu para que eu aguardasse mais um pouco,

pois ele queria conversar comigo”49

. Nessa conversa, Julião recebeu uma oferta de dinheiro

do famoso pintor. A ajuda, muito bem-vinda naquele momento, foi investida no aluguel de

uma casa na própria Cuernavaca, para onde se mudou com sua família50

.

Houve, no entanto, outra possibilidade. Dois dias após chegar ao exílio, Francisco

Julião foi procurado por um embaixador. Não era mexicano, nem brasileiro. Tinha uma

proposta-convite para lhe fazer. Joaquín Hernández Armas, que havia sido embaixador de

Cuba no Brasil, onde conheceu e se tornou amigo do então dirigente das Ligas Camponesas,

trazia-lhe uma mensagem de Fidel Castro: o “comandante” o convidava para viver na Ilha51

.

Esse era o caminho que alguns exilados brasileiros percorriam. Chegavam ao México

e conseguiam uma autorização para viajar a Cuba52

. Parecia não ser um processo tão difícil e

complicado. Em certa medida, as boas relações entre os dois governos poderiam facilitar a

vida dos interessados em vivenciar o comunismo cubano, com a possibilidade de integrar-se

aos treinamentos guerrilheiros.

Francisco Julião agradeceu o convite enviado por Fidel Castro, mas decidiu por

permanecer no México. Disse que desejava sentir o “exílio de verdade”53

. Este é um relato de

1979. Com ele, talvez, queria mostrar o quanto Cuba o apoiava, afinal no início da década de

1960, o então líder das Ligas Camponesas era recebido diretamente pelo comandante da

Revolução. Mas também, no final dos anos 1970, aquela narrativa estava inserida no

movimento de reapresentação do asilado político ao Brasil e na estratégia de resignificação do

seu passado, que incluía a tentativa de produzir um afastamento entre a sua imagem e as

49

Entrevista concedida por Francisco Julião a Diana Castellano. Alguns trechos foram reproduzidos na sua

dissertação de mestrado em história. CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida de exílio de

Francisco Julião. Op. Cit. p. 27. Infelizmente a autora não informa a data, nem o local onde foi gravado o

depoimento. Tampouco diz se o mesmo foi disponibilizado em algum núcleo de pesquisa ou arquivo. 50

Diana Castellanos afirma, usando a entrevista citada e comentada na nota anterior, que Siqueiros teria doado a

quantia de 1000 dólares. Francisco Julião, em um dos seus relatos, não fala em dinheiro, nem em valores e

afirma que “com a ajuda de Siqueiros pude vir para Cuernavaca, à uma hora da Capital”. JULIÃO, Francisco.

Esperança é meu signo. Op. Cit. p. 294. 51

Informações apresentadas por Francisco Julião em seu texto Esperança é meu signo. Op. Cit. p. 293. 52

A autorização se chamava Documento de Viaje. Era concedido pela Dirección General del Servicio

Diplomático. No Arquivo Histórico Genaro Estrada da Secretaria de Relaciones Exteriores é possível encontrar

algumas cópias destes documentos concedidos a brasileiros. 53

JULIÃO, Francisco. Esperança é meu signo. Op. Cit. p. 293.

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ideias de revolução e guerrilha, ainda atreladas a Cuba. Esse debate o leitor encontrará nos

próximos capítulos.

Porém, o Francisco Julião que chegou ao México em 1966 falava, nas suas entrevistas,

em reforma agrária radical e revolução violenta para a América Latina. Aceitar o convite de

Fidel Castro, passar a viver na Ilha e daí defender suas ideias e planejar suas ações para o

Brasil e América Latina era algo viável dentro das possibilidades existentes. Não consegui

nenhum documento que apresentasse argumentos mais detalhados sobre essa recusa. Segundo

o exilado, ele teria escrito uma carta, na qual explicava suas razões ao governante cubano.

Ainda dentro do campo do possível, dois fatores devem ser levados em consideração.

O primeiro, já abordado em outras partes do texto, refere-se ao fracasso da tentativa de

organizar campos de treinamento guerrilheiro no Brasil, a partir das Ligas Camponesas.

Mesmo Francisco Julião negando a sua participação e afirmando que tudo havia sido

executado por Clodomir Morais, parecia inevitável um desgaste com os líderes cubanos. Em

determinado momento, eles acreditaram que aquele movimento camponês seria fundamental

na estratégia de expansão da Revolução para o restante da América Latina.

O fracasso desse plano ocorreu antes mesmo do Golpe civil-militar de 1964, quando o

exército encontrou aquilo que seria o campo de treinamento de guerrilha, em 1963, no Estado

de Goiás. O investimento de Cuba havia se perdido. Teria Francisco Julião sido cobrado por

isso? Afinal, ele era o famoso líder das Ligas Camponesas e tratava diretamente com Fidel

Castro sobre os problemas da América Latina e as possíveis soluções naquele período.

Não seria demais pensar que alguns anos depois, já então como exilado político no

México, houvesse um receio de sua parte em aceitar o convite para ir a Cuba. Talvez um

desconforto por não haver conseguido concretizar um possível planejamento de revolução

para o Brasil. E esse sentimento teria permanecido por anos. Apesar de viajar durante o exílio

para outros países da América Latina, Europa e África, apenas em 1979 é que Francisco

Julião regressa a Cuba, a convite do governo, a fim de participar das comemorações do XX

aniversário da Revolução54

.

O segundo fator que pode ter contribuído de alguma forma para a recusa envolveria

aspectos familiares. Haveria um mal estar provocado pela separação entre Francisco Julião e

Alexina Crespo, sua primeira esposa, que estava em Cuba, com os quatro filhos, enquanto ele

já vivia com Regina de Castro desde 1963, ainda no Brasil e depois no México. O

54

Assim relata Francisco Julião em artigo na Revista Siempre! 31 de janeiro de 1979. p. 42-43. Biblioteca

Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México.

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85

afastamento do pai ficou marcado na memória dos filhos. Um deles, Anatólio Julião,

construiu o seguinte relato:

Ele teve em Cuba logo no começo, quando a gente tava lá ele fez uma visita,

tem fotos disso, e depois não voltou mais a Cuba. Que eu lembre não, talvez,

mas eu acho que não. Eu acho que não, tenho certeza que não. Bom, uma das

mágoas de Anacleto era que ele raramente escrevia. Aí Anacleto ficou com

essa: “Ah, deixou a gente lá, não visitava.” Não sei se para ele não era

interessante justamente por causa dessa precariedade do exílio no México, se

ele radicado no México, mas essa visita a Cuba, ele provavelmente iria

perder o asilo e ele tinha muito cuidado com isso55

.

A visita citada no início do relato diz respeito ao período anterior ao golpe de 1964.

Provavelmente, em 1962. Anacleto Julião, até então o caçula, se queixava da ausência do pai,

que sequer enviara-lhe uma carta. O fato era justificado, nas memórias do irmão, por meio da

possibilidade do pai perder o asilo. Isso não parece ser um forte argumento, visto que durante

os 14 anos de México, o exilado viajou para diversos países – Chile, Portugal, Argélia e no

final Cuba. Além disso, como já foi dito, existem documentos produzidos pela diplomacia

mexicana que autorizaram a viagem de brasileiros para o território cubano.

O próprio Francisco Julião recebeu uma permissão para ir à França, em 28 de

fevereiro de 196656

. Não tenho mais referências sobre essa viagem e mesmo se ela ocorreu,

contudo, era plausível a possibilidade de sair do México, sem que o direito de asilo fosse

afetado. O reencontro só aconteceu em 1973, quando o pai viajou ao Chile, onde seus filhos e

Alexina Crespo passaram a viver ao deixarem Cuba. Meses depois, após o golpe comandado

por Augusto Pinochet, Anatólio Julião foi para o México, onde morou por dois anos. O

restante da família seguiu para a Suécia57

.

Assim, no início de 1966, Cuba também poderia não se afigurar como uma boa opção

para o exilado. A permanência no México, talvez a única alternativa para Francisco Julião

naquele momento, também apresentava seus problemas. Por mais que fosse um Estado

conhecido por receber aos asilados políticos, como os espanhóis que conseguiram escapar da

repressão do regime franquista, havia um forte disciplinamento para os mesmo. Neste ponto,

as dificuldades se apresentaram logo nos primeiros meses.

55

Entrevista realizada com Anatólio Julião. 23 de maio de 2011, Recife-PE. 56

Documento de Viaje nº 73. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit. 57

Entrevista realizada com Anatólio Julião. Op. Cit. Uma das filhas de Julião, Anatílde, foi presa em sua casa no

Chile e levada para o Estádio Nacional junto com milhares de pessoas raptadas pela ditadura de Pinochet. O

embaixador da Suécia, Harold Edelstam foi quem conseguiu retirá-la. Uma carta com o relato da prisão foi

escrita pela filha ao seu pai, e publicada por este na revista Siempre! De 28 de novembro de 1973. Biblioteca

Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México.

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86

No ano anterior, em 1965, um grupo de exilados do Brasil havia criado o COBEM -

Comitê dos Brasileiros Exilados no México, cujos objetivos seriam “estreitar os laços de

solidariedade, promover o auxílio mútuo a todos seus membros e mantê-los informados do

que passa em seu país”58

. Essa informação está no ofício, datado de fevereiro, enviado ao

Secretário de Gobernación, Luis Echeverría, no qual se comunicava a criação do Comitê e se

apresentava os seus dirigentes: Carlos Taylor, Abigail Pereira Nunes e Ruy Mauro Marini.

O ofício em nenhum momento faz referência à publicação de um boletim por parte do

COBEM. Talvez isso tenha sido abordado em outro documento, ao qual não tive acesso. Em

outubro de 1965, a Dirección General del Servicio Diplomático já havia identificado a

circulação do referido boletim. Em anexo a um documento classificado como confidencial59

,

remeteu à Secretaria de Gobernación a cópia de um exemplar. Em uma sessão, havia sido

publicada uma pequena nota com a informação da transferência de Francisco Julião da prisão

de Recife para a Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Denunciavam-se as péssimas

condições em que vivia o prisioneiro.

Não imaginava Francisco Julião que enquanto estava no Brasil, buscando asilo

político, seu nome circulava entre os escritórios do governo do México, na publicação de um

Comitê, cujas atividades poderiam motivar a uma investigação por parte dos órgãos de

segurança.

Afirmava ainda o documento confidencial:

Submeto à consideração de vocês a conveniência de que se investiguem as

atividades do citado Comitê com o objetivo de determinar se não vulneram

as obrigações internacionais do México em matéria de asilo ou contravém os

preceitos da Ley General de Población e seu regulamento60

.

Apesar de sugerir um possível processo investigativo, a Dirección General del

Servicio Diplomatico opinava nesse mesmo documento que “a qualidade de asilado político

de uma pessoa não restringe sua liberdade de expressão ou de reunião nos termos consagrados

pelas leis mexicanas”61

. Ou seja, alertava a Secretaria de Gobernación sobre as atividades do

COBEM, mas emitia um parecer favorável a elas.

58

Documento enviado pelo COBEM ao Secretário de Gobernación Luis Echeverría. Fevereiro de 1965. Pasta

Asilo Político – III 2904-8. Fl. 125. Op. Cit. 59

CONFIDENCIAL III/ 516(81)/32300 de 21 de outubro de 1965. Pasta Asilo Político – III 2904-8. Fl. 168. Op.

Cit. 60

CONFIDENCIAL III/ 516(81)/32300 de 21 de outubro de 1965. Pasta Asilo Político – III 2904-8. Op. Cit. 61

CONFIDENCIAL III/ 516(81)/32300 de 21 de outubro de 1965. Pasta Asilo Político – III 2904-8. Op. Cit.

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Entre a Secretaria de Relaciones Exteriores, a qual pertencia a Dirección General del

Servicio Diplomatico, e a Secretaria de Gobernación parecia haver uma diferença de

avaliação. A primeira, ao menos nos documentos pesquisados, apresentava um

posicionamento em favor dos asilados. Nessa direção argumentou o documento confidencial

apresentado acima e enviado a Luis Echeverría, em 1965. Também foi nesse sentido a

resposta ao embaixador do Brasil, Frank Moscoso, quando, em 1966, Francisco Julião foi

acusado de infringir as regras do exílio pelas declarações ao semanário francês. Nas duas

ocasiões, a SRE justificou sua posição por meio da transcrição do artigo VII da Convenção de

Caracas, que garantia ao exilado o direito a liberdade de expressão.

Poder-se-ia pensar em um padrão formal de resposta às inquirições de outros países,

como as da embaixada do Brasil. Contudo, pelo menos naquele documento confidencial

enviado a Secretaria de Gobernación, ou seja, uma correspondência interna do Governo, a

linha argumentativa se repetia. A possível tolerância praticada pelos integrantes da SRE,

entretanto, não era reproduzida pela outra secretaria.

Após receber o documento, é provável que Luis Echeverría tenha solicitado a

Dirección Federal de Securidad, sob o comando de Fernando Gutiérrez Barrios, uma

investigação sobre os integrantes do COBEM. O resultado dela foi a convocação de alguns

exilados brasileiros para uma reunião na Subdirección General de Población da Secretaria de

Gobernación. Entre o recebimento da comunicação oriunda da SRE e a reunião passaram-se

quase quatro meses. Já era 7 de fevereiro de 1966.

Durante esse intervalo, Francisco Julião havia conseguido o asilo e saído do Brasil.

Procurava se adaptar ao México e construir uma nova rede social para si. Nesse trabalho de

sociabilidade, passou a integrar o COBEM, convivendo com brasileiros que se encontravam

na mesma situação. Buscar os compatriotas seria a estratégia inicial mais viável naquele

momento de chegada. Publicou então no boletim do Comitê, na edição de janeiro de 1966,

poucos dias depois do seu desembarque. Julião acertou exatamente no grupo que estava,

naquele momento, sofrendo uma investigação por parte dos órgãos de segurança do México.

Escreveu um pequeno artigo intitulado “Unidade e resistência, em respeito ao povo do

Brasil”:

[…] Nossa condição de exilado político não significa passividade e omissão

frente à nova ordem instalada pelo golpe militar e pelas forças das armas.

[…] é necessário, antes de tudo, que não percamos de vista o rumo dos

acontecimentos dentro e fora do Brasil. Aqueles patriotas que buscaram o

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caminho do exílio sabem que cruzar os braços e permanecer quietos significa

capitulação62

.

O ex-deputado socialista seguiria agindo, lutando contra o governo militar do Brasil e

para isso contava com o trabalho também dos outros exilados. Não continuar lutando, mesmo

desde o exílio, significaria a rendição, a derrota. A edição do boletim com esse texto estava

entre as outras apresentadas por Miguel Domínguez Loyo, Subdirector General de Población,

aos asilados convocados para a referida reunião.

As investigações realizadas indicaram que a publicação era realmente promovida por

brasileiros integrantes do COBEM, já exilados desde 1965. Após expor o que seriam as

provas das ações dos asilados políticos, o subdirector decretava a sua avaliação, que

representava a da Secretaria de Gobernación:

A Constituição Política mexicana garante a livre expressão das ideias,

restringida unicamente ao respeito à vida privada, a moral e a paz pública,

porém o boletim informativo COBEM critica e ataca sistematicamente ao

governo político constituído atualmente nos Estados Unidos do Brasil, fato

que infringi o artigo VII da Convenção sobre Asilo Territorial da X

Conferência Interamericana, celebrada em Caracas em 195463

.

Esse era o mesmo artigo evocado pela Secretaria de Relaciones Exteriores quando

indicou uma investigação sobre o COBEM. Na ocasião, entretanto, argumentou que em sua

análise não havia violação do artigo VII, cujo conteúdo, em resumo, afirma que: a liberdade

de expressão de pensamento conferida pelo direito interno de um Estado aos seus habitantes

se estendia aos asilados políticos e por isso não poderia ser tomada como motivo de

reclamação por outro Estado, em decorrência daqueles expressarem conceitos contra o

governo do seu país. A exceção consistia no caso de tais conceitos promoverem uma

propaganda sistemática ou incitarem o uso da força e da violência contra o país reclamante.

Sendo classificado como uma crítica sistemática ao governo do Brasil pela Secretaria

de Gobernación, o boletim informativo passa a ser classificado um instrumento político. Isso

era uma atividade vedada aos asilados e assim a recomendação de Miguel Dominguéz Loyo

foi para que os brasileiros “se abstivessem da publicação do citado boletim, colaborando

dessa forma com o país que lhes dá proteção”64

.

62

Boletin Informativo COBEM. México, janeiro de 1966. Ano II, n° 4. pág. 07. Pasta Asilo Político – III 2904-

8. Fl. 298. Op. Cit. 63

Ata de reunião. 07 de fevereiro de 1966. Pasta Asilo Político – III 2904-8. Fl. 168. Op. Cit. Fl. 293. 64

Idem.

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89

Após receberem a notícia, os presentes tiveram a oportunidade de dialogar entre si,

compartilhando suas impressões. Depois de um breve intervalo, pediu a palavra Ruy Mauro

Marini que, falando em nome dos demais, afirmou jamais terem desejado criar dificuldade ao

governo do México, o qual os recebeu de modo tão hospitaleiro. Ressaltou ainda que em

outubro de 1965 foi enviado um ofício à Secretaria de Gobernación comunicando a criação

do Comitê dos Brasileiros Exilados no México. Acrescentou ter o boletim apenas a pretensão

de atender as necessidades de informação dos exilados. Ao final, exaltando todo o respeito ao

Subdirector, informou que era desejo do grupo recorrer a outras autoridades sobre a

possibilidade de continuar a publicação.

O leitor pode estar imaginando quem integrava esse grupo de asilados políticos.

Estavam Victor Medeiros do Paço, Gildo Mario Porto Guerra, José Thiago Cintra, Carlos

Taylor da Cunha e Mello, Francisco Lage Pessoa, Ruy Mauro Marini e Francisco Julião.

Todos, junto com Miguel Dominguéz Loyo, assinaram a ata da reunião. Com pouco mais de

um mês no México, Julião foi convocado e informado dos limites de sua atuação, inclusive

sendo o boletim, no qual publicara o seu primeiro texto no exílio, censurado.

Ao mesmo tempo em que aquele país parecia se configurar como a opção mais viável

para o ex-líder das Ligas Camponesas, também já lhe mostrava as dificuldades existentes para

defender e promover suas ideias. Em um curto intervalo de tempo, perdia, por intervenção

direta do governo, o seu primeiro espaço de publicação.

Mediante a situação adversa, as estratégias do político de esquerda deveriam ser

repensadas? Mas, o que fazer? Que caminho seguir? Não havia receitas, nem certezas para se

viver em um país no qual o governo se dizia democrático ao mesmo tempo em que mantinha

um aparato policial e repressivo próprio de uma ditadura.

Apenas uma questão parecia certa. As práticas do agitador político e social de anos

anteriores eram inviáveis naquele momento. Se realizadas causariam ainda mais problemas

para o exilado.

3 - A capa do La Prensa.

Em algumas entrevistas concedidas por Francisco Julião no decorrer do primeiro ano

de exílio, as figuras do líder campesino e do revolucionário seguiam presentes e em destaque.

No início de junho de 1966, uma fotografia sua aparecia na reportagem de capa do jornal La

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Prensa65

, cujo título era “Fala a La Prensa Francisco Julião: ADVERTENCIA A AMÉRICA

LATINA”. A legenda da imagem ressaltava o político e líder de esquerda, influente na

América Latina. Nela estava reproduzida a “advertência” anunciada pelo exilado com um tom

profético e determinista: “[…] o líder agrário brasileiro exilado no México […] levantou para

a América Latina este tremendo e dramático dilema: ‘Ou se realiza a Reforma Agrária

Radical ou a revolução social é inevitável, porque a fome, a miséria e a injustiça são mais

fortes que tudo’”66

.

Em outra parte, a reportagem demonstrava em números a força da liderança de Julião,

caracterizado como o “líder de quarenta milhões de camponeses brasileiros [...]”67

. Por seu

turno, o advogado e ex-deputado pelo Partido Socialista também criava uma continuidade

para seu trabalho de mobilização social ao dizer que voltaria ao Brasil, “não importa como

[…] porque a semente está lançada à terra e a consciência das massas camponesas é uma

fecunda terra”68

. Apesar de exilado, ainda se representava em plena ação e assim profetizava:

“O futuro confirmará nossas palavras. Nós voltaremos a nossa pátria e voltaremos de qualquer

forma... há circunstâncias que ditarão a época de nosso regresso”69

.

Depois de mais de um ano preso no Brasil, sem fazer declarações à imprensa,

respondendo aos interrogatórios policiais e militares, o exilado Julião mantinha, em grande

medida, as ideias e os conceitos constituintes dos seus discursos de dirigente das Ligas

Camponesas e agitador social no Nordeste do Brasil, no período anterior ao Golpe civil-

militar de 1964.

Essa imagem do líder campesino, mobilizador de milhares de trabalhadores rurais, que

dizia da necessidade de uma reforma agrária radical ou a América Latina seria tomada por

uma revolução social, não estava, contudo, presente na fotografia de capa da edição do La

Prensa.

65

Edição de 03 de junho de 1966, México, D.F. Hemeroteca Nacional. UNAM, México, D.F. La Prensa foi

fundado no ano de 1935. 66

La Prensa. 03 de junho de 1966. Capa. Hemeroteca Nacional. UNAM, México, D.F. 67

La Prensa. 03 de junho de 1966. p. 03. Op. Cit. Não se tem um número exato, mais há um notável exagero ao

se falar em 40 milhões de camponeses. 68

Idem 69

La Prensa. 03 de junho de 1966. p. 12. Op. Cit.

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Fig. 07 – Capa do Jornal La Prensa – 03 jun. 1966.

A fotografia apresenta Francisco Julião em família, com sua esposa, Regina de Castro,

e sua filha, Izabela, a quem está oferecendo a atenção e o carinho paterno. A representação do

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pai de família torna ausente a figura do agitador social e diz do limite daquela publicação.

Grande parte dos periódicos no México era submissa aos favores e aos direcionamentos

ditados pelo governo do Partido Revolucionário Institucional – PRI70

, que se anunciava

democrático, por realizar eleições periódicas e manter relações com governos de esquerda,

mas buscava ao máximo o controle da opinião pública e a repressão de movimentos de

oposição.

Francisco Julião podia ser o líder dos camponeses, como apareceu em várias partes do

texto. Mas, essa sua imagem deveria estar relacionada ao Brasil ou condicionada a sua volta a

este país. No México, ele era o político de esquerda exilado com sua família, como

apresentava a fotografia de capa, que tinha seu “refugiu em Cuernavaca71

, onde acaricia o

cabelo loiro de sua filha Izabela. Caminha pelo jardim com Regina, sua esposa. Agora,

sorri”72

. Encontrou a tranquilidade para viver. A agitação política ou qualquer tipo de alusão à

mobilização social em terras mexicanas estavam interditados73

.

Em fevereiro de 1966, cerca de quatro meses antes da publicação dessa entrevista de

capa, Francisco Julião juntamente com o Padre Francisco Lage, também exilado, foram

procurados no México pelo jornalista Michel Bosquet, do periódico francês Le Nouvel

Observateur. Em uma reportagem que ocupou três páginas inteiras, os dois brasileiros

expuseram suas crenças na realização de uma imediata revolução socialista na América

Latina74

.

As declarações de Julião ao semanário francês foram mais enfáticas em relação ao

processo revolucionário do que as publicadas posteriormente no La Prensa. Aproximavam-se

do pequeno artigo escrito no boletim do COBEM. Ele deveria se sentir mais a vontade para

falar, uma vez que sua entrevista circularia fora do México e não entraria diretamente em

choque com a sua condição de exilado. Nela, afirmou que o Brasil era o maior barril de

pólvora da América Latina e que a libertação desta região do domínio imperialista norte-

americano começou em Cuba, continuava no Vietnã e se apresentaria mais e mais sangrenta,

70

Foi criado em 1946 para representar as instituições criadas pela Revolução Mexicana de 1910. Antes, contudo,

os principais líderes revolucionários haviam fundado o Partido Nacional Revolucionário – PNR –, em 1929, e

depois o Partido da Revolução Mexicana, em 1938. 71

La Prensa. 03 de junho de 1966. Capa. Op. Cit. 72

La Prensa. 03 de junho de 1966. p. 12. Op. Cit. 73

La Prensa contava com o trabalho de talentosos fotógrafos. Sobre esse discurso de interdição de qualquer

mobilização social, pode-se tomar 1968, quando o jornal elaborou uma convincente narrativa visual que

criminalizava os grevistas do movimento estudantil. CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el

movimiento estudiantil de 1968: la fotografía y la construcción de un imaginario. México: Instituto Mora: IISUE,

2012. p. 38. 74

Le Nouvel Observateur. 03 de março de 1966. As três páginas com a entrevista encontram-se na Pasta

ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit.

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sendo inevitável que a guerra seria longa e seguramente contaria com uma intervenção militar

dos Estados Unidos75

. Essa ação requereria do exército norte-americano um número de

soldados cinco vezes maior, do que o enviado ao Vietnã. A revolução socialista no Brasil

daria o sinal para o restante da América Latina e faria o continente tremer.

As sangrentas profecias no semanário francês, contudo, repercutiram no México. Os

jornais Novedades e El sol de México publicaram matérias resumindo as declarações dos

exilados brasileiros. Em seu texto, o primeiro não condenava diretamente as afirmações, mas

apresentava o ex-dirigente dos camponeses como alguém que se “escondia das distintas

corporações de polícia mexicana e da CIA norte-americana”, enquanto o padre Lage era dito

como “condenado a 28 anos de prisão em seu país”76

. Percebe-se uma intenção de

desqualificar os responsáveis pelas previsões revolucionárias e socialistas publicadas na

França.

El sol de México foi além de informar o que havia sido impresso no outro lado do

Atlântico. Um dia após noticiá-lo em suas páginas, o jornal dedicou seu editorial para criticar

as declarações dos brasileiros. Dizia as últimas linhas do texto:

Naturalmente que não pensamos dissuadir ao sacerdote Lage e ao líder

camponês Francisco Julião de suas ideias marxistas. Somente queremos

recordá-los que são asilados em nosso país e que não têm direitos de utilizar

a hospitalidade mexicana para acalentar a insurreição, nem para fazer

política contra o governo de sua pátria. Se tantos são seus ardores

revolucionários, vão a seu país e coloquem em prática seus propósitos

criminais. Por que México deve lhes servir como tribuna e como proteção?

Se nosso país lhes abriu os braços, se aqui gozam de paz e liberdade, se aqui

convivem com nosso povo, sob um regime democrático, é muito pedir-lhes

que não esqueçam sua qualidade de asilados? Tudo bem que Julião e o Padre

Lage não queiram respeitar as leis do Brasil, porém aqui são obrigados a

respeitar as nossas. Senão, são muito amplas nossas fronteiras77

.

Já em março de 1966, cerca de dois meses após chegar ao México, a imagem do líder

camponês, relacionada a guerrilhas e a uma possível revolução socialista na América Latina

encontrava fortes opositores. A estratégia de Julião em manter, reforçar e difundir essa sua

imagem na Europa, talvez em busca de apoio, fazendo profecias de um cenário revolucionário

irreversível, não estava lhe rendendo bons frutos, ao menos em parte da imprensa mexicana.

75

Le Nouvel Observateur. 03 de março de 1966. Op. Cit. 76

Novedades. 09 de março de 1966. p. 02. Hemeroteca Nacional, UNAM. México, D.F 77

El sol de México. 10 de março de 1966. p. 04. Hemeroteca Nacional, UNAM. México, D.F

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Nesse momento, El Sol de México era um jornal novo, fundado em 1965. Apresentava

uma linha editorial com forte teor anticomunista, o que poderia ser também uma estratégia

para conquistar rapidamente a simpatia do governo. A parte do editorial transcrita acima

classificava como criminosos os propósitos revolucionários dos exilados e alinhando-se a um

discurso oficial de Estado ressaltava a paz e a liberdade que se gozava ao viver no México,

em um regime democrático. Não sei qual a repercussão alcançada pelo editorial de El Sol de

México. Mas, Francisco Julião, ao lê-lo, começou a entender os limites para o seu discurso e

suas práticas no novo país.

A entrevista publicada na França não mobilizou apenas parcela da imprensa mexicana.

Setores do governo também agiram. As três páginas soltas com a matéria do jornalista Michel

Bosquet foram enviadas por Luis Weckmann, o Encarregado de Negócios da embaixada do

México naquele país, ao Secretário de Relações Exteriores, Antonio Carrillo Flôres. O Correo

Aereo dizia: “Por considerar que pode ser de interesse para essa superioridade, remeto a você,

anexo ao presente, um artigo publicado na revista semanal Nouvel Observateur (grifo no

original), de 9 do corrente, relativa à situação política do Brasil”. O informe ainda ressalta a

autoria das declarações presentes no periódico: “[…] os senhores Francisco Julião e Francisco

Lage que, segundo parece, encontram-se exilados em nosso pais”78

.

A comunicação recebida de Paris, juntamente com o artigo, gerou um Memorandum

remetido para informação do presidente mexicano Gustavo Díaz Ordaz. O documento

ressaltava que os entrevistados falaram amplamente da miséria em que vivia o povo brasileiro

em contraste com a riqueza das oligarquias, apoiadas por empresas norte-americanas. Ainda

destacava que ambos anunciaram a continuação da luta contra os regimes reacionários da

América Latina, onde todos os países acabariam por aderir à luta armada79

.

Enviado em 22 de março de 1966, o Memorandum, provavelmente, não chegou ao

presidente. Uma nota manuscrita no seu rodapé afirmava: “não se considerou necessário

passar este memorandum, em virtude de que desde o princípio o assunto ficou nas mãos do C.

Secretário, a quem a Dirección proporcionou oportunamente o texto da entrevista”80

.

Pela nota, o presidente Díaz Ordaz não havia tomado ciência das declarações dos

exilados ao semanário francês. O caso estava sob os cuidados do então Secretário de

78

Correo Aereo nº 578. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit. 79

MEMORANDUM PARA INFORMACION DEL SEÑOR PRESIDENTE. Pasta ARRUDA DE PAULA,

Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit. 80

MEMORANDUM PARA INFORMACION DEL SEÑOR PRESIDENTE. Pasta ARRUDA DE PAULA,

Francisco Julião - III 2983-12. Op. Cit.

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Gobernación, Luis Echeverría81

. Assim, a trajetória do exilado Francisco Julião cruzava mais

uma vez com a de um dos mais importantes políticos do México, entre os anos 1960 e 1970.

Echeverría já havia ouvido falar ou lido algo sobre o brasileiro desde quando este vivia na

embaixada do México no Rio de Janeiro, entre outubro e dezembro de 1965. Nesse momento,

o seu Subsecretário pediu ao embaixador Vicente Sanchéz Gavito para mantê-lo informado

sobre aquele caso de asilo político e assim estar apto a cientificar ao seu superior. Além

disso, em fevereiro de 1966, Julião e outros exilados haviam sido convocados para a reunião

na Subdirección General de Población da Secretaria de Gobernación.

O memoradum de março destacava um dos pontos levantados por El Sol de México ao

criticar as declarações publicadas na França; a afirmação dos exilados sobre a continuação da

luta revolucionária. Isso não seria permitido a um asilado, que, assim, estaria agitando

politicamente a América Latina a partir do México. Como teria reagido Luis Echeverría ao ler

os informes e a matéria do semanário francês? Muito provavelmente, estava ciente dos textos

críticos publicados em jornais da Cidade do México.

Talvez Echverría também tenha lido o ofício n° 35, datado de 9 de março de 1966,

enviado pelo embaixador do Brasil, Frank Moscoso82

, ao secretario de relações exteriores do

México, Antonio Carrillo Flôres, afirmando que as declarações de Francisco Julião publicadas

na França era “uma insultuosa quebra das normas de comportamento impostas a esses

asilados políticos brasileiros pela acolhida que lhe tem dado México83

. Constituía também

uma tentativa de criar embaraços ao franco e amigável diálogo que existe entre os nossos

governos”84

.

Naquele mesmo dia 9, o embaixador brasileiro enviou o ofício reservado n° 249 ao

Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Juracy Magalhães, no qual avaliava que os

exilados em questão iriam ter problemas pelas declarações feitas. Citando as críticas

realizadas por El Sol de México, classificadas como “uma posição corajosa de acusação”,

Frank Moscoso previa a postura a ser adotada pelo governo mexicano, por meio da Secretaria

de Gobernación.

81

Luis Echeverría se afastou da Secretaria de Gobernación em 1969, ao ser indicado como o candidato do PRI a

presidência da república nas eleições do ano seguinte. Em seu lugar, assumiu Mario Moya Palencia. 82

Frank Moscoso chegou ao México em novembro de 1964 para ocupar a vaga deixada por Pio Corrêa. Foi

substituído por João Baptista Pinheiro em 1969. 83

Ofício nº 35 de 09 de março de 1966. Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty.

Ministério de Relações Exteriores. 84

Ofício nº 35 de 09 de março de 1966. Op. Cit.

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96

Estou convencido que o Ministério do Interior do México (Gobernación) irá

tomar, espontaneamente e em atendimento a solicitação da Embaixada –

medidas severas para que os asilados não voltem a exorbitar seus direitos.

Para os asilados que só vinham experimentando, até agora, os aspectos mais

generosos da política mexicana, será um choque aprender quão menor é a

simpatia que existe no Governo deste país por suas ideias e como é eficiente

a máquina policial mexicana para reprimir quaisquer abusos futuros85

.

O texto dizia da intolerância e do combate às ideias e às tentativas de revolução

socialista praticados pelo Governo do México, que utilizava a Dirección General de

Investigaciones Políticas y Sociales e a Dirección Federal de Seguridad, esta última

comandada pelo já citado Capitão Gutierrez Barrios, para investigar, perseguir e combater

qualquer indivíduo ou grupo que estivesse planejando ou tentando praticar esse tipo de

atividade. Frank Moscoso acreditava que a polícia mexicana iria atuar firmemente contra

Francisco Julião e o Padre Lage, devido as suas declarações.

Ademais, o embaixador, ainda em suas análises enviadas ao ministro Juracy

Magalhães, prognosticava que a atitude dos exilados ajudaria o governo do Brasil, pois

facilitaria “as futuras gestões da Embaixada na procura da colaboração das autoridades deste

país para o controle das atividades dos asilados”86

.

A resposta de Antonio Carrillo Flôres ao ofício n° 35 contribuiu para aumentar essa

confiança do embaixador do Brasil. Em um documento de pouco mais de duas páginas, o

chanceler afirmou, na última frase, antes dos votos de estima e consideração finais, que havia

sido realizada, sem especificar quando, “uma repreensão aos asilados brasileiros que se

encontravam no país, apresentando-os seus deveres”87

.

Antes, contudo, no decorrer da resposta, foi apresentada uma discordância em relação

ao argumento de Frank Moscoso. Em seu ofício, ele havia afirmado que o teor da entrevista

dos asilados violava o artigo VII da Convenção sobre Asilo Territorial, subscrita pelos dois

países na X Conferência Interamericana, ocorrida em Caracas, em 1954. Para o chanceler,

entretanto, o fato isolado da concessão de uma entrevista publicada na Europa em um

semanário com circulação muito restrita tanto no México quanto no Brasil, não significava,

contra o governo deste último, uma propaganda sistemática. O artigo VII em questão foi

transcrito e enviado em anexo à resposta de Carrillo Flôres. Ele era o mesmo utilizado pela

85

Ofício Reservado nº 249 de 09 de março de 1966. Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO.

Op. Cit. 86

Ofício Reservado nº 249 de 09 de março de 1966. Op. Cit. 87

Diplomático III/516(81)/33191 de 28 de maio de 1966. Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III

2983-12. Op. Cit.

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97

Subdirección General de Población da Secretaria de Gobernación para condenar a circulação

do boletim do COBEM.

Se para o secretário de relações exteriores do México a entrevista de Francisco Julião e

do Padre Francisco Lage não consistia em uma propaganda sistemática, para o Brasil

significava incitação ao uso da violência, quando se falava em levante revolucionário da

América Latina. Cada governo fazia sua interpretação. Apesar de afirmar que os exilados

haviam sido repreendidos, o governo mexicano apresentava, ao menos oficialmente, uma

postura de moderação em suas ações. Isso refutava as perspectivas de Frank Moscoso, de que

a publicação da entrevista no semanário francês produziria outro comportamento por parte do

México, que passaria a colaborar com o Brasil no maior controle dos exilados.

A repreensão sofrida por Francisco Julião e o Padre Francisco Lage citada na resposta

do Chanceler Carrillo Flores referia-se exatamente a reunião de fevereiro de 1966 que tratou

da circulação do boletim do COBEM. No rodapé do ofício nº 35, enviado por Frank Moscoso,

há uma anotação de caneta que diz: “o licenciado Hernandez Ochoa informa que a Secretaria

de Gobernación devido a um boletim que estavam publicando os exilados brasileiros,

convocou-os e os chamou a atenção para os seus deveres”. Esse pequeno texto foi datado de

26 de abril de 1966. Ou seja, pela entrevista concedida a publicação francesa, Francisco Julião

não foi outra vez advertido.

O leitor deve atentar que após essa troca de ofícios, em junho de 1966, ocorreu então a

publicação da fotografia de Francisco Julião na capa do La Prensa. Na década de 1960, esse

jornal tinha a maior tiragem, com cerca de 70 mil exemplares diários88

. Seu público era, em

sua maioria, constituído pelos setores populares. Era, muitas vezes, acusado de ser nota roja,

por publicar várias notícias policiais e violentas, e amarillista, por divulgar informações não

muito precisas dos acontecidos.

Em meados da década de 1960, sua direção estava próxima ao governo,

principalmente ao Secretario de Gobernación, Luis Echeverría. Essa aproximação se

manifestou mais intensa a partir de janeiro 1967, quando o jornal passou a publicar uma

coluna chamada Políticas em las Rocas, convertida em agosto de 1968 em Granero Político,

com informes e opiniões positivas sobre a política mexicana89

. O texto era produzido pela

88

Em agosto de 1966, enquanto La Prensa apresentava uma tiragem de 70 mil exemplares diários, Excelsior e El

Universal, dois jornais importantes, se aproximavam da marca de 20 mil edições por dia. MUNGUÍA, Jacinto

Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Debolsillo: México, 2010. p.

149. 89

Jacinto Munguía realizou uma extensa pesquisa nos documentos confidenciais produzidos pelo Estado

mexicano, atualmente arquivados no Archivo General de la Nación, e encontrou valiosas informações sobre a

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98

própria Secretaria e publicado como resumo de notícias de autoria do jornal. O governo

mexicano desejava atingir e direcionar a opinião pública formada pelo grande número de

leitores de La Prensa.

A publicação da fotografia de Francisco Julião na capa desse jornal e de sua entrevista

nas páginas interiores indicava que a repreensão praticada pelo governo do México ao exilado

não consistiu em uma total censura. Ele continuou falando para a imprensa, inclusive em um

jornal utilizado pela própria Secretaria de Gobernación para difundir suas mensagens, ideias,

medos e ameaças90

. E as medidas severas imaginadas pelo embaixador do Brasil não

ocorreram.

Ainda no que se refere ao jornal, deve-se analisar outra informação. Manuel Buendía,

integrante da direção, era próximo a Dirección Federal de Seguridad e ao seu diretor,

Fernando Gutiérrez Barrios, de onde recebia informações privilegiadas para escrever alguns

dos seus mais famosos textos91

.

Fernando Gutiérrez Barrios é o mesmo citado no início desse capítulo participando de

uma reunião, em 1969, com representantes da embaixada do Brasil, na qual teria se

comprometido a colaborar na vigilância dos asilados políticos brasileiros. Neste mesmo

encontro, segundo relato do diplomata brasileiro, foi afirmado pelo comandante da DFS que

Francisco Julião já havia sido “advertido de que estava violando o direito de asilo”92

. Deve-se

também ressaltar que o capitão Barrios tinha uma relação já de longa data com Fidel Castro e

também Ernesto Che Guevara. Em 1956, os dois foram presos no México pela DFS e em

seguida postos em liberdade. Na época, o chefe da Dirección Federal de Seguridad tinha o

conhecimento e o controle sobre os preparativos realizados em seu país pelo movimento

guerrilheiro que daí zarpou com o Gramma para derrubar o governo de Fulgêncio Batista e

levar a cabo a revolução cubana em 195993

. Desde então, houve um acordo para

compartilhamento de informações entre integrantes do governo de Cuba e do México. Ao

primeiro interessava, sobretudo, manter o contato que não lhe isolaria totalmente da América

Latina, enquanto o segundo teria o acesso a informações sobre pretensos guerrilheiros

criação e utilização dessas colunas políticas. MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los

archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op. Cit. p. 161. 90

Considerações de Jacinto Munguía sobre o jornal. MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los

archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op. Cit. p. 150. 91

MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op.

Cit. p. 158. 92

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 93

QUEZADA, Sergio Aguayo. La Charola: Una historia de los servicios de inteligencia en México. México:

Editorial Grijalbo, 2001. p. 107; MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos prohibidos

de la prensa y el poder. Op. Cit. p. 169.

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99

mexicanos e de outras partes da América que usavam a Ilha para realizar qualquer tipo de

preparação94

.

Ao aparecer no La Prensa, Francisco Julião estaria próximo a toda essa rede política.

Não sei como seu nome circulou entre esses contatos. Mas, Cuba já o conhecia desde as Ligas

Camponesas. A DFS facilmente poderia obter privilegiadas informações sobre a trajetória do

exilado com o governo de Fidel Castro. Por sua vez, La Prensa, provavelmente por meio de

Manuel Buendía, seria notificado sobre qualquer inconveniente que representaria para México

a divulgação, com tanto destaque, da referida entrevista. Isso não ocorreu, pois no dia

seguinte da publicação, em 4 de junho de 1966, o editorial do jornal comentou positivamente

e retomou diversos tópicos daquilo que considerou a “sensacional entrevista exclusiva”95

de

Francisco Julião, “uma voz que deve atender América Latina”96

.

De todo modo, e apesar dos espaços encontrados inicialmente por Julião, seja pela

entrevista ao semanário francês, seja ao diário mexicano, a sua atuação encontrava duras

limitações. Havia os entraves impostos pela condição de asilado político, reforçados pela

pressão exercida pelo governo do Brasil, por meio de sua embaixada. Aliado a isso, existia

toda uma rede governamental no México, representada principalmente pela Dirección Federal

de Seguridad e pela Secretaria de Relaciones Exteriores, que estava atenta a seus passos

desde o momento em que desembarcou no país97

. E isso, ele já havia sentido por ocasião de

ser convocado pelo governo para rememorar os seus deveres enquanto exilado.

A mudança para Cuernavaca, além da tentativa de melhorar seu estado de saúde, por

ser uma cidade de clima mais aprazível, poderia ter sido também uma opção para desviar-se

um pouco da vigilância da DFS. Para essa possibilidade, o jornalista Michel Bosquet do

semanário Le Nouvel Observateur oferece indícios ao relatar que encontrou certa dificuldade

em localizar o exilado brasileiro, pois este vivia se escondendo para despistar a polícia

mexicana.

Já morando em Cuernavaca, a tranquilidade não era tanta, como poderia imaginar ou

como citava a matéria publicada no La Prensa. Recebia críticas na imprensa da cidade, onde

94

QUEZADA, Sergio Aguayo. La Charola: Una historia de los servicios de inteligencia en México. Op. Cit. p.

108. MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op.

Cit. p. 168. 95

La Prensa. 04 de junho de 1966. p. 08. Op. Cit. 96

La Prensa. 04 de junho de 1966. p. 08. Op. Cit. 97

Fernando Gutiérrez Barrios recebeu um informe sobre a chegada de Francisco Julião e outros exilados ao

México, datado de 31 de dezembro de 1965. Consta o nome do hotel e o número dos quartos, 203 e 204,

ocupados pelo advogado e sua família. Essa informação encontra-se na Versão Pública sobre Francisco Julião

produzida e disponibilizada pelo Archivo General de La Nación, D.F. – México.

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100

setores sociais anticomunistas o descreviam como um subversivo e integrante do grupo de

“guerrilheiros que dão conferências”98

. Os novos caminhos de Julião estavam relacionados a

essas conferências.

4 - Novos lugares, outros ditos.

O final da década de 1960 eram tempos violentos no México. A repressão aos

movimentos sociais, que já ocorria desde antes, intensificou-se e ganhou maior repercussão

quando a imprensa internacional esteve no país para fazer a cobertura dos Jogos Olímpicos de

1968.

Nas vésperas do início das competições, o governo do presidente Gustavo Díaz Ordaz

enfrentava as mobilizações estudantis em diversos pontos da Cidade do México e fora dela.

Reivindicavam-se liberdades políticas e sociais, questionava-se a forte repressão exercida pelo

Estado99

, principalmente por meio de seu aparato policial. Entre agosto e setembro daquele

ano, a situação tornou-se mais tensa e os enfretamentos entre grupos de estudantes e

destacamentos policiais eram cada vez mais violentos. Já se perguntava sobre as condições do

México em garantir a realização das olimpíadas, marcada para outubro. Surgiam hipóteses de

que haveria uma infiltração comunista, até mesmo internacional, que apoiaria o movimento

estudantil, com dinheiro e armas.

Depois de diversos conflitos em várias regiões do Distrito Federal, as manifestações

dos estudantes continuavam avançando e a abertura dos Jogos Olímpicos aproximava-se. O

desfecho foi o massacre de parte das pessoas presentes a uma das mobilizações, em

Tlatelolco, na qual agiram soldados do Exército e franco-atiradores, enviados pelo Estado,

que em determinado momento se enfrentaram produzindo um grande fogo-cruzado. Tlatelolco

é um grande conjunto habitacional construído entre os anos de 1949 e 1950. Nele encontram-

se a Plaza de las Tres Culturas com as ruínas de edificações da cultura Tenochtitlan, pré-

hispânica, a Igreja de Santiago, construída pelos espanhóis, e o prédio da Secretaria de

Relaciones Exteriores, representando o México moderno, onde, atualmente, funciona o

Centro Cultural Universitário e o Memorial de 68 da Universidad Nacional Autonoma do

México - UNAM. A repressão, prisão e morte de várias pessoas, na maioria estudantes,

98

Jornal El Heraldo. 25 de outubro de 1971. México. Acervo CIDOC. CE 261.7 Ig 241. Biblioteca Daniel Cosio

Villegas – Colegio de México/COLMEX. 99

CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la fotografía y la

construcción de un imaginario. Op. Cit. p. 14.

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101

presentes a Plaza ficou conhecida como o Massacre de Tlatelolco, levado a cabo em 02 de

outubro de 1968100

.

O resultado deste confronto aliado à realização dos Jogos Olímpicos, que se iniciariam

10 dias depois, expôs o México e o governo do Partido Revolucionário Institucional – PRI – à

comunidade internacional de uma forma nova. Antes, o excessivo nacionalismo e uma

independência da política externa, em tempos de Guerra Fria, eram utilizados pelo governo

para criar certo isolamento do país e exercer, sem interferências estrangeiras, o controle quase

sempre violento sobre os movimentos sociais. Além disso, a prática de conceder asilo a

perseguidos políticos, a iniciativa de não proliferação de armas nucleares na América Latina,

por meio do Tratado de Tlatelolco, e uma economia sólida, com crescimento constante, que

garantia educação e assistência social a setores cada vez mais amplos da população,

neutralizavam muitas das críticas externas que poderiam se fazer a situação interna do país101

.

O discurso anticomunista do presidente Gustavo Díaz Ordaz agradava aos Estados

Unidos, que ainda ficavam satisfeitos em ver um México estável, a custas de vigilância e

repressão, garantindo assim uma fronteira pacífica. Do outro lado da Cortina de Ferro, a

União Soviética sentia-se também agraciada, pois tinha naquele país da América Latina um

lugar privilegiado para realizar suas observações ou mesmo espionagem. Ali funcionava uma

missão soviética de inteligência com 35 pessoas, a maior do continente. O México ainda era

um canal privilegiado de comunicação de Cuba com o mundo, que havia sido excluída

política e economicamente do restante da comunidade americana102

.

100

O relato mais conhecido sobre o conflito estudantil é o livro de Elena Poniatowska. La Noche de

Tlatelolco. Testimonios de historia oral. A autora entrevistou uma parte dos líderes do Conselho

Nacional de Greve do movimento de 1968, quando ainda estavam na cadeia. O livro foi escrito entre

os anos de 1969 e 1970, sendo publicado em 1971 pela editora ERA. Mais recentemente há o livro de

Sergio Aguayo Quezada, 1968: los archivos de la violencia. México: Grijalbo, 1998, um dos

primeiros a utilizar os arquivos dos Serviços Secreto do Estado. Por fim, o recém-lançado livro de

Alberto del Castillo Troncoso Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la fotografía y la

construcción de un imaginario, Instituto Mora, 2012, que analisa o discurso visual produzido sobre o

movimento, e não apenas acerca do massacre, utilizando as fotografias publicadas na imprensa, as

imagens não publicadas, guardadas nos arquivos dos jornais ou de fotógrafos independentes, e de

relatos orais. O autor defende que aos poucos o massacre de 1968 está substituindo a Revolução

Mexicana enquanto referência principal da história do país. Sobre os movimentos de 1968 no Brasil, ver: ARAUJO, Maria Paula Nascimento; Fico, Carlos (Org.) . 1968 - 40 anos depois: história e memória. 1. ed.

Rio de Janeiro: 7 LETRAS, 2009. ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Memórias estudantis: da fundação da

UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007. 101

QUEZADA, Sergio Aguayo. 1968: los archivos de la violencia. Op. Cit. p. 101. 102

QUEZADA, Sergio Aguayo. 1968: los archivos de la violencia. Op. Cit. p. 93 e 100.

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102

Sem um maior apoio externo, os opositores internos ficavam cada vez mais acuados.

Os asilados políticos, ex-integrantes de diversos movimentos de esquerda, também. O Código

Penal, no artigo 145, afirmava que:

Aplicar-se-á prisão de dois a doze anos e multa de mil a dez mil pesos ao

estrangeiro ou nacional mexicano que de forma falada ou escrita, ou por

qualquer outro meio, realize propaganda política entre estrangeiros ou entre

nacionais mexicanos difundindo ideias, programas ou normas de ação que

perturbem a ordem pública ou afetem a soberania do Estado mexicano103

.

O historiador argentino Alfredo Gilly, devido a um artigo escrito, foi preso no Palácio

de Lecumberri, a famosa penitenciária da Cidade do México, entre abril de 1966 e março de

1972, acusado de conspiração, associação delituosa e violação da Ley General de Población.

O que fazia, em 1968, em meio a toda essa violência e repressão que assolava o

México, Francisco Julião? Ou, como encaminhou sua vida nesses dois anos, entre a reunião

de fevereiro de 1966 e o massacre aos estudantes no ano olímpico? Uma coisa parece certa:

o exilado não publicou qualquer texto crítico ao governo mexicano. Sabia de todos os perigos

que representava o artigo 145 do Código Penal. Continuou a publicar, porém com uma

diferença; a rede de interlocutores que possibilitou a produção e divulgação de novos

trabalhos era composta agora por intelectuais, jornalistas e religiosos mexicanos, bem como

alguns políticos. Julião não estava restrito a um grupo de exilados brasileiros. Já teria,

inclusive, afastado-se do COBEM, que, segundo informações da embaixada do Brasil, depois

da reunião na Subdirección General de Población foi tomado por “agudas dissensões entre

seus membros”104

.

Após a mudança para Cuernavaca, no Estado de Morelos, ainda no primeiro semestre

de 1966, Francisco Julião começou a se inserir em uma rede de intelectuais e religiosos que se

reunia em torno do Centro de Documentación Intercultural – CIDOC. Funcionando em uma

grande casa branca, situada acima de uma colina, de onde se tinha uma bela vista da cidade,

com piscina, uma excelente biblioteca, salas de aula, restaurante, cozinha e jardins, o CIDOC

era comandado por Ivan Illich. Fundado em 1968, agregou muitos integrantes do antigo

Centro Intercultural de Formación – CIF, que também existiu em Cuernavaca105

.

103

Reproduzido em QUEZADA, Sergio Aguayo. 1968: los archivos de la violencia. Op. Cit. p. 69 104

Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.34 de 03 de dezembro de 1966. Coordenação-Geral de

Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores. 105

Entrevista realizada com Jean Robert, no dia 16 de agosto de 2010, em Ocotepec, Morelos-México. Jean

Robert conheceu Francisco Julião no CIDOC,onde ministrava cursos.

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103

Ivan Illich nasceu na Áustria e no período do avanço do nazismo se mudou com sua

família para a Itália, onde estudou Química e depois ingressou no curso de Teologia. Era um

estudante destacado, sabia 15 idiomas e era bastante respeitado como religioso no Vaticano,

onde ocupou importantes cargos. Deixou a Europa e foi atuar como sacerdote em uma

paróquia de Nova Iorque. Depois viajou pela América Latina, onde foi reitor da Universidade

de Porto Rico106

.

Fixou-se em Cuernavaca, onde criou o CIF, em 1961, no qual sacerdotes, freiras e

laicos podiam estudar e dedicarem-se aos problemas da América Latina. Perseguido pelo

Vaticano, o CIF tornou-se CIDOC, que a princípio funcionava como uma escola de ensino de

espanhol, onde se utilizava o método da audição e o treinamento da memória. Era também,

segundo o fundador, um local para o exercício do pensamento livre. Foi um sucesso. O centro

passou a receber pessoas de diversos países interessados em estudar espanhol, mas também

em conhecer e discutir a América Latina. Assim, havia cursos sobre a situação política,

econômica e social dessa região do continente107

.

Entre os diversos idiomas que dominava, Ivan Illich falava português. Era amigo de

Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Recife e Olinda. O CIDOC passou a agregar estudantes,

intelectuais e setores da Igreja Católica interessados e envolvidos com movimentos sociais.

Parecia, então, ser um bom lugar, onde Julião poderia circular. Ali, ele teria a oportunidade de

aperfeiçoar o espanhol, bem como conversar em português e trocar ideias sobre o Brasil com

Ivan Illich, de quem se tornou amigo. Haveria a possibilidade de dialogar sobre a América

Latina. Mais que isso, poderia ter a chance de ser escutado como o líder de um movimento

campesino internacionalmente conhecido, cuja linha de frente era a luta pela reforma agrária,

uma das questões mais debatidas para a América Latina naquele período.

A imagem de Francisco Julião como uma personalidade política deve ter se fortalecido

pelas visitas que recebia na sua casa em Cuernavaca. Uma delas foi a do então senador e

futuro presidente chileno, Salvador Allende, que ao saber da recusa, ainda em 1965, oferecida

pela embaixada do Chile ao pedido de exílio feito por Julião, teria proferido um discurso de

protesto no Senado do seu país. O primeiro encontro entre os dois havia ocorrido em Cuba, no

ano de 1962, quando Fidel Castro os apresentou108

.

106

Informações retiradas das entrevistas de Jean Robert, Op. Cit., e de Francisco Julião a Eliane Moury

Fernandes, em 21 de setembro de 2012. FUNDAJ, Recife-PE. p. 80. 107

ROBERT, Jean. La historicidad de lãs instituciones: interpelación a Gérman Martinéz Cázares respecto a

Ivan Illich y Javier Sicilia. 26 de maio de 2011. Disponível em: <http://red-ecomunidades.blogspot.com.br/>. 108

Essa informação está na Revista Siempre! 16 de maio de 1973. p. 30. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F.,

México.

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104

Conta o próprio asilado político que ao final da visita em Cuernavaca, na qual o

senador teria pedido desculpas pela negativa da embaixada do seu país, Salvador Allende

deixou no bolso de um paletó, dependurado na sala da casa, a quantia de mil dólares109

, sem

que ninguém percebesse. Descoberto, o dinheiro foi utilizado para garantir o sustento da casa

durante o período em que Francisco Julião preparava o texto do seu próximo livro, publicado

no México com o título “Cambão: La cara oculta de Brasil”110

.

A primeira edição, datada de 1968, foi publicada pela Siglo XXI Editores, com

impressão de três mil exemplares. O livro adquiriu repercussão no decorrer dos anos, sendo

traduzido para 16 idiomas111

e lançado em uma quantidade maior de países112

. Além de

publicado por uma editora, o texto de Francisco Julião saiu integralmente e em português no

CIDOC CUADERNOS, nº 13, de fevereiro de 1970113

.

Tanto a Siglo XXI, quanto o CIDOC eram espaços que apresentavam certa autonomia

crítica, questionando e discutindo os problemas da América Latina, mas sem adotar, em geral,

uma postura direta de oposição ao governo do México. A editora foi fundada em 1965, por

Arnaldo Orfila Reynal, que havia sido demitido pelo presidente Gustavo Díaz Ordaz da

direção do Fondo de Cultura Económica, após publicar o livro Los Hijos de Sánchez, de

Oscar Lewis114

. A criação da Siglo XXI foi apoiada por vários intelectuais, como Elena

Poniatowska, que se tornou uma referência para as esquerdas mexicanas115

. Em 1965, ela

estava sendo vigiada pelos órgãos de segurança, em cujas informações constava que a

escritora havia prometido encontrar uma casa, ainda que provisoriamente, para a nova editora

se instalar116

.

109

Mais uma vez há uma discordância das fontes quanto ao valor exato. Em algumas aparece a referência a mil

dólares, enquanto em outras a quinhentos dólares. 110

Francisco Julião cita em alguns textos sobre essa ajuda de Salvador Allende, que lhe possibilitou escrever o

livro Cambão. Ver JULIÃO, Francisco. Esperança é meu signo Op. Cit.. Seu filho, Anatólio Julião, em uma nota

ao final da apresentação à edição brasileira de Cambão, conta com um pouco mais de detalhes sobre o encontro

entre os dois políticos socialistas. Ver JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Bagaço: Recife,

2009. p. 13-14. 111

Entre os vários idiomas, o livro foi traduzido para o português de Portugal, francês, inglês, sueco e,

incrivelmente, para o japonês. 112

Dados contidos na apresentação à primeira edição brasileira, lançada apenas em 2009, escrita por Anatólio

Julião. In JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 09. 113

JULIÃO, Francisco. Cambão. CIDOC CUADERNOS. nº 13. Cuernavaca. Fevereiro, 1970. Dessa publicação

foram impressos 300 exemplares. Arquivado na Biblioteca Daniel Cosio Villegas, Colégio de México –

COLMEX. 114

CAMP, Roderic A. Los intelectuales y el Estado en México del siglo XX. Fondo de Cultura Económica:

México, 1988. p. 265 115

Nas eleições presidenciais de 2012, Elena Poniatowska, conhecida internacionalmente pela publicação, entre

outros, do livro La Noche de Tlatelolco, apoiou, inclusive se fazendo presente em atos públicos, ao candidato das

esquerdas Andrés Manuel Lopez Obrador. 116

QUEZADA, Sergio Aguayo. 1968: los archivos de la violencia. Op. Cit. p. 50.

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105

Em 1966 e 1967, a Siglo XXI Editores é criada na Argentina, na Espanha e na década

seguinte na Colômbia. Forma-se uma rede ibero-latino-americana por onde o novo livro de

Francisco Julião deve ter circulado, tornando-o ainda mais conhecido. O escritor de

“Cachaça” e “Irmão Juazeiro”, lançados no Brasil anos antes do Golpe civil-militar de 1964,

retomava sua produção, porém com novos enfoques. Mais adiante retomarei essa questão.

Antes, contudo, deve-se saber que no CIDOC, como já citei, circulavam intelectuais

de vários países, a maioria interessados em discutir a América Latina. Ao revisar as

publicações do Centro, encontram-se análises sobre as atuações das Igrejas Católica e

Protestante e questões sociais e políticas da região. No CIDOC CUADERNOS nº 49, de 1970,

foi publicado um texto de Dom Hélder Câmara, então Arcebispo de Recife e Olinda, e Ralph

David Abernathy117

, com o título “A Declaração do Recife”, no qual se ressaltava o apoio à

“causa da libertação dos Povos pobres do Mundo dos flagelos da guerra, da miséria e do

racismo, reconhecendo e incentivando o direito e o dever de organizar o protesto não-violento

contras as estruturas políticas, econômicas e sociais, que mantêm uma grande maioria dos

homens na miséria”118

. Muitos dos textos apresentavam uma proposta de ação política e

social.

O educador brasileiro Paulo Freire, conhecido internacionalmente por seus estudos

sobre os processos de ensino-aprendizagem, também publicou textos pelo CIDOC, bem como

proferiu palestras na sede do Centro em Cuernavaca119

. Havia, pois, uma representatividade

de textos e de pensadores do Brasil. Entre eles, Francisco Julião foi quem mais publicou.

Ministrava ainda o curso “Consciência Social e Ideologia Camponesa”, que era sempre um

dos mais procurados, segundo Jean Robert, também professor no CIDOC120

.

No final da década de 1960 e início da seguinte, o exilado ainda realizou uma série de

entrevistas com soldados zapatistas remanescentes na região do Estado de Morelos. Teria

fotografado e filmado várias dessas pessoas. O material seria utilizado para a construção de

um documentário, que recebia o apoio de Pablo Gonzáles Casanova, reitor da Universidad

Nacional Autónoma do México – UNAM – entre 1970 e 1972. O escritor brasileiro João

Trevisan, que viveu um autoexílio no México, entre 1973 e 1975, tornando-se próximo a

117

Líder do Movimento Americano de Direitos Civis. Era próximo a Martin Luther King. 118

CIDOC INFORMA, Janeiro – Junho 1970. In CIDOC CUADERNO, nº 49, v. 10, 1970. p. 211/1. 119

O texto publicado agrega as palestras que Paulo Freire realizou no CIDOC em janeiro de 1970. The “real”

meaning of Cultural Action; The possibility of a neutral Cultural Action; Cultural Action for freedom and

Cultural Action foi “domestication”; The Theoretical frame of references of their practices. CIDOC INFORMA,

Janeiro – Junho 1970. In CIDOC CUADERNO, nº 49, v. 10, 1970. p. 216/1. Ainda há outra publicação, CIDOC

CUADERNO 1004, dedicada a Paulo Freire. 120

Entrevista realizada com Jean Robert, no dia 16 de agosto de 2010, em Ocotepec, Morelos-México.

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106

Julião, lembra ter participado de uma reunião, na qual se tentou conseguir financiamento para

a produção do vídeo. Não houve êxito121

. Mas foi possivelmente por meio da rede intelectual

da qual participava Pablo Casanova, autor do clássico La democracia em México, que

Francisco Julião recebeu o convite para dar algumas palestras na UNAM, como as ocorridas

nos dias 6 e 7 de fevereiro de 1968, intituladas “Terceiro Mundo e América Latina”122

. Essa

mesma rede contribuiu para viabilizar as traduções e as publicações dos seus livros e artigos.

“Até quarta, Isabela”, livro escrito em formato de carta para sua filha mais nova,

quando ainda estava preso em Recife, teve uma publicação em espanhol, com impressão de

dois mil exemplares, que vendia feito “pão quente”123

. Esta edição foi financiada por Jesus

Silva Herzog, destacado professor de economia, fundador da Escuela Nacional de Economia,

UNAM, onde também foi diretor (1940-1942) e se tornou professor emérito. Ocupou ainda

vários cargos na administração pública, sendo Gerente geral da PETROMEX, atual PEMEX –

Petróleos Mexicanos – no período em que Lázaro Cárdenas era presidente do país, 1934 a

1940, e levou a cabo uma política de reforma agrária e de nacionalização do petróleo124

.

Em 1967, a revista Cuadernos Americanos publicou na íntegra o texto do livro escrito

para Izabela. Em 1971, circulou outro texto de Francisco Julião, intitulado Cada pueblo tiene

su estrella. Esse periódico foi fundado em 1942 e circula até hoje, sob a responsabilidade do

Centro Coordenador e Difusor de Estudos Latinos Americanos da UNAM. Os Cuadernos

Americanos agregaram textos que em linhas gerais discutiram e produziram uma identidade

de América Latina. Vários dos seus principais colaboradores eram acadêmicos estrangeiros,

sobretudo latino-americanos125

. Publicaram artigos sobre os vários países da região, usando

por vezes uma perspectiva comparada, onde temáticas como imperialismo,

subdesenvolvimento e reforma agrária estavam presentes. Construíam um passado comum

para a nação latino-americana e um futuro promissor126

.

121

Folha de São Paulo, 11 de dezembro de 2011. Viva Julião! Cidade do México, anos 70. Caderno Ilustríssima,

p. 07. 122

Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 922.31 de 02 de fevereiro de 1968.

Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores. 123

Assim contou Julião na entrevista do Jornal O Pasquim. 19 de Janeiro, 1979. p. 14. Op. Cit. O livro também

foi traduzido para o italiano. Ver Revista Siempre! 16 de novembro de 1977. p. 46. Biblioteca Rubén Bonifaz,

UNAM, D.F., México. 124

Informações sobre a biografia de Jesús Silva Herzog encontram-se em CAMP, Roderic A. Biografías de

Políticos Mexicanos. 1935-1985. Fondo de Cultura Econômica: México, 1992. p. 546-547. 125

Roderic Camp estima que 1/3 dos principais colaboradores eram estrangeiros. CAMP, Roderic A. Los

intelectuales y el Estado en México del siglo XX. Op. Cit. p. 181. 126

JOCHIMS REICHEL, HELOISA. A identidade latino-americana na visão dos intelectuais da década de

1960. Estudos Ibero-Americanos, Rio Grande do Sul, v. XXXIII, n. 2, dez. 2007. p. 116 – 133. Disponível em:

<http://www.redalyc.org/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=134618617007>. Acesso em: 16 set. 2012. Já em

meados do século XIX, políticos, escritores e intelectuais propagavam a ideia de uma identidade

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Ao analisar os responsáveis pela publicação dessa revista, pode-se localizar indícios de

onde Francisco Julião, seus textos e ideias circulavam. A começar pelo diretor-gerente do

periódico, entre 1942 e 1981, e também fundador, Jesus Silva Herzog. Sim, o mesmo que

havia financiado a tradução e impressão, em espanhol, do “Até quarta, Isabela!”

Na Junta Editorial dos Cuardernos Americanos, em 1971, aparecia o nome de Arnaldo

Orfila Reynal, fundador da Siglo XXI Editores, que publicou Cambão: La cara oculta de

Brasil. Estavam ainda intelectuais como o professor Rubén Bonifaz Nuño e Pablo Gonzalez

Casanova, intelectuais da UNAM.

Ainda participavam dessa Junta figuras políticas de destaque como Jesús Reyes

Heroles e Javier Rondero. Os dois eram integrantes do PRI, sendo que o primeiro tornou-se o

Secretario de Gobernación do presidente José Lopes Portillo, 1976-1979, e foi considerado

um dos mais importantes ideólogos do Partido na segunda metade do século XX127

. Já o

segundo, com quem o exilado tinha construído uma relação de proximidade, havia sido

presidente do Senado mexicano128

.

As relações de proximidade dos intelectuais com a política e o governo no México

estiveram presentes por quase todo século XX. Um dado estatístico produzido por Roderic A.

Camp aponta que de um determinado universo de intelectuais mexicanos considerados

proeminentes, entre 1920 e 1980, 53% ocuparam cargos no governo. Deste universo, 46%

trabalharam na burocracia federal e 25% foram ativistas de um partido, em sua grande maioria

o PRI129

. Essas relações foram fortalecidas na década de 1970, nos governos de Luis

Echeverría y José Lopéz Portillo, que trataram de incorporá-los em seus projetos, para

defenderem suas reformas. Tal movimento foi paralelo a um aumento no investimento de

recursos em áreas benéficas aos intelectuais130

.

latinoamericana, que superava os nacionalismos das novas repúblicas e promovia uma distinção da América

Latina em relação à outra América, os Estados Unidos. Nos anos 1850 e 1860, essa identidade era reforçada por

meio de uma união contra inimigos considerados comuns: França, que interveio no México em 1861; Espanha,

que anexou Santo Domingo entre 1861-65 e declarou guerra ao Peru pelas ilhas Chinca, 1864-66; e os Estados

Unidos, pela anexação do Texas em 1845, a guerra mexicana de 1846-48 e a invasão da Nicarágua, em 1855.

Ver BETHELL, Leslie. O Brasil e a ideia de “América Latina” em perspectiva histórica. In Revista Estudos

Históricos, v. 22, n. 44, p. 289 – 321, jul-dez. 2009. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de

História Contemporânea do Brasil - Fundação Getúlio Vargas, 2009. 127

VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. In: BIZBERG, Ilán; MEYER, Lorenzo (Org.) Una historia

contemporánea de México. Actores – Tomo 2. México. Editorial Océano de México, 2005. p. 51. 128

A relação com o senador Javier Rondero é citada na entrevista publicada em O Pasquim. 19 de Janeiro, 1979.

p. 15. Fundação Biblioteca Nacional. No artigo de 19 de outubro de 1979, escrito para a revista Siempre!,

Francisco Julião fala dos laços construído com o México, sobretudo com Morelos, e faz uma referência ao

Senador Javier Rondero, para quem parecia estar direcionado o afetuoso texto. 129

CAMP, Roderic A. Los intelectuales y el Estado en México del siglo XX. Op. Cit. p. 39-40. 130

CAMP, Roderic A. Los intelectuales y el Estado en México del siglo XX. Op. Cit. p. 49-50.

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Os contatos e as aproximações de Francisco Julião com os integrantes da Junta

Editorial e do diretor-gerente dos Cuadernos Americanos localizaram-no na interseção entre

intelectuais, política e governo. Construíam a possibilidade de ele transitar entre setores do

PRI e do Estado, ou ainda ser, em algum nível, incorporado por eles.

Deve-se perguntar, entretanto, na condição de um asilado político, o que poderia

escrever Francisco Julião para interessar a um grupo de intelectuais, que na sua maioria,

estava ligado ao governo do México? Não se pode esquecer que pouco tempo depois de

chegar ao exílio, Julião foi investigado por órgãos de segurança, criticado por parte da

imprensa e convocado por autoridades públicas, após ser acusado de estar fazendo

propaganda política, em textos publicados e entrevistas concedidas, infringindo assim a sua

condição de asilado. Existia um limite naquilo que se podia dizer e Francisco Julião já havia

compreendido. Mesmo continuando a ser procurado por jornalistas, nacionais e estrangeiros,

manifestava, em 1967, “que a sua condição de asilado político o impedia de fazer declarações

distintas das presentes em suas obras literárias publicadas e em processo de elaboração, sem

se imiscuir em política alguma”131

.

Então, quais as ideias e discursos apresentados nas suas publicações a partir de 1968,

que passaram a circular em um grupo de intelectuais e aceitas pelo governo do PRI?

Um indício da posição construída aos poucos por Francisco Julião aparece no artigo

publicado pelo jornal El Día, em junho de 1967, por Mario Guzman, intitulado Hasta el

miércoles, Isabela!. Nele se comentou a publicação da íntegra desse livro nos Cuadernos

Americanos, sendo definido pelo articulista como “um dos mais belos testemunhos de amor

humano”132

. No final, após construir uma elogiosa resenha, Mario Guzman sentenciou: “é um

hino de luta e de esperança que nenhum latino-americano, verdadeiramente interessado na

causa dos povos, deve deixar de ler”133

.

Os textos de Francisco Julião entraram na órbita das discussões sobre a latinoamérica

realizadas por parte da intelectualidade no México. Seus relatos, como o ressaltado por

Guzman, produziam-se como uma referência para os que desejavam conhecer e estudar as

dinâmicas políticas e sociais dos povos dessa região. O autor brasileiro, por seu turno, parecia

131

Isso afirmava Francisco Julião, quando procurado por jornalistas, de acordo com informações do relatório

sobre as atividades do asilado político produzido e encaminhado para o diretor da DFS. 09 de janeiro de 1967.

Versão Pública sobre Francisco Julião. Archivo General de La Nación, D.F. – México. 132

El Día, 12 de junho de 1967. p. 05. Hemeroteca Nacional. UNAM, México, D.F. 133

El Día, 12 de junho de 1967. Op. Cit.

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109

estar atento a esse movimento, a essa vaga ou onda a qual deveria se inserir, criando

intercessores políticos e sociais para si e ressonâncias para seus escritos.

No final de 1968, o Editorial Nuestro Tiempo S.A, o mesmo que publicava os

Cuadernos Americanos, lançou um livro de Francisco Julião intitulado Brasil, Antes y

Después. Foram impressos três mil exemplares que constituíram o quinto volume da Coleção

Latinoamérica Hoy. O terceiro havia sido “Guatemala, País ocupado” do escritor uruguaio

Eduardo Galeano.

O livro é uma reunião de artigos, entrevistas e pequenos textos confeccionados antes e

depois do Golpe civil-militar no Brasil em 1964. A apresentação, assinada apenas com o

nome do Editorial, explica o significado do título, disserta em poucas linhas sobre o que

ocorreu em abril de 1964 e fala das atividades de Francisco Julião em seu país e no exílio.

Afirma que o propósito, ao projetar a voz do ex-dirigente campesino, é “contribuir para

fortalecer as correntes renovadoras que se esforçam em fazer possível uma transformação

social profunda na América Latina”134

.

A introdução escrita pelo brasileiro é uma resposta a seguinte pergunta, que funciona

como título dessa seção: “Por que este livro?” Ao final da primeira página, encontra-se uma

das explicações:

Ainda que prevaleça uma tônica de denúncia e protesto, ou precisamente

devido ao conteúdo polêmico que trazem, os trabalhos aqui reunidos

reafirmam uma decisão: não fugir da responsabilidade que assumimos, como

militantes políticos de esquerda, não somente diante dos compatriotas

enganados e oprimidos, mas também frente a todos os irmãos da América

Latina, sujeitos ao mesmo tratamento e a idêntica conjuntura histórica135

.

Francisco Julião reafirma a sua condição de militante - talvez desejasse dizer líder - e

demarca o seu lugar de fala como o de um político de esquerda. Mas, ao contrário dos

primeiros textos e entrevistas no exílio, o protesto não aparece como projetos de guerrilha ou

de levante social, o que constitui uma mudança. Dirige-se aos brasileiros, chamados de

“compatriotas enganados e oprimidos”, e a todos os latino-americanos, classificados como

irmãos, unindo-os em uma identidade de “nação”, como a formada pelos Cuadernos

134

JULIÃO, Francisco. Brasil, Antes y Después. Editorial Nuestro Tiempo: México, 1968. 135

JULIÃO, Francisco. Brasil, Antes y Después. Op. Cit. p. 09-10.

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110

Americanos, tecida por aquilo que seria uma mesma conjuntura histórica de imperialismo e

subdesenvolvimento136

.

O reconhecimento da mudança, apesar da reafirmação de opção pela esquerda, e a

ideia de nação para os latino-americanos aparecem nas palavras do exilado quase no final da

sua introdução:

É verdade que desde aqueles dias temos mudado. Porém, há sido para

ampliar a dimensão que atribuímos aos problemas aos quais sempre

estivemos ligados, como demonstra com toda claridade a segunda parte

deste livro. Em efeito, desde o momento em que as forças reacionárias

dirigidas pelo imperialismo passaram a dominar todos os setores da vida

nacional, adotamos uma segunda nacionalidade: a latino-americana137

.

Esse trecho indica a direção do movimento que estava sendo realizado por Francisco

Julião, em 1968, quando publicou também “Cambão”. A inserção em um discurso sobre

América Latina acompanharia uma política cada vez mais praticada pelo México,

principalmente a partir de 1970, com a presidência de Luis Echeverría, que buscava ocupar

uma posição de liderança na região e no chamado Terceiro Mundo138

.

Para tanto, parte da experiência de trabalho no Nordeste do Brasil era ainda mais

ressaltada pelo ex-advogado dos camponeses, o que lhe proporcionaria uma competência e

autoridade em tratar os problemas latino-americanos, tomados como formadores de uma única

nacionalidade. Assim, afirmava na sua apresentação de Cambão: la cara oculta del Brasil:

“Este quadro, de resto, não é “privilégio” do Nordeste brasileiro, mas um esboço em

miniatura da América Latina, com seus violentos contrastes […] Sim, a América Latina,

projeção continental do Nordeste brasileiro”139

.

“Cambão” narra a sua trajetória e trabalho como dirigente das Ligas Camponesas do

Brasil. Descreve a formação do movimento, seu crescimento e as estratégias de ação

utilizadas para mobilizar os trabalhadores rurais e enfrentar a violência dos latifundiários.

No texto, Francisco Julião se apresenta como advogado, líder e agitador social. Diz-se

radical, mas não sectário. A diferença, para ele, consistia em existir no primeiro a dimensão

do diálogo, do encontro, inexistente no segundo, que operava com a lógica do tudo ou nada. O

136

JOCHIMS REICHEL, HELOISA. A identidade latino-americana na visão dos intelectuais da década de

1960. Op. Cit. 137

JULIÃO, Francisco. Brasil, Antes y Después. Op. Cit. p. 14. 138

RICO, Carlos. México y el mundo: Historia de sus relaciones exteriores. Tomo VIII – Hacia la globalización.

Colegio de México: México, 2010. p. 20-65. 139

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 18.

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111

sectarismo encerrava-se em si, enquanto o radicalismo tinha como essência o homem e por

isso podia promover uma conciliação para salvá-lo. Essa era uma dimensão cristã e o próprio

autor considerava que o “cristianismo, na sua essência, é radical”140

.

Qualificando-se como “a testemunha da cena, que este livro pretende revelar”, Julião

defende a ideia de revolução social, posicionando-se da seguinte forma: “entre ficar na

planície da demagogia populista e arrostar a perigosa escalada do radicalismo revolucionário,

não vacilei um instante na escolha: preferi subir a montanha”. Integrando-se aos radicais

revolucionários da montanha, considera: “É preciso, porém, criá-las (as revoluções). Não se

geram espontaneamente, como sonham os teóricos acomodados. São os homens que as criam.

Os que amam o povo e têm o pensamento voltado para a realidade. Em síntese, os

revolucionários”141

.

E esse Francisco Julião, que sobe a montanha e por isso se considera um

revolucionário, implantou uma radicalidade revolucionária nas Ligas Camponesas, que

produzia “consciência política às massas camponesas, unificando-as para que tomem parte

ativa na luta pela reforma agrária radical”142

. Ainda para o autor, a sua separação dos

camponeses era momentânea e acidental. O reencontro seria inevitável e assim começaria

tudo outra vez, ou seja, a luta para abolir o cambão, pelo não pagamento do foro e pela

reforma agrária radical143

.

O exilado falava em revolução e reforma agrária radical para o Brasil, tomando sua

experiência aí vivenciada e provavelmente a ser retomada após uma possível volta. Não se

referia ao México. Essa era uma estratégia que já se percebia naquela entrevista ao jornal La

Prensa. Entretanto, por que havia espaços para a publicação de temas como esses em um país

que, naquele ano de 1968, reprimia violentamente movimentos sociais, como o dos estudantes

em Tlatelolco?

Um parágrafo do último capítulo do “Cambão”, intitulado “Um encontro com a

América”, oferece algumas pistas:

O México, é certo, merece uma ressalva nessa luta de vida e morte pela

manutenção da soberania nacional e da independência política. País de

grande extensão territorial, potencialmente rico e de população densa,

forjou uma constituição política avançada, à raiz de uma revolução, a mais

prolongada e violenta que o nosso Continente conhece, tanto que pôde

140

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 24. 141

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 62. 142

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 125. 143

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 131.

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distribuir terras, golpeando o latifúndio, estatizar riquezas básicas,

contrariando os interesses do capital estrangeiro monopolista, e adotar uma

política externa independente, de respeito à autodeterminação e à soberania

de todos os povos144

.

Francisco Julião podia dizer-se revolucionário em um país que já havia realizado sua

revolução, podia falar em reforma agrária radical em uma nação que promoveu a distribuição

de terras. O modo como esses dois processos sociais aparecem em seu texto produzia dois

efeitos: demonstrava o quanto México estava social e politicamente à frente em relação a

outros países da América Latina, levando-se em consideração uma agenda política de

esquerda; e contribuiria na produção da imagem de um governo de democrático e de

esquerda, que necessitava cada dia mais reivindicar para si a legitimidade revolucionária, em

crise entre o final da década de 1960 e o início da seguinte.

5 - Redes políticas.

As relações entre México e vários países da América Latina se intensificaram nos seis

anos de governo do presidente Luis Echeverría, 1970-1976. Houve uma aproximação com a

Guatemala e, em geral, com a América Central, seguindo o movimento já realizado por

Gustavo Díaz Ordáz, em anos anteriores. Os diálogos políticos com Cuba foram reativados,

depois dos estremecimentos provocados pelos ocorridos de 1968.

A política diplomática do governo Echeverría se propunha a ir muito além dos países

mais próximos. Caracterizava-se como terceiro-mundista e apresentava um viés de

diversificação política. Isso significava que o México abandonaria uma posição de pouca

interação diplomática, na qual prevalecia uma relação bilateral com os Estados Unidos,

cultivada durante o pós-guerra, para, nos anos 1970, construir uma ativa presença

internacional, alcançando várias regiões geográficas e um variado espectro ideológico. Nesse

período, o governo mexicano estabeleceu relações diplomáticas com mais 64 países,

duplicando o número existente no início da década. A participação do seu presidente foi ativa

em foros internacionais – FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e

Alimentação) e OEA (Organização dos Estados Americanos), por exemplo – e em viagens

diplomáticas, que o levou a vários centros político e econômico como Canadá, França, Grã-

144

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 232.

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113

Bretanha, Itália, União Soviética, República Popular da China e Iugoslávia, somente entre

1973 e 1974145

.

No continente americano, destacava-se a aproximação com o Chile da coalizão

partidária Unidade Popular – UP –, liderada pelo Partido Socialista. Os presidentes Salvador

Allende e Luis Echeverría trocaram visitas oficiais e essa iniciativa garantia às ações

internacionais do México um apoio do governo chileno, que nos primeiros anos da década de

1970 gozava de prestígio, destacadamente nos chamados países em desenvolvimento.

Além disso, a relação com o presidente socialista atendia a necessidade do Estado

mexicano em reforçar a sua retórica de esquerda e, como já citei, a sua legitimidade

revolucionária, no momento em que se reprimia fortemente as ações da guerrilha urbana146

.

Em 1972, quando de sua visita ao México, Salvador Allende asseverou em um dos seus

discursos: “ninguém tem razão para afirmar que as mudanças não são possíveis dentro da

ordem constitucional”147

. Para uma platéia repleta de estudantes, na Universidade de

Guadalajara, enfatizou a existência de diversos caminhos revolucionários, inclusive a luta

eleitoral, e disse acreditar, em acordo com o presidente Luis Echeverría, na realização das

mudanças mesmo dentro dos marcos da democracia burguesa.

No México, entretanto, não se pode perder de vista que a “ordem constitucional” era

formada também por uma violenta repressão estatal.

...

Salvador Allende adentrou a uma das salas do Palácio de la Moneda, sede do governo

da Unidade Popular. Ali estava um grupo que o esperava para almoçar. Dirigiu-se primeiro

para cumprimentar a única mulher presente. Depois de falar com algumas outras pessoas,

apertou a mão daquele a quem se referia como “companheiro e amigo”, Francisco Julião.

145

RICO, Carlos. México y el mundo: Historia de sus relaciones exteriores. Op. Cit. p. 34 - 41. 146

Um dos grupos atuantes no México foi a Liga Comunista 23 de septiembre – Lc23s, que se formou com a

união de integrantes de outros movimentos já desarticulados, como a Frente Estudiantil Revolucionaria,

Enfermos de Sinaloa e Movimiento de Acción Revolucionária. A Lc23s atuava junto a trabalhadores urbanos e

rurais, realizando uma organização e conscientização com o objetivo de estabelecer a ditadura do proletariado.

Suas estratégias de ação incluíam a insurreição, a guerra de guerrilha, a guerra civil com enfrentamentos de rua,

propaganda, comícios relâmpagos e um trabalho de educação política. GAMIÑO MUÑOZ, Rodolfo. Guerrilla,

represión y prensa en la década de los setenta en México. Invisibilidad y olvido. México: Instituto Mora, 2011. 147

RICO, Carlos. México y el mundo: Historia de sus relaciones exteriores. Op. Cit. p. 52.

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114

“Sirvam-se bastante, porque é prato único”, alertava o presidente aos seus convidados na

ocasião em que todos se sentavam à mesa148

.

Durante o almoço, o presidente dirigiu-se ao “companheiro” brasileiro com a seguinte

pergunta: “Qual a sua impressão sobre a minha visita ao México?” A partir daí se estabeleceu

um diálogo. Francisco Julião ressaltou a forma calorosa e espontânea com que os mexicanos

receberam a Salvador Allende, que, reconhecendo o carinho popular, afirmava; “o apoio do

México ao Chile é firme e sincero” por meio do presidente Luis Echeverría, a quem

considerava um cordial amigo, magnífico anfitrião e uma pessoa que desconhecia o cansaço.

A conversa seguiu com os outros convidados e quando se voltou mais uma vez ao

exilado brasileiro, trataram de amigos em comum: o jornalista José Pagés Llergo e o

Arcebispo de Cuernavaca, Dom Sérgio Mendéz Arceo. Mas, Salvador Allende devia se retirar

e assim se despediu de todos. Francisco Julião deixou aquela sala, depois de duas horas de um

agradável almoço. Seguiu por um dos corredores do Palácio de la Moneda, observando as

paredes brancas e o discreto mobiliário, sentindo o som dos passos do presidente socialista,

que lhe pareceram sintonizados com os dos camponeses e operários149

.

Era março de 1973 e há algumas semanas Francisco Julião estava viajando. Havia ido

ao Peru e de lá para o Chile, descrito por ele como um “corredor sem fim apertado entre os

Andes e o Pacífico”. Estava ali junto com a sua então esposa, a chilena Maria Angélica150

. Já

não vivia com Regina de Castro que com a filha Izabela havia regressado ao Brasil. O intuito

da viagem era acompanhar as eleições de 4 de março. Queria sentir as mobilizações nas ruas,

escutar os debates e ver os comícios. Percebeu que havia uma divisão do país entre direita e

esquerda, sendo a política o assunto mais comentado em qualquer recanto. Entre março e

maio de 1973, escreveu quatro artigos para a revista Siempre!151

sobre a sua estada no Chile,

sendo três ainda em Santiago, no mês de março, como se fora um jornalista correspondente

internacional e o último, em maio, já de regresso a Cuernavaca.

Os textos, em linhas gerais, mostravam a sua grande admiração por aquele país e seu

presidente. O primeiro intitulado “O encontro da Cordilheira e o mar”152

era uma breve e

poética apresentação do Chile, seus aspectos geográficos e seus trabalhadores.” A lição do

148

As informações desse encontro foram retiradas do artigo Escuchando los pasos de la Historia: De charla con

Salvador Allende. Revista Siempre! 16 de maio de 1973. p. 30-31. Op. Cit. 149

Revista Siempre! 16 de maio de 1973. Op. Cit. 150

JULIÃO, Francisco. Esperança é meu signo. Op. Cit. p. 294 151

Adiante trarei mais informações sobre essa revista e suas publicações. 152

Revista Siempre! 18 de abril de 1973. p. 56-57. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México.

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115

povo chileno, a amarga vitória”153

foi o seguinte. Tratava da eleição legislativa de 4 de março,

caracterizada como o enfretamento entre Unidade Popular e a oposição de direita representada

pela CODE, Confederação Democrática, união do Partido Nacional e da Democracia Cristã,

liderada por Eduardo Frei, antecessor de Salvador Allende. Francisco Julião resumia neste

artigo os vários problemas existentes no país, como a alta inflação e o desabastecimento de

diversos produtos. Tal quadro era traçado para se mostrar a luta entre trabalhadores, que

sofriam com os problemas, mas apoiavam o presidente e seu projeto de sociedade, e uma

burguesia, a qual estaria sabotando o país e até fugindo dele como desertores. As tintas do

nacionalismo eram fortes nessa narrativa.

O terceiro texto – “As correntes paralelas e opostas” – voltava a abordar o jogo

partidário chileno, bem conduzido por Salvador Allende, segundo o autor, o que garantia o

apoio da massa de trabalhadores e, por conseguinte, o sucesso do processo revolucionário. A

revolução aplaudida por Francisco Julião no Chile era descrita como a unidade entre governo

e trabalhadores, dentro de uma dinâmica partidária, eleitoral, constitucional e nacionalista. E

esses eram os pilares nos quais o ex-dirigente das Ligas Camponesas apoiava sua ideia de

revolução em meados da década de 1970.

Quando do seu retorno a Cuernavaca, foi escrito o quarto artigo – “Escutando os

passos da História: de conversa com Allende” - relatando o referido almoço no Palácio de la

Moneda, cujo convite teria ocorrido um dia antes do regresso ao México. A admiração ao

presidente chileno perpassava todo o texto que, no final, referindo-se às pressões sofridas pelo

mandatário nos últimos meses, afirmava: “O companheiro Presidente pertence à estirpe dos

que devem cair de pé”154

. Meses depois, naqueles mesmos corredores e salas, Salvador

Allende morre ao tomar as armas para defender, contra o golpe de Augusto Pinochet, o

governo democraticamente eleito da Unidade Popular.

...

Os governos mexicanos dos anos 1960 e 1970 buscaram uma legitimidade

revolucionária por meio da prática de uma cultura política populista e nacionalista, acrescida

153

Revista Siempre! 25 de abril de 1973. p. 56-57. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México. 154

Revista Siempre! 16 de maio de 1973. p. 30-31. Op. Cit.

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116

da promoção do crescimento econômico e da renda dos trabalhadores. Era um momento em

que os presidentes já não possuíam vínculos diretos com a Revolução Mexicana de 1910155

.

Ainda nesse período, a retórica nacionalista e populista era usada pelo Estado na

repressão a manifestações sociais, como as greves de Professores, Ferroviários e Médicos,

considerados maus cidadãos e ditos como inimigos da Revolução, como também a

mobilização estudantil de 1968. A política exterior de aproximação com o Terceiro Mundo e

governos de esquerda, com destaque para Cuba e Chile, principalmente entre 1970 a 1976,

servia também de instrumento para reafirmar conteúdos ideológicos da Revolução, ampliar o

apoio de setores da população e contribuir para fortalecer o sistema político interno156

.

O governo de Luis Echeverría apelou igualmente para uma legitimidade

revolucionária constituída pelos discursos político de unidade nacional e econômico de

desenvolvimento e bem-estar. No ato de sua posse, em 1970, o novo presidente afirmou: “A

revolução Mexicana acelerou sua marcha porque a cada seis anos temos a oportunidade de

analisar resultados, propormos novos objetivos, retificar o rumo se é conveniente e atender as

demandas legítimas de mudança que se tem gestado na comunidade”157

.

A Revolução estaria em curso, viva e construída juntamente com a população,

segundo o novo mandatário, que buscava instituir o seu lugar de líder. Essa liderança também

era perseguida no cenário internacional, mais especificamente junto àqueles países que

formavam o chamado Terceiro Mundo. Para tanto, Echeverría utilizou das negociações da

“Carta Internacional de Direitos e Deveres Econômicos” – CIDDE – apresentada por seu

governo na Organização das Nações Unidas - ONU158

.

Este documento defendia a existência de direitos e deveres fundamentais que

normatizariam as relações econômicas entre os países. Propunha a implantação de uma

cooperação visando à criação de uma nova ordem da economia internacional, que oferecesse

mais espaço para os países considerados subdesenvolvidos159

.

Ao mesmo tempo em que buscava uma legitimidade revolucionária, aproximava-se de

governos de esquerda e lutava por direitos para os países mais pobres, Luis Echverría

executava ações internas que sufocavam práticas democráticas e massacravam movimentos

155

VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. In: BIZBERG, Ilán; MEYER, Lorenzo (Org.) Una historia

contemporánea de México. Op. Cit. p. 51. 156

ELIZONDO, Humberto Garza. Fondo y forma de la política exterior de México. In: BIZBERG, Ilán;

MEYER, Lorenzo (Org.) Una historia contemporánea de México. Las políticas – Tomo 4. México. Editorial

Océano de México, 2005. p. 304. 157

VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. Op. Cit. p. 56 158

VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. Op. Cit. p. 58. 159

RICO, Carlos. México y el mundo: Historia de sus relaciones exteriores. Op. Cit. P.43

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sociais de contestação. A violenta repressão à insurgência camponesa desenvolvida no Estado

de Guerrero, que terminou com a morte do seu líder Lúcio Cabañas, e a invasão da sede do

jornal Excélsior, com a expulsão do seu redator, Julio Scherer, e demais jornalistas, críticos ao

seu governo, indicavam o controle ditatorial exercido pelo chefe do executivo e pelo PRI

sobre os setores sociais.

...

Em 1969, Francisco Julião publicou seus primeiros artigos na Revista Siempre!. A

partir de 1972, passou a escrever textos semanais, como aqueles sobre o Chile, integrando

assim o corpo de articulistas do periódico. Até 1979, foram cerca de 250, que circularam nas

edições da Siempre!, em uma coluna que por vezes trazia o título de América Latina, hoy. Nas

quintas-feiras, a revista era posta nas ruas e consumida por um público cativo de intelectuais,

artistas, estudantes e pessoas interessadas em ler, principalmente, as opiniões do time de

colunistas sobre a política no México e na Latinoamérica.

José Pagés Llergo, ainda há pouco citado como um dos amigos em comum na

conversa entre Francisco Julião e Salvador Allende, era o diretor da revista. Ele tinha uma

relação de amizade com Luis Echeverría, a quem chamara de “Querido Luis” em uma

carta160

. Existia um bom convívio entre o presidente e a publicação, na qual circulavam

alguns textos favoráveis ao governo.

Essa condição de proximidade não anulava totalmente uma atitude crítica e de

independência por parte da direção. Quando Julio Scherer foi golpeado pela repressão

governamental e expulso com sua equipe da redação do jornal Excélsior, Pagés Llergo o

ajudou, disponibilizando as páginas de sua revista e sua maquinaria. Nas oficinas de Siempre!

nasceu a primeira publicação de Proceso161

, novo empreendimento de Scherer.

José Pagés Llergo adotava uma posição de cautela. Apesar da liberdade que os

articulistas tinham para suas publicações, havia limites bem estabelecidos pelo diretor, que

160

Carta reproduzida em MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la

prensa y el poder. Op. Cit. p. 230 161

Proceso é atualmente a principal revista semanal de oposição aos governos do Partido Acción Nacional –

PAN e do Partido Revolucionário Institucional – PRI.

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118

costumava fazer o seguinte alerta: “Recordem que há três tabus: o Presidente da República, o

exército mexicano e a virgem de Guadalupe. Anotem isso e vamos seguir tranquilos”162

.

Francisco Julião passou a ser mais conhecido no México pela publicação dos seus

artigos durante quase toda a década de 1970. Rodrigo Moya, fotógrafo que trabalhou, entre

outras, para a Siempre!, nos anos 1960, cobriu - em conjunto com um dos seus jornalistas,

como Luis Suárez - a invasão das tropas dos Estados Unidos a cidade de Santo Domingo em

1965163

, recorda que o exilado brasileiro era uma leitura obrigatória para as esquerdas do

México naqueles anos164

. Moya não conheceu pessoalmente a Julião, mas Luis Suárez esteve

no Brasil, em 1962, e visitou a Associação de Imprensa de Pernambuco, em Recife, onde

estabeleceu contato com o então deputado socialista e advogado dos camponeses165

, de quem

se tornou amigo nos anos do exílio. O fotógrafo, que esteve junto com o jornalista Mario

Menéndez entre guerrilheiros na Venezuela e na Guatemala, em 1966, registrando parte do

seu cotidiano e de suas ações166

, ainda lembra de Francisco Julião como um respeitado líder

de esquerda da América Latina167

.

Quando lia os artigos semanais do brasileiro, Rodrigo Moya encontrou várias análises

sobre os processos considerados revolucionários na América Latina, alguns dos quais

registrados pelo fotógrafo168

. Na quinta-feira, 20 de junho de 1973, a Siempre! publicava a

seguinte análise do exilado político:

[…] Enquanto a sombra de Che caminha pelos Andes como a de Bolívar,

Fidel retorna ao continente, mais seguro de si mesmo, para aprender com

Chile e com Peru, segundo ele mesmo confessa, com a humildade de um

verdadeiro líder, que uma revolução nacionalista, popular e democrática,

tanto pode sair da boca de um fuzil, como na Sierra Maestra ou das

entranhas de uma urna, quando se trata do Chile […]169

.

162

MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op.

Cit. p. 232 163

CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Ediciones El Milagro:

México, 2011. p. 121-125. Além da Siempre!, também foram publicadas algumas das fotografias de Rodrigo

Moya em reportagens da Revista Sucesos. 164

Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012. 165

A informação sobre a visita está em CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida de exílio de

Francisco Julião. Op. Cit. p. 65. 166

CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Op. Cit. p. 125-153. As

reportagens sobre essas guerrilhas circularam nas páginas da Revista Sucesos. 167

Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012. 168

Em 1964, Rodrigo Moya passou um mês em Cuba fotografando diversos aspectos da Revolução. 169

Revista Siempre! 20 de junho de 1973. p. 31. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México.

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119

Francisco Julião, em alguns dos seus discursos antes de 1964, no Brasil, afirmava não

acreditar nas urnas como um meio para a redenção do povo e a revolução, apesar de ter sido

eleito em todos os pleitos nos quais foi candidato entre 1954 e 1962. Na década de 1970,

ampliou o seu leque conceitual sobre a revolução. Agora, ela poderia ser realizada por meio

das urnas, além do já conhecido uso das armas. O que importava é que se apresentasse como

um movimento nacionalista, popular e democrático, como se dizia ocorrer no México.

Deve-se atentar para a seleção produzida pelo articulista nesse pequeno trecho.

Referia-se a três países latino-americanos, sendo dois da América do Sul e um desses – Chile

– considerado fiel parceiro político do governo de Luís Echeverría. Cita Fidel Castro, “um

verdadeiro líder”, com quem o presidente mexicano havia produzido uma visível

reaproximação170

, além dos nomes de lideranças políticas classificadas como mártires

revolucionários, “Che e Bolívar”.

Os temas presentes nesse texto, como em outros durante a década de 1970,

dialogavam com as ideias desenvolvidas e defendidas pelo governo de Luís Echeverría tanto

para a política interna, quanto para a externa. Os escritos de Francisco Julião na Siempre!

estariam dentro da ordem de discursos e práticas implantada no México, que se desejava

apresentar como revolucionário. Ademais, a imagem de um líder de esquerda da América

Latina, como lembrava Rodrigo Moya, poderia contribuir na produção desse efeito.

Por esse caminho o exilado transitou e obteve reconhecimento político e intelectual.

Viajou ao Chile, Portugal e Argélia. Neste último foi recebido como o representante do

Comité de Solidaridad Latinoamericano171

, integrado, entre outros, por Pablo González

Casanova, Mário Guzmán - o mesmo que havia escrito o artigo sobre “Até quarta, Isabela” no

jornal El Día - e Gabriel Garcia Márquez, com quem viajou a Cuba, em janeiro de 1979,

convidados por Fidel Castro, para participarem das comemorações do XX aniversário da

revolução. Esta foi a única visita de Julião a Ilha em todo o período do exílio172

.

Em 1978, junto com o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi

convidado pela direção do PRI para participar das comemorações do cinquentenário do

170

A revista Siempre! publicava algumas fotografias onde apareciam Fidel Castro e Luis Echeverría em ações

informais, como passeios de barco e pesca. Desejava-se publicitar o laço de amizade entre os dois. 171

Francisco Julião representou o Comitê de Solidariedade na Conferência Internacional sobre o Imperialismo

Cultural. Revista Siempre!, 16 de novembro de 1977. p. 46. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 172

O relato dessa viagem a Cuba está no artigo Passaporte a Cuba: un breve viaje a la esperanza. Revista

Siempre! 31 de janeiro de 1979. p. 42-43. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México.

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120

partido, na cidade de Querétaro173

. O trânsito de Francisco Julião por setores da elite

intelectual e política do México ajudava-o a compreender as regras daquela sociedade e, ao

mesmo tempo, possibilitava-o produzir uma inserção para si.

Em julho de 1973, uma representação dessa elite encontrava-se na casa de José Pagés

Llergo. Estava ocorrendo um café da manhã, com enchiladas e tamales,174

comemorativo dos

20 anos de fundação da Revista Siempre! e se fizeram presentes jornalistas, o Arcebispo de

Cuernavaca e o presidente Luis Echeverría.

173

Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 3413. Doc. n° 100562 de 08

maio 1979. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 174

Comidas tradicionais mexicanas.

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121

Fig. 08 –Desayuno (café da manhã) em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista Siempre!. 18 jul.

1973. 1 – José Pagés Llergo; 2 – Alberto Domingos; 3 – Francisco Julião; 4 – Luis Suárez; 5 – Presidente Luis

Echeverría

2

1

3

4

5

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Fig. 09 –Desayuno em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista Siempre!. 18 jul. 1973.

1 – Francisco Julião; 2 – Don Sérgio Méndez Arceo; 3 – Presidente Luis Echeverría

Das fotografias e seus usos podem ser destacadas duas intencionalidades. Uma referia-

se a representação de um Presidente democrático, que oferecia a possibilidade de um diálogo

direto e franco com a imprensa. Assim pontuava a reportagem de Carlo Cacciolo, participante

do encontro, cujo título era: “Presença da grandeza em um encontro: Echeverría – Siempre!.

1 2

3

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123

O mais alto nível de simplicidade, franqueza e respeito”. O jornalista destacava a

impressionante fala natural, limpa e sem enganações do Presidente175

.

Ainda no decorrer do texto, Cacciolo contava que havia sido questionado por José

Pagés Llergo sobre o que escreveria para a matéria, respondendo-lhe: “ao observar de perto a

Luis Echeverría um tem desejos de proclamar sem pudor que, apesar da amplitude dramática,

e talvez sem remédio, dos problemas que lhe e nos acossam é uma charmosa aventura viver

no país por ele governado”176

. Havia uma aclamação ao líder.

A outra intencionalidade, presente nas legendas das imagens, seria a de produzir a

ideia de união, como peça chave para enfrentar os problemas do país e conduzi-lo adiante.

Nesse sentido, haveria três personagens de destaque, que ocupariam o centro das fotografias e

da narrativa que lhe conferem sentido: Luis Echeverría, presidente, José Pagés Llergo,

jornalista, e Don Sérgio Méndez Arceo, Arcebispo de Cuernavaca. O Estado, a Igreja Católica

e a imprensa estavam harmoniosamente no mesmo quadro fotográfico e político.

No mesmo dia em que circulou a matéria com as fotos do desayuno comemorativo foi

publicado um artigo de Francisco Julião, cujo título era: “México e Brasil, as linhas

divergentes: o enorme abismo que separa a liberdade da escravidão”. O texto apresentava uma

integração com alguns dos elementos editoriais elencados no já referido artigo de Carlo

Caciollo.

Dizia em um dos trechos:

Essa abertura para fora [do México] perderia seu sentido, sua efetividade,

seu realismo, se não encontrasse seu equivalente dentro das fronteiras

geográficas, políticas, ideológicas do país. Aqueles que negam, de pés

juntos, a existência de uma abertura interna, cometem, a nosso ver, um erro

que somente o sectarismo pode explicar. […] Pois bem, no momento em

que México se abre em busca de novos horizontes e se incorpora aos

governos que na América Latina já sustentam, abertamente, o firme

propósito de resistir às agressões imperialistas, Brasil se instrumentaliza

para marchar em sentido oposto. Na sua viagem de retorno, a ditadura

militar abastece os tanques com as sobras da desnacionalização acelerada e

com esses mesmos tanques esmaga as liberdades. […] Enquanto México

dialoga, Brasil monologa. Assim, entre México e Brasil as linhas

divergentes são bem nítidas177

.

As diferenças entre o Brasil ditatorial e o México democrático estavam demarcadas no

texto e Francisco Julião teria autoridade para falar sobre isso. Foi obrigado a sair do seu país,

175

Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 10. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 176

Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 85. Op. Cit. 177

Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 31. Op. Cit.

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124

após passar mais de um ano preso, por questões políticas, pelo governo militar. Recebido pelo

México, apresentava-se com liberdade de escrever e publicar as suas ideias. Esse era um

enunciado possível e necessário. As advertências da Secretaria de Gobernación e as

perseguições da Dirección Federal de Seguridad não deveriam ser lembradas.

O artigo informava aquilo que deveria ser identificado nas fotografias do café da

manhã comemorativo: “México dialoga”, era uma democracia. Existia “abertura” para isso.

Quando se produziu este enunciado, estava-se afirmando que Luis Echeverría dialogava. Essa

personificação era reforçada nas imagens publicadas na parte superior das duas páginas

ocupadas pelo texto, onde aparece de um lado a foto do presidente do México e do outro, o

seu oposto, Emílio Garrastazu Médici, ditador do Brasil.

Não se sabe qual o nível de proximidade entre Francisco Julião e Luis Echeverría. Na

entrevista publicada pelo jornal O Pasquim, em 1979, há um breve comentário sobre a ligação

entre o exilado e os filhos do presidente. Mais uma vez não se pode precisar qual a

intensidade desse contato, nem se ele já existia em 1973, nas comemorações do XX

aniversário de Siempre!178

.

De volta ao artigo, pode-se ainda identificar que Julião criticava o governo ditatorial

do Brasil por promover uma desnacionalização e esmagar as liberdades. Se na lógica proposta

para o texto os dois países em questão seguiam caminhos opostos, a denúncia sobre o Brasil

reforçava a produção da legitimidade democrática para o México, que seria nacionalista e

livre.

Essa edição festiva da Revista dá forma então a um discurso visual179

, constituído

pelas fotografias e pela estratégia narrativa, as quais informavam ao leitor a ideia de

liberdade, do respeito às instituições, da democracia e dos seus praticantes.

Dentre as três personalidades consideradas centrais, falta apresentar Sérgio Méndez

Arceo, arcebispo de Cuernavaca, que deve ser recordado como um dos amigos em comum

citados durante a conversa entre Francisco Julião e Salvador Allende, no almoço do Palacio

de la Moneda. O arcebispo mantinha uma estreita relação com o CIDOC e uma amizade com

seu fundador, Ivan Illich. Desde o final dos anos 1950, o religioso já tinha iniciado mudanças

litúrgicas em sua diocese, que proporcionavam uma aproximação maior da Igreja Católica

com os movimentos seculares, como: Acción Católica Mexicana (ACM) e o Secretariado

Social Mexicano (SSM). Nos anos posteriores percebeu-se um aprofundamento dessa prática,

178

Jornal O Pasquim. 19 de Janeiro, 1979. p. 15. Fundação Biblioteca Nacional. 179

CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la fotografía y la

construcción de un imaginario. Op. Cit. p. 17.

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125

principalmente, com a realização do Concílio Vaticano II, que direcionou setores da Igreja

Católica a debater e se fazer mais atuante em questões sociais e políticas. Ao final de 1965, “a

Igreja mexicana não era nem a tradicionalista ultraconservadora nem a reformista radical,

ainda que alguns bispos se inclinassem por estas tendências. […] A Igreja mexicana estava,

em geral, mais aberta ao mundo secular”180

.

O Arcebispo de Cuernavaca, já na década de 1970, continuava apoiando grupos

seculares, inclusive os compostos por pessoas formadas na Igreja Católica, mas que depois a

deixaram, como era o caso do próprio Ivan Illich. Atuava “no limite da permissividade do

Vaticano”. Mesmo sem realizar uma crítica aberta à Igreja de Roma, por meio de algumas de

suas ações era possível identificar que o Arcebispo estava em desacordo com várias

normatizações oriundas das hierarquias superiores181

.

Sérgio Méndez Arceo comandava, na Catedral de Cuernavaca, uma celebração

dominical iniciada às 11 horas da manhã. Nas suas homilias, o arcebispo frequentemente

abordava questões políticas e sociais do México e também da América Latina. Tratou, entre

outros, da censura ao filme Canoa, que relatava a prática criminosa do anticomunismo, da

vitória e depois da queda de Salvador Allende e do triunfo do sandinismo. Revistas como

Siempre! e Proceso, por vezes, reproduziam em suas páginas parte dessas homilias, bem

como realizavam e publicavam entrevistas com o religioso. Luis Suarez, integrante da equipe

de Pagés Llergo, foi um dos jornalistas que o entrevistou várias vezes182

.

Francisco Julião construiu uma relação de amizade com Sérgio Méndez Arceo. Os

dois se encontravam, conversavam e trocavam ideias seja no CIDOC, seja depois das

celebrações de domingo, das quais o asilado político sempre procurava estar presente. Em

meados da década de 1970, ele era visto em companhia de sua nova esposa, a mexicana Marta

Rosas183

. É plausível que o contato profissional com a Revista Siempre!, que resultou em anos

180

BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición democrática. In:

BIZBERG, Ilán & MEYER, Lorenzo (Org.). Uma história contemporânea de México. Actores. Tomo 2. El

Colégio de México. Ed. Oceno. 2005. p. 236. 181

BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición democrática. Op.

Cit. p 239. 182

VIDELA, Gabriela. Sergio Méndez Arcel, um Señor Obispo. Juan Pablo Editor: México, 2010. p. 107-112. 183

Essas informações estão presentes em alguns pequenos trechos das falas de Jean Robert, que entrevistei em

Cuernavaca, agosto de 2010, e de Antólio Julião, filho de Francisco Julião, entrevistado em Recife, no dia 23 de

maio de 2011. Nas duas vezes que estive no México, em agosto de 2010 e depois entre fevereiro e junho de

2012, quando realizei um doutorado sanduíche, tentei contato com a última esposa de Francisco Julião, Marta

Rosas, que teria ficado com um acervo do marido composto por correspondências, fotos, escritos e outros. Nesse

material devem estar mais informações sobre as ações de Julião, principalmente em Cuernavaca. Por meio de

alguns padres que conhecem a Marta busquei marcar um encontro com ela. Não foi possível. Ela afirmava que

não aceitaria conversar, sequer por telefone. Logo não tive acesso a documentos, caso existam, que ofereceriam

elementos sobre essa amizade entre Francisco Julião e Sérgio Méndez Arceo.

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de publicação, tenha sido proporcionado por Méndez Arceo, que dispunha de acesso direto a

seu diretor e a diversos dos seus jornalistas, incluindo um dos principais, Luis Suárez, que,

como me referi antes, havia conhecido o exilado brasileiro ainda quando ele era o famoso

dirigente das Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil.

Apresentado o segundo amigo em comum citado durante o almoço no Palácio de la

Moneda, o primeiro foi José Pagés Llergo, quero retomar as fotografias para uma última

análise acerca da presença do exilado. Ela indica que Francisco Julião havia atendido às

exigências do grupo político ali representado e possuía as qualificações necessárias para

integrá-lo. Foi aceito naquela ordem de práticas e discursos, na qual se operava com signos e

representações de esquerda e se produzia uma legitimidade para o sistema político, que

reprimia manifestações estudantis e camponesas e, ao mesmo tempo, apresentava-se

democrático e apoiava governos proclamados revolucionários, como Chile e Cuba.

6 - A embaixada do Brasil, outra vez.

O articulista da coluna América Latina, hoy dominava os enunciados que deveriam

circular dentro do jogo político e social mexicano. Usava da sua qualificação de líder de

esquerda, ex-dirigente de um movimento camponês. Sua condição de exilado político era

utilizada para promover uma diferenciação entre Brasil e México, situá-los em oposição, útil

na tarefa de construção de uma legitimidade revolucionária e democrática para os governos do

PRI na década de 1970.

Entre os últimos meses de 1969 e o final do ano de 1970, a embaixada do Brasil no

México exerceu novas interpelações a Secretaria de Relaciones Exteriores. O objetivo era

conseguir uma censura aos textos de Francisco Julião, que começavam a circular em um novo

espaço, a revista Siempre!. Houve reuniões e trocas de ofícios sobre essa questão.

As petições referiam-se aos dois primeiros artigos divulgados no periódico. Intitulados

“Brasil vive a hora mais sombria de sua História e As lições de um seqüestro: Brasil como

ponto chave”, os textos produziam duras críticas ao governo brasileiro. O primeiro, de 9 de

julho de 1969, ocupava quatro páginas inteiras e construía uma história da ditadura militar

iniciada em 1964, ressaltando a existência de um processo de desnacionalização do país,

promovido por uma política de entreguismo aos Estados Unidos. Ademais, caracterizava o

Exército como um partido armado que havia tomado de assalto o poder e, por sua vez, as

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massas sacrificadas sentiam a necessidade de buscar o caminho revolucionário para acabar

com a ditadura184

.

Dias depois dessa publicação, o então embaixador do Brasil, Frank Moscoso, se reuniu

com o Diretor da Primeira Subsecretaria da Secretaria de Relaciones Exteriores, Alfonso de

Rosenzweig Díaz, e lhe expressou todo o desagrado sentido ao ler aquele artigo. Considerou

ser uma clara incitação à violência, com o objetivo de derrotar pela força o governo do Brasil.

Mesmo reconhecendo a existência da liberdade de expressão para os asilados políticos,

alertou que caso Francisco Julião continuasse escrevendo artigos dessa índole, atingir-se-ia a

situação de propaganda sistemática185

.

Frank Moscoso retornou ao Brasil dias depois dessa reunião. Em seu lugar foi

nomeado João Baptista Pinheiro. Entre a saída de um e a chegada do outro, o embaixador

Alfonso Rosenzweig Díaz recebeu, em 20 de agosto de 1969, o Encarregado de Negócios da

embaixada do Brasil, Gilberto Martins. Dessa vez, a reunião tratou das declarações de

Francisco Julião ao jornal Novedades, nas quais dizia estar “conspirando eternamente” contra

a ditadura militar brasileira. Mais uma vez foi reafirmada a liberdade de expressão garantida

aos asilados políticos e as afirmações de Julião foram classificadas pelo embaixador mexicano

como “simples fanfarronadas”186

. Talvez Alfonso Rosenzweig não simpatizasse com o asilado

político ou arrumou uma expressão de efeito para desmobilizar mais uma petição do Brasil

em pouco mais de um mês.

Quando João Baptista Pinheiro foi entregar, em agosto de 1969, suas cartas de

apresentação ao chanceler Antonio Carrillo Flôres, estava ciente desses problemas. Deveria

tentar uma maior aproximação diplomática e um maior controle sobre os exilados. Em grande

parte, o trabalho do novo embaixador foi bem sucedido. Afinal, ele conseguiu administrar a

questão dos presos políticos brasileiros, aceitos como asilados no México, depois de

libertados pelo governo militar em troca do final do sequestro do diplomata norte-americano

Charles Elbrick. Controlados pelos órgãos de vigilância e segurança, eles ficaram

impossibilitados de qualquer tipo de articulação política, como desejava o governo do

Brasil187

.

184

Revista Siempre! 09 de Julho de 1969. p. 32-33. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México. 185

Memoradum de conversación de 09 de julho de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada de México em

Brasil - III 5714-11. Arquivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria de Relaciones Exteriores - SRE. México,

D.F. 186

Memoradum de conversación de 20 de agosto de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada de México em

Brasil - III 5714-11. Op. Cit. 187

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit.

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Em relação a Francisco Julião, exilado desde 1965, o novo embaixador agiu em

outubro de 1969, em consequência da publicação do seu segundo artigo na revista Siempre!.

Referindo-se ao sequestro de Charles Elbrick como um “ato revolucionário”, o articulista

afirmou que os militares foram surpreendidos, especialmente porque depois do AI-5

acreditaram ter o controle total do país. Sugere que esse episódio não deveria ficar isolado e

por isso os “patriotas” necessitavam ganhar apoio e organização para dar continuidade à

luta188

.

João Baptista Pinheiro foi tratar do artigo com Alfonso Rosenzweig Díaz,

questionando-lhe acerca das medidas a serem adotadas, pois, no seu entendimento, se tratava

de propaganda subversiva encaminhada para derrotar o governo do Brasil. Após escutar

atentamente, o embaixador mexicano lamentou a situação envolvendo as duas nações amigas

e retomou o argumento da ampla liberdade de expressão existente no México. Ao final,

considerou que poderia ser o caso de os países envolvidos estarem interpretando de maneira

distinta a Convenção de Caracas.

No segundo semestre de 1969, seguiu uma troca de informações entre o governo do

Brasil e sua embaixada no México. Havia praticamente um consenso de que Francisco Julião

estaria promovendo atividades conspiratórias, fomentando a subversão da ordem não só no

Brasil, mas também na América Latina e assim realizando uma flagrante violação do direito

de asilo189

.

Parecia não se entender a posição do governo do México, que, segundo a embaixada

do Brasil, havia cooperado no caso do recebimento e da vigilância aos presos políticos, mas

resistia em adotar qualquer atitude restritiva em relação a Francisco Julião.

Mas, o próprio João Baptista Pinheiro, em telegrama “confidencial-urgente” enviado

ao Brasil, datado de 24 de outubro de 1969, no qual resumiu e analisou a última conversa com

Rosenzweig Díaz, ofereceu indícios para a resolução dessa questão. Ponderou que o México

permitia “manifestações públicas de nítido cunho esquerdista […] como maneira de

comprovar sua imparcialidade e não sufocar, inteiramente, a pregação das correntes

esquerdistas mexicanas, o que, se ocorresse, lhe causaria sérios problemas e reduziria a sua

área de ação para manter a estabilidade interna do país”190

.

188

Revista Siempre! 22 de outubro de 1969. p. 26-27. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México. 189

Ver pasta de documentos confidenciais sobre Francisco Julião arquivados na Coordenação-Geral de

Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores 190

Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.31 de 24 de outubro de 1969.

Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores.

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No decorrer dos anos 1970, os documentos com interpelações do governo do Brasil

deixaram de existir. Novas dinâmicas políticas, como a mobilização do discurso de direitos

humanos realizada por intelectuais e setores da imprensa dos Estados Unidos contra as

torturas praticadas pelo regime militar, talvez tenham contribuído para uma mudança no foco

de ação da diplomacia. No início do governo Geisel, o Brasil foi condenado na Comissão

Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos 191

.

Entretanto, a análise de João Baptista Pinheiro apontava a existência de outro fator.

Francisco Julião havia se tornado uma peça da configuração política promotora da

estabilidade interna do México. Integrava essa maquinaria e, apesar de todas as acusações e

petições do Brasil, publicou mais de duas centenas de artigos até 1979, vários deles críticos à

ditadura militar. Assim, respondendo a pergunta apresentada no final do primeiro tópico desse

capítulo, pode-se dizer que a estratégia desenvolvida pela diplomacia brasileira junto aos

órgãos de segurança do México para transformar Francisco Julião em um “inimigo comum”

havia fracassado. Ele produziu e garantiu um novo lugar de ação, pelo menos até o final dos

anos 1970, operando com seu passado de líder de esquerda e ex-dirigente das Ligas

Camponesas.

O exílio, segundo Denise Rollemberg, foi uma ruptura com a conjuntura de intensa

mobilização política vivenciada pelas gerações 1964 e 1968, quando muitos dos seus

representantes estavam no centro dos acontecimentos. O desenraizamento deste universo que

oferecia sentido à luta e a derrota de projetos políticos e pessoais, ainda de acordo com a

historiadora, subverteram a imagem que os exilados tinham de si e promoveram crises de

identidade192

.

No caso de Francisco Julião, um dos mais conhecidos da geração 1964, o exílio

também promoveu deslocamentos e ressignificações. Ele deixou de ser o deputado socialista e

advogado dos camponeses. Não existiam mais as Ligas e ele estava impedido de exercer sua

profissão, devido à condição de exilado. A luta pela reforma agrária na lei ou na marra não

poderia ser praticada no México. Mas, o uso de imagens que estavam relacionadas a esse

cenário passado de luta tornou-se possível. Para Julião, além das redefinições e reconstruções,

191

O historiador James Green aponta em seu livro para a existência de uma oposição à ditadura militar praticada

por intelectuais nos Estados Unidos, os chamados Brasilianistas, pouco conhecida no Brasil devido a censura e a

postura nacionalista, anti-imperialista e marxista do meio acadêmico entre os anos 1950 e 1970. GREEN, James.

Apesar de vocês. Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009. Para a discussão sobre a condenação na CIDH, ver páginas 302 a 306. 192

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Op. Cit. p. 132.

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comuns a maioria da sua geração, o exílio foi a escolha de uma identidade e a produção de

uma continuidade, a do líder de esquerda das Ligas Camponesas do Brasil.

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Capítulo 3 - Refazendo o passado, produzindo o futuro: seis relatos

Dezembro, 1977. Francisco Julião recebe a visita de uma equipe do Centro de

Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC –, Fundação

Getúlio Vargas. Neste encontro, na cidade de Yxcatepec, Estado de Morelos – México; o

exilado brasileiro produziu um relato sobre sua história de vida, que resultou em

aproximadamente de 6 horas e 50 minutos de gravação e, posteriormente, 173 páginas

datilografadas de transcrição.

O CPDOC foi criado em 1973 e dois anos depois realizou suas primeiras entrevistas.

O Centro de Pesquisa era uma “costela de adão”1 do Instituto de Direito Público e Ciências

Políticas da Fundação Getúlio Vargas. O primeiro projeto institucional do seu Programa de

História Oral, redigido em fins de 1975, definia que as investigações deveriam centrar-se no

âmbito da “Classe Política”. Esta categoria era entendida, segundo o mesmo projeto, como “o

conjunto de indivíduos que ocupa posições de mando na sociedade, e que exerce influência

direta sobre as decisões centrais que afetam a comunidade em seu conjunto”2.

Provavelmente, foi de acordo com os objetivos traçados por esse primeiro projeto

institucional, levando-se em consideração o interesse por uma classe política participante de

“marcos históricos”3 (1922, 1930, 1946, 1964 e os dias atuais), que Francisco Julião foi

selecionado e convidado a contar sua história de vida.

Em março de 1977 a Fundação Ford efetuou uma doação de 115 mil dólares, através

da Biblioteca Nacional, para a criação, no Brasil, de um programa de documentação em

Ciências Sociais. Deste total, o CPDOC recebeu a quantia de 40 mil para a viabilização de seu

Programa de História Oral. Mais tarde, em outubro, a instituição norte-americana realizou

uma nova doação ao Centro no valor de 15 mil dólares4. Possivelmente, esses aportes

1 Definição dada por Aspásia Camargo em uma entrevista concedida a Maria Celina D`Araújo, Rio de Janeiro,

dezembro de 1998. Como a História Oral chegou ao Brasil – Entrevista com Aspásia Camargo a Maria Celina

D`Araújo. In: História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral , n° 2, 1999. p. 170. 2 ALBERTI, Verena. O acervo de História Oral do CPDOC: trajetória de sua constituição. Rio de Janeiro:

CPDOC, 1998. p. 02. 3 Ver ALBERTI, Verena. O acervo de História Oral do CPDOC: trajetória de sua constituição. Op. Cit.

4 Informações extraídas de: Como a História Oral chegou ao Brasil – Entrevista com Aspásia Camargo a Maria

Celina D`Araújo. Op. Cit. p. 178. Segundo Marieta de Moraes, o CPDOC também foi beneficiado pelo

movimento então em curso de expansão das pós-graduações de Ciências Sociais e História no Brasil e o

incentivo recebido pelas atividades de pesquisa e documentação. Este cenário contribuiu para que o CPDOC

conseguisse financiamento junto a Fundação Ford, mas também com agências nacionais como o FINEP.

FERREIRA, Marieta de Moraes. CPDOC – 30 anos. In: CPDOC – 30 anos. Rio de Janeiro: Ed. Fundação

Getúlio Vargas/CPDOC, 2003. p. 07-12.

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financeiros viabilizaram, entre outras, o planejamento e a execução de uma entrevista no

México.

Celina Vargas e Aspásia Camargo estavam à frente da concepção e montagem do

CPDOC. Poucos anos antes, elas haviam regressado da França5. Com um estudo sobre os

movimentos de camponeses no Nordeste do Brasil durante a considerada crise do populismo,

Aspásia Camargo havia concluído seu doutorado6. É provável que tenha encontrado, em suas

pesquisas, constantes referências a Francisco Julião. Isto também pode ter contribuído

decisivamente, naquele momento, para a escolha dele como um dos integrantes da classe

política a ser entrevistado.

Esse era talvez o primeiro relato de Francisco Julião, que circularia no Brasil, desde

sua saída para o exílio em 1965. Era provavelmente, até aquele momento, a única

oportunidade para construir uma narrativa sobre a sua atuação junto às Ligas Camponesas e

como deputado estadual e federal por Pernambuco entre os anos de 1955 a 1964. Ao mesmo

tempo, o relato poderia circular entre intelectuais ligados a movimentos de esquerda ou

apenas de oposição ao governo militar.

Uma grande parte do que foi narrado à pesquisadora Aspásia Camargo referiu-se aos

14 anos anteriores ao Golpe civil-militar de 1964. Praticamente não há nenhuma referência ao

exílio, que naquele momento já durava 12 anos.

Talvez aquele período precedente a 1964 era o que mais interessava a pesquisadora.

Mas também, deve-se à seleção promovida pela memória do entrevistado. Havia uma

intencionalidade de Francisco Julião ao falar sobre aqueles anos. Ao ler as 173 páginas

datilografadas é possível identificar, em alguns trechos, que o exilado entendia o relato de

memória como uma operação de seletividade. Ele mostrava-se ciente do cuidado que deveria

ter na construção da entrevista concedida ao CPDOC.

Francisco Julião sabia dos riscos existentes em uma produção de memória, visto que

ela poderia ser lida de modo diferente da que ele desejava, interferindo em uma possível volta

sua ao Brasil ou ainda, uma vez de regresso, atrapalhando a construção de possíveis alianças.

Em uma parte da sua narrativa, quando ele falava da relação com o materialismo

histórico e o cristianismo, ressaltou: “Vou dar um exemplo, embora eu não esteja certo de que

5 Como a História Oral chegou ao Brasil – Entrevista com Aspásia Camargo a Maria Celina D`Araújo. Op. Cit.

p. 167. 6 CAMARGO, Aspásia. Brésil Nord-est, mouvements paysants et crise populiste. Paris, École Pratique des

Haustes Études. Não consegui ter acesso a esse trabalho. Contudo, a autora publicou um artigo analisando a

questão agrária e o populismo no Brasil de 1930 a 1964. CAMARGO, Aspásia de Alcântara. A questão agrária:

crise de poder e reforma de base (1930-1964). In FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização

Brasileira. 3º vol. Ed. DIFEL, São Paulo, 1981. p. 123-224.

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esse é o momento de dizer uma coisa como essa, prestando um depoimento. Talvez fosse mais

interessante para umas memórias bem elaboradas, escritas com muito cuidado”7.

Em outro momento, ao se referir a um homem que teria recomendado sua morte,

afirmou: “Eu não quero dar o nome dele. Você me permite que eu não dê o nome. Ele está

vivo e a gente pode, amanhã, se encontrar e ainda, quem sabe, fazer uma aliança. […]Um dia,

talvez, eu possa relatar isso em umas memórias e dar os nomes de todos, mas não penso em

escrever memórias agora, nem nada disso”8.

O depoimento oral não possibilita uma construção mais elaborada do que se diz.

Francisco Julião entendia que a escrita era o lugar um pouco mais seguro para a produção de

uma memória, talvez porque ela oferecesse a condição de se fazer o texto por diversas vezes e

de diferentes modos até atingir ou se aproximar ao máximo daquilo que se queria dizer. Deve-

se lembrar ainda da experiência dele com a escrita. Até 1977, já havia publicado vários livros

e escrito diversos folhetos e cordéis utilizados na mobilização de trabalhadores rurais nas

Ligas Camponesas9. Ele dominava as formas de contar uma história por meio da escrita.

Mas, aquela era uma oportunidade para fazer chegar ao Brasil as suas avaliações sobre

o período anterior a 1964, passados 12 anos de exílio. Era uma ocasião para ele se

reapresentar, um instrumento para responder a algumas antigas acusações e, quem sabe, abrir

espaço para a construção de novas relações sociais e políticas no país. Ele já havia escrito o

livro Cambão: la cara oculta de Brasil, sobre os camponeses no Nordeste do Brasil e as

experiências junto às Ligas Camponesas, lançado em 1968. Apesar desta obra ter sido

traduzida para 16 idiomas, não fora publicada no Brasil até o final dos anos 200010

. Segundo

Anatólio Julião, o seu pai não “quis que o livro fosse publicado logo após a anistia, e o seu

retorno ao Brasil, em 1979, por entender que o texto pouco contribuiria para o delicado

momento político de distensão e abertura vivida, à época, pelo País”.

Francisco Julião sabia que não era hora de rememorar determinado passado ou caso o

fizesse, deveria ser levando-se em consideração aquela dinâmica de redemocratização do

Brasil. A entrevista para o CPDOC estava marcada pela intencionalidade de preparar uma

possível volta ao Brasil. Resultava de um trabalho de seleção que Julião fez da sua memória,

7 Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV. p. 156.

8 Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 64.

9 Francisco Julião publicou os seguintes livros: Cachaça, 1951; Irmão Juazeiro, 1961; Que são Ligas

Camponesas, 1962; Até quarta, Isabela, 1964 e Brasil: Antes y despues, 1968 (publicado apenas no México)

Cambão: la cara oculta de Brasil, 1968. Também havia escrito, antes de 1964, em formato de folheto e cartilhas,

os textos: Guia do Camponês, ABC do camponês, Cartilha do Camponês, Carta de Alforria do Camponês e

Bença, mãe. 10

O livro só foi publicado no Brasil em 2010, pela editora Bagaço, de Recife.

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observando o processo de distensão e abertura política no Brasil, afinal aquele relato era um

meio possível para se fazer ouvir em seu país.

Este período final da década de 1970 foi marcado pela desvalorização da opção teórica

e política da luta armada. Depois da derrota e intensa repressão sofrida pelos grupos que

adotaram essa forma de atuação política, desenvolveu-se em parte das esquerdas uma crítica e

autocrítica às ações armadas.

Os movimentos sociais de oposição ao governo militar e as organizações de esquerda,

na segunda metade da década de 1970, procuraram construir o que a historiadora Maria Paula

Araújo denomina “espaços de legalidade”11

. O objetivo era romper o isolamento e a

clandestinidade, em grande medida, promovidos pela opção da luta armada. Os grupos de

esquerda desejavam aproximar-se do restante da sociedade e garantir um espaço público de

ação.

O Movimento Democrático Brasileiro – MDB – e as entidades de profissionais

liberais, como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – e a Associação Brasileira de

Imprensa – ABI – eram alguns dos setores sociais12

que definiam suas atividades de oposição

ao governo militar como sendo uma luta política legal, classificando-a como uma resistência

ao Regime Militar.

O termo resistência funcionava para significar a essa luta política como uma ação em

defesa da legalidade, da democracia e dos direitos humanos. Mas também, caracterizava-a

como um ato heróico dos que resistiam aos mais fortes e truculentos13

. Ao mesmo tempo, a

dimensão do heroísmo era usada por aqueles que participaram das ações armadas de outrora,

produzindo um novo significado para as mesmas, por meio do qual “aqueles bravos rapazes e

moças de armas na mão ganhavam seu lugar, legítimo, como os desesperados de uma nobre

causa, os equivocados de uma luta justa, agora, afinal triunfante, a redemocratização”14

.

Em meados da década de 1970, alguns integrantes da chamada esquerda

revolucionária15

, defensora da luta armada como meio para derrubar o Regime Militar e

destruir o capitalismo, após críticas e autocríticas, passaram a integrar o que ficou conhecido

11

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na

década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 116. 12

Pode-se citar também o sindicalismo promotor das greves no ABC paulista; as Comunidades Eclesiais de Base

– CEBs; e a chamada imprensa alternativa, com publicações voltadas para as mulheres, negros e homossexuais. 13

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na

década de 1970. Op. Cit. p. 123. 14

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: O golpe e a ditadura

militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: Edusc, 2004. p. 48-49. 15

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. Op. Cit. p. 47.

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como Bloco das Liberdades Democráticas16

. O projeto revolucionário do passado

metamorfoseou-se em resistência democrática e as organizações revolucionárias em “alas

extremadas”17

desta resistência.

O debate em torno dessas propostas de atuação política circulou tanto no Brasil como

em outros países da América Latina, seja por meio de publicações, como a Revista Brasil

Socialista18

, seja através das conversas e dos encontros. Francisco Julião recebia muitas

visitas no México, desde outros exilados brasileiros, integrantes de grupos de esquerda, até

jornalistas, que poderiam compartilhar com ele atualizações sobre as lutas políticas no Brasil.

Estava também em uma rede intelectual e política, por meio da qual poderia ter acesso a esses

novos debates. Provavelmente, o relato concedido em 1977 ao CPDOC estava informado por

essas novas propostas de ação dos grupos de esquerda e de oposição ao governo militar.

Praticamente um ano depois deste relato, Julião concedeu uma entrevista ao semanário

O Pasquim. Nesta, construiu uma narrativa que em alguns momentos se aproximava daquela

registrada pela pesquisadora Aspásia Camargo. O periódico havia enviado ao México o

jornalista e cartunista Henrique de Sousa Filho, Henfil, para comandar os trabalhos, dos quais

também participaram seu irmão Herbert de Souza, Betinho, Maria Souza e Severo Salles,

estes três últimos também exilados brasileiros no México. O resultado da entrevista foi

dividido e publicado em duas edições de janeiro de 1979 do Pasquim.

Para os dois relatos, Francisco Julião insistia em afirmar-se como um legalista. “Eu era

extremamente legalista e usava a lei”19

, dizia ele para O Pasquim, referindo-se às ações

promovidas junto aos camponeses em Pernambuco. Para o CPDOC, afirmou: “Com o Código

[Civil] na mão, fui buscando os foreiros. […] O camponês é muito legalista. […] Partindo

dessa legalidade, eu dizia: você diz que está de acordo com a lei, mas a lei aqui proíbe: não se

pode dar um dia de trabalho se não se recebe […] um salário. […] A lei o protege e eu estou

aqui para defendê-lo. […] Vou à justiça defendê-lo”20

.

Ao selecionar para os seus relatos as suas ações da década de 1950 que estariam

dentro de uma legalidade, Francisco Julião aproximava-se de uma esquerda atuante no Brasil

16

Segundo Maria Paula Araújo, esse bloco era integrado pelo PCB, PC do B, além do MR-8, APML e algumas

organizações trotskistas. ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no

Brasil e no mundo na década de 1970. Op. Cit. p. 124. 17

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. Op. Cit. p. 48. 18

A revista Brasil Socialista era confeccionada no Chile e circulava clandestinamente no Brasil. Constituía-se

em fórum de debate das esquerdas tanto do Brasil como de outros países da América Latina e teve um

importante papel na construção e divulgação dessa nova proposta de luta tática. ARAÚJO, Maria Paula

Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Op. Cit. pp.

121-122. 19

Jornal O Pasquim. 05 a 11 de Janeiro de 1979. p. 13. Fundação Biblioteca Nacional. 20

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 08.

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do final dos anos 1970 e ao mesmo tempo tentava quebrar com as imagens de radicalização e

violência atribuídas a ele, enquanto líder das Ligas Camponesas. Afinal, já decretava Henfil

na primeira pergunta da entrevista: “Todo mundo te conhece como o Julião das Ligas

Camponesas”21

. E era contra as memórias e as imagens já determinadas para este “Julião das

Ligas Camponesas”, que o próprio Francisco Julião desejava criar outros significados,

instituindo novas práticas, que redefinissem aquele sujeito já naturalizado. Naquele momento,

o instrumento utilizado para tornar-se inapreensível e revirar as palavras22

eram os relatos

produzidos, ainda no México, entre 1977 e 1979.

Em outro momento da entrevista ao Pasquim, Henfil rememorava: “Em 64, eu tinha

20 anos. A esperança da gente era que Julião estava levantando as Ligas Camponesas, por isso

é que não tinha aparecido, e quando ele foi preso deu uma crise de desespero na garotada da

Praça Hugo Werneck, em Belo Horizonte. Aí não tinha jeito, o golpe tinha vencido de vez. O

Robin Hood acabou”23

.

Francisco Julião foi acusado, algumas vezes por setores da própria esquerda, de incitar

a mobilização golpista de 1964. Os seus discursos, nos quais dizia ter a possibilidade de

levantar milhares de camponeses armados, teriam acelerado uma reação do lado dos militares

e de parcelas da sociedade civil, que se sentiram cada vez mais ameaçados. Esta é uma

construção persistente e que ainda hoje circula em parte da historiografia. Em sua biografia

sobre João Goulart, lançada em 2011, o historiador Jorge Ferreira afirma:

Praticamente sem vozes para defendê-lo, o governo contou com o deputado

Francisco Julião, que, pela primeira vez desde sua eleição, aparecia no

Congresso para evitar a perda de seu mandato por faltas acumuladas. Até

então ferrenho opositor de Goulart, a quem chamava de “latifundiário e

lacaio de latifundiário”, Julião ameaçou deter o golpe mobilizando 60 mil

homens armados das Ligas Camponesas, 5 mil deles perto de Brasília. Os

homens armados, na verdade, não existiam. Pura bravata, mas a ameaça

aterrorizou os indecisos. Em um momento em que a guerra civil era vista no

horizonte, as supostas milícias rurais assustaram os parlamentares que ainda

não tinham se decidido em apoiar o golpe24

.

O deputado federal ausente, que foi ao parlamento nacional para evitar a perda do

mandato, teria atuado de forma desastrosa. Com a sua ameaça de mobilizar camponeses

armados, assustou os parlamentares ainda indecisos em apoiar o golpe. Pensando que parte

21

Jornal O Pasquim. Op. Cit. 22

MONTENEGRO, Antonio. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010. p. 32-35. 23

Jornal O Pasquim. Op. Cit. p. 12 24

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 500.

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dos deputados e senadores apoiou a declaração de vacância da Presidência da República e

outorgou a mesma, provisoriamente, a Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara dos

Deputados, pode-se imaginar que os parlamentares indecisos, citados acima, sentindo-se

ameaçados e aterrorizados, passaram a apoiar o movimento golpista. Isto também nos faz

conceber que o Francisco Julião, do modo como é apresentado no texto de Jorge Ferreira,

mesmo ao tentar defender o governo de João Goulart, acabou contribuindo com o golpe.

A sua atuação também foi classificada, em determinadas ocasiões, como clandestina,

sobretudo quando se afirmava que ele teria planos para armar as Ligas Camponesas e

promover um treinamento guerrilheiro, nos moldes cubanos, em fazendas localizadas no

interior do Brasil. Estas imagens de violência e de clandestinidade, em certo sentido, são

retomadas por Henfil ao afirmar que a “esperança” era Julião levantar as “Ligas Camponesas”

e ao compará-lo com “Robin Hood”, conhecido por suas ações de assaltos aos ricos para

beneficiamento dos pobres. Mas, a memória do jornalista e cartunista do Pasquim, elaborada

em finais 1978, oferece contornos contemporâneos a essas imagens. As ações armadas e

clandestinas de outrora de um Francisco Julião/Robin Hood junto aos camponeses

transmudam-se em uma resistência heróica ao golpe de 1964, que como tal era constituída

pela ideia de esperança, compartilhada entre os jovens da Praça Hugo Werneck.

Pode-se ainda indagar sobre a frase: “Aí não tinha jeito, o golpe tinha vencido de vez”.

Nesta memória de Henfil, a quem o golpe teria vencido? “Aí não tinha jeito” para a

democracia, pois esta teria sido derrotada pelo golpe. Sendo assim, Francisco Julião

constituía-se como a última chance de luta em defesa de uma democracia em 1964, derrotada,

porém, poucos meses após o golpe, em 03 de junho, quando ele foi preso.

Mas, se por um lado existiam pequenos movimentos que inseriam Francisco Julião nas

representações de resistência democrática à ditadura militar, por outro havia a desconfiança de

que ele não estaria em acordo com uma dinâmica política em desenvolvimento no Brasil. No

final de 1978, a revista semanal Veja publicou, em suas páginas amarelas, uma entrevista com

o exilado brasileiro no México, que, assim, em praticamente um ano, havia concedido três

depoimentos para intelectuais e jornalistas do Brasil.

Logo no início, a reportagem tratava de dizer ao leitor quem era o seu entrevistado:

“Inflamado orador, as Ligas Camponesas que liderou de 1955 a 1964 pareciam a muitos um

projeto de guerrilha”25

. Mas, ao mesmo tempo, ressaltava a possível mudança que o período

do exílio poderia ter provocado: “Francisco Julião de Paula não guarda muitos traços do

25

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 03.

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vulcânico deputado do acanhado Partido Socialista Brasileiro que, julgava-se, poderia

dinamitar o regime e espelhar a desordem no Nordeste”26

. O Francisco Julião que, para

alguns, liderou projeto de guerrilha camponesa e intentou dinamitar o regime, neste caso o

democrático, existente antes do golpe de 1964, bem como espalhar a desordem, está dado

como um fato, sendo um ponto de partida da reportagem. A proposta da Veja era sabatinar o

exilado político, há 13 anos longe do Brasil, sobre alguns temas que marcaram suas ações na

década de 1950 e início dos anos 1960 e trazer para o leitor as intenções dele, caso retornasse

ao país.

Tomando as temáticas das primeiras perguntas, que se referem diretamente ao período

pré-1964, podemos formar dois blocos temáticos, apesar destes não existirem na reportagem.

Um diria respeito à questão da democracia e o outro ao uso da violência como estratégia

política. As perguntas iniciais foram previamente elaboradas pela revista, ao contrário das

seguintes, que, em sua maioria, abordaram os aspectos presentes em respostas concedidas

pelo entrevistado.

Sobre a democracia, o jornalista inquiriu: “O senhor sempre fez duras críticas à

democracia representativa afirmando que este sistema “engordava os tubarões e esfomeava o

povo”. Sua visão da democracia ainda é esta”27

? E depois, rememorando as Ligas

Camponesas, a seguinte questão: “De qualquer forma as Ligas Camponesas foram envolvidas

na violência. O senhor não acha que a ação violenta em política conspira contra um regime

que se deseja democrático”28

?

Estas questões investigavam o comprometimento do Francisco Julião, no final da

década de 1970, com um regime democrático. À primeira pergunta, o ainda exilado brasileiro

respondeu que as suas ações anteriores já desejavam aprofundar a democracia no Brasil, por

meio da “incorporação à vida política do país de grandes massas de trabalhadores e

camponeses”. Disse também que pretendia se unir a todas as forças que trabalhavam no Brasil

pela abertura política e pelo processo de redemocratização do país. Em relação à outra

pergunta, a resposta inicia-se com um “Estou de acordo”. Ou seja, concordava que a ação

violenta em política conspirava contra uma democracia. E vai além: “É possível que, vendo o

Brasil através do Nordeste, onde os conflitos eram mais agudos e a miséria mais concentrada,

26

Idem. 27

Idem. 28

Revista Veja. Op. Cit. p. 04.

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eu incorresse em distorções”. Ao apontar na resposta a possibilidade do equívoco em suas

avaliações e ações, Francisco Julião concluía: “nunca reativaria as Ligas”29

.

Em relação à violência, há uma sequência de questões postas pela revista: “Sua

pregação política sempre foi vista como uma incitação à violência30

. E ainda: O senhor

chamaria de resistência heróica os incêndios de canaviais e as invasões de terras, ocorridos

antes de 1964, atribuídos às Ligas Camponesas que o senhor liderava”31

? E por fim: “O

senhor não acha que a experiência das Ligas Camponesas contribuiu fortemente para a

radicalização do processo político no período que precedeu o movimento militar de 1964”32

.

As respostas buscavam, como em outras entrevistas, apresentar o caráter de legalidade

das suas ações: “como político sempre trabalhei dentro da legalidade, […] sempre fui contra

também a invasão de terras”33

, afirmava Francisco Julião, que em relação às Ligas

Camponesas, dizia: “as Ligas Camponesas nunca tomaram a iniciativa de incendiar canaviais

e invadir terras”34

. A ideia de violência nas perguntas era contraposta pela perspectiva da

legalidade. Também o entrevistado procurava afirmar-se como sempre contrário às

radicalizações ocorridas. “Tentei (inúmeras vezes) frear esta radicalização, mas nem sempre

foi possível”35

. A esta resposta, o jornalista contesta: “Sua visita a Cuba em 1961 identificou

as Ligas com a revolução socialista. Neste caso, o senhor não se sente pessoalmente

responsável pela radicalização”36

? As perguntas do periódico constroem uma gradação que

acaba por apresentar uma relação direta entre Francisco Julião e a radicalização no período

pré-1964. Sendo este considerado pelos militares e parte da sociedade civil um dos fatores

responsáveis pelo Golpe civil-militar, então, mais uma vez, Julião estaria identificado a ações

que contribuíram com o processo golpista.

A réplica segue nos seguintes termos: “A radicalização foi fruto da falta de uma

análise mais séria da realidade continental brasileira. Vendo o que ocorreu na América Latina

nestes treze anos que estive no exílio – a implantação de regimes militares e a crescente

penetração das multinacionais -, um político sensato tem que medir muito bem seus passos

para não incidir em novos erros”37

. Francisco Julião reconhecia, apesar de não especificar, a

existência de antigos erros, que não deveriam ser repetidos. Dizia também qual seria seu novo

29

Revista Veja. Op. Cit. p. 04 30

Revista Veja. Op. Cit. p. 03. 31

Idem. 32

Revista Veja. Op. Cit. p. 04. 33

Idem. 34

Idem. 35

Idem. 36

Idem. 37

Revista Veja. Op. Cit. p. 04.

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plano de ação, 14 anos após o golpe de 1964: “seria fundamental unificar todas as forças,

andar com o passo mais moderado e impedir o que veio depois, em março de 1964”38

.

O que estava em disputa nos relatos acima eram os significados a serem emitidos por

essa memória do passado de Francisco Julião dentro da dinâmica do processo de abertura

política e anistia. Ele teria sido o defensor da legalidade e último representante da democracia

pré-golpe de 1964 a cair perante os militares, como assim desejava o próprio Julião e Henfil.

Mas também, o ex-presidente das Ligas Camponesas seria o responsável por conspirar contra

a democracia por meio da radicalização de suas ações, muitas vezes classificadas como

violentas, de acordo com a revista Veja.

Em junho 1979, em Lisboa, ele concede outra entrevista. Desta vez, o depoimento foi

conferido em um encontro com Thereza Cesário Alvim e publicado no Brasil nas páginas da

revista Status do mês de agosto daquele ano. Criada em 1974, o periódico mensal da Editora

Três trazia reportagens sobre política e cotidiano.

Porém, o destaque maior eram as sensuais fotografias de mulheres, que ocupavam

páginas inteiras. Na Edição de n° 61, os leitores puderam ver a cantora Gretchen, considerada

pela Status como a nova estrela da música brasileira. Ela se destacava, naqueles anos finais da

década de 1970, pela sensualidade com que dançava e cantava. Foi contratada pela gravadora

Copacabana e no início da década seguinte ficou ainda mais conhecida no Brasil com a venda

de muitos discos e a participação em programas televisivos de auditórios, bastante

populares39

. Quem quisesse ver as fotos de Gretchen, poderia encontrar também a entrevista

de Francisco Julião.

A revista então misturava matérias de um apelo mais popular com outras, estritamente

políticas, que talvez interessassem a um grupo menor de leitores. Antônio Callado, amigo de

Francisco Julião, era um dos colaboradores da Status. Fernando Morais, que ficou

posteriormente conhecido no Brasil, por seus livros biográficos40

, era um dos repórteres

especiais. O editor assistente era Samuel Wainer, que havia sido dono do jornal Última Hora

e esteve próximo a presidentes do período pré-1964; Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e

João Goulart.

Assim como na reportagem da revista Veja, a Status iniciava seu texto criando uma

memória de quem era o Francisco Julião da década de 1960: “[…] seu nome despertava

calafrios nas senhoras e espasmos nos senhores da nossa melhor sociedade. […] E lá estavam

38

Idem. 39

Revista Status. Agosto de 1979. 40

Pode-se citar: Olga, de 1985, e Chatô, o rei do Brasil, de 1994.

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suas Ligas Camponesas, para alertar os incautos. Eita rapaziada feia, essa que ele tinha o

desplante de fazer marchar descalça sobre a Veneza Brasileira”41

. Partindo desta imagem, que

se mostrava natural pela revista e tomada, mais uma vez, como ponto de partida, procurava-se

investigar quem era o entrevistado depois de 14 anos de exílio. E de início já propunha

mudanças: “[…] é bom que se perca o medo irracional desse homem que é apenas muito

homem, embora esteja parecendo um pouco santo, aos 64 anos de idade”42

.

Do seu lado, Francisco Julião continuava seu esforço de se apresentar novamente ao

Brasil. Mais do que ressaltar as mudanças ocorridas durante o período no México, desejava

quebrar com o sentimento de medo que sua imagem do passado, congelada pela revista,

poderia produzir. Ou seja, investia na elaboração deste passado. Em um trecho da entrevista,

explicava qual seria o significado da frase que ficou conhecida como palavras de ordem dele e

das Ligas Camponesas: “reforma agrária na lei ou na marra”. Dizia ele: “Muita gente

interpretou a palavra ‘marra’ como sinônimo de violência armada. Não é. A ‘marra’, para

mim, era a pressão de massa, era organizar o campesinato, os estudantes, a intelectualidade,

todas as forças progressistas do país – e o grande eleitorado, em suma – para que essa lei fosse

aprovada, para que o interesse nacional prevalecesse no Congresso, finalmente, acima dos

interesses individuais”. A lei, a que se referia, consistia nos projetos de reforma agrária, que,

segundo ele, chegavam ao Congresso Nacional no período pré-1964, mas eram engavetados.

Ao fim, a ideia de “marra” passaria a significar também a mudança por meio da lei,

conseguida com mobilização e pressão social.

Francisco Julião citou, como exemplo, a desapropriação do Engenho Galileia, em

Pernambuco. Segundo ele, foi a partir da pressão de cerca de três mil camponeses, vindos do

interior, e de seis ou sete mil populares urbanos, presentes à Assembléia Legislativa do

Estado, seja nas galerias, seja em seu entorno, que o projeto de lei autorizando a

desapropriação daquele engenho foi aprovado. E finaliza: “A marra é isso, quero repetir

porque muita gente confunde pressão social – um direito legítimo – com violência ilegal”43

.

Da sua frase, talvez, mais conhecida e que provavelmente provocou mais sobressalto e medo

em seus opositores, sobretudo os latifundiários, Francisco Julião desejava apagar qualquer

dimensão de enfrentamento violento e produzir significados de legalidade. Ele reordenava os

significados do passado, ao mesmo tempo em que criava um desdobramento para o futuro. O

41

Revista Status. Op. Cit. p. 20. 42

Idem. 43

Revista Status. Op. Cit. p. 24.

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sentido da frase “Reforma agrária na lei ou na marra” deveria entrar na ordem das novas

estratégias políticas defendidas pelas esquerdas no Brasil.

Pode-se ainda atentar para a seguinte questão: caso Francisco Julião desejasse se

inserir nessa esquerda, que reformulava seus modos de atuação e representava suas ações

armadas do passado como atos extremados de luta pela democracia, haveria de enfrentar outro

obstáculo, já indicado pela Veja; o ex-líder das Ligas Camponesas, segundo a revista, teria

optado pelo uso da violência no momento em que ainda existia uma democracia no Brasil. Ao

contrário de outras organizações de esquerda que escolheram o enfretamento armado contra a

ditadura militar no final da década de 1960 e início dos anos 1970, ou seja, quando não havia

mais nenhuma possibilidade de democracia e o regime militar intensificava a repressão.

Reafirmo não pensar que estes grupos de esquerda lutavam propriamente pelo

estabelecimento de uma democracia, da forma como era dito no final da década de 1970.

Compartilho da argumentação do historiador Daniel Aarão, que mostra como foi sendo criada

uma memória, onde aquela luta transformou-se estritamente em defesa da democracia. Esta

memória circulara em uma sociedade, onde cada vez mais as pessoas não se identificavam

com a ditadura ou com ela não queriam ser identificadas. Ao contrário, crescia o movimento

em que quase todos se apresentavam como resistentes a ela44

. Mas, e Francisco Julião,

acusado de conspirar contra a democracia por meio de sua radicalização, precisaria

transmudar-se em um resistente democrático. Esta era a batalha de suas memórias.

Ainda existem dois outros relatos construídos pelo ex-advogado das Ligas

Camponesas, porém, na década de 1980. Um foi concedido em Recife, em 1982, na forma de

história de vida, a Eliane Moury Fernandes45

, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco. O

outro, de 1983, consistiu em uma entrevista ao jornalista Geneton Morais Neto46

. Esses se

diferenciavam dos anteriores por não estarem marcados pelo momento de volta do exílio e

nem pelo cenário da anistia de 1979. Dialogavam com as novas configurações políticas da

década de 1980 e por isso aparecerão mais nos próximos capítulos.

Em 1982 e 1983, o ex-deputado socialista já desenvolvia uma atuação partidária,

através do PDT, e parecia integrado à vida social do país. A anistia, no sentido de regresso do

exílio, estava garantida. Esses relatos, assim como os anteriores, direcionavam-se para

significar o passado de ação junto aos camponeses, nas décadas de 1950 e 1960. Contudo, na

44

AARÃO REIS FILHP, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. Op. Cit. p. 50. 45

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA. Fundação

Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. 46

Entrevista concedida a Geneton Morais Neto em 1983. Disponível em: <www.geneton.com.br>.

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produção dessas memórias, agora, estavam as estratégias traçadas por Francisco Julião frente

aos grupos políticos e partidários atuantes no processo de redemocratização do Brasil, com

destaque para a retomada das eleições para governadores estaduais em 1982.

Nos dois relatos, por exemplo, sobressaem as críticas do entrevistado ao Partido

Comunista, posicionamento que raramente se percebia no conjunto de depoimentos

produzidos no final da década de 1970. Nestes, evitava-se citar nomes e as críticas a grupos

políticos ou mesmo às pessoas eram, praticamente, inexistentes.

Apesar das diferenças, há um movimento que está presente em todos os relatos

produzidos por Francisco Julião. Seja em 1977, seja em 1983, ele procurava apresentar-ser

como um homem que atuou sempre dentro das margens de uma legalidade, respeitando as leis

e a Constituição. Dizia em 1983: “A imagem que eu gostaria que ficasse – e por ela

continuarei lutando até o fim – é que fui um homem apegado à legalidade”. E continuava: “Eu

utilizava a legalidade para ir, pouco a pouco, unindo e organizando os camponeses. O que

acontece é que toda vez que se une e se organiza o povo, ele próprio vai criando uma

legalidade própria. Quer dizer: a legalidade é rompida pela legalidade, num processo

democrático”47

.

Francisco Julião definia outra legalidade, que não estava apenas no uso das leis,

porque a legalidade era algo que se criava, por meio da mobilização social. Neste caso, os

direitos não pré-existiam, mas eram inventados. Seria próximo ao que Gilles Deleuze chama

de Jurisprudência. Trata-se de lutar e inventar as jurisprudências48

. Ou seja, a lei figurava no

Código Civil, na Constituição, mas os camponeses, organizados e mobilizados, criavam uma

jurisprudência para ela. Ou seja, “a legalidade é rompida pela legalidade”.

A agitação social, tão condenada por setores da população, consistia, segundo Julião,

na criação da legalidade, isto é, na invenção do uso da lei pelo camponês. E esta criação

ocorreria por meio das ações das Ligas Camponesas. Esta era uma das imagens que desejava

para si e para o seu passado. Já lutava por ela nos relatos de 1977, 1978 e 1979. Continuava

batalhando em 1983. As entrevistas foram um de seus instrumentos. Por meio delas, procurou

deslocar ou refazer os significados de palavras como violência, radicalização e agitação.

Buscou quebrar sentidos, que eram dados como naturais, para sua atuação política. Ao final,

como nos diz Antonio Montenegro, “esse movimento de desnaturalizar as palavras revela um

combate, uma luta na história, um desfazer de laços e armadilhas que trazem embutidos o

47

Entrevista concedida a Geneton Morais Neto. Op. Cit. 48

Ver o vídeo O abecedário de Gilles Deleuze. Letra G de Gauche (esquerda).

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controle constante sobre a vida”49

. Francisco Julião batalhava para sair do lugar social do

culpado e radical que pareciam estar reservado para ele naquele processo de redemocratização

do Brasil.

1 - Um plano de assassinato.

No período que antecedeu ao Golpe civil-militar de 1964, o dirigente das Ligas

Camponesas era uma das pessoas mais amada, temida e odiada em Pernambuco e quiçá no

Nordeste do Brasil. Latifundiários e outros setores sociais sentiam-se ameaçados pela

mobilização realizada com os camponeses e pelos discursos radicais de “reforma agrária na

lei ou na marra” proferidos pelo então deputado.

A fim de procurar uma forma de acabar com o que consideravam uma agitação social,

alguns proprietários de terra se reuniram, provavelmente, no final da década de 1950.

Debateram possíveis ações que poderiam ser tomadas em relação a Francisco Julião, que,

cada vez mais, naquele período, conseguia organizar um movimento camponês com crescente

visibilidade no país e até no exterior.

Joseph Page era um estudante norte-americano do curso de Direito que visitou o

Nordeste do Brasil por seis vezes entre os anos de 1963 e 1971. Na sua estada em

Pernambuco, o universitário teve a oportunidade de encontrar e acompanhar o então advogado

das Ligas Camponesas e deputado estadual em várias ações pelo estado. Com as experiências

vivenciadas e os diálogos estabelecidos durante as viagens, além do uso de jornais e revistas,

nacionais e internacionais, Page escreveu o livro “A Revolução que nunca houve: o nordeste

do Brasil 1955-1964”, publicado no Brasil em 1972.

Em um dos seus capítulos, ele narra a realização de uma reunião secreta, com a

presença de vinte latifundiários. A intenção era encontrar um modo de silenciar Julião. A

sugestão, em um primeiro momento, era oferecer dinheiro para ele deixar o Brasil. Um dos

presentes, entretanto, teria ressaltado o perigo do capital ser utilizado para a compra de armas.

Depois de mais algum debate, concluiu-se que a melhor opção seria matar o deputado

estadual. Esta ação seria executada quando ele estivesse discursando na Assembléia

Legislativa de Pernambuco. Escolheu-se o assassino. Quando ele estava dirigindo-se ao local

do crime, segundo Joseph Page, ouviu uma voz que dizia: “não o mate. Não faça isto.” O

matador sempre tinha acreditado no espiritismo e ao receber a mensagem desistiu de

49

MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. Op. Cit. p. 32.

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concretizar sua missão, voltando para casa. No dia seguinte, o responsável pelo pretenso

crime haveria confessado todo o plano a sua vítima. “Julião agradeceu e mais tarde fez uma

lista dos nomes de todos os que tinham estado presentes à reunião clandestina. Deu a lista a

seus assistentes dizendo: ‘Se qualquer coisa acontecer comigo, quero me encontrar com estes

vinte no inferno’”50

.

Na história de Joseph Page estavam alguns dos elementos presentes para o período

anterior ao golpe de 1964; latifundiários desejosos por acabar com as mobilizações das Ligas

Camponesas e o comportamento de Francisco Julião que radicalizava cada vez mais seus

discursos e ações. Ele anunciava que poderiam ocorrer “banhos de sangue”51

no interior de

Pernambuco e também por isso era frequentemente associado ou associava-se às estratégias

que envolviam a violência e o enfrentamento direto com os opositores.

No relato a Aspásia Camargo, em 1977, Francisco Julião recorda esse episódio. O

texto é um pouco longo, mas penso que vale a pena ler na íntegra o que ele disse:

[…] Eles (os latifundiários) se reuniram e disseram: “olhe, a gente tem dois

caminhos. Um é fazer um cheque em branco e dar a esse camarada, para ele

abandonar o Nordeste, ir-se embora, viver em outra parte, no Rio de Janeiro,

em Paris ou em outra parte. A gente dá a ele o cheque em branco, ele enche e

vai embora. Do contrário, o que devemos fazer?” Havia entre eles um jovem

que tinha sido meu colega na universidade e que havia herdado do pai uma

usina e que me conhecia. Ele disse: “Olhe, conheci fulano. Ele era uma

pessoa muito serena na universidade, mas estou seguro de que ele é

incorruptível. Eu proponho que se lhe mate”. Meu colega! Eu não quero dar

o nome dele. Você me permite que eu não dê o nome. Ele está vivo e a gente

pode, amanhã, se encontrar e ainda, quem sabe, fazer uma aliança. Ele disse

isso e os demais disseram: É mesmo. Mas como a gente faz isso?” Ele

respondeu: Nós sorteamos. Não devemos mandar ninguém. A gente se

sorteia aqui”. Eram 20 e se sortearam. Caiu a um cidadão que era da família

Guerra e que tinha sido capitão da Marinha. Ele havia se retirado e se casado

com um elemento da família Guerra, e herdara terras. Rico e bom na pistola,

foi a ele que caiu a tarefa. Agora, como é que eu soube e como é que

escapei? […] Como é que eu sei? Bem, como eu disse a você, eu defendia

muitas causas e era advogado de muitos desquites. Coincidiu que, nessa

época, eu estava defendendo uma senhora de uma família muito importante,

a família Brito, da fábrica Peixe, da usina etc. Então, eu defendia uma

senhora que era casada com um membro da família Brito, porque nenhum

advogado quisera aceitar a causa em Recife. Ela veio a mim, por intermédio

de uma amiga. Essa amiga tinha relações muito estreitas com um desses

senhores. Como amiga íntima da minha cliente, foi a ela e disse: “Olhe, você

avise ao seu advogado que ele está condenado à morte. Eu venho avisar,

porque você fala tão bem dele e diz que ele está lhe defendendo, diz que ele

50

PAGE, Joseph A. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil. 1955 / 1964. Rio de Janeiro: Ed.

Record, 1972. p. 99-100. 51

CALLADO, Antônio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 1960.

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vai salvar uma parte do patrimônio etc”. Então, ela veio à minha casa, muito

alterada, tarde da noite, me explicar: “Olhe, você foi condenado à morte

assim, assim e assim”. Eu fiz um testamento político, dei o nome das pessoas

que estavam na reunião, porque ela me deu os nomes um por um, fiz um

seguro de vida… Eu já estava casado e tinha quatro filhos pequenos. Então

fiz esse seguro de vida, à prova de tudo, porque eu tinha poucos haveres, e

fiquei calado. Se eu fosse denunciar isso publicamente, seria negado e

pareceria que eu estava com medo. O meu negócio era esperar. Havia um

pouco de fatalismo nessa coisa, mas não havia outra saída. Eu peguei todo

esse material, testamento etc., e entreguei a um amigo de minha confiança e

disse: “Olhe, se eu for abatido, você publique isso. Entregue uma cópia à

Ordem dos Advogados do Brasil, outra ao presidente do Tribunal de Justiça,

e a outra você publique na imprensa. Aí está tudo”. Bem, segui. Chegou o

dia em que a sentença seria executada. O encarregado de executá-la tomou o

automóvel dele com o motorista e saiu. Eu devia, nesse dia, falar na Câmara.

Os temas dos discursos dos deputados sempre eram anunciados com

antecedência. No dia anterior, davam-se os assuntos que iam ser falados no

dia seguinte, e a gente tinha que se inscrever antes. Então, ele sabia que eu ia

denunciar uma arbitrariedade cometida contra um camponês de uma

propriedade de um parente dele. O camarada saiu e no meio do caminho, de

repente, disse ao motorista: “volte para casa”. O motorista deu a volta, e ele

voltou. Mais tarde, quando ele estava perto de morrer, fez uma confissão a

uma pessoa que depois veio a mim transmiti-la. Era um escrivão e, como eu

trabalhava como advogado, no Palácio da Justiça, ele veio a mim e disse:

“Olhe, fui muito amigo de fulano, que acaba de morrer, e ele me confessou

isso. Agora, posso contar a você”. E ele me contou que esse senhor havia-se

convertido ao espiritismo meses antes, e havia contado que, quando viajou,

sentiu que algo lhe dizia: “Não mate este homem”. E, por isso, ele regressou.

É interessante esta história, porque revela essas coisas todas que se passam

na vida de uma pessoa. Eu poderia ter sido abatido nesse dia, mas aconteceu

isso. Um dia, talvez, eu possa relatar isso em umas memórias e dar os nomes

de todos, mas não penso em escrever memórias agora, nem nada disso.

Ainda tenho muito o que fazer52

.

Parece surpreendente identificar as similitudes nos desfechos da história escrita por

Joseph Page e da entrevista concedida por Francisco Julião, ao afirmarem que o possível

assassino desistiu do crime por ter escutado vozes. Teria o ex-deputado acessado o livro do

escritor norte-americano para constituir suas memórias? Ou teria a quase vítima fatal contado

a história ao então estudante dos Estados Unidos em passagem pelo Brasil no início da década

de 1960? Essas respostas possivelmente se perderam. Entretanto, as semelhanças ao

indicarem um ponto de encontro entre as narrativas, ressaltam ainda mais as diferenças, que

não defino como contradições, mas como deslocamentos produzidos pela memória.

No relato de memória acima não há qualquer tipo de referência às ações violentas.

Francisco Julião não apresenta a possibilidade, levantada por um dos latifundiários e presente

no livro de Joseph Page, da compra de armas com o dinheiro que seria oferecido ao advogado

52

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV. p. 63-66.

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dos camponeses para ele deixar o país. Não interessaria rememorar que sua ação política antes

do golpe de 1964 foi associada, por diversas vezes, à luta armada e ao enfrentamento.

Por este caminho, entende-se o modo como Francisco Julião narrou a sua atitude ao

saber do plano para seu assassinato. Não foi pedida a morte dos latifundiários, como nos fala

Joseph Page, mas solicitado que os mesmos fossem denunciados na imprensa e seus nomes

entregues à Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e ao presidente do Tribunal de Justiça.

Ou seja, para se contrapor a uma ação violenta, Francisco Julião acionava determinadas

instituições sociais, em um movimento que o aproximaria do discurso de direitos humanos e

de fortalecimento da democracia. Este era um comportamento adequado para o período final

da década de 1970, quando se procurou identificar setores da imprensa e a OAB, como sendo

pontos de resistência democrática53

.

Mas, a narrativa de Joseph Page utilizava imagens produzidas pelo próprio Julião no

período pré-1964. O ex-deputado socialista afirmou em 1962:

Não creio que a redenção da minha Pátria venha das urnas. Nem das elites.

Nem da “família cristã”. Ela virá, sim, e nisso creio firmemente, das massas

angustiadas, do camponês sem terra, do operário sem trabalho […] Não

posso, não devo, não quero participar desta farsa. A não ser para denunciá-

la. É o patriotismo que exige. É o amor aos humildes que me pede. Que tu

participes da eleição já que o povo ainda não reúne a força suficiente contra

essa farsa. O essencial é que não alimente mais a ilusão de que o teu

problema será resolvido na boca das urnas. Por isso, eu te convido, meu

irmão, meu companheiro, meu compatriota daqui deste Morro, desta Vila

Rica do Ouro Preto, em memória de Tiradentes e de todos que trilharem pelo

mesmo caminho […] de todos que viveram pela pátria e souberam morrer

por ela54

.

Este texto integra um manifesto escrito e lido por Francisco Julião, na cidade de Ouro

Preto, por ocasião do lançamento do chamado Movimento de Ouro Preto ou Movimento

Tiradentes. A ideia era principalmente mobilizar os estudantes universitários. Segundo ele,

“era de suma importância ganhar a massa universitária, os estudantes”55

.

Ainda em sua entrevista de 1982, afirmou: “Preparei o manifesto, fui a Ouro Preto

[…] quisemos que Tiradentes fosse o patrono do movimento, mas imediatamente, a POLOP,

a AP, os trotskistas e outras organizações sectárias que atuavam muito dentro das

universidades, trataram de disputar essa ideia. Eu não tinha uma estrutura capaz de poder

53

ARAÚJO, Maria Paula de. Lutas democráticas contra a ditadura. In: FERREIRA, Jorge e AARÃO REIS

FILHO, Daniel. Revolução e democracia (1964…) As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed.

Civilização Brasileira, 2007. p. 334-347. 54

Diario de Pernambuco. 11 de maio de 1962. p. 08. 55

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 54

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contrapor-me a esses movimentos que dominavam dentro das universidades”56

.

O manifesto de 21 de abril de 1962 integrava uma estratégia de ação de Francisco

Julião para fora do meio rural. Ele já havia criado as chamadas Ligas Urbanas para

trabalharem junto à classe operária e também tinha fundado as Ligas dos Pescadores57

. Eram

tentativas de ampliar seu campo de ação política. Apesar de considerar, em seu relato de

1982, como sendo sectárias as organizações atuantes junto aos estudantes, parecia que em

Ouro Preto, 1962, Julião também radicalizava seu discurso ao apontar a possibilidade de se

trilhar o caminho dos que morreram pela pátria.

As eleições como um meio para mudança social seriam uma farsa. Era necessário,

para o então deputado, que ninguém mais alimentasse a ilusão de ter seus problemas

resolvidos através das urnas e estivessem dispostos a trilhar o caminho daqueles que viveram

e também morreram pela pátria. Não se falava em ações armadas, mas se cogitava a

possibilidade da morte como um dos resultados da luta por mudanças sociais. Neste caso a

figura de Tiradentes era apresentada como uma referência. Além disso, em seu manifesto,

Francisco Julião desqualificava a democracia representativa como um caminho para a

promoção de mudanças sociais.

Na entrevista para a revista Veja, em 1978, ele foi questionado sobre o seguinte: “sua

pregação política sempre foi vista como uma incitação à violência”58

, e respondeu:

Antes de mais nada, é preciso conceituar bem a palavra violência. Violência,

para mim, sempre se praticou contra o povo. Violência é a fome, a

mortalidade infantil, a miséria, o desemprego. Essa violência gera o que eu

chamaria de resistência heróica ou legítima defesa, que consiste basicamente

em organizar o povo para resistir à violência, para matar a fome, para

conseguir empregos para todos, para conquistar uma verdadeira liberdade de

participar da vida política. Mas concordo que essa resistência heróica não

deixa de ser uma forma de violência59

.

Francisco Julião admitia o caráter violento de sua ação no período anterior ao golpe de

1964, mas procurava rapidamente ressignificar a palavra violência. Neste movimento ela

transmudava-se em resistência heróica ou legítima defesa e assim passava a dialogar com o

discurso de setores das esquerdas, que começaram, em meados da década de 1970, a

caracterizar suas ações, mesmo as mais violentas, como resistência democrática ao Regime

56

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. 57

Referências citadas por Francisco Julião em entrevista concedida à pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op.

Cit 58

Idem. 59

Revista Veja. 11 de Outubro de 1978. p. 3.

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Militar60

. A imagem do político que desvalorizava o processo eleitoral e tomava Tiradentes

como mártir, no início dos anos 1960, precisava ser modificada, principalmente quando os

resultados positivos do MDB nas eleições de 1974 foram considerados uma vitória da

resistência democrática ao governo militar. Era necessário para Francisco Julião, assim como

já faziam outros representantes das esquerdas, qualificar suas ações como uma forma de luta

pela democracia.

Mas, de volta ao plano de assassinato do presidente de honra das Ligas Camponesas.

Na diferença entre a narrativa de Joseph Page e a de Francisco Julião estava o movimento de

memória utilizado por este para dialogar com discursos e práticas necessários dentro de um

processo de abertura política no Brasil. Julião, efetivamente, ainda não estava certo se voltaria

a seu país por meio de uma anistia. Contudo, nos encontros entre brasileiros que viviam no

exterior e militantes e políticos residentes no Brasil era provável que circulassem essas novas

ideias que ganhavam força no chamado processo de redemocratização61

. E desse modo,

Francisco Julião reconfigurava seu passado, elaborando uma imagem constituída pela opção

da não violência e pelo respeito e valorização das instituições, como OAB e ABI, e,

sobretudo, da democracia. Era com esses signos que ele queria ser identificado. Era com essas

imagens que ele indicava atualizar seu passado, buscando enfraquecer a imagem do radical

político de esquerda.

2 - Houve quem lembrasse, ontem, Francisco Julião.

Em abril de 1996, a notícia da morte de 19 trabalhadores do Movimento dos Sem-

Terra assassinados em Eldorado dos Carajás, sul do Estado do Pará, tomou o Brasil. Os

integrantes do MST realizavam uma manifestação, com o bloqueio de uma rodovia estadual,

para reivindicar o aceleramento do processo de reforma agrária na região, quando foram alvos

de uma violenta ação policial. As mortes ganharam destaque na imprensa nacional e

60

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as reconstruções da memória. In: MOTTA, Rodrigo

Patto Sá; AARÃO REIS FILHO, Daniel; RIDENTI, Marcelo (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta

anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 40. 61

Havia instituições e eventos organizados no exterior que congregavam os exilados e alguns políticos que

militavam no Brasil pela aprovação de um projeto de Anistia. Pode-se destacar o Comitê Brasil pela Anistia –

criado em Paris em 1975 e a Conferência Internacional pela Anistia realizada em Roma, em julho de 1979. É

provável que nesses espaços circulassem as idéias presentes no processo de redemocratização do Brasil e com as

quais os exilados teriam uma maior oportunidade de ter contato. Sabemos que Francisco Julião esteve presente a

Conferência Internacional pela Anistia, realizada em Roma. Ver ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e

radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 246-249.

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150

internacional62

.

No Brasil, intensificou-se novamente o debate em torno da questão agrária. O

presidente Fernando Henrique Cardoso, pressionado pela repercussão dos assassinatos,

recriou o Ministério da Reforma Agrária, extinto em 1990 pelo então presidente Fernando

Collor. Em meio às discussões sobre esse tema que ocupavam parte das páginas dos

principais jornais do país, uma nota nos chamou a atenção. Publicado no jornal O Estado de

São Paulo, o pequeno texto afirmava o seguinte: “Houve quem lembrasse, ontem, Francisco

Julião, que liderou a Liga dos Camponeses [SIC] na década de 60, sob o lema “Reforma

Agrária na lei ou na marra”, bem que poderia ir para o Incra. Hoje, Julião é filiado ao PFL de

Pernambuco”63

.

Primeiro, deve-se ressaltar não ter sido encontrado nenhum registro que confirmasse

essa possível filiação ao Partido da Frente Liberal – PFL. Provavelmente foi um erro do

jornal. Depois, o conteúdo da pequena nota possibilita investigar sobre certa memória que

continuava a ser relacionada a Francisco Julião.

O texto do jornal O Estado de São Paulo atualizava para o leitor, a partir de um

presente de conflitos agrários, uma memória de Francisco Julião, apresentado como o líder

das Ligas Camponesas, que bradava em seus discursos, no início da década de 1960, por uma

“reforma agrária na lei ou na marra”.

Ele também era lembrado para atuar no Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária - INCRA. Neste caso, o ex-deputado ainda associado à questão agrária ocuparia outra

posição. Seria um representante do governo e assim atuaria como mediador nos processos de

desapropriação de terras, por exemplo, ou na prevenção de conflitos como o ocorrido em

Eldorado dos Carajás.

A nomeação para o INCRA não ocorreu. Pode ser que a lembrança do nome de

Francisco Julião tenha se restringido apenas a uma breve conversa nos bastidores de Brasília.

Ou mesmo, a nota do jornal poderia ser uma ironia, visto que sugeria para a resolução dos

conflitos agrários uma pessoa acusada por diversos setores, nos anos 1960, de promover a

desordem no campo. Mas, caso Julião tenha sido cogitado para assumir o INCRA,

promovendo uma nota no Estado de São Paulo, deve-se pensar que ele estava sendo colocado

em uma condição social de negociação entre governo e trabalhadores. A imagem de

62

BARREIRA, César. Crônica de um massacre anunciado: Eldorado dos Carajás. In: Revista São Paulo em

perspectiva. v. 13. n° 4. São Paulo. out.-dez. 1999. Disponível em: <www.scielo.br/scielo>. Acessado em 15 out.

2010. 63

Jornal O Estado de São Paulo. 23/04/1996. p. A6. Fundação Biblioteca Nacional.

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negociador agiria a contra pelo daquela de agitador e incendiário líder de esquerda dos anos

1960, recuperada caso a nota fosse uma sutil ironia. Independente da hipótese escolhida,

pode-se afirmar que foi também esta imagem do político praticante da negociação e da

conciliação que Francisco Julião procurou fazer dominante, por meio de seus relatos de

memória, entre o final da década de 1970 e o início dos anos 1980.

Em uma de suas entrevistas, ele recordou de um conflito ocorrido pouco antes do

Golpe civil-militar de 1964, envolvendo camponeses de engenho e trabalhadores da usina do

município de Barreiros, Mata Sul de Pernambuco. Em seu relato, concedido à pesquisadora

Aspácia Camargo, afirmou:

Realmente, em Barreiros, houve um conflito muito sério. As ligas, como já

lhe expliquei aqui, foram infiltradas, e alguns companheiros chegaram a

sectarizar muito o movimento, utilizando a invasão de terras – como a

invasão das terras de Constâncio Maranhão, de Alarico Bezerra e de outros.

Em Barreiros, certos grupos estavam interessados em criar problemas para o

governo Arraes. Esses grupos estavam vinculados às ligas camponesas.

Meteram-se no movimento e criaram um problema seríssimo com uma

grande massa de trabalhadores do campo, que cortavam cana, a ponto de

jogarem os trabalhadores contra a classe obreira, contra os trabalhadores da

usina. Ameaçaram, inclusive, invadir a usina, destruí-la e liquidar com os

trabalhadores64

.

No início da década de 1960, a mobilização camponesa em Pernambuco era

constituída pelas ações de diversos grupos. Setores do Partido Comunista, da Igreja Católica,

trotskistas e maoístas. As Ligas Camponesas eram um dos maiores e mais destacados

movimento. Entretanto, a sua frágil estrutura orgânica contribuiu para a formação de divisões

e conflitos internos, intensificados a partir de 1963.

Para Joseph Page, neste ano e no início de 1964, “o campo pernambucano” era

caracterizado por uma “confusão maciça”. “A competição era frequentemente do tipo

bizantino: […] padres versus comunistas; versus julião; versus trotskistas, versus maoístas, a

nível local, com várias alianças sendo formadas e dissolvidas em rápida sucessão”65

.

Para Fernando Azevedo, havia uma “unidade de ação tática do movimento social

agrário”66

que foi quebrada com os resultados do I Congresso Nacional de Lavradores e

Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, em novembro de 1961. Como falamos

no primeiro capítulo, convocado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do

64

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV. p. 164-165. 65

PAGE, Joseph A. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil. 1955 / 1964. Op. Cit. p. 190. 66

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 89.

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Brasil – ULTAB –, controlada pelo Partido Comunista, o evento contou com a presença, entre

outras entidades, das Ligas Camponesas, que estavam representadas por uma bancada de 215

integrantes. Apesar da maioria dos 1400 delegados está ligada à ULTAB, a proposta vitoriosa

no Congresso foi a apresentada pelas Ligas, que conseguiram empolgar a platéia com a tese

da reforma agrária radical67

.

O resultado do Congresso de Belo Horizonte contribuiu para uma ruptura entre as

Ligas Camponesas, e mais especificamente seu principal dirigente, e o Partido Comunista. As

ligas passaram a atuar de forma mais independente ou em faixa própria, para usar um termo

empregado por Francisco Julião.

Ainda para Azevedo, a partir do momento que a direção das Ligas incorporou a

experiência da revolução cubana e a teoria de guerra de guerrilhas, a ideia de revolução

brasileira foi reconfigurada. Passou a ser negada a possibilidade de conquistas e mudanças

sociais se não fossem por meio de um confronto mais direto com o bloco industrial-agrário68

.

Essa estratégia de ação não era compartilhada por grande parte do Partido Comunista.

A maioria dos representantes do PCB, uma das principais forças de esquerda no início da

década de 1960, criticava a condição de vanguarda para o campesinato criada pelas Ligas e

por estas não priorizarem o caráter organizacional e legal do movimento rural. Para os vários

comunistas a questão salarial estava sendo subestimada e havia uma valorização de táticas

consideradas “aventureiras”, como as ocupações de terras69

.

Existia também uma disputa por liderança. Ao se considerar os camponeses como

vanguarda da revolução, poderia se estar colocando Francisco Julião nesta posição, pois este

era considerado líder daqueles trabalhadores. Os debates entre Julião e os comunistas

permaneceram e se intensificaram. Em 1962, por meio da imprensa, o deputado socialista

afirmava não entender a união do PC com uma burguesia disfarçada de nacionalista. Os

comunistas Paulo Cavalcanti e David Capistrano, em artigos publicados no jornal A Hora,

questionavam a autoridade que Francisco Julião procurava exercer, com suas declarações, em

relação ao direcionamento das lutas sociais, sobretudo no meio rural. Segundo Flávio

Brayner, a disputa consistia em conseguir se mostrar mais consequente que seus opositores e,

em declarações enciumadas, brigavam por aquilo que entendiam ser a condução da História.

Estava em jogo a construção de uma autoridade, constituída pela capacidade em decidir sobre

67

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 91. 68

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 92. 69

PEREIRA, Anthony. O declínio das Ligas Camponesas e a ascensão dos sindicatos. In: CLIO. Revista de

Pesquisa Histórica. n. 26-2. Programa de Pós-graduação em História / Universidade Federal de Pernambuco.

Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. p. 250.

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os caminhos a serem trilhados pelas lutas sociais no início da década de 196070

.

A atuação do PCB cresceu dentro do movimento rural, a partir de 1962, com a

emissão de novas cartas para criação dos sindicatos rurais. Esta era uma estratégia do governo

João Goulart, efetivada pelo ministro do trabalho, Franco Montoro, que considerava a

organização das Ligas como “quase clandestina”. Para ele, era necessário “assegurar a maior

publicidade para impedir que os sindicatos de trabalhadores rurais se organizem do mesmo

modo que todas essas ligas [camponesas] haviam se organizado”71

. No final do 1° Congresso

Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte, o presidente João

Goulart incentivou os trabalhadores rurais a se sindicalizarem72

. Havia assim uma política

sistematizada pelo governo federal para desestabilizar e promover o declínio das Ligas

Camponesas, estabelecendo limites para o que era considerado aceitável dentro do movimento

rural. Desejava-se também enfraquecer Francisco Julião, que tecia críticas ao presidente e se

afastava de Jango73

.

Em 1963, as Ligas tinham cerca de 80.000 associados no Nordeste e estavam cada vez

mais se isolando politicamente. Faltava-lhes uma organização mais verticalizada, a fim de

promover uma maior coordenação de suas ações. As disputas internas entre os vários grupos

eram crescentes. Um deles formado por ex-integrantes do PCB, por membros do PC do B, da

POLOP e por trotskistas, em 1962, já havia tentado estruturar um campo de treinamento

guerrilheiro em Dianópolis, Goiás74

.

70

BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Partido comunista em Pernambuco: mudança e conservação na atividade

do partido comunista brasileiro em Pernambuco; 1956 – 1964. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1989. p.

90. PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: Ed. UFPE,

2009. p. 108-109. 71

PEREIRA, Anthony. O declínio das Ligas Camponesas e a ascensão dos sindicatos. Op. Cit. p. 251-252. 72

PEREIRA, Anthony. O declínio das Ligas Camponesas e a ascensão dos sindicatos. Op. Cit. p. 251-253. 73

FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. In: ______ (Coord.) João

Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p. 21. 74

Sobre a questão do campo de treinamento guerrilheiro das Ligas Camponesas e a participação de Francisco

Julião ver ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba a luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio

de Janeiro: MAUAD, 2001; SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a esquerda

brasileira e a influencia da Revolução Cubana. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. “Como um

dos principais representantes do movimento camponês no Brasil, Francisco Julião nunca assumiu em suas

entrevistas, na década de 1980, que ofereceu treinamentos de guerrilha para uma possível ação armada. Denise

Rollemberg, em seu trabalho sobre o apoio de Cuba à luta armada no Brasil, afirma que Julião, apesar de

radicalizar cada vez mais suas posições em seus discursos no início da década de 1960, se opôs a facção das

Ligas Camponesas favorável à guerrilha, liderada por Clodomir Morais. Jean Rodrigues Sales, no livro A luta

armada contra a ditadura militar, ratifica a idéia de que Francisco Julião não foi responsável pela tentativa de

organização das guerrilhas. Contudo, ao contrário da análise de Denise Rollemberg, considera que por Julião não

está diretamente envolvido com a organização, não significava que ele fosse contrário à idéia. Para esse autor, a

concepção do dispositivo militar ficou a cargo de Clodomir Morais. Por motivos de segurança as atividades

foram compartimentadas, ficando sob a responsabilidade de Francisco Julião o proselitismo político junto às

massas e desse modo não lhe caberiam a participação nas decisões que diziam respeito à guerrilha”. Citado em

PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964). Op. Cit. p. 115.

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Para Clodomir Moraes, que participou dessa tentativa de organização de guerrilha, as

Ligas Camponesas eram “um grande corpo amorfo que não tem nem esqueleto, nem sistema

nervoso para unificá-lo”. Francisco Julião, por seu lado, admitia que “agitar é uma coisa bela.

O difícil é organizar”75

.

Fernando Azevedo dizia que o isolamento das Ligas “era, sobretudo, produto de uma

atuação tática e uma visão estratégica radicalizante, que se desenvolvia numa faixa própria,

contornando e rejeitando as regras do jogo político então em vigor e que passavam pelos

acordos e pactos mais amplos, tendo como centro de gravidade o Estado populista”76

. Essa é

uma produção analítica do início dos anos 1980. Caracterizava aquele movimento como

radical e afirmava que ele não aceitava qualquer pacto ou acordo com o poder executivo.

Mais que isso, ressaltava que as Ligas não aceitavam as regras do jogo político do início da

década de 1960. Isso também era pensado para seus integrantes e, principalmente, para

aqueles considerados líderes.

Francisco Julião, entretanto, procurou diferenciar bem sua posição em relação aos

companheiros, que afirmava estarem “interessados em criar problemas para o governo

Arraes”77

. No relato de memória citado anteriormente, ele se apresentava como crítico à

sectarização dos grupos que tinham se vinculado às Ligas e agiam por meio da invasão de

terras e da mobilização dos trabalhadores para a destruição da propriedade, dificultando assim

a administração do governo estadual78

. Em 1977, o ex-advogado dos camponeses

ressignificava seu passado informando que o radicalismo e o enfrentamento não era uma

proposta sua, mas de grupos infiltrados no movimento.

Julião vai ainda mais além desta posição. Afirmava que dentro do conflito, ocorrido na

cidade de Barreiros, onde estavam envolvidos trabalhadores rurais, usineiro e os

representantes do Estado, ele foi convocado por Miguel Arraes, governador de Pernambuco,

para resolver o problema, agindo assim como um conciliador.

Viajei até lá pela primeira vez. Anunciou-se que eu ia chegar e que iria haver

uma grande concentração. Então, juntaram-se dez mil pessoas e tive que lhes

falar largamente, explicando bem os problemas e tratando de mostrar que

esse conflito era absurdo, que não podia haver conflito entre um trabalhador

de usina e um trabalhador do corte de cana, que a usina era um patrimônio

que deveria ser cuidado, porque os camponeses não podiam destruir aquilo

que havia sido a obra, o sangue e o sacrifício do tempo dos escravos. Disse

75

PEREIRA, Anthony. O declínio das Ligas Camponesas e a ascensão dos sindicatos. Op. Cit. pp. 254. 76

AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 95. 77

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. 78

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 164-165.

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que eles haviam edificado essa usina e o canavial também (havia ameaça de

pôr fogo no canavial). Eu disse: “Não se pode tocar fogo em um canavial,

porque é como se vocês estivessem tocando fogo em vocês mesmos. Afinal

de contas, bem ou mal, vocês daí tiram um salário para viver”. Isso foi um

discurso imensamente largo, repetindo algumas coisas, para ficar bem na

consciência deles79

.

E continua:

Como essa massa de camponeses era imensa, o conflito tornou-se tão sério

que o próprio governador me pediu para que eu fosse lá tentar amainar. […]

Sim; tratei de conciliar. Arraes me pediu para ir lá, e respondi:

“Imediatamente, Arraes, não há problemas. Vamos conciliar o conflito”80

.

Ao narrar esse passado, no depoimento do final da década de 1970, Francisco Julião

combinava, no painel de sua trajetória, as imagens do negociador e do conciliador. O

advogado das Ligas Camponesas atuava, a pedido do governador, para acalmar os ânimos e

evitar a quebra das máquinas da usina e o incêndio dos canaviais. Eram imagens e narrativas

de si, selecionadas para circularem em uma possível volta ao Brasil.

Ainda na década de 1960, poder-se-ia encontrar alguns acontecimentos, apresentados

na imprensa, nos quais Francisco Julião estaria participando de uma negociação em conflitos

envolvendo camponeses e latifundiários. Quando, em seu relato de memória, ele afirmava que

alguns companheiros infiltrados nas Ligas sectarizaram o movimento, promovendo invasões

de terras, como as de Constâncio Maranhão81

, referia-se, muito provavelmente, à ocupação do

Engenho Coqueiro em julho de 1963.

As terras deste Engenho localizavam-se no município de Vitória de Santo Antão, onde

estava também o engenho Galiléia, desapropriado em 1959 por decisão da Assembléia

Legislativa de Pernambuco – ALEPE – e sancionada, no início do ano seguinte, pelo então

governador Cid Sampaio. Esta deliberação repercutiu na imprensa e contribuiu para que as

Ligas Camponesas e seu principal líder passassem a ser ainda mais conhecidos e, ao mesmo

tempo, combatidos82

.

79

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 165-166. 80

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 166. 81

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. Op. Cit. p. 164-165. 82

Essa narrativa em relação ao Engenho Galiléia dialoga com as produções de: CALLADO, Antônio. Os

industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960; AZEVEDO,

Fernando Antônio. As Ligas Camponesas. Op. Cit.; MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e

Sindicatos Rurais em tempo de revolução. In: ______. História, Metodologia, Memória. Op. Cit. Para os debates

legislativos em torno da desapropriação do Engenho Galiléia ver os Anais da Assembléia Legislativa do Estado

de Pernambuco citados em PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-

1964). Op. Cit. Capítulo 01.

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156

Nessa região, segundo informações dos jornais, entre 150083

e 200084

camponeses

estavam mobilizados na ocupação do engenho Coqueiro. Os trabalhadores rurais, ainda de

acordo com a imprensa, montaram barricadas em lugares considerados estratégicos para

vigiarem as entradas e as saídas da propriedade. Possuíam foices, machados, revólveres e

espingardas85

.

O governador Miguel Arraes, há poucos meses no cargo, passou a negociar

diretamente com os camponeses. No dia 11 de julho de 1963, após dois dias de ocupação,

uma comissão de oito trabalhadores rurais esteve no Palácio do Campo das Princesas, sede do

executivo estadual, para uma reunião. Também se fizera presente o então deputado federal

Francisco Julião. Os camponeses alegaram serem as terras do engenho improdutivas há 23

anos e que mais de 200 famílias teriam sido, paulatinamente, expulsas86

.

Depois de algumas horas de negociações, todos se dirigiram a Vitória de Santo Antão.

Por volta das 17 horas, formou-se uma assembleia. O camponês Manoel Cipriano saudou os

presentes e ressaltou que há anos aquelas terras não eram produtivas, propondo assim a

desapropriação pelo Estado.

No dia anterior, os trabalhadores rurais mobilizados no engenho Coqueiro faziam

questão de exibir suas armas para o fotógrafo do Jornal do Commercio. Existiam várias foices

e machados, instrumentos de trabalho cotidiano, mas também havia algumas espingardas,

revólveres, bacamartes e, ainda segundo o jornal, pistolas tipo Comblain.

No dia 11, as fotografias dos camponeses foram publicadas. Em uma delas, buscava-se

enfocar o aspecto de radicalidade e violência que aquele movimento apresentaria. Como nos

afirma Alberto Del Castillo, a criação de imagens nunca se produz de maneira natural, mas se

realiza em todo momento de acordo com esquemas pessoais e sociais que formam parte de um

código cultural87

.

83

Informação do Diario de Pernambuco, 11 de julho de 1963. p. 01. APEJE. 84

Informação do Jornal do Commercio, Op. Cit, p. 12. 85

Esses dados foram coletados na edição do dia 11 de julho de 1963 Diario de Pernambuco, bem como dos dias

11 e 12 de julho de 1963 do Jornal do Commercio. Há uma fotografia, veiculada pelo Jornal do Commercio, em

que os camponeses apontam seus armamentos, na maioria foices, facões e algumas poucas armas de fogo, para a

lente do fotógrafo. 86

Jornal do Commercio, 12 de julho de 1963. p. 10. APEJE. 87

CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Conceptos, imágenes y representaciones de la niñez en la ciudad de

México, 1880 – 1920. 1 ed. México –D.F.: El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos; Instituto de

Investigaciones Dr. José María Luis Mora, 2006. p. 32.

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157

Fig. 10: Grupos de camponeses que ocuparam o Engenho Coqueiro. Fonte: Jornal do Commercio, 11 jul. 1963.

APEJE

Para o jornal, os camponeses posam em formação de ataque. Vê-se que muitos

apontam seus velhos bacamartes e espingardas para a lente do fotógrafo. Eles poderiam usar

as armas para se defenderem de uma possível ofensiva dos capangas do Engenho Coqueiro,

mas também estariam demonstrando a disposição para um enfrentamento armado na busca

para alcançar seu objetivo, ou seja, a desapropriação do Engenho. Contudo, como diz Alberto

Del Castillo, há esquemas sociais que participam da criação das imagens. Para o leitor do

jornal, aquela fotografia poderia ser vista a partir do lema de Francisco Julião, que ecoava nas

manifestações camponesas naquele ano de 1963: “reforma agrária na lei ou na marra”. Neste

caso, na marra.

Ainda sobre a ocupação daquelas terras, o jornal, que nomeava os camponeses como

sendo um “esquadrão de guarda”, afirmava:

A quantidade de armas, a munição e os mantimentos são considerados

segredos estratégicos, as entradas e saídas vigiadas dia e noite e cada

caminho é bloqueado e ladeado de trincheiras. […] Os invasores em pouco

mais de dez horas ergueram mais de 20 casas de palha e estrutura de taipa. A

vila tomou o nome de João Pedro Teixeira, presidente da Liga de Sapé88

.

A descrição poderia ser lida como uma estratégia de guerra promovida pelos

88

Jornal do Commercio, 11 de julho de 1963. p. 12. APEJE

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camponeses, que homenagearam João Pedro Teixeira, assassinado naquele ano, quando

exercia a presidência da Liga Camponesa de Sapé-PB, uma das maiores em número de

filiados. O texto do Jornal do Commercio apresentava uma narrativa comum a parte da

imprensa em Pernambuco, naquele momento, constituída pela ideia de que por meio da luta

armada, de uma guerrilha rural, as Ligas Camponesas estariam tomando de assalto o estado.

Era nesse código cultural que circulava a fotografia.

No próprio dia 11 de julho, Francisco Julião e Miguel Arraes discursaram na

assembleia formada pelos camponeses no engenho Coqueiro. O objetivo era convencer os

trabalhadores a se retirarem das terras. O governador afirmou que o Estado não tinha

condições financeiras para realizar a desapropriação, mas já havia telegrafado ao Presidente

da República e a Superintendência da Reforma Agrária – SUPRA – solicitando prontas

soluções89

.

No dia 12 de julho, o jornal publicou mais uma fotografia. Agora, representava a

assembleia ocorrida no dia anterior no engenho Coqueiro e focava a presença do governador

Miguel Arraes e do deputado Francisco julião, que lado a lado escutavam um camponês

discursar.

Fig. 11: Arraes e Julião em Coqueiro. Fonte: Jornal do Commercio, 12 jul. 1963.

Talvez a intencionalidade da publicação era mostrar que não havia diferença entre

89

Informações coletadas também no Jornal do Commercio, 12 de julho de 1963. p. 10. APEJE.

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Julião e Arraes, entre o governador e o conhecido líder das Ligas Camponesas, considerado

um agitador social. Estariam na mesma condição de atuação. O jornal fez a opção de publicar

a imagem em que o trabalhador rural falava e os políticos apenas escutavam, mas também

poderia ter escolhido mostrar as fotografias, que devem ter sido produzidas, de quando estes

falaram e aquele escutou.

Com efeito, o texto que funcionou como legenda da imagem acima publicado no

jornal afirmava: “no mesmo flagrante, em que o governador e o deputado se ladeiam […]”.

Em 1977, quando Francisco Julião construía sua memória sobre os conflitos agrários de 1963

em Pernambuco, era a imagem de que ele estava ao lado de Miguel Arraes, negociando

conflitos, dentro da lei, que se desejava fazer aparecer.

Enquanto no dia 11 de julho, o leitor poderia relacionar a fotografia publicada com o

radicalismo dos discursos do presidente das Ligas Camponesas, no dia 12, Francisco Julião

era apresentado na reportagem sem estar textualmente ligado a nenhuma ação ou palavra de

ordem mais radical. Nesta reportagem o jornal deixa circular uma dimensão de que o

deputado socialista também poderia conciliar alguns embates entre trabalhadores e

latifundiários. Essas intervenções conciliatórias, que coexistiam a discursos mais radicais de

reforma agrária “na marra”, eram as que Francisco Julião produzia para o seu passado e

desejava fazer circular já com a entrevista ao CPDOC em 1977. E este posicionamento estava

em concordância com a ideia de que a anistia e o processo de abertura no Brasil visavam

promover a conciliação da sociedade.

3 - A prisão.

Julião foi preso em junho de 1964. No dia do golpe, ele se encontrava em Brasília,

exercendo o cargo de Deputado Federal pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB – em uma

das poucas vezes que foi ao parlamento durante o seu curto mandato. Era pouco assíduo às

sessões plenárias, pois passava quase todo o tempo dedicando-se às ações das Ligas

Camponesas, que naquele momento sofriam forte concorrência dos sindicatos rurais.

Entretanto, no dia do golpe, ele estava no Congresso Nacional e proferiu um discurso que

ficou conhecido, sendo reproduzido em obras sobre a história parlamentar brasileira90

. Dizia o

deputado em 31 de março de 1964:

90

Uma das obras foi Grandes Momentos do Parlamento Brasileiro, lançado em 1998.

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Senhor presidente, senhores deputados, deixo esta tribuna prometendo

ocupa-la mais vezes, pois resolvi que este há de ser para mim o ano

parlamentar; resolvi freqüentar mais esta Casa, porque a minha, no Nordeste,

já está arrumada. Se, amanhã, alguém tentar levantar os gorilas contra a

Nação, já podemos dispor – por isso ficamos no Nordeste o ano todo –

podemos dispor de 500 mil camponeses para responder aos gorilas como os

gorilas quiserem. Na lei, como desejamos; na marra, se eles quiserem.

Estamos com nossa casa arrumada91

.

O deputado federal justificava a sua ausência daquela Casa Legislativa, no ano de

1963, informando aos presentes que estava organizando, no Nordeste do país, 500 mil

camponeses dispostos a enfrentarem o exército, caso este se levantasse, “amanhã”, contra a

nação. A possibilidade da ação dos gorilas iria se realizar horas após o término daquela fala.

A preparada reação dos camponeses, contudo, não ocorreu.

A notícia do golpe pegou o deputado ainda no Congresso Nacional e por lá ele ficou

até o dia 07 de abril, saindo apenas no período da noite para ir ao seu apartamento. Neste

último dia, já circulava a notícia que o Ato Institucional n° 1 estava pronto e seria

promulgado, promovendo a cassação de diversos parlamentares.

A partir desse momento, as informações são bastante imprecisas quanto à trajetória de

Francisco Julião. Sabe-se, contudo, que ele conseguiu sair do Congresso Nacional, já cercado

por tropas do exército, por meio de uma carona oferecida pelo deputado Adauto Lúcio

Cardoso, da UDN, cujo carro era oficial e por isso transitava com um pouco mais de

facilidade92

. No transcorrer da viagem, o deputado udenista teria escrito, na margem de um

periódico, uma mensagem para seu colega de plenário: “Está tudo perdido”93

.

Após sair da Câmara dos Deputados, Julião narra que procurou se confundir com os

trabalhadores da construção civil, muitos inclusive oriundos da região Nordeste. “Viajei a pé

por uma dessas estradas, depois de ônibus até Belo Horizonte. Consegui ficar clandestino

durante uns dois meses, em Minas. Em seguida passei para o Estado de Goiás”94

.

Então, buscou obter recursos financeiros fora do país, para organizar uma mobilização

e uma resistência ao Golpe a partir do “Brasil Central”. Estabeleceu contato com o ex-

governador do Rio Grande do Sul, que estava em Montevidéu, Uruguai95

. Leonel Brizola

havia se hospedado primeiramente no Hotel Lancaster e depois em um apartamento alugado

91

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião: Luta, paixão e morte de um agitador - Coleção Perfil Parlamentar

Século XX. Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, 2001. p. 155. 92

JULIÃO, Francisco. Até quarta, Isabela! Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. p. 27. 93

Essa informação está em um artigo escrito por Francisco Julião para a Revista Siempre!, 02 de outubro de

1974. p. 15. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 94

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 78. 95

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p.78.

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na capital. Daí denunciava a existência de presos políticos e afirmava que havia “mais de

sessenta mil grupos dos 11 no território brasileiro que constituem uma organização

embrionária, mas representam o esforço de organização das forças patrióticas”96

.

Depois do golpe de abril, o diálogo entre Leonel Brizola e o governo cubano parecia

ter se fortalecido. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, era, naquele período de 1964,

dirigente da Ação Popular, organização da chamada esquerda católica. Ele foi enviado a Cuba

como um representante da possível resistência ao golpe que estaria sendo montada em

Montevidéu. Levou uma carta de Brizola a Fidel Castro e teria firmado um acordo militar

para treinamento de brasileiros naquele país97

. Aos poucos, Leonel Brizola parecia ampliar

seu espaço junto ao governo cubano. Tentava criar uma rede de ação fora do Brasil.

Do seu lado, Francisco Julião avistava a diminuição cada vez maior das suas

possibilidades de ação. As Ligas Camponesas havia praticamente desaparecido frente à

repressão dos militares e dos latifundiários. A sua tentativa de obter recursos com o ex-

governador do Rio Grande do Sul, para montar uma resistência no país, tinha sido fracassada.

E, em junho de 1964, na Fazenda Bauzinho, perto da cidade de São Gabriel, município

goiano, ocorreu sua prisão.

Segundo a imprensa, Francisco Julião estava magro, calmo e sorridente. Era conhecido

como Antônio. Apresentava bigode, barba, usava camisa rota, calça de brim, botinas de couro

cru e um chapéu de camponês. Ainda tinha consigo uma bíblia e um rádio transistor, por onde

tentava acompanhar as notícias do país98

.

A Folha de São Paulo caracterizava-o, no episódio de prisão, como sendo uma pessoa

que “se vestiu de atitudes místicas. […] lia a Bíblia para os camponeses na Fazenda Bauzinho

e reafirma seus princípios ideológicos, com a convicção de um fanático”99

.

O jornal apresentava o então ex-deputado como uma pessoa que passou a viver de

modo muito simples, em uma “tapera coberta de palha”, com atitudes místicas de um fanático.

Na clandestinidade, ele teria exacerbado um caráter religioso, que misturava fanatismo e

misticismo, produzindo a imagem de um messiânico.

Em parte, a imagem produzida pela reportagem da Folha de São Paulo foi retomada

pelo próprio Francisco Julião em algumas de suas entrevistas, quando criava uma interlocução

96

Correio da Manhã, 13 de maio de 1964, citado em GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as ilusões

armadas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2002. p. 181. 97

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. Op. Cit. p. 182. 98

Jornal Folha de São Paulo, 05 de junho de 1964. Pasta FJ Jp 1 doc 40. Arquivado no acervo Francisco Julião.

CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 99

Jornal Folha de São Paulo, 05 de junho de 1964. Op. Cit.

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entre movimento camponês e movimentos messiânicos.

Sempre considerei que o movimento camponês não era puramente político e

simplesmente social, tinha um fundo místico, toda herança messiânica dos

grandes movimentos camponeses e sociais da região, que têm como

símbolos, como expressão maior, Canudos100

.

Em sua entrevista de 1982, Francisco Julião produzia um discurso que associava a

experiência das Ligas Camponesas com a de Canudos, as quais envolveram trabalhadores

rurais pobres, no interior da região Nordeste do Brasil, com elementos religiosos, místicos e,

poder-se-ia pensar, com a presença de um líder.

No início da década de 1960, essa associação não era praticada apenas por Julião, mas

também por outros integrantes das Ligas Camponesas. Seus discursos faziam diversas

citações a passagens da Bíblia e a experiência de Canudos, considerando esta como uma

forma política de organização da população rural. Dizia-se então o movimento de Canudos

como precursor das lutas no campo101

. Esse passado, muitas vezes considerado arcaico,

atuaria como uma “força cultural ativa em movimentos sociais e políticos modernos”102

.

Ainda em sua entrevista de 1982, o ex-advogado dos camponeses considerava:

Hoje a história já começa a mostrar a outra face do Conselheiro, que não era

aquele fanático, louco, paranóico, que a gente conhece através das páginas

da história oficial e até mesmo do próprio Euclides da Cunha. Hoje já se está

fazendo um estudo científico, sério, através de investigações mais profundas

dessas figuras que fizeram história e chefiaram grandes movimentos sociais

na região103

.

Neste trecho, o líder do movimento de Canudos, Antônio Conselheiro, era deslocado

das imagens de louco, fanático e paranóico, construídas, segundo Julião, por uma história

oficial ou até mesmo pela literatura de Euclides da Cunha. Desejava-se apresentá-lo como um

líder histórico, afirmando a “existência de estudo científico sério sobre essas figuras que

chefiaram grandes movimentos sociais no Brasil”. Para além de Antônio Conselheiro, quem

seriam as outras “figuras”? Poder-se-ia pensar no próprio ex-presidente das Ligas

Camponesas, que ao aproximar este movimento social àquele do final do século XIX, estaria,

100

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA. Fundação

Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. p. 25. 101

SARZYNSKI, Sara. Ressurecting Canudos and Revolutionizing Jesus: Religous symbols and rural social

activism in Northeasttern Brazil. Paper presented at New York City Latin American History Workshop. 28 jan.

2011. p. 32-33. (mimeo) 102

LOWY, Michael. Eric Hobsbawm, sociólogo do milenarismo campesino. In: Revista Estudos Avançados 69.

Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados. Vol. 24, n° 69, maio-ago. 2010. p. 114. 103

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 26.

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provavelmente, também mobilizando para si a condição de um líder social.

Com isso Francisco Julião responderia àqueles que o considerava louco, fanático,

místico, como o apresentou a Folha de São Paulo, nos anos 1960, ou como o definiria Celso

Furtado, na década de 1980: “um homem sensível, poeta, sujeito a crises psicossomáticas

periódicas, capaz de perder o rumo por influência de uma mulher, mais um advogado

astucioso e brilhante do que um líder capaz de dirigir as massas em ações violentas”104

.

O ex-superintendente da SUDENE ao produzir esse Francisco Julião, atualizando, nos

anos 1980, representações da década de 1960, poderia dificultar a participação do anistiado

em qualquer outra atividade de liderança política. Esse era um tipo de discurso que,

provavelmente, diminuía os espaços nos quais Julião transitaria após seu regresso ao Brasil,

em 1979. A sua luta seria ainda contra a produção dessas imagens, que o classificava como

uma pessoa susceptível a “crises psicossomáticas periódicas”.

De volta ao episódio da prisão, foi por meio de uma denúncia, que a polícia chegou ao

então deputado federal cassado. Em meio a suas tentativas de conseguir recursos com Leonel

Brizola fora do país, Francisco Julião foi denunciado por uma pessoa, que segundo ele, “não

resistiu à tentação”. E ainda sobre o seu delator, afirmava: “na vida de todo homem sempre há

um Judas. Quiseram fazer justiça a esse renegado, mas eu não permiti, porque, em primeiro

lugar, sou contra a pena de morte. Desde muito jovem que minha filosofia foi a de acreditar

que o homem é um ser recuperável. Acredito na recuperação, na regeneração até de

bandidos”105

.

Francisco Julião operava com o discurso do cristianismo, mais especificamente com

elementos da narrativa sobre a vida de Jesus Cristo. A traição e o perdão seriam conceitos que

marcaram a trajetória de liderança do “Messias” cristão e foram utilizados por Julião para se

apresentar. Era algo recorrente o movimento através do qual o ex-deputado aproximava, por

meio da memória, a sua trajetória com a de representantes da religiosidade popular, como

Antônio Conselheiro, ou institucional, como Jesus Cristo. Se por um lado, essa estratégia

tentaria reforçar uma imagem de liderança, por outro, poderia também alimentar os signos de

místico, fanático e messiânico que eram atribuídos a ele.

4 - As permanências e rupturas.

104

FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. 3a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 119.

105 Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA. Fundação

Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. p. 78-79.

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Era manhã em Acapulco, México. Luxuosos hotéis, onde se hospedavam turistas

trazidos de helicópteros para passar férias ou apenas um final de semana, povoavam a

paisagem. Francisco Julião já havia estado aí por duas vezes. Na terceira, foi levado pela

escritora argentina Helena Jordana para uma breve temporada na praia de Pie de la Costa.

Estava um pouco doente, dormindo mal, e acreditava que um banho de mar recuperaria suas

forças106

.

Resolveu enfrentar as fortes ondas que chagavam a praia naquela manhã, pois se

considerava um bom nadador. Iniciou as braçadas e em determinado momento lhe parecia que

as “forças” começavam a abandoná-lo. Em pouco tempo, estava em pleno mar aberto,

enfrentando toda a agitação das águas e quase sem conseguir se mover. O que pensou ao

perceber que sua vida estava em risco? “Posso morrer em qualquer parte do México, menos

em Acapulco. A gente não vai nunca entender porque morri aqui. Ninguém vai saber que Pié

de la Costa é um lugar modesto, que fui trazido por um casal gentil...”107

Tomado pelo medo de morrer em Acapulco, iniciou a luta por sua sobrevivência,

“uma dessas coisas onde se vê a ferocidade do instinto”. O nadador venceu o mar e evitou o

afogamento. Conseguiu regressar a areia da praia, totalmente sem forças108

. E não morreu em

Acapulco.

Esse foi um relato produzido por Francisco Julião na entrevista ao Jornal O Pasquim,

publicada em janeiro de 1978. O quase afogamento pode ter sido um fato imaginado ou algo

narrado com tons mais dramáticos pelo então exilado. Deve-se atentar, no entanto, aos

elementos selecionados nessa narrativa; a possibilidade da morte em Acapulco, que salta

como um “paraíso dos ricos”109

, mesmo o entrevistado afirmando estar em um lugar modesto,

Pié de la Costa.

Ao quase se afogar e afirmar que não poderia morrer naquele balneário, Francisco

Julião estaria acionando o seu passado de político de esquerda, integrante de um dos maiores

movimento de trabalhadores rurais do país: as Ligas Camponesas. Como poderia um agitador

social, como gostava de se definir, que lutava pela reforma agrária, morrer em uma praia de

Acapulco. “A gente nunca vai entender”. A imagem da pessoa que nada em Acapulco,

“paraíso dos ricos”, apresentava-se contrastante a do homem identificado por alguns como um

dos mais perigosos revolucionários no período pré-1964 no Brasil e, em certa medida, na

106

As informações do parágrafo foram extraídas da entrevista concedida por Francisco Julião ao Jornal O

Pasquim. 12 a 18 de janeiro de 1979. p. 15. 107

Entrevista concedida por Francisco Julião ao Jornal O Pasquim. Op. Cit. p. 15. 108

Entrevista concedida por Francisco Julião ao Jornal O Pasquim. Op. Cit. p. 15 109

Definição dada por um dos entrevistadores de O Pasquim.

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América Latina e cuja ação política encontrava-se alinhada com a luta de pobres trabalhadores

rurais.

No final do exílio - a entrevista foi realizada em dezembro de 1977 - a representação

do político de esquerda e líder dos camponeses parecia ainda estar presente para o próprio

Francisco Julião. Um dito revolucionário das massas não deveria morrer em um famoso e rico

balneário de férias.

No mesmo ano de publicação dessa entrevista, 1978, no mês de novembro, um leitor

de outra revista, a Veja, enviou ao seu diretor uma carta com a seguinte opinião: “Sr. diretor:

Muito bem conduzida e oportuna a entrevista com o ex-líder das Ligas Camponesas,

Francisco Julião. Vemos que o tempo não corrompeu suas idéias”110

.

Como havia citado anteriormente, esta entrevista foi publicada na Revista Veja de 11

de outubro de 1978, aproximadamente um ano antes da aprovação da Lei da Anistia e de seu

retorno ao Brasil. A matéria intitulava-se “Nem PTB nem PS – o ex-líder das Ligas

Camponesas pensa em um novo partido dos trabalhadores. Sem os equívocos do antigo PTB,

mas ainda com Brizola”.

O título da reportagem mostrava um Francisco Julião que pensava a formação de um

novo partido e reconhecia erros do passado. De modo diferente da leitura realizada pelo autor

da carta à direção da Veja, a entrevista trazia declarações que procuravam romper com ideias

apresentadas no período pré-1964.

Sobre as Ligas Camponesas, a que o leitor do semanário apresentava Francisco Julião

como ex-líder, o entrevistado afirmou:

a experiência das Ligas Camponesas está superada pelo próprio

desenvolvimento do capitalismo no campo. Hoje eu trataria de fazer uma

campanha no sentido de estatizar as terras para que os camponeses pudessem

se organizar em grandes cooperativas, mas nunca reativaria as Ligas111

.

Ao dizer que as Ligas Camponesas estavam superadas, parece que Julião pretendia

também mostrar que a sua figura, enquanto político e agitador social ligado a este movimento,

também estava superada. Não mais “reativaria as Ligas”, logo não mais reeditaria os seus

ideais e as suas formas de ação daquele período. Isto significaria que não haveria mais a

possibilidade de radicalização política, inclusive porque ele já declarava, referindo-se ao

início da década de 1960: “tentei inúmeras vezes frear esta radicalização, mas nem sempre foi

110

Revista Veja. 08 de novembro de 1978. p. 10. 111

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 04.

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166

possível”112

.

Intentando marcar uma mudança ainda maior, dizia: “não podemos absolutamente

evitar que o capitalismo floresça no Brasil e por esta razão não se pode fazer uma crítica

radical a este sistema capitalista mais maduro”113

. E questionado se uma reforma agrária não

entraria em choque com o sistema capitalista do Brasil, responde: “num regime socialista, a

coletivização de terras é automática, é claro. Mas mesmo num regime capitalista acredito que

é possível fazer grandes unidades coletivas – está aí o exemplo do cooperativismo”114

. E

ainda acrescenta, quando perguntado sobre a perspectiva do socialismo no Brasil:

havendo a possibilidade de regressar ao Brasil, eu não ingressaria num

Partido Socialista. No momento o socialismo, embora não seja utópico, não

é uma perspectiva que me entusiasma. Não quero participar de um partido

que queira instalar o socialismo no Brasil amanhã ou depois115

.

Francisco Julião procurava criar, nestes trechos da entrevista, duas marcantes

diferenciações em relação as suas posturas da década de 1960. Aceitava o desenvolvimento

do capitalismo no Brasil, negando-se a fazer qualquer crítica radical ao mesmo. Rompia com

a possibilidade de participar de um Partido Socialista, do qual foi integrante durante todo o

período em que esteve à frente das Ligas Camponesas. Para ele, não interessava mais a

construção do socialismo no Brasil. Ainda assim, um leitor da Veja, autor da carta, considerou

que o passar do tempo não alterou suas ideias.

Avaliação parecida fez um jornalista do Diario de Pernambuco ao escrever uma

matéria referente ao regresso do famoso exilado a Pernambuco, após 14 anos fora do país.

A diferença maior entre este Julião e o que daqui saiu há 14 anos era a

linguagem tranqüila, a voz quase sussurrante e um discreto sotaque, produto

dos longos anos no exílio. No fundamental, entretanto, parece que Francisco

Julião não mudou: continua pregando graves transformações sociais para

que mude também o pano de fundo de toda a América Latina, hoje

representada pela estagnada massa camponesa116

.

A imagem de Francisco Julião, no final da década de 1970, era então marcada por uma

continuidade do período anterior a 1964, ressaltada tanto pelo leitor da revista Veja como pelo

112

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 04 113

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 06. 114

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 06. 115

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 06. 116

Diario de Pernambuco, 05 de novembro de 1979. p. 01. APEJE.

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167

jornalista do Diario de Pernambuco. Havia uma sobreposição de imagens, entre as que

significavam mudança e continuidade. Julião tentava representar-se mutante, mas o leitor

criava uma contiguidade como apropriação117

, constituída por um passado que também

produzia a leitura de um presente118

. Vejamos a fotografia a seguir:

Fig. 12 – Nem PTB nem PS. Fonte: Revista Veja, 11 out. 1978.

Ela está veiculada na primeira página da matéria da Revista Veja. Foi produzida pela

equipe de jornalistas que foi a Cuernavaca. Ou seja, é uma imagem de dezembro de 1977, que

117

A ideia de apropriação refere-se aos usos e interpretações específicos produzidos a partir de uma

representação. Ver CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Revista Estudos Avançados. v. 05, n°

11, 1991. p. 180. 118

Inspira-me as análises de semelhança e contigüidade entre uma ideia emergente e um estado anterior

apresentadas em BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. 2a ed.

São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 191-196.

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168

desejava registrar o Francisco Julião defensor das novas ideias, aquele que “não guarda

muitos traços do vulcânico deputado do acanhado Partido Socialista Brasileiro, que julgava

dinamitar o regime”119

. Porém, nesta mesma imagem, ao fundo, há um quadro com outra

fotografia. Ela não era de 1977 e representava o ex-deputado federal socialista e presidente

das Ligas Camponesas quando foi preso em 1964.

Este Francisco Julião era o que circulava em alguns trechos da entrevista de O

Pasquim. Em um periódico reconhecido por suas posturas de crítica aos governos militares,

provavelmente a imagem a ser mais ressaltada era a do político de esquerda e agitador social

que não poderia morrer no rico balneário de Acapulco.

Há uma coexistência de temporalidades, imagens e sentidos. Não há um único

Francisco Julião e o seu passado poderia se apresentar resignificado, pelos seus relatos de

memória, ou imobilizado, por opiniões e fotografia, que criavam uma permanência para o

radical dirigente camponês perseguido pela polícia e cassado pelo governo militar.

5 - Bom Jardim, novembro de 1979.

Município do Agreste de Pernambuco localizado a 106 km de Recife, Bom Jardim

estava agitado. Parte da cidade parou suas atividades para receber um visitante ilustre, um

“filho da terra” que regressava depois de alguns anos distante120

: era Francisco Julião ou

Chico, como era mais conhecido, que, beneficiado pela lei da anistia, depois de 14 anos de

exílio, retornava ao local onde havia nascido e vivido sua infância.

Hospedado na Fazenda Espera, pertencente a sua família, logo cedo do dia dirigiu-se

ao centro da cidade, onde percorreu as principais ruas, visitou velhos amigos, conversou com

algumas camponesas e foi à Igreja, na companhia do prefeito José Moreira, integrante do

Movimento Democrático Brasileiro – MDB.

Depois, seguiu para a Cooperativa Mista de Trabalhadores Rurais de Bom Jardim e

para o Sindicato Rural, onde ganhou folhetos de cordel e cumprimentou outros camponeses.

Uma deles era Severina Balbina, que ao identificar o ilustre visitante exclamou: “Menino, é

Chico mesmo que está aqui. Parece até mentira. Você voltou mesmo? Vai trabalhar pelos

camponeses”121

? Ele apenas sorriu.

119

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 03. 120

Recorte do Jornal do Brasil. 08 de novembro de 1979. FJ Jp2 doc. 75. CEHIBRA. Fundação Joaquim

Nabuco. 121

Recorte do Jornal do Brasil. 08 de novembro de 1979. FJ Jp2 doc. 75. Op. Cit.

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169

No final de 1979, diversos signos foram operacionalizados para identificar Francisco

Julião. Ele podia ser ainda o líder dos camponeses, o agitador social, o messiânico, o radical.

As críticas e acusações recebidas e os anos no exílio, contudo, provocaram mudanças. Então

ele podia ser também uma pessoa com a “linguagem tranquila, a voz quase sussurrante e um

discreto sotaque”122

. Seria também o conciliador, o democrata, o legalista ou, simplesmente,

mais um exilado político que retornava ao país.

Francisco Julião constituía-se um e vários, principalmente, por meio da memória, que

se produzia dele e por ele. Ao estudar a sua trajetória, deve-se pensar essa multiplicidade

como um dos fatores que influenciaram e direcionaram o seu processo de reinserção social e

política. Os usos dessa memória indicavam uma luta pelo controle dos significados do

passado, que invadiam o presente da anistia e da redemocratização e tentavam definir as

direções a serem adotadas no processo de abertura e os lugares a serem ocupados pelo

anistiado naquela sociedade.

À pergunta de Severina Balbina, apenas um sorriso. Francisco Julião talvez estivesse

pensando sobre as questões: “Você voltou mesmo? Vai trabalhar pelos camponeses”? Quem

dona Severina via a sua frente? Um homem mais velho, cabelos mais brancos, mais magro.

Entretanto, não era só esta a imagem que se formava diante dela. Talvez enxergasse a do líder

das Ligas Camponesas, associado em vários momentos a radicalizações. Julião sorriu, pois

também poderia ter visto as duas imagens naquele momento. O passado parecia saltar ao

presente.

122

Diario de Pernambuco. Novembro de 1979. APEJE

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170

Capítulo 4 - O retorno dos exilados: anistia e reinserção política

México, outubro de 1978. Francisco Julião seguia escrevendo para a Revista Siempre!.

No dia 25 deste mês, a edição número 1322 do periódico publicou mais um dos seus textos,

com o seguinte título: La Amnistia o es general o no es Amnistia. El pueblo dictará la ultima

palabra1.

O artigo comentava as eleições presidenciais no Brasil, que, por meio do voto indireto,

praticado por um colégio eleitoral dominado pela Aliança Renovadora Nacional – ARENA –,

partido de apoio ao governo militar, elegeu o general João Baptista Figueiredo, em 1978,

como novo presidente do Brasil.

Ele sucedia a outro general, Ernesto Geisel, que, segundo assessores mais próximos, já

havia confessado, desde o início do seu governo, a vontade de ter o então comandante do

Serviço Nacional de Informação – SNI – como seu sucessor. Para Ernesto Geisel era

importante que o novo presidente estivesse comprometido com a estratégia política

desenvolvida por ele e pelo general Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete civil. A ideia

era estabelecer, de modo lento, uma nova democracia representativa no Brasil2.

Mais especificamente, o texto escrito por Francisco Julião foi motivado por uma

reportagem publicada, em 09 de outubro de 1978, no jornal mexicano Excelsior. Intitulado

Amplia Aministia, primera medida que adoptará Figueiredo como presidente, o periódico

transcrevia uma declaração concedida pelo então candidato à presidência sobre possíveis

anistiados: “Estão excluídos [da anistia] por seus compromissos com o comunismo

internacional, Miguel Arraes e Francisco Julião, dirigentes comunistas também exilados3.”

Na Revista Siempre!, o articulista classificou a afirmação de João Baptista Figueiredo

como “irracional” e insinuou que os excluídos estariam atravessados na garganta do general

há muito tempo4. Desde a década de 1950, o então presidente das Ligas Camponesas era

classificado seja pela polícia, seja por parte da imprensa como comunista. Neste período já

existiam algumas declarações suas sobre essa questão. Dizia ele em 1962: “Não sou

comunista, mas no dia em que me tornasse comunista, publicaria uma nota na primeira página

1 “A anistia ou é geral ou não é anistia: o povo ditará a última palavra”. Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978.

n° 1322. p. 42-43. Instituto de Investigaciones Bibliográficas – Hemeroteca Nacional – UNAM, México. 2 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 388-

390. 3 Jornal Excelsior, 09 de outubro de 1978. p. 2A. Instituto de Investigaciones Bibliográficas – Hemeroteca

Nacional – UNAM, México. 4 Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. Op. Cit.

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171

dos jornais, dando conta de minha decisão […] Passando a professar o credo vermelho

procuraria, imediatamente, filiar-me ao Partido”5.

Em 1978, depois de ser acusado de integrar o comunismo internacional, pelas

declarações de João B. Figueiredo no jornal Excelsior, Francisco Julião afirmava:

Agora, o que não sabemos – e isso deveria proclamar o general quase

presidente, já que ele acaba de deixar o SNI para ser candidato – é onde

descobriu o tratado ou aliança que firmamos Miguel Arraes e este inofensivo

advogado de camponeses, com o comunismo internacional6.

Tentava-se deslocar da acusação de ser comunista, informando que o ex-diretor do

SNI, órgão responsável pela coordenação das atividades de informação e contra-informação

na ditadura militar, não apresentou nenhum documento no qual estivesse firmado essa aliança

com os comunistas. Com isso, procurava esvaziar a credibilidade das declarações do futuro

presidente do Brasil. Colocando-se como um “inofensivo advogado de camponeses”, diz, em

outra parte do seu artigo, que desde muito jovem aceitou o marxismo como “um instrumento

de interpretação científica da realidade histórica, econômica e social”7. E completa: “Se para o

general Figueiredo ser marxista significa o mesmo que ser comunista, aqui acabaria a

discussão, parodiando a Cristo: ‘o general não sabe o que diz’”8.

Depois de tentar desqualificar as declarações de João Figueiredo, Francisco Julião

apresentou aquilo que seria sua posição ou seu comportamento, caso fosse anistiado. O

exilado político parecia comprometer-se com o chamado processo de abertura que se

desenvolvia no Brasil.

O general não ignora que o dia em que nos incorporarmos à luta do povo

brasileiro por sua verdadeira independência, não iremos levantar barricadas

nas ruas nem organizar focos de guerrilheiros nos campos, senão tratar de

convencer com a palavra e com o trabalho político, dentro de uma

organização já escolhida, o Partido dos Trabalhadores do Brasil, que se

aspiramos chegar ao socialismo, não existe medicina mais eficiente que

ganhar, palmo a palmo, com paciência, tenacidade e honradez a consciência

de cada cidadão brasileiro9.

5 Jornal do Commercio. 11 de setembro de 1962. p. 04. APEJE.

6 Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. Op. Cit.

7 Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. Op. Cit.

8 Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. Op. Cit.

9 Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. Op. Cit

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172

Negando a possibilidade de desenvolver, após o seu regresso, uma atividade de

guerrilha nos campos ou ações violentas nas cidades, definia sua linha de atuação por meio de

um partido político, que naquele momento ainda era o PTB10

.

Em 1978, a volta para o Brasil não estava assegurada. De acordo com o jornal

Excelsior, o futuro presidente do país, responsável pelo encaminhamento do processo de

anistia, considerava que permitir o regresso de Francisco Julião era algo inviável. Por sua vez,

apesar de rechaçar as afirmações de Figueiredo, o exilado apresentava-se como uma pessoa

que saberia transitar em uma nova dinâmica social e política. Por meio das páginas da

Siempre!, o ex-advogado das Ligas Camponesas dialogava com o próximo presidente, como

se estivesse negociando a sua volta. Mesmo fora do país, indicava estar sintonizado com os

discursos que circulavam acerca da anistia no Brasil.

1 – Anistia.

Brasil, 1970. O Conselho de Segurança Nacional emitia um aviso para o Ministro da

Justiça, Alfredo Buzaid, informando que o Presidente Emílio Garrastazu Médici ordenava o

sumário arquivamento de todo o processo referente ao pedido de anistia das punições

baseadas no decreto-lei n° 47711

.

Este decreto, de 26 de fevereiro de 1969, foi instaurado ainda no governo de Arthur

Costa e Silva (1967-1969) e previa a punição de professores, alunos e funcionários das

universidades públicas acusados de prática de subversão. Os docentes seriam desligados da

instituição de ensino e ficariam proibidos de trabalhar em tal setor pelo prazo de cinco anos.

Já os discentes estariam impossibilitados de estudar em qualquer universidade por um período

de três anos.

Um dos objetivos do decreto era impedir que ocorressem novamente as manifestações

estudantis do ano anterior. Em março de 1969, praticaram-se punições a alunos de várias

universidades do país, sendo muitos impedidos de se matricularem para o ano letivo que se

iniciaria. No primeiro semestre, cerca de mil discentes foram ameaçados ou expulsos das

instituições de ensino superior. Em abril desse mesmo ano, 42 funcionários, em sua grande

10

O projeto de Leonel Brizola, Francisco Julião e outros políticos era, após o regresso ao Brasil, recriar o Partido

Trabalhista Brasileiro – PTB. Contudo, este grupo perdeu a sigla para Ivete Vargas e acabaram por fundar o

Partido Democrático Trabalhista - PDT. Neste capítulo, irei utilizar a abreviatura PTB, enquanto me referir ao

período no qual ainda se dava a disputa entre os grupos. Passarei a usar PDT quando estiver citando o momento

em que o embate já tenha sido resolvido a favor da sobrinha de Getúlio Vargas. 11

Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 3594. Pacote n° 098. Doc. N°

032/72. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

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173

maioria professores renomados de universidades públicas federais, foram aposentados

compulsoriamente, entre eles o sociólogo Florestan Fernandes12

.

Em 1970, o aviso do Conselho de Segurança Nacional enviado ao Ministro da Justiça

trazia em anexo uma exposição de motivos anteriormente apresentada ao Presidente da

República. Nela afirmava-se que o decreto-lei n° 477 estava cumprindo suas finalidades no

combate a subversão dentro da área educacional e sentenciava: “parece, pois, inconveniente a

reformulação da política até agora mantida pelos governos da Revolução, pela qual não se tem

concedido anistias, nem se procedido à revisão de punições impostas pela prática de ilícitos

políticos previstos no referido decreto-lei”13

.

O parecer, que revogava enfaticamente qualquer possibilidade de anistia ou revisão de

punições, foi assinado pelo Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, o general

de brigada João Baptista Figueiredo.

No decorrer da década de 1970, a discussão sobre a anistia no Brasil se intensificou

entre os setores da sociedade civil e do governo militar. Nesses dez anos, João Figueiredo

tornou-se chefe do Serviço Nacional de Informação – SNI – e depois Presidente da República.

Neste momento, o general e agora chefe do executivo federal se encontrou novamente com a

questão da anistia. Nos primeiros meses do seu governo, ele enviou ao Congresso Nacional

um projeto de anistia, em acordo com a estratégia de distensão iniciada pelo seu antecessor,

Ernesto Geisel. Era preciso, entretanto, definir como se operacionalizaria a anistia e a quem se

concederia.

A questão não se restringia a volta de exilados, como Francisco Julião, Gregório

Bezerra e Leonel Brizola. Estava em jogo a definição dos espaços políticos a serem ocupados

pelos que regressariam ao país, bem como pelos setores da sociedade civil mobilizados em

torno dessa luta. A anistia deveria ser bem encaminhada para garantir o caráter lento, gradual

e seguro do processo de abertura política proposta pelo governo.

O debate sobre a anistia dizia das regras e do funcionamento de uma sociedade que se

anunciava como operando a abertura política de um regime ditatorial. Impunham-se

interdições e faziam-se exigências para as pessoas que desejassem se inserir nessa nova

ordem, como dizia o presidente João B. Figueiredo. Nem todos tiveram acesso a ela14

.

12

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009. p. 183-185. 13

Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 3594. Pacote n° 098. Doc. N°

032/72. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 14

Para Maria Helena Moreira Alves o governo do Presidente Figueiredo iniciou a chamada política de abertura,

que a autora afirma ser a terceira etapa da institucionalização do Estado de Segurança Nacional e dava

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Já durante o governo do general-presidente Ernesto Geisel foram criados movimentos

da sociedade civil que começaram a organizar e impulsionar a campanha pela anistia. Em

1975 surgiu o Movimento Feminino pela Anistia e dois anos depois ocorreram os Dias

Nacionais de Protesto e Luta pela Anistia. Formaram-se também os Comitês Primeiro de

Maio pela Anistia e em 1978 instituiu-se o Comitê Brasileiro pela Anistia15

.

Os CBA’s passaram a defender uma anistia ampla, geral e irrestrita, mas também

incorporaram o discurso dos direitos humanos, realizando as reivindicações dos familiares de

mortos e desaparecidos durante o governo ditatorial. Exigia-se a punição aos torturadores e o

fim dos aparelhos de repressão. Procurava-se rechaçar uma proposta de anistia marcada por

uma perspectiva de conciliação16

.

Ainda em 1978, o governo militar se defrontou com a notícia de que três mil exilados

se preparavam para retornar ao Brasil. Diversos jornais anunciavam esse regresso, que se

apresentava como uma ousada estratégia da oposição. O retorno em grandes grupos, de

aproximadamente 500 pessoas com passaportes concedidos pela Organização das Nações

Unidas – ONU –, promoveria uma melhor adaptação aos que chegariam depois de anos de

exílio, bem como criaria uma repercussão internacional frente à opinião pública. Esse efeito

colocaria o Brasil em evidência e alguns integrantes do movimento pela anistia acreditavam

que isso evitaria a possível repressão do governo militar aos retornados17

.

continuidade à política de distensão iniciada por Ernesto Geisel, constituída pela ideia de uma democracia forte.

Segundo Maria Helena, a política de abertura estabelecia uma liberalização, planejada e controlada, que permitia

uma maior participação social e política de setores da população até então excluídos e procurava definir qual

oposição era aceitável e qual era intolerável. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-

1984). Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005. Ver parte 2 do livro. Deve-se, contudo, estar atentos para se pensar

como essa maquinaria funcionou e como se deu a participação da oposição nela, seja validando-a, em certos

aspectos, seja enfrentado-a e abrindo novos espaços. É nessa maquinaria que Francisco Julião vai buscar se

inserir após regressar do exílio. 15

FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão aos torturadores”.

Disponível em: <http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/Torturadores.pdf>. O livro de Carla Rodeghero, Gabriel

Dienstmann e Tatiana Trindade constrói uma importante análise sobre os posicionamentos desses grupos em

relação à anistia na segunda metade da década de 1970. Mostra a presença inicial de um discurso de conciliação

da nação e depois a incorporação de pronunciamentos mais duros e críticos ao governo militar e a sua proposta

de Anistia de 1979. Ver Anistia ampla, geral e irrestrita: História de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul,

EDUNISC, 2011. 16

TELES, Janaína de Almeida. As disputas pela interpretação da Lei de Anistia de 1979. In: Revista Idéias.

Campinas – SP. n° 01, nova série. 1° semestre, 2010. p. 72-93. Ver também GRECO, Heloísa Amélia.

Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2003. RODEGHERO, Carla;

DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: História de uma luta

inconclusa. Op. Cit. Ver capítulo 2. 17

Sobre essas notícias na imprensa ver: Jornal da Tarde, 04 de julho de 1978; Jornal do Brasil, 12 de julho de

1978; Semanário Em Tempo, 17 a 23 de julho de 1978. Cópias desses jornais constituem o dossiê intitulado

Retorno de três mil exilados, de 25 de julho de 1978. Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça

/ DSI-MJ. Caixa 3412. Doc. N° GAB 100594. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

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175

A movimentação dos exilados era intensa. O Comitê Brasil pela Anistia, fundado em

Paris no ano de 1975, coordenou, com o apoio da Liga Internacional dos Direitos e Libertação

dos Povos, do Comitê de Solidariedade do Povo Brasileiro Genebra e do Comitê França-

Brasil – Paris –, a organização da Conferência Internacional pela Anistia Ampla, Geral e

Irrestrita e pelas Liberdades Democráticas no Brasil. O evento, que ocorreu em Roma, no

Parlamento italiano, entre os dias 28 e 30 de junho e 1° de julho de 1979, recebeu o apoio da

Prefeitura de Roma e da Administração da Região do Lazio18

.

A conferência desejava criar uma mobilização internacional de apoio à luta pela

anistia no Brasil. Participaram delegações de 13 países, além da italiana e da brasileira.

Jornalistas, políticos e intelectuais, como Noam Chomsky e Gabriel Garcia Márquez também

estiveram presentes. Do Brasil, foram convidados representantes de diversos setores sociais

sintonizados com a ideia de uma anistia ampla. As reuniões preparatórias convocaram

parlamentares do Movimento Democrático Brasileiro – MDB –, representantes de sindicatos

de operários, da Comissão Pastoral da Terra, da Associação Brasileira de Imprensa e da

Ordem dos Advogados do Brasil. Além disso, integrantes da Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil – CNBB – e alguns estudantes estiveram presentes aos debates19

.

Na noite do dia 29 de junho de 1975 ocorreu uma mesa de debates intitulada

“Conjuntura política no Brasil”, formada apenas por exilados: Apolônio de Carvalho,

Hércules Correa, Manoel da Conceição, Diógenes de Arruda Câmara, Márcio Moreira Alves e

Francisco Julião. Estes dois últimos juntamente com Gregório Bezerra, que também esteve

presente à conferência, eram “considerados definitivamente indesejáveis pela ditadura militar,

formalmente impedidos – através de ordem expressa do Itamarati às embaixadas – de obter

passaporte ou título de nacionalidade e proibidos de entrar no território nacional”20

.

Alguns desses exilados, mesmo com a impossibilidade de conseguirem o passaporte

do Brasil, obtinham autorizações de viagens dos países onde viviam, como era o caso de

Francisco Julião. Assim, participavam dos encontros e conferências, nos quais interagiam

com políticos, religiosos, advogados, intelectuais e jornalistas do Brasil, além de

representantes da comunidade internacional que atuavam no campo de defesa dos direitos

humanos.

18

GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Op. Cit. p. 204-205. ROLLEMBERG,

Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 248-249. 19

GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Op. Cit. p. 207-209. 20

GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Op. Cit. p. 213.

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176

Em Roma, várias correntes políticas e sociais estavam representadas. Entre os

exilados, havia aqueles que deixaram o país após o golpe civil-militar de 1964 e os que saíram

no final da década de 1960 e início dos anos 1970. Além disso, entre os residentes no Brasil,

havia militantes de diferentes movimentos de oposição à ditadura militar.

As trocas de experiências e de informações entre esses diversos grupos eram

importantes para a avaliação e definição política dos rumos da luta pela anistia. Existiam,

contudo, uma multiplicidade de posições, que ora se aproximavam e ora se afastavam. Ainda

assim, o resultado final da Conferência Internacional de Roma parecia apresentar uma tênue

síntese, representada na ideia, exposta no documento final, de oposição à proposta de anistia

do governo militar e contínua luta por uma anistia ampla, geral e sem restrições21

.

Os grupos políticos de exilados brasileiros conseguiam articular uma amplitude para

as suas críticas ao Regime. O Comitê Brasil pela Anistia denunciava um possível papel de

destaque desempenhado pelo Brasil na expansão dos regimes ditatoriais na América Latina.

Criticava ainda os investimentos de empresas francesas no país e afirmava que essas relações

representavam o apoio de uma democracia ocidental a uma ditadura militar22

.

Em 1975, o Brasil tinha sido condenado pelo crime de genocídio na segunda sessão do

Tribunal Bertrand Russell II, ocorrida em Bruxelas. Esta foi uma iniciativa do jurista e

senador italiano, pelo Partido Socialista Independente, Lélio Basso. Inspirou-se em outro

tribunal formado em 1966 por Bertrand Russel para julgar os crimes praticados pelos Estados

Unidos no Vietnã. Este Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra ficou conhecido

como Tribunal Bertrand Russell e Lélio Basso, relator do primeiro júri, promoveu uma

reedição, com sessão inicial em 1974, a fim de mobilizar a opinião pública internacional para

o que estava sendo praticado pelos governos militares na América Latina23

. Neste mesmo ano,

o Brasil também foi condenado, em termos diplomáticos, na Comissão Interamericana de

Direitos Humanos – CIDH – da Organização dos Estados Americanos – OEA – pela prática

de violação dos direitos humanos24

.

Os Estados Unidos também começavam a se mover por uma crítica mais visível ao

Brasil. Em 1977, o Departamento de Estado preparou um relatório25

, no qual apontava a

21

O documento foi publicado no Jornal Folha de São Paulo. Ver também GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões

fundacionais da luta pela anistia. Op. Cit. 22

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Op. Cit. p. 247-248. 23

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Op. Cit. p. 233 e 243. 24

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Op. Cit. p.

305-306. 25

A confecção do relatório atendia às disposições da emenda de 30 de junho de 1976 à Assistência Externa de

1961, aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos e que propunha a exclusão de ajuda de segurança para os

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existência da tortura e da censura, apesar de considerar que teriam ocorrido melhoras, durante

o governo de Ernesto Geisel, no tratamento dos presos políticos e a diminuição no controle da

imprensa. Além disso, diversos jornais norte-americanos, como The New York Times,

intensificavam as denúncias sobre a prática de tortura no Brasil.

A tensão criada nas relações entre Brasil e EUA relacionava-se também com fatores da

chamada política de Assistência Militar. Depois do relatório de 1977, o presidente Ernesto

Geisel decidiu recusar um crédito de 50 milhões de dólares oferecido pelos EUA para a

compra de armamentos norte-americanos, apesar de outros acordos militares de longo prazo

terem sido mantidos26

. Contudo, o acordo nuclear firmado entre o Brasil e a Alemanha

Ocidental foi o que provocou maior insatisfação aos americanos27

. A crítica dos EUA ao

governo brasileiro se intensificou28

.

Com manifestações de rua que se espalhavam pelo Brasil, ameaça do regresso de

milhares de exilados antes da aprovação de qualquer lei de anistia, greve de fome de presos

políticos e uma constante pressão internacional, iniciou-se o governo de João Baptista

Figueiredo.

O novo presidente tomou posse em março de 1979 e três meses depois encaminhou

um projeto de anistia para o Congresso Nacional. A proposta do governo beneficiava os

considerados responsáveis por crimes políticos e seus crimes conexos. Estavam excluídos,

porém, os condenados por prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Do

modo como foi apresentado, o projeto acabava por favorecer também aos torturadores, cuja

ação poderia ser enquadrada na ideia de crime conexo ao político – “É concedida anistia a

todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 31 de dezembro de

países que violassem os direitos humanos. Determinava também que o Departamento de Estado elaborasse um

relatório anual sobre os países que recebiam esse tipo de ajuda. Ver GREEN, James N. Apesar de vocês:

oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Op. Cit. p. 448. 26

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Op. Cit, 27

O Presidente Ernesto Geisel assinou, em 1975, um contrato com um consórcio germânico para fornecimento

de reatores e tecnologia. As dificuldades impostas pelos Estados Unidos em transferir tecnologia nuclear para o

Brasil e a limitação no fornecimento de urânio enriquecido teriam feito com que o Brasil escolhesse a Alemanha

Ocidental como um novo parceiro para esse assunto. Para Ernesto Geisel, a pressão exercida pelos EUA em

virtude da mudança, que envolvia acusações de proliferação nuclear, criou a possibilidade da prática de um

discurso nacionalista, de independência do Brasil em relação aos norte-americanos. A grande maioria da elite

política, incluindo alguns integrantes do MDB “moderado”, estava satisfeita com a imagem de um Brasil

soberano produzida pelo governo militar. Se por um lado avolumavam-se as críticas em relação aos direitos

humanos, por outro Ernesto Geisel ganhava maior força política com um discurso nacionalista. SKIDMORE,

Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Op. Cit. p. 375-385. 28

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil,

1974-1985. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil republicano. O

tempo da ditadura militar: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol. 4. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2009. p. 252.

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1978, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. O governo militar falava em uma

“anistia recíproca”29

.

Ocorreu uma grande cerimônia para a apresentação do projeto da Lei da Anistia, como

ficou comumente conhecido. Em 27 de junho de 1979, o texto foi encaminhado pelo

presidente ao Congresso Nacional em ato transmitido em rede nacional de rádio e televisão.

Nesta ocasião, afirmou Figueiredo:

Tenho a consciência tranqüila de haver elaborado o melhor projeto para a

época atual. Por ele, podem os brasileiros ver que a minha mão sempre

estendida em conciliação não está vazia. Nunca esteve. Espero ver os

anistiados reintegrados na vida nacional. E que, isso feito, saibam, possam e

queiram participar do nosso esforço em prol dos ideais que – sendo os da

revolução de 1964 – são os de toda a nação. […] É dentro dessa premissa

que recebemos os anistiados. A anistia tem justamente este sentido: de

conciliação para a renovação30

.

A reação contrária ao projeto foi imediata por parte de alguns setores, como o Comitê

Brasileiro pela Anistia, Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos e grupos de defesa dos

direitos humanos. Mas, a ideia de reciprocidade da anistia parecia não receber tantas críticas

em outros setores da oposição. O então deputado Pedro Simon (MDB-RS) “falava em

esquecimento recíproco dos que agiram e dos que sofreram”31

, muito próximo do que também

defendia o general Peri Bevilacqua, aposentado do cargo de ministro do Superior Tribunal

Militar – STM –, por força do Ato Institucional n° 5. Peri Bevilacqua tinha se constituído em

uma figura de destaque no movimento de oposição ao regime militar, tendo sido um dos

convidados especiais para o lançamento do CBA, seção Rio de Janeiro.

O projeto seguiu para o Congresso Nacional, onde foi debatido e tramitou em uma

comissão mista, cujo relator foi o deputado Ernani Satyro (ARENA-PB). Era necessário para

o governo que os trabalhos fossem dirigidos por uma pessoa de extrema confiança, com

habilidade política para dialogar com a oposição, mas que garantisse a manutenção da

proposta original do governo.

Os debates e as negociações ocorridos na comissão mista mostram a complexidade dos

significados e dos usos da Lei de Anistia no Brasil32

. Apesar da intensa crítica ao que ficou

29

TELES, Janaína de Almeida. As disputas pela interpretação da Lei de Anistia de 1979. Op. Cit. 30

Jornal do Brasil, 28 de junho de 1979. p. 03. Fundação Biblioteca Nacional. 31

FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão aos torturadores”. Op.

Cit. 32

Para essa análise nos apoiamos em algumas considerações e documentos apresentados pelo professor Carlos

Fico em seu artigo, já citado nesse capítulo, intitulado A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o

chamado “perdão aos torturadores”. Op. Cit.

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conhecido como o perdão aos torturadores, houve algumas manifestações de representantes

dos grupos de oposição que, se não concordavam com a inclusão dos acusados de tortura,

aceitavam o projeto de anistia como foi apresentado pelo governo militar.

O deputado Ulysses Guimarães, presidente do MDB, recebeu pedidos para a

aprovação do projeto. O Instituto de Advogados Brasileiros encaminhou um parecer ao

político, no qual afirmava:

Por mais que repugne à sensibilidade humana […], por se considerar que a

ideia de anistia implica num esquecimento total, é de se concordar com a

menção expressa do citado parágrafo 1° […]. Se a anistia deve ser, como

exige o presente momento histórico, ampla, geral e irrestrita, deve também

abranger todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos

no processo de exacerbação de ânimos33

.

O projeto tramitou e recebeu inúmeras propostas de emendas, sendo 209 do MDB.

Mas, ao final, foi aprovado o substituto apresentado pelo relator Ernani Satyro, que promovia

poucas alterações no projeto inicial. Pode-se ressaltar a ampliação da data limite de

abrangência da anistia, que passou de 28 de dezembro de 1978 para 27 de junho de 1979. O

parecer do relator foi aprovado pelo previsível placar de 13 votos a favor contra 8 dos

parlamentares do MDB.

No plenário do Congresso Nacional, o MDB tentou outra estratégia. Apoiou o

substitutivo de Ernani Satyro, aprovado com os votos simbólicos das suas lideranças na

Câmara, Freitas Nobre, e no Senado, Paulo Brossard. Mas, em seguida, requereu a votação da

emenda de Djalma Marinho, ARENA-RN, que mantinha os benefícios para os torturadores,

mas incorporava ao projeto do governo aqueles que tinham sido excluídos, ou seja, os

acusados de praticarem crimes de terrorismo, sequestro e assalto a bancos. Acreditavam os

emedebistas que por ser uma proposta oriunda de um representante do partido da base do

governo, haveria uma sensibilidade maior entre os arenistas. A estratégia do MDB ainda

conseguiu o apoio de 14 integrantes da ARENA, mas o projeto foi derrotado na Câmara.

Recebeu 206 votos contrários e 202 a favor34

.

Sobre a Lei de Anistia aprovada, afirmou o deputado Roberto Freire do MDB de

Pernambuco: “não é aquela que a nação quer, não é aquela que a nação, um dia, talvez bem

33

Correspondência de 15/08/1979. Arquivo Ulysses Guimarães. Documentos sobre a lei de anistia CPDOC. UG

cd 1979.03.29. Citado em FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão

aos torturadores”. Op. Cit. 34

Para mais detalhes do processo de votação, ver GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta

pela anistia. Op. Cit. Capítulo 8 e TELES, Janaína de Almeida. As disputas pela interpretação da Lei de Anistia

de 1979. Op. Cit. p. 72-93.

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próximo, irá conquistar. Mas essa conquista ninguém há de tirar das forças democráticas deste

país”35

. Parte do MDB e da oposição ao regime militar passaram a apresentar a anistia como

uma conquista. Mesmo não estando à frente do movimento pela anistia no Brasil, os

emedebistas procuraram capturar para si o capital político de uma “conquista”. Por outro lado,

o governo buscou ganhar apoio da opinião pública como sendo o promotor daquele

considerado benefício. Os militares tentavam responder as pressões e as críticas colocadas

pela campanha da anistia e pelas reivindicações dos movimentos de direitos humanos. Havia

ganhos e perdas de todos os lados. Era uma negociação.

O MDB necessitava se fortalecer politicamente, porque sabia que a aprovação do

projeto de lei iria permitir a volta ao Brasil de importantes políticos de esquerda: Luiz Carlos

Prestes, Miguel Arraes, Gregório Bezerra, Leonel Brizola e Francisco Julião, entre outros. Os

militares, mesmo não sendo simpáticos ao regresso desses exilados políticos, acreditavam que

a volta promoveria na oposição, principalmente no MDB, cisões, as quais seriam reforçadas

pela volta do pluripartidarismo. Segundo Thomas Skidmore, “o governo tinha que romper a

unidade oposicionista”36

.

Há outra questão a ser ressaltada nesse processo de anistia. A oposição sabia que o

governo militar, de qualquer maneira, desejava garantir aos seus envolvidos em atos

arbitrários – torturas e assassinatos, por exemplo – a condição de não serem punidos. Ao

participar da aprovação do projeto do governo, o MDB assegurava esta condição. E, se

criticava o projeto de anistia e reconhecia seu caráter parcial, também o apresentava como

uma vitória, um avanço democrático. A ordem a ser praticada, como dizia João B. Figueiredo

na mensagem enviada ao Congresso Nacional, era de conciliação de interesses, até porque

parte da oposição já havia entendido que necessitava dos militares para continuar no processo

de abertura37

.

O discurso do presidente da República, ao enviar o projeto de anistia para o Congresso

Nacional, desejava definir o funcionamento daquele período de transição. A ideia de

conciliação estabelecia o limite, a regra para aquela transição política. Os parlamentares ao

35

Congresso Nacional. Comissão Mista sobre Anistia. Anistia. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal,

1982. v. 2. p. 625. Citado em FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão

aos torturadores”. Op. Cit. 36

O projeto de reforma partidária foi enviado em outubro de 1979 ao Congresso Nacional, sendo a lei aprovada

no mês seguinte. No final daquele ano, novos partidos começaram a surgir no Brasil, criando o pluripartidarismo

e extinguindo as sigla ARENA e MDB. Contudo, segundo Skidmore, a estratégia do governo, defendida

principalmente por Golbery, consistia na dissolução do bipartidarismo, “mas preservando as forças do governo

em um único partido (presumivelmente com novo nome)”. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a

Tancredo. 1964-1985. Op. Cit. p. 427. 37

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Op. Cit. p. 426.

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votarem o projeto de lei n° 6683/79 estavam concordando com os termos da negociação e as

suas críticas a proposta do governo pareciam não criar algo fora do discurso de conciliação.

Aos que regressavam do exílio e desejavam a reinserção política, era necessário

entender esses limites. A conquista de espaços para a atuação dentro do processo de

redemocratização passava por um diálogo com os militares, mas também com grupos de

oposição que já negociavam e definiam seus lugares na transição política do Brasil.

2 – Regresso.

México, 1979, algumas semanas após o presidente João Figueiredo apresentar ao

Brasil e enviar ao Congresso Nacional o projeto de anistia, Francisco Julião declarava à

imprensa que retornaria ao seu país “sem perda de uma hora: no dia em que a anistia for

votada pelo Congresso”38

. Afirmava, contudo, que os congressistas deveriam eliminar o

parágrafo 2° do artigo 1° para que todos fossem contemplados pela lei, incluindo assim os

condenados pelos crimes de terrorismo, sequestro e assalto a banco39

. Ao contrário, outro

exilado, o professor Mário Echemberg, aposentado da Universidade de São Paulo, dizia não

admitir ser anistiado por uma lei como a formulada pelo governo militar.

Na reportagem em que foram apresentados os posicionamentos acima, o Jornal do

Brasil também publicou algumas declarações de Gregório Bezerra, exilado na União

Soviética40

. Para ele, o que o general João Figueiredo havia proposto foi “um projeto de

anistia manga de colete. Não é um projeto de anistia total, irrestrita, que o Governo tem a

obrigação de decretar realmente”. O político comunista, entretanto, apresentava este mesmo

projeto como uma vitória “da luta dos patriotas do Brasil”, como “um passo a frente ou uma

porta que se abre”. Abria-se inclusive para ele, como uma oportunidade para que se

“recomece tudo de novo”. Gregório Bezerra queria regressar ao Brasil e retomar a luta

exatamente de onde parou. Não havia concessões, nem mudanças, segundo ele. “Porque

38

Jornal do Brasil. 02 de julho de 1979. 1° caderno. p. 02. Fundação Biblioteca Nacional. 39

Jornal do Brasil. 02 de julho de 1979. Op. Cit. 40

Destacado integrante do Partido Comunista, ele organizou e esteve a frente de um dos maiores sindicatos

rurais de Pernambuco no início da década de 1960, no município de Palmares, Zona da Mata Sul do Estado.

Exilou-se na União Soviética depois de passar pelo México, integrando o grupo de presos políticos brasileiros

libertados, em 1969, como condição imposta para o final do sequestro do embaixador dos Estados Unidos,

Charles Elbrick. Para mais informações sobre a trajetória de Gregório Bezerra ver BEZERRA, Gregório

Lourenço. Memórias (primeira parte). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; BEZERRA, Gregório

Lourenço. Memórias (segunda parte). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

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ninguém deve esperar que voltarei para o Brasil para ficar bonzinho, de braços cruzados. Meu

povo não me perdoaria se me comportasse assim”41

.

Passados nove anos de exílio, Gregório Bezerra talvez acreditasse que as lutas

implantadas no início da década de 1960 poderiam recomeçar no Brasil em finais dos anos

1970. Será que esse “povo” a quem se referia ainda apresentaria as mesmas demandas? Será

que haveria um espaço social e político, em 1979, para um comunista organizar camponeses e

enfrentar latifundiários e governos? Muito provavelmente não. As redes políticas e sociais, as

quais Gregório Bezerra pensava retornar e que apoiaram suas ações na década de 1960, bem

como o “meu povo” a quem ele se referia não existiam mais.

Por sua vez, Francisco Julião, ao ser questionado se retomaria a luta interrompida em

1964, responde: “não”. E justifica sua posição ressaltando a mudança que operou, nos últimos

15 anos, na forma como entendia o Nordeste e o Brasil.

Hoje estou vendo o Nordeste e o Brasil através do mundo. Quer dizer que

ampliei muito meu conceito sobre a realidade do nordeste e a realidade

brasileira. Isto significaria que vendo o Nordeste e o Brasil desta forma, teria

condições de acertar mais, errando menos42

.

E complementa quando indagado sobre as Ligas Camponesas: “a situação no Brasil

mudou muito desde 1964 […] o camponês que eu deixei no Brasil foi triturado, foi

transformado num assalariado. Há que sentir bem a realidade para considerar que estratégia

devemos utilizar na luta pela libertação do camponês”43

.

Quando chegou ao Brasil, Francisco Julião sabia que as redes políticas em que se

apoiava não eram mais as mesmas. Demonstrava compreender que o camponês não era mais

aquele dos anos 1950 e 1960 e as estratégias de ação precisavam ser repensadas.

Uma ideia mais próxima sobre o Brasil começou a ser produzida em 26 de outubro de

1979, quando Julião, com um saco cheio de terra, desembarcou as 7h15min da manhã no

Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. A terra escura foi trazida do México e

representava as raízes criadas com este país.

Não poderia ser muito diferente, o saco plástico promoveu algum tumulto na

passagem pela alfândega do aeroporto. Era um exilado, que regressava ao Brasil, ainda muito

reconhecido por suas ações consideradas radicais e violentas no início da década de 1960.

Ainda em 1978, estava em uma possível lista do governo militar, na qual constavam os nomes

41

Todas as citações desse parágrafo foram retiradas do Jornal do Brasil. 02 de julho de 1979. Op. Cit. 42

Jornal do Brasil. 02 de julho de 1979. Op. Cit. 43

Jornal do Brasil. 02 de julho de 1979. Op. Cit.

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daqueles que em hipótese alguma poderiam regressar ao país. Eram acusados de

envolvimento com o comunismo internacional.

Até se ter a certeza de que o conteúdo daquele saco plástico era apenas terra, gastou-se

algum tempo e retardou-se ainda mais o reencontro de Francisco Julião com parte da sua

família, que o aguardava no saguão. Estavam presentes os seus filhos, Anatólio e Izabela, e

dois netos, Anahuac e Anette. Havia, aproximadamente, mais outras 50 pessoas esperando-o

calmamente. Entre elas, estavam políticos do MDB - alguns se deslocaram de Brasília

especialmente para a ocasião - que já se diziam comprometidos com o projeto de recriação de

um partido trabalhista44

.

Fizeram-se também presentes dois ex-deputados federais, que em 1979, apresentavam-

se como articuladores políticos do novo trabalhismo; Doutel de Andrade, cassado em 1966,

integrava a chamada “velha guarda” petebista no Rio de Janeiro; e Lysâneas Maciel,

advogado defensor de diversos presos políticos, que teve o seu mandato de deputado federal

pelo MDB cassado em 1976 e em junho de 1979 aderiu ao projeto do novo PTB,

constituindo-se naquele momento como um forte apoio para Leonel Brizola no Rio de

Janeiro45

.

A opção partidária de Francisco Julião após seu retorno do exílio já se apresentava

como definida. A recepção oferecida pelos trabalhistas do MDB, como eram denominados

pela imprensa os políticos que articulavam a reorganização PTB, reforçava as suas

declarações, realizadas ainda no México, sobre qual seria o caminho político adotado após o

regresso ao Brasil. Estava fora do MDB, ou do partido formado a partir deste, para onde tinha

se direcionado Miguel Arraes, e ratificava seu apoio a Leonel Brizola, como já vinha se

desenhando desde o período em que todos viviam fora do país.

Nas suas primeiras declarações aos jornalistas presentes em seu desembarque, o ex-

advogado das Ligas Camponesas procurou estabelecer um lugar político partidário para sua

atuação. Afirmou que reprovava a união das oposições por meio do MDB, mas ressaltava que

“o primeiro grande erro do avanço popular em 1964 foi a desunião, que facilitou a contra-

revolução”46

. E acrescentou que o MDB não atendia às necessidades daquele momento do

país, pois abrigava muitas correntes ideológicas e era “um partido criado arbitrariamente por

44

Jornal do Brasil. 27 de outubro de 1979. 1° caderno. p. 05. 45

Revista Veja. N° 574, 05/09/1979. p. 30-32. 46

Jornal do Brasil. 27 de outubro de 1979. Op. Cit.

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184

decreto”47

, ou seja, instituído pelo governo militar48

. Era necessário, ainda de acordo com suas

afirmações, haver “uma definição ideológica com mais clareza, através de novos Partidos”49

.

Ainda no dia de sua chegada, à tarde, concedeu outra entrevista, desta vez na

Associação Brasileira de Imprensa. Referindo-se novamente à questão dos partidos, defendeu

a livre organização e a legalização do Partido Comunista. Propôs também que os mesmos,

apresentando programas definidos, formassem uma frente única. Esta seria uma forma para

que não ocorresse a “desunião” de 1964. Entretanto, tais ideias era também uma oposição ao

movimento que defendia o MDB como campo único e legítimo de união das oposições.

A defesa da formação de uma frente política aproximava-se da prática de organização

de vários grupos opositores aos governos militares desde meados da década de 1970. Não se

deve esquecer que a constituição de uma chamada frente democrática, notadamente a partir de

1974, permitiu que alguns grupos de esquerda saíssem de um isolamento em sua forma de

ação e passassem a construir alianças e a integrar um amplo movimento de oposição da

sociedade civil50

.

Em relação ao modo como foi construída a Lei de Anistia e sua abrangência, o ex-

deputado, de acordo com a imprensa, fez apenas um breve comentário, no qual defendeu a sua

ampliação “para resgatar nossos irmãos da cadeia e trazer de volta exilados que são tão

brasileiros quanto nós”51

. Francisco Julião definia, desde as entrevistas concedidas ainda no

México, sua estratégia para uma reinserção na vida política do país menos por meio de uma

posição de crítica e enfrentamento ao governo militar e mais por uma colocação no

movimento partidário que recomeçava. As práticas de agitação, constantes no passado, não

deveriam ser retomadas ou mesmo lembradas.

Este posicionamento alinhava-se a uma proposta de setores sociais que naquele

momento desejavam se desvencilhar daquele passado recente de confrontos, discursos

radicais e violências. “O que passou, passou. Por que não olhar para frente evitando o espelho

retrovisor?”52

, afirma Daniel Aarão sobre essa proposta. Não se queria debater a tortura e os

47

Jornal do Brasil. 27 de outubro de 1979. Op. Cit. 48

Essa era uma das críticas recorrentes que se fazia ao MDB no final da década de 1970. MOTTA, Rodrigo

Patto Sá. O MDB e as esquerdas. In: FERREIRA, Jorge e AARÃO REIS, Daniel. Revolução e democracia

(1964…) As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2007. 49

Jornal do Brasil. 27 de outubro de 1979. Op. Cit 50

ARAÚJO, Maria Paula de. Lutas democráticas contra a ditadura. In: FERREIRA, Jorge e AARÃO REIS,

Daniel. Revolução e democracia (1964…) As esquerdas no Brasil. Op. Cit. p. 326-334. 51

Jornal do Brasil. 27/10/1979. Op. Cit 52

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura, anistia e reconciliação. In: Revista Estudos Históricos. Rio de

Janeiro. v. 23, n° 45. jan-jul de 2010. p. 173.

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torturadores, nem o apoio de amplos setores sociais à ditadura. Estes eram um dos silêncios

que fundamentavam a Lei de Anistia e se estabeleciam em torno dela53

.

3 - Duas cartas.

Cuernavaca, abril de 1978. Francisco Julião realizava um trabalho de articulação entre

representantes da esquerda do Brasil que estavam no exílio. Mantinha contatos, seja por meio

da participação em encontros54

, seja por troca de cartas, com alguns exilados políticos

brasileiros.

Nos congressos e reuniões dos quais participava, Francisco Julião tinha a possibilidade

de trocar experiências da vida no exílio, discutir os cenários políticos da Europa e da América,

debater a situação do regime militar no Brasil e o desenvolvimento do processo de abertura.

Nos últimos anos da década de 1970, a discussão estabelecida por ele e outros políticos, que

viviam fora do país, dizia respeito à probabilidade de se efetivar uma volta para o Brasil e

como deveriam se organizar e atuar ao retornarem55

.

O ex-deputado já havia debatido por diversas vezes com Leonel Brizola acerca da

organização partidária da qual fariam parte após um possível retorno ao Brasil. Tanto que em

1979, os dois e diversos outros políticos e intelectuais estiveram presentes no encontro de

Lisboa para a recriação do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Existia, no entanto, um político, que ainda se desejava integrar a essa articulação

partidária: Miguel Arraes. Este tinha se exilado inicialmente na Argélia e depois migrado para

Paris. Em abril de 1978 recebeu uma carta oriunda de Cuernavaca – México. Ditada por

Julião a sua companheira mexicana Marta Rosas, a correspondência, escrita em espanhol,

ocupou três páginas e, logo em seu início, apresentava-se como um relato sobre “as andanças

de nosso estimado amigo Leonel por estas terras mexicanas”56

.

53

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura, anistia e reconciliação. Op. Cit. 54

Entre 1977 e 1979, Francisco Julião viajou, pelo menos, três vezes para fora do México, a fim de participar da

Conferência Internacional pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e pelas Liberdades Democráticas no Brasil,

ocorrido em Roma, do encontro de Lisboa para a recriação do PTB e da Conferência Internacional sobre o

Imperialismo Cultural ocorrida na Argélia. Pelos seus relatos, pode-se também concluir que recebeu, por duas

vezes, a visita de Leonel Brizola e de jornalistas brasileiros da Revista Veja e do jornal O Pasquim. Além disso,

trocou correspondência com Miguel Arraes, a quem já teria visitado quando foi a Argélia. 55

Essas informações podem ser identificadas a partir da leitura de alguns artigos publicados por Francisco Julião

na Revista Siempre!, de entrevistas concedidas por ele, como ao Jornal O Pasquim e ao jornalista Geneton

Moraes Neto e da correspondência trocada com Miguel Arraes, em 1978. Além disso, as temáticas do regresso e

da atuação no Brasil foram abordadas tanto na Conferência Internacional pela Anistia, em Roma, como no

Encontro para recriação do PTB, em Lisboa. 56

Carta de Francisco Julião a Miguel Arraes. Cuernavaca, 03/04/1978. FJ CEP 1, doc 01, C3. p. 01. CEHIBRA -

Fundação Joaquim Nabuco.

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186

Segundo a missiva, há pouco tempo, provavelmente no início de 1978, Leonel Brizola

havia passado pelo México e cumprido uma longa agenda de compromissos. Francisco Julião

tratava de descrever para Miguel Arraes o comportamento do ex-governador do Rio Grande

do Sul, que antes de 1964 foi considerado, pelos setores conservadores do status quo como

um perigoso revolucionário comunista, mas também classificado, por setores reformistas,

como um radical.

Dizia a carta de abril de 1978:

O homem [Brizola] está bem lúcido, receptivo e com muita boa disposição

para dialogar e identificar os pontos de convergência indispensáveis à

unidade das forças democráticas, populares e revolucionárias que se batem

contra a ditadura militar. Nesse sentido conversou com todos os brasileiros

exilados ou semi exilados, conquistando simpatia e adesões

surpreendentes57

.

A resposta de Miguel Arraes continha cinco páginas, nas quais discorreu, quase ponto

por ponto, sobre os assuntos abordados pelo ex-deputado socialista. Endereçada ao “Caro

Chico”, a mensagem inicia da seguinte maneira: “Desculpe escrever em português, para

responder a sua carta de 3.4. Minha internacionalização, apesar de tudo, ainda não pode

concorrer com a sua”. Apesar dos dois exilados se respeitarem bastante, pode-se dizer que

havia uma tensão entre eles. A carta de Francisco Julião escrita em espanhol pareceu soar

como arrogante para Miguel Arraes, que tratou de se contrapor a essa postura logo no início

de sua resposta.

Arraes e Brizola já haviam conversado em algumas ocasiões durante o período do

exílio58

. No ano de 1978, o segundo convidou, por meio de uma ligação, o ex-governador de

Pernambuco a participar do encontro de Lisboa. Miguel Arraes não foi e afirmou que o

processo de renovação de seus documentos, impossibilitava-o de se deslocar até Portugal.

Então, nessa conversa por telefone, Brizola haveria cogitado faze-lo uma visita, o que,

segundo Arraes, “não seria difícil, mas [ele] acabou desistindo”59

.

Eram três políticos que antes de 1964 tiveram uma forte atuação no Brasil, com

repercussão na imprensa internacional. Com a possibilidade de volta ao país, cada um buscava

construir suas alianças e definir seu novo espaço de ação. Para Miguel Arraes, ir ao encontro

57

Carta de Francisco Julião a Miguel Arraes. Cuernavaca, 03/04/1978. FJ CEP 1, doc 01, C3. p. 01. CEHIBRA -

Fundação Joaquim Nabuco. 58

Essa informação consta na própria carta que Arraes escreveu em resposta para Julião. Não sabemos

exatamente se as conversas foram apenas por telefone ou se pessoalmente, em algumas oportunidades. 59

Carta de Miguel Arraes a Francisco Julião. Sem data. FJ CRP 1, doc 7,4, C3. p. 01. CEHIBRA - Fundação

Joaquim Nabuco.

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187

de Lisboa poderia representar uma inclinação para a proposta partidária que estava sendo

liderada por Leonel Brizola, o que poderia o colocar em uma posição desfavorável na nova

correlação de forças a ser formada em um possível regresso ao Brasil.

Ao mesmo tempo, Arraes já havia procurado uma articulação com representantes do

MDB. Em 1977, em uma reunião com um grupo de exilados brasileiros em Paris, decidiu-se

que o médico Fernando Barbosa e sua esposa, a historiadora Socorro Ferraz60

, viriam ao

Brasil estabelecer contatos com a esquerda e procurar uma pessoa para iniciar uma articulação

entre Miguel Arraes e políticos em Pernambuco. Isso aconteceu e o deputado federal pelo

MDB de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, foi convidado para ir a Europa conversar com o

ex-governador61

. O parlamentar pediu licença a Câmara e foi a Paris, onde se encontrou com

o exilado. Depois houve uma reunião com outros exilados em Genève, Suiça. Lá estavam

Lysâneas Maciel, Manuel da Conceição, Gregório Bezerra. Eram em torno de 10 pessoas.

Miguel Arraes partiu de trem de Paris. Quando chegou a Genève, ele se negou a participar da

reunião, segundo Jarbas Vasconcelos, devido à presença de uma pessoa com a qual ele tinha

desavenças por episódios ocorridos no início de 196062

. De todo modo, o contato entre os dois

políticos pernambucanos tornou-se constante e Arraes, mesmo no exílio, apoiou a candidatura

de Jarbas ao senado, em 1978, inclusive conseguindo recursos financeiros junto ao Partido

Socialista Francês. Segundo Socorro Ferraz, a partir de 1977, o ex-governador passou a ter

uma crescente relação com a política em Pernambuco63

.

A troca de correspondência em 1978 estava inserida nessas negociações, o que

explicaria uma parte da resistência de Miguel Arraes em participar do projeto do novo

trabalhismo. Ele dizia concordar com a ideia defendida por Francisco Julião sobre “a unidade

das forças democráticas”, a qual estaria sendo propagada por Leonel Brizola no México64

.

60

Fernando Barbosa e Socorro Ferraz integraram o PCB. Realizaram também trabalhos junto a Ligas

Camponesas e participaram do governo de Miguel Arraes a partir de 1963, de quem eram bastante próximos.

Devido às perseguições da polícia, seguiram com as filhas para um auto-exílio na Alemanha em 1974. Ver

entrevistas de Fernando Barbosa e Socorro Ferraz, para o projeto Marcas da Memória, coordenado pelo

professor Dr. Antônio Montenegro (UFPE). LAHOI/UFPE. 61

Entrevista com Socorro Ferraz, em 18/11/2011, para o projeto Marcas da Memória, coordenado pelo professor

Dr. Antônio Montenegro (UFPE). LAHOI/UFPE 62

Entrevista de Jarbas Vasconcelos. COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória Viva: 14

depoimentos sobre a política pernambucana. Vol. II. Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco. Recife,

2007. p. 200-202. 63

Entrevista com Socorro Ferraz, Op. Cit. 64

Deve-se lembrar que durante o governo João Goulart houve uma tentativa, patrocinada por San Tiago Dantas,

de formação de uma “Frente Única” ou “Frente Popular”, que formaria uma base de apoio para as reformas de

base. Participariam desta frente o PSD, PTB, PCB, além dos políticos ligados a líderes como Leonel Brizola e

Miguel Arraes. A frente, como foi pensada por San Tiago Dantas, nunca se concretizou. Brizola, por exemplo,

não aceitava o PSD e, por seu turno, Arraes não concordava com os termos propostos por Dantas. BANDEIRA,

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188

Mas, afirmava ao ex-deputado socialista que “nosso amigo não dispunha, na oportunidade em

que falamos, de proposições concretas para a efetivação dessa unidade”65

. Além disso, o

“amigo” em questão considerava que o “quadro brasileiro” só estaria definido em setembro de

1978, quando poderia assim elaborar propostas de ação, enquanto para Arraes a situação “está

definida desde antes de 1964. Agora, o inimigo muda de método, mas, no fundamental, tudo

continua”66

.

O ano de 1964 se apresentava, assim, como emissor de significados. Para o ex-

governador de Pernambuco, esse ano estava presente nas discussões de 1978. Não era o

passado, mas o presente naquelas disputas políticas. Se por um lado, Miguel Arraes apontava

para uma continuidade em relação ao “inimigo”, também deixava entender que isso ocorreria

nas esquerdas. Eram reapresentadas as querelas e divisões de 1964, apesar da postura

favorável a uma tomada de posição conjunta. Essa seria uma outra parte da resistência do ex-

governador em integrar-se ao grupo de Brizola.

Francisco Julião dava indícios de que conhecia esse comportamento de seu

conterrâneo, que pode ter sido expressado em outras conversas anteriores. Em sua carta de

abril de 1978, ressaltava:

Todos cometemos erros, antes e depois de 1964. Ninguém pode lançar a

primeira pedra. Chegou a hora dos acertos. Para isso nos servirão não

somente os erros cometidos e até repetidos, senão a oportunidade que nos

deram os inimigos do povo brasileiro para amadurecer nossas reflexões e

transforma-las em ações políticas eficientes67

.

Para o ex-advogado das Ligas Camponesas, essas reapresentações de uma

permanência do passado não interessavam. Ele havia desenvolvido outra estratégia política.

Viveu no exílio em uma ordem política na qual não havia espaço para radicalismos. Nas

entrevistas concedidas no final dos anos 1970, já tentava apresentar para o Brasil esse seu

outro modo de agir, institucional e partidário, sem a promoção de agitações. Mas, ao afirmar

que todos erraram “antes e depois de 1964” e por isso ninguém poderia “lançar a primeira

pedra”, Francisco Julião talvez estivesse se referindo a uma situação ocorrida em uma prisão

do Recife, meses após o golpe.

Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961 – 1964. 7

a ed. Revista e ampliada.

Rio de Janeiro: Revan; Brasília, DF: EdUnB, 2001. p. 156-157. 65

Carta de Miguel Arraes a Francisco Julião. Sem data. Op. Cit 66

Carta de Miguel Arraes a Francisco Julião. Sem data. Op. Cit. 67

Carta de Francisco Julião a Miguel Arraes. Cuernavaca, 03/04/1978. Op. Cit.

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4 – Culpado.

Brasil, 1965. Até julho deste ano, Francisco Julião ficou preso e incomunicável na

Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. A sua segunda esposa, Regina de Castro, chegou

a fazer um apelo ao general Peri Bevillaqua para tentar interceder pelo marido, que sofria de

pressão baixa e poderia ter seu quadro agravado em virtude das condições insalubres nas

quais se encontrava. Afirmou Regina ao Jornal Folha de São Paulo: “o general Peri

Bevillaqua que tantos serviços tem prestado à recuperação dos direitos humanos no Brasil,

bem que poderia dar uma incerta na Fortaleza de Santa Cruz e ver de perto as condições

carcerárias às quais está submetido meu marido”68

.

O primeiro cárcere de Francisco Julião foi o Batalhão da Guarda Presidencial, em

Brasília. “Aí a cela não era muito boa, mas os oficiais me tratavam bem”. Depois, foi

transferido para a Fortaleza de Santa Cruz, que havia sido um estratégico ponto de defesa da

Baía de Guanabara, principalmente durante o período colonial do Brasil, sendo depois

também utilizada como prisão para escravos e presos políticos. Na fortaleza a situação para

Francisco Julião era muito mais difícil.

Eu estava praticamente soterrado numa rocha […] A cela estava infestada de

gabirus que pelo tamanho podiam fazer medo até a um gato. As condições

eram péssimas. Agora, o isolamento é que foi o mais terrível. Chego a

confessar que, muitas vezes, a tortura física não é tão cruel quanto o

isolamento e as pressões de ordem psicológica. […] Recorri à imaginação.

Sempre tive uma boa imaginação. Eu criava, inventava histórias a mim

mesmo, fazia contos, escrevia verdadeiras novelas de memórias, no ar

abafado, escuro e infecto da cela. […] Mas, o que salvou mesmo foi quando

tive acesso à leitura. […] Quando tive acesso a obras como, por exemplo,

Dom Quixote, aí já de uma forma muito mais cuidada, muito mais lenta,

saboreando as páginas, o clima mudou para mim. Li outras obras como, por

exemplo, Grande Sertão Veredas, que tive oportunidade de reler na cadeia e

obras de Dostoievski – sempre gostei muito de Dostoievski. […] Penso

mesmo que houve um empenho das autoridades de não me levar a um

sacrifício extremo, tanto que quando cheguei num estado de debilidade

muito forte, um oficial percebeu e alarmou. Então veio um outro oficial-

médico e disse: “esse homem tem que receber um melhor tratamento

alimentar, porque vai morrer de inanição”. Meu estado de debilidade era tal

que eu não podia mais me por de pé69

.

No dia 28 de julho de 1965, foi conduzido da fortaleza-prisão para o aeroporto do Rio

de Janeiro. Era um dia de muita chuva e as condições para o tráfego aéreo não eram boas. O

68

Folha de São Paulo. 24/06/1965. FJ Jp1, doc 50. CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 69

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA. Fundação

Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. p. 77-78.

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prisioneiro então esperou por várias horas a liberação do avião que o levaria a Recife. Durante

esse tempo, esteve algemado e acompanhado por dois detetives do Departamento Federal de

Segurança Pública70

.

Regressando a Pernambuco, o ex-deputado, agora na condição de preso político do

governo militar, foi encaminhado para a Companhia dos Bombeiros. Francisco Julião, que

tinha sido preso em Goiás, transferido para Brasília e Rio de Janeiro, passando um ano entre

interrogatórios e prisões insalubres, finalmente regressava ao Recife, onde poderia, mais

facilmente, ser visitado por alguns amigos e familiares.

Ao entrar em sua nova cela, na Companhia dos Bombeiros, um rosto conhecido se

apresentava. Era Miguel Arraes. O ex-governador de Pernambuco não hesitou em estabelecer

um diálogo com o seu novo companheiro de prisão. De acordo com a memória de Julião, a

primeira frase veio rápida e direta:

- Eu estou aqui por sua causa!71

Talvez um pouco surpreso pela imediata acusação que acabara de receber, Julião

lembrou ter respondido:

- Não, Miguel, você não está aqui por minha causa. Nós estamos aqui porque

quisemos defender os direitos dos trabalhadores, quisemos que o Brasil fosse um país mais

livre da tutela do imperialismo norte-americano72

.

A acusação de Arraes referia-se à agitação e à radicalização promovidas pelo ex-

dirigente das Ligas Camponesas, que teriam contribuído para o levante do exército e a

execução do golpe civil-militar. Com este movimento houve a deposição e prisão do então

governador de Pernambuco.

Era a primeira vez que os dois políticos se encontravam depois dos ocorridos de abril

1964. Arraes, mas também outros setores da esquerda, havia construído para Francisco Julião

a condição social do culpado, seja pela sua prisão, seja pela instalação do regime de exceção

no país. Era sobre esse tipo de classificação que o advogado argumentava quando escreveu a

carta para Arraes, 13 anos depois do encontro na prisão, afirmando que “todos cometemos

70

Folha de São Paulo. 28 de julho de 1965. FJ Jp2, doc 52. CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 71

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 61. 72

Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit. p. 61-62

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erros, antes e depois de 1964. Ninguém pode lançar a primeira pedra”73

. O ex-líder das Ligas

Camponesas não teria errado sozinho. Todos seriam culpados.

Parece então possível começar a produzir uma explicação para a aproximação de

Julião a Brizola. Com este, o perigo de receber as acusações de que foi o culpado pelo golpe

de 1964 se apresentaria menor. Até porque o ex-governador do Rio Grande do Sul também

era identificado por uma radicalização de ações e de discursos no início da década de 1960,

que poderiam ter favorecido a necessidade de uma intervenção militar, em favor do

restabelecimento da ordem74

.

Neste aspecto os dois exilados estavam mais próximos, pois tinham a necessidade de

ressignificar suas ações passadas, afastando-se da imagem de radicalização e construindo uma

inserção no movimento de redemocratização do Brasil.

Mas, ao mesmo tempo em que Julião trabalhava pela aproximação entre os ex-

governadores de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, com intuito de “marcharem unidos e

organizados” em um possível regresso ao Brasil, demarcava suas diferenças, ressaltando sua

opção pela via brizolista.

Tua participação [de Arraes], hoje, na ampliação e avanço do processo de

liberação do Brasil, é tão indispensável como a de Leonel que, com

admirável intuição política, acaba de emergir do pampa gaúcho para

cavalgar pelo Brasil, quero dizer, deixa de ser um caudilho regional para

sentir e tratar de compreender nosso país em toda sua dimensão75

.

Para Francisco Julião, Brizola teria deixado o seu caráter regional do início década de

1960 e adquirido uma visão mais ampla e, porque não, de liderança para o Brasil. Por outro

lado, da forma como está escrito esse trecho da carta, Julião parecia construir uma crítica a

Arraes, que talvez não tivesse desfeito a sua condição caudilhesca.

Em uma entrevista de 1983, Julião afirmava:

Em Brizola, eu via o condutor, o homem audaz e com bastante capacidade

de aglutinar forças e conduzi-las. Arraes é um homem mais desconfiado. Eu

73

Carta de Francisco Julião a Miguel Arraes. Cuernavaca, 03/04/1978. Op. Cit. 74

Enquanto governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola havia desapropriado os bens (não as ações) da

Companhia Telefônica Nacional, que era subsidiária da International Telephone & Telegraph – ITT e, em 1959,

da Companhia de Energia Elétrica Riograndense, subsidiária da American Foreing Power – Bond & Share.

Durante o Congresso Camponês realizado em Belo Horizonte em 1961, Brizola defendeu a posição de que o

Congresso Nacional fosse fechado, pois, segundo ele, “esse Congresso que aí está não fará reforma nenhuma”,

referindo-se as reformas de base propostas no Governo João Goulart. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O

Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961 – 1964. 7a ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan;

Brasília, DF: EdUnB, 2001. Capítulo III e IV. 75

Carta de Francisco Julião a Miguel Arraes. Cuernavaca, 03/04/1978. Op. Cit.

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sempre dizia a ele: Você às vezes me lembra um cacto. A gente olha, você

está sempre se defendendo, cercado de espinhos por todo lado. Eu sei que

existe uma flor dentro de você. Mas ai de quem queira meter a mão para

agarrar esta flor, porque fura os dedos. […] Arraes lembra algo do jagunço; é

cerrado. Você não arranca facilmente um pensamento de Arraes. Ainda hoje

é assim. Quando você se aproxima de Arraes, ele se prepara e se previne76

.

Ou ataca, como ocorreu em 1965 quando Julião o encontrou na prisão do Recife. A

opção do ex-deputado por Pernambuco era construir, naqueles momentos finais da década de

1970 e início dos anos 1980, uma aliança com Brizola. O trabalho de aproximar os dois ex-

governadores, juntando-os no mesmo partido, consistia em uma tentativa de fortalecer essa

esquerda que regressava do exílio. Mas, a carta enviada de Cuernavaca indicava que Leonel

Brizola estaria no comando, afinal ele “acabava de emergir do pampa gaúcho para cavalgar

pelo Brasil”. Talvez esses termos tenham contribuído para Miguel Arraes seguir seus contatos

com o MDB.

5 – Moderado.

Recife, manhã do dia 03 de novembro de 1979. Francisco Julião desembarcava no

Aeroporto dos Guararapes. Visivelmente emocionado, foi recebido por camponeses dos

municípios de Bom Jardim, João Alfredo e do Engenho Galiléia. Havia ainda uma banda de

pífanos77

e diversas faixas, onde estava escrito “defensor dos sem terra”. Estiveram presentes

também vários políticos, principalmente, os que formavam o núcleo do então futuro PTB.

Nenhum representante do Diretório Regional do MDB de Pernambuco, presidido por Jarbas

Vasconcelos, esteve no aeroporto, o que provocou diversas críticas dos presentes78

.

O primeiro político a dar as boas vindas foi o deputado estadual Assis Pedrosa, que

juntamente com dois outros parlamentares, Paulo Andrade Lima e João Ferreira Lima,

integravam o MDB, mas já estavam comprometidos com a construção de um novo partido

trabalhista em Pernambuco79

. Também se fizeram presentes o ex-ministro da agricultura

Osvaldo Lima Filho e o ex-deputado federal João Carlos Guerra80

. Ou seja, a ala dissidente do

MDB foi receber Francisco Julião.

76

Entrevista concedida a Geneton Morais Neto em 1983. Disponível em: <www.geneton.com.br>. 77

Presente nas manifestações culturais de algumas cidades de Pernambuco, a banda reúne alguns poucos

músicos de percussão e sopro. 78

Para as informações desse parágrafo ver Jornal do Commercio. 04 de novembro de 1979. p. 01-13. APEJE. 79

Jornal do Commercio, Op. Cit. 80

Jornal do Commercio. Op.Cit.

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A chegada do anistiado ocupou parte de algumas páginas da imprensa local,

principalmente do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco. As primeiras matérias

debateram as mudanças operadas pelo ex-advogado das Ligas Camponesas, a fim de

identificar se Francisco Julião alinhava-se a algum projeto de revolução armada ou

aproximava-se do movimento de redemocratização do Brasil, pautado pelos discursos de

conciliação nacional.

Antes mesmo do desembarque, reportagens analisando essa questão foram veiculadas

na imprensa. O deputado Assis Pedrosa, que esteve no aeroporto, afirmava, no dia anterior,

que “Chico Julião volta coerente com seus princípios socialistas e com eles se engajará na luta

que vem sendo desenvolvida por toda a oposição brasileira no sentido de restabelecer o estado

de direito e de justiça social”81

. O parlamentar da considerada ala trabalhista do MDB definia

Julião como um “reformador social”82

. Já o ex-deputado federal cassado José Carlos Guerra,

um dos articuladores do novo partido trabalhista em Pernambuco, afirmava:

Julião tem manifestado através de vários pronunciamentos que volta

absolutamente convencido de que só no exercício democrático das

liberdades públicas, é que se pode constituir uma sociedade mais justa […] o

ex-líder das ligas camponesas em Pernambuco abandonou qualquer projeto

de revolução armada para atingir seus objetivos socializantes.83

Ainda no aeroporto, Francisco Julião declarou: “Sou um moderado”. A afirmação

ocupou a primeira página do Jornal do Commercio de domingo, 04 de novembro de 1979.

Enfatizava um compromisso com o estado de direito e a democracia: “A experiência que tive

no exílio foi válida. Amadureci mais, reflexionei mais, e volto com outras idéias que tem

como ponto básico a pacificação de fazer retornar o estado de direito”84

. E acrescenta: “Voltei

ao Brasil e ao convívio da minha gente, com a preocupação de tentar unir e organizar o povo

no sentido de ampliar e consolidar as liberdades democráticas”85

.

Depois de 14 anos fora do Brasil, Francisco Julião voltava à cidade e ao estado onde

realizou mobilizações de camponeses, classificadas muitas vezes como radicais e violentas e

que o tornou internacionalmente conhecido. Regressava do exílio próximo a Leonel Brizola e

distante de Miguel Arraes. Era recebido por parlamentares comprometidos com a então

reorganização do PTB, muito deles formando a ala trabalhista do MDB, partido do qual o

81

Diario de Pernambuco, 02 de novembro de 1979. p. A3. APEJE. 82

Idem. 83

Diario de Pernambuco, 03 de novembro de 1979. p. A3. APEJE. 84

Diario de Pernambuco, 04 de novembro de 1979. p. A3. APEJE. 85

Idem.

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194

anistiado não se aproximou e ainda o criticou por ocasião do seu desembarque no Rio de

Janeiro.

As declarações de políticos e do próprio Francisco Julião na imprensa apresentavam-

no como um moderado. Era ainda uma pessoa que aceitava, sem grandes críticas ou

reivindicações, a Lei de Anistia e acreditava que não era mais hora de retomar as lutas de

1964. Dizia-se disposto a trabalhar para a pacificação do país, para a retomada do estado de

direito e para a consolidação das liberdades democráticas.

Esses relatos na imprensa apresentavam um Francisco Julião em acordo com os

discursos que circulavam para a redemocratização. Ou seja, aquele que se engajaria no

restabelecimento do Estado de Direito, convencido que uma sociedade mais justa só seria

alcançada com o exercício da democracia e por isso abandonou qualquer projeto de revolução

armada. Tudo isso, fruto de um amadurecimento, reflexão e mudança ocorridas durante o

exílio. O ponto central de suas novas ações era a pacificação e união da sociedade. As

declarações de e sobre Francisco Julião na imprensa se aproximavam da lógica de conciliação

defendida pelo presidente João Figueiredo na apresentação do projeto de anistia. Não havia

posições extremistas. Os comportamentos defendidos por Julião ou relacionados a ele por

seus novos aliados políticos estavam dentro dos limites do processo de “abertura” executado

pelo governo e aceito por parte da oposição. O anistiado parecia ter entendido as interdições

aplicadas pela redemocratização e quais práticas e discursos deveriam ser apresentados. O

exercício de entender configurações políticas dos países a que chegava não era algo novo. Isso

já havia sido realizado no México e resultou em uma bem sucedida inserção naquele país,

apesar de alguns contratempos iniciais. E como ele mesmo afirmava, a experiência que teve

no exílio foi válida.

6 - O disco.

1981. Passados dois anos da aprovação da Lei de Anistia e do regresso dos primeiros

exilados, Francisco Julião ocupava-se, principalmente, com as atividades políticas

desenvolvidas junto a Diretoria Nacional do PDT86

e a implantação de diretórios do partido

em diversos municípios de Pernambuco. Entretanto, especificamente no início daquele ano,

ele participava de uma atividade, até certo ponto, nova em sua vida. Produzia um Long Play,

ou como era popularmente conhecido na década de 80, um Lp, ou ainda, simplesmente, um

86

O grupo de Leonel Brizola já havia perdido o direito do uso da sigla do PTB para Ivete Vargas, passando a

adotar PDT. A partir desse momento sigo utilizando então a sigla do Partido Democrático Trabalhista.

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195

disco de vinil. Intitulado Julião, verso e viola87

, o Lp era composto por três faixas, nas quais

Francisco Julião recitava três longos textos, a saber: Os direitos da mulher, apresentado no

lado A, tinha 11 minutos de duração; Porque sou nacionalista e O sindicato é a estrela

estavam no lado B do disco e juntos totalizavam pouco mais de 23 minutos de gravação88

.

A produção foi realizada pelo Selo Libertas/Disco Independente e assinada por Hebert

de Souza, o Betinho, sociólogo que se destacou no movimento de direitos humanos. Na

década de 1980 foi um dos criadores do projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e

pela Vida.

Para Herbert de Souza, a ideia do disco “começou quando Julião, continuando a ser

poeta, escreveu uns versos e neles colocou a chama de quem lutou pela igualdade e liberdade,

estes dois princípios perigosos da democracia”89

.

Foram produzidas 500 cópias. A gravação ocorreu em um estúdio, no Rio de Janeiro, e

segundo Betinho no curto período de 2 horas “tudo estava pronto”90

. Percebe-se, ao escutar o

disco, que Francisco Julião cometeu pequenos erros ao declamar os poemas. É possível pensar

que o processo de produção foi muito rápido, dispondo de pouco tempo para ensaios ou

repetições.

O Lp contou com a participação de Francisco Mário, irmão de Betinho: “o texto

merecia uma viola. Chamamos o mano Chico Mario pra tocar”91

. Essa rede de pessoas

envolvidas na gravação dos versos de Julião foi algo construído desde a época do exílio.

Como citei no capítulo anterior, no final de 1978, em Cuernavaca, o exilado havia

recebido o jornalista e cartunista Henrique de Sousa Filho, Henfil, que o desejava entrevistar

para O Pasquim. Junto com ele estava, entre outros, o seu irmão, Herbert Souza, exilado no

México, onde exercia a função de professor na UNAM92

.

Talvez venha daí o relacionamento mais próximo entre Francisco Julião e os irmãos

Henfil e Betinho, que depois foi estendido a Chico Mário. Ainda no campo das

possibilidades, o primeiro contato pode ter ocorrido com Betinho, no México, e por meio dele

se teria viabilizado a realização da entrevista para O Pasquim. A relação de amizade que foi

mantida e fortalecida no Brasil pós-anistia contribuiu para a gravação do Lp.

87

Acervo pessoal Samuel Valente. Fotografias do disco e cópia do áudio nos foram gentilmente cedidos pela

pesquisadora Giuliana da Mata. 88

Disco Julião, verso e viola. 89

Texto assinado por Betinho em Julião, verso e viola, contracapa. 90

Idem. 91

Idem. 92

Jornal O Pasquim. 1979. p. 12. Fundação Biblioteca Nacional.

Page 199: DE PÉTALAS E PEDRAS: A TRAJETÓRIA DE FRANCISCO JULIÃO Tese UFRJ - Pablo Por… · Pablo Francisco de Andrade Porfírio Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação

196

O ex-advogado das Ligas Camponesas era conhecido por escrever folhetos com

literatura de cordel, cantados em rodas de camponeses93

nas feiras dos municípios da Zona da

Mata de Pernambuco, na década de 1950 e início dos anos 1960. Escreveu também cartilhas

para trabalhadores rurais. Todo esse material utilizava “uma linguagem muito acessível,

porque vinha dos camponeses e eu a traduzia em documentos”94

, afirmava.

O folheto intitulado “Foreiro de Pernambuco” afirmava aos camponeses: “A

Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), registrada de acordo

com a lei, é o teu guia, conselheiro e amigo de todas as horas!”95

. E finalizava: “Portanto,

entra para a Sociedade. Junta o teu braço ao braço do teu irmão sem terra, cochicha com ele,

ensina o caminho do bem. A Sociedade é a união sagrada dos foreiros”96

.

Na Cartilha do Camponês, o presidente das Ligas inicia com a seguinte mensagem:

“Depois do GUIA, do ABC e do RECADO, eu te mando camponês, esta CARTILHA. Tenho

uma boa notícia para te dar. Teu inimigo cruel – o latifúndio – não anda bem de vida. E eu te

garanto que a moléstia é grave. Não há remédio para ele. Morrerá espumando de raiva como

um cão danado”97

.

Ainda utilizando a Cartilha como um meio de ensinar novas formas de ação ao

camponês, dizia Julião:

Já é tempo, camponês, de aprenderes a usar a união contra o teu inimigo

cruel que é o latifúndio. Segue a lição do operário. Do estudante. Como é

que o operário vence o patrão? E o estudante defende a liberdade? É com a

arma da greve. A greve é a união de todos. […] Usa a greve como arma. Eu

te explico. Há muitas formas de greve que o campo pode fazer. Um

exemplo: um camponês tem a sua casa derrubada e a sua lavoura arrancada

pelo latifundiário. Como proceder? É simples. Todos os camponeses devem

juntar-se. Cem, duzentos, mil, três mil. E marchar para a cidade. Levando os

destroços da casa. E a lavoura arrancada. Vão ao prefeito. Ao padre. Ao juiz.

Ao promotor. Ao delegado. A todos clamarão juntos por justiça. E a justiça

se fará. Por quê? Porque são muitos a pedir. Um só poderá ir para a cadeia.

Dez poderão não ser ouvidos. Mas cem já serão. E mil ainda mais depressa.

O delegado fica manso, o juiz uma seda. O padre vem receber. O prefeito se

derrete. E o promotor nem se fala. Não é preciso usar a foice. Nem o olho da

enxada. A massa é quem faz a lei. O povo unido é quem manda98

.

93

MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em tempo de revolução. In: ______

História, Metodologia, Memória. São Paulo: Ed. Contexto, 2010. p. 97 94

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camarg em 1977. CPDOC/ FGV. p. 62. 95

JULIÃO, Francisco. Foreiro de Pernambuco. Acervo Dops-PE. APEJE. 96

Ibid. Idem. 97

JULIÃO, Francisco. Cartilha do Camponês. Acervo Dops-PE. APEJE. 98

Ibid. Idem.

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197

Imagine a situação de camponeses reunidos e escutando a leitura desses textos. Os

discursos de Francisco Julião questionavam ordens sociais estabelecidas durantes anos.

Direcionavam os trabalhadores rurais para se unirem em sociedades e organizarem greves

contra o latifúndio, que era anunciado como quase derrotado, para exercerem pressão junto

aos outros setores sociais e aos representantes seja do poder executivo, seja do poder

judiciário. Como analisa Antonio Montenegro, esse tipo de proposta, apresentada pela

“Cartilha, deve ter causado um forte impacto. As Ligas (com os escritos de Julião) se

projetavam com uma proposta de ruptura com os discursos e práticas que perpetuavam as

relações sociais de exploração e dominação”99

.

E a proposta, no decorrer do final da década de 1950 e início da seguinte foi executada

com a organização de grandes passeatas de camponeses pelos municípios da Zona da Mata de

Pernambuco e também pelo centro da cidade do Recife. Os camponeses saíram de um quase

anonimato e passaram a se fazer presentes como atores sociais atuantes. Francisco Julião

apresentava os trabalhadores rurais e suas reivindicações para toda sociedade.

Nos primeiros anos da década de 1960, suas frases eram lidas como cada vez mais

radicais. Era a época de anunciar a “reforma agrária na lei ou na marra”, obra de um agitador

social, como o próprio autor se definia. Os camponeses gritavam em suas manifestações os

seguintes versos, que também foram utilizados na campanha para deputado federal em 1962:

Operário sem pão/

Camponês sem terra/

Panela vazia/

Tambor da revolução/

Viva a reforma agrária radical/

Com Francisco Julião100

.

A reforma agrária radical não ocorreu e tampouco a revolução. Mas, os versos do

então presidente de honra das Ligas Camponesas mobilizavam parcela de trabalhadores rurais

no Nordeste do Brasil. Na década de 1980, Francisco Julião afirmava que tinha abandonado a

trilha da revolução que construíra e o tornara um político temido pelo imperialismo dos EUA.

Continuava, porém, exercitando a prática da escrita de cartilhas, agora para o PDT, e versos

que no início de 1981 compunham seu disco.

99

MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em tempo de revolução. Op. Cit. p.

97. 100

Ver artigo publicado por Clovis Campelo em 09 de abril de 2008 em seu blog:

http://cloviscampelo.blogspot.com/2008/04/francisco-julio.html. Acessado em 09/02/2011. Ver também

anotação localizada na Pasta FJ PIp 10 doc 87. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

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198

Herbert Souza depois de juntar o poeta e o violeiro em um estúdio, unindo voz e viola,

conseguiu também o financiamento para a produção inicial de 500 discos. Para concluir sua

produção, Betinho precisava cumprir um procedimento burocrático, que ele acreditava ser

“um ato ultrapassado, de rotina”101

.

Devia enviar os textos para serem analisados na Censura Federal. Isto foi realizado

sem maiores preocupações, pois “a democracia estava aí, já que anistia houve, e que, portanto,

poderíamos fazer um disco do Julião pra todo mundo ouvir”102

, acreditava Betinho.

7 – Censura.

Em 24 de janeiro de 1946, o decreto n° 20.493 regulamentou a atuação do Serviço de

Censura de Diversões Públicas no Brasil, que depois foi designado como Divisão de Censura

de Diversões Públicas – DCDP.

A censura era uma prática oficial anterior ao golpe civil-militar de 1964. Mais que

isso, ela foi também posterior à ditadura103

, visto ter atuado até a Constituição de 1988104

.

Seria um erro associá-la apenas ao período da ditadura militar105

.

O artigo 4° do referido decreto estabelecia as linhas gerais da censura no Brasil, que

deveria ocorrer de modo prévio e autorizar, entre outros: as projeções cinematográficas, as

representações de peças teatrais e as execuções de discos cantados e falados, em qualquer casa

de diversão pública, ou em local frequentado pelo público, gratuitamente ou mediante

pagamento106

. No capítulo IV, referente especificamente ao teatro e diversões públicas, o

artigo 40 determinava que dependiam de censura prévia e autorização “as irradiações, pela

radiotelefonia, de peças teatrais, novelas, canções, discos cantados ou falados e qualquer

matéria que tenha feição de diversão pública”107

.

O decreto de 1946 sofreu diversas alterações até a década de 1980. Uma delas foi para

adequar suas disposições ao surgimento e expansão da televisão, enquanto meio de

comunicação cada vez mais popular durante a segunda metade do século XX. No entanto, em

101

Texto de Betinho em Julião, verso e viola, contracapa. 102

Idem. 103

Pensamos aqui o período da ditadura como sendo aquele compreendido entre o golpe de 1964 e o final do

governo do presidente João Batista Figueiredo. 104

FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. In: Revista Topoi, Rio de Janeiro, dezembro de

2001. p. 278. 105

FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da Ditadura. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá;

AARÃO REIS FILHO, Daniel; RIDENTI, Marcelo (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois

(1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 270. 106

Decreto n° 20.493 de 24 de janeiro de 1946, capítulo I, artigo 4. 107

Decreto n° 20.493 de 24 de Janeiro de 1946, capítulo IV, artigo 40.

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linhas gerais, a DCDP continuou censurando previamente as apresentações de teatro, cinema,

televisão e rádio.

Essa atuação era justificada por meio de um discurso civilizatório, constituído pela

ideia de uma educação moral e com a missão de garantir a defesa dos bons costumes108

. Com

isso ganhava o apoio de uma parcela da população que enviava cartas denunciando filmes ou

programas considerados ameaçadores à moral, principalmente da família, e pedindo ações

punitivas109

. Ou seja, uma parcela da população cobrava da instituição da censura, durante os

governos militares, um maior controle e repressão sobre o que era veiculado nos meios de

comunicação, destacando-se, nas décadas de 1970 e 1980, a televisão.

Mesmo depois do fim do último governo militar, uma mulher, escreveu uma carta ao

então presidente José Sarney, onde afirmava: “Essa abertura da Censura, acho que é só para se

tratar de política, mas pelo que estão entendendo [os responsáveis pela publicidade], pensam

eles que caiu a moral e os bons costumes”110

. A missiva reclamava de um possível

relaxamento da censura e retomava a ideia da importância desta para a manutenção da moral e

dos bons costumes. Deve-se atentar para a ideia de “abertura da Censura”, que estava

relacionada à imagem de abertura política presente na década de 1980 no Brasil. A mulher

então procurava estabelecer um limite, considerando que um possível relaxamento da censura

deveria relacionar-se apenas com o campo do político. Definia um ditame para a democracia

que se desejava construir no país, formado pela manutenção da chamada censura de costumes.

Esta não era uma questão simples de ser resolvida. A dita censura política e a censura

de diversões públicas estiveram cada vez mais imbricadas durante o período dos governos

militares. Muitas vezes se pensou estas duas dimensões censoras como sendo única. A

segunda tinha um caráter legalista, como demonstrado anteriormente. Enquanto a primeira

justificava-se por meio da execução da política repressora da ditadura, principalmente com o

AI-5, e focava suas ações, sobretudo, no controle da imprensa.

Não há intenção de se fazer uma discussão sobre a origem dessa censura política111

.

No entanto, deve-se saber que desde os primeiros momentos após o golpe civil e militar,

ocorreu uma repressão contra a imprensa. Basta pensarmos o caso do jornal Última Hora, que

108

FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da Ditadura. Op. Cit. 274. 109

Essas cartas foram o material principal utilizado pelo historiador Carlos Fico para escrever o precioso artigo

Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. 110

FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. p. 260. 111

Estudos detalhados sobre a Censura Política e sua relação com a imprensa, por exemplo, ver: SOARES,

Gláucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 4, n° 10.

p. 21-43; KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São

Paulo, Boitempo, 2004.

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tinha uma ampla cadeia de divulgação no país e apresentava orientação favorável ao governo

João Goulart. As suas redações em diversos estados foram invadidas e destroçadas112

.

O Ato Institucional n° 5 intensificou este tipo de censura, concedendo-lhe um apoio e

um espaço cada vez maior no aparato militar repressivo. A DCDP passou também a ter um

caráter político em sua ação e neste caso, como afirma Carlos Fico, a “politização da censura

de diversões públicas deu a impressão de unicidade às duas censuras”113

. Para Gláucio Soares,

no entanto, isto seria um mito, pois a Divisão de Censura de Diversões Públicas “não era uma

entidade política”114

. Para ele, a DCDP “não exercia atividades de censura política

diretamente”115

, havendo assim uma separação entre censura moral e censura política.

Mais adiante, ao retornar a Francisco Julião, pretendo demonstrar que mesmo depois

do considerado encerramento oficial da censura política, com a revogação do AI-5, a DCDP,

na década de 1980, pautou algumas de suas resoluções naquilo que poderia ser uma ação

política. Ou seja, a defesa da moral e dos bons costumes atuou também para assegurar

interesses políticos da ditadura, inclusive, nos governos militares que iniciaram o chamado

processo de redemocratização.

A ideia de que a atuação da censura de diversões públicas se intensificou após o

declínio da censura política não é nova. Já se sabe que, por exemplo, depois do período da

junta militar e do governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) enquanto este tipo de

prática coatora diminuía, a quantidade de casos envolvendo a censura em defesa da moral e

dos bons costumes apresentou uma tendência de crescimento.

Em 1978, último ano do governo Geisel, a DCDP censurou quase 3% das peças

teatrais e em 1980 perto de 1,5% dos filmes seguiu o mesmo caminho116

. Eram percentuais

que estavam acima da média geral. Mas, apesar deste aumento de atividade, a DCDP vivia

momentos de incertezas e modificações, sobretudo depois da criação do Conselho Superior de

Censura, em 1980, que se constituía como uma instância de recursos. A Divisão não atuava

mais sozinha e, em alguma medida, teve que adequar suas ações aos direcionamentos do novo

órgão117

.

Embora a instituição do Conselho pudesse ser vista como um enfraquecimento da

censura, visto que se tinha outra instância para recorrer, deve-se pensar o aumento do número

112

SOARES, Gláucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. Op. Cit. p. 21-43. 113

FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da Ditadura. Op. Cit. p. 272. 114

SOARES, Gláucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. Op. Cit. 35. 115

SOARES, Gláucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. Op. Cit. 35. 116

FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. p. 277. 117

Idem.

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201

de filmes e peças teatrais censurados. Em paralelo, entre o final da década de 1970 e início

dos anos 1980, podem-se encontrar cartas encaminhadas a DCDP, as quais exigiam sua

atuação no controle social118

.

Os setores médios da população afirmavam suas ideias de ordem moral dentro de um

processo de abertura. Talvez fosse necessário estabelecer os limites para o que poderia ser

expresso dentro de um processo de construção da democracia e da experiência de maior

liberdade. A censura, que oficialmente não era mais política, serviria então para mediar as

manifestações de diversões públicas e os interesses de setores da sociedade.

Um editorial publicado em setembro de 1986, período do governo José Sarney, pelo

Jornal do Commercio de Pernambuco fazia referência a uma decisão do ministro da justiça,

Paulo Brossard, que censurou partes do filme Cobra, protagonizado por Sylvester Stallone. A

película apresentava a história de um policial, Marion Cobretti (Stallone), responsável por

trabalhar em missões classificadas como muito arriscadas. Neste caso, ele era indicado para

deter um perigoso assassino que estava cometendo diversos crimes em uma cidade.

Dirigido por George Cosmatos e com o roteiro de Sylvester Stallone, o filme foi alvo

de duras críticas nos Estados Unidos, considerado muito ruim. Recebeu seis indicações para

Razzie Awards, que fazia uma paródia a premiação do Oscar ao eleger os piores filmes

produzidos ao longo de um ano. Cobra foi indicado para os prêmios de pior filme, ator, atriz,

ator coadjuvante, roteiro e revelação. Um sucesso no que existia de pior. De qualquer forma,

sem obter um grande destaque, o filme teria algumas de suas partes proibidas de serem

exibidas no Brasil.

O editorial do Jornal do Commercio aprovava a decisão do ministro em censurar

parcialmente o filme, devido ao que foi considerado como excesso de violência. “No caso do

filme em apreço o espetáculo de violência que ensejou ficou patente em mais de uma ocasião.

Sendo assim, o ministro da Justiça se deu conta da periculosidade da encenação e tomou as

providências que considerou necessárias”119

.

Mas, a questão era: como estar a favor do que seria um cerceamento da liberdade em

um país, onde estaria sendo reconstruído um regime democrático? Para o jornal, “o que

verdadeiramente limita a liberdade humana é o bom-senso, o senso moral”. E então, todas as

vezes que “as liberalidades – mais do que as liberdades – se mostram carentes de ideal e de

equilíbrio, a censura entra em jogo”120

. No entanto, não seria uma “censura sistemática”,

118

Ver mais uma vez o artigo de FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. 119

Jornal do Commercio. O problema da censura. 04 de setembro de 1986. p. 04. APEJE. 120

Idem.

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202

como a que ocorria no período dos governos militares. Esta teria acabado. O que haveria em

1986 era o que o jornal chamava de uma “censura em termos”121

, cujo significado consistia

em uma “política de defesa do povo em face de violências que agridem o sentimento

público”122

. De acordo com o periódico, foi essa lógica utilizada contra a liberação de todo o

filme Cobra.

A censura existia mesmo depois do fim dos governos militares, inclusive oficialmente

por meio da DCDP. Era justificada em um jornal que ao ser formador de parte da opinião

pública, principalmente dos setores médios da população, também representava seus

interesses. Assim, não havia uma interdição em falar e praticar a censura, acionada até

mesmo, segundo o jornal, para promover o equilíbrio da liberdade. A censura que garantiria o

“senso moral e o sentimento público”123

.

E finalizava o editorial: “Se estamos lutando contra a violência, em todos os campos,

como deveremos dar curso a um filme que é, precisamente, a consagração dessa

violência?”124

Pode-se pensar que se a violência praticada pela ditadura, como afirmava o

próprio jornal, não seria aceita, as manifestações da população, que foi às ruas para pedir

Diretas Já, ou mesmo as daqueles que elegeram, em algum momento, o enfrentamento

armado ou violento como forma de ação, também não seriam. O final da ditadura não

significou, diretamente, a queda de interdições políticas e morais postas pela própria

sociedade civil já na década de 1960. Afinal, dizia o mesmo Jornal do Commercio ainda em

relação à censura do filme: “Na transição do regime autoritário de 1964 para o sistema liberal

em que nos achamos inseridos, viu-se que a liberdade tomou proporções que causaram os

devidos cuidados”125

. Os limites deviam ser estabelecidos.

8 - O disco, novamente.

Em 1981, havia 221 censores atuando no Brasil. A DCDP, segundo um dos seus

diretores, desenvolvia suas atividades nos “vários segmentos que compõem os espetáculos de

diversões públicas. No entanto, são constantes as oportunidades em que se defronta com os

problemas político-ideológicos”126

.

121

Idem. 122

Idem. 123

Idem. 124

Idem. 125

Idem. 126

FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. p. 259.

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No início desse mesmo ano, o disco gravado com os poemas de Francisco Julião

estava na censura prévia de diversões públicas. A análise dos três longos poemas, intitulados

Os direitos da mulher, Porque sou nacionalista e O sindicato é a estrela durou cerca de um

mês.

O que poderiam encontrar os censores? Os direitos da mulher127

argumentava contra a

violência praticada pelos homens em relação as suas companheiras, quando estas, por

exemplo, traiam-nos, ferindo assim o que se chamaria de honra ou moral. Para estes homens,

Julião dizia: “se o macho não se reprime e mata a mulher amada de punhal, bala ou facada,

merece o maior desprezo, deve ser punido e preso sem qualquer contemplação, alegar forte

emoção por ter a honra ultrajada, merece uma gargalhada como a de panta cruel”.

Ao final, o poeta conta uma história, que conservaria na memória, “dos meus tempos

de prisão”. Referia-se ao período, já citado, em que esteve preso na 2a Companhia das

Guardas, no Recife. Dizia ter ficado amigo de um soldado chamado José, que estava triste,

pois a esposa não mais o amava e andava se encontrando com outro homem. O soldado,

entretanto, ainda a amaria e mediante o desprezo pensava em matá-la. Julião então diz: “se eu

fosse você José e tivesse a sua fé, deixava em paz essa dama e apagava essa chama que lhe

consome por dentro, fazia força no centro da razão e do juízo, calculava o prejuízo que essa

morte me traria […] José não moveu sequer um dedo de sua mão, eu percebi que a razão

começava a dominá-lo”. O soldado, então, desistiu de matar a mulher e foi procurar alguém

que o amasse.

A faixa do Lp intitulada O sindicato é a estrela128

narrava, em seu início, uma história

para as Ligas Camponesas, ressaltando seu caráter legal e suas conquistas, como a

desapropriação do Engenho Galiléia, em 1959. E dizia: “a Liga hoje é história e pode contar

vitória já que foi dessas entranhas, apesar de tantas manhas, que nasceu o sindicato. […]

Aquela luta foi nobre, de vida sacrificada, e muita gente ceifada, como João Pedro Teixeira129

e os cinco da bagaceira da Usina Estreliana”130

.

127

Disco Julião, verso e viola. 128

Disco Julião, verso e viola. 129

Líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba. Para mais informações ver CARNEIRO, Ana; CIOCCARI,

Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e

desaparecidos. Brasília: MDA, 2010. p. 77-81. 130

Julião refere-se ao assassinato de camponeses que teriam se dirigido ao escritório da Usina Estreliana, na

Mata Sul de Pernambuco, para reivindicarem o chamado abono de natal, autorizado, por meio de ofício, pela

Delegacia Regional do Trabalho. Para mais informações ver PORFÍRIO, Pablo F. de A. Medo, Comunismo e

Revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: Ed. UFPE, 2009. Cap. 02; O caso é relatado por BEZERRA,

Gregório Lourenço. Memórias (segunda parte). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

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Os sindicatos rurais, para Francisco Julião, eram de lei e de fato os “filhos” das Ligas

Camponesas. Eles nasceram de suas “entranhas” e os trabalhadores, que sobreviveram à luta

nelas, deveriam entrar naqueles. “Tome logo a decisão, ingresse no sindicato depois de limpar

o mato que é a primeira obrigação”. E continuava: “o sindicato é corrente que não se deve

partir, para poder resistir ao inimigo que é forte, venha do Sul ou do Norte, você tem que

defender e lutar até morrer por uma democracia, que dê toda autonomia ao líder do sindicato”.

E conclui: “o tempo agora é de luta”.

O último poema do Lp chamava-se Por que sou nacionalista131

. Iniciava contando a

chegada das primeiras esquadras portuguesas a outro continente, em 1500, bem como a

“matança e escravidão” praticadas. Ressaltava a exploração das riquezas do Brasil realizadas

pelas nações europeias durante séculos. Francisco Julião seguia narrando uma história, que

passava pela Independência do Brasil, pela Guerra do Paraguai e pelos dois grandes conflitos

mundiais da primeira metade do século XX. Realizava considerações sobre a história de

outros países, com destaque para os Estados Unidos, que teria criado a CIA para espiar e para

“derrubar quem quisesse governar sem seu consentimento”. Acusava os norte-americanos de

terem acabado com as eleições de alguns países e instalado ditaduras: “Não respeitou nem os

curas, mandou mete-los no pote, matou até sacerdotes que defendia a pobreza. [… ] Com essa

denúncia eu fico, pois se for contar tudinho não para mais o moinho...”

Francisco Julião produziu uma longa crítica aos Estados Unidos, referindo-se à

interferência destes, principalmente, em países da América Latina. Ressalta uma invasão

econômica praticada pelo governo americano e por empresas daquele país, que desejavam,

possivelmente, “comprar as melhores terras” no Brasil. Tudo isso seria a ação de um “chacal”

chamado “imperialismo”. E conclui: “não há sujeição pior do que a que nos vem lá de fora e

eu digo aqui e agora que a nação se deve unir, a fim de não sucumbir sob domínio estrangeiro,

você não é brasileiro se não for nacionalista”.

Depois de ler os textos e escutá-los na voz do ex-líder das Ligas Camponesas, a

censura federal devolveu o material, com o resultado de sua avaliação, que se resumia a uma

palavra: “vetado! A “instituição” vetou página por página, mas o veto veio anônimo, ninguém

pôs o nome”132

. Francisco Julião se manifestou por meio da imprensa: “[…] com todo

respeito que tenho à Justiça, não admito que me tirem o direito sagrado de me comunicar com

o povo, da maneira mais suave que pode existir, que é através da poesia”133

. Os produtores

131

Disco Julião, verso e viola. 132

Texto assinado por Betinho em Julião, verso e viola, contracapa. 133

Jornal do Commercio, 16 de janeiro de 1981. APEJE.

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recorreram da decisão ao Conselho Superior de Censura. Depois de mais algum tempo,

receberam a resposta.

Antes, contudo, deve-se lembrar que em 1981, no período de transição para a

democracia, o Conselho Superior de Censura, regulamentado um ano antes, funcionava como

um espaço para as manifestações de discordâncias em relação às decisões da DCDP: “[…] A

atuação extremamente liberal do Conselho Superior de Censura, produziram, no nosso corpo

funcional, muita insegurança e conseqüente instabilidade emocional, o que, obviamente, deve

ter-se refletido no nosso trabalho”, afirmava um relatório da DCDP daquele mesmo ano134

.

Outro relatório dizia que a regulamentação do Conselho teria feito da Divisão um

“órgão moderador entre a liberdade de criação e expressão dos artistas e criadores e o grande

público […] se posicionando melhor neste momento de transição por que passa a sociedade

nacional, tentando encontrar o ponto ideal de atuação”135

.

Como um “órgão moderador”, a DCDP vetou todo o disco de Julião. E o Conselho

Superior de Censura, que teria uma “atuação extremamente liberal”, o que decidiu? Na

reunião de 11 de fevereiro de 1981, resolveu liberar a venda do Lp Julião, verso e viola,

porém permaneceu proibida a sua divulgação pelos meios de comunicação.

O Jornal do Commercio publicou parte da justificativa do representante do Ministério

das Comunicações no Conselho, o coronel da reserva Pedro Wandeck de Leoni Ramos:

A irradiação dos poemas de Francisco Julião pode reavivar certas coisas que

é hora de esquecer; quem quiser, ouça em casa, disse Leoni Ramos

referindo-se a possíveis riscos à abertura política que os poemas, em estilo

de literatura de cordel, do ex-líder das Ligas Camponesas, poderiam

causar136

.

Era uma censura política. Betinho disse, em relação à decisão: “da memória do

passado surgiu o medo. […] A decisão foi então o limite do possível, quando a liberdade só é

permitida no espaço de nós mesmos, escondidos das ruas e das praças e, portanto, do

povo”137

.

134

Um trecho do documento é citado em FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op. Cit. p.

277. 135

Parte de um relatório DCDP de 1981 citado em FICO, Carlos. Prezada Censura: cartas ao regime militar. Op.

Cit. p. 277. 136

Jornal do Commercio, 13 de fevereiro de 1981. p. 01. APEJE. 137

Texto assinado por Betinho em Julião, verso e viola, contracapa.

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Francisco Julião manifestou-se outra vez por meio da imprensa: “de toda forma a

censura continua, mesmo liberado o disco para venda. Isso é uma prova de que não estamos

vivendo um estado de Direito e sim de fato”138

.

O passado, que poderia se atualizar com os poemas de Julião, colocava em risco, de

acordo com a avaliação da censura, o presente do processo de redemocratização. Como falou

Betinho, o limite era a venda do disco, mas sem reprodução nos meios de comunicação. A

veiculação dos poemas poderia “reavivar certas coisas”, como disse o integrante do Conselho,

talvez se referindo à mobilização popular promovida pelos poemas de Francisco Julião na

época das Ligas Camponesas, movimento que foi relembrado pelo poeta em seu disco. Apesar

de não usar ideias como as de revolução e reforma agrária radical ou frases como “panela

vazia”, “tambor da revolução” e “reforma agrária na lei ou na marra”, como na década de

1960, os versos de Julião em 1981 operavam com o seu próprio passado e com o do país, ao

reapresentar o movimento das Ligas, a desapropriação do Engenho Galiléia, o assassinato de

trabalhadores na Usina Estreliana, a sua prisão na 2a Companhia de Guarda, a morte de

sacerdotes e o imperialismo político dos Estados Unidos em países da América Latina, que

contribuiu para a instalação de ditaduras militares. Convocava os trabalhadores a participarem

dos sindicatos, a organizarem suas reivindicações, a defenderem seu país e alertava que o

“tempo agora é de luta”.

Essas memórias como instrumento para a mobilização dos trabalhadores não se

encaixariam nos ditames do processo de abertura política dos anos 1980, não era parte

integrante da maquinaria da redemocratização. Os versos de Francisco Julião, com toda a

carga de atualização de uma memória da década de 1960, permeada pelas ideias de confronto

entre trabalhadores e latifundiários, poderiam incitar comportamentos violentos, que não eram

aceitos, incluindo os piores filmes de Sivester Stallone, naquela ordem de discurso. O uso da

memória criava um veto, mesmo que parcial, a Francisco Julião.

Os limites políticos produzidos pelo processo de redemocratização não aceitavam

aquilo que era considerado extremismos, seja de direita ou de esquerda139

. O disco em questão

poderia dialogar com essa extrema esquerda e colocar em risco, de acordo com a censura, a

abertura política, em que movimentos reivindicatórios ou mobilizações populares não eram

bem aceitas. Como dizia o editorial do Jornal do Commercio, “se estamos lutando contra a

violência, em todos os campos”, não se daria curso para um filme de Stallone, nem para os

versos de Julião. Os limites precisavam ser definidos e seguidos, seja por interesse do

138

Diario de Pernambuco, 14 de fevereiro de 1981. p. APEJE. 139

Essa discussão será retomada no próximo capítulo.

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governo, defensor de uma abertura lenta, gradual e segura, seja pelo desejo de uma parcela da

população que enviava cartas para a censura, exigindo a manutenção dos bons costumes, seja

pela vontade dos que concordavam com o artigo do jornal.

O Francisco Julião, que regressou ao Brasil com ideias de reconciliação e se dizendo

moderado, reiniciava sua reinserção política, atuando principalmente no campo partidário, sob

a bandeira do PDT. Contudo, o Julião que retornou e desejava se comunicar com as massas,

“da maneira mais suave que pode existir”, por meio dos seus poemas gravados em um Lp,

estava vetado, como se fez questão de mostrar na capa do disco, produzida por Maria Nakano,

esposa de Hebert de Souza.

Fig. 13 - Capa do disco Julião, verso e viola.

A anistia, como um esquecimento institucional, apresenta-se enquanto seleção de um

passado que se deseja proibido. Ela não é perdão, mas sim esquecimento. É por isso um pacto

criador de uma interdição da memória: “Finda a guerra, é proclamado solenemente: os

combates presentes, de que a tragédia fala, tornam-se o passado a não ser recordado. A prosa

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do político vem substituí-la”140

. E no caso do Brasil pós-ditadura, a democracia, em parte,

também produz o esquecimento de que ela própria representa a vitória de um pacto, traçado

por considerável parcela da sociedade, que optou pelo silêncio141

, seja em relação à tortura,

seja em relação à luta armada ou ao apoio civil à ditadura. Deve-se romper com a ideia de que

o final de um regime ditatorial significa obrigatoriamente o início de uma democracia,

baseada em uma irrestrita liberdade. Ou como alerta Daniel Aarão: “O mundo decididamente

não marcha para a democracia. Nem esta é inevitável”142

.

Isso significa também que não há uma transição entre dois blocos. De um lado a

ditadura e do outro a democracia. Esta é uma imagem criada por reconstruções lineares da

história. Práticas e discursos ditatoriais e democráticos muitas vezes se cruzaram, coexistiram,

se combinaram e se completaram143

. Não foi diferente no período de abertura e transição

política do início da década de 1980.

Francisco Julião experimentava esse emaranhado e dentro dele construía caminhos,

que em alguns momentos, levava-o a uma inserção política, com participação na dinâmica

partidária, porém em outros não. Ele representava, para uma parcela da sociedade, o passado

que era proibido e uma parte da memória relacionada a sua imagem deveria permanecer

“apagada e adormecida como coisa não ocorrida”144

. Estes são eixos das engrenagens

produtoras daquela redemocratização e que, por vezes, tornaram Julião visível apenas pela

lente do esquecimento.

140

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. p. 461. 141

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Op. Cit. p. 460. 142

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia: questões e controvérsias. In: MARTINHO, Francisco

Carlos Palomanes (Org.). Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006. p. 17. 143

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A ditadura militar em tempo de transição. In: MARTINHO, Francisco

Carlos Palomanes (Org.). Ditadura e democracia no Brasil. Op. Cit. p. 153. 144

Referência à memória existente no Edito de Nantes promulgado por Henri IV e citado em RICOUER, Paul. A

memória, a história, o esquecimento. Op. Cit. p. 461.

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Capítulo 05 - Novos pactos: transitar pela redemocratização

Francisco Julião seguia escrevendo textos utilizados na conquista de novos filiados

para o Partido Democrático Trabalhista, principalmente no Nordeste do Brasil. Em março de

1981, ele enviou uma carta ao Padre Almeida, presidente do PDT em Sergipe. Articulava a

ida do sacerdote ao Ceará para estabelecer contatos com outros religiosos, que ajudariam no

trabalho de filiação no interior desse estado1.

Os dois já haviam conversado em Recife, na sede do partido, possivelmente em uma

das reuniões que ocorriam às terças-feiras, a partir das 19 horas2. A carta dava então

seguimento a um diálogo sobre “a melhor forma de edificar o PDT no Nordeste”. Era

necessário realizar um trabalho para se manter “tenso e vibrante o imenso arco nordestino”.

Para tanto, os diretórios estaduais deveriam trocar impressões e informações sobre suas

atuações. O objetivo era que o PDT surgisse do “próprio seio das massas”, evitando o risco de

rupturas, vistas como frequentes em outros partidos e frentes “sem consistência ideológica e

nem uma filosofia política clara”3.

As afirmações sugeriam as ressalvas de Julião em relação ao PMDB, que apesar de

não estar citado, pode ser identificado como um desses partidos e frentes inconsistentes. Essa

era uma crítica já produzida em momentos anteriores4. A carta ainda indicava algumas das

suas formas de atuação. Após anos de exílio, voltava e tentava se aproximar, como ele mesmo

dizia, “das massas” no Nordeste do Brasil. Articulava apoios, visitava cidades e estados. Há

pouco tempo havia estado em Fortaleza.

Mas existiam diferenças em relação a esse trabalho de articulação e mobilização

realizado em décadas anteriores. Nos anos 1980, a mobilização social se realizaria a partir

unicamente de um partido, cujo funcionamento foi autorizado ainda em pleno governo militar.

Não havia interesse em criar um novo movimento de camponeses, como as Ligas.

Francisco Julião já não tinha as mesmas concepções políticas dos anos 1950. Por outro

lado, no meio rural existiam os sindicatos, as federações e a Confederação dos Trabalhadores

na Agricultura – CONTAG –, que começaram a atuar por volta de 1962 e já estavam

consolidados na década de 1980. Seria necessária uma nova articulação e muito esforço para

1 Carta de Francisco Julião ao Padre Almeida. Recife, 10 de março de 1981. FJ CEP 1, doc 03, C3. p. 01.

CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 2 Na contracapa do livreto O que é o PDT, de janeiro de 1981, havia o convite para as reuniões, com dia, hora e

endereço: Rua Bruno Maia 215, Graças, Recife-PE. FJ PIp 11 doc 94. CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 3 Carta de Francisco Julião ao Padre Almeida. Op. Cit.

4 Francisco Julião já fazia essa crítica ao antigo MDB quando regressou do México. Ver capítulo 04.

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se inserir outra vez na cena política, que apresentava uma dinâmica de funcionamento bem

diferente da existente nos idos de 19605.

Além disso, Julião era alvo de algumas acusações. Em 1965, Miguel Arraes o teria

apontado como um dos culpados pela sua prisão6, devido à radicalização de suas propostas,

expressa, por exemplo, no lema da reforma agrária radical na lei ou na marra. Passados 20

anos, essa acusação era utilizada novamente por integrantes de sindicatos rurais. Sobre isso, o

historiador Anthony Pereira, quando coletava material para a sua tese no interior de

Pernambuco, na década de 1980, registrou alguns relatos.

No município de Vitória de Santo Antão, onde surgiu a primeira Liga Camponesa,

integrantes do Sindicato dos Trabalhadores afirmavam que Francisco Julião “incitava os

trabalhadores à ação, mas não permanecia ao seu lado em momentos críticos”7. Já o

presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Glória do Goitá dizia: “Eu fui vítima da

política dele. Ele foi responsável pelo que aconteceu – eu fui preso. Eu fiquei desconfiado”8.

Essa última acusação se aproximava daquela realizada por Miguel Arraes quando encontrou

Julião na prisão, em 1965, e teria afirmado: “estou aqui por sua causa”9.

Por sua vez, o Secretário do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Aliança disse a

Anthony Pereira:

Julião entrou com as Ligas Camponesas e pediu que a gente fizesse coisas

contra a lei. Qual patrão ia dar terra para a reforma agrária? Teve um

trabalhador, membro da Liga, que foi morto depois do golpe... o Presidente

da Liga foi agredido e quase morreu. O Exército pegou o livro de registro e

caçou todos os membros da Liga10

.

5 O PCB e a Igreja Católica passaram a atuar na organização de sindicatos rurais. Esta última criou o Serviço de

Orientação Rural de Pernambuco – SORPE – em 1961, que organizava os trabalhadores rurais, procurando assim

limitar a influência do Partido Comunista. Em 1962, foi fundada a Federação dos Trabalhadores Rurais de

Pernambuco e no ano seguinte a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG. As

Ligas Camponesas também procuraram criar sindicatos, mas a concorrência já era grande e os problemas

internos de organização também. Sindicatos e federações seguiram atuando durante a ditadura militar. No final

da década de 1970 participaram da organização das grandes greves dos trabalhadores rurais em Pernambuco. No

início dos anos 1980, a FETAPE intensificou sua ação na atividade de formação dos sindicalistas. No decorrer

desse período, várias forças políticas-partidárias passaram a atuar na Federação e nos sindicatos em Pernambuco,

a saber: PCB, PC do B, MR-8 e mesmo o PT, cujos militantes trabalhavam, por exemplo, como assessores e

funcionários. ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: Lutas, Partidos,

Projetos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. 6 Segundo entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. CEHIBRA.

Fundação Joaquim Nabuco. 21 de setembro de 1982. p. 61. 7 PEREIRA, Anthony W. O Mito de Francisco Julião. In: Cadernos de Estudos Sociais. Vol. 7, n° 1. Recife:

Fundação Joaquim Nabuco. Janeiro/junho 1991. p. 108. 8 PEREIRA, Anthony W. O Mito de Francisco Julião. Op. Cit.

9 Entrevista concedida por Francisco Julião a pesquisadora Eliane Moury Fernandes. Op. Cit.

10 PEREIRA, Anthony W. O Mito de Francisco Julião. Op. Cit.

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A memória do secretário pode ser contraposta aos relatos de Francisco Julião no final

da década de 1970, quando ele ressaltava que suas ações junto as Ligas estavam dentro de

uma legalidade e de acordo com o código civil do período. Além disso, a violência, com

assassinatos, sofrida pelos camponeses após o golpe de 1964 não foi relacionada apenas a

forte repressão do exército. Resultou, segundo essas afirmações, das ações do então líder das

Ligas Camponesas, que teria atraído os trabalhadores para uma política que se mostrou

inconsequente e ao final os abandonou a própria sorte.

Aquelas acusações de membros de sindicatos rurais na década de 1980 reforçavam a

memória na qual Francisco Julião era o culpado pelo golpe, mas também pela repressão que

se seguiu. Esses discursos revelam uma memória anti-Julião que circulava entre uma parcela

dos líderes sindicais nos anos de redemocratização do Brasil. Esta memória talvez se

constituísse como mais um obstáculo para a retomada de suas ações no meio rural e

reforçavam imagens produzidas nos anos 1960.

1 – Caminhos.

Em 1977, o estudante João Pedro Stédile cursava o mestrado em economia na

Universidade Nacional Autônoma do México11

e teve a oportunidade de se encontrar e

conversar com Francisco Julião, em Cuernavaca. O jovem, que viria a se tornar uma das

lideranças do futuro Movimento dos Sem Terra – MST –, escutava as histórias do líder

camponês exilado, que seria tomado anos depois como uma das referências do movimento12

.

Talvez, durante esses encontros, houve um convite para a participação de Julião em

um movimento de trabalhadores rurais que anos depois viria a ser o MST. Em uma entrevista,

Stédile dizia que estava interessado em saber sobre os erros e os acertos da experiência das

Ligas13

. Devia ter comentado sobre suas ideias para lutar por uma reforma agrária no Brasil.

De um lado, havia um jovem estudante do Rio Grande do Sul, que trabalhava junto a

Comissão Pastoral da Terra e desejava organizar e mobilizar os camponeses. Do outro, existia

um exilado que, no final da década de 1970, não se mostrava interessado em reorganizar

qualquer movimento próximo daquilo que havia sido as Ligas Camponesas. O leitor deve

11

João Pedro Agustini Stédile foi alvo de um relatório confidencial de quatro páginas arquivado no fundo da

DSI/MJ, nas quais estão registradas informações sobre a sua atuação estudantil na Universidade Federal do Rio

Grande do Sul e na UNAM. Divisão de Segurança de Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 613.

Doc. N° 100599. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 12

Entrevista de Joâo Pedro Stédile ao jornalista Vandeck Santiago. SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião, as

Ligas e o golpe militar de 64. Recife: COMUNIGRAF, 2004. p. 27-30. 13

SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião, as Ligas e o golpe militar de 64. Op. Cit.

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recordar que na entrevista para a revista Veja, em 1978, Francisco Julião já informava essa

sua posição14

. Apenas em 1984, o MST realizou o seu primeiro encontro nacional, em

Cascavel no Paraná15

, e o ex-deputado e ex-líder das Ligas não participou.

A essa altura, outro caminho já havia sido escolhido. Militar em um partido, na rede

política de Leonel Brizola, e assim utilizar do discurso do trabalhismo para mobilizar amplos

setores da população. Ao escolher o PDT, Francisco Julião desejaria uma dinâmica de ação

institucional e se afastaria de um projeto de luta pela reforma agrária, com marchas e

ocupações de terras, que se tornaram a bandeira do MST liderado por João Pedro Stédile.

Caso houvesse aceitado participar desse movimento camponês, seu passado de luta pela

reforma agrária seria ainda mais fortemente atualizado. Contra isso ele lutava, como deu a ler

por meio das entrevistas concedidas no final do exílio no México. Ademais, isso seria

incompatível com os planos do PDT e o posicionamento de moderação apresentado por

Leonel Brizola16

.

A opção de trabalhar para a consolidação do seu novo partido tomava grande parte do

tempo de Francisco Julião no início da década de 1980. Nesse sentido, poucos dias depois de

escrever aquela carta ao Padre Almeida, redigiu uma convocação intitulada “Companheiro”.

Consistia em um texto assinado e datado de abril de 1981, por meio do qual ele chamava os

filiados do PDT a participarem das convenções municipais, cumprindo assim uma exigência

da lei eleitoral e prosseguindo com o processo para a obtenção do registro definitivo17

.

Ao comparecer à convenção, o filiado estaria, segundo o texto, reafirmando o

compromisso programático do partido, que em linhas gerais era o seguinte:

Pense seriamente, companheiro, em nosso objetivo de chegar a ser governo,

no município, no estado e na República, a fim de levar à prática o Programa

do Partido, dando, assim, início, a uma transformação profunda da sociedade

brasileira até que não haja em nossa Pátria um camponês sem terra, um

operário sem trabalho, uma criança sem escola, um jovem sem universidade,

14

Revista Veja. 11 de outubro de 1978. p. 04. 15

Sobre a formação do MST: FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ:

Ed. Vozes, 2000. Em janeiro de 1985, foi organizado o primeiro congresso nacional, dando início ao processo de

territorialização do MST. Especificamente para as mobilizações e congressos no período de formação, entre

1979 e 1984, ver o capítulo 2. 16

O retorno de Leonel Brizola gerava desconfianças nos militares e em lideranças civis. Portanto, se fazia crucial

reiterar que o projeto do novo trabalhismo, no qual estava inserido Julião, apresentava-se totalmente

comprometido com a democracia e o fortalecimento das instituições políticas. SENTO-SÉ, João Trajano. Um

encontro em Lisboa. O novo trabalhismo do PDT. In: FERREIRA, Jorge e REIS FILHO, Daniel Aarão.

Revolução e democracia (1964…) As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,

2007. p. 441. 17

Companheiro. Texto de Francisco Julião. Recife, abril de 1981. FJ CEP 1, doc 04, C3. p. 01. CEHIBRA -

Fundação Joaquim Nabuco.

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um velho desamparado, uma mulher injustiçada, um negro discriminado, um

índio assassinado, uma floresta destruída, uma cidade contaminada, uma

empresa estrangeira sem controle, em suma, um brasileiro sem esperança18

.

Francisco Julião compartilhava o objetivo do PDT de tornar-se governo e promover

um amplo leque de mudanças por meio da administração das cidades, dos estados e do país.

Essas mudanças propostas além de contemplar temas bastante presentes nos debates políticos,

como os camponeses e os operários, também apontavam para uma nova pauta que incluía: a

preservação das florestas, os problemas urbanos, a velhice, a discriminação racial e a questão

indígena19

.

Nesse trabalho de estruturação do partido, Julião se valia de uma estratégia de atuação

do período das Ligas Camponesas. Escrevia cartilhas, utilizando-se do formato da literatura

de cordel. Assim foi produzido, em conjunto com Aybirê Ferreira de Sá20

, O que é o PDT,

datado de janeiro de 1981. Segue um trecho:

Pra fazer o P.D.T.

É preciso trabalhar

Preencher uma fichazinha

E muitos núcleos formar

Em cada rua você

Deve a todos convocar

Fazer o núcleo de base

Pra no Partido ingressar

Só assim, meus companheiros,

Poderemos derrotar

No ano de 82

Quem nos suga até matar21

.

Esse material provavelmente era utilizado pelas comissões provisórias municipais,

responsáveis por novas filiações. Em abril de 1981, foram criadas 11 dessas comissões no

18

Companheiro. Texto de Francisco Julião. Op. Cit. 19

No resumo do Programa do Partido Democrático Trabalhista, o primeiro tópico apresentava os sete

Compromissos Prioritários. Todos foram citados por Francisco Julião na sua convocatória dos Companheiros

para a Convenção, a saber: 1º - Crianças e jovens; 2º - Interesses dos trabalhadores; 3º - Compromisso com a

mulher; 4º - Causa das populações negras; 5º - Defesa das populações indígenas; 6º - Defesa da natureza

brasileira; 7º - Recuperação das concessões feitas a grupos multinacionais. O resumo estava diagramado em

formato de livreto, com o desenho na capa de uma família pobre, provavelmente retirante, com o seguinte título:

Resumo do Programa do seu Partido. Trazia também o endereço da sede do PDT em Recife, o que indicava uma

circulação municipal ou mesmo estadual. FJ PIp 11 doc 92. CEHIBRA - Fundação Joaquim Nabuco. 20

Participou das Ligas Camponesas e integrou o Partido Operário Trotskista – PORT. Ingressou no PDT ao

regressar do exílio. Ver SÁ, Aybirê Ferreira. Das Ligas Camponesas à anistia. Memórias de um militante

trotskista. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2007. 21

Aybirê Ferreira de Sá e Francisco Julião. O que é o PDT, janeiro de 1981. FJ PIp 11 doc 94. CEHIBRA -

Fundação Joaquim Nabuco.

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interior de Pernambuco, em cidades como Feira Nova, Lagoa de Itaenga, Palmares, Sertânia e

Bonito22

. Francisco Julião estava integrado a essa ação partidária e, mesmo quando não se

fazia presente, seu nome circulava por meio da apresentação e distribuição desses textos.

O objetivo do PDT era participar da disputa eleitoral do ano seguinte. O partido surgia

como a segunda força oposicionista em Pernambuco, atrás do PMDB. Contava na Assembleia

Legislativa estadual com quatro deputados e um na Câmara Federal23

, além da participação

ativa dos ex-ministros do governo João Goulart, Oswaldo Lima Filho e Armando Monteiro

Filho, que haviam sido filiados ao PTB antes do golpe de 1964.

Ainda em abril de 1981, às vésperas da convenção partidária, Francisco Julião enviou

uma carta a Hugo Vigorena, um amigo da época do exílio. Pedia os endereços de Ariel

Dorfman e Armand Nattelart, autores do livro Para leer al Pato Donald24

. Sua filha Anatailde

Crespo pretendia traduzir a obra para o português do Brasil - já havia uma versão portuguesa -

e para tanto desejava escrever aos autores e saber dos seus interesses na publicação25

.

Nessa mesma correspondência, Julião informava a Hugo Vigorena como se

organizava a sua vida e quais eram seus planos, naquele abril de 1981. Dizia haver se atirado

diretamente em uma das correntes políticas nas quais se dividia o Brasil, com vistas ao

“enfrentamento eleitoral”, esperado para o final de 1982. Isso lhe tomava todo o tempo.

Por hora, me empenho, junto a Leonel Brizola, Neiva Moreira, Teotônio dos

Santos, Darcy Ribeiro e outros companheiros na reconstrução e registro

definitivo do PDT […] Estamos em uma corrida com obstáculos, que

esperamos ganhar. De minha parte atuo mais no Nordeste do país,

especialmente em Pernambuco, meu estado, pelo qual pretendo disputar uma

vaga para Deputado Federal26

.

Esses planos estavam pouco a pouco sendo executados. Em 26 de abril de 1981, as

convenções municipais do PDT foram realizadas em cerca de 70 cidades de Pernambuco. A

Lei Eleitoral exigia o mínimo de 37. O deputado João Ferreira Lima, Segundo Secretário da

Mesa Diretora da Assembleia Legislativa, afirmou que enviaria no dia seguinte os pedidos de

22

Jornal do Commercio, 03 de abril de 1981. p. 05. APEJE 23

Deputados estaduais: Assis Pedrosa, Augusto Férrer, João Ferreira Lima e Paulo Andrade Lima. Deputado

Federal: Sergio Murilo. 24

O livro foi escrito no Chile, no período do governo de Salvador Allende, e procurava apontar o conteúdo

imperialista existentes nas histórias de Walt Disney. 25

Carta de Francisco Julião a Hugo Vigorena. Recife, 05 de abril de 1981. FJ CEP 1, doc 05, C3. CEHIBRA -

Fundação Joaquim Nabuco. 26

Carta de Francisco Julião a Hugo Vigorena. Op. Cit.

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registro dos Diretórios Municipais ao Tribunal Regional Eleitoral. Mostrava-se “otimista

quanto ao futuro político eleitoral do seu partido no pleito direto para governador em 1982”27

.

Com o sucesso das convenções e a proximidade da obtenção do registro definitivo por

parte do PDT, Francisco Julião conquistava apoios políticos para o seu plano de ser candidato

a deputado federal, o que representaria a construção de um espaço institucional de atuação.

Ou a reconstrução, pois são nesses termos que ele apresentava sua candidatura em uma

entrevista concedida em maio de 1981.

Quando fui cassado em 1964 – cassado com dois “ss” e com cedilha - levei

para o exílio a frustração de não haver podido cumprir aquele mandato que a

gente mais humilde de Pernambuco me entregou. No próximo ano, vou

perguntar aos pernambucanos se estão dispostos a me devolver o que a

contrarevolução me arrebatou. Será uma espécie de plebiscito. Só serei

candidato se a resposta for positiva28

.

O golpe civil-militar de 1964 foi representado naquele momento pré-eleitoral, com o

sentido de justificar o seu projeto político nas eleições de 1982. A ilegalidade estava

relacionada à “contrarrevolução” que lhe cassou o mandato legalmente concedido pelos

“pernambucanos” através das urnas. O uso dessa memória na entrevista oferecia-lhe uma

condição de injustiçado, cassado e caçado que fora pelo regime civil-militar. Contrapunha-se

a qualquer ilegalidade atribuída a sua atuação antes de 1964, situando-a em um lugar político

institucional que desejava ser reconquistado.

2 - Reforma eleitoral e mudança de rota.

Até o final de 1981, o Partido Democrático Trabalhista já havia se organizado em 11

estados: Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná,

Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. A Lei Orgânica

dos Partidos, de 1979, estabelecia como obrigatória para a formação de novos partidos a

realização de convenções regionais em pelo menos nove estados e em cada um deles,

convenções municipais em no mínimo 20% das suas cidades29

.

Pernambuco tinha 164 municípios. De acordo com os cálculos da nova lei, os partidos

deveriam formar pelo menos 33 diretórios municipais. O Partido Democrático Social – PDS –

27

Jornal do Commercio, 28 de abril de 1981. p. 05. APEJE 28

Jornal do Commercio, 31 de maio de 1981. p. 08. APEJE 29

Os números seguintes referentes à organização de cada partido foram retiradas de ALVES, Maria Helena

Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 332-338

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constituiu 137, seguido pelo PMDB com 101, o PDT com 45 e o PTB com 44. O Partido

Progressista – PP – e o Partido dos Trabalhadores – PT – ainda não estavam constituídos no

estado. Contudo, em nível nacional, se faziam representados em 13 unidades da federação.

Assim, os partidos caminhavam para as eleições de 15 de novembro de 1982, no qual

seriam escolhidos governadores, senadores, deputados, prefeitos30

e vereadores. O PDS

tentava manter a base partidária da antiga ARENA. O PMDB formava uma ampla frente

política que agregava de empresários a camponeses. Abrangia setores mais conservadores,

interessados administrar uma transição política com todas as salvaguardas e integrantes de

organizações ainda na clandestinidade, como o MR-8, o PCB e o PC do B31

.

No Partido Progressista, Tancredo Neves era um dos principais articuladores. Reunia o

grupo mais conservador do antigo MDB e quadros da ex-ARENA, que visavam também

integrar o governo de transição, dentro da política de liberalização praticada por João

Figueiredo32

.

O PTB congregava uma considerável força política ao reunir o trabalhismo,

representado por Ivete Vargas, o janismo, com o ex-presidente Janio Quadros e a herança do

lacerdismo. Apresentou muitas vezes um posicionamento pragmático de negociação, estando

ora com a oposição e ora com o governo33

.

Nessa linha, o PDT tentou usar de um trabalhismo político, tomado como herança do

ex-presidente João Goulart. Era constituído ainda por um setor socialista, com alguma

influência dentro do partido. Mas, as decisões estavam centradas sobretudo em Leonel

Brizola.

A formação de novos partidos acabou por promover um debate político e uma

mobilização social que não eram esperados pelo governo militar. Um estudo realizado pelo

SNI apontava o risco de derrota do PDS em várias das principais capitais. Mas as eleições de

1982, com voto direto, eram consideradas importantes para a legitimação do projeto de uma

abertura controlada pelo governo34

.

Para diminuir os riscos, criou-se uma reforma eleitoral, anunciada em novembro de

1981. O Pacote de Novembro, como ficou conhecido, proibia a formação das coligações entre

os partidos, que para participarem das eleições estariam obrigados a apresentar candidatos a

30

Exceto nas capitais e nos municípios classificados como de interesse da segurança nacional. 31

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Op. Cit. 329. 32

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil. In:

DELGADO, Lucilia. FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura. v. 4. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2009. p. 274. 33

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Op. Cit. 330. 34

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Op. Cit.

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todos os cargos em disputa em cada cidade. Por sua vez, o eleitor era obrigado a votar no

mesmo partido, desde vereador até governador. Era o chamado voto vinculado, que acentuou

a divisão das oposições e fortaleceu o PDS que possuía uma rede política municipal herdada

da ARENA e com isso encontrou menos dificuldades para construir as candidaturas.

Os partidos de oposição fizeram duras críticas a este casuísmo da legislação eleitoral.

O PP, identificando as dificuldades que enfrentaria nas eleições, incorporou-se ao já

consolidado PMDB, apesar da resistência de setores peemedebistas35

. Entre os outros partidos

de oposição, apenas o PT conseguiu apresentar candidaturas em todos os estados.

Nesta nova configuração política, o PDT centrou sua campanha no Rio de Janeiro e no

Rio Grande do Sul. Em Pernambuco, setores do partido defendiam a ideia, anterior à reforma

eleitoral, de uma coligação com o PMDB, que lançaria Marcos Freire como candidato a

governador e teria o trabalhista Armando Monteiro Filho, indicado para concorrer ao senado.

Ainda em relação a essas articulações políticas de candidaturas, Francisco Julião era cogitado

para ser lançado como deputado federal, desejo já expressado naquela carta escrita a Hugo

Vigorena.

A dificuldade imposta ao PDT pela reforma eleitoral de 1981 fez com que alguns dos

seus principais integrantes, como Sergio Murilo, Oswaldo Lima Filho, Assis Pedrosa e João

Ferreira Lima Filho, procurassem o PMDB36

. Todos foram movidos principalmente pelo

interesse de viabilizar suas candidaturas. Com isso, os trabalhistas se enfraqueceram em

Pernambuco. Ficaram impossibilitados de efetivar suas coligações e lançar Armando

Monteiro Filho para o senado. Francisco Julião também desistiu de sua candidatura, planejada

desde o ano anterior. Depois de alguma resistência, passou então, junto com outros

representantes do partido, a apoiar a candidatura do peemedebista Marcos Freire e de Cid

Sampaio, que acabou sendo o escolhido para concorrer ao cargo de senador.

Escreveu então um livreto, com 29 versos, para ser distribuído no período da

campanha eleitoral, intitulado: O P.D.T. não divide. Está com Marcos e Cid. Na capa, além

do título, bandeiras entrecruzadas com os nomes dos partidos foram desenhadas e

representariam a união partidária.

Assinado por Chico Julião, o texto propunha que a única forma de derrotar o PDS e,

por conseguinte, o governo militar era por meio da união das oposições.

35

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil. Op.

Cit. 36

Sobre essa questão ver Jornal do Commercio, 04 de dezembro 1981. p. 07 APEJE.

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O tempo agora é de unir

Como faz o PDT

Sendo amigo de você

Eu peço a sua atenção

Só existe oposição

Votando em Marcos e Cid37

.

Em outro texto apenas rascunhado e intitulado eleição e voto vinculado, Francisco

Julião esboçou algumas ideias que também estão presentes nos versos do livreto citado acima.

Sem estar assinado, nem datado, mas escrito com a caligrafia do articulador do PDT, o

rascunho explicava o funcionamento desse novo tipo de votação e apresentava as razões do

seu partido apoiar o PMDB.

Todo mundo sabe em Pernambuco que o único partido que tem condições

de derrotar o partido do governo, o PDS, é o PMDB. Porque é o maior, o

mais bem organizado e o que reúne melhores condições para vencer. Foi

por essa razão que o PDT deixou de apresentar candidatos. E pediu aos seus

filiados que votassem no PMDB. Isso foi feito em nome da UNIDADE (sic)

das oposições38

.

Provavelmente, esse texto não foi impresso e nem circulou na campanha. Apenas o

livreto com os versos, no qual não existe essa exaltação ao partido de Marcos Freire como o

“maior, o mais bem organizado”. Francisco Julião pode ter moderado o tom dos elogios por

recomendação dos correligionários do PDT.

Um aspecto, contudo, deve ser ressaltado. Julião deslocava-se daquela posição de

crítica à união das oposições em torno do antigo MDB, defendida desde sua chegada do

exílio. Integrava-se de tal modo, junto com o seu partido, na campanha de Marcos Freire que,

além de pedir voto por meio de suas publicações, subiu ao palanque dos peemedebistas, em

comício ocorrido no pátio da feira do bairro Santo Amaro, em Recife, no dia 12 de novembro

de 1982.

Dias antes, os presidentes do PDT, Luiz de Andrade Lima, e da sua Juventude

Nacional Trabalhista, Anacleto Julião, o filho mais novo de Francisco Julião, convocavam os

seus militante a participarem do comício. Além do seu pai, Anacleto informava, em sua

convocatória, que Armando Monteiro Filho estaria entre os oradores da noite39

.

37

O PDT não divide. FJ PIp 10 doc 91. CEHIBRA – Sem data. Fundação Joaquim Nabuco. 38

Eleição direta e voto vinculado – manuscrito. Sem data. FJ PIp doc 50, 6. CEHIBRA - Fundação Joaquim

Nabuco. 39

Jornal do Commercio, 12 de novemnro de 1982. p. 05. APEJE

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A campanha de Marcos Freire teve assim o seu último ato, que reuniu cerca de 50 mil

pessoas no tradicional bairro e reduto das oposições, Santo Amaro. Apesar da considerável

mobilização, chegava ao fim enfrentando conflitos dentro do próprio PMDB40

. Dois meses

antes, havia surgido a ideia de publicar um outdoor com as imagens dos candidatos a

governador e a senador, junto com Jarbas Vasconcelos e Miguel Arraes, que concorriam a

vagas na Câmara Federal.

Não houve acordo. Os candidatos a deputado federal alegaram que não aceitavam

aparecer junto a Cid Sampaio41

. Divergências políticas com Arraes, do início da década de

1960, e com Jarbas, nas eleições para o senado em 1978, eram os principais motivos que

circularam na imprensa para a não autorização do uso de suas imagens, em 1982, no outdoor

junto com Cid Sampaio e Marcos Freire. E eram indicados também como um dos elementos

para explicar o pouco envolvimento deles na campanha majoritária. Um dos assessores do

PMDB fez a seguinte consideração sobre o diagnóstico de Miguel Arraes para a publicação

do outdoor: “uso eleitoreiro da sua imagem junto aos dois candidatos do partido, para tentar

transmitir uma unidade, que, na prática não está existindo”42

.

Já Francisco Julião optou por oferecer amplo apoio aos candidatos a governador e

senador pelo PMDB, apesar de no passado ter rompido com o então governador Cid Sampaio,

após a desapropriação do Engenho Galiléia, em 1959. Acreditava na vitória de Marcos Freire,

considerada até pouco tempo antes da eleição como quase certa. Ao final, o PDS venceu em

Pernambuco e fez de Roberto Magalhães43

o novo governador e Marco Maciel, que acabara

de deixar o comando do executivo estadual, o senador. Miguel Arraes, com pouco mais de

190 mil votos, e Jarbas Vasconcelos, com mais de 170 mil, sagraram-se os deputados federais

mais votados e fortaleceram suas posições dentro do PMDB 44

.

No Rio de Janeiro, Leonel Brizola foi eleito governador45

, uma importante vitória para

as pretensões de expansão e consolidação do PDT em nível nacional. Ao mesmo tempo em

40

Jornal do Commercio, 13 de novembro de 1982. p. 01 e 07. APEJE 41

Jornal do Commercio, 12 de setembro de 1982. p. 05. APEJE 42

Jornal do Commercio, 12 de setembro de 1982. p. 05. APEJE. 43

Roberto Magalhães recebeu 913.774 votos, enquanto Marcos Freire, 816.085. Dados publicados no Jornal do

Commercio, 18 de dezembro de00201982. p. 05. APEJE. 44

Miguel Arraes obteve exatamente 191.471 votos e Jarbas Vasconcelos 172.004. Jornal do Commercio,

18/12/1982. Op. Cit. 45

No caso do Rio de Janeiro, o PMDB havia indicado Miro Teixeira como seu candidato a governador nas

eleições de 1982. O partido estava liderado pelo grupo do então governador Chagas Freitas (1979-1983), que

havia se filiado ao PP, mas se incorporado ao PMDB após a reforma eleitoral de 1981. O PTB lançou a

candidatura de Sandra Cavalcanti, que apoiou ao movimento golpista de 1964 e esteve ligada à ARENA durante

a ditadura. Nessa conjuntura, Leonel Brizola fez uma campanha na qual reintroduziu uma discussão nacional,

reforçando a legitimidade política de sua liderança oposicionista ao atualizar o debate sobre o golpe de 1964. Ao

mesmo tempo, buscava apresentar aquilo que chamava de falso oposicionismo, referindo-se ao grupo do PMDB,

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que viam essa conquista política, os trabalhistas, como Francisco Julião, que apoiaram Marcos

Freire em Pernambuco, viviam o fracasso do seu projeto político para aquelas eleições. Além

disso, na divisão interna do PMDB, eles apoiaram o lado que fracassou. O vitorioso era o

liderado por Miguel Arraes.

3 - Cartilha(s).

O projeto do disco Julião, verso e viola, censurado para exibição pública, foi uma das

ações desenvolvidas para além do partido e que poderia projetar sua imagem outra vez em

nível nacional. Entretanto, essa não havia sido a única ação de Julião nesse sentido. Ainda em

1981, escreveu a Cartilha do trabalhador do campo. Mais uma vez, lançava mão de uma

estratégia empregada, entre os anos 1950 e 1960, na mobilização de camponeses no Nordeste

do Brasil.

Está na hora de conversar contigo, trabalhador do campo, diarista, tarefeiro,

limpador de mato, cortador de cana, cuidador de gado, rendeiro, vaqueiro e

dono de meio palmo de terra. Há muitos anos a minha conversa foi com o

foreiro, o oiteiro, o meeiro, que lidavam de sol a sol, sujeitos a tudo e sem

direito a nada. Aquela conversa começou em 40, mas só em 45 pude dar o

primeiro grito contra o CAMBÃO. Dez anos depois, em 55, nasce a primeira

Liga, ali na Galiléia, com o velho Zezé à frente. O camponês pobre, sem

terra, foi tomando chegada. No começo, desconfiado, e até com medo.

Perguntando: “É de lei?”. E a gente respondendo: “É de lei”. Foi assim que a

Liga cresceu e se multiplicou. Espalhou-se pela Zona da Mata e pelo

Agreste. Depois pela Paraíba, o Rio Grande do Norte e as Alagoas.

Finalmente, pelo Brasil. É das entranhas da Liga que nasce o Sindicato. Ali

pelo ano de 61. Depois do grande Congresso Nacional Camponês, em Belo

Horizonte. A Liga cumpriu o seu papel. Deu heróis e deu mártires. Passou

para a História. Mas aí está o Sindicato46

.

De início, o leitor pode atentar para uma questão: a palavra camponês não aparece no

título, como na Cartilha do Camponês, do ano de 1960. Em 1981, era “trabalhador do

campo”. O primeiro era um termo que atualizaria um passado de intensa mobilização de um

segmento social, que marchou para as cidades e ocupou terras, carregando grandes cartazes

e ressaltando as ligações do chaguismo com o regime militar e assim potencializando as insatisfações populares

com o governo estadual. Após a vitória, o discurso de rompimento com as forças políticas dominantes foi sendo

esvaziado. Na sua administração foram incorporados elementos dos grupos políticos derrotados e dissolvida a

renovação preconizada durante a campanha eleitoral. Para uma discussão detalhada dessas questões:

SARMENTO, Carlos Eduardo. Entre o carisma e a rotina: as eleições de 1982 e o primeiro governo. In:

FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ALERJ,

CPDCO/FGV, 2008. p. 43-67. 46

Cartilha do Trabalhador do Campo – Datilografada e com acréscimos manuscritos. 15 de agosto de 1981. FJ

PIp 5 doc 41,4. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

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com a imagem de revolucionários, como Ernesto Che Guevara e Fidel Castro, e entoando

gritos de “reforma agrária na lei ou na marra”. Não era isso que Francisco Julião desejava

lembrar do passado47

.

Ao usar “trabalhador do campo”, ele passava a operar com a denominação que foi

oficialmente adotada pelos sindicatos rurais. Direcionava seu texto para os representantes de

novas formas de trabalho no meio rural e que não participaram do movimento das Ligas

Camponesas. Eram ainda pessoas que estavam ou deveriam estar nos sindicatos de

trabalhadores rurais espalhados pelo interior de Pernambuco.

Mas o sindicato, segundo Julião, nasceu do trabalho realizado pelas Ligas

Camponesas. Esse argumento havia sido apresentado na faixa O Sindicato é a estrela do seu

disco Julião, verso e viola. Já tinha aparecido também em seu próprio livro, Cambão, escrito

no México no final dos anos 1960, e usado como temática do documento Bença, Mãe! lido

para cerca de 10 mil pessoas em uma praça no centro do Recife, em 2 de janeiro de 1964.

Nesta ocasião se dizia: “A liga é a mãe do sindicato”48

. Nesses dois últimos escritos,

enfatizava-se a dimensão de que enquanto as Ligas lutavam por terra e salário, o sindicato

direcionava suas ações apenas para o salário. No seu livro, a reflexão construída era a

seguinte: “a Liga tinha razão para temer que a luta pura e simples pelo salário amortecesse ou

anulasse o impulso do camponês no sentido de conquistar a terra, que é o objetivo

fundamental”49

.

Na Cartilha do trabalhador do campo de 1981, Julião voltava a afirmar que o

sindicato surgiu das “entranhas da Liga”. Construía um lugar de autoridade para o seu

discurso ao afirmar que a mobilização sindical daquele momento resultava das lutas e

conquistas realizadas pelo movimento do qual ele foi um dos principais articulador e líder. Ao

estabelecer uma linha de continuidade das Ligas aos sindicatos rurais, projeta-se como

responsável também pela criação dos sindicatos.

Na referida Cartilha há uma convocação para que os trabalhadores participem dos

sindicatos. Convocar parentes, vizinhos e amigos a organizarem-se e dessa forma melhor

47

Quando na década de 1950, Francisco Julião utilizou o termo camponês em um discurso na Assembleia

Legislativa de Pernambuco, foi aparteado por uma deputada que lhe dizia ter o termo uma carga política e

ideológica muito grande. Julião não recuou de sua posição. O uso da expressão instituía uma nova prática, que

provocava receios na sua colega e em diversos setores sociais. O que se seguiu foram congressos de camponês,

expansão das Ligas e passeatas pelas ruas centrais do Recife. A discussão está em MONTENEGRO, Antonio

Torres. Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução. In: História, metodologia, memória. São

Paulo: Ed. Contexto, 2010. p. 84. 48

Bença,Mãe! O texto desse documento foi transcrito na íntegra no livro Cambão, p. 215-224. JULIÃO,

Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Recife: Bagaço, 2009. 49

JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. p. 214.

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lutarem pela garantia do salário mínimo, do repouso semanal remunerado, do décimo terceiro,

das férias, da assistência médica e dentária, da escola para os filhos, da aposentadoria, do

direito à greve e da terra para trabalhar.

A pauta de reivindicação contemplava não apenas as questões relacionadas às

condições de trabalho, mas as próprias condições de vida. Foi atualizada para os debates dos

anos 1980. A questão do direito à terra não tinha mais a centralidade existente na cartilha de

1960. Não se falava da conquista da terra por meio de uma reforma agrária, nem na lei, nem

na marra.

A Cartilha do trabalhador campo foi impressa e distribuída50

. O Jornal do

Commercio de 13 de janeiro de 198251

traz uma reportagem sobre essa publicação e comenta

a não participação de Julião nas eleições que se aproximavam: “Julião desiste de ser deputado

e faz cartilha de camponês”52

. Teófilo Silva, jornalista que escreveu a matéria, afirmava que o

ex-líder das Ligas Camponesas estava voltando as suas atividades do pré-1964. Assim o título

da reportagem já anunciava que a decisão de não concorrer a uma vaga no Congresso

Nacional era unicamente de Francisco Julião. Dessa maneira, a desistência da candidatura não

teria relação com a reforma eleitoral de 1981 e o estabelecimento do voto vinculado,

aparecendo associada à opção pela retomada do trabalho com o camponês. A reportagem

decretava que a “Cartilha do trabalhador do campo marcava uma nova etapa de Julião junto

ao trabalhador do campo”53

.

Após transcrever algumas passagens do texto da cartilha, Teófilo Silva comentava o

que considerava ser o seu maior significado: “Nas entrelinhas das suas lições sobre o

sindicalismo Julião deixa claro que voltará aos campos, revivendo os dias em que camponeses

queriam, partindo da Galiléia, marchar contra o Recife”54

. O passado de mobilização das

Ligas Camponesas era atualizado na leitura da Cartilha de 1981.

O jornalista havia entrevistado o ex-líder camponês, o qual teria lamentado “que

forças estranhas tenham se infiltrado as Ligas Camponesas e as conduzido ao terror”55

. Em

seguida, o leitor encontrava aquilo que seria a transcrição de uma declaração de Francisco

Julião: “Nunca pretendi derramamento de sangue, tomada de terra na marra, nem anarquia.

Fontes estranhas é que pretenderam a conturbação entre os camponeses para atingirem

50

Não consegui ter acesso ao texto impresso. Usei uma versão datilografada, com acréscimos manuscritos,

arquivada na FUNDAJ e que deve ter sido a base da publicação. 51

Jornal do Commercio, 13 de janeiro de 1982. p. 05. APEJE. 52

Jornal do Commercio, Op. Cit. 53

Jornal do Commercio, Op. Cit. 54

Jornal do Commercio, Op. Cit. 55

Jornal do Commercio, Op. Cit.

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objetivos que eu condenava”56

. O autor da cartilha retomava acusações realizadas por seus

adversários, como o próprio Miguel Arraes, para mais uma vez tentar refazer, ressignificar,

desconstruir a memória das Ligas associada à desordem e violência.

A apresentação na imprensa da nova publicação de Francisco Julião para o trabalhador

rural tornou-se um tipo de inquérito sobre as suas ações anteriores ao golpe civil-militar de

1964, relembrando ao leitor que elas promoveram um sentimento de “terror”. E ao estabelecer

uma ponte entre esse passado e o presente da redemocratização do país, Teófilo Silva lançava

uma série de incertezas sobre essa nova atuação de Francisco Julião junto aos trabalhadores

rurais:

O fato é que Francisco Julião viverá em Pernambuco uma nova história do

campo. Conseguirá repelir as “forças estranhas”? Evitará que os camponeses

empunhem foices e facas e voltem a conturbar a vida nos campos? Evitará as

greves, os assassinatos, as depredações de usinas, as queimas de canaviais?

Talvez Julião diga que somente o futuro dirá. Futuro, queira Deus, não seja

tão negro quanto os últimos dias que antecederam 6457

.

As perguntas do texto lembravam fatos antes que eles acontecessem. Operava-se com

uma memória sobre Julião que fazia sentir o perigo do futuro, materializado em foices, facas,

greves e queimas de canaviais. Antecipava-se um cenário ameaçador antes de Julião voltar a

atuar no campo. Tentando se contrapor a esse movimento, ele já vinha respondendo a esses

questionamentos desde os últimos anos do seu exílio. Deve-se lembrar que nas entrevistas do

final da década de 1970, ele falava que não reativaria as Ligas Camponesas, negava ter

comandado invasões de terras e ordenado incêndios de canaviais. Tentava desfazer qualquer

caracterização de suas ações como sendo algo violento e ilegal. Mas, todo esse seu esforço

parecia limitado. A Cartilha, que nada falava sobre reforma agrária, invasão de terras ou

marcha dos camponeses, foi apresentada, pelo Jornal do Commercio, como a prova de que

Francisco Julião voltaria a atuar no campo e poderia haver violências e desordens. Afinal, é

possível que os leitores mais idosos que vivenciaram o pré-64 tenham pensado: era o Julião

escrevendo outra vez cartilhas e isso se relacionaria a camponeses marchando pelas cidades e

ocupando terras.

No início de 1981, o já citado disco gravado com o amigo Hebert de Souza foi

censurado pelo governo com o argumento de que as músicas poderiam “reavivar certas coisas

que [era] hora de esquecer”. Um ano depois, a Cartilha do trabalhador campo não sofreu a

56

Jornal do Commercio, Op. Cit. 57

Jornal do Commercio, Op. Cit.

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censura oficial do órgão do Estado, mas o jornal utilizou de uma argumentação bastante

próxima ao produzir para Julião a responsabilidade de “reavivar” situações que não deveriam

regressar.

Ao final do ano de 1982, duas de suas produções pós-exílio, o disco e a cartilha,

enfrentavam dificuldades para circularem. Não há indícios de que esta última, a qual continha

oito páginas e algumas ilustrações, tenha alcançado repercussão, ao contrário do que ocorria

no período anterior ao golpe de 1964, quando praças eram tomadas por pessoas desejosas de

escutar a leitura dos textos de Francisco Julião58

.

Em dezembro de 1982, o fracasso eleitoral do PMDB em Pernambuco representou

também uma derrota para o PDT. O engajamento de Francisco Julião e do seu partido na

campanha de Marcos Freire poderia significar, em caso de vitória, a participação no governo e

a conquista de mais espaço político para o autor de O P.D.T. não divide. Está com Marcos e

Cid.

4 - As Cartas.

Entre o final de 1983 e o início de 1984, o Brasil viveu uma mobilização social nova,

tomando-se como referência o período da ditadura. Milhares de pessoas se reuniram nas ruas

e praças públicas de várias cidades em diferentes estados do país para exigir mudanças.

Confluíam trabalhadores, artistas, cantores e políticos. Muitos discursos proferidos e músicas

cantadas. Em alguns locais, papéis picados atirados do alto dos prédios alegravam esses

momentos e promoviam a ideia de comemoração. Era a mobilização pela volta das eleições

diretas para Presidente da República, o que não ocorria no Brasil desde 1960, quando Jânio

Quadros foi eleito. Reivindicava-se o fim do Colégio Eleitoral, um dos principais

instrumentos de controle político dos governos militares e peça chave na estratégia de

liberalização adotada pelo Regime civil-militar59

. Assistia-se ao movimento das Diretas Já!

As manifestações das ruas foram acompanhadas de uma intensa participação dos

partidos. PMDB, PDT, PT formaram o Comitê Nacional Partidário Pró-Diretas. Integravam

58

Francisco Julião afirma que 10 mil pessoas estiveram na Praça Dantas Barreto, em Recife, no dia 02 de janeiro

de 1964, quando ele realizou a leitura do texto Bença, Mãe. Na ocasião comemorava-se ao 5º aniversário da

vitória da Revolução Cubana. JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Op. Cit. 215. 59

RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2003. p. 11-12. O caráter festivo da população ocupando as ruas também é destacado em DELGADO,

Lucilia de Almeida Neves. Diretas Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão.

Revolução e democracia (1964...). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2007. p. 413; LEONELLI,

Domingos; OLIVEIRA, Dante. Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004.

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225

também o movimento das Diretas Já o PCB e o PC do B, ainda ilegais, e instituições da

sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – e a Associação Brasileira

de Imprensa – ABI60

. Essa foi “talvez a única campanha popular nascida do Parlamento”,

afirmou em 2004 Domingos Leonelli, um dos autores do livro Diretas Já: 15 meses que

abalaram a ditadura. Dante de Oliveira, também autor do livro, em 1983 era um jovem

deputado federal, recém-eleito pelo PMDB. Naquela ocasião o parlamentar propôs uma

emenda constitucional com 15 linhas que versava sobre o restabelecimento da eleição direta

para presidente da república61

. A proposta passou a tramitar no Congresso Nacional após

receber a assinatura de 23 senadores e 177 deputados e foi votada em plenário mais de um ano

depois, em abril de 1984.

Durante o período de tramitação, houve uma intensa articulação entre representantes

do Parlamento, com destaque para Ulysses Guimarães – PMDB –, e Luiz Inácio da Silva – PT

– e diversos setores da sociedade, que organizaram variadas formas de mobilização popular

entre elas os comícios das Diretas Já, entre 1983 e o início de 1984. Poder-se-ia afirmar que

essas manifestações populares estavam em ressonância com outros fatores: o Brasil vivia uma

crescente crise financeira, com elevados índices inflacionários, que atingiram cerca de 200%

ao ano em 198362

. Havia ainda os episódios de violência promovidos pela extrema-direita –

explosões de banca de revistas e atentados como o do Riocentro – assustavam os setores

médios, já insatisfeito com o quadro da economia nacional. Outro fator diz respeito à

reorganização da sociedade civil desde meados da década de 1970, a qual vinha pressionando

o Regime e conquistando novos espaços de atuação social e política63

.

60

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Diretas Já: vozes das cidades. Op. Cit. p. 414. 61

Apresentação escrita por Ronaldo Costa Couto para o livro Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Op.

Cit. p. 25. 62

Os descontentamentos atingiam praticamente todos os setores sociais, inclusive os que ofereciam sustentação

ao governo, como os representantes do grande capital. Os condutores do regime argumentavam que a saída da

crise passava pela união nacional, ou seja, pelo sucesso do processo de abertura política. REZENDE, Maria José.

A ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade 1964-1984. Londrina: Ed. UEL, 2001. p.

298-299. 63

Esses são alguns dos fatores apresentados por RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na

garganta. Op. Cit. Em 30 de abril de 1981, ocorreu um show em comemoração ao Dia do Trabalho em um

Centro de Convenções chamado Riocentro, no Rio de Janeiro. Um sargento e um capitão do I Exército estavam

ali com a missão de colocar diversas bombas no local. O objetivo não foi alcançado, pois ao manusear os

artefatos dentro de um carro, um deles explodiu, matando a um dos militares. As pressões para a apuração dos

fatos contribuiu para unir a sociedade e abrir uma crise no governo, resultando na saída do General Golbery do

Couto e Silva, um dos principais articuladores da “distensão e abertura” do Regime. O processo de investigação

foi arquivado. O governo de João Figueiredo perde dinamismo e a crise financeira avança, levando o país a

decretar a moratória em 1983. SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de

abertura política no Brasil. Op. Cit. p. 271. Uma análise sobre os índices inflacionários e a crise financeira, ver

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 458-465.

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Poder-se-ia afirmar que a instabilidade política do início dos anos 1980 também se

acentuava. Setores do PDS já mostravam sua insatisfação com o cenário de crise. Em alguns

momentos aproximavam-se da oposição, especificamente de alguns grupos do PMDB,

posicionando-se contra projetos do governo. Em setembro de 1983, o Congresso Nacional

rejeitou o decreto-lei n° 2024, que regulamentava a política de reajuste salarial dos

trabalhadores64

. Na contagem dos votos contrários, 11 foram do PDS. Era a primeira vez que

um decreto-lei do governo militar era rejeitado pelo legislativo.

Ao mesmo tempo, o maior partido de oposição assistia às lutas internas se

intensificarem. O PMDB enfrentava uma antiga dualidade: ser uma frente política, dialogando

com forças do centro e aliados do regime civil-militar ou assumir uma posição de confronto

com o governo, articulando alianças com partidos de esquerda e movimentos sociais65

. O

grupo político de Tancredo Neves apresentava-se cada vez mais disposto a trilhar o caminho

do diálogo, estabelecer e ampliar uma negociação direta com o presidente João Figueiredo.

Os comícios das Diretas Já ocorriam entre as crises e as negociações. Em janeiro de

1984, no Largo do Amparo em Olinda, concentraram-se cerca de 30 mil pessoas. Dias antes

na Praça de Sé, em São Paulo, estiveram presentes aproximadamente 200 mil pessoas.

Viajaram para o evento em Olinda os governadores de Minas Gerais, Tancredo Neves, e de

São Paulo, Franco Montoro. Leonel Brizola, do Rio de Janeiro, que havia confirmado a

presença, desistiu de vir na última hora. O PDT foi representado no palanque pelo seu

presidente nacional, Doutel de Andrade, e por Francisco Julião. Juntaram-se a eles, Ulysses

Guimarães, Miguel Arraes, Jarbas Vasconcelos e o presidente do Partido dos Trabalhadores,

Luiz Inácio da Silva. Roberto Magalhães, governador de Pernambuco, anunciou apoio à

mobilização. Ofereceu a logística necessária para a realização do comício, mas não se fez

presente66

.

A participação de Francisco Julião não teve destaque na imprensa. Não encontrei

matéria ou nota publicada nos dias que se seguiram ao comício. Integrar-se ao movimento das

Diretas Já era atuar junto à rede política engajada na redemocratização do Brasil. Era também

uma maneira de ter mais visibilidade, retomar os discursos em praça pública. Deve-se lembrar

que entre 1981 e 1982, ele havia sido censurado pelo governo militar, que vetou a exibição

64

Propunha a redução do reajuste salarial máximo dos trabalhadores na faixa de até três salários mínimos, que

levava em conta a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). 65

VIANNA, Luiz Werneck. A transição – Da Constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro: Ed. Revan. 66

Essas informações ocuparam as páginas dos principais jornais do estado, Diario de Pernambuco e Jornal do

Commercio, entre os dias 27 e 28 de Janeiro de 1984.

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pública do seu disco, além de ter sido alvo de críticas do Jornal do Commercio pelo

lançamento da Cartilha do trabalhador do campo.

Durante os meses de mobilização por eleições diretas para Presidente, poucas

referências a Francisco Julião foram publicadas na imprensa. No entanto, este mantinha a

prática da escrita política que tão intensamente desenvolvera nos anos de exílio no México.

Redigiu uma série de textos sob o título de Carta do Nordeste67

. Desenvolveu análises acerca

dos políticos envolvidos na campanha das Diretas Já e na luta de redemocratização do país.

Estes escritos possibilitam cartografar os próprios deslocamentos do autor em face também

das leituras que operava da conjuntura brasileira. São escritas de si68

, sobre seus

posicionamentos políticos revistos e a serem adotados.

Em janeiro de 1984, antes do comício do Largo do Amparo, em Olinda, a primeira

Carta do Nordeste foi publicada. A região era representada como um lugar de pobreza, de

resistência e de lutas. Dizia-se de um território esquecido e injustiçado, inclusive pelos que

nele nasceram, mas se deixaram encantar pelo centro-sul. O autor, ao contrário, se

apresentava como alguém que vivia pelo e para o Nordeste69

. Assim concluiu sua primeira

carta, prometendo voltar ao tema no escrito seguinte. Usa de um discurso regionalista para

criar uma identidade para si, que nesse momento se aproximava do Francisco Julião das Ligas

Camponesas do Nordeste do Brasil da década de 1960.

No início do mês seguinte, as análises sobre a região passaram a ser relacionadas a

uma questão mais específica: a campanha das Diretas Já. Julião se mostrava animado com as

possibilidades de mudanças, que a mobilização popular e as eleições diretas para presidente

poderiam promover. Falava das ameaças que considerava existir caso continuasse as eleições

indiretas. “Indiretas a esta altura? É uma bofetada, um insulto, uma coronhada, um convite ao

caos, à anarquia”. E continua: “O Nordeste está de pé, com a sua fome, a sua pobreza, o seu

abandono, sustentando que só as DIRETAS (sic) apagarão o fogo que o Colégio Eleitoral

ateia pelo Brasil”70

.

67

Algumas das Cartas estão apenas manuscritas e outras datilografadas. Não consegui encontrá-las publicadas.

Julião dizia que as Cartas foram solicitadas pelo Espaço Democrático. Em uma conversa com Anacleto Julião,

soube que esse seria uma publicação do PDT. Nunca encontrei seus exemplares. 68

Na maior parte das Cartas do Nordeste, Julião escreve sobre o movimento de Diretas Já e o processo de

redemocratização do Brasil. Essas escritas são tomadas não para saber o que houve nesses processos e sim o que

o autor “diz que viu, sentiu e experimentou” em relação a eles, produzindo-se. Esse tipo de abordagem segue as

reflexões de GOMES, Angela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História: A título de prólogo. In: ______

(Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. p.15. 69

Carta do Nordeste. 19 de janeiro de 1984. FJ PIp 4 doc 28,1. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco. 70

Carta do Nordeste. 02 de fevereiro de 1984. FJ PIp 5 doc 32,3. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

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O discurso era ameaçador: ou eleições diretas ou o caos, porque a pobreza do Nordeste

não aceitaria “indiretas” outra vez. Julião operava com uma lógica próxima àquela, do início

dos 60, que anunciava “reforma agrária na lei ou na marra”, porque para isso disporia de

milhares de pobres camponeses organizados para lutar71

. Atualizando para os anos 1980,

seriam eleições diretas ou o convite ao caos de um pobre Nordeste que já estava de pé.

Ao mesmo tempo, se por um lado indicava um possível levante contra as Indiretas e

assim contra o governo que a sustentava, por outro assinalava que: “O Nordeste não quer a

guerra. Quer a paz. Paz com dignidade, com eleições diretas, para um novo pacto social, uma

nova Carta Magna”72

. Esse posicionamento se aproximava daquele apresentado no final de

1978, quando Julião, respondendo ao então futuro presidente João Figueiredo que ameaçava

não anistiá-lo, afirmava por meio da revista Siempre! 73

: Não levantaria barricadas nas ruas no

dia em que se incorporasse à luta do povo brasileiro74

. Ou seja, não desejaria a guerra, o

confronto. Tanto o exilado de 1978 quanto o anistiado de 1984 demonstravam uma

preocupação em desfazer qualquer posição de enfrentamento com o governo militar, apesar de

operacionalizarem ao mesmo tempo um discurso com tons ameaçadores. Uma característica,

entretanto, atravessava todo o texto da carta e dizia respeito ao seu entusiasmo com a

possibilidade de mudanças vislumbrada no movimento das Diretas Já. Mudanças que

promoveriam um novo pacto social e uma Constituinte.

Os meses de março e abril foram de novos comícios. Nas suas maiores manifestações,

cerca de 1 milhão de pessoas estiveram na Candelária, Rio de Janeiro, em 10 de abril, e

aproximadamente 1 milhão e meio no Vale do Anhangabaú, São Paulo, no dia 1675

. A

mobilização de milhares de pessoas em quase todo o país, envolvendo artistas, cantores e

mesmo atletas, que chegavam a comandar alguns comícios, pressionou políticos da situação e

da oposição a reavaliarem algumas posturas. No final de 1983, 12 governadores situacionistas

haviam aderido à ideia de uma eleição direta para presidente em 1985. No PMDB, Ulysses

Guimarães e Tancredo Neves decidiram adiar o debate sobre a posição do partido no processo

de redemocratização. Ou seja, se o PMDB adotaria a estratégia de negociar um acordo com o

71

Francisco Julião, em seu último discurso no Congresso Nacional, em 31 de março de 1964, afirmou:

“podemos dispor de 500 mil camponeses para responder aos gorilas como os gorilas quiserem. Na lei, como

desejamos; na marra, se eles quiserem. Estamos com nossa casa arrumada”. SANTIAGO, Vandeck. Francisco

Julião: Luta, paixão e morte de um agitador – Op. Cit. p. 155. 72

Carta do Nordeste. 02 de fevereiro de 1984. FJ PIp 5 doc 32,3. Op. Cit. 73

Essa discussão foi realizada no início do capítulo 04. 74

Revista Siempre!, 25 de outubro de 1978. n° 1322. p. 42-43. Instituto de Investigaciones Bibliográficas –

Hemeroteca Nacional – UNAM, México. 75

Esses números são estimados por Alberto Tose Rodrigues a partir da pesquisa em quatro periódicos do

período: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Veja e Isto é.

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Regime ou efetivamente se tornaria a expressão da vontade manifestada na campanha das

Diretas Já.

A mobilização social produziu novos cenários. Alguns anteviam um enfrentamento

com o governo. Outros desejavam o caminho da negociação, como Tancredo Neves. Para ele

o cenário político era paradoxal, pois ao mesmo tempo em que participava da campanha por

eleições diretas, organizando inclusive o comício de Belo Horizonte, procurava garantir e

ampliar sua credibilidade junto a alguns setores do governo militar76

.

O difícil e complexo quadro político pode ainda ser analisado quando se observa que

Leonel Brizola, por sua vez, chegou a propor, como estratégia de transição, prolongar o

governo de João Figueiredo por meio de um mandato-tampão, mas também se viu obrigado a

participar de comícios e oferecer a logística necessária para a realização de outro no Rio de

Janeiro.

Ainda em Janeiro de 1984, na véspera do comício da Praça da Sé, em São Paulo, a

Rede Globo, após reunião entre Ulysses Guimarães e Roberto Marinho, decidiu fazer uma

reportagem sobre o movimento das Diretas Já. A matéria de alguns segundos foi exibida no

seu principal noticiário, o Jornal Nacional, mas apresentado como parte das comemorações

pelo aniversário de São Paulo77

.

Em março de 1984, enquanto milhares de pessoas seguiam mobilizadas, o Palácio do

Planalto se preocupava com os altos índices de reprovação ao Presidente João Figueiredo e o

racha dentro do PDS, que resultou na formação de um grupo pró-diretas. Francisco Julião

escrevia mais uma carta intitulada: Política, Democracia e Povo. O Nordeste não era mais a

temática dos seus escritos. Agora, ele estava voltado para o debate sobre eleições,

redemocratização e participação popular. E dizia:

Por que então se questiona tanto a Política? A resposta é fácil. Porque a

Política, que é Ciência e é Arte, tem como projeção e finalidade, o Povo. É a

própria essência da Democracia. Assim, Política, Democracia e Povo

formam um todo indivisível. É uma totalidade. Um universo. Sempre que

essa trilogia é questionada em uma de suas partes, o todo é afetado78

.

Esse discurso de Julião não o aproximava dos setores políticos, como os moderados do

PMDB, que receavam os resultados do movimento das Diretas. Para esses, o “povo” era

76

RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. Op. Cit. p. 44-48 77

RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. Op. Cit. 78

Carta do Nordeste. Política, Democracia, Povo. 22 de março de 1984. FJ PIp 5 doc 35,1. CEHIBRA,

Fundação Joaquim Nabuco.

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importante, mas enquanto oferecesse ganhos no momento de negociação com o Regime. A

mobilização popular deveria representar a ruptura com qualquer intenção de continuísmo do

governo militar. Esse era o seu limite. Não poderia destruir os caminhos institucionais das

eleições indiretas que seriam utilizados por essa parte da oposição e da situação, que se

distanciava dos militares, para alcançar a Presidência no processo sucessório79

.

Na carta, Política, Democracia e Povo eram elementos inseparáveis, sendo esse último

apresentado como o limite da democracia80

. Francisco Julião não demonstrava receio de um

retrocesso da abertura, como consequência de uma possível radicalização das Diretas. Para o

autor, o processo político de democratização do país exigiria a presença e a participação do

“povo”81

. O presidente nacional do PDT, Doutel de Andrade, apresentou posicionamento

semelhante no comício em Belém, no dia 17 de fevereiro: “contra o desejo de 120 milhões de

brasileiros o governo pretende impor a vontade de quatro cidadãos. […] O regime autoritário

morreu. Quem o matou foi o povo na praça pública”82

.

Julião apostava na possibilidade de mudança. As manifestações nas ruas poderiam

criar uma nova força social com poder de interferir no jogo partidário-político, abrindo espaço

para a ação de novos atores sociais ou mesmo de antigos que, como ele, estavam fora da elite

política da transição. Neste caso, setores situacionistas e da oposição considerada moderada,

que tendiam para a negociação, passariam a ter ameaçada sua hegemonia sobre o processo de

redemocratização em curso.

Em outra carta datada de março de 1984, Julião classificava a elite política como

sendo “os incendiários, os pirômanos, os que querem tocar fogo no Brasil”83

. Deve-se ver que

aqui há uma tentativa de inversão de uma dinâmica acusatória. O ex-dirigente camponês,

79

RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. Op. Cit. p. 49-53. 80

“Quem politiza, educa, prepara, orienta, abre espaço para o funcionamento da Democracia plena, cujo limite é

o povo”. Trecho da Carta do Nordeste. Política, Democracia, Povo. Op. Cit. 81

Um mês antes dessa Carta de março de 1984, ocorreu uma reunião em Brasília, da qual participaram o

presidente João Figueiredo, o vice-presidente Aureliano Chaves, alguns ministros e lideranças do PDS – José

Sarney, Marco Maciel e Paulo Maluf. Foi apresentado um relatório do SNI, que classificava o movimento das

Diretas Já como sendo uma escalada esquerdista e uma ameaça à segurança nacional. Os ministros militares

ressaltaram que a continuidade do processo de abertura dependia das eleições indiretas e mediante um

agravamento da crise, um retrocesso político poderia ocorrer. Tancredo Neves, o líder dos moderados do PMDB,

reverberava essa posição ao afirmar sua análise sobre aquela reunião na imprensa: “O que nos salta aos olhos é

que estamos no inicio de um pequeno retrocesso na abertura democrática”. Revista Veja, 22 de fevereiro de

1984. p. 21. O jornalista Carlos Castello Branco também avaliou a situação como sintoma de um retrocesso. 82

Os oradores do comício de Belém tentaram responder à reunião ocorrida dois dias antes em Brasília (citada na

nota anterior), entre governo e lideranças do PDS, que lançou nota reafirmando a eleição indireta. Ulysses

Guimarães e Luiz Inácio da Silva apresentaram posicionamentos próximos ao de Doutel de Andrade. Para alguns

trechos dos discursos no comício ver, KOTSCHO, Ricardo. Explode um novo Brasil. Diário da Campanha das

Diretas. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1984. p. 43. 83

Carta do Nordeste. Incendiários e bombeiros. Março de 1984. FJ PIp 4 doc 31,3. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco.

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acusado de ordenar os incêndios de canaviais no início da década de 1960, atribuía a seus

adversários a imagem de incendiário. Nomeia aqueles que assumiram o governo com o golpe

de 1964 de subversivos. “Foi a elite, que tomou conta do poder pela violência. Que iludiu

toda a Nação. Que estatizou nossas riquezas para mais facilmente entregá-las as

transnacionais. […] E não contente, a casta que nos domina, oprime e chantageia, fala em

prorrogar o poder em mais seis anos”84

.

A referência era aos militares e setores civis que defendiam as eleições indiretas. Eles

seriam os subversores da ordem democrática em 1964 e que desejavam incendiar a nação ao

se contraporem às Diretas Já:

Querem tocar fogo no circo. E são eles os incendiários! Nós, todos nós, que

queremos restaurar a democracia plena, reconquistar a dignidade, que o País

perdeu, nós, os que pugnamos, abertamente, na praça pública, pelo direito de

eleger, em 85, o Presidente da República, nós somos, hoje, os bombeiros do

Brasil.

Sim, os bombeiros85

.

Em março de 1984, o trabalho de desconstruir a memória pública de incendiário e

subversivo ainda tomava os pensamentos e preocupações de Francisco Julião. A campanha

pró-Diretas lhe parecia favorável para instituir outros significados sobre o seu passado. Nesse

momento, ele operacionalizava com a ideia de ruptura com o regime civil-militar e ao mesmo

tempo com a destruição dos lugares de incendiário e subversivo definidos para ele por uma

determinada leitura do passado.

No fragmento citado, o ex-líder camponês descreve um deslocamento que estaria

ocorrendo no Brasil naqueles primeiros meses de 1984. Ele diz: “nós somos” - aqueles

desejosos de restaurar a democracia e ocupantes das praças públicas para exigir eleições

diretas – “hoje, os bombeiros do Brasil”. E desejando reforçar, para quem duvidava, finaliza:

“Sim, os bombeiros”. Colocar-se nessa posição, “hoje”, era admitir o deslocamento, partindo

da posição na qual foi considerado incendiário. Era usar da memória do incendiário para se

fazer ver a diferença, o percurso.

Ao escrever sobre os “incendiários do circo”, Francisco Julião expressava a sua leitura

de que caso as eleições diretas não fossem restabelecidas em 1985, a população que estava

nas ruas iria instaurar o caos, incendiar-se-ia. O fim da ditadura se daria pelas mobilizações

por eleições diretas ou, em caso de derrota da emenda Dante de Oliveira, pelo levante social.

84

Carta do Nordeste. Incendiários e bombeiros.Op. Cit. 85

Carta do Nordeste. Incendiários e bombeiros. Op. Cit.

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E apesar de desejar desconstruir sua memória de incendiário, Julião usava uma estratégia

semelhante a do início da década de 1960. Ao invés de reforma agrária na lei ou na marra

daqueles anos, agora era Diretas já ou a revolta popular.

E assim demonstrava chegar a abril de 1984 confiante na ruptura e desprezando a

conciliação. No dia 10, subiu ao palanque na Candelária, no Rio de Janeiro. Cerca de um

milhão de pessoas presentes. Até aquele momento o maior comício da campanha das Diretas

Já. Provavelmente havia sido convidado pelo governado Leonel Brizola, que cuidadosamente

montou a lista de oradores, mobilizando a “tropa de choque do seu PDT” para ocupar não só o

palanque, mas também as primeiras fileiras da gigantesca plateia e assim distanciar ao

máximo faixas e bandeiras do PCdoB e do PT86

. O líder pedetista procurava afastar qualquer

afronta mais direta ao governo militar.

Os discursos começaram por volta das 16 horas. O homenageado especial daquela

tarde-noite era o advogado Sobral Pinto. Quando lhe foi concedida a palavra, ele tomou o

microfone e com uma voz trêmula pediu silêncio: “Peço silêncio para falar. Quero falar à

nação brasileira”. A multidão o atendeu, diminuindo o barulho: “Este movimento não é contra

ninguém. É a favor do povo. […] Esse movimento, para produzir os efeitos que esperamos, é

indispensável que se processe dentro da ordem das ideias, da ordem das aspirações, da ordem

pública”. Os aplausos ecoaram pela lotada Avenida Presidente Vargas87

.

De acordo com Domingos Leonelli e Dante de Oliveira, autor da emenda para eleições

diretas, o discurso de Sobral Pinto era uma resposta a Francisco Julião, que momentos antes

havia falado e atacado duramente os militares. O homenageado teria ficado tão irritado com

essa postura que decidiu deixar o palanque88

. Foi impedido por Tancredo Neves, conhecido

por suas atitudes conciliatórias, inclusive com os militares.

Francisco Julião e Sobral Pinto se conheciam desde os anos 1960. Este fora o

advogado que defendeu e conseguiu um habeas corpus em 1965 para o ex-dirigente das Ligas

Camponesas. Alguns meses antes daquele reencontro na Candelária, em novembro de 1983,

Julião lhe havia escrito uma carta. Justificava-se pela ausência às comemorações e

homenagens aos seus 90 anos de vida e relembrava o encontro entre eles em uma das prisões

da ditadura.

86

Revista Veja, 18 de abril de 1984. p. 29. 87

Revista Veja, Op. Cit. 88

LEONELLI, Domingos; OLIVEIRA, Dante. Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Op. Cit. p. 488.

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Certa manhã, o imenso portão de ferro, capaz de deter a fúria de um elefante,

abriu-se para dar passagem a sua figura frágil, vestida de negro, com seu

impecável guarda-chuva […] Percebi desde o início do nosso diálogo, que o

senhor viera tirar uma dúvida, antes de aceitar a minha causa. É que a

imagem que o senhor tinha do seu constituinte encarcerado era, até aquele

momento, a de um pirômano. Os discípulos do Dr. Göebels […]

transformaram o modesto defensor de camponês sem terra em incendiário de

canaviais no Nordeste89

.

Por que nessa carta para justificar a sua ausência e desejar felicidades, Francisco Julião

recuperou a memória do incendiário? Meses depois, na Carta do Nordeste de março de 1984,

essa memória voltaria a ser utilizada, mesmo que para apresentar uma mudança de posição.

Nesse momento, o “pirômano” era os militares e políticos que se contrapunham a aprovação

das Diretas Já. E nesse caso, Julião se diz o “bombeiro. Sim, o bombeiro”.

A rememoração do passado, considerada por Beatriz Sarlo, “não é uma escolha, mas

uma condição para o discurso, que não escapa da memória, nem pode livrar-se das premissas

impostas pela atualidade à enunciação”90

. Recordar o encontro ocorrido na prisão em 1965 era

uma forma de estabelecer uma aproximação, um elo entre o destinatário e o remetente de

1983. Mas, isso não significava obrigatoriamente caminhar pela memória do incendiário. Essa

opção diz do momento a partir do qual Francisco Julião lançava seu enunciado. A carta para

Sobral Pinto, no final de 1983, bem como aquela intitulada Incendiários e bombeiros, em

março do ano seguinte, indicavam a pulsante necessidade em ressignificar a leitura do seu

passado.

Com efeito, essa insistência em utilizar as mesmas expressões do passado demonstrava

o quanto essas representações que lhe eram atribuídas no tempo das Ligas Camponesas ainda

estavam presentes na redemocratização do Brasil. O seu discurso considerado como um

ataque aos militares no comício da Candelária poderia ter relembrado para Sobral Pinto e

outros presentes aquele personagem considerado incendiário do Nordeste do Brasil nos idos

de 1960. Não se ateava mais fogo nos canaviais, mas se incendiaria a multidão assistente

àquele comício por eleições diretas. Daí a reação do advogado homenageado do evento.

O que Francisco Julião teria dito em seu discurso na Candelária? Na ausência de

registros, pode-se recorrer à outra Carta do Nordeste, datada de abril de 1984, escrita depois

do evento no Rio de Janeiro e intitulada Da Candelária a Cabrobó. É um texto manuscrito,

ocupando cinco páginas, com várias passagens riscadas e reescritas. O primeiro parágrafo

89

Carta de Francisco Julião a Sobral Pinto. Novembro de 1983. FJ CEP 1 doc 8 – C3. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco. 90

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras;

Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 49.

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explicava o título: “Tivemos a fortuna de participar de dois grandes atos cívicos, o primeiro

deles, no dia 10, no Rio, e o segundo, em Cabrobó, no Sertão de Pernambuco. Não existe

distância entre o Rio e Cabrobó no que diz respeito às eleições diretas”91

. Estas e outras

cidades do país estariam unidas pelo desejo de mudança.

O entusiasmo dos escritos anteriores mantinha-se nessa carta. Considerava-se que na

história do Brasil não havia existido nenhuma campanha que, sequer, atingisse “a metade ou

um terço da que nos empolga agora”. E completava: “Os deputados e senadores estão diante

de um povo que se levantou e em gloriosa marcha percorre o país de um canto a outro”. Caso

esses congressistas aprovassem a emenda Dante de Oliveira, receberiam o respeito de 130

milhões de brasileiros. Contudo, profetizava, “negar esse direito mais que legítimo de um

povo que esperou mais de 20 anos por essa hora estelar de sua vida equivale a insultar a sua

consciência cívica e provocar a sua ira. Não se sabe exatamente o que virá depois. Mas que

virá, virá”92

.

Imagine os termos dessa carta presentes no discurso realizado na Candelária. Haveria

Francisco Julião afirmado que o povo se levantou e marchava pelo país? Teria dito que caso a

eleição direta não fosse aprovada, se veria a ira do povo? Talvez considerações como essas

tenham provocado indignação não apenas em Sobral Pinto, mas em políticos presentes, como

o deputado federal Miguel Arraes e o governador Tancredo Neves.

Até abril de 1984, em suas cartas, Francisco Julião defendia a possibilidade de ruptura

com o regime civil-militar. Seja por meio da aprovação da emenda Dante de Oliveira, seja

pela reação popular impulsionada por uma derrota das Diretas Já no Congresso Nacional.

Neste momento, negociação e conciliação não lhe pareciam posições corretas. E apesar do

pouco espaço de ação política e das interdições que o cerceavam, por ser nomeado de

incendiário e radical, ele criava provocações, testando modificações para os limites da

redemocratização no Brasil93

.

5 - A derrota das Diretas Já e as novas cartas.

Ao mesmo tempo em que a passeata e o comício das Diretas Já no Vale do

Anhangabaú, em São Paulo, – 16 de abril – chegavam ao fim, o Presidente João Figueiredo

91

Carta do Nordeste. Da Candelária a Cabrobó. Abril de 1984. FJ PIp 4 doc 30,4. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco. 92

Carta do Nordeste. Da Candelária a Cabrobó. Op. Cit. 93

Nesse ponto, estou pensando a relação, de submissão e de inflecção, entre o ser falante e as formas de poder

que o cercam FARGE, Arlette. Lugares para a História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 65.

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fazia um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão. Anunciava a emenda à

Constituição, que, dentre outras medidas, definia eleições diretas para o sucessor do seu

sucessor, em 1988. Em um trecho do seu discurso, afirmava:

Hoje o povo manifesta sua vocação de mudança, que é essencialmente

democrática. Se o povo quer e manifesta politicamente sua vontade, o

governo e os partidos políticos não podem ignorá-la. Conforme a vontade

popular, é preciso mudar a Constituição. Vamos mudá-la. Eu não me oponho

à mudança. Mas […] isso só pode ser feito com entendimento e pela

negociação entre as forças políticas nacionais94

.

O governo reconhecia a força da mobilização nacional e já procurava estabelecer as

condições para a negociação política. Atenderia aos desejos por eleições diretas para

Presidente, que nesse caso ocorreria em 1988 e não em 1985, como propunha a emenda Dante

de Oliveira. Enquanto alguns grupos e partidos de oposição desejavam as Diretas para

promover uma ruptura com o regime civil-militar, como apresentado em trechos dos escritos

de Francisco Julião, o governo, sobretudo os setores liderados pelo ministro Leitão Abreu,

sinalizava com a negociação.

A proposta tinha ressonância na oposição moderada do PMDB e no grupo do PDS

pró-Diretas. E, para esses setores políticos, parecia interessante iniciar as negociações antes de

uma derrota da Emenda Dante de Oliveira. A antecipação lhes possibilitaria escapar da

condição de perdedores. Tancredo Neves, em 21 de abril, aniversário da morte de Tiradentes e

poucos dias antes da votação da emenda no Congresso Nacional, carregou no tom pró-

conciliação em seu discurso realizado na cidade de Ouro Preto. Dias depois, em uma

entrevista, disse aceitar a condição de líder nas negociações entre o governo e as oposições.

Em 24 de abril, um dia antes da votação da Dante de Oliveira, o presidente Figueiredo

afirmou que considerava o governador de Minas Gerais como um nome confiável para a

conciliação nacional95

.

A emenda Dante de Oliveira foi derrotada na Câmara dos Deputados, como era

previsto. Ao final da votação o placar marcava: 298 votos a favor da emenda, 65 contra, 3

abstenções e 113 faltosos. Faltaram 22 votos para se alcançar os dois terços necessários a uma

alteração constitucional. No dia 28 de abril, Figueiredo retirou do Congresso a emenda que

propunha eleições diretas para 1988. O governo parecia retomar o controle do jogo político.

94

Pronunciamento à Nação em 16 de abril de 1984. Transcrito em RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o

grito preso na garganta. Op. Cit. p. 86. 95

RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. Op. Cit. p. 90.

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236

O que se seguiu foi o fortalecimento da estratégia de negociação política para a

sucessão presidencial por meio do Colégio Eleitoral. Tancredo Neves, que ganhou força com

a campanha das Diretas Já, passou a simbolizar a opção mais confiável, principalmente para

os setores militares.

Cada vez mais, o governador mineiro projetava-se com a imagem de um homem

público que esteve presente nos principais momentos da história nacional, pelo menos nos

últimos 30 anos. Incluía-se também, nessa sua projeção, uma posição de combate à ditadura,

apesar da sua atuação parlamentar muito discreta durante esse período e da sua participação

na criação e liderança do efêmero Partido Progressista – PP –, também conhecido como

partido do Petrônio96

.

Com a derrota das Diretas Já, a candidatura de Tancredo Neves atraiu os setores

insatisfeitos com o governo. Havia uma movimentação no sentido de que sua campanha fosse

entendida como uma continuidade do movimento popular, recorrendo, inclusive, ao uso das

cores verde e amarelo e das expressões Mudança Já e Tancredo Já97

. A eleição indireta de

1985 ganhou ares de plebiscito. Posicionava-se a favor ou contra os militares.

A grande exposição na mídia tornou o candidato do PMDB o primeiro presidente

“televisual”98

. Também contribuiu para a rápida institucionalização de sua imagem enquanto

um resistente de primeira hora à ditadura, representante dos anseios de mudança da população

e, depois de sua morte, um mártir da democracia brasileira.

A imagem de Tancredo Neves como um herói nacional sem vínculos com a ditadura

civil-militar e promotor da conciliação da nação era individual, mas, em determinado nível,

era também social. Pois, era o futuro presidente e amplas parcelas da sociedade que

procuravam se identificar com essa imagem, como alerta Daniel Aarão ao analisar as

resignificações, durante a redemocratização, da memória social sobre o período ditatorial: “a

ditadura, quem apoiou? Muitos poucos, raríssimos, nela se reconhecem ou com ela desejam

ainda se identificar. Ao contrário, como se viu, quase todos resistiram”99

.

Mesmo com a derrota no Congresso da emenda Dante de Oliveira-Diretas Já,

considerada naquele momento como estratégia política fundamental para a ruptura com o

96

Era uma referência ao Ministro da Justiça de Figueiredo, Petrônio Portela, estrategista político que traçou os

caminhos do PP como uma legenda auxiliar do PDS. 97

MARCELINO, Douglas Attila. O Corpo da Nova República: funerais de presidentes e memória de Tancredo

Neves. Tese (Doutorado em História) – PPGHIS – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2011. p. 114. 98

MARCELINO, Douglas Attila. O Corpo da Nova República. Op. Cit. 99

REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: AARÃO REIS, Daniel;

RIDENTI, Marcelo (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.

p. 50

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regime civil-militar, uma parcela considerável da sociedade, e mesmo aquela que colaborou

com a ditadura, passa absolver-se e representar o Brasil “como uma nação democrática,

reconciliando-se, reconciliada”100

. E dizer-se reconciliada era excluir os radicalismos, de

direita e de esquerda. “Segurem os seus radicais que nós seguramos os nossos”101

, já dizia um

assessor do presidente Geisel no processo de distensão. “A saída para conflitos irreversíveis

[acontecerá] se as forças que representam o poder e a sociedade civil souberem conter as suas

posições de radicalismo”, declarava Tancredo Neves ao defender um entendimento com o

PDS, em abril de 1984102

.

A crítica e os ataques, principalmente na imprensa, contra políticos e grupos

representados e nomeados como radicais tornou-se, depois da campanha por eleições diretas,

um dos pontos de convergência entre governo e setores da oposição no caminho para a

conciliação e produção de uma nova democracia no Brasil. Entretanto, como diz Francisco

Weffort, “em 1974, quando Geisel chegou à presidência já não havia “radicais” nas

oposições, pelo menos não no sentido que o regime atribui a esta palavra”. Afinal, as

guerrilhas haviam sido derrotadas, muitos militantes presos e assassinados e outro setor da

esquerda caminhava para converter suas ações unicamente em lutas pela democracia. Neste

ponto, governo e grupos de oposição – parcelas do PMDB, do PDT e grupos da sociedade

civil, por exemplo – passam a se aproximar. O primeiro ressaltando o quanto se caminhou,

enquanto o segundo o quanto se faltava. Mas, o ponto final seria o mesmo; a democracia,

conciliada e sem radicalismos103

.

A busca de negociação com o governo teria estado em risco em diversos momentos da

campanha pelas Diretas Já, sobretudo, pela intensa e até inesperada mobilização popular.

Entretanto, com a derrota da emenda Dante de Oliveira e a candidatura de Tancredo Neves a

negociação foi restabelecida. E os radicais que eram representados pelo regime como

derrotados voltaram a existir no dispositivo da transição, como aqueles que poderiam ameaçar

a conciliação nacional. Passa a ser produzida e divulgada a necessidade de se combater os de

esquerda para não haver uma reação dos da direita e vice-versa. Assim, à população que lotou

as ruas, era recomendado que voltasse as suas casas.

100

REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. Op. Cit. 101

WEFFORT, Francisco. Por que Democracia? In: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 511. 102

CARVALHO, Alessandra. Do autoritarismo à democracia? Um estudo dos processos de transição no Brasil

(1945 e 1984). Dissertação (Mestrado em História). PPGHIS – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. p.

128. 103

WEFFORT, Francisco. Por que Democracia? Op. Cit. p. 501 e p. 511.

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E aqui peço licença ao leitor para trazer novamente o discurso de Sobral Pinto na

Candelária, tomado como resposta a Francisco Julião. O advogado católico, que participou

das Marchas da Família com Deus pela Liberdade logo após o Golpe civil-militar de 1964104

,

grande homenageado daquele dia, teria pedido silêncio aos milhões presentes. Parecia uma

profecia, pois dias depois, passado o comício de São Paulo, as manifestações foram se

calando, substituídas mais tarde pelo choro e luto em razão da morte de Tancredo Neves. O

discurso de Sobral Pinto anunciava uma proposta de funcionamento para as Diretas dentro de

uma transição pactuada: “Este movimento não é contra ninguém. É a favor do povo. […] Esse

movimento, para produzir os efeitos que esperamos, é indispensável que se processe dentro da

ordem das ideias, da ordem das aspirações, da ordem pública”. Sem radicalizações, sem

enfrentamentos, sem ruptura, pode-se complementar105

.

Dias depois do comício da Candelária e da derrota da emenda Dante de Oliveira no

Congresso Nacional, Francisco Julião escreveu uma nova Carta do Nordeste que se intitulava

Sobre o radicalismo. Criticava o uso indiscriminado da palavra radicalismo como sinônimo

de sectarismo.

A palavra radical incorporou-se ao dicionário político brasileiro com um

significado equivalente ao termo sectário. Tornaram-se sinônimos. Os

políticos falam em radicais de direita e radicais de esquerda, com a maior

naturalidade, quando querem definir aqueles que se posicionam, de um lado

ou de outro, como elementos antagônicos. A imprensa, por sua vez, endossa

e divulga a palavra radical exatamente como ela existe e significa para o

político106

.

104

A informação está em LEONELLI, Domingos; OLIVEIRA, Dante. Diretas Já: 15 meses que abalaram a

ditadura. Op. CIt. p. 488. 105

As transições de regimes ditatoriais para democracias tem sido há algum tempo foco de estudo entre

cientistas políticos e sociais. Ultimamente tem-se concluído que há uma diferença entre a transição e a

consolidação democrática. São duas etapas distintas e o desenvolvimento da primeira não determina as

características da segunda, nem mesmo se ela ocorrerá. Ver MONCLAIRE, Stéphane. Democracia, transição e

consolidação: precisões sobre conceitos bestializados. In: Revista de Sociologia e Política. nº 17, nov. 2001. p.

63. Essa tese percorre unicamente o processo de transição, que atropelou o projeto de liberalização pensado no

governo Geisel. O “processo” agregou forças diversas sociais, que lhe conferiram marchas e contramarchas,

tentativas de ruptura e negociações. O “projeto” apresentava uma autonomia pelo alto, bem mais restrita a

setores do governo. Sobre essa discussão ver GLAUCIO, Ary Dillon Soares; D'ARAUJO, Maria Celina;

CASTRO, Celso (Org.). A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-

Dumará, 1995. p. 38-40. Por fim, dentro da análise de transição, utiliza-se aqui dos termos propostos por

Guilherme O’Donell e operacionalizados por Francisco Teixeira em um dos melhores trabalhos historiográficos

sobre a abertura política no Brasil: 1- a transição pactuada, lenta e segura, resultante de acordo entre os que

estão no governo e as forças moderadas de oposição. Há uma ampla aceitação historiográfica de que esse foi o

caso do Brasil. Outro tipo seria a transição por colapso, caracterizada pela ruptura com o autoritarismo vigente,

como na Grécia e argentina. SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de

abertura política no Brasil. Op. Cit. Ver ainda LINZ, Juan; STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da

democracia. Petrópolis: Paz e Terra. 1999. 106

Carta do Nordeste. Sobre o radicalismo. 15 de maio de 1984. FJ PIp 5 doc 38,2. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco.

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A leitura da carta permite-nos imaginar que o tema – do radical e do radicalismo –

estava amplamente colocado no debate político. Os radicais já não existiam na oposição desde

1974, enquanto militantes armados prontos para uma ação, como indicava Weffort. No

entanto, em meados da década de 1980, eram apresentados como os “elementos antagônicos”

atuantes nos grupos de “direita” e de “esquerda”. Muitos desses grupos haviam optado pela

via conciliada e negociada da redemocratização, sentido reverberado pela imprensa.

Nesse cenário, Francisco Julião deveria ser nomeado como radical, por criticar os que

se mostravam como moderados e promotores de uma conciliação sem a participação popular.

Em maio de 1984 questionava a transição conciliada comandada por setores do PMDB e do

PDS:

[…] queremos […] pedir aos nossos leitores que examinem, com isenção de

ânimo, a questão aqui colocada, para que não caiam no jogo daqueles que,

querendo passar por moderados, conciliadores ou consensuais, esquecem

que a moderação, a conciliação e o consenso só valem se contarem com a

participação do povo107

.

Em nenhuma passagem da carta o ex-dirigente das Ligas Camponesas negava a sua

condição de radical. Procurava, entretanto, desde o princípio, ressignificá-la, romper com o

sentido único que os “conciliadores ou consensuais” conferiam à palavra. Aqui ele atuava

como um Vitangelo Moscarda, o múltiplo personagem de Luigi Pirandello, para quem as

palavras são vazias de sentido, mas quando ditas são preenchidas por quem as enuncia e as

escuta108

. E assim dizia Julião:

Radical é todo aquele que vai em busca de uma raiz. […] O homem é a raiz

de si mesmo, como dizia Marx. E, como a sociedade é composta de homens,

no sentido genérico, as raízes de cada sociedade, de cada povo, são os

próprios homens. […] Todo homem, portanto, é um radical. E partindo desse

raciocínio […] distinguimos o radicalismo do sectarismo, do fanatismo, da

ortodoxia, do facciocismo, expressões comumente usadas como sinônimo de

radicalismo109

.

107

Carta do Nordeste. Sobre o radicalismo. Op. Cit. 108

Discussão de Luigi Pirandello sobre a produção de sentidos, por meio do seu personagem principal no

romance Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012. p. 55. A relação entre linguagem e sujeito e

a produção de significados é um debate também realizada por Michel Foucault em livros como As palavras e as

coisas. Uma forma de operacionalização historiográfica dessa discussão pode ser encontrada no texto de Antonio

Montenegro, Rachar as palavras: uma história a contrapelo. In: ______. História, metodologia, memória. São

Paulo: Ed. Contexto, 2010. p. 21-47. 109

Carta do Nordeste. Sobre o radicalismo. Op. Cit.

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Criticava o uso que seus adversários faziam da palavra radical e a colocava como

representante da essência social do homem. Isso romperia com o discurso de que existiria

especificamente um grupo radical de esquerda, que poderia ameaçar o processo de conciliação

no Brasil. O radicalismo estava na sociedade, irradiado e manifestado, “com a participação do

povo, cuja maturidade para tomar as grandes decisões históricas destinadas a salvar a Nação

foi ampla e radicalmente (grifo no original) demonstrada através da memorável campanha

pelas eleições diretas”.

O significado do radical que se diferenciava de posições extremadas, sectárias ou

fanáticas foi também utilizado para atualizar o líder das Ligas Camponesas da década de

1960:

Vamos ser mais concretos ainda. Nós preconizamos, desde os tempos das

Ligas Camponesas, uma reforma agrária radical (grifo no original) para o

Brasil. E continuamos a defender a mesma posição, hoje. Por quê? Porque a

raiz do problema está no latifúndio110

.

Sendo radical “todo aquele que vai em busca de uma raiz”, Francisco Julião se

representava assim por combater o latifúndio, raiz do problema agrário. Partindo desses

significados, produz uma continuidade entre o autor dos anos 1980 e aquele que gritou

“reforma agrária radical”, na lei ou na marra. Retomou o discurso do líder das Ligas

Camponesas da década de 1960, inserindo-o nos debates da transição política do Brasil.

Realizava uma aproximação com esta imagem. Porém, em outros momentos, como no final

do exílio, em entrevistas para periódicos de grande circulação no Brasil, tentou apagar a

memória das lutas por reforma agrária radical lideradas por ele.

Os deslocamentos eram em múltiplas direções. Diferenciava-se da lógica da transição,

mas também em certo nível se aproximava.

Não há, por conseguinte, nem direita radical nem esquerda radical. O que há

é a direita sectária, fanática, ortodoxa, facciosa, intolerante, intransigente,

como existe a esquerda que se põe do outro lado, agitando as mesmas

bandeiras. Mudam as cores dessas bandeiras […], mas a essência é uma só.

Se pudéssemos escolher na terra um lugar para juntar os ultra da direita e da

esquerda, e deixá-los aí, acabariam entendendo-se. A espécie é a mesma111

.

110

Carta do Nordeste. Sobre o radicalismo. Op. Cit. 111

Carta do Nordeste. Sobre o radicalismo. Op. Cit.

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No mesmo texto, em que criticava a conciliação sem a participação popular,

compartilhava da prática de combate aos excessos políticos e as violências de setores da

direita e da esquerda. Esses eram os radicais para uns. Eram os sectários e fanáticos para

Julião. Ao final, tentava ressignificar o lugar do radical, mas não o abandonava.

Essa sua reflexão, escrita em maio de 1984, parecia anunciar como ele próprio agiria

nos pactos políticos que iria estabelecer.

6 - Entre conversas e decisões.

O telefone tocou na sala da Secretaria de Abastecimento da Prefeitura do Recife. Era o

ano eleitoral de 1986. O secretário, Anatólio Julião112

, atendeu e escutou um recado. “Olhe, o

doutor Arraes quer conversar com você”. Passava das 10 horas da manhã quanto Anatólio

tomou o carro e seguiu até um casarão situado na arborizada e tradicional Rua Amélia, onde

funcionava a sede do PMDB. Entrou e encontrou Miguel Arraes sentado. Também se

acomodou. Entre os dois existia uma mesa, onde repousava uma folha de papel em branco e

um lápis.

No início da conversa uma pergunta tomou de surpresa o visitante. Com sua voz

rouca, o candidato do PMDB ao governo de Pernambuco no ano de 1986 indagou: “Oh amigo

velho, eu queria ouvir sua opinião sobre a formação da chapa majoritária”. Seguiu-se um

instante de silêncio, no qual o Secretário da Prefeitura do Recife pensou: “E eu tenho que ser

ouvido nisso”. Já se sabia, nos bastidores políticos, que havia uma chapa praticamente

consolidada. Dessa forma, sem saber muito bem o que deveria ser dito, surge uma resposta

convencional: “eu acho que a condição é essa que está sendo cogitada aí, de lançar um

homem aqui e de lançar um homem do sertão”113

.

Anatólio continuou tentando produzir uma explicação para aquela pergunta e até para

a reunião, o que começou a ganhar forma após sua resposta. “Nosso interesse é realmente

fazer um grande movimento, sem radicalização”, dizia Miguel Arraes e continuava:

112

O filho mais velho de Francisco Julião havia apoiado Jarbas Vasconcelos na eleição para a Prefeitura do

Recife, em 1985, contrariando seu partido, o PDT, que lançou candidato próprio, João Coelho. Com a vitória, foi

nomeado para o cargo de Secretário de Abastecimento. Entrevista com Anatólio Julião, em 23 de maio de 2011.

Recife-PE. 113

Nessa resposta, Anatólio Julião fazia referência aos candidatos a senador que compunham a chapa majoritária

do PMDB: Antonio Farias, usineiro da Zona da Mata de Pernambuco, e Mansueto de Lavor, deputado estadual e

proprietário de terra no sertão de Pernambuco. Ao serem escolhidos, a ideia era construir bases políticas sólidas

nessas duas regiões do Estado, onde, em 1982, o candidato do PMDB, Marcus Freire, obteve poucos votos.

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Veja por exemplo o caso do nosso Chico (Francisco Julião). Um homem do

PDT, ele poderia vir para a chapa como senador... o nosso Chico poderia ser

o nosso candidato, mas Arraes e Julião é dose para elefante, nós não estamos

ainda preparados no Brasil para isso e isso pode se transformar numa grande

confusão114

.

Enquanto falava, Arraes rabiscava o papel na mesa entre os dois. Depois, empurrou-o

para o lado. Anatólio olhou e tentou entender o que havia ali. Não conseguiu115

.

...

Os escritos de Francisco Julião sobre o processo político do Brasil seguiram durante o

ano de 1984. No mês de agosto, mais duas outras Cartas do Nordeste foram produzidas.

Traziam menos uma análise direcionada para esta região do que um registro sobre os

posicionamentos do seu autor frente à redemocratização do país.

Quem não muda é burro era o título da nova carta.

Quem quer que alcance um palmo adiante do nariz, e não conserve os tapões

de um lado e do outro da cara, pode perfeitamente reivindicá-la – a frase [do

título] – para si e tomá-la como bússola, a fim de nortear-se no mundo.

Sobretudo quando alguém se mete pelos caminhos da política, com suas

emboscadas, exigindo bom faro e ouvido atento116

.

Esse texto irá registrar uma mudança, se comparado ao das outras cartas. Recorria-se

menos a categorias como povo e já não cogitava a possibilidade de levantes populares. Dizia

analisar as necessidades do momento e fazer uma avaliação para identificar se o melhor era

dar um passo a frente ou atrás. “O político […] pode perfeitamente mudar, desde que use as

armas da inteligência, da razão e da lógica, além da honestidade, é claro, para medir o passo

que vai dar”117

.

Ao contrário de outras cartas, Francisco Julião se mostrava conformado com o

processo de negociação sem a participação popular direta. Aceitava o Colégio Eleitoral como

a saída viável, naquele momento, para interromper a sequência de governos militares.

114

Entrevista com Anatólio Julião, em 23 de maio de 2011. Recife-PE. 115

A narrativa desse encontro foi construída a partir da entrevista concedida a mim por Anatólio Julião. As falas

citadas foram transcritas da mesma forma que aparecem no relato de memória do filho de Julião. Entrevista com

Anatólio Julião, em 23 de maio de 2011. Recife-PE. 116

Carta do Nordeste. Quem não muda é burro. Agosto de 1984. FJ PIp 5 doc 36,1. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco. 117

Carta do Nordeste. Quem não muda é burro. Op. Cit.

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243

Conformar-se a essas questões não significava, entretanto, a ausência de uma leitura crítica da

situação.

Acabamos de assistir a uma revoada de gaviões da política brasileira, que

tinham dentro do PDS, carne suficiente para estraçalhar e satisfazer os

apetites de poder. Eles trouxeram, nos bicos, recurvos e bem afiados, uma

mensagem bonita e atraente: Aliança Democrática. Os gaviões do lado de cá,

os do PMDB, os receberam com aquela alegria atroz das aves de rapina.

Querem fazer um novo viveiro, amplo e democrático, onde caibam todos

juntos, para a futura divisão da passarada. A convivência com os leões de

chácara tornara asfixiante, insuportável, periculosa e fatal118

.

Aí estava uma descrição da Aliança Democrática formada pelo PMDB e pelo setor

dissidente do PDS, chamado Frente Liberal, que depois constituirá o Partido da Frente Liberal

– PFL. Tal aliança visava garantir as condições para a vitória de Tancredo Neves no Colégio

Eleitoral119

, onde o PDS detinha um total de 356 votos, enquanto os partidos de oposição

reunidos contabilizavam 330 votos.

O partido do Governo já havia cindido com a formação do PDS pró-Diretas. A divisão

aumentou quando da definição do candidato para a sucessão de João Figueiredo. Em agosto

de 1984, Paulo Maluf, que havia sido governador de São Paulo, derrotou Mario Andreazza,

ministro de vários presidentes militares, na convenção do PDS. A definição de Maluf como

candidato à Presidência da República fez o grupo comandado por José Sarney, Aureliano

Chaves, Marco Maciel e Antonio Carlos Magalhães constituir a Frente Liberal e fechar

acordo político e eleitoral com o PMDB120

. José Sarney foi escolhido o candidato à vice-

presidência na chapa de oposição liderada por Tancredo Neves.

A vitória da Aliança Democrática no Colégio Eleitoral ocorreu em janeiro de 1985,

quando recebeu 480 votos de um total de 686. Meses antes, a figura de Tancredo Neves

ganhou a mídia, com destaque na Rede Globo, sendo apresentado como “unanimidade

118

Carta do Nordeste. Quem não muda é burro. Op. Cit. 119

O Colégio Eleitoral era formado por deputados federais e senadores, acrescido de seis representantes do

partido majoritário em cada estado. 120

José Sarney, já veterano senador pelo estado do Maranhão, ocupava, em 1984, o cargo de Presidente do PDS.

Em julho, a campanha de Paulo Maluf para ser indicado o candidato do partido ganhava força. O setor anti-

malufista do PDS tentou uma manobra para tirar do páreo o ex-governador de São Paulo. Propôs à Executiva

Nacional uma consulta às bases pedessistas para apurar suas preferências, visto que Maluf não tinha tanta

popularidade nos municípios do interior do país. A reunião da Executiva na qual seria debatida essa questão

virou uma grande confusão. Partidários pró-Maluf superlotaram a sessão. Ao final, José Sarney renunciou à

Comissão Executiva Nacional. Dias depois, Aureliano Chaves desistiu de pleitear sua candidatura à presidência

pelo PDS, assim como havia feito Marco Maciel. Os dissidentes formaram a Frente Liberal. SKIDMORE,

Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Op. Cit. p. 481.

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244

nacional”121

. Pesquisa de opinião pública em outubro indicava um apoio de 69,5 % à chapa

considerada de oposição, enquanto 18,7% dos entrevistados apoiavam Maluf 122

.

Essa aliança entre um setor do PDS e o PMDB era dita como a união entre animais

políticos da mesma espécie ou os “gaviões”. Estariam no mesmo “viveiro” aqueles que

faziam oposição ao Regime Militar e os políticos que “até outro dia comiam na mesa do

Delfim e do Maluf. […] Ninguém venha dizer-nos que Aureliano, Sarney e Maciel são como

as pombas que ruflam as suas asas pelo espaço e vem aos nossos beirais arrulhar seus

amores”. Mas, o que fazer frente a isso? “Deixar de recebê-los nesta hora de agonia do

sistema seria excesso de burrice”. Aquela Aliança era “um passo adiante. Uma mudança”123

.

Ainda de acordo com a Carta, o PDT e o próprio Francisco Julião não teriam

condições para tal união. Isto porque, na comparação, o PDT era um partido, enquanto o

PMDB, uma frente. E nessa lógica de comparação e diferenciação, Francisco Julião afastava-

se dos representantes peemedebistas ao apresentá-los: “o Dr. Ulysses, que tem estômago de

avestruz, pode agasalhá-los. E o Dr. Tancredo, com seu feitio e ar de saguim treloso, saberá

como lidar nessa floresta, para escapar de suas garras”. E dizia de sua posição: “preferiríamos

aparar-lhes as garras e transformá-los, de aves de rapina em sabiás-da-mata, para o canto

nacional do socialismo e do trabalhismo. Como? Não vemos como”124

. Não haveria, de sua

parte, uma possibilidade de coligação com os gaviões do futuro Partido da Frente Liberal.

As elites políticas, de acordo com outra Carta ainda de agosto de 1984125

, haviam

construído uma fórmula para se salvarem do ajuste de conta com o povo, depois da derrota da

emenda Dante de Oliveira. A fórmula se chamava Transição, mas para Francisco Julião era

Transação. E pergunta: “O que restaria ao povo brasileiro? Abjurar de tudo?” A resposta

“não” trazia também mais um posicionamento frente àquela dinâmica da redemocratização.

“A omissão nunca foi a melhor arma de um político”. E assim, dizia que se deveria ir ao

Colégio Eleitoral e usar dessa legalidade, instituída pelos militares, para gerar presidentes

contra a vontade do povo, para, ao menos, interromper sua “cadeia de generais”126

. Era uma

mudança, um passo a frente, considerava Julião.

121

MARCELINO, Douglas Attila. O Corpo da Nova República: funerais de presidentes e memória de Tancredo

Neves. Op. Cit. p. 117. 122

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Op. Cit. p. 486. 123

Todas as citações no parágrafo são da Carta do Nordeste. Quem não muda é burro. Op. Cit. 124

Carta do Nordeste. Quem não muda é burro. Op. Cit. 125

Carta do Nordeste. Transição ou Transação. Agosto de 1984. FJ PIp 5 doc 39,1. CEHIBRA, Fundação

Joaquim Nabuco. 126

Carta do Nordeste. Transição ou Transação. Op. Cit.

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245

...

Anatólio continuava atento ao que lhe dizia Miguel Arraes. Não acreditava que

houvera sido convidado para expor sua opinião sobre a chapa majoritária. Entre rabiscos e

pigarros, o Dr. Arraes, como se referia ao candidato a governador de Pernambuco em 1986,

seguia oferecendo algumas pistas.

Primeiro disse que desejava fazer uma campanha sem radicalizações. Depois, citou

Francisco Julião. Cogitou a possibilidade do dirigente do PDT participar da chapa majoritária,

talvez como um dos senadores. A ideia foi logo dissolvida, pois, segundo Arraes, o Brasil não

estaria preparado para ele e Julião juntos. Seria uma radicalização. Ademais, Mansueto de

Lavor e Antonio Farias já haviam sido praticamente escolhidos pelo partido. O candidato do

PMDB era muito cuidadoso com as palavras. Avaliava bem, formulava cuidadosamente o que

exporia e calculava quando. Em determinado momento apresentou o que deveria ser, desde o

princípio, a sua intenção com aquele encontro: “agora se Chico [Francisco Julião] quisesse ser

deputado federal aí era diferente, aí com os canavieiros, com o pessoal da Zona da Mata, ia ter

uma votação expressiva”127

.

Era uma proposta. Anatólio tinha sido convidado para recebê-la e transmiti-la a seu

pai. E o fez. Saiu da sede do PMDB, entrou em seu carro e seguiu imediatamente para a casa

de Francisco Julião.

...

Em março de 1985, o PDT realizou um encontro regional em Recife. Discutiram-se as

formas para melhorar a atuação dos diretórios na divulgação do programa do partido junto à

população e para aumentar o número de filiados. A questão da formação de uma Assembleia

Constituinte também foi ponto da pauta.

Naquele período se articulavam as candidaturas para as eleições a prefeito do Recife,

em novembro daquele ano. As lideranças do Partido Democrático Trabalhista afirmavam a

intenção de lançar um candidato próprio e o nome de Francisco Julião foi apresentado como

uma das possibilidades. De acordo com o Jornal do Commercio, o 1° Vice-presidente do PDT

127

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit.

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em Pernambuco teria admitido a candidatura, mas aguardaria uma decisão formal do

partido128

.

Ainda nesse encontro, foi debatida a possibilidade de se mudar o nome do partido,

incluindo a palavra socialismo. Assim, o PDT poderia passar a ser PDTS, Partido

Democrático Trabalhista Socialista. Era uma discussão a nível nacional. A inclusão dessa

palavra atenderia às solicitações do setor socialista do partido. A cartilha O que é o PDT,

escrita em 1981 por Francisco Julião e Aybirê Ferreira de Sá, já se direcionava para os

nacionalistas de esquerda e os socialistas. Um dos trechos dizia: “Por isso que esse Partido /

Veio só para lutar / Até que o socialismo / Encontre aqui seu lugar”129

. Anacleto Julião, o

filho mais novo de Francisco Julião, fazia parte da direção nacional da Juventude Socialista

pedetista130

.

Apesar da ideia de socialismo estar presente nos debates de fundação do PDT, no

encontro regional de 1985, em Recife, ao se debater a inclusão da palavra socialista ao nome

do partido, Francisco Julião fazia um alerta: “a palavra poderá ser usada como sinônimo de

comunismo pelos adversários políticos notadamente nas cidades interioranas, onde esse tipo

de explicação torna-se mais difícil”131

. O possível candidato pedetista a prefeitura do Recife

ressaltava as dificuldades que poderiam surgir ao se nomear um partido como socialista.

Afinal, ele foi filiado ao Partido Socialista Brasileiro antes do golpe civil-militar de 1964 e

nomeado pela imprensa e por setores conservadores como comunista. Essa era uma

associação que ele desejava evitar. A inclusão do socialismo ao nome do PDT poderia trazer

mais dificuldades para sua possível candidatura a prefeito do Recife nas eleições de novembro

de 1985.

A eleição para prefeito do Recife em 1985 foi marcada por reviravoltas. Em junho, o

PDT já descartava a candidatura de Julião. Em seu lugar era apresentado Silvio Pessoa, que

havia sido Secretário de Interior e Justiça de Pernambuco no governo de Nilo Coelho (1967-

128

Jornal do Commercio, 17 de março de 1985. p. 08. APEJE. 129

Aybirê Ferreira de Sá e Francisco Julião. O que é o PDT. Op. Cit. 130

No Encontro de Lisboa, ocorrido em julho de 1979, para a recriação de um partido trabalhista, que viria

depois a ser registrado como PDT, definiu-se que as novas temáticas presentes no programa partidário estariam

baseadas na democracia, no socialismo e no nacionalismo. SENTO-SÉ, João Trajano. Um encontro em Lisboa.

O novo trabalhismo do PDT. Op. Cit. p. 432-438. Na Carta de Lisboa, tomada como o documento de fundação

do PDT, assinada em 19 de julho de 1979 pelos presentes no Encontro de Lisboa, está assinalado que: “Nós,

trabalhistas, […] acreditamos que só através de um amplo debate, com a participação de todos, poderemos

encontrar nosso caminho para a construção no Brasil de uma sociedade socialista, fraterna e solidária, em

Democracia e em Liberdade”. Disponível em: <www.pdt.org.br/index.php.memoria-pdt/documentos/carta-de-

lisboa>. Acessado em 03 dez. 2012. 131

Jornal do Commercio, 17 de março de 1985. p. 08. APEJE.

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1971). No entanto, três dias após a divulgação do seu nome pela Comissão Executiva do

partido, Silvio Pessoa desligou-se do PDT e enviou uma carta presidente Luiz Andrade Lima.

A justificativa para a sua saída seria uma nota publicada pelo Partido, no dia anterior,

onde foi negada a possibilidade de coligação com o PFL - Partido da Frente Liberal. A

direção pedetista alegava que essa aliança consistiria em uma infidelidade aos ideais

partidários. Para se contrapor à nota, Silvio Pessoa utilizava-se do discurso da conciliação, tão

presente naquele momento da redemocratização do Brasil: “Recusar a proposta de coligação

com o PFL em favor de um nome do PDT, sob a alegação de infidelidade aos ideias do

Partido, é desmentir a disposição conciliadora sem a qual o Brasil não avançará na superação

dos seus problemas e questões mais angustiantes”132

.

Naquele momento, a direção do PDT analisava duas alternativas. Lançar candidato

próprio ou construir uma coligação com o PMDB. Este partido, entretanto, criou uma situação

inesperada no cenário eleitoral. Na sua convenção, em julho de 1985, Jarbas Vasconcelos foi

derrotado por Sergio Murilo, que representava os setores mais moderados e era apoiado por

Marcos Freire133

, candidato derrotado ao governador de Pernambuco em 1982.

O grupo de Sergio Murilo e Marcos Freire desencadeou um intenso processo de

filiação partidária e quando da convenção, a vitória já era dada como certa. Jarbas

Vasconcelos recordava, em entrevista concedida ao CPDOC: “a gente não imaginava os

números. Perdemos o controle do partido […] ficou sinalizado que, se eu fosse à convenção,

perderia”134

.

Após o resultado da convenção, vencida por Sergio Murilo, Francisco Julião avaliava

que o PMDB não tinha possibilidade de conquistar a prefeitura do Recife. “Sérgio Murilo não

reúne condições para disputar a eleição obtendo uma vitória”135

, dizia ele. O grupo

peemedebista vencedor estabeleceu uma aliança com o PFL, mantendo a dinâmica política da

Aliança Democrática. O PDT decidiu por lançar uma candidatura própria, sem não antes

tentar, sem sucesso, trazer Jarbas Vasconcelos para suas fileiras136

. O candidato derrotado na

132

Jornal do Commercio, 08 de junho de 1985. p. 05. APEJE. 133

Assim relata Jarbas Vasconcelos em entrevista para Célia Costa e Dulce Pandolfi no Projeto Memória Viva,

da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco. COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória

Viva: 14 depoimentos sobre a política pernambucana. Vol. II. Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.

Recife, 2007. p. 225. 134

COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória Viva. Op. Cit. 135

Jornal do Commercio, 09 de julho de 1985. p. 01. APEJE. 136

Pelo menos informava a breve matéria do Jornal do Commercio de 09 de julho de 1985 – “Andrade Lima

[Presidente regional do PDT] admite Jarbas como filiado do PDT”. O texto ainda transcrevia a seguinte

declaração do Presidente: “É quase certo que ele virá e será nosso candidato”.

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convenção do PMDB, que tinha o apoio de lideranças como Miguel Arraes, Fernando Lyra,

Fernando Coelho, Cristina Tavares e Egídio Ferreira Lima, se desfiliou do partido.

Como saída, foi (re)criado o Partido Socialista Brasileiro137

– PSB –, que lançou

Jarbas como candidato a prefeito. Apenas ele deixou o PMDB. Todos os outros, que o

apoiavam, continuaram. A estratégia, traçada em conjunto com seu grupo político, era vencer

a eleição e retomar o controle do partido. Para tanto, “a campanha também foi montada muito

em cima da candidatura de Arraes para governador, em 1986”138

, relembrava Jarbas

Vasconcelos.

Do seu lado, o PDT realizava sua pré-convenção, em julho de 1985, e anunciava as

candidaturas do vereador João Coelho e do sociólogo Anatólio Julião, para prefeito e vice,

respectivamente. Essa era chapa escolhida por aclamação e que recebeu os apoios de

Francisco Julião e do ex-deputado José Carlos Guerra.

Durante a pré-convenção, Francisco Julião fez um discurso no qual ressaltou a

juventude e a competência dos candidatos do seu partido à prefeitura do Recife. Comentou

ainda a ida de Jarbas Vasconcelos para o PSB, como indício de que o PMDB se

“desmantelava pelo Brasil afora”. Por fim, não descartou a possibilidade do PDT se coligar a

algum outro partido, desde que não fosse PFL139

.

A possibilidade de coligação se confirmou. Em agosto, na convenção do partido, foi

aprovada a aliança com o recém-criado Partido Liberal140

. O empresário Ricardo Carvalheira

foi escolhido para ser o candidato a vice-prefeito na chapa encabeçada pelo vereador João

Coelho. A coligação PDT-PL, entretanto, não foi aceita por todos. Um grupo pedetista, como

forma de protesto, não participou da convenção. Dele fazia parte Anatólio Julião, que até dias

antes era o candidato a vice-prefeito.

Pouco tempo depois do resultado da convenção, no final de agosto, Francisco Julião,

que havia passado praticamente todo o mês em viagem ao México e a Cuba, onde participou

137

O Partido Socialista foi fundado em julho de 1985 por intelectuais e políticos como Antônio Houaiss, Rubem

Braga, Joel Silveira, Evandro Lins e Silva e Marcelo Cerqueira. A ideia era retomar algumas ideias do antigo

PSB, extinto pelo AI-2, mas sem repetir a experiência de congregar, sobretudo, intelectuais. Quando foi criado, o

PSB tinha apenas dois representantes na Câmara dos Deputados: José Eudes, Rio de Janeiro, e Jarbas

Vasconcelos, Pernambuco. ABREU, Alzira Alves (coord.). Dicionário Histórico-biográfico brasileiro pós-1930.

Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed. FGV; CPDOC, 2001. p. 4413. 138

COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória Viva. Op. Cit. p. 226. 139

Partes do discurso de Francisco Julião na pré-convenção do PDT aparecem na reportagem do Jornal do

Commercio de 16 de julho de 1985. p. 05. APEJE. 140

O Partido Liberal foi fundado em 25 de junho de 1985 no Rio de Janeiro pelo deputado federal Álvaro Vale.

No ano anterior, ele prticipou da dissidência da Frente Liberal e filiou-se em seguida ao Partido da Frente

Liberal. O rompimento com o PFL se deu em 1985, ocasionando a criação do PL. ABREU, Alzira Alves

(coord.). Dicionário Histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Op. Cit. p. 4322.

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de um seminário sobre a dívida externa da América Latina, concedeu uma entrevista em

Recife ao Jornal do Commercio. Afirmou que o PDT foi obrigado a participar das eleições

para prefeito do Recife com candidato próprio, visto que a tentativa de uma aliança com

Jarbas Vasconcelos havia fracassado. Revelou ainda que, apesar de ter seu nome cogitado

para ser candidato, não tinha interesse em disputar a prefeitura. Desejava lutar por uma vaga

na Assembleia Constituinte. Ao final, perguntado sobre as divisões dentro do seu partido, nas

quais o filho era um dos envolvidos, asseverou: “não passa de uma dissidência episódica,

contornável”141

.

Em novembro, Jarbas Vasconcelos foi eleito prefeito do Recife, porém a votação

obtida por João Coelho foi considerada expressiva142

. Anatólio Julião, que integrava o

chamado PDT dissidente, participou da campanha do PSB e foi convidado para ocupar o

cargo de Secretário de Abastecimento. Nas comemorações da vitória, ocorridas no Pátio de

São Pedro, centro da cidade, a candidatura de Miguel Arraes para governador em 1986 era

lançada. O então Ministro da Justiça, Fernando Lyra, subiu ao palanque e puxou o refrão que

já ecoava nas ruas: “Jarbas 85, Arraes 86”143

. Dias depois Francisco Julião declarou à

imprensa: “a eleição do futuro governador de Pernambuco passa inevitavelmente pelo

PDT”144

.

...

Anatólio Julião saiu da sede do PMDB e foi direto para a casa do seu pai. Ele era,

naquele momento, o portador de uma proposta e se constituía no elo entre duas importantes

lideranças de esquerda do Brasil. Depois de 21 anos de ditadura, exílios e tentativas de

aproximação, a eleição de 1986 era mais uma oportunidade de estarem juntos. Miguel Arraes

havia sinalizado com a possibilidade de Francisco Julião participar da sua campanha, como

candidato a deputado federal.

Os dois políticos conversavam há anos. Anatólio lembrava as inúmeras vezes em que

seu pai procurou o então deputado federal pelo PMDB, Miguel Arraes. As tentativas de

141

Jornal do Commercio, 24 de agosto de 1985. p. 05. APEJE. 142

João Coelho ficou em terceiro lugar, com pouco mais de 20% do total de votos, atrás de Jarbas Vasconcelos –

PSB – e Sergio Murilo – PMDB/PFL. 143

Jornal do Commercio, 18 de novembro de 1985. p. 01. APEJE. 144

Jornal do Commercio, 22 de novembro de 1985. p. 08. APEJE.

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combinação145

e entendimento eram sempre fracassadas e parecia-lhe que as expectativas de

Francisco Julião iam sendo frustradas146

.

O diálogo não deveria ser dos mais fáceis. Na entrevista ao jornalista Geneton Morais

Neto, em 1983, quando falava dos encontros entre os dois, ainda no exílio, Julião

provavelmente compunha sua memória também com as percepções e os sentimentos

produzidos no presente, a partir das conversas e tentativas de “combinação”, realizadas

naqueles anos de redemocratização do Brasil.

Comparava Miguel Arraes a um cacto, sempre se defendendo e cercado de espinhos

por todo lado. E dizia: “é um pouco esfinge. A gente tem de decifrar o pensamento de Arraes,

porque ele não se deixa decifrar”. Considerava-o como “um homem enigmático. Não gosta

que conheçam o que pensa”147

.

Segundo Julião, quando o PDT foi fundado, ele teria tentando novamente aproximar

Miguel Arraes e Leonel Brizola, como o fez no período de exílio. Houve um momento em

que o ex-governador de Pernambuco aceitou o convite, mas depois desistiu. Por tal opção,

Arraes era descrito como “um jagunço desconfiado. […] Ficar na retaguarda, na reserva,

observando. Isso é do temperamento e do caráter de Arraes. Temos de assimilá-lo assim. […]

Não se abre. […] Para esta fase em que estamos entrando no Brasil, seria necessário que ele

se abrisse mais, expusesse melhor o pensamento e não ficasse simplesmente nos enigmas”. As

frustrações de Francisco Julião, citadas por Anatólio, deviam relacionar-se à postura

enigmática de Miguel Arraes, que ao fim teria contribuído para inviabilizar a união dos três

políticos – Leonel Brizola, Francisco Julião e Miguel Arraes – em um partido. “Teria sido

proveitoso e fico pensando que ainda é possível. Sou homem de esperança”, concluía o ex-

deputado socialista em seu relato de 1983148

.

Dessa forma, era Anatólio o mensageiro de mais uma proposta de aproximação. Agora

de Arraes para Julião. Narrou ao pai a reunião na sede do PMDB e a proposta de Arraes, que

o pretendia como candidato a deputado federal em uma coligação proporcional com o PMDB

ou mesmo com uma filiação a este partido. Francisco Julião escutou, pensou e respondeu

assim, de acordo com a memória do seu filho: “Anatólio, eu passei a vida inteira fazendo

prato para Arraes comer, esse prato eu não faço, talvez seja o último, mas esse último eu não

145

Essa foi a palavra utilizada por Anatólio Julião, na entrevista que nos foi concedida, para representar as

possíveis articulações entre Francisco Julião e Miguel Arraes. 146

Assim relatava Anatólio Julião em sua entrevista, Op. Cit. 147

Entrevista concedida por Francisco Julião a Geneton Morais Neto, em 1983, e disponível em

www.geneton.com.br. 148

Todas as citações no parágrafo foram retiradas da entrevista concedida por Francisco Julião a Geneton Morais

Neto, em 1983, e disponível em www.geneton.com.br.

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vou fazer, não faço, não tem perigo”149

. E teria acrescentado, referindo-se às campanhas

políticas do final dos anos 1950 e início da década seguinte:

toda vida eu fiz o trabalho de base. Arraes nunca viu um capanga de perto,

nunca viu um capanga como eu vi […]. Nunca entrou num engenho para

fundar uma Liga […]. Ia na época de eleição, já com tudo organizado, ele

sendo o nome do consenso, todos os partidos apoiando, ai ele ia […] quem

foi lá fui eu, e Arraes pra prefeito, Arraes pra governador150

.

Anatólio, bastante atento ao que era dito, procurava fazer algumas considerações.

Sugeria que caso ele não aceitasse apoiar Miguel Arraes, então optasse por se retirar daquele

processo eleitoral e escrevesse uma carta à população, explicando os seus motivos. Do

contrário, se ele insistisse, seria “atropelado”. Para tal sugestão a resposta foi: “não sou

homem de ficar em cima do muro, nunca fiquei, nem nunca fiz política pesando no que os

outros vão pensar, eu faço o que eu acho que é correto”151

.

Não havia mais como argumentar junto ao pai, pensou Anatólio, que permaneceu

preocupado com aquela situação. Julião parecia tomado por um ressentimento cultivado e

acalentado durante anos e produzido a partir da sua percepção de que ocupava uma posição

injustamente subordinada dentro do cenário político152

.

...

Em 1979, a Editora Vega lançou o livro Conversações com Arraes, que trazia uma

entrevista do ex-governador concedida a Fernando Mendonça, que fora seu Secretário do

Trabalho, em 1963, e Cristina Tavares, então deputada federal pelo MDB de Pernambuco.

Uma das questões referia-se à atuação de Francisco Julião no meio rural, no início da década

de 1960.

Quando meu governo se instalou, em Pernambuco, as atividades no meio

rural já existiam há bastante tempo. Julião tinha realizado um grande

trabalho junto a setores da população do campo. […] Na realidade, Julião é

149

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit. 150

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit. 151

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit. 152

Sobre essa ideia de ressentimento ver: KONSTAN, David. Ressentimento – História de uma emoção In

BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Memórias e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível.

Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004. pp. 59-80.

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um pioneiro, no Brasil, quando levantou e agitou a questão rural, numa ação

concreta que se desenvolveu em Pernambuco, depois em outros Estados153

.

O leitor deve lembrar que Francisco Julião afirmou, em um dos seus relatos de

memória, ter sido acusado por Miguel Arraes como culpado por sua prisão. O motivo era a

agitação promovida no meio rural, que haveria contribuído para o levante dos militares,

responsáveis por destituírem e prenderem o governador de Pernambuco em 1964. Entretanto,

nessa entrevista de 1979, um dos raros relatos públicos de Arraes sobre Julião após o golpe

civil-militar e de anos de exílio, há uma exaltação à figura do líder dos camponeses,

“pioneiro, no Brasil, quando levantou e agitou a questão rural”. Era ressaltado o grande

trabalho realizado “junto a setores da população do campo”.

Esse era o Francisco Julião que Miguel Arraes passava a apresentar, quando se

preparavam para regressar do exílio. Não lhe fazia qualquer tipo de acusação pública. Desejou

fixá-lo como pioneiro da questão rural no Brasil. Contudo, se havia o reconhecimento à

importância do trabalho realizado, existia também a instituição de um lugar político, de líder

dos camponeses, e a definição de papéis sociais, pois era o ex-governador – “quando meu

governo se instalou” – representando o ex-dirigente das Ligas como aquele que levantou e

agitou a questão rural.

Mas, não só. Definia-se também o “anunciador ou o profeta”. Ao responder a

pergunta– “Como foi o desempenho de Julião: organizador ou agitador?” – Miguel Arraes

desfaz a ideia do organizador:

Ele foi mais um anunciador do movimento do campo do que organizador.

Denunciou a emergência do problema, mas a organização das ligas era

menor do que a própria expressão que o movimento alcançou no Brasil.

Porém, é indiscutível que Julião foi um dos grandes profetas do problema

rural e agrário no Brasil154

.

Evocar a imagem do profeta era fazer circular o Francisco Julião messiânico propalado

nas reportagens nacionais e internacionais do início da década de 1960. Dizer ainda que havia

sido mais anunciador, era afirmar que ele colocou a questão dos camponeses na pauta política

do Brasil. Mas também, apresentá-lo como menos organizador era criticar a forma como

ordenou e fez funcionar as Ligas Camponesas. Talvez estivesse pensando como esse

funcionamento, que obteve destaque inclusive internacional, foi um dos motivos utilizados

153

MENDONÇA, Fernando; TAVARES, Cristina. Conversações com Arraes. Ed. Veja, 1979. p. 12. 154

MENDONÇA, Fernando; TAVARES, Cristina. Conversações com Arraes. Op. Cit.

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por militares e setores sociais para justificar o movimento golpista de 1964. Afinal, em

seguida, Arraes foi perguntado se teriam “esses exageros [invasões de terra] funcionado como

elemento psico-social para assustar a classe média”, afirmou que: “Sim, sim, isso era

utilizado”155

. O nome de Julião não foi citado na pergunta nem na resposta, mas a sequência

de questões da entrevista induz o leitor a relacionar o ex-dirigente das Ligas e as invasões de

terra.

Não se pode, contudo, deixar de pensar que, apesar de algumas críticas e ressalvas,

Miguel Arraes construía cuidadosamente um discurso positivo sobre a atuação de Francisco

Julião no momento em que ambos regressavam do exílio. Ele não produzia uma acusação e

poderia até tentar uma aproximação. Essa tentativa poderia ser identificada na proposta

apresentada a Anatólio, em 1986, para que seu pai participasse da campanha do PMDB como

candidato a deputado federal.

Todavia, a explicação oferecida por Miguel Arraes para o veto à participação de Julião

na chapa majoritária peemedebista em 1986 apresentava os limites daquela aproximação e as

ressalvas do candidato a governador, bem como de diversos setores sociais, ao ex-líder

camponês. Segundo o relato de memória de Anatólio, “Arraes via Julião como sendo um

agitador na chapa”156

.

No entanto, não eram apenas as questões relacionadas às memórias de embates do

passado que definiriam ou não uma aliança entre os dois políticos. O ano de 1986 foi de

intensas negociações. Integrantes das direções dos partidos se reuniam quase que diariamente.

Eram várias as possibilidades de coligações, depois de anos de bipartidarismo e da

inviabilidade de alianças oficiais entre os partidos na eleição para governador em 1982,

devido ao voto vinculado.

Fazer uma cartografia da maior parte das negociações e possibilidades de coligações

existentes naquele momento extrapola os objetivos desse texto. Entretanto, o leitor deve saber

que pedetistas e peemedebistas coversaram. Para o PDT havia a possibilidade de lançar

candidatura própria para governador, como o fez no ano anterior para prefeito. Porém, poderia

coligar-se com o PMDB ou mesmo com o PFL. Essas alternativas eram debatidas na

imprensa desde os primeiros meses de 1986. Embora uma parcela majoritária do PDT

tendesse para uma coligação, era também cogitado o nome do ex-ministro da justiça,

Fernando Lyra, como candidato do partido. Apesar de Lyra estar no PMDB e ter puxado o

coro de Arraes 86, no início do ano ele havia mudado de ideia e ensaiava por meio da

155

MENDONÇA, Fernando; TAVARES, Cristina. Conversações com Arraes. Op. Cit. p.13. 156

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit

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imprensa disputar a indicação do seu partido na convenção. Caso não conseguisse, setores do

PDT já sinalizavam com um convite. Para ser mais específico, o próprio Leonel Brizola o

havia convidado a disputar o governo de Pernambuco157

.

Fernando Lyra acabou desistindo e apoiando a candidatura de Miguel Arraes, que,

porém, tomou o convite do governador do Rio de Janeiro a Lyra como uma justificativa para a

não composição com o PDT. O candidato peemedebista declarou ao Jornal do Commercio

não ser possível negociar com um partido que queria dividir o PMDB158

.

Passado dois dias, Francisco Julião declarou ao mesmo jornal, sobre a não coligação, o

seguinte:

A direção do PDT manteve vários entendimentos com o próprio candidato

do PMDB e com a direção do partido em Pernambuco. Só que até hoje o

Partido espera uma resposta de Arraes sobre as reivindicações para compor a

chapa. O PDT queria a vice-governança e a senadoria da República, mas

certamente se contentaria com a primeira vaga, com o que o PMDB não

concordou e nem deu qualquer resposta159

.

As frustrações pelas conversas mal sucedidas e acordos não realizados relembradas

por Anatólio Julião estão detalhadas na declaração de seu pai à imprensa. Em junho de 1986

não havia mais qualquer possibilidade de Miguel Arraes e Francisco Julião integrarem a

mesma chapa. Ninguém queria “fazer o prato”.

...

Anataílde foi procurada por seu irmão, Anatólio. Ele estava preocupado com a

situação do seu pai, que se aproximava cada vez mais do PFL, cujo candidato a governador

seria José Múcio Monteiro, um jovem pertencente a uma rica família de usineiros. “Tatá”, -

referia-se carinhosamente a irmã – “vamos fazer uma visita a papai e tentar convencê-lo”.

Chegaram à casa do velho Julião. Apresentaram novamente seus argumentos. Diziam entre

outras coisas que o pai não teria tempo biológico, em caso de derrota, “de dar a volta por

cima, de mostrar que houve injustiça, de que não houve reconhecimento, de que o PDT não

foi reconhecido na chapa majoritária”. Ainda teriam prognosticado: “o senhor não vai nem

157

Diario de Pernambuco, 05 de abril de 1986. p. A-2. APEJE. 158

Jornal do Commercio, 13 de junho de 1986. p. 07. 159

Jornal do Commercio, 15 de junho de 1986. p. 07.

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conquistar os votos da direita e vai perder os votos da esquerda, então se seu desempenho

eleitoral já ta ruim160

, vai ficar péssimo”161

. O pai não aceitou e nem se convenceu com os

argumentos do filho.

O processo de negociação entre Francisco Julião e um setor do PDT com o PFL

avançava. Já se falava na assinatura de um pacto para selar essa aliança. Era o chamado Pacto

da Galiléia, por meio do qual os usineiros signatários se comprometeriam a destinar 10% de

suas terras para fins de reforma agrária, caso José Múcio saísse vencedor das eleições de

1986.

Anatólio Julião acompanhava as conversas e notícias diárias sobre esse processo de

aliança. Um dia estava em sua sala, na Secretaria de Abastecimento da Prefeitura do Recife, e

pegou-se pensando mais uma vez sobre a opção que seu pai iria fazer. Saiu, tomou o carro e

seguiu para o bairro de Boa Viagem, onde Francisco Julião estaria morando em um

apartamento alugado. Chegou à garagem no subsolo do prédio e antes de entrar no elevador,

conversou com o porteiro. Assim ele relembrou o momento:

[…] Eu desci do carro de gravata e tal, terno, no carro da prefeitura, carro

oficial, abri a porta e me dirigi para o elevador, e tinha um porteiro lá.

Quando eu cheguei o porteiro disse: “olha, doutor Krause já esta lá em cima,

doutor Marco Marciel, só ta faltando chegar doutor Roberto Magalhães”. Aí

eu disse: “eu não posso entrar ai”, eu estou com Jarbas, eu vou apoiar doutor

Arraes, numa reunião lá em cima, Krause, Marco Maciel e Roberto

Magalhães por chegar, se souberem na prefeitura vão dizer que eu to fazendo

jogo duplo. Ai eu disse: “não, pode fechar que eu não vou subir agora não”.

Eu voltei para o carro e voltei para prefeitura, voltei da porta do elevador. Eu

disse: “agora não tem mais”. Pronto, daí eu não vi mais papai, daí não vi

mais162

.

O relato memorialístico de Anatólio revela a rede política na qual seu pai passou a

compor naquela eleição de 1986. Mostra-nos também como as maiores lideranças do PFL de

Pernambuco mobilizaram-se para ganhar o apoio de Francisco Julião; Gustavo Krause, ex-

prefeito do Recife e à época governador do estado; Roberto Magalhães, que havia se afastado

da chefia do executivo estadual para concorrer no pleito daquele ano ao cargo de senador da

160

Anatólio Julião referia-se às vezes que Francisco Julião foi eleito deputado estadual e federal, nos anos 1950 e

1960, sempre com pequenas votações. 161

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit. 162

Entrevista com Anatólio Julião, Op. Cit.

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República; e Marco Maciel, um dos principais articuladores da Aliança Democrática em

1984, fundador do PFL e então Ministro da Casa Civil do Presidente José Sarney163

.

Para Anatólio não havia mais a possibilidade de evitar a aliança do seu pai com o PFL,

a qual ele considerava um equívoco, tanto que apoiou Miguel Arraes. Estavam em lados

opostos no processo eleitoral. Encerravam-se também os encontros. O máximo que conseguiu

daquela última tentativa foi guardar na memória a frustração de descobrir o pai participando

da rede política na qual estavam adversário históricos.

...

Desde o início de 1986, Francisco Julião, vice-presidente da executiva regional do

PDT, se apresentou favorável a que o seu partido construísse coligações, para assim atingir o

objetivo de conquistar mais espaço político, fundando novos diretórios e fortalecendo os já

existentes. Em janeiro, declarou ao Diario de Pernambuco: “Nossa intenção é fazer coligação

com qualquer partido, seja ele de direita ou de esquerda, à exceção do PTB164

; portanto

estamos abertos a negociações”165

.

Contudo, a predileção dos pedetistas parecia mesmo por uma coligação com o PMDB.

E para isso se movimentaram. Em março, reuniram-se o presidente do PMDB estadual,

Fernando Correia, e o secretário-geral do PDT, José Carlos Guerra. O governador Leonel

Brizola havia autorizado os pedetistas de Pernambuco a desenvolverem com autonomia o

processo de coligação.

Em abril, José Carlos Guerra conversou com o candidato do PMDB. Naquele

momento, trabalhava-se com a possibilidade de integrar a chapa majoritária de Miguel Arraes,

provavelmente indicando um candidato a vice-governador ou a senador. Mas, a opção pela

candidatura própria para ainda existia e o nome do secretário-geral pedetista era um dos mais

cotados. Caso a coligação com o PMDB não fosse possível, uma aproximação com o PFL

para fortalecer a candidatura de José Carlos Guerra a governador era cogitada166

. Nesse

163

Marco Maciel tinha um bom trânsito político tanto no PFL quanto no PMDB. Era considerado um político de

confiança tanto por Tancredo Neves, falecido em 1985, quanto pelo presidente José Sarney. Participou das

negociações para a construção da Aliança Democrática e da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Por

insistência de Tancredo Neves assumiu um ministério em seu governo, sendo a pasta da Educação escolhida pelo

próprio Maciel. Ver entrevista de Marco Maciel em COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória

Viva: 14 depoimentos sobre a política pernambucana. Vol. II. Op. Cit. 164

Em virtude da disputa travada entre Leonel Brizola e Ivete Vargas pela sigla PTB no processo de criação dos

partidos, em 1980. 165

Diario de Pernambuco, 17 de Janeiro de 1986. p. A-2. APEJE 166

Diario de Pernambuco, 11 de abril de 1986. p. A-2. APEJE

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período, os encontros eram tão constantes que um jornalista publicou o seguinte comentário:

“os socialistas morenos [referindo-se aos dirigentes do PDT] estão ficando rechonchudos,

tantos são os almoços e jantares oferecidos pelos partidos que os cortejam como possíveis

aliados”167

.

Nesses encontros o nome de Francisco Julião circulava como uma indicação do PDT

para o senado, afinal para formalizar uma coligação os pedetistas barganhavam a vaga de

vice-governador ou de senador168

. Assim, quando Miguel Arraes, na conversa com Anatólio

Julião, disse da impossibilidade de Francisco Julião ocupar uma das vagas a senador na sua

chapa, ele referia-se a um dos pontos debatido nas negociações.

Porém, em abril de 1986, a viabilidade da coligação entre PDT e PMDB estava

praticamente descartada. Mais uma reunião política se realizou na casa do advogado Fernando

Correia, presidente estadual do PMDB. Estiveram presentes Miguel Arraes, Dorany Sampaio

e os dirigentes pedetistas José Carlos Guerra e Zito de Andrade Lima. Ficou definido que a

vice-governança seria ocupada por um candidato peemedebista. Não foi negociada nenhuma

outra proposta com os pedetistas que viabilizasse a coligação. Restou ao PDT lançar uma

candidatura própria ou realizar uma aliança proporcional com o PMDB, ou seja, participar da

campanha de Miguel Arraes com candidatos a deputado federal e estadual. Isso porque os

dirigentes pedetistas declararam ao final daquele encontro que não planejavam estabelecer

uma coligação com o PFL169

.

Por outro lado, para o PMDB, construir uma aliança com o PDT, naquele momento,

era também criar em Pernambuco um palanque para Leonel Brizola, que já se articulava para

disputar as próximas eleições à Presidência da República170

. Vários dirigentes peemedebistas,

além de Miguel Arraes, demonstravam suas divergências e desconfianças com o governador

do Rio de Janeiro. Jarbas Vasconcelos lembrava como Brizola no início da década de 1980

tentou levar os quadros do antigo MDB para o recém-criado PDT. “O Brizola queria criar um

partido à custa da gente. […] Teve uma hora que praticamente 80% do MDB estavam nas

mãos do Brizola”171

.

167

Diario de Pernambuco, 11 de abril de 1986. p. A-2. APEJE 168

O Diario de Pernambuco, 24 de fevereiro de 1986, já havia publicado uma nota em sua coluna política

ressaltando essa questão. 169

Para essas informações ver Diario de Pernambuco, 17 de abril de 1986, p. A-2. APEJE. 170

A historiadora Marly Motta defende que Leonel Brizola direcionou o seu governo no Rio de Janeiro no início

dos anos 1980 para lhe servir como um degrau na tentativa de chegar a Presidência da República. MOTTA,

Marly. O projeto político: a presidência da República. In FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). A força do

povo: Brizola e o Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 151-180. 171

Entrevista de Jarbas Vasconcelos em COSTA, Célia e PANDOLFI, Dulce. Projeto Memória Viva: 14

depoimentos sobre a política pernambucana. Vol. II. Op. Cit. pp. 212-213.

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Francisco Julião não aceitava a condição de concorrer a deputado federal em uma

aliança proporcional com o PMDB. O leitor deve lembrar que essa havia sido a proposta

apresentada por Miguel Arraes no encontro com Anatólio Julião. O ex-dirigente das Ligas

Camponesas fazia duras críticas à postura do ex-governador de Pernambuco. Além de

afirmar, na conversa com seu filho, que não trabalharia mais uma vez para eleger Arraes

novamente governador, atacava-o em programas de rádio e na imprensa.

Em maio, acusava-o de viver um triunfalismo. “O PMDB pernambucano, inclusive o

deputado Miguel Arraes, está cercado de um triunfalismo prejudicial que pode levá-lo a uma

derrota nas eleições de novembro”. Acreditava existir uma subestimação da potencialidade

eleitoral do PDT e provavelmente sua. E concluía: “o PDT não apoiará um candidato

simplesmente porque este tem prestígio”172

.

Dois meses depois, em um programa de rádio, Francisco Julião voltou a referir-se a

Miguel Arraes e dessa vez questionou a sua atuação enquanto político e governador, na

década de 1960. Assim o definia: “um homem de sorte. Um homem que foi produto das

circunstâncias históricas, mas nunca fundou um sindicato, uma liga ou algo semelhante para o

trabalhador do campo”173

. Este argumento se aproximava daquele reconstruído por Anatólio

Julião, em seu relato de memória.

A sorte de Miguel Arraes decorria das circunstâncias históricas. Desde o trabalho

desenvolvido por Francisco Julião nos engenhos, junto aos trabalhadores, ao propalado

Acordo do Campo, garantidor de ganhos salariais e políticos para os trabalhadores dos

engenhos e das usinas, firmado em 1963, cujo mérito havia sido do governo de João

Goulart174

. Neste momento, Julião enaltece o ex-presidente, que tanto criticara nos idos de

1960.

172

Jornal do Commercio, 02 de maio de 1986. p. 07. APEJE. 173

Jornal do Commercio, 17 de julho de 1986. p. 07. APEJE. 174

O Acordo do Campo decorreu da grande greve de trabalhadores rurais em Pernambuco, em novembro de

1963. Foi negociado e firmado por usineiros, fornecedores de cana, federações de sindicatos rurais, sindicatos

autônomos, Ligas Camponesas, com a intermediação da Delegacia do Trabalho e do Governo do Estado.

Garantiu um reajuste salarial de 80% aos trabalhadores da lavoura canavieira. Pelo texto do Acordo, em seu

Parágrafo único, ficou definido que o Governo Federal, pelo Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA –,

asseguraria a revisão e aumento do preço do açúcar, a fim de garantir os recursos para o cumprimento do

contrato. Ainda ficou definida a Tabela de Tarefa dos trabalhadores, o pagamento do 13º salário e outros itens.

Ver ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: Lutas, Partidos, Projetos. Op.

Cit. p. 60-61. DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: Relações de trabalho e condições de vida dos

trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores

sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. p. 103-107.

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Em 1986, Francisco Julião declarava guerra contra Arraes nas rádios e nos jornais ao

afirmar: “Arraes nunca fez nada pelo homem do campo”175

. Era uma disputa pelos

significados daquele passado do início do início da década de 1960, que surgia recomposto

com os presentes, na produção de uma memória. O presente que foi, ou seja, a mobilização de

camponeses e suas conquistas antes do Golpe civil-militar de 1964, e um presente atual, as

eleições de 1986176

. Esse era o foco das lutas travadas no decorrer deste ano eleitoral. Julião,

naquele mês de julho, já deixava público que estaria do lado oposto a Miguel Arraes. Tentava

se contrapor ao candidato que começava a ser construído como um mito para o trabalhador

rural.

Por seu lado, o peemedebista em nenhuma oportunidade veio a público responder ao

pedetista. Apenas um dos seus assessores, Reginaldo Muniz, deu uma declaração à imprensa

onde afirmou:

A tentativa do ex-deputado Francisco Julião em passar a borracha na

memória dos trabalhadores é inútil. Todos os agricultores da zona canavieira

recordam, com bastante clareza, do papel assumido pelo governador Miguel

Arraes na negociação que culminou com a assinatura do primeiro acordo do

campo e com sua preocupação em fazer justiça social177

.

Reginaldo Muniz era ainda assessor da Federação dos Trabalhadores da Agricultura

do Estado de Pernambuco – FETAPE. Sua resposta representaria também uma posição da

Federação. Pelo menos assim noticiava o Diario de Pernambuco que publicou as suas

declarações com o seguinte título: “FETAPE condena Francisco Julião”178

. Elas ajudavam a

atualizar e circular um passado em que Arraes era o promotor de conquistas para os

agricultores e trazia-o para o presente eleitoral. Nesse caso, Francisco Julião era o que tentava

apagar essa memória, em razão de suas recentes alianças políticas com o PFL.

Na configuração política de julho de 1986, havia dois polos se definindo. De um lado

Miguel Arraes construía uma candidatura que se apresentava como popular, continuação de

um governo interrompido pelo Golpe civil-militar de 1964 e com apoio de entidades de

175

Jornal do Commercio, 17 de julho de 1986. p. 07. APEJE. A frase reproduzida no jornal foi dita em um

programa de rádio. 176

Uso das análises de Gilles Deleuze sobre a questão da memória voluntária na obra de Marcel Proust. Essa

memória vai de um presente atual a um presente que foi, ou seja, a algo que foi presente, mas não o é mais. O

importante aqui é a noção de que essa memória não se apodera do passado, ela o recompõe com os presentes,

atual e que foi. Assim, discuto o uso do passado de Francisco Julião, enquanto construção de uma memória

voluntária, que entrelaça o presente do líder das Ligas Camponesas que foi e o presente atual do Pacto da

Galileia. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 54. 177

Jornal do Commercio, 18 de julho de 1986. p. 07. APEJE. 178

Diario de Pernambuco, 18 de julho de 1986. p. A-4. APEJE.

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trabalhadores rurais, como a FETAPE. Do outro, José Múcio Monteiro, candidato da Frente

Liberal, representante das oligarquias latifundiárias conservadoras, seja por sua condição

familiar de usineiro, seja por seu partido, constituído por políticos que estiveram na base de

apoio ao regime civil-militar.

PMDB e o PFL até pouco tempo estavam juntos na Aliança Democrática que

viabilizou politicamente o projeto de transição para um governo civil, por meio da eleição

indireta de Tancredo Neves. Agora, em Pernambuco, eram adversários.

7 - Os pactos.

Nos primeiros dias do mês de junho de 1986, o ex-governador de Pernambuco,

Roberto Magalhães, e o então governador, Gustavo Krause, estavam no Rio de Janeiro. A

cúpula do PFL pernambucano aguardava uma reunião com Leonel Brizola, que, apesar de

secreta, acabou vazando para a imprensa179

. Entre os representantes do PDT estariam

presentes Armando Monteiro Filho, Sérgio Guerra, José Carlos Guerra e Luiz de Andrade

Lima180

. O Diario de Pernambuco chegou a noticiar que o encontro havia selado o chamado

Pacto Carioca, instituindo a coligação entre as seções pernambucanas dos dois partidos. A

fonte do jornal teria sido o vice-prefeito do Rio de Janeiro, Jô Rezende, e dava conta de que o

PFL indicaria o “cabeça” da chapa, enquanto o PDT, o vice.

Mas, no regresso ao Recife, Roberto Magalhães declarou que a aliança não havia sido

concretizada, pois Leonel Brizola desejava o apoio a um candidato a governador do PDT.

Gustavo Krause ainda se mostrava confiante. Apesar de não aceitar a proposta apresentada

pelo governador do Rio de Janeiro, dizia-se ainda crente em firmar um acordo, já tentado nas

eleições municipais do ano anterior181

. Ainda de acordo com a imprensa, Francisco Julião não

esteve no encontro do Rio de Janeiro. Ele era cogitado, na possível coligação, como o

candidato ao senado.182

.

As reuniões, discussões e negociações foram muitas. Era urgente uma definição, pois a

campanha de Miguel Arraes já estava nas ruas. O Ministro da Casa Civil, Marco Maciel,

179

O caráter secreto do encontro foi ressaltado por Roberto Magalhães, quando regressou a Recife, em

declaração à imprensa na qual explicava alguns aspectos da reunião. Ver Diario de Pernambuco, 18 de junho de

1986. p. A-2. APEJE. 180

Armando Monteiro Filho e Sérgio Guerra são citados como presentes à reunião na reportagem do Diario de

Pernambuco de 12 de junho de 1986. p. A-2. APEJE. Já José Carlos Guerra e Luiz de Andrade Lima aparecem

na matéria publicada pelo Jornal do Commercio de 11 de junho de 1986. p. 07. APEJE. 181

Ver essas informações no Diario de Pernambuco, 18 de junho de 1986. p. A-2. APEJE e no Jornal do

Commercio, 12 de junho de 1986. p. 07. APEJE. 182

Jornal do Commercio, 11 de junho de 1986. p. 07. APEJE.

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apresentou-se para definir a situação. Em Brasília, junto com o governador Gustavo Krause,

já tinham acordado que o candidato do PFL a governador seria José Múcio Monteiro.

Entretanto, faltava o restante da chapa.

Já era julho de 1986 e as eleições ocorreriam em quatro meses. Marco Maciel, todavia,

ainda falava na possibilidade de uma coligação com o PDT, na qual Francisco Julião aparecia

como candidato ao senado183

. Entretanto, as negociações não progrediram. Os pedetistas

estavam bastante divididos entre os que desejavam se coligar com o PMDB, os que

pretendiam uma aliança com o PFL e aqueles poucos defensores de uma candidatura própria.

Apresentava-se muito difícil construir um consenso ou ao menos uma maioria que apoiasse

um desses caminhos.

Independente das definições e indefinições, Francisco Julião negociava com os do

Partido Frente Liberal. Já em maio de 1986, foi noticiado que ele havia almoçado com o

governador Gustavo Krause no Palácio do Campo das Princesas, sede do executivo estadual.

A informação foi desmentida por meio da imprensa em 29 de maio, pelo presidente regional

do PDT, Luiz de Andrade Lima, que, porém, acrescentou: “É possível que Julião almoce

qualquer dia com o governador […] mas por enquanto isso ainda não aconteceu”184

.

Entretanto, o encontro deve ter realmente ocorrido em maio, inclusive antes da

reunião, de meados de junho, entre a cúpula do PFL e Leonel Brizola. Isto porque, ainda em

maio, no dia 18, Francisco Julião publicou no Diario de Pernambuco a Carta aberta aos

usineiros de Pernambuco, na qual apresentava ao público, pela primeira vez, a sua nova ideia

de reforma agrária. Consistiria na doação para este fim, por parte dos usineiros da Zona da

Mata, com propriedades acima de 100 hectares, de 10% de suas terras. Era uma espécie de

dízimo que liberaria cerca de 150 mil hectares naquela região. Era um texto longo, que não

fazia vinculação da proposta a qualquer partido ou coligação. Apelava para um sentimento

cristão dos usineiros. “Minha proposta não leva uma ameaça. Não. É um chamado a razão e

ao sentimento que deveis possuir como mortais. Eu parto da premissa que sois cristãos. Vós

mesmos o confessais”. Essa nova proposta de reforma agrária não consistia na mobilização

dos camponeses, mas na negociação com os grandes proprietários. Ao disponibilizar 10% de

suas terras, animados pelo seu espírito cristão, estariam pagando uma dívida de séculos

183

Francisco Julião seria candidato ao senado junto com Roberto Magalhães. Jornal do Commercio, 01 de julho

de 1986. p. 06. APEJE. 184

Jornal do Commercio, 29 de maio de 1986. p. 06. APEJE.

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contraída com os trabalhadores rurais explorados, desde a escravidão. Era “uma proposta séria

e digna, que se ajusta às regras da religião que professais”185

.

No dia 13 de junho, Julião afirmava na imprensa que já havia encontrado o governador

Gustavo Krause e detalhado o seu plano de reforma agrária em Pernambuco186

. Era muito

provável que os dois já vinham em processo de negociação e a publicação da Carta aberta

aos usineiros de Pernambuco fosse o resultado inicial dessa articulação e não uma iniciativa

isolada do seu autor187

. Aquilo que ficou conhecido como o Pacto da Galiléia e consolidou a

aliança entre o ex-deputado socialista e o PFL já estava sendo negociado mesmo antes

daquela reunião no Rio de Janeiro, entre pefelistas e pedetistas. A proposta do Pacto

apresentada por Francisco Julião se mostrava independente da construção de uma coligação

entre os partidos. A aliança, contudo, o deixaria bem cotado para a segunda vaga de candidato

ao senado, sendo a primeira para o ex-governador Roberto Magalhães.

O apoio do ex-deputado socialista à chapa da Frente Liberal foi efetivado por meio de

algumas reuniões ocorridas em julho de 1986. Primeiro foi o ex-governador e candidato a

senado pelo PFL quem o procurou188

. Esteve em sua casa, no domingo dia 06, para agradecer

os esforços do dirigente pedetista em construir a coligação e dizer que ficou sensibilizado com

as suas declarações à imprensa, quando o chamou de um “político de mãos limpas”189

.

Depois, o ministro da Casa Civil, Marco Maciel, foi pessoalmente à residência de

Francisco Julião convidá-lo a participar da chapa majoritária do PFL, ocupando uma das

vagas de senador. Era terça-feira, 15 de julho, e o encontro durou cerca de uma hora e meia.

A condição apresentada para o aceite seria a assinatura do Pacto da Galiléia. Todos se

colocaram de acordo, mas os rumos do PDT dependiam do resultado da convenção no

domingo seguinte. Estava na pauta a coligação com o PFL190

.

8 - Atos finais.

No domingo seguinte, a convenção do PDT não aprovou a aliança com o PFL, apesar

da intensa campanha de Francisco Julião. O anúncio do resultado foi bastante comemorado

185

As citações do parágrafo foram retiradas da Carta aberta aos usineiros de Pernambuco, publicada no Diario

de Pernambuco em 18 de maio de 1986. p. A-8. APEJE. 186

Diario de Pernambuco, 13 de junho de 1986. p. A-2. APEJE. 187

Em entrevista concedida em 16 de setembro de 2011 ao historiador Thiago Nunes Soares, da qual também

participei, Gustavo Krause indicava que havia se encontrado com Francisco Julião: “Cheguei a conversar com

ele, mas é que não me lembro”. 188

Diario de Pernambuco, 10 de julho de 1986. p. A-2. 189

Idem 190

Diario de Pernambuco, 17 de julho de 1986. p. A-2.

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por parte dos presentes. A maioria dos convencionais, entretanto, indicou a candidatura de

Julião ao senado pelo PDT nas eleições de 15 de novembro. Havia uma cisão instalada e as

lideranças do partido começaram a seguir diferentes rumos. José Carlos Guerra, que, no dia

anterior, havia renunciado ao cargo de Secretário-Geral, declarou junto com João Coelho

apoio a Miguel Arraes. Zito de Andrade Lima, presidente regional, seu irmão Paulo Lima,

Lamartine Távora e Francisco Julião aderiram a José Múcio191

.

Neste mesmo domingo, após ver derrotada a proposta de coligação, Julião atravessou a

cidade para participar da convenção do PFL que ratificou como seu candidato a governador o

usineiro José Múcio Monteiro. O dirigente do PDT fez um discurso atacando Miguel Arraes.

Acusava-o de “ressentido e revanchista, e declarou: Não se constrói um estado com ódio no

coração e muito ressentimento. […] Eu acredito neste jovem [referência a José Múcio] que

está comprometido com a reforma agrária pacífica e sem sangue. Não adianta viver de

passado, temos que olhar o presente e procurar construir o futuro”192

.

O candidato do PMDB seria o antigo, ressentido pelo que ocorreu em 1964. Sua

candidatura era marcada pelo revanchismo. Julião praticava um discurso articulado com as

dinâmicas do processo de transição política do Brasil. Sabia que um dos receios dos militares

e de alguns políticos em passar o governo para os civis era a possibilidade do revanchismo.

Os historiadores Celso Castro e Maria Celina D’Araújo ao analisarem algumas entrevistas

realizadas com militares consideram que a “noção de revanchismo é onipresente, vista como

um dado, um fato de cuja existência não se contesta”193

. Era essa noção que Julião utilizava

como instrumento para desqualificar àquele que em 1986 havia se constituído em um dos seus

principais adversários. Ao relacionar Miguel Arraes ao antigo e se apresentar como o novo,

ou seja, apoiando o jovem político José Múcio, cujo slogan de campanha era “novo tempo,

novas soluções”, Francisco Julião tentava romper com a imagem do antigo radical. Para isso,

ressaltava que a reforma agrária que propunha junto com o PFL era “pacífica e sem sangue”.

191

Diario de Pernambuco, 28 de julho de 1986. p. A-2. 192

Jornal do Commercio, 29 de julho de 1986. p. 09. APEJE. O discurso de Francisco Julião se aproximava de

uma fala de Tancredo Neves publicada na revista Isto é, 25 de julho de 1984. p. 25. “A Revolução de 64 é um

fato histórico. É uma categoria sociológica. A nós, políticos, cabe construir o Brasil de hoje e pensar no Brasil de

amanhã”. 193

Para Alfred Stepan, em seu estudo sobre os militares e a Nova República, um dos requisitos institucionais dos

militares para a passagem a um governo civil era que não houvesse revanchismo. STEPAN, Alfred. Os militares:

da abertura à Nova República. Ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1986. Ver capítulo VI. Alessandra Carvalho

também pontuou essa questão do revanchismo, não! ao analisar declarações de políticos integrantes da Aliança

Democrática, viabilizadora da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. CARVALHO, Alessandra. Do

autoritarismo à democracia. Op. Cit. p. 139. Para a citação e análise de Celso Castro e Maria Celina D’Araújo,

ver Democracia e Forças Armadas no Brasil da Nova República: balanço de uma pesquisa. In: ABREU, Alzira

Alves de (Org.) A Democratização no Brasil: atores e contextos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.26.

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E concluía; “não adianta viver de passado”194

. Aproximava-se de um discurso, praticado por

militares e setores da sociedade civil, para quem seria melhor esquecer o passado recente, em

nome de um futuro comum195

.

Dias depois da convenção, a 30 de julho, Julião escreveu uma carta ao presidente

regional do PDT, Zito de Andrade Lima, renunciando a sua candidatura ao senado. Dizia que

se houvesse ocorrido uma coincidência entre o número votos para ele e para a proposta de

coligação com o PFL, provavelmente sua decisão seria outra196

. Ele devia estar levando em

consideração que concorrer ao senado fora da chapa majoritária da Frente liberal dificultaria a

articulação pelo Pacto da Galiléia. Além disso, o PDT estava totalmente dividido, o que

diminuía consideravelmente suas bases políticas. Decidiu então disputar uma vaga na Câmara

Federal e seguir apoiando José Múcio Monteiro.

Um mês antes da Convenção do PDT, publicou um longo artigo no Diario de

Pernambuco. Intitulado Do cambão ao dízimo197

, procurava justificar o Pacto da Galiléia.

Definia um sentido para a sua trajetória e para sua escolha naquela eleição.

O título Do cambão ao dízimo definia dois marcos, de partida e de chegada. O cambão

referia-se ao trabalho realizado junto as Ligas Camponesas e o dízimo era relativo à ideia de

reforma agrária em 1986. O fio condutor entre esses pontos seria o trabalhador rural, pois foi

para ele que o ex-deputado socialista havia dedicado anos de luta. Nos primeiros, quando o

camponês não tinha nada. “Não havia Sindicato. Não havia salário mínimo. Nem oito horas

de trabalho. Nem repouso semanal. Nem as férias. Nem a aposentadoria”. A Liga havia criado

uma “consciência no campesinato”. Era a “mãe do sindicato”. E Francisco Julião se colocava

como o pai de tudo isso. Quem iniciou as conquistas, percorrendo a Zona da Mata a fundar

Ligas Camponesas.

Mas ao retomar esse passado, defrontava-se com uma certa memória que o

representava como incendiário. Desde a entrevista para o CPDCO e depois para a revista

Veja, no final dos anos 1970, ele era confrontado com esta memória. Nesse artigo publicado

no Diario de Pernambuco, Julião afirmava: “Eu não toquei fogo em Pernambuco. Não

incendiei canaviais”, asseverava ao se referir a sua atuação junto às Ligas.

194

Jornal do Commercio, 29 de julho de 1986. p. 09. APEJE. 195

CASTRO, Celso; D’Araújo, Maria Celina. Democracia e Forças Armadas no Brasil da Nova República:

balanço de uma pesquisa. Op. Cit.Ver também CASTRO, Celso; D’Araújo, Maria Celina; SOARES, Gláucio. Os

anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. 196

O texto da carta foi publicado tanto do Diario de Pernambuco, quanto no Jornal do Commercio de 31 de

julho de 1986. 197

Diario de Pernambuco, 23 de junho de 1986. p. A-7. APEJE.

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Seguindo a produção de sua trajetória de vida no artigo, lembrava a experiência de 14

anos de exílio; da volta para o Brasil com a anistia de 1979; do apoio ao PMDB nas eleições

de 1982. E assim, por meio de um discurso que se propunha refundar sua própria identidade,

escrevia: “E aqui estou. Fiel a mim mesmo. Fiel aos camponeses”.

Haveria uma coerência na passagem do cambão ao dízimo. O Francisco Julião era o

mesmo, pois sempre esteve fiel aos camponeses. Mas também, seria o mesmo na sua forma de

agir. Foi como deputado de 1955 a 1964, que pode “erguer a voz em defesa do camponês sem

terra. Dizia então ser natural e legítimo” que o fizesse novamente. Essa havia sido a sua arena

de atuação e deveria ser outra vez, como parlamentar, defendendo os trabalhadores rurais.

Assim apresentava-se e atualizava seu passado, recompondo-o com um presente, no qual a

proposta de reforma agrária passava por uma aliança política com um usineiro.

Francisco Julião, entretanto, sabia que muitos leriam como uma traição a sua união

com o PFL. Afirmava em seu artigo que por ser um militante ligado às causas dos

camponeses, não poderia e não deveria subir ao palanque dos usineiros. A condição, contudo,

para que isso acontecesse era a concretização do Pacto da Galiléia.

E diz:

Os críticos mais ácidos já deverão estar questionando esse “Pacto”. Dirão

que é uma migalha o que estamos pedindo. Dirão mais que é a conciliação

aberta e franca com a oligarquia agrária. E mais ainda. Que é um passo atrás,

uma capitulação, uma deserção. Eu os convido a todos para se colocarem

diante de um camponês faminto, carregado de filhos esquálidos, sem um

palmo de terra, e convencê-lo a esperar que a revolução o salve198

.

No jogo partidário havia se criado uma incompatibilidade entre setores do PDT e o

PMDB e mais ainda entre Miguel Arraes e Francisco Julião, que acusava o peemedebista de

ter impossibilitado uma coligação. No artigo, essa questão não aparece, apesar de ser

recorrente em outras declarações a imprensa. Assim, a aproximação com a candidatura da

situação ganha ares de sacrifício. O uso do termo dízimo está carregado de simbolismo

religioso. Se no período do cambão, as imagens bíblicas eram utilizadas para mobilizar os

camponeses, agora, com o dízimo, elas seriam agenciadas para convencer os usineiros a

participarem do Pacto. Em meio a esses signos, Julião reservava para si o lugar do mártir.

Aquele que sempre se sacrificou pelos camponeses, que não será compreendido em seu

tempo, que será julgado por suas opções, considerado um desertor.

198

Diario de Pernambuco, 23 de junho de 1986. Op. Cit.

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É desse lugar que Francisco Julião respondia a alguns de seus “ácidos” críticos. Ao se

colocar como incompreendido, atacava os setores da esquerda que ainda esperam a revolução

para mudar a condição do camponês. Dirigia-se aos comunistas. Falava, muito

provavelmente, ao dirigente do Partido Comunista Brasileiro em Pernambuco e ex-diretor do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA - em Pernambuco, Byron

Sarinho. Pouco antes da publicação Do cambão ao dízimo, o comunista já havia declarado à

imprensa que a proposta de reforma agrária do setor do PDT, liderado por Julião, era “bem

intencionada, mas ingênua e inexequível”. Explicava que os donos de terras da Zona da Mata

rejeitaram uma proposta do Plano Regional de Reforma Agrária, elaborado pelo INCRA com

apoio da FETAPE, que visava à distribuição de 73 mil hectares de terra daquela região,

consideradas improdutivas, ressarcidas com indenizações previstas em lei. “Como esperar

algo de bom dessa gente?”199

, concluía. Ou seja, como acreditar na doação dos 10% prevista

no Pacto da Galileia?

O debate em torno da questão se intensificou a medida que se aproximaram as

convenções partidárias. Dias antes da reunião do PDT que não aprovou a aliança com o PFL,

Byron Sarinho, que era candidato a deputado estadual na coligação com o PMDB, lançou uma

carta aberta a Francisco Julião200

, perguntando-lhe: “De que lado você vai ficar?”. O texto

iniciava enaltecendo a imagem do dirigente das Ligas Camponesas e sua trajetória de lutas em

favor dos trabalhadores rurais. E continuava: “De lá até agora essa admiração se manteve, na

certeza de que divergências anteriores entre você e o conjunto das forças populares não

atingiam o fundamental, eram secundárias e deviam-se mais as suas características meio

messiânicas, quixotescas até”.

O dirigente comunista fez uso da memória para apresentar um Francisco Julião.

Selecionou a figura do dirigente das Ligas e o disse como um divergente do conjunto das

forças populares de esquerda, como se existisse essa uniformidade no início da década de

1960. Julião, por seu radicalismo, que o produziria como messiânico e quixotesco, seria o

único a romper aquela harmonia. Apesar disso, Byron Sarinho afirmava que “no essencial,

estávamos todos de acordo, sempre estivemos do mesmo lado”.

A campanha do PMDB colocava aquele pleito de 1986 como um embate entre os que

seriam as forças populares, perseguidas em 1964, e os representantes do Golpe civil-militar e

199

Diario de Pernambuco, 15 de junho de 1986. p. A-4. APEJE. 200

A íntegra da carta foi publicada no Diario de Pernambuco em 24 de julho de 1986. p. A-4. APEJE. A essa

altura este jornal já havia se tornado o lugar para os principais debates em torno da questão do Pacto da Galiléia

e da opção política de Francisco Julião. No decorrer dos meses o periódico se mostrou disfarçadamente favorável

à campanha de José Múcio.

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seus articuladores. O dirigente do PCB utilizava-se dessa ideia para perguntar a Francisco

Julião de que lado ele ficaria. E dizia: “Tenho contrariado muita gente, quando nas discussões

por aí, reafirmo minha expectativa de que você se manterá fiel e coerente com sua história”.

Na sua carta, Byron Sarinho partia do presente atual de um Francisco Julião que seria

incoerente e equivocado por unir-se ao PFL e propor o Pacto da Galileia, a um presente que

foi, do dirigente camponês, messiânico, quixotesco, divergente das esquerdas em 1964,

possivelmente por sua postura mais radical.

A “história” de Julião era, naquela carta, a memória produzida por Byron Sarinho, que

recompunha o passado com os presentes. Assim, o líder das Ligas Camponesas era

selecionado e colocado no debate para inviabilizar, por meio da incoerência, a aliança com o

PFL, e atualizar o messiânico, quixotesco, divergente do conjunto das esquerdas, mas que

ainda assim esteve do mesmo lado.

Esse trabalho de memória, que era individual, mas também coletiva201

, aprisionava

Francisco Julião no presente que foi. Obrigava-o a ser um. Instituía-lhe uma essência.

Traçava-lhe uma única trajetória. Ele era recorrentemente dito em 1986 como o “ex-

carbonário”202

, termo que menos indicava uma mudança e mais reforçava uma essência. Essa

lógica também era praticada pela revista Veja que ao tratar de sua aliança com o PFL e o

Pacto da Galiléia, apresentava-o como o “advogado Francisco Julião, de 72 anos, ex-agitador

das Ligas Camponesas, personagem que no começo dos anos 60 despertava ódios e temores

entre fazendeiros de todo o país ao promover invasões de terras e destruição de canaviais”.

Então era desse presente que foi do líder das Ligas, que se partia para o presente atual, da

aliança com os usineiros, dita como incoerência, erro, farsa. Havia, neste caso, menos uma

sucessão de tempo de um passado para um presente e mais uma coexistência virtual, de um

presente e outro.

O Francisco Julião carbonário, agitador e líder das Ligas Camponesas estava tão

presente em 1986, quanto aquele que se uniu aos usineiros e desejava apenas olhar para o

futuro. Ao responder, em carta aberta publicada novamente no Diario de Pernambuco, aos

ataques lançados por Byron Sarinho sobre de que lado estava, ele afirmou: “Você me

201

Admita-se, como sugere Maurice Halbwachs, que as memórias podem se organizar em torno de uma pessoa,

que as vê de seu ponto de vista ou se distribuindo dentro de uma sociedade das quais são imagens parciais. O

indivíduo, entretanto, participa nas duas maneiras. Ou seja, em uma memória individual que recorre a uma

memória coletiva para confirmar algumas lembranças e até preencher algumas lacunas e em uma memória

coletiva composta por memórias individuais, mas que não se confunde com elas. HALBWACHS, Maurice. A

memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2006. p. 71-73. 202

Assim aparecia em algumas notas do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco, por exemplo, neste

último, em 10 de outubro de 1986. p. A-2. APEJE.

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pergunta, querendo agarrar-me pelo pé, de que lado estou. Eu estou onde sempre estive,

Byron, do lado do camponês sem terra”203

. E mais adiante, define-se em um breve verso:

Eu trago para o meu povo

Uma estrela em cada mão

Por dentro me sinto novo

Não mudei, sou Julião204

.

O presente que foi, do Francisco Julião das Ligas Camponesas, era de onde falava o

Francisco Julião do Pacto da Galileia. Sim, o primeiro agarrava pelo pé ao segundo, que não

conseguia e/ou não queria se desvencilhar. O drama da vida é ser forçado a cumprir fielmente

a uma lei: a que obriga a ser um205

. E assim, “sou Julião”.

A reforma agrária proposta com o Pacto, era a do amor, sem violência. Mas, ela

recuperava o Julião líder dos camponeses de antes de 1964, considerado por muitos como o

radical. E nessa unicidade o candidato do PDT seguia preso. É indicativo o uso do nome

Galileia, referindo-se ao engenho desapropriado em 1959 e onde surgiu a primeira Liga

Camponesa em 1955, e que o Pacto haja sido firmado em um evento político exatamente aí.

No horário eleitoral do PFL para a televisão, ele aparecia sempre falando em um canavial,

cercado por camponeses206

.

A assinatura do compromisso dos usineiros para doar 10% de suas terras na Zona da

Mata de Pernambuco ocorreu no domingo, 19 de outubro de 1986. A expectativa de Francisco

Julião era reunir no mínimo 20 mil pessoas207

, reativando os anos iniciais da década de 1960,

quando facilmente mobilizava milhares de camponeses. E assim, as principais lideranças do

PFL, o candidato José Múcio e Francisco Julião rumaram para o Engenho Galileia.

O candidato do PMDB, Miguel Arraes, havia ido alguns dias antes visitar os

trabalhadores daquelas terras. Tentava desmontar a ideia do Pacto e qualquer liderança de

Julião naquela região. Foi elaborado um vídeo, dirigido por Guel Arraes, com depoimentos de

moradores emocionados apoiando o peemedebista. No dia da assinatura, os coordenadores da

campanha de Arraes montaram uma operação quase de guerra. Tomaram um helicóptero

equipado com uma câmara que sobrevoou o evento. Filmaram um palanque esvaziado e uma

enorme quantidade de ônibus, utilizada para demonstrar que a assistência era formada por

203

Diario de Pernambuco, 03 de agosto de 1986. p. A-7. APEJE. 204

Diario de Pernambuco, 03 de agosto de 1986. Op. Cit. 205

Inspiro-me aqui na discussão de Luigi Pirandello sobre a multiplicidade de personalidades Um, nenhum e cem

mil. 5ª reimpressão. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012. 206

Informação citada pelo Jornal do Commercio, 08 de outubro de 1986. p. 05. APEJE. 207

Diario de Pernambuco, 17 de outubro de 1986. p. A-2. APEJE.

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pessoas trazidas de outras regiões. Ainda gravaram entrevistas com moradores, que diziam

não ter participado do evento e outros, cuja presença teria sido motivada pela promessa da

distribuição de churrasco208

.

A exibição de todo esse material ocorreu no horário eleitoral. O PMDB usava as

imagens para mostrar que o Pacto da Galiléia era uma farsa eleitoral, sem apoio dos

trabalhadores rurais. Foram dias insistindo nessa tese. O PFL focava em imagens onde

apareciam Francisco Julião, junto a empresários e usineiros, além de lideranças como o

ministro da Casa-civil, Marco Maciel, e o governador do estado, Gustavo Krause.

Passaram-se semanas e chegou o mês de novembro. As urnas confirmaram o que as

últimas pesquisas indicavam: vitória de Miguel Arraes com uma vantagem de 500 mil votos.

Além disso, a Frente Popular liderada pelo PMDB elegeu os seus dois senadores, Antonio

Farias e Mansueto de Lavor.

Do outro lado, além das lideranças do PFL, estava derrotado Francisco Julião, que

obteve pouco mais de 3000 votos. Suas escolhas em meio a disputas políticas e pessoais, aos

desacordos partidários e a necessidade de organizar uma harmonia individual não lhe

garantiram a vitória eleitoral.

Em 1986, ele se dizia o Julião de sempre, do cambão ao dízimo, das Ligas

Camponesas ao Pacto da Galiléia. Essa necessidade de organizar uma coerência, instituir uma

unicidade para aquele momento, constituiu seu drama, pois, naquelas eleições, ele buscou

apoio na rede política da qual foi adversário durante anos, que o combateu antes de 1964 e

depois do golpe o prendeu e o obrigou a ir para o exílio. Era uma rede constituída por

representantes dos latifundiários, inimigos dos camponeses sem terra, de quem Julião

afirmava sempre estar ao lado. Essa foi a sua tragédia política final.

208

Relato do jornalista e publicitário Eurico Andrade, integrante da equipe de campanha de Miguel Arraes, em

artigo de sua autoria intitulado Pátria ou morte. Vencemos! In: LAVAREDA, Antonio. A vitória de Arraes.

Recife: Inojosa Editores, 1987. p. 130.

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O fim

1 - Recife, julho de 1999

A Polícia Federal havia rapidamente confeccionado o passaporte de Anatólio Julião. A

viagem para o México era urgente. Várias pessoas estavam mobilizadas. O ex-ministro

Armando Monteiro Filho providenciou a passagem aérea de Recife para o Rio de Janeiro. O

ex-governador Leonel Brizola conseguira outra que levaria Anatólio da capital fluminense

para a Cidade do México. O Cônsul mexicano no Rio de Janeiro esperava pelo viajante no

aeroporto do Galeão. Em horário extemporâneo, com os carimbos do consulado em mãos,

expediu, entre o desembarque e o embarque, um visto especial, que permitiu a viagem na

mesma noite1.

Na tarde do dia 10 de julho de 1999, aos 84 anos, Francisco Julião havia falecido após

um fulminante enfarto sofrido quando preparava uma macarronada, seu prato preferido, na

sua pequena casa localizada na cidade mexicana de Tepoztlán2.

Nos últimos anos, Julião tinha optado por morar no México para escrever um livro

com suas memórias. No momento de sua morte, residia em uma precária construção, que não

possuía sequer água encanada3. Seu filho Anatólio, que viveu com o pai no México entre

1973 e 1975 e conhecia alguns dos seus amigos, teve dificuldades para encontrar a residência.

Por fim, descobriu a moradia localizada sobre uma “rústica loja de atacado de cereais e com

acesso por uma escada lateral incrustada numa das paredes da venda de grãos”4.

2 - Uma prova mais concreta da morte

Já era noite quando Anatólio foi recebido pela esposa do seu pai, Marta Rosas.

Conversaram rapidamente na calçada em frente ao imóvel. Afirmando não ter condições para

um diálogo naquele momento, ela prometeu que o procuraria em Cuernavaca, onde ele estava

hospedado na casa de amigos5.

Passados dois dias, a viúva foi ao encontro de seu enteado. Escolheu um clube de

1 Informações coletadas na carta enviada pelos filhos de Francisco Julião ao Vice-presidente da República,

Marco Maciel, em 15 de janeiro de 2001. FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco. 2 Idem

3 FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco. p. 01

4 FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco. p. 01.

5 Informações coletadas na carta enviada pelos filhos de Francisco Julião ao Vice-presidente da República,

Marco Maciel, em 15 de janeiro de 2001. FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

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campo, longe da casa onde Anatólio estava hospedado. Até esse momento, ele não conseguira

estar próximo ao que restara do corpo do seu pai, ou seja, as cinzas. Francisco Julião fora

cremado em Cuernavaca, logo após sua morte.

Havia todo um mistério criado por Marta Rosas. Ao ser indagada sobre o destino das

cinzas, afirmou que as havia guardado em um lugar secreto e não o revelaria. Anatólio

argumentou sobre a possibilidade de transferir os restos mortais de seu pai para o Brasil.

Escutou como resposta que isso seria impossível, pois o desejo do seu marido era permanecer

no México6.

Além das cinzas, a viúva também não pensava em entregar a produção intelectual de

Francisco Julião nos últimos anos. Ele havia trabalhado em duas autobiografias; uma, já

concluída, teria o título de A Saga das Ligas Camponesas e a outra, que ainda estava em

processo de elaboração, intitulada Utopias de um homem desarmado. O acervo documental

deixado sob a guarda de sua esposa constituía-se ainda de poemas, ensaios, artigos e cartas,

segundo Anatólio7.

Enquanto isso, a notícia da morte de Julião começava a se espalhar pelos jornais do

Brasil. Questionava-se, entretanto, sobre uma prova. Não existia atestado e muito menos

corpo, velório e enterro. O seu próprio filho, que estava no México, nem sequer encontrara as

cinzas mortais do pai. Izabela, a filha mais nova, escreveu a seguinte nota a outro irmão.

Anacleto,

Aqui vão as notícias publicadas até agora no Jornal “O Globo”. Já recebi as

de Pernambuco. O “Jornal do Brasil” até hoje não se manifestou. O pessoal

do PDT do Rio (grifo do original) está relutante quanto à realização da missa

de 7° dia sem uma prova mais concreta da morte de papai (grifo do original).

O próprio Brizola disse à Carmem Civira que teríamos que esperar algum

documento ou prova oficial. O que eu faço? Vamos falar sobre isso?

Estamos mais do que nunca juntos nessa luta. (grifo do original) Um beijo

carinhoso de sua irmã Izabela8.

Em 1999, o PDT e o “próprio Brizola”, que havia financiado a ida de Anatólio ao

México, estavam resistentes em realizar uma missa de 7° dia em memória da morte de um dos

seus fundadores. Esta relutância e a necessidade burocrática de “uma prova mais concreta”

permite pensar que Francisco Julião não tinha nem um espaço político nem uma liderança

dentro do partido que ajudou a fundar e expandir na década de 1980.

6 FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

7 FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

8 Nota de Izabela a Anacleto Julião. Julho de 1999. FJ Jp2 doc 95. CEHIBRA – Fundação Joaquim Nabuco.

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272

A angústia da família, externada no texto de Izabela ao seu irmão Anacleto, se opõe ao

que parece ser apenas uma formalidade para o PDT. Os filhos de Julião estavam preocupados

com a repercussão da morte na imprensa e pareciam desejar todo um ritual fúnebre, com a

mobilização de autoridades e personagens públicas, condizentes com a imagem que

formavam do pai, de um importante líder social do século XX. Mas, o partido parecia não

trabalhar com esta mesma representação política.

Em Recife, a missa de 7° dia ocorreu em 16 de julho, na Matriz de Casa Forte,

localizada no bairro de mesmo nome. Fizeram-se presentes além de familiares e amigos,

alguns poucos políticos. Representando o PDT, estavam o seu presidente regional, o deputado

estadual José Queiroz, e o vereador do Recife, Vicente André Gomes. O ex-ministro

Armando Monteiro Filho também compareceu. O Partido Socialista Brasileiro, pelo qual

Julião foi eleito deputado estadual duas vezes, em 1954 e 1958, e depois deputado federal em

1962, foi representado por Miguel Batista, ex-chefe de gabinete de Miguel Arraes9, que não

compareceu a missa na Matriz de Casa Forte.

E não se apresentava qualquer “documento ou prova oficial” da morte de Francisco

Julião. Anatólio continuava no México tentando chegar às cinzas de seu pai. Após o segundo

encontro, Marta pediu mais dois dias para que fosse realizada a visita à urna. Na data

marcada, um táxi parou na frente da casa em que ele estava hospedado. Lá dentro, ela retirou

de sua bolsa uma venda preta. Desejava impossibilitar a identificação do local para onde

iriam. Surpreso com essa atitude, seu enteado bradou: “Vendas nos olhos, nem pra ser

fuzilado! Nessas condições não vou a lugar nenhum”. Depois do impasse, Marta recuou e

Anatólio conseguiu identificar que foi conduzido a uma pequena capela, localizada no Rancho

Taltenango, uma antiga fazenda que tinha sido transformada em um condomínio fechado

situado nos arredores de Cuernavaca10

.

Anatólio prestou uma última homenagem a seu pai, a quem não via desde aquele

último encontro em 1986. Regressou para o Brasil sem trazer nenhum pertence de Francisco

Julião. O próprio atestado de óbito só foi conseguido vários meses depois, por meio dos

esforços de outros dois irmãos, Anatailde e Anacleto, junto a Embaixada do Brasil na Cidade

do México.

3 - Últimas considerações

9 Ver recorte do jornal Folha de Pernambuco FJ Jp3 doc. 123. CEHIBRA – Fundação Joaquim Nabuco.

10 Informações coletadas na carta enviada pelos filhos de Francisco Julião ao Vice-presidente da República,

Marco Maciel, em 15 de janeiro de 2001. FJ – CFp 2 doc 61-65. CEHIBRA, Fundação Joaquim Nabuco.

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273

Sobre Francisco Julião restaram cinzas, memórias e imagens, quase apagadas. Espero

com esse trabalho de pesquisa ter oferecido novas informações e outras leituras que ajudem a

problematizar o silêncio formado em torno de sua trajetória e a compreender os elementos que

o constituiu. Para produzir essa explicação, segui os passos do líder das Ligas Camponesas,

exilado em 1965 e anistia em 1979, pelos conflitos políticos e culturais presentes na segunda

metade do século XX.

O cenário de Guerra Fria e a Revolução Cubana contribuíram para potencializar a

imagem de Francisco Julião como um perigoso revolucionário no início dos anos 1960. A

ideia de que a pobreza na América Latina favorecia a expansão do comunismo criou um

interesse crescente dos principais jornais e revistas norte-americanos sobre o movimento

liderado por Julião, que, assim, em 1964 era uma figura internacionalmente conhecida.

Ao se exilar no México em 1966, foi recebido como o famoso líder camponês que

gritava por reforma agrária radical. No início, manteve seu discurso em pequenos artigos

publicados e entrevistas concedidas. O governo mexicano o convocou, junto com outros

exilados, para alertá-lo de que estaria realizando atividade política, o que era proibido na sua

condição de asilado. Contudo, espero ter conseguido demonstrar que apesar da censura inicial,

Francisco Julião construiu um lugar de atuação no México. E para isso, o seu passado de líder

das Ligas Camponesas o favoreceu, ao ser operacionalizado principalmente para reforçar a

imagem de esquerda e os discursos de nacionalismo e democracia do governo do Partido

Revolucionário Institucional, bastante questionado no final da década de 1960 e início dos

anos 1970 por suas ações violentas contra alguns setores sociais.

Mas, o uso desse passado de líder camponês não seria o mesmo no retorno ao Brasil.

As lutas políticas desenvolvidas no país não ofereciam os mesmos espaços de ação. Dessa

forma, entre 1977 e 1979, ele demonstrava seu interesse em produzir uma releitura de sua

memória. Esse objetivo estava presente nas suas entrevistas, concedidas nesse período final de

exílio. Procurou se desfazer da imagem de líder radical de esquerda, negando que havia

ordenado invasões de terras ou incêndio de canaviais. Afirmou para a revista Veja que não

reativaria as Ligas Camponesas. Tentou se inserir em um discurso de conciliação nacional,

ressaltando que ao regressar ao Brasil não levantaria barricadas nas ruas.

Mas retornar ao Brasil significou enfrentar antigas lutas políticas atualizadas no

processo de redemocratização. Havia uma disputa pelos significados de 1964 e nela Francisco

Julião era acusado, por setores da esquerda e líderes sindicais, de ser culpado pelo golpe civil-

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274

militar, devido à agitação social e política promovida junto aos trabalhadores rurais. Algumas

de suas ações públicas, como o disco Julião, verso e viola, de 1981, foram censuradas e

criticadas, pois poderiam reativar uma memória indesejada para o processo de transição

política dos anos 1980.

Essa memória referia-se a mobilização de camponeses que marchavam sob o lema de

“reforma agrária na lei ou na marra”. O passado era lembrado como uma ameaça e a ação de

Julião poderia reativá-lo. Contudo, em nenhum momento o anistiado político demonstrou uma

intenção de reorganizar um movimento social no campo. Integrou-se ao Partido Democrático

Trabalhista, atuando na sua direção e desenvolvendo um trabalho para fortalecer suas bases e

estabelecer alianças políticas nas eleições de 1982 e 1986.

Ao mesmo tempo, procurava ressignificar as suas ações da década de 1960. Desejou

criar uma memória que estivesse de acordo com o dispositivo da redemocratização do Brasil.

Entretanto, não conseguiu desassociar sua imagem das representações sobre o líder das Ligas

Camponesas. Elas foram atualizadas durante diversos momentos da redemocratização.

Por um lado, a conciliação nacional proposta pelos militares e por setores da elite

política, envolvida na transição para um governo civil em 1985, não oferecia espaço para a

atuação dos considerados radicais, como o ex-líder das Ligas. Por outro, as memórias e

representações, em torno desses radicais, contribuíram para justificar uma transição pactuada.

Era necessário negociar com os militares e evitar os radicalismos, como o de Francisco Julião

antes de 1964, que poderiam promover uma resposta da direita e o fracasso da

redemocratização. Assim, aquelas ações do líder camponês, que não deveriam se repetir, eram

lembradas como um risco à transição do país. Esse foi um dos principais lugares político e

social destinado a Julião e à luta dos camponeses que exigiram reforma agrária na década de

1960 e colocaram a questão da terra e dos trabalhadores do campo naquela agenda política do

país. Para José de Souza Martins, as Ligas escreveram o capítulo mais importante da história

contemporânea do campesinato brasileiro11

.

Para os que não pronunciavam esse discurso haveria ainda a possibilidade de nomeá-lo

como louco e traidor devido as suas opções políticas em 1986. A todos, após as eleições desse

ano, Francisco Julião respondia ao publicar um artigo, no Diario de Pernambuco, intitulado

As Utopias de um homem desarmado12

, onde afirmou: “Pus a prova minha insignificância.

11

MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a político no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no

processo político. Petrópolis: Ed. Vozes, 1981. p. 76-77. 12

As citações que seguem foram retiradas desse artigo publicado no Diario de Pernambuco, em 14 de dezembro

de 1986. p. A-11.

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275

Dei um golpe de misericórdia no meu próprio mito. Já era tempo”. Assim ele significava a

derrota naquele pleito eleitoral. Dizia ter seguido suas utopias, não era um político clássico e

por isso gostava de subir a correnteza. Dessa forma tentava explicar as alianças com o PFL e

os usineiros. Mostrava também o seu ressentimento ao criticar, sem citar nomes, políticos e

partidos: “Sinto uma profunda lástima dos que se afanam, de mãos frias, taquicardíacos, com

a pressão arterial beirando à hemeplegia, na vã esperança do triunfo […] Outros se leiloeiam a

quem der mais para irem de porta em porta manipular o eleitor desprevenido”. E sobre os

partidos, sem fazer qualquer exceção ao PDT, afirmava: “Na recente eleição para a

Constituinte, esta teve uma das pernas amputadas pela abstenção. A perna esquerda. Como

não temos partidos políticos, senão aglomerados de forças que se dispersam no entrechoque

dos interesses criados, não alcançaremos, ainda desta vez, a Carta Magna dos nossos sonhos”.

Francisco Julião parecia romper com todos: políticos, partido e o próprio mito. Não

buscava mais criar uma coerência para a trajetória de líder camponês. Teria abandonado essa

sua posição. Estaria colocando um ponto final a sua vida política. E desse modo, deixo-o que

se despeça de vocês: “Saio dessa peleja como entrei nela: pobre. E sigo em frente, recolhendo

as pedras que me atiraram pelo caminho para edificar com elas os meus sonhos, as minhas

utopias. […] que aspirações ainda me acompanham? Vou resumi-las numa só palavra. Paz.”

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276

Fontes

Arquivos

México:

Archivo General de la Nación

Archivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria Relaciones Exteriores

Pasta ARRUDA DE PAULA, Francisco Julião - III 2983-12.

Pasta Asilo Político - III 2904-8. Fl. 117.

Pasta Asilo Político - III 5714-11.

Pasta Asilo Político em consulado mexicano - III 6049-6.

Biblioteca Daniel Cosio Villegas – El Colégio de México

Cartas Pastorales y otros documentos (f252.1 M5381c)

Revista Siempre! nº 898, 09-09-1970.

Cambão: la cara oculta de Brasil. Francisco Julião (323.33 p324c ej.c)

La iglesia y la política en CIDOC y Cuernavaca (CE 261.7 Ig 241)

Jornal El Heraldo, México, D.F. Lunes, 25 de octubre de 1971. Título: El Cidoc, un centro de

adiestramento subversivo.

Recorte de jornal (México, D.F., Martes 26 de octubre de 1971, p. 3A)

Universidad Nacional Autónoma de México

1) Hemeroteca Nacional:

Revista Siempre!

Jornal El Día

Jornal El Sol de México

Jornal La Prensa

Jornal Novedades

Jornal Excelsior

2) Biblioteca Rubén Bonifaz – Instituto de Filologia:

Revista Siempre!

Biblioteca Ernesto de la Torre Villar – Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis

Mora

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277

Brasil:

Fundação Biblioteca Nacional

O Pasquim

Jornal O Globo

Folha de São Paulo

O Estado de São Paulo

Jornal do Brasil

Arquivo Nacional

1) Processo SECOM:

Processo SECOM 34.646/65. BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.17. Cx. 584. fl 05

2) Divisão de Segurança de Informação – Ministério da Justiça:

Caixa 613. Doc. N° 100599.

Caixa 3594. Pacote n° 098. Doc. N° 032/72.

Caixa 3412. Doc. N° GAB 100594.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ)

Prontuário Guanabara n° 48.214. Caixa 2176

Arquivo Público Jordão Emereciano (APEJE)

1) DOPS – PE:

Prontuário Individual de Francisco Julião. N° 11442. Doc. n° 340. DOPS/PE. APEJE/SSP: 17817 Informes – 1979-81-83-84

Informes – Comício pró-diretas – 29835

Panfletos – Eleições Diretas Já – 7170

Partido Democrático Trabalhista – PDT – 4599

Partido da Frente Liberal – PFL - 21025

2) Jornal do Commercio (1979-1986)

3) Diario de Pernambuco (1979-1986)

Fundação Joaquim Nabuco

1) CEHIBRA:

Pasta FJ CEP 1 doc 1-11:

FJ-CEP 1 - doc 1 - C3 03-04-78 Francisco Julião - Miguel Arraes

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278

FJ-CEP 1 doc 2 - C3 09-03-81 Francisco Julião - Tomás Borge

FJ-CEP 1 doc 3 - C3 10-03-81 Francisco Julião - Padre Almeida

FJ-CEP 1 doc 4 - C3 abril 1981 Francisco Julião - Companheiro

FJ-CEP 1 doc 5 - C3 05-04-81 Francisco Julião - Hugo Vigorena

FJ-CEP 1 doc 6 - C3 01-11-81 Francisco Julião - Moacir Lacerda

FJ-CEP 1 doc 8 - C3 Novembro 1983 Francisco Julião - Sobral Pinto

FJ-CEP 1 doc 9 - C3 Dezembro 1984 Francisco Julião - Oswaldinho

FJ-CEP 1 doc 10 - C3 Sem data Francisco Julião - Gov. Roberto Magalhães

FJ-CEP 1 doc 11 - C3 Sem data Francisco Julião - Dr. Marcelo Alencar

Pasta FJ CFp 1 doc 1-65:

FJ - CFp 2 doc 61-65 - 15 de janeiro de 2001 - Filhos de Julião ao Vice Presidente Marco

Maciel

Pasta FJ CRp1 doc 1-7 24-03-1958:

FJ - CRp 1 doc 7,4 - Sem data Miguel Arraes - Francisco Julião

Pasta FJ Jp 1 doc 1-50:

FJ Jp 1 doc 36-40

FJ Jp 1 doc 41-45

FJ Jp 1 doc 46-50

Pasta FJ Jp2 doc 51-100 (07.07.1965 a 12.07.1999):

FJ Jp2 doc 51-55. Recortes sobre a prisão de Julião - 07.07.65 a 04.06.66

FJ Jp2 doc 56-60 - Recortes de jornais sobre a prisão e exílio de Julião. 27.06.66 a 11.04.67

FJ Jp2 doc 61-65 - Recortes diversos sobre o período de exílio de Julião. 10.01.1978 a

24.10.1979

FJ Jp2 doc 66-70 - Recortes sobre a volta de Francisco Julião. 27.10.1979 a 04.11.1979

FJ Jp2 doc 71-75 - Recortes sobre a volta de F. Julião - 05.11.1979 a 23.11.1979

FJ Jp2 doc 76-80 - Recortes sobre a volta de F. Julião - 02.12-1979 a 28.06.1980 FJ Jp2 doc

81-85 - Recortes sobre F. Julião após a volta do exílio - 27.10.1980 a 23.12.1984

FJ Jp2 doc 86-90 - Recortes sobre o período pós-exílio de F. Julião - 03.08.1986 a julho 1999

FJ Jp2 doc 96-100 - Recortes sobre a repercussão da morte de F. Julião

Pasta FJ Jp3 doc 101-150:

FJ Jp3 doc 101-105 - Recortes sobre a morte de F. Julião - 12.07.1999 a 13.07.1999

FJ Jp3 doc 106-110 - Recortes sobre a morte de F. Julião - 13.07.1999

FJ Jp3 doc 111-115 - Recortes sobre a morte de F. Julião - 13.07.1999 a 14.07.1999

FJ Jp3 doc 116-120 - Reorte sobre a morte de F. Julião - 15.07.1999 a 17.07.1999

FJ Jp3 doc 126-130 - Recortes sobre a morte de F. Julião - 19.07.1999 a 21.07.1999

FJ Jp3 doc 131-135 - Recortes sobre a morte de F. Julião 30.07.1999 a 15.09.01

FJ Jp3 doc 136-140 - Recortes de jornais - 18.10.2001 a 04.01.2002

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279

FJ Jp3 doc 141-145 - Recortes de jornais - 13.01.2002 a 20.12.2006 (Tem diário oficial sobre

a indenização a Julião)

FJ Jp3 doc121-125 - Recortes sobre a morte de F. Julião - 18.07.1999 a 19.07.1999

Pasta FJ Jp4 doc 151:

FJ Jp4 doc 151-154 - Alguns recortes de jornais sobre F. Julião. Não há datas específicas

FJ Jp4 doc 155-156 - Revista Fatos e Fotos - 10.10.1964 - n° 193 - Pags 62-65

Pasta FJ Jp6 doc 160-163

Pasta FJ Mp 1 doc 1-18:

FJ Mp1 doc 4,2 - Convite para conferência de Julião na Universidade Nacional Autonoma do

México -Cátedra João Guimarães Rosa 1989

FJ Mp1 doc 5 - Decreto n° 549 de 12 julho de 1999 - Luto oficial pela morte de Julião

FJ Mp1 doc 9,21 - Santinho distribuído na missa de 7° dia da morte de Francisco Julião,

matriz de Casa Forte, em 16-07-99

FJ Mp1 doc 10,2 - Santinho distribuído na missa de 7° dia da morte de Julião

FJ Mp1 doc 17-18 - PDT, folheto sobre o Pacto da Galiléia

FJ Mp4 Cap2 doc 1-3 - Folheto informativo do PDT, cédula de eleição de Francisco Julião

FJ Mpp 1 doc 15 -16 - Propaganda eleitoral, santinho de Francisco Julião

Pasta FJ PIp 4 doc 24-31:

FJ PIp 4 28,1 - F. Julião - Carta do Nordeste janeiro-1984

FJ PIp 4 doc 25 - Julião; o camponês e a terra. uma visão FJ PIp 4 doc 26,1 - F. Julião - Carta

do Nordeste; o bóia fria 05-1984

FJ PIp 4 doc 27,1 - F. Julião - Carta do Nordeste; carta aberta a Aderbal Jurema 16-02-1984

FJ PIp 4 doc 29,3 - F. Julião - Carta do Nordeste; a corte e as províncias julho – 1984

FJ PIp 4 doc 30,4 - F. Julião - Carta do Nordeste; da candelária a Cabrobó

FJ PIp 4 doc 31,3 - F. Julião - Carta do Nordeste; incendiários e bombeiros março 1984

Pasta FJ PIp 5 doc 32-43:

FJ PIp 5 doc 32,3 - F. Julião - Carta do Nordeste 02-02-1984

FJ PIp 5 doc 33,3 - F. Julião - O PDT e a retransmissão último programa

FJ PIp 5 doc 36,1 - F. Julião - Carta do Nordeste; quem não muda é burro agosto 1984 FJ PIp

5 doc 37,3 - F. Juliãoc - Carta do Nordeste; recordações do Marechal Lott junho 1984

FJ PIp 5 doc 38,2 - F. Julião - Carta do Nordeste; sobre o radicalismo maio 1984

FJ PIp 5 doc 39,1 - F. Julião - Carta do Nordeste; transição ou transação 10-08-1984

FJ PIp 5 doc 41,4 - F. Julião - Cartilha do Trabalhador do Campo - Pe, 15 agosto 1981

FJ PIp 5 doc 43,3 - F. Julião - Discurso de Francisco Julião - Diário do Congresso Nacional

10 abril 1964

FJ PIp 5 doc34,2 - F. Julião - Carta do Nordeste; pelo sertão

FJ PIp 5 doc35,2 - F. Julião - Carta do Nordeste; política democracia e povo 22 março 1984

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280

Pasta FJ PIp 7 doc 45-57:

FJ PIp 7 doc 49,9 - F. Julião - Discurso pronunciado na sessão de encerramento do XIII

Encontro de advogados de PE. Recife, 11-11-1983

FJ PIp 7 doc 50,6 - F. Julião - eleição e voto vinculado e cartilha do eleitor (provavelmente

sobre a eleição de 1982)

FJ PIp 7 doc 51,2 - F. Julião - Eleições diretas já. 15-02-1984

FJ PIp 7 doc 54,4 - F. Julião - Uma enxada em cada mão

FJ PIp 7 doc 57,3 - F. Julião - O homem, a democracia e o PDT

Pasta FJ PIp 8:

FJ PIp 8 doc 67,6 - F. Julião - Pau-de-arara no exílio 17-10-1978

FJ PIp 8 doc 68,4 - F. Julião - O PDT não divide

Pasta FJ PIp 9 doc 69-81:

FJ PIp 9 doc 69,11 - F. Julião - Perfil de um homem (sobre Allende). Setembro de 1983

FJ PIp 9 doc 70,9 - F. Julião - Por que sou nacionalista

FJ PIp 9 doc 71,5 - F. Julião - Qualquer estudante de História. 30 de março de 1984

FJ PIp 9 doc 74,6 - F. Julião - El Rey con alma de esclavo. n° 1039. 23 mayo 1973

FJ PIp 9 doc 75,6 - F. Julião - O sindicalismo é estrela. provavelmente 15-08-1980

FJ PIp 9 doc 77,1 - F. Julião - Tereza Dantas

FJ PIp 9 doc 78,1 - F. Julião - Vargas. O Estadista. Agosto 1984

FJ PIp 9 doc 81,1 - Letícia Lins e Ana Maria Mandin - Família de Julião quer cinzas de volta

ao Brasil. 14-07-99

Pasta FJ PIp 10 doc 82-91:

FJ PIp 10 doc 83 - Ana Maria Mandin - Cinzas de Julião ficarão no México. 13-07-99

FJ PIp 10 doc 87 - Música da campanha de F. Julião a Dep. Federal (penso que refere-se a

campanha de 1962)

FJ PIp 10 doc 90 - PDT (resumo do programa)

FJ PIp 10 doc 91 - O PDT não divide. Está com Marcos e CID

Pasta FJ PIp 11 doc 92-97:

FJ PIp 11 doc 92 - Resumo do programa do seu Partido (PDT)

FJ PIp 11 doc 94 - Aybirê Ferreira Sá e F. Julião. O que é o P.D.T., Partido Democrático

Trabalhista. Janeiro 1981

Arquivo Itamaraty

1) Coordenação-Geral de Documentação Diplomática:

Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969.

Ofício nº 35 de 09 de março de 1966.

Ofício Reservado nº 249 de 09 de março de 1966.

Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.34 de 03 de dezembro de 1966.

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281

Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 922.31 de 02 de fevereiro de

1968.

Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.31 de 24 de outubro de

1969.

Estados Unidos:

Vanderbilty University

-Jornal The New York Yimes

-Revista Life

Entrevistas:

Entrevista concedida por Francisco Julião à pesquisadora Eliane Moury Fernandes.

CEHIBRA. Fundação Joaquim Nabuco. 21 set. 1982.

Entrevista concedida por Francisco Julião a Aspásia Camargo em 1977. CPDOC/FGV.

Entrevista realizada com Jarbas Araújo em 19 set. 2011 para o projeto Marcas da Memória,

coordenado pelo professor Dr. Antônio Montenegro (UFPE). LAHOI/UFPE.

Entrevista realizada com Jean Robert, no dia 16 de agosto de 2010, em Ocotepec, Morelos-

México.

Entrevista de Francisco Julião concedida a Geneton Morais Neto em 1983. Disponível em:

<www.geneton.com.br>.

Entrevista com Socorro Ferraz, em 18/11/2011, para o projeto Marcas da Memória,

coordenado pelo professor Dr. Antônio Montenegro (UFPE). LAHOI/UFPE

Entrevista com Anatólio Julião, em 23 de maio de 2011. Recife-PE.

Disco:

JULIÃO, Francisco. Julião, verso e viola. Rio de Janeiro: Disco independente. Distribuição:

Selo Libertas, 1981. 1 disco (34 min45seg).

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Anexos

1- Propaganda eleitoral de Francisco Julião – 1962 (páginas 01-04).

p.1 p.2

p.3 p.4

Prontuário Individual de Francisco Julião. Nº 11442. Doc. nº 340. DOPS-PE. APEJE/SSP: 17817

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2 – Propaganda Eleitoral de Francisco Julião – 1986.

Coleção Francisco Julião – Pasta Fj Mpp 1 doc 15-16.CEHIBRA, FUNDAJ.