de estudo, anotações obsoletas

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De estudo, anotações obsoletas - A busca da identidade humana e franciscana 1

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Aqui se apresentam algumas reflexões obsoletas sobre o estudo. Cada reflexão é um todo, feita ocasionalmente, em função de determinadas necessidades ou solicitações. Algumas delas já foram publicadas em algumas revistas de cunho filosófico.

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Page 1: De Estudo, Anotações Obsoletas

De estudo, anotações obsoletas - A busca da identidade

humana e franciscana

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Page 2: De Estudo, Anotações Obsoletas

Reitor da USF: Gilberto Gonçalves Garcia, OFM

Diretor do IFAN: Agostinho Salvador Piccolo, OFM

Diretor do IFSB: Vicente Keller

Revisão: equipe interna

Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico

Coleção Estudos Franciscanos

- Francisco de Assis: um caminho para a educação

(Frei Orlando Bernardi, OFM)

- Em comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas

(Frei Hermógenes Harada, OFM)

- O corpo no pensamento de Francisco de Assis

(Angelita Marques Visalli)

- O encanto da vida: elementos de espiritualidade franciscana

(Frei Orlando Bernardi, OFM)

- Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana

(Frei Hermógenes Harada, OFM)

- Francisco de Assis: Por uma pedagogia humanista

(Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM)

- Pensadores franciscanos: Paisagens e sendas

(Frei Marcos Aurélio Fernandes, OFM)

Coordenação

Alberto da Silva Moreira

Comissão editorial

Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM

Frei Ary Estêvão Pintarelli, OFM

Frei Celso Márcio Teixeira, OFM

Frei Orlando Bernardi, OFM

Frei Sinivaldo Tavares, OFM

Frei Vitório Mazzuco Filho, OFM

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Page 3: De Estudo, Anotações Obsoletas

Frei Hermógenes Harada

De estudo, anotações obsoletas

A busca da identidade humana e franciscana

Logos: Vozes, IFAN, USF e Instituto S. Boaventura

Petrópolis

2009

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Page 4: De Estudo, Anotações Obsoletas

[Folha de créditos]

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa

Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luiz, 100

25689-900 Petrópolis

www.vozes.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita do editor.

Ficha catalográficaHarada, Hermógenes, OFM., 1928-2009De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidadehumana e franciscana/Hermógenes Harada. Petrópolis: Vozes: Bragança Paulista: Universidade São Francisco. InstitutoFranciscano de Antropologia: Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura,2009. xxx p. (Estudos franciscanos)ISBN xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx1. Franciscanismo. 2. Franciscanos - Formação. 3.Espiritualidade. I. Título.CDD -255.4

271.3

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Page 5: De Estudo, Anotações Obsoletas

Sumário

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

1. Ratio studiorum

2. O que se entende por estudo?

3. O estudo como busca da identidade humana e franciscana

4. O estudo enquanto trabalho acadêmico

5. A importância do estudo acadêmico na vida do frade menor

6. O estudo da filosofia

PARTE I - ESTUDO FILOSÓFICO-TEOLÓGICO

I – Algumas questões prévias

O estado da questão da ratio studiorum

1) A perplexidade na errância de interpretação das exigências

impossíveis

2) O que a perplexidade jamais nos deve fazer esquecer

3) A precisão na captação do ponto crucial das exigências

impossíveis

II – Reflexões acerca de alguns temas referentes à ratio studiorum

1. O trabalho intelectual, a escola

2. Linha de informação e linha de reflexão, um equívoco da classificação

3. Qualificação do intelecto como critério da formação intelectual e não a

quantificação do saber informativo

III – A estruturação da nossa formação intelectual em três níveis de ciências:

Ciências positivas, filosofia e teologia

1. Ciência e ciências

2. Estudo e doutrinação

3. As teorias das ciências

4. Ciências e filosofia

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5. O ensino da filosofia

6. A filosofia como o movimento de redução à profundidade do abismo

desvelante

7. A finitude ou a pobreza da filosofia

8. Filosofia e teologia

9. A teologia, a filosofia, as ciências

IV – “Santidade e sabedoria” e a formação intelectual

Sabedoria e santidade, a formação intelectual!

V – A fraternidade da formação intelectual franciscana

1. A necessidade de tematizar esse elemento fortíssimo de dinamização e

união da fraternidade

a) O equívoco de impostação acerca da afetividade e afeição

b) O cultivo e a acentuação da afeição na lógica da existência cristã

c) A afeição do seguimento e o estudo na formação intelectual

2. Alguns elementos fundamentais do caminho do estudo, decisivos na

formação da fraternidade

a. O estudo das ciências

a1. A disciplina das ciências como habilidade de sistematização

b2. A habilidade de sistematização e a fraternidade

c3. O perigo da disciplina científica

b. O estudo da filosofia

b1. A disciplina da autonomia

b2. A disciplina da autonomia e a fraternidade

c) O estudo da teologia

PARTE II - ARTIGOS

São Francisco de Assis e os estudos, uma questão

Estudar, filosofia?

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Estudar filosofia, um nada!?

Princípio do saber, estranho

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CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Aqui se apresentam algumas reflexões obsoletas sobre o estudo. Cada reflexão é um todo, feita ocasionalmente, em função de determinadas necessidades ou solicitações. Algumas delas já foram publicadas em algumas revistas de cunho filosófico. Não sei se tais reflexões, repetindo coisas tão óbvias de uso caseiro tão particular, têm hoje sentido. E isso principalmente porque algumas dessas reflexões surgiram da ambiência da instituição de cunho confessional católica, no nosso caso da Ordem franciscana1, na formação e no estudo de filosofia e de teologia para os seus membros. Assim sendo é quase certo que o que aqui é considerado só tem sentido, se é que tem, para os membros da própria Ordem. Todavia, nos embates de toda e qualquer comunidade humana, no empenho de perfazer-se nas exigências do caminho que cada um assumiu livremente, transpira a seiva do âmago da existência humana, cujo modo de ser todo próprio é universal. Embora com o colorido e as particularidades de cada situação, em circunstâncias diversas, quase sempre privativas e particulares, o âmago do ser da existência, seja de quem for, se nos apresenta como o mesmo no seu modo próprio de ser. É o que expressa o provérbio alemão que diz: todos, i.é, cada qual, seja como e onde for, cozinha com água. Confiando nessa afinidade de fundo, as seguintes reflexões falam do tema do estudo mais próximo aos franciscanos, mas se dirigem, se servirem, também às pessoas que, fora da ambiência de uma instituição confessional e religiosa, sob bem diferentes circunstâncias e sob outras denominações, padecem do mesmo tipo de indagação. Mas essas reflexões se dirigem a elas, pedindo-lhes desculpas pelo seu diletantismo.

1. Ratio Studiorum

O título Ratio studiorum refere-se à compreensão essencial do que seja o estudo2, que nos pontos seguintes I, II, III, IV se especificam como estudo acadêmico, estudo especializado e estudos profissionalizantes. Compreensão essencial3 não é propriamente uma compreensão geral, mas sim uma compreensão viva e constante, mais de fundo, que está no núcleo de cada compreensão específica e até mesmo particular. Compreensão essencial se diz em latim Ratio. Daí o título desse documento: Ratio Studiorum4.

1 A expressão Ordem franciscana, aqui usada, pode ser compreendida como fazendo referência a ordens, congregações, institutos e simpatizantes de Francisco de Assis. Até porque, antes da fragmentação ou multiplicação dos grupos que faziam referência a Francisco de Assis, existia um único grupo, um único ordenamento, uma única Ordem franciscana.

2 Esse termo ratio sturiorum é um conceito comum entre os documentos eclesiásticos que tratam de estudo e formação, tanto do clero secular quanto das ordens e congregações religiosas. Esse título e seu conteúdo foram tirados de um documento interno da instituição.

3 Compreensão essencial se distingue da compreensão geral. Esta é válida na classificação. Numa classificação, há o conceito geral, depois o específico, e finalmente o individual. Em toda e qualquer classificação, o conceito geral já está de antemão definido e pressuposto como obviamente conhecido. Assim, o conceito geral de uma classificação não serve para explicar, dizer de que se trata, na realidade a coisa ela mesma. Por isso, se se quiser entender melhor e mais concreta e profundamente o conceito geral, deve-se recorrer à compreensão essencial, pois o conceito geral indica apenas numa maneira a mais abstrata e generalizada possível a compreensão de uma coisa.

4 Usualmente ratio se traduz para o português em vários termos, entre si afins, como: razão, o porquê, o móvel, o motivo, a finalidade, a meta, o fundamento, o princípio, a causa. Todos esses termos querem

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Num sentido não tanto de fundo, mas mais de superfície, mais imediatista-prático, Ratio também pode ser traduzida como Diretrizes. Ratio Studiorum significa então orientações e normas que regulam e ordenam o quê e o como dos nossos estudos. Mas, se quiserem ser realmente eficazes, essas orientações e normas devem haurir a clarividência e o ânimo de suas diretrizes da Ratio na compreensão essencial, expressa no primeiro sentido acima mencionado da palavra Ratio. É dentro dessa “dualidade”, válida e pertinente à formulação da Ratio Studiorum, que o termo estudo recebe o seu sentido todo próprio e concreto, a saber, do empenho essencial do perfazer-se humano e, ao mesmo tempo, do conhecimento e saber a ser adquiridos conforme as solicitações de um determinado programa institucional.

2. O que se entende por estudo?

Estudo é a palavra portuguesa para o latim studium. De imediato, por estudo e estudos costumamos entender conhecimento ou conhecimentos adquiridos. Mas logo percebemos que para sua aquisição o conhecimento ou os conhecimentos adquiridos pressupõem longo e grande trabalho de aplicação. A palavra latina studium indica esse esforço de aplicação e significa empenho, dedicação ao trabalho. Studium vem do verbo studeo, studui, studere que significa empreendo, me aplico a, me empenho, livremente me engajo em, assumidamente me esforço e trabalho para5.

Aqui, estudo significa, pois, empenho, esforço, não porém num sentido geral e vago, mas na acepção todo própria que o termo studium sugere. Trata-se, pois, de um esforço, no qual o que caracterizamos como aplicação, diligência, engajamento, é dinamizado no cuidado de se perfazer no que se busca e no que se trabalha. É, portanto, um trabalho, no qual o que se busca, a meta implica, diz respeito ao despertar, crescer e consumar-se no ser de quem se empenha, i. é na sua identidade. Refere-se a um trabalho querido e assumido livremente como fomento e exercício da própria realização enquanto existência humana, livre. Na Antiguidade grega, esse tipo de trabalho se denominava skholé, donde vem a nossa palavra portuguesa escola6.

dizer o mesmo, sem poderem dizê-lo por completo, num único termo. O presente documento traduz ratio por compreensão essencial. E com isso tenta sintetizar todos esses significados afins numa única expressão. Trata-se, pois, na ratio studiorum de uma compreensão. Compreender não é um entender qualquer, geral, indefinido, sem determinação, mas sim essencial. Trata-se, pois, da compreensão da essência do estudo. Em sua formulação, a palavra essência é semelhante a paciência, tendência, obediência, e significa a dinâmica (-ência), o vigor, a vitalidade do ser (esse-ência). É o que queremos indicar com a palavra identidade nas expressões identidade humana e franciscana (cf. o ponto 3 das considerações introdutórias). Identidade aqui é compreendida, não estática mas dinamicamente: o que determina e move o próprio do ser humano, a partir do fundo dele mesmo (fundo, fundamento), qual uma fonte borbulhante (princípio, causa), determinando o ser humano à ação de busca de uma meta (finalidade) que o realiza plenamente. Ratio, na tradição do Ocidente, é a tradução latina do Logos ou Nous grego e indica, não apenas uma das “faculdades da alma”, hoje denominada razão, uni-lateral ao lado das outras, também uni-laterais, denominadas vontade e sentimento, mas sim o vigor de fundo do ser humano no que ele tem de mais próprio no seu todo: a liberdade ou, em nossa linguagem hodierna, a autonomia. Ratio Studiorum nessa acepção mais de fundo significaria então a dinâmica dos estudos, proveniente de e fundada na força, na vigência da liberdade ou da autonomia humana.

5 WALDE, A.; HOFMANN J. B. 5ª edição, 2º volume M - Z, Heidelberg: Carl Winter Universitätsverlag, 1972, p. 608; alguns dicionários associam o verbo studere com o grego speudo ou spoudazo, mas essa referência não possui fundamentação etimológica. Cf. WALDE e HOFMANN, op. cit.; e MENGE, Hermann, Langenscheidts Grosswörterbuch Griechisch, Teil I, Griechisch-deutsch, 21ª edição, Berlin/München/Zürich: Langenscheidt, 1970, p. 632.

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3. O estudo como busca da identidade humana e franciscana

O estudo como a ação de engajamento para o despertar, crescer e consumar-se da humanidade é dever e direito de todo cidadão livre, responsável pela tarefa de contribuir para a construção da humanidade livre e universal. Esse modo de empenhar-se pelo ser do homem se chama busca da identidade humana. E o que chamamos de cristão e franciscano7 jamais pode estar alienado da participação desse empenho, portanto, do estudo de engajamento pela identidade humana. Aliás, a vocação cristã e franciscana não é outra coisa do que uma busca apaixonada da excelência do ser-humano, como ideal da humanidade livre e universal, aprofundada, assumida e agilizada por Jesus Cristo e seu seguidor Francisco, ideal e anelo de todas as pessoas de boa vontade, através de variegadas e diferentes atividades e ações. Sejam quais forem as nossas atividades, sejam como forem as necessidades e as exigências cobradas de nós na sociedade de hoje, na formação e no estudo, o modo de ser do estudo, i. é, do empenho no engajamento pela identidade humana, em nós e nos outros, deve-se ater a buscar e a amar o modo de ser do studium, portanto, do empenho do e ao trabalho, no sentido acima exposto. A nossa identidade franciscana e cristã, hoje, não consiste tanto em seguir esta ou aquela mundividência historiograficamente padronizada no passado como “escola franciscana” ou algo semelhante, mas sim em ir ao fundo da nossa herança viva espiritual franciscana e no âmago do espírito de Francisco descobrir a paixão da busca pela verdade do ser da identidade humana, que nele pulsava, e assim dispostos, abrir-nos à busca da excelência8 do ser da humanidade, que pulsa no coração, i. é, no

6 A palavra skholé hoje significa ócio, estar livre de negócios, tempo livre, lazer. Em latim se diz então otium. O contrário do otium é nec-otium (non-otium), donde vem a palavra negócio. Skholé vem do verbo skhein, ekhó, e significa propriamente ater-se, estar no vigor da atinência. Portanto, originariamente tanto skholé como otium não se referem à folga da ociosidade nem ao descanso, mas sim ao modo de trabalho intenso de engajamento no crescimento da auto-identidade, não obrigado de fora, não escravizado por lucro, medo, ganância ou pelo poder dominador do outro, mas livremente, assumido como exercício da criatividade humana na autonomia da sua liberdade. Esse modo de trabalhar mais tarde deu origem ao trabalho criativo das assim chamadas profissões livres, e caracterizou no Ocidente o vigor e a força dos estudos universitários na construção da humanidade livre, universal (cf. o espírito “missionário” da Aufklärung-Iluminismo). Esse modo de ser é o que está no fundo de todo o élan da existência científica de hoje, mesmo que na sua realização haja defasagens e desvios, esquecimentos da compreensão essencial do que seja a vigência das ciências.

7 Talvez, mais do que nunca, se faça necessário, a nós franciscanos, entender o ser-franciscano como uma cordial radicalização (=ir às raízes) do ser cristão e não como reivindicação de uma mundividência particular para o fomento e cultivo ensimesmado de si mesmo, seja individual, seja grupal. Quando na Ratio insistimos nos estudos da Escola franciscana, tanto na filosofia como na teologia, para que o vigor científico da nossa busca não se reduza a disputas de escolas, como aconteceu no passado, isso assume uma importância decisiva

8 O termo excelência hoje é ambíguo, e, às vezes, equívoco. Aqui excelência indica o próprio do ser humano na sua per-feição, i. é, no surgir, crescer e consumar-se, no perfazer-se do seu ser próprio, e não como um produto processado e agenciado dentro de um projeto alheio à sua essência, como o primeiro do ranking da eficiência produtiva.

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subterrâneo da nossa modernidade9, hoje como estudos, pesquisas e investigações das ciências, da filosofia e da teologia.

4. O estudo enquanto trabalho acadêmico

O adjetivo acadêmico aqui indica uma especificação, destacando esse tipo de estudo e trabalho do estudo especializado (mestrado e doutorado) e dos estudos profissionalizantes. Como tal, aqui, estudo acadêmico indica um grau ou uma qualificação (graduação) dentro do tipo específico de estudo que usualmente denominamos de acadêmico, cujo grau superior se denomina estudo especializado com o título de mestrado e doutorado10. Assim sendo, neste item, ao mesmo tempo em que se tenta dizer de modo direto e bem definido em que consiste o trabalho do estudo acadêmico no grau graduação, é de grande utilidade falar brevemente do que e como é o modo de ser desse trabalho qualificado como acadêmico. Como tal, o sentido do ser do estudo, enquanto trabalho acadêmico, apresentado aqui neste item, é no fundo o mesmo do ponto III, abaixo, que quer legislar a partir das diretrizes que normam os franciscanos que querem levar o trabalho do estudo acadêmico à qualificação maior de especialização11.

9 Hoje, quem fala de estudos científicos e acadêmicos deve distinguir desde logo entre atualidade e o que chamamos de modernidade, como ela aparece no consumo e na opinião pública e como ela é realizada, no labutar tenaz, sóbrio e assumido de construção de um novo mundo, no subterrâneo da nossa época. Quem não tem um bom discernimento, aqui, pode confundir a tarefa da busca da identidade cristã e franciscana, hoje, com a adaptação, mal feita, superficial e facilitada aos modismos e assim destruir por dentro todos os empenhos sérios na formação e no estudo dos formandos e dos que trabalham na formação, tanto na espiritualidade como nos estudos acadêmicos.

10 Também nos assim chamados estudos profissionalizantes existem graduações semelhantes às de graduação, mestrado e doutorado do estudo acadêmico, embora os termos tenham outras denominações. Hoje, os que querem ser realmente profissionais num métier devem assumir o longo e penoso trabalho de aprendizagem, tanto teórico como técnico, e provar diante da sociedade que têm a devida qualificação de serem competentes no que exercem como profissão.

11 Hoje, no mundo dos estudos acadêmicos e também dos estudos profissionalizantes, a tendência é de possibilitar a todos a chance de levar o estudo a alcançar a excelência da especialização com mestrado e doutorado. Assim sendo, todos que têm a possibilidade familiar e financeira de estudar para se tornarem úteis ou realizados na sociedade não se satisfazem com o grau elementar primário, secundário, mas buscam estudos superiores. Por isso, na idéia e no ideal do estudo acadêmico e também profissionalizante hoje o estudo elementar e secundário e o estudo superior no nível de graduação estão sendo avaliados a partir dos estudos superiores, especializados ou profissionalizantes como sua preparação. Em se tratando de estudo acadêmico no nível de graduação, principalmente na filosofia e nas ciências positivas, se o estudante entra no estudo do trabalho acadêmico com a mentalidade de quem não quer estudar muito, mas apenas o suficiente para fazer profissão religiosa ou ser ordenado padre, o estudo feito nas instituições oficiais e sérias dos estudos da filosofia e das ciências positivas se torna inviável, a tal ponto que a própria instituição religiosa deverá criar sua escola caseira para se adaptar a esse minimalismo em relação ao estudo. Se esse modo minimalista de pensar o estudo vem dos formadores da espiritualidade e da formação religiosa, a situação se torna insustentável para um grupo humano como o nosso. E um dia, mais cedo ou mais tarde, esse espeto do minimalismo pode se virar contra a própria espiritualidade e a formação religiosa. É o que está acontecendo em vários lugares, onde se têm dificuldades em referência à formação e ao estudo entre os clérigos.

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Estudo acadêmico12 indica o empenho do trabalho de ensino e aprendizagem escolar do saber científico-cultural, que a nossa sociedade moderna hodierna ocidental exige como saber obrigatório, para que os seus membros nela possam se mover com adequação, usufruir, participar de e contribuir para o seu progresso e manutenção. Esse estudo se organiza em aprendizagem e ensino da escola fundamental, secundária média e superior13. Esta última se chama também estudos universitários, e não há a seu respeito obrigatoriedade jurídica com tal. Mas, pela tendência da vigência do saber científico na humanidade atual, essa escolaridade superior torna-se praticamente obrigatória para quem quer não somente trabalhar eficazmente e com nível salarial melhor, mas também para todos que de alguma forma se doam ao ideal de engajamento humanitário e querem trabalhar com eficiência e competência para o bem da humanidade, hoje.

No estudo acadêmico, seja qual for o seu grau, é necessário adquirir e ter a plena consciência de que o saber científico, o seu modo de ser, domina a humanidade atual, e se transformou numa necessidade histórica. Como uma necessidade histórica de nossa humanidade atual, o estudo acadêmico, i. é, ensino e aprendizagem do saber científico deve nos educar num modo de ser todo próprio e nas virtudes provenientes desse modo de ser que somente a nossa época nos pode proporcionar.

5. A importância do estudo acadêmico na vida do franciscano

O termo vida do franciscano não indica apenas os seus afazeres cotidianos, encargos sociais civis, clericais e religiosos, suas necessidades, mas também, ou melhor, em primeiro lugar, o modo de ser como e com que espírito encara, dinamiza, assume e dá sentido a todos esses afazeres, os quais podem facilmente se instalar em rotinas, executadas mecânica e indiferentemente, sem nada aprofundar e pesquisar. Vida, aqui, significa projeto de vida, o sentido da existência de cada um de nós enquanto identidade e missão do ser franciscano hoje. A importância do estudo acadêmico para o frade menor consiste hoje precisamente em engajar-se de corpo e alma no estudo acadêmico, não buscando jamais honra, poder, vaidade ou titulação não merecida, nem propriamente em primeiro lugar apenas conhecimentos e informações úteis à adaptação ao mundo do consumismo cultural, mas visando adquirir a dinâmica da busca apaixonada pela verdade, busca essa que foi o toque originário que deslanchou o élan do saber científico. E nessa busca deixar-se cunhar pelo modo de ser do saber científico, formando seu caráter intelectual na disciplina, no rigor do pensar, na transparência e autenticidade da hombridade intelectual, na constante e bem impostada crítica contra

12 Acadêmico vem de Academia (Akadémeia ou Akademia, em grego). Originariamente era nome da escola criada por Platão em 386 a. C., em Kephisos a 2 kilômetros de Atenas, situada nos bosques consagrados ao herói ateniense Adádemus. Destinada oficialmente ao culto das musas, teve uma intensa atividade filosófica, tendo como preparação uma sólida formação matemática. É interessante observar que Platão colocou uma placa no portal que dava entrada a sua Academia com a seguinte admoestação: Ageométretos medeìs eisíto! (“Ninguém que não tenha compreendido o matemático, terá aqui um acesso!” Isto significa: o matemático na sua essência tem muito a ver com a filosofia). Hoje Academia indica um estabelecimento de ensino superior de ciência ou arte e pode ser sinônimo de faculdade, escola especializada; ou de sociedade ou agremiação, particular ou oficial, com caráter científico, literário ou artístico; pode também indicar escola onde se ministra o ensino de práticas desportivas ou lúdicas, prendas etc. (cf. Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de filosofia, 1, Lisboa/São Paulo: Editora Verbo, 1989, pp. 46-47; cf. Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 19).

13 A obrigatoriedade da escolaridade nesse estudo acadêmico varia conforme a exigência oficial dos países e de seus governos. Varia também conforme exigências que uma instituição faz dos que a ela querem pertencer como seus membros.

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todo e qualquer pré-conceito e dogmatismo; abrir-se à intrepidez da criatividade na pesquisa e investigação da verdade, na disposição cordial da espera do inesperado14. Esse engajamento ou inserção no estudo, i. é, no empenho da existência científica deve nos importar a nós franciscanos, hoje, como participação na tarefa confiada à humanidade hodierna por Deus através da história. Assim exercitado e preparado pelo vigor do mundo do saber científico, importa ao franciscano, hoje, capacitar-se a retomar o modo de ser do empenho no trabalho exigido por nossa identidade franciscana; e foi esse empenho, a saber, o studium, o que mobilizou Francisco de Assis na busca da verdade da perfeição evangélica na vida de pobreza, no rigor e na precisão disposta do seguimento radical de Jesus Cristo. É algo inteiramente diferente compreender e exercer o ser franciscano hoje, através de gostos pessoais e particulares, através de modismos, devoções e certos modos do trabalho pastoral para a realização pessoal ou grupal e compreender e assumir o trabalho da realização e da busca da identidade franciscana e missão de ser frade menor hoje, importando-nos15, i. é, conduzindo-nos para dentro da dinâmica que pulsa e atua no interior da nossa epocalidade como tarefa e responsabilidade da humanidade de hoje. A dinâmica do estudo acadêmico, como foi explicitada acima, pertence essencialmente a essa dinâmica de fundo do mundo moderno. O estudo acadêmico, i. é, do saber científico, que é o vigor de fundo do mundo moderno, presente e atuante no seu subterrâneo como um dos registros centrais do progresso moderno, na verdade, não é outra coisa do que a herança, recebida pela humanidade de hoje, da Idade Média de Francisco, através da Renascença e da Era Moderna inicial. O que e como os frades menores da origem trabalharam na busca da sua auto-identidade franciscana através do que hoje denominamos de modo espiritualista e pietista de “espiritualidade franciscana” vêm do studium, i. é, do empenho do saber e poder de fundo da Idade Média de Francisco, cujo lugar de cultivo e de fomento, hoje, se deslocou para o studium, i. é, o empenho do saber e poder de fundo na constituição do mundo moderno como estudo do saber científico16.

A importância do estudo acadêmico na vida do frade menor consiste em renovar nossa mente, nosso coração franciscano, fazendo renascer em nós o entusiasmo dos jovens da origem na Ordem de Francisco de Assis, que, impregnados pelo amor à pobreza, i. é, dispostos a seguir a dinâmica e o élan, portanto, o studium de um Deus Encarnado, a

14 Hoje há muita crítica acerca do saber científico tecnologizado, que tende a ser totalitário no poder da dominação do saber objetivante e objetivado. Essa crítica visa buscar atrás desse modo, quem sabe, deficiente da essência da ciência moderna o seu aspecto originário. Essa crítica pertence ao vigor e ao rigor da precisão de fundo do saber científico que aparece na filosofia, no aspecto virado para dentro da sua própria profundidade.

15 Importância, importar-se significa literalmente conduzir, portar, levar para dentro, para o fundo, para o âmago.

16 Em nenhuma época no Ocidente a humanidade investiu tanto o vigor do intelecto na busca da verdade de Deus e de seus mistérios como na Idade Média. Desse investimento surgiram exércitos de santos, místicos e teólogos pensadores, cujo saber e cuja sabedoria impregnaram a realidade humana no seu todo, criando especulações, obras de pensamentos, de arte e religião, entidades sociais e suas atividades, que sustentaram e animaram os homens por séculos, revelando-lhes um sentido todo próprio do ser. Esse vigor do intelecto passou da Idade Média para nós, hodiernos, como o élan do saber científico, do qual surgiu a comunidade de pesquisa científica com milhares e milhares de pessoas dedicadas totalmente à busca, criando condições da possibilidade do mundo moderno e do seu progresso. E apesar de criticarem e rejeitarem o saber da Idade Média como obsoleto e ultrapassado, as ciências modernas receberam seu vigor e rigor como herança de nossos antepassados medievais, que estavam inseridos até o pescoço no vigor subterrâneo da Idade Média.

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saber, o studium do Jesus Crucificado, invadiram as universidades medievais de Oxford, Paris, Bolonha, não para buscar poder e honrarias pessoais, mas para se prepararem real e devidamente para o serviço de toda a humana criatura, nas fronteiras e nos lugares mais necessitados da humanidade17.

6. O estudo da filosofia

O estudo da filosofia possui uma peculiaridade toda própria que não ocorre em nenhuma outra disciplina do saber científico, pertencente à positividade científica. Não considerar essa peculiaridade no ensino e na aprendizagem da filosofia pode criar grande dificuldade, tanto na organização do curso, como no ânimo e na união dos que estudam e ensinam filosofia e na eficácia do estudo. Não se pode insistir demais nesse ponto, principalmente hoje, porque o estudo e o ensino da filosofia sofrem diferentes interpretações e intervenções, provenientes de instâncias que não são propriamente suas, mas de interesse imediatista de uso instrumental da filosofia para uma determinada meta funcional.

Em seu estudo, a filosofia apresenta dois lados, um virado para fora18, para a superfície, e outro virado para dentro, para a profundidade do seu vigor essencial. Para fora, virado para a superfície, a filosofia no seu estudo se apresenta como produto cultural de determinadas épocas, como mundividências e mesmo ideologias, a saber, crenças e interpretações do mundo e da vida, de certos indivíduos ou de determinados grupos humanos. Nesse sentido o que denominamos filosofia cristã, filosofia marxista, filosofia franciscana, filosofia budista são no fundo mundividências e ideologias. Essas filosofias-mundividências são úteis e talvez até necessárias para a doutrinação e armação dos membros de uma determinada instituição para seu fomento e sua agilização como funcionários eficientes e produtivos, em vista do objetivo determinado pela instituição. Nessa compreensão da filosofia e do seu estudo, a filosofia é reduzida a um instrumento para a utilidade de uma instituição. Dentro de uma tal compreensão instrumental da filosofia e do seu estudo, discute-se hoje se o estudo da filosofia é útil e necessário para quem apenas quer ser agente de pastoral da grande instituição chamada Igreja Católica, por exemplo, e de suas sub-instituições, tais como ordens, congregações, escolas e universidades católicas etc.

Enquanto virada para dentro dela mesma, para a profundidade do seu vigor essencial, a filosofia é a paixão de busca da verdade de toda e qualquer pressuposição, estabelecida e padronizada em posicionamentos de mundividências e ideologias, sejam elas quais forem. Como tal, em seu estudo, a filosofia não serve para construir mundividências e ideologias. Ela, porém, não as destrói; critica-as pela raiz, examina seus fundamentos, sobre os quais as mudividências e as ideologias estão constituídas dogmaticamente. Enquanto virada para a profundidade dos fundamentos de toda e qualquer positividade das mundividências e ideologias, a filosofia perfaz a dinâmica de fundo das ciências e é a manifestação do vigor e rigor de precisão do estudo científico, hoje necessário para que também o saber científico não se torne ele mesmo dogmático, transformando-se em mundividência e ideologia camufladas. Sob esse aspecto do fundo do saber científico, i. é, da crítica, do discernimento dos fundamentos de todo e qualquer posicionamento, o estudo da filosofia é hoje um desafio necessário ao estudante que não

17 Cf. GEMELLI, frei Agostinho OFM, O franciscanismo. Petrópolis: Vozes, 1944, p. 72-74.

18 Na Antiguidade grega esse aspecto exterior se chamava de exotérico. O aspecto interior, de esotérico.

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quer ser apenas um funcionário politicamente correto de um saber doutrinário, processado em padrões e em módulos de uma ideologia, de uma mundividência, cuja “crença” não admite nenhum confronto de base; a quem tampouco quer continuar a viver e assumir a fé cristã como mundividência, doutrinação ou ideologia; mas é necessário a quem quer abrir-se de corpo e alma à límpida decisão de um encontro com o Evangelho em “espírito e em verdade” (Jo 4,24). Mas se este é o interesse do estudo da filosofia, o modo de organizar e ministrar seu estudo terá sua lógica e ordenação própria, as quais deverão ser pensadas, assimiladas e assumidas conscientemente.

Na organização do estudo da filosofia no ensino universitário oficial, esses dois aspectos da filosofia e do seu estudo são misturados ou equilibrados, na tentativa de acentuar ora um aspecto em favor ou em detrimento do outro, e isto conforme a tendência adotada pelas faculdades, cuja orientação sofre influências das mundividências e ideologias dos que as mantêm e coordenam. Há faculdades, onde o lado virado para a profundidade do fundo da filosofia é completamente excluído do estudo como um saber obsoleto, ultrapassado, por não corresponder ao modo da positividade das ciências, principalmente do tipo das ciências naturais físico-matemáticas. Mas algo semelhante pode acontecer também conosco, quando queremos que a filosofia esteja em função da mundividência denominada cristã, como um instrumento ou um serviço à fé (entendida como crença ou mundividência da Igreja)19, e quando consideramos o ensino e o estudo da filosofia como um mal, senão desnecessário, ao menos necessário, pois não serve para a ação pastoral nem para o engajamento na evangelização. Uma tal impostação eliminou, já de antemão, a validade daquele aspecto essencial do estudo da filosofia orientado para a profundidade de sua identidade. Para que os estudantes de filosofia possam entrar de modo útil e eficiente no estudo da filosofia, a própria instituição, seus coordenadores, os formadores e os professores, deveriam entrar em acordo para dizer o que querem da filosofia e do seu estudo para a formação do estudante. Desconhecer ou ter uma idéia vaga dessa problemática de decisiva importância para os estudantes e os professores do estudo da filosofia é propriamente a causa das dificuldades surgidas no estudo da filosofia no mundo clerical. A culpa dessa dificuldade não está propriamente no estudo da filosofia enquanto filosofia, nem nos professores e estudantes de filosofia, mas sim na incompreensão dessa ambigüidade de seu estudo.

19 Cf. o tão pouco pensado “slogan” da filosofia cristã: “Philosophia est ancilla theologiae”.

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ESTUDO FILOSÓFICO-TEOLÓGICO

I - ALGUMAS QUESTÕES PRÉVIAS

O que se segue gostaria de ser uma espécie de caderno de anotações. Aquele tipo de anotações que trocamos entre nós, como estudantes, para um ajudar o outro, apenas recordando o que todos já ouvimos nas preleções, mas que esquecemos de anotar bem. Mas como as formulações das anotações de um tal caderno são compreendidas só por quem as rabiscou, em sua forma de exposição, este caderno de anotações quer “dar uma de apostila”. Mas daquelas apostilas que os estudantes compõem, ajuntando os conteúdos de seus cadernos de anotações, e as multiplicam até manualmente se for preciso. Por isso, os pensamentos, as informações, as referências que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotações, se forem usadas, devem ser controladas na sua exatidão e na sua validade, pois são na sua maioria “chutações”. Se nessas “chutações”, porém, houver alguns pensamentos válidos, podem ser usados, certamente melhorando muito sua formulação, “como se fossem” de quem os usa, pois, pensamento não é de ninguém. Quem entendeu um pensamento e o usa ou quem pensa que teve o seu pensamento e o formula não está entrando na posse desse pensamento. É o pensamento que está tomando conta dele. E o pensamento vai aonde lhe apraz. É ridículo você achar que o ar que respira é seu.

Os problemas concernentes à ratio studiorum de nossa ordem não dizem respeito propriamente à ratio studiorum como tal. Pois a ratio dos estudos já foi determinada há muito tempo pelo Direito Canônico (242-256), pela Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis, pela Ratio formationis da OFM e pelos outros inúmeros documentos da Igreja e da Ordem.

Certamente, é necessário compor uma ratio studiorum própria de nossa Ordem, contendo todas as peculiaridades de nossa formação intelectual franciscana, de modo explícito e bem determinado; mas, na elaboração de um tal projeto, podemos encontrar quase todos os elementos necessários nos documentos acima mencionados.

O grande e dificílimo problema colocado pela ratio studiorum de nossa Ordem é, antes, o problema de sua realização e talvez possa ser formulado nas seguintes duas perguntas:

1. Como criar um projeto de estudos que sirva para ajudar a formar – com um sucesso até certo ponto razoável, no espaço de tempo relativamente curto de 6 a 7 anos – uma “intelectualidade” que seja simultaneamente tão universal e concreto-particular, especulativa e prática, antiga e moderno-contemporânea, profunda e ampla, pluridimensional e sintética, tão madura e ao mesmo tempo tão nova, como se exige oficialmente da formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje?

E como fazer com que esse projeto ajude realmente a evitar que se caia numa formação aparente e superficial de informação enciclopedista, sem a suficiente assimilação das matérias, devido à falta de tempo e devido à sobrecarga de tantas disciplinas teológicas, filosóficas e científicas de diferentes ramos do saber, todas elas tidas como indispensáveis para uma boa formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje?

2. Como fazer um projeto de estudos que nos leve à real formação, onde se unifiquem numa síntese adequada e frutífera tantos elementos, arrolados como indispensáveis para

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a formação intelectual do religioso e sacerdote, pelos documentos oficiais da Igreja e da Ordem? Pois, embora eles sejam sem dúvida importantíssimos e essenciais, procedem de e pertencem a diferentes níveis e áreas da formação intelectual humana. E principalmente, como criar um projeto de estudos que possibilite em concreto a efetuação de uma “intelectualidade” que seja fruto de uma profunda e íntima “síntese” entre duas dimensões essencialmente distintas como a dimensão da sabedoria divina e da ciência humana?

Essas duas perguntas na realidade implicam uma infinidade de dificuldades, no meio das quais se debate em concreto a formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje. Tentemos explicitar um pouco algumas dessas dificuldades que nos deixam confusos e perplexos diante da tarefa da formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje, como um levantamento da questão da ratio studiorum da nossa Ordem.

O estado da questão da ratio studiorum

Se levamos ao pé da letra o que nos pedem os documentos da Igreja e da Ordem para uma boa formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje, ficamos perplexos diante do nível de profundidade e extensão dos conhecimentos requeridos para essa formação.

Sem mencionar as exigências requeridas de um religioso e sacerdote formado, a saber, da experiência pessoal íntima da vida com Deus, as exigências de alto grau de maturidade humana, espiritual, psíquica e afetiva, as exigências de habilidade no contato sócio-pastoral etc., e permanecendo apenas nas exigências indispensáveis dos conhecimentos que o formando deve adquirir no período de 6 a 7 anos de sua formação intelectual, temos:

a) O estudo completo da sacra doctrina, i.é, da teologia, com todas as suas disciplinas (teologia fundamental, teologia sistemático-dogmática, teologia moral, teologia mística, liturgia, teologia bíblica, teologia pastoral, história da Igreja) e o estudo próprio e especializado das Sagradas Escrituras do AT e do NT, como ele foi desenvolvido cientificamente nos últimos tempos, com suas disciplinas auxiliares. E em cada uma dessas disciplinas, por sua vez, temos várias especialidades como, p. ex., na teologia sistemático-dogmática, o tratado de Deus Uno e Trino, o tratado da criação, a cristologia, a eclesiologia etc. etc. e, além de tudo isso, temos ainda diferentes cursos de práticas pastorais e de exercícios de orientações, que requerem conhecimentos de sociologia, psicologia, ciências políticas etc. etc.

Todos esses conhecimentos devem ser assimilados nos 4 anos de teologia, e de tal modo a não serem absorvidos somente como um saber científico, mas também como um conhecimento subsumido a partir de, na e para a fé cristã, numa experiência de profundo encontro com e de seguimento de Jesus Cristo.

b) Além de todo esse enorme e complexíssimo sistema de conhecimento, que requereria um tempo muito maior para uma verdadeira assimilação, temos o estudo da filosofia, que por sua vez forma todo um sistema de conhecimento, com várias disciplinas, como p. ex., lógica I, II, epistemologia ou teoria de conhecimentos, metafísica I e II ou ontologia, antropologia, filosofia da natureza, filosofia da história, teodicéia, história da filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea, ética, estética etc. Todas essas disciplinas filosóficas não devem permanecer no nível de uma informação enciclopedista, mas devem levar os estudantes à capacidade da busca real da verdade, à

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habilidade de pensar, de interpretar com profundidade a realidade transcendental, cujo tema se apresenta sob títulos como Deus, homem, liberdade, pessoa.

Além de tudo isso, os estudantes devem conhecer bem as conquistas das ciências modernas, que ajudam a falar aos homens de hoje, na linguagem de hoje. E assim temos:

c) O estudo de ciências como psicologia, sociologia, pedagogia, ciências econômicas, políticas etc. Para se poder obter um resultado razoável em todos esses estudos, recomenda-se também que, além da língua pátria, os formandos estudem outras línguas, usadas e úteis em todos esses estudos.

d) A todos esses estudos acrescentam-se ainda cursos acerca de novidades que, conforme tempo e situações, vêm sendo exigidos como de grande importância, em vista de atualização. São cursos, por exemplo, sobre ecologia, justiça e paz, comunicação, movimento feminista, inculturação etc. etc...

e) Todos esses elementos devem ser dados, apreendidos, digeridos, assimilados em 6 a 7 anos de formação, juntamente com todo o enorme trabalho de formação religioso-espiritual de conversão, santificação etc., e de treinamento para a capacitação pastoral-prática.

Seria utilíssimo, pelo menos uma vez, fazer toda uma lista bem detalhada e especificada de todos os conteúdos de todas as disciplinas teológicas, filosóficas e científicas e de cursos complementares de pastoral e de aggiornamento que um estudante religioso-clérigo deve absorver com êxito em seus 6 a 7 anos de formação, para sentir bem nitidamente a perplexidade diante dessa “missão impossível” da nossa formação intelectual.

É de grande importância sentir bem e avaliar nitidamente essa perplexidade. Para isso, é necessário colocar-se no lugar do estudante ou muito mais no lugar de quem tem a responsabilidade de ensinar essas matérias e ter que efetivar o nível de exigência requerido pelos documentos da Igreja e da Ordem. E então, depois de sentir na carne a perplexidade diante de uma tal tarefa impossível, confrontar-se seriamente com essas exigências, perguntando o que devemos aprender dessa dificuldade para o trabalho de elaboração bem feita da ratio studiorum de nossa Ordem.

A seguir, tentemos desdobrar a nossa reflexão em três pontos, que poderiam ser assim intitulados:

1) A perplexidade na errância de interpretação das exigências impossíveis.

2) O que a perplexidade jamais nos deve fazer esquecer.

3) A precisão na captação do ponto crucial das exigências impossíveis.

1) A perplexidade na errância de interpretação das exigências impossíveis

As primeiras impressões que temos das exigências da formação intelectual para o religioso e sacerdote hoje, expostas com crescente insistência nos documentos oficiais da Igreja e da Ordem, talvez possam ser expressas mais ou menos nos seguintes termos:

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a) As exigências parecem ditadas por pessoas “pastoralistas”, que podem entender muito bem de certos acionamentos pastorais e de agenciamentos práticos de funcionamento de um sistema eclesiástico, mas que tem pouquíssimo conhecimento do que seja hoje realmente um trabalho intelectual sério e duro. Tanto na prática da aprendizagem, quanto na do ensino, quem quiser fazer a experiência corpo a corpo das reais exigências e dos requisitos científicos das ciências teológicas, filosóficas e humanas, não amontoa tantas matérias e disciplinas e tantos sistemas de níveis e áreas diferentes, num programa de estudo sério, para serem absorvidos num relativamente curto espaço de tempo de formação dos jovens estudantes, em sua maioria mal tendo saído do ensino secundário; e tudo isso sob uma fala irresponsável de poder, p. ex., se comunicar adequadamente com os homens dos nossos tempos ou slogans similares.

b) Por outro lado, as exigências também parecem ter sido ditadas por pessoas altamente estudadas que, tendo percorrido o itinerário de 20 a 30 anos de estudos especializados numa determinada ciência, exigem dos estudantes o nível de cultura e de saber que eles próprios possuem. Acastelados atrás de sua alienação professoral, esquecem que, para alcançarem o saber que ora possuem, primeiro tiveram que estudar e se exercitar anos a fio, passo a passo, numa bem determinada disciplina. E que também eles, mesmo agora, só conhecem bem profundamente uma única ciência, podendo eles próprios ser bastante diletantes nas outras ciências, i.é, não possuírem aquele saber tão profundo, tão vasto e tão maduro em tantas ciências de diferentes níveis e áreas, que se exige hoje do religioso e sacerdote para ter uma formação intelectual à altura de sua tarefa. Será que um professor de liturgia conhece tão bem a filosofia contemporânea, a ponto de poder se comunicar adequadamente com os homens dos nossos tempos? Ou um professor de filosofia conhece suficientemente a liturgia a ponto de orientar os estudantes nas questões relacionadas à liturgia, em referência a certos fenômenos de relevância filosófica?

c) Ou então parecem ser exigências ditadas por pessoas que nunca tiveram diante de si estudantes de hoje, em concreto. Isso porque as exigências parecem supor, como a coisa mais natural do mundo, que quem se forma é um gênio ou um estudante de pós-graduação já bem adiantado. E, embora se mencione o fenômeno do baixo nível de formação dos candidatos, essas pessoas parecem não levar a sério que, realmente, a grande maioria de quem vem para o estudo da filosofia e da teologia não possui um suficiente preparo para assimilar com efetividade essas ciências, no nível em que se exige da formação intelectual do religioso e sacerdote, hoje. Como exemplo, podemos perguntar: Quantas línguas os candidatos ao estudo filosófico-teológico realmente sabem, para usá-las com bom resultado no estudo?

É certo que tudo isso soa exagerado e não corresponde objetivamente ao que realmente dizem os documentos eclesiásticos. Mas são essas as primeiras impressões que causam às pessoas que têm as mãos na massa da formação intelectual dos jovens religiosos e sacerdotes.

De toda essa perplexidade, pode surgir a tendência de interpretar as recomendações dos documentos eclesiásticos com uma certa atitude de condescendência superior da “sã razão” que diz: deixemos que os documentos eclesiásticos de estilo curial falem “grosso”, coisas, certamente sublimes, profundas e até verdadeiras, mas que passam por cima das cabeças das pessoas que lutam e trabalham corpo a corpo na realidade. Por isso, os interpretamos “cum grano salis” como uma recomendação de tomarmos a sério a formação religioso-cultural e moral, e também teológica dos estudantes, mas no que

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diz respeito à filosofia, às ciências humanas e também à teologia e às especialidades teoréticas especulativas basta que se saibam coisas gerais, informações que um homem culto do povo possui mais ou menos. Pois o que necessitamos são sacerdotes e religiosos santos e práticos, que saibam trabalhar pastoralmente com o povo, e não inteligências superiores etc. etc.

A tendência dessa interpretação é de abaixar as exigências da formação intelectual, buscando a formação de líderes e agentes pastorais, deixando para os teólogos especialistas a formação intelectual cientificamente mais exigente.

À primeira vista, essa tendência parece ser muito realista e corresponder à possibilidade da formação suficiente, possível e necessária para a maioria dos candidatos ao estudo eclesiástico. Como a formação intelectual aqui está mais ou menos no nível e em função da formação de agentes pastorais, os cursos tendem a ser ministrados conjuntamente, tanto aos clérigos como aos leigos seculares. Sem negar as importantes contribuições dos leigos seculares, principalmente no que diz respeito aos desafios e às exigências da vida real do povo, respeitando teorias que tentem mostrar as grandes possibilidades de levantar o nível intelectual da formação clerical com essa “mistura”, na prática, o que acontece é um abaixamento do nível da formação intelectual dos clérigos. Principalmente, se esses cursos são mantidos, sem colocar em crítica bem radical o pragmatismo, o imediatismo e a concepção preconceituosa e ingênua do estudo intelectual e do binômio teoria-prática, existentes nessa tendência.

Em reação contra esse abaixamento do nível de formação intelectual do clero, que por fim acaba prejudicando de uma forma sensível a própria qualidade e a dinâmica da ação pastoral, uma outra tendência saúda como oportuníssimas e necessárias essas exigências dos documentos eclesiásticos a respeito da formação intelectual do clero. E acentua com acribia a urgência e a necessidade de levantar o nível científico da formação intelectual clerical. Mas, por falta de uma análise criticamente mais penetrante das pressuposições das próprias exigências, entende por científico aquele modo de comportamento que costumamos chamar de “cientificista”, no qual, sob a pretensão de cientificidade e objetividade científica, elimina como não científico, não verdadeiro, tudo que não corresponde ao tipo de cientificidade do estilo de ciências positivas naturais, advogando assim, anacronicamente, para a formação intelectual do clero, o ideal do positivismo racionalista e iluminista ingênuo, e do secularismo bitolado. E se, a tudo isso, acrescentarmos as diversas interpretações que existem acerca da própria teologia, e diferentes tipos e escolas de filosofia, acionados no ensino da formação intelectual do clero, a nossa perplexidade diante dessa formação se torna mais perplexa e confusa, a tal ponto de o trabalho de elaborar uma ratio studiorum para toda a Ordem, hoje, parecer não somente uma missão impossível, mas mesmo uma tarefa sem utilidade real. Não é melhor, cada região, cada província, cada país se arranjar como pode, já que existe a ratio studiorum da Igreja para todo o clero? Para nós, não bastaria o que já está feito na ratio formationis de nossa Ordem, só determinar a nossa formação espiritual franciscana, seguindo, no que se refere à formação intelectual, as exigências da ratio studiorum universal, conforme a possibilidade da diocese onde estamos?

2. O que a perplexidade jamais nos deve fazer esquecer

Na perplexidade, o que mais se faz mister é não se deixar confundir pela mesma. É necessário tentar sentir a própria perplexidade como um processo de desmonte de

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nossos pré-conceitos e de nossas opiniões prefixadas e formadas, para nos concentrarmos no essencial, esquecido no fundo do que já estamos fazendo.

Se assim nos concentrarmos em nossa própria perplexidade e examinarmos, com sangue frio, por que estamos sem saber o que fazer com as exigências da Igreja acerca da formação intelectual dos seus futuros colaboradores, descobriremos que estamos perplexos porque achamos praticamente impossível efetivar na realidade essas exigências.

Mas, independentemente da realizabilidade ou não dessas exigências, se nos perguntarmos se elas são boas, válidas em si, verdadeiras e até necessárias, creio que a maioria de nós responderá afirmativamente.

Se este for o caso, devemos seriamente nos questionar se o método de negar a validade de uma exigência, em si válida e verdadeira, por achar que ela não seja realizável empiricamente, é um método adequado de procedura para uma profissão transcendental como a nossa de religiosos e sacerdotes cristãos. Pois, se esse método empirista e positivista é válido, então, o que dizer de todas as exigências cristãs, propostas por Jesus Cristo no Evangelho? Certamente, quando se trata de uma hipótese de trabalho no nível empírico, toda e qualquer experimentação empírica pode questionar e invalidar a hipótese. Mas quando não se trata de empiria nem de uma sua hipótese de trabalho, mas sim exata e precisamente de uma missão, uma incumbência transcendente, i.é, da dimensão anterior, maior e superior a nós, a exigência deve se tornar a nossa medida, e a empiria, o que é questionado por essa exigência a priori. O método adequado aqui não é o de questionar ou pôr em dúvida as exigências. Pelo contrário, essas exigências devem ser assumidas integralmente e compreendidas de maneira a mais clara e mais límpida possível. E se há aqui um questionamento, este deverá examinar se essas exigências são realmente exigências de uma incumbência transcendente ou apenas opiniões e caprichos de um certo sujeito-indivíduo ou grupo. Portanto, aqui o critério de validade ou não validade não pode ser a realizabilidade ou não. O único critério de validade ou não validade aqui numa tal incumbência transcendente só pode ser, se a incumbência é autêntica ou não.

Mas não é absurdo querer assumir exigências irrealizáveis e impossíveis, por mais transcendentes, nobres e sublimes que elas sejam?

A nossa perplexidade diante de exigências de formação clerical impossíveis jamais nos deve fazer esquecer de nunca deixar de questionar esse modo capcioso de perguntar, quando se trata de incumbência transcendente.

Em que consiste o caráter capcioso de um tal tipo de perguntas? Exatamente nisso, que este tipo de perguntas contrabandeia, para dentro da dimensão das exigências transcendentes, uma lógica que não é dela, i.é, a lógica da realidade empírico-ocorrencial de fatos. Aqui, nesta última, o que é um fato impossível é um fato impossível. E, por isso, é contraditório, i.é, absurdo querer que o fato impossível seja um fato possível. Mas, na dimensão das exigências transcendentes, onde não se trata de equacionar fatos empíricos ocorrenciais, mas sim de apelos e desafios de confrontos de liberdades, de embates, diálogos, empenhos e desempenhos de busca no encontro de amor, como é no caso do ser religioso e sacerdote de Jesus Cristo no seu seguimento, mesmo as coisas mais banais do mundo devem-se tornar impossíveis, i.é, dom de uma busca, cuja gratuidade não é mais minha possibilidade, por ser exatamente uma doação

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de amor, diante da qual, a única resposta lógica e adequada a esse modo de ser é igualmente uma doação e um engajamento total, que faz o possível e o impossível, não para merecer ou conquistar a graça, mas para agradecer também gratuitamente à graça, dando tudo de si de graça.

Ora, suponhamos que todos os documentos da Igreja e da Ordem, concernentes à formação intelectual do clero, falem a partir e dentro dessa lógica da dimensão gratuita da incumbência transcendente. Se for assim, então, a condição sine qua non para podermos avaliar e compreender com precisão as exigências impossíveis da formação intelectual do clero, e delas tirar elementos práticos e concretos altamente positivos para compor uma ratio studiorum realmente possível na lógica da dimensão da incumbência transcendente, é assumirmos essas exigências com amor e gratidão de quem está decidido a fazer o possível e o impossível, a fazer do impossível o possível, para agradecer e corresponder a tão grande graça da vocação religioso-sacerdotal.

Mas tudo isso não tem nada a ver com uma recomendação piedosa de ler, com mais respeito e acolhida, as exigências das autoridades eclesiásticas; tem tudo a ver com a precisão e o rigor de empostação, adequada com a realidade toda própria que é a formação intelectual do religioso e sacerdote cristão-católico. Se assim nos empostarmos, com precisão e rigor dimensionais para com as exigências dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, haveremos de descobrir sem mais que as dificuldades intransponíveis, causadas pelas exigências impossíveis desses documentos, as suas alienações e defasagens, mencionas acima, não são outra coisa do que imagens retorcidas e imprecisas, provenientes de uma leitura sob uma impostação apressada e superficial do nosso modo usual positivista e pragmatista de entender a formação religioso-sacerdotal.

3. A precisão na captação do ponto crucial das exigências impossíveis

Isto significa que, nas dificuldades, sim nas impossibilidades de cumprirmos com as exigências de uma formação intelectual do clero, podemos ler elementos positivos para essa mesma formação?

Não propriamente. Mas, então, o que de positivo significam essas impossibilidades? Não significam propriamente nada de positivo. Mas, talvez, sejam antes sintoma. Sintoma de que elas são impossíveis porque não se capta com precisão o verdadeiro significado da tensão que nos causam as exigências da formação intelectual, mencionadas nos documentos eclesiásticos.

Mas como se daria isto, o captar com precisão o verdadeiro significado da tensão que nos causam as exigências da formação intelectual, mencionadas nos documentos eclesiásticos?

Tentemos explicitar esse ponto nevrálgico através de um exemplo concreto.

A exortação apostólica post-sinodal Pastores dabo vobis, de Papa João Paulo II, sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais (L’osservatore Romano, n. 15, 12 abril de 1992), ao falar da formação filosófica dos candidatos, recomenda que, no estudo da filosofia:

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– Leve-se a uma compreensão e interpretação mais profunda da pessoa, da sua liberdade, das suas relações com o mundo e com Deus.

– Exista um nexo entre os argumentos filosóficos e os mistérios da salvação, estudados em teologia, à luz superior da fé.

– Os candidatos ao sacerdócio desenvolvam uma consciência reflexiva da relação constitutiva, existente entre o espírito humano e a verdade, e que, na captação reflexivo-temática desse relacionamento, adquiram um modo de pensar e de compreender a verdade, que não os deixe alienar-se numa situação cultural bastante generalizada, que exalta o subjetivismo como critério e medida da verdade.

– Se adquira um amadurecimento, na busca da verdade, a ponto de a certeza não consistir no asseguramento de si nisso ou naquilo, nesta ideologia, nesta mundividência ou naquela, mas sim no enraizamento numa doação e num engajamento absolutamente confiantes e positivos à verdade, pondo em jogo todo o seu ser por toda a vida.

– O ser intelectual seja experimentado e fomentado como “culto da verdade”, i.é, como uma espécie de veneração amorosa pela verdade, que leve a reconhecer que esta não é criada e medida pelo homem, mas é confiada ao homem, como dom da verdade suprema, Deus.

– O trabalho essencial da filosofia, i.é, o pensar e a busca do sentido transcendente universal e originário do ser seja considerado, amado e assumido como um trabalho de empenho e desempenho de uma das tarefas essenciais do homem, a tarefa de, através da doação da razão no seu máximo empenho, abrir-se à verdade transcendente e insondável, não só do sentido radical da existência, mas até da transcendência de Deus.

Essas recomendações, assim elencadas, uma após a outra, nos causam uma grande tensão. Esta tensão parece vir do fato de sabermos, pela própria experiência do ensino, que é dificílimo, sim impossível alcançar aqui, em dois ou três anos, um resultado que satisfaça, digamos, 40% do que é esperado como normal e necessário nesse documento papal. Na realidade, a tensão não vem do fato de não podermos realizar o que de nós é esperado. A tensão vem da compreensão da filosofia que está pressuposta nesse documento, vem da seriedade com que é considerado o estudo da filosofia. Aqui, nessa compreensão, no estudo da filosofia, não se trata de dar uma informação sobre o estado de cultura humana, chamada filosofia. Não se trata de dar um curso sobre as correntes filosóficas, existentes através da história da cultura humana. Não se trata de dar informações úteis e panorâmicas para poder conversar hoje com pessoas razoavelmente cultas. A filosofia aqui é considerada como um caminho de individuação (C.G. Jung), de personalização, de maturação da existência humana no seu engajamento na busca da verdade. Portanto, também não se trata de ministrar aos candidatos ao sacerdócio uma “filosofia” eclesiástica, uma espécie de doutrina filosófica cristã, montada como prolegômena para os estudos teológicos. Trata-se de realmente levar a sério a experiência radical humana chamada filosofia ou busca da verdade20.

20 Talvez seja nesse sentido que a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis (60/c) mande “cuidar para que a filosofia seja ensinada como uma disciplina distinta e com seu método específico, evitando que seja reduzida a um tratado de problemas e desenvolvida unicamente em função de questões teológicas especiais”.

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Deixando para mais tarde a reflexão mais própria acerca da filosofia na formação intelectual do clero, aqui, foi usado esse exemplo só para dizer que, em todas essas e outras exigências dos documentos eclesiásticos oficiais sobre a formação do clero e do religioso, seja acerca da formação espiritual e formação intelectual, referida ao estudo das ciências, da filosofia e, principalmente da teologia, seja na formação da práxis pastoral, cada vez que sentimos a tensão de impossibilidade de realizar uma dessas exigências, atrás dessa tensão está um esforço, uma preocupação, uma tentativa de, num modo intenso e radicalmente sério e engajado, buscar e conservar consciente e tematicamente a essência, o núcleo fundamental de cada um desses níveis e tipos de estudo.

Isto significa que, quando essas exigências falam do estudo das ciências teológicas (sacra doctrina), das ciências filosóficas (filosofia) e das ciências positivas, que os estudantes devem assimilar em 6 a 7 anos de curso acadêmico superior, mesmo que falem disto ou daquilo, desta disciplina ou daquela, no fundo, estão visando a essência, a dinâmica nuclear dessas ciências, i.é, a ratio fundamentalis, a verdade, o ser dessas ciências. Com outras palavras: a idéia, o eidos, o típico dessas ciências.

Mas não é abstrato, alienado da realidade, falar de idéias, sem levar em conta os fatos? Não é exatamente esse idealismo curial que nos deixa perplexos na formação?

Só que idéia, aqui, não é um conceito, não é uma imagem mental, um retrato abstrato e geral prefixado. Idéia aqui deve ser entendida no seu sentido original como eidos, perfilação essencial, forma substancial, a ratio formalis. Mas que coisa é essa, a ratio formalis, a essência, o núcleo de uma realidade?

Uma ciência não é um ajuntamento esporádico de opiniões particulares, uma ao lado da outra. É, antes, todo um mundo de conhecimentos comprovados ou a serem comprovados, interligados mutuamente entre si, numa rede de implicações, formando um conjunto coeso e conseqüente de fundamentação, a partir de uma intuição originária, que é uma espécie de abertura de horizonte desvelante de um determinado sentido da realidade. Essa intuição originária, que é uma evidência principal, coordenadora e dinamizadora de todo o conjunto e de cada momento do conjunto, se chama idéia, ou ratio formalis, ou a essência, o núcleo de uma realidade.

As exigências dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero estão recomendando que os candidatos sejam formados a partir de e no toque dessas intuições originárias, de sorte que tenham a visão da totalidade a partir do núcleo fundamental de cada ciência. Porque, quem é formado assim, a partir do interior essencial de uma ciência, não se perde nas diversidades das ramificações de conhecimentos cada vez mais variegadas e periféricas, mas, no meio da pluriformidade e pluridimensionalidade complexa e confusa do mundo de hoje, mantém uma unidade dinâmica, simples, profunda e criativa.

Mas, em vez de facilitar a tarefa da formação intelectual dos candidatos ao sacerdócio, uma tal recomendação parece nos impor ainda por cima uma exigência do saber muito mais trabalhosa, dificultando ainda mais o estudo clerical.

E, no entanto, é exatamente essa exigência máxima para nos formarmos intelectualmente com o que há de melhor e mais nuclear das ciências teológicas, filosóficas e humanas que nos tira da perplexidade e confusão. Pois essa exigência

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nos dá a mais clara e a mais adequada orientação de como abordarmos a aprendizagem das ciências nas suas cientificidades. E o que impossibilita a formação intelectual não é a exigência da verdade nem a exigência da fidelidade e limpidez em referência à dimensão e à lógica da verdade, mas, sim, a confusão e extrapolação da impostação da busca.

Portanto, as exigências “impossíveis” dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, que à primeira vista nos causam perplexidade e errância na interpretação, estão dizendo que nós, formandos e formadores, numa e mesma incumbência transcendente de uma vocação exigente, pertencemos a um povo, a uma família que, nesse mundo de hoje ainda conserva em si a grande experiência da dinâmica e força do espírito, e que vê nas ciências uma grandiosa expressão do empenho humano da busca da verdade, cuja exigência, embora muito comprometedora e trabalhosa, pode nos levar cada vez mais a uma maior responsabilização para com a humanidade.

Seria interessante passar, ponto por ponto, todas as exigências “impossíveis” acerca da formação intelectual do clero, assinaladas nos documentos eclesiásticos, como o fizemos rapidamente com as exigências do estudo da filosofia, para perceber como essas “impossibilidades” estão indicando, cada vez, o centro nuclear, o ponto nevrálgico essencial da formação intelectual em suas várias áreas e em seus vários níveis. É, pois, de grande importância, captarmos bem, com precisão, as indicações desses documentos, para que dessas exigências, a nós colocadas pela Igreja, possamos tirar elementos concretos, altamente úteis e práticos para compormos a nossa ratio studiorum.

II - REFLEXÕES ACERCA DE ALGUNS TEMAS REFERENTES À RATIO STUDIORUM

Este trabalho de examinar as exigências “impossíveis” dos documentos eclesiásticos a respeito da formação intelectual do clero, para detectar bem o ponto nevrálgico dessas exigências, supomos como feito. Supondo esse trabalho feito, à luz dessas exigências, vamos a seguir refletir sobre e questionar alguns temas acerca dos estudos, que poderiam ser de alguma forma úteis para a elaboração da ratio studiorum.

1. O trabalho intelectual, a escola

Nas exigências dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do religioso e sacerdote, podemos perceber uma compreensão todo própria do que se deve entender por trabalho intelectual. Tentemos refletir um pouco sobre esse assunto, pois muitas dificuldades encontradas na formação intelectual provêm justamente de uma defasagem na compreensão do que seja intelectual e trabalho.

Usualmente, quando se ouve falar de trabalho intelectual, o entendemos como um tipo de trabalho dentro da classificação do trabalho intelectual (leia-se espiritual) e do trabalho físico (leia-se material). O espiritual é tido, por um lado, como uma dimensão de ordem superior, sublime, nobre e subtil, trans-sensível, portanto livre das vicissitudes das limitações do físico-material, mas não captável, não averiguável, não mensurável pelos sentidos físicos; por outro lado, na medida em que o sensível, o físico, o material começa a se tornar medida e critério da realidade, o espiritual começa a receber a conotação de abstrato, interior, subjetivo, fácil de executar, irreal; ao passo que o físico-material, pesado, duro, difícil, palpável, mensurável, plasticamente averiguável, começa a ter a conotação do real. E essa ambigüidade de significação do espiritual acaba

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passando para a compreensão do trabalho, de tal sorte que, bem no fundo da nossa captação do que seja um trabalho espiritual, jaz latente uma conotação de que ele não é propriamente um trabalho, real, necessário, premente, útil, mas algo como um passatempo nobre e sublime, sim um hobby, um luxo. A partir dessa maneira materialista de considerar o trabalho intelectual, este somente tem sentido e realidade quando está em função de uma realidade físico-material e sensivelmente verificável. Assim, mesmo lá onde se reconhece seu valor, o trabalho intelectual é instrumentalizado, funcionalizado dentro de uma ideologia utilitarista e pragmaticista, em vista de um outro trabalho com as características do verificável, concreto material, do sensível.

Resumindo o que dissemos, de um modo exagerado e caricatural: o trabalho intelectual não é propriamente trabalho, mas sim ócio, ao passo que o trabalho material, este é propriamente trabalho. Esse modo de pensar aparece entre nós clericais sob uma outra denominação, a saber, sob o binômio teórico-prático, estudo e pastoral, especulação e ação etc.

Esse preconceito de fundo, segundo o qual o trabalho intelectual seria ócio, implica uma compreensão do trabalho que aparece na oposição de duas palavras: ócio e negócio. Com outras palavras, para nós, hoje, o trabalho só é trabalho e real se for negócio.

O que significa tudo isso?

O ócio para nós é um “dolce far niente”. Deixando de lado o que um italiano realmente entende por essa expressão, o fenômeno do ócio como um “dolce far niente” parece dizer uma espécie de repouso doce, agradável, de relax, na tranqüilidade de alguém que não tem a necessidade de trabalhar ou que pode gozar de um merecido descanso, depois de um trabalho intenso da tarefa cumprida. O ócio aqui está sendo entendido como descanso, como não-trabalho obrigatório, um estar à vontade, sem a coação de ter que trabalhar. Nessa compreensão do ócio, está pressuposta uma compreensão do trabalho, entendido como imposição, como obrigação, como algo que, se não fosse necessário, não se faria. Portanto, ócio como não-trabalho, ócio como repouso do trabalho, como livre do trabalho, jamais, portanto, com um modo de ser todo próprio do trabalho!

Entretanto, parece que originariamente o ócio indicava não o não-trabalho, mas um modo de ser todo próprio, digamos, mais adequado do ser-trabalho. Essa significação positiva do ócio parece estar insinuada, segundo alguns, na palavra negócio, que significaria então não (neg.) ócio (otium). Negócio seria um modo de ser do trabalho, que se diferencia do modo de ser do trabalho chamado ócio, pelo fato de não possuir aquela postura própria que o ócio tem. Mas em que consiste a diferença?

Existe uma expressão em português que diz: negócio é negócio! Significa, eu faço, eu dou, eu trabalho, mas você faz, dá, trabalha de volta: eu vendo, i.é, eu dou, se você paga: dou para receber. Aqui, a ação está de tal maneira constituída que “nada é de graça”, tudo é em função, no interesse do meu próprio agir. Aqui deve reinar a “justiça” e o “direito”, no sentido de obrigação de ter que equacionar e patrulhar a ação de dar e receber, para que o sistema de dar para receber funcione adequadamente, em justa medida. Por isso, no mundo de negócio, dar de graça acaba virando injustiça, um ato contra o direito. Isso porque pode se transformar numa doação calculada para um lucro de retorno no futuro ou para eliminar um eventual concorrente. Certamente, uma vez estabelecido o sistema de negócio, o nosso senso de justiça deve exigir do sistema que

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respeite e realize a regra de jogo do equacionamento adequado do dar e receber. Assim, esse equacionamento começa a pertencer aos direitos de todos. Mas isto não significa que esse modo de ser do trabalho-negócio, na sua totalidade, i.é, no seu modo de ser, seja o melhor e o mais adequado e o mais próprio para o ser humano.

Existe, porém, um outro modo de ser-trabalho que se chama ócio. Como é esse modo de trabalhar? É um trabalho livre, que deu origem às assim chamadas profissões liberais. Mas livre, não no sentido de estar livre de obrigações e imposições! Portanto, não no sentido de um trabalho que se possa fazer, se quiser, quando e como quiser, conforme meu próprio gosto e capricho. Também aqui no trabalho-ócio, ou melhor, mais do que no negócio, existem obrigações e imposições. Ou, dito de um outro modo, no trabalho-ócio, ele todo, em todos os seus momentos, é obrigação, é imposição. São obrigações e imposições que não vêm de fora, vêm de dentro de mim mesmo, vêm da interioridade, vêm do núcleo daquilo que há de mais nobre, mais caro e melhor de mim mesmo, da vontade boa, forte, clarividente e generosa do querer amar, absolutamente, infinitamente. É, portanto, o trabalho da minha liberdade, o trabalho da liberação da dinâmica do meu amar. Aqui, uma ação assim não está em função de um pagamento, mas sim ao serviço generoso da liberação, cada vez maior e melhor, desse próprio amar. Essa dinâmica da liberação da energia de busca, do querer, do amar, se chama doação, engajamento, dar-se a uma causa, abrir-se a um encontro. E não deve ser jamais superficial e irresponsavelmente confundida com o estar em função de um objetivo ou com um querer à vontade, espontaneamente.

Esse modo do ser-trabalho, que se apresenta sob o termo ócio, hoje muito mal compreendido, é a essência do trabalho criativo. Criativo, não no sentido de produtivo nem no sentido de “novidadeiro”, mas sim no sentido de doar-se para amar, conceber, cuidar, liberar, fazer nascer o que cresce na identidade de si mesmo, i.é: deixar ser. Esse é o modo da ação de Deus, o modo de trabalhar de Deus. É, pois, o modo de agir e trabalhar de uma fonte. Aqui, longe de decair num “dolce far niente”, o trabalho se transforma numa contínua dinâmica, cada vez mais responsável, de empenho generoso, humilde, cuidadoso, apaixonado e cordial para per-fazer a obra. E, se examinarmos bem todos os trabalhos, mesmo os forçados, mas também os trabalhos-negócios, se os examinarmos, lá onde esses trabalhos, apesar de todas as defasagens e desumanidades, trouxeram de alguma forma benefício à humanidade e dignificaram os trabalhadores, descobriremos que esses trabalhos continham no seu seio uma participação no modo de ser do trabalho-ócio.

Mas é de decisiva importância para a formação humana, a fortiori para a formação religiosa e sacerdotal, portanto, também para a nossa formação intelectual, perceber que esse modo de ser do trabalho livre não é algo opcional para nós, no sentido de uma alternativa que posso escolher assumir ou não. Pois, esse modo de ser do trabalho livre é na realidade a fonte da vida e a dinâmica de todos os trabalhos, de tal sorte que, no momento em que secar a fonte desse modo de trabalho livre, o próprio sistema do trabalho-negócio, por mais que se legisle, se patrulhe, não conseguirá mais manter a justeza e o direito do seu equacionamento, transformando-se, no seu todo, num sistema injusto e iníquo, desumano. Não será por isso que, em nossa formação, lá onde todo mundo reivindica seus direitos, e mesmo com toda razão, mas se descuida de cultivar, como tarefa essencial, a generosidade de doação a uma generosa gratuidade no ser e no agir, tudo decai de nível, e as próprias reivindicações dos direitos, mantendo toda sua razão, se transformam em injustiças, agressões indevidas e desuniões?

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Um dos característicos essenciais do trabalho livre é que ele tem um modo de agir intransitivo da repercussão ou reflexão, ao passo que, o modo de agir do trabalho-negócio é transitivo-evasivo. Como é isso? Tentemos visualizar esses modos de agir através de um exemplo.

Um marceneiro de pulso, quando martela, pregando um prego, cada martelada dada com precisão e cuidado sobre a cabeça do prego é uma ação que per-faz a obra, mas, ao mesmo tempo, de cada martelada que dá, recebe na própria ação de dar o aumento do pulso, o crescimento da habilidade de dar marteladas. É uma ação toda própria, sui generis, onde a dinâmica e a energia da ação não se esvaem, não evadem no que ele produz, não transitam através do produto para fora de si, desgastando o doador, mas em cada doação, a própria ação de doar, ao mesmo tempo em que faz crescer a obra, flecte e percute sobre si mesma, volta-se a si, tornando-se cada vez mais, cada vez de novo, dinâmica e energia de doação melhor e maior. É, pois, uma ação que contém em si mesma a fonte viva da própria dinâmica e do vigor, onde não há propriamente o desgaste da estafa, mas sim, crescimento da identidade, no qual, quanto mais se trabalha, mais se ama trabalhar e frutificar. É pois um agir onde ser e agir são ser, em sendo. A esse modo de trabalhar, os antigos chamavam de fazer fruto em si e nos outros (cf. Beato Egídio de Assis, Ditos notáveis. Cap. VII).

Esse modo de ser do agir, do fazer, o per-fazer-se e a formação que cultivavam essa dinâmica laboriosa da criatividade chamavam-se formação para a per-feição. A palavra grega para indicar a ação, assentada nesse modo livre do trabalho intenso, criativo, é skholé, donde deriva a palavra escola, escolástica, escolásticos. Isto significa que a escola era ou devia ser uma instituição onde se cultivava e ensinava esse modo do trabalho livre. Isto significa, por sua vez, que a formação que se deveria dar numa instituição, feita para cultivo, pesquisa e fomento do trabalho, i.é, na escola, quer na escola de teologia, de filosofia, quer na escola de ciências humanas, deveria ser a formação, onde consciente, real e efetivamente se assume como a tarefa principal do ensino o trabalho intenso, laborioso, inteligente de cultivar esse modo de ser do trabalho livre, i.é, responsabilizado na liberdade criativa.

A vivacidade, o vigor, a vitalidade que cresce desse, nesse e como esse modo de ser do trabalho, o seu sopro vital, os antigos chamavam de espírito, espiritual. Assim, só fazemos jus a uma verdadeira formação intelectual, quando a consideramos como o cultivo do trabalho espiritual, como o intenso labor corpo a corpo do espírito, i.é, do trabalho responsável e livre na sua doação ao modo divino de agir do Pai de Jesus Cristo.

Se lermos sem preconceitos os documentos eclesiásticos e da Ordem sobre as exigências para a formação intelectual do religioso e sacerdote, perceberemos que eles nos pedem o cultivo desse modo de trabalhar na formação intelectual, portanto, na teologia, na filosofia e nas ciências humanas, mas também na formação da vida pessoal espiritual e mística e inclusive na formação para a ação pastoral. E se examinarmos as fontes franciscanas e sua tradição, talvez descubramos que, desde Francisco até hoje, de uma forma mais ou menos explícita, os frades tentaram colocar esse modo de trabalhar livre “escolar” como o método único, comum a todos os níveis e todas as dimensões diversificadas da nossa formação franciscana, de tal modo que, independentemente de níveis de instrução, de talento ou de trabalho, todos sem exceção, no trabalho e na profissão que exerciam, deviam crescer no pulso desse modo de ser do trabalho livre “escolar”.

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Acontece, porém, que esse modo de trabalhar livre, criativo e responsável de si, essa labuta corpo a corpo, “escolar”, do espírito no seu vigor é o que de mais exigente e laborioso pode haver em qualquer trabalho, seja do tipo espiritual, intelectual, teorético, místico etc., seja do tipo material, físico, prático, pastoral etc. etc.

Mas todas as pessoas que realmente trabalham com fruto para o bem da humanidade, para Deus, e são realmente engajadas, sabem que é de decisiva importância despertar para a compreensão da vida, como trabalho livre de responsabilização para o ser “escolar” e assumir a sua profissão, os afazeres de todos os seus trabalhos como escola de crescimento para ser verdadeiros operários do espírito.

Todavia, por ser exigente exatamente no ponto onde entra em pleno jogo o engajamento total e cotidiano do nosso querer e da responsabilidade de nossa liberdade, esse modo de trabalhar esse tipo de formação é o que mais sofre de discriminação, rejeição, preconceitos e incompreensão, tanto da parte dos formadores como dos formandos. Por isso, seria muito útil fazer um estudo sobre esse modo de ser do trabalho livre, bem mais claro e competente do que esta reflexão, tematizando bem as suas características, para então na ratio studiorum colocar, como método próprio, esse modo de ser do trabalho, que é então assumido oficialmente pela Ordem como o típico franciscano da nossa formação intelectual.

2. Linha de informação e linha de reflexão, um equívoco da classificação

Quando queremos montar o programa de um curso de estudo, costumamos usar certas classificações. Essas podem ser muito úteis para pôr em ordem e organizar as diversas disciplinas e os elementos que perfazem o conjunto do curso. Só que, se não as usarmos com um bom conhecimento das pressuposições inerentes às mesmas classificações, elas nos podem induzir a equívocos que nos podem orientar para a errância, impedindo de ver a coisa ela mesma.

Uma dessas classificações é a da linha de informação e a linha de reflexão.

Deixando de lado detalhes e nuances que poderiam estar implicadas na diferenciação da compreensão do que seja informação e reflexão, essa classificação parece estar indicando, grosso modo, duas maneiras de ministrar um ensino: uma, acentuando os dados objetivos, verificáveis e verificados, científicos (informação), e a outra, acentuando mais a captação interiorizada, subjetiva de aprofundamento do sentido espiritual (reflexão).

Repetindo: a linha de informação é objetiva, informa sobre o estado de coisas, como elas são; é, portanto, real, factual, e aqui não há especulação nem opiniões, não há pontos de vistas nem ideologias, pois contra os fatos não há argumentos. Mas... como se informa sobre o estado de coisas que não são fatos? Que não são verificáveis? Como se informa objetivamente sobre opiniões subjetivas, onde cada qual entende os termos subjetivamente?... E a linha de reflexão não informa, mas reflete..., reflete o quê? Como? E o que é refletir? É algo subjetivo? Ou diz respeito a uma realidade também “objetiva” e “real”, mas de uma outra ordem?

Aqui, começamos a perceber que essa classificação não é nada clara e determinada em suas pressuposições.

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E, no entanto, apesar dessa falta de clareza e determinação sobre seus termos principais da informação e reflexão, essa classificação nos induz a dizermos e recomendarmos como a coisa mais clara, óbvia e certa do mundo: só reflexão não basta, é necessário primeiro informar e averiguar os fatos reais e objetivos e basear a reflexão sobre esses dados e fatos, para que a reflexão não se torne algo bitoladamente subjetivo, particular e mera opinião. Por isso, num bom curso sempre devemos equilibrar e dosar bem informação e reflexão etc. etc. E, sem o perceber, nessa classificação, sobre as disciplinas a serem estudadas, já empostamos uma avaliação, na qual dizemos: o que é verificável e mensurável, ao modo de ser da objetividade (... das ciências positivas), tem a primazia de certeza, portanto, da verdade; isso deve constituir pois a base sobre a qual se devem acionar as disciplinas que têm o caráter de especulação e de aprofundamento místico espiritual etc... E com essa opinião óbvia do bom equilíbrio entre a informação e a reflexão, entre o objetivo e o subjetivo, empurramos com a barriga a nossa formação intelectual, sem sequer entrarmos em crise, onde realmente seríamos obrigados a nos questionar se estamos cuidando de uma busca mais engajada da verdade e da coisa ela mesma das disciplinas, que ensinamos e aprendemos.

Para ilustrar isso, proponhamos um exemplo tirado do ensino da filosofia. Esse exemplo, aliás, pode muito bem ser usado também para a teologia e outras ciências como a psicologia, a sociologia etc.

No currículo de ensino da filosofia para a formação intelectual temos, p. ex., a disciplina de história da filosofia. Na práxis, via de regra essa disciplina de história da filosofia é ministrada como informação. Temos assim informações da história da filosofia antiga, da patrística, da Idade Média, da Renascença, da filosofia moderna e contemporânea. Em alguns cursos se dão informações até sobre as pretensas filosofias da antiga cultura egípcia, babilônica, da Índia, da China, do Japão etc. São informações sobre informações sobre centenas de pensadores, com suas obras e resumo de suas doutrinas. A função dessa disciplina seria dar aos estudantes uma visão panorâmica, geral e histórica sobre o fato cultural chamado filosofia. É que, assim como existem fatos culturais chamados literatura, arte, ciência, técnica, religião, ao lado desses fatos, existe também o fato cultural chamado filosofia. E pertence a uma boa formação intelectual ter informações sobre esses fatos culturais. Ou é importante ter essa visão panorâmica geral de toda a filosofia, através da evolução da história, antes de o estudante se especializar num determinado pensador, para situá-lo dentro do grande conjunto etc. etc., para que não fique só com o pensamento de um só autor, como acontecia, por exemplo, no antigo ensino clerical, onde praticamente só se estudava S. Tomas de Aquino ou a escolástica etc. O esquema da classificação “informação-reflexão” reza portanto que: antes de refletirmos filosoficamente, é necessário ter informações objetivas, gerais, do conjunto dos fatos culturais da filosofia.

Só que, se abrirmos os livros da história da filosofia, as assim chamadas informações objetivas desses fatos culturais denominados filosofia – fora as datas da biografia dos pensadores, do surgimento de suas obras e dos nomes dos títulos de suas obras –, não são nada objetivas. Não são propriamente informações, mas opiniões, pontos de vista do autor do livro da história da filosofia ou da escola, a que se filia o autor. Esse autor usa desses pretensos fatos culturais para expressar o que ele subjetivamente pensa desse ou daquele pensador, ou melhor, o que ele entendeu desse ou daquele pensador. E, ao fazer isso, o autor da história da filosofia, seguindo o sistema e a terminologia da historiografia, classifica os pensadores de diferentes épocas em infindos – “ismos”, como p. ex., idealismo, realismo, essencialismo, voluntarismo, vitalismo, sensualismo,

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fenomenalismo, existencialismo etc. Todos esses “ismos”, que então circulam como moedas válidas de informação objetiva sobre a realidade do fato cultural filosofia, se analisados no que de essencial e filosoficamente querem dizer, se desmascaram como lugares comuns, colocações, fixações pouco refletidas, de um valor filosófico quase nulo. E se, ainda por cima, examinarmos a compreensão pressuposta nesses livros de história da filosofia, acerca da história, da época, do tempo, das interrelações entre as épocas etc. etc., descobriremos que essa precompreensão se filia a diferentes tipos de compreensões ideológicas, como p. ex., a do evolucionismo, materialismo, marxismo, catolicismo etc.

Assim, de tudo isso, se levanta uma suspeita: o que se pretende como informação objetiva não será antes um grande diletantismo, no que se refere à verdadeira reflexão filosófica, uma total ausência da real experiência da coisa da filosofia, que, por ignorância, opera em preconceitos, tanto acerca da informação filosófica como também acerca da reflexão, e pretende combater ou complementar uma reflexão, imaginada como filosófica, usando um modelo de objetividade, que é adequado talvez a certas ciências naturais, mas de modo algum às ciências humanas, e muito menos à filosofia, à teologia e à espiritualidade?

Para poder ser história da filosofia, a história da filosofia não se deve deixar guiar, no seu modo de ser, pelo modo de ser da filosofia? Com outras palavras, para poder dar informações reais e adequadas acerca da filosofia, na sua história, já não se deve estar bastante familiarizado com a reflexão filosófica, do que seja a essência da história? Do contrário, sob o pretexto de fornecer dados objetivos históricos e informações básicas para a filosofia, a história da filosofia reduz a filosofia, sem mais nem menos, ao fato cultural; projeta assim sobre a realidade história e filosofia um ponto de vista historiográfico, proclamando a historiografia como critério da objetividade, sim da cientificidade de uma ciência de pesquisas dos princípios do sentido do ser, cujo modo de ser, cuja cientificidade tem profundidade, envergadura e complexidade que ultrapassam a cientificidade da ciência positiva chamada historiografia. Essa maneira de abordagem do ensino de uma ciência é um “pecado grave” da pesquisa e se chama extrapolação. É como um químico achar que a fórmula química de uma tinta é a base objetiva e real para avaliar artisticamente o uso da cor, feito por um gênio de pintura como Van Gogh, ou um pesquisador de endocrinologia achar que o amor materno como fenômeno humano de encontro não é outra coisa do que reações hormonais. Certamente que há um relacionamento entre os diversos tipos de ciências, mas esse relacionamento, p. ex., entre historiografia e filosofia é de um tipo inteiramente diferente do que o de linhas (!) ou de mútua complementação. O problema é de fundamentação. Na “ciência” que tem o modo de ser da filosofia, o mínimo de informação talvez já seja reflexão, o que aliás não é nenhuma interiorização subjetiva do dado objetivo, mas sim o pulso que segura e mantém firme, na sua limpidez, a ratio, a intuição de base que faz com que uma determinada informação seja informação verdadeira e real daquela ciência e não uma outra coisa qualquer. Pode ser que na filosofia a informação que não seja já reflexão filosófica não seja propriamente informação. Toda e qualquer informação filosófica já é em si reflexão.

De tudo isso, talvez possamos tirar a seguinte conclusão: numa reunião, onde se quer compor uma ratio studiorum de formação, onde entram em jogo diferentes tipos de ciências, é necessário deixar de lado ou usar com muito critério uma classificação como esta da linha de informação, da linha de reflexão e similares. É necessário conscientizar-nos de uma forma muito mais nítida e séria de que cada tipo de saber tem a sua própria

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maneira de se informar e de refletir, que cada tipo de saber tem o seu método, a sua própria compreensão do que seja história, método, especulação, reflexão, informação etc. Que a cientificidade de um ensino intelectual não pode ser garantida, amontoando ou aumentando informações, por mais importantes e atuais que elas seja, sem ter a habilidade de pegar no pulso de cada tipo de saber e captar com precisão e rigor a sua ratio formalis, i.é, a lógica interna, a partir e dentro da qual uma ciência se estrutura como um todo.

A recomendação dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, de que no método e na abordagem se mantenham as diferenças de cada disciplina, não poderia ser interpretada como uma recomendação de não encaixar as disciplinas nessas classificações óbvias, provenientes da pouca reflexão ou de interesses e mentalidades alheios à formação intelectual, deixando que cada ciência dite as suas regras de jogo, para então examiná-las em referência a sua autenticidade, se realmente estão no pulso da verdadeira cientificidade?

3. Qualificação do intelecto como critério da formação intelectual e não a quantificação do saber informativo

Para a elaboração de uma ratio studiorum, é necessário compreender bem o que se entende por formação intelectual. Isso principalmente porque a formação intelectual é entendida hoje como saber a serviço do agenciamento da certeza do auto-asseguramento do poder: saber é poder. Saber é auto-asseguramento do poder, no sentido do projeto da interpelação produtiva, onde saber significa obter o máximo de informação acerca de tudo para poder organizar, controlar, prever, racionalizar e funcionalizar, em vista do total domínio da realidade. Com isso, busca-se eliminar todo e qualquer imprevisto e falha nesse domínio, projetado, controlado e funcionalizado como prolongamento de nós mesmos.

Esse modo de processar o saber humano tem por conseqüência que o saber que se estende sobre tudo como informação em função do domínio da realidade uniformiza e racionaliza todo e qualquer saber, reduzindo as diferenças qualitativas de outros saberes a meras funções uniformizadas e neutralizadas da certeza do poder. Assim, a teologia, a filosofia, a arte e a religião só valem como saber se de alguma forma estão em função da atuação sobre a realidade.

Também a compreensão da nossa formação intelectual pode estar influenciada por uma tal colocação dominante acerca do saber. Isto aparece quando, em nosso curso regular da formação intelectual ministrada em 6 ou 7 anos, na crescente preocupação e cobrança de formar os candidatos para que na ação pastoral estejam habilitados a funcionar com eficiência em quaisquer eventualidades, tenta-se introduzir em e acrescentar ao curso regular, já sobrecarregado de disciplinas obrigatórias, mais cursos de novidades, tidos como necessários e atuais. Tudo isso leva a produzir um tipo de intelectualidade que fala de tudo, sabe tudo, tudo classifica dentro de um determinado esquema dogmatizado e pré-fabricado, com a segurança presunçosa de alguém que paira por cima de toda a situação e tem a solução panorâmica para toda e qualquer eventualidade. Isto, quando se está bem adestrado e funcionalizado no saber que é poder. E, quando não se está bem adestrado, por falta de tempo ou de talento, surge um tipo de intelectual que chuta, é inseguro, mas camufla essa insegurança num criticismo céptico, cínico, vazio, feito de lugares comuns e slogans. Assim, numa tal formação intelectual começa a se estender sempre mais um grande deserto de vazio, de superficialidade, slogans, lugares comuns e

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generalidades, racionalizações, que conduzem a pessoa à indiferença e ao esclerozamento em referência à busca da verdade.

Para fazer frente a uma tal despersonalização e desertificação intelectual, tenta-se reagir na formação, negando o intelecto, a razão, denunciando superficialmente a supervalorização do intelecto e da razão, sendo necessário, assim, acentuar e valorizar também o coração, a vivência... Luta-se portanto contra a superpotência da razão, afirmando a força irracional do coração. E não se percebe que, nessa maneira superficial de compreender o intelecto, a razão e o coração, a vivência e o sentimento, numa oposição do racional e do irracional, se faz o jogo da própria racionalização e funcionalização do poder. Com isso, a própria reação e a tentativa de melhorar contribuem para desedificar cada vez mais a alma do saber.

A quantificação do saber como função do poder teme e rejeita violentamente um modo de saber a realidade que se sabe e se sente pobre, finito e vulnerável diante da realidade. Rejeita-o e o combate como um não saber que prejudica e ameaça o saber. Não percebe que nesse não-saber se esconde uma qualidade que constitui a essência do intelecto humano, portanto, da formação intelectual.

Esse modo de ser do cultivo do saber como poder é o que Pascal denominou de espírito de geometria, diferenciando-o do espírito de fineza. É o tipo de onisciência inane com que a serpente no paraíso seduziu o homem: sereis como deuses!

A desertificação da alma do saber faz desaparecer o nível de água viva da inteligência, que brota das profundezas abissais da Docta ignorantia (Nicolau de Cusa) do espírito, desqualificando o intelecto da sua mais autêntica e radical intelectualidade.

Costumamos definir o intelecto como uma das faculdades do homem, ao lado da vontade e do sentimento. Essa definição vem de um modelo da explicação do homem denominada substancialista-ocorrencial, que concebe o homem como uma “coisa”-núcleo, ocorrente ali, em si, ao redor da qual estão diferentes propriedades, algumas acidentais e outras essenciais. As faculdades intelecto, vontade e sentimento seriam propriedades essenciais do homem, faculdades que ele então põe em acionamento. Esse modelo, no entanto, não ajuda muito para mostrar a própria experiência concreta do que seja o intelecto, a vontade e o sentimento, como fenômeno da existência humana. Talvez seja muito mais adequado e próximo à própria experiência dizer que intelecto, vontade e sentimento não são faculdades que o homem tem; são o modo de ser da própria existência humana, que deve ser cada vez assumido com a responsabilidade de ter que ser.

Como é o modo de ser da existência humana chamado intelecto?

Talvez a própria palavra intelecto possa nos ajudar a compreender melhor esse modo de ser, o qual queremos formar na formação intelectual franciscana.

Intelecto (intellectus, em latim) vem do verbo latino intellego (-ligo), -exi, -ectum, -ere, que significa usualmente compreender, perceber, ter evidência, “inteligir”. Inteligente é o que tem evidência, compreensão, o entendido numa coisa. A palavra intelligo é composta de inter e lego e literalmente significaria escolho entre. A ação de escolher, entre duas ou mais possibilidades, uma que seja a verdadeira se chama julgar, o juízo. Para julgar, temos um quadro de referência que serve de medida, conforme o qual

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julgamos. Se assim o entendo, então o escolher entre, inter-legere, é um saber de antemão conforme um quadro de referência “certo e errado”, i.é, um saber do tipo poder, acima mencionado.

Mas, talvez, possamos entender o inter-legere de modo um pouco diferente. Legere, que significa escolher, significa também ler (lesen, em alemão) e insinua uma significação de colher (auslesen, a colheita escolhida), ajuntar, implícita na palavra grega légein, da qual deriva legere. O ajuntar, pois, de uma colheita não é bem o escolher entre as possibilidades, distinguindo o certo e o errado, o bem e o mal, embora se possa realizar a colheita como um julgamento. É que o melhor de uma colheita é o dom, a graça do empenho da lavoura. O céu e a terra, e no meio, entre eles, o homem, se debruçando no desempenho diligente de uma acolhida, cuida, espera o dom do nascer, crescer, florir e sazonar da vida de uma semente, que se oferece como o melhor de todos esses empenhos do céu e da terra e do homem no meio, entre o céu e a terra. Aqui, ninguém é dono, proprietário, o julgador, o superior; todos e tudo é a acolhida atenta, empenhada, dando-se o melhor de si mesmo, mas na gratuidade, na ausculta e grata recepção de um mistério anterior e maior do que todos os nossos empenhos.

Essa disponibilidade receptiva (não passiva!), que é um esforço ativo, diligente e total para manter-se na limpidez e afinação da grata espera do inesperado da vida do mistério é o legere, o légein: o colher. Esse modo de ser de modo algum é “passivo”, no sentido de indiferença vazia. Ele é antes a plenitude da disponibilidade de receber, acolher, obedecer ao que nos vem ao encontro no inesperado. No inesperado do que ultrapassa todas as nossas possibilidades. Essa espera acolhedora da impossibilidade, que coloca todas as nossas possibilidades na disponibilidade dessa espera, é o modo de ser que podemos experimentar, talvez de um modo bastante apagado, mas autenticamente, quando temos que ler entre as linhas dos acontecimentos.

Entre, inter aqui não significa “entre” isto ou aquilo. Entre, aqui, é o permeio, o medium. Nas vicissitudes da nossa vida, em nos empenhando nisso ou naquilo, em projetando os nossos programas, a partir do que podemos, sabemos e queremos, vamos constituindo, como todo, um mundo de valores, significações, volições, compreensões, ideais e possibilidades. Essa nossa atividade de nos firmar, nos projetar, nos fazer, no entanto, está continuamente convocada a ler uma orientação entre as linhas desses afazeres.

Essa orientação não se dirige à constituição desse nosso mundo, mas nos faz auscultar e observar atentamente, no permeio dessas coisas já constituídas como nosso ser, uma doação, que nos vem ao encontro e nos afeta, como mistério de um dom inteiramente gratuito, que nos possibilita e sustenta todo o nosso empenho. Quem inclina todo o empenho do seu ser a essa orientação se torna um inter-leto, um modo de ser feito todo ouvido de acolhida e obediência ao toque da graça, que lhe vem ao encontro, vitalizando-o a partir de uma realidade anterior, maior, mais radical do que todo o seu ser. Essa “passividade ativa de ausculta receptiva” é expressa no verbo alemão vernehmen, donde vem a palavra Vernunft, que se traduz usualmente por razão!

Essa viragem na dinamização do ser, que no empenho da nossa busca no permeio de nossos próprios projetos e esforços começa a tornar-se receptiva e de uma dinâmica inesperada, inteiramente nova e radical, é o que dá qualificação ao nosso saber como intelecto ou intelectual.

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No medium do assanhamento do saber que tende ao poder, formar-nos para essa viragem para a qualificação de ler entre as linhas, formar-se para tornar-se todo um corpo de recepção do inesperado, e, sem deixar de buscar o saber, tornar-se e conservar-se puramente pobre, finito, simples como acolhida da impossibilidade de sermos a partir de nós mesmos, esse é o grande desafio da formação intelectual. Isso não se obtém aumentando a extensão da informação do saber, mas, na busca do saber, procurando no seio ou na raiz desse próprio saber uma profundidade qualitativa de um outro sopro vital.

Ao estruturar uma ratio studiorum, ao exigir cientificidade e rigor na busca do saber na formação intelectual, é necessário dar grande prioridade a essa qualificação inter-lectual que os antigos chamavam de espiritual ou de espírito. Mas espiritual aqui não é algo ao lado ou além do saber intelectual ou racional, algo “místico”, cheio de unção e sentimento, mas a qualificação, a quinta essência da própria razão, do próprio saber, sem a qual todo o saber decai para o saber-poder, cuja dinâmica, no fundo é uma inflação, onde o saber perdeu o contacto radical com a possibilidade verdadeira do seu ser. Por isso, o critério da formação intelectual na ratio studiorum deveria ser essa qualificação do inter-lecto e não a quantificação do saber informativo.

III - A ESTRUTURAÇÃO DA NOSSA FORMAÇÃO INTELECTUAL EM TRÊS NÍVEIS DE CIÊNCIAS: CIÊNCIAS POSITIVAS, FILOSOFIA E TEOLOGIA

A palavra ciência aqui não está sendo usada no sentido unívoco. Tanto a teologia como a filosofia e as ciências positivas devem ter sua maneira própria de entender sua cientificidade. Por isso mesmo, trata-se de três níveis de ciências, diferentes, que entram em jogo, na nossa formação intelectual. É de importância muito grande, de alguma forma, tentar ver o modo de ser de cada nível de ciências e seu relacionamento mútuo.

Deve-se salientar logo, porém, que esse assunto é muito controvertido. Isso porque são muitos e bastante distintos os posicionamentos em relação à definição do que seja a essência da teologia, da filosofia e das ciências positivas. Em segundo lugar, a busca pela essência da ciência é uma questão aberta, dificílima de ser abordada e orientada na direção de alcançar clareza e unanimidade de colocação. E, no entanto, apesar dessas dificuldades, é necessário, ao menos de uma forma provisória e muito imperfeita, refletir acerca desse assunto. Em todo caso, não podemos simplesmente permanecer na ingenuidade irresponsável de acreditar que, ajuntando os três níveis de ciências, um ao lado do outra, damos uma formação sistemática aos estudantes.

1. Ciência e ciências

Ao referir-se à formação intelectual do clero, tanto no seu modo de falar, como no uso explícito da palavra ciência, os documentos eclesiásticos mostram claramente que entendem tanto a teologia como a filosofia como ciências. Deixando de lado por ora o questionamento sobre o que se deve entender aqui por ciência, é importante atender bem a esse modo de falar, pois ele nos indica a direção para a qual devemos orientar a nossa reflexão. E nos convida a pormos de lado uma compreensão usual ingênua do relacionamento entre a teologia e a filosofia (e as ciências positivas).

Usualmente, consideramos a teologia como uma mundividência proveniente da fé, e a filosofia como uma mundividência proveniente da razão. Como “sabemos” que tanto a

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ordem sobre-natural como a natural vem de Deus, portanto, tanto a fé como a razão vêm de um e mesmo Criador, não temos nenhum problema em dizer que a teologia e a filosofia (e as ciências positivas) se completam mutuamente.

Essa maneira de empostar o relacionamento entre teologia e filosofia encontra hoje uma resistência muito grande da parte da consciência crítica científica moderna, que vê numa tal explicação um círculo vicioso. É que, essa maneira de raciocinar o relacionamento entre a fé e razão já é um produto da maneira de pensar da crença em um Deus Criador, portanto de uma crença teológica. Se lhe for objetado que não se trata de crença, mas de um conhecimento demonstrável pela razão, através dos argumentos da disciplina filosófica chamada na filosofia de teodicéia, a consciência moderna científica de hoje logo responderá que essa é na realidade uma “filosofia” (leia-se mundividência) cristã, portanto uma parte da teologia. E se insistirmos afirmando que se trata de um conhecimento real, objetivo, racional, a consciência moderna nos vai perguntar: que conhecimento real, objetivo e racional é esse, que só é tido como conhecimento certo pelos que de alguma forma crêem numa religião, e que fé é essa que no fundo necessita da razão para confirmar sua crença? E, se insistirmos ainda explicando que a razão e a fé não se contradizem, mas uma supre a outra ou se complementam mutuamente, a consciência científica de hoje vai nos dizer que a nossa fala é muito ambígua, uma vez entendendo razão de um jeito, outra vez de outro jeito, e que a própria compreensão de fé não está clara, e, acima de tudo, que a nossa compreensão de ciência está inteiramente alienada da compreensão hodierna de ciência.

E, realmente, aqui reina uma confusão entre nós. Independentemente de quem tem razão, se a nossa concepção usual ou a consciência moderna, no nosso modo usual e para nós tão óbvio de explicar o relacionamento entre teologia e filosofia (e ciências positivas) entram em jogo vários níveis de colocação, dos quais não nos damos conta. Tentemos enumerar algumas dessas colocações:

a) Filosofia como filosofia perene, i.é, um conjunto de doutrinas objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, homem e universo, que podem ser alcançadas pela razão natural, que estão depositadas como doutrinas filosóficas na assim chamada filosofia cristã e que constituem o prolegômena à teologia cristã católica: filosofia cristã como ciência racional.

b) Filosofias que não pertencem à filosofia cristã, p. ex., as filosofias modernas, contemporâneas, antigo-pagãs, como doutrinas não ou menos verdadeiras, como opiniões não objetivas, i.é, subjetivas, não perenes, i.é, relativas, históricas, com outras palavras: filosofias não-cristãs como mundividências.

c) Ciências positivas como conjunto de conhecimentos certos do tipo da filosofia perene, objetivos, verdadeiros, não subjetivo-relativos, embora num estado imperfeito e em referência a objetos de níveis diferentes aos da filosofia perene, portanto: ciências positivas como ciência racional.

d) Teologia como um conjunto de doutrinas objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, e a partir dele, sobre o homem e o mundo, num nível de realidade sobre-natural, não mais alcançáveis pela razão natural, mas somente pela fé-revelação. A fé como a possibilidade de compreensão que ultrapassa toda a possibilidade da razão; a fé como uma razão elevada ao nível sobre-natural, portanto: teologia como ciência sobre-racional.

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e) A fé como experiência pessoal, vivencial, convicção, atitude de vida, portanto: a fé como mundividência.

Essas colocações, aqui expostas de uma forma simplificada e semi-caricatural, parecem não ser mais a nossa posição. Tudo isso parece ter sido tirado de um manual de teologia tradicionalista, antes do Vaticano II. No entanto, seria interessante examinar se nas colocações fundamentais, fora os detalhes e as nuances, pensamos hoje diferentemente quando, p. ex., montamos um programa de formação intelectual para o clero.

Nessas colocações, é interessante observar que tanto a teologia como a filosofia perene cristã e as ciências positivas são entendidas como doutrinas objetivas, perenes e verdadeiras do tipo ciência racional, embora de níveis e dimensões diferentes, ao passo que as demais filosofias e também as outras religiões são tidas como mundividências. E a fé enquanto convicção, vivência e atitude de vida, também de alguma forma é tida como mundividência.

Aqui parece haver um entrecruzamento de duas concepções completamente diferentes:

a) De um lado, uma concepção do saber e da razão como possibilidade essencial dada ao homem por Deus, em cujo exercício adequado o homem pode e deve adquirir conhecimentos certos, objetivos e verdadeiros acerca da realidade, até alcançar o limite da sua possibilidade, e então através da fé ser levado a adquirir conhecimentos certos, verdadeiros acerca da realidade, cujo conhecimento ultrapassa toda e qualquer possibilidade humana. Esses diferentes níveis de conhecimento certo, objetivo, verdadeiro e essencial aparecem gradualmente como ciências, filosofia e teologia, formando um edifício hierarquizado do saber racional, i.é, verdadeiro, essencial, substancial, que obriga sempre a todos, em todos os tempos. Nesse modo de conceber a teologia, a filosofia e as ciências como um grande sistema hierárquico de saber racional e sobre-racional, onde o sobre-racional é o ponto de referência, o móvel, o princípio coordenador de todo o sistema do saber, podemos talvez vislumbrar, ainda que de uma forma um tanto defasada, uma idéia grandiosa de mathesis universalis teológica, síntese tentada pelos melhores espíritos da clássica teologia escolástica medieval. Trata-se pois de uma concepção teológica do universo, do homem e da divindade, i.é, da totalidade do ser.

Hoje, esta concepção é tida como tradicionalista, como um resto de teologia medieval. Certamente, na sua formulação e em diversas precompreensões operantes nessa síntese, ela é medieval e tradicionalista. No entanto, o que chamamos de tradicionalista, hoje, não coincide com o medieval nem com a escolástica medieval. A teologia tradicionalista é uma defasagem e uma concepção moderna equivocada, por uma interpretação mal feita da escolástica medieval. Nessa teologia tradicionalista, usando-se os mesmos termos usados na escolástica medieval, estão contrabandeadas inúmeras pressuposições da filosofia moderna, sem no entanto manter o grau de rigor do questionamento que ela possui, e sem conseguir captar a riqueza e a vitalidade do ser da Idade Média, transformando o ingente e profundo empenho medieval de busca especulativa da verdade numa espécie de doutrinas ideologizadas nem antigas e nem modernas.

Por isso, em nossa formação intelectual franciscana, onde estudamos intensamente os nossos autores clássicos franciscanos medievais, quer na filosofia quer na teologia, seria muito importante desvencilhar-nos do envolvimento com a interpretação travestida

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tradicionalista acerca desses grandes autores clássicos, para podermos vislumbrar uma idéia de mathesis universalis teológica de uma envergadura e profundidade talvez ainda muito mal conhecida. E se fizermos adequadamente e com competência esse trabalho, talvez surja em nós uma pergunta: será que nessa síntese teológica, tentada pelos grandes pensadores místicos medievais, como um saber universal perene, cuja consecução permaneceu imperfeita, defasada e fragmentária, e da qual hoje temos apenas um eco longínquo, cheio de interferências de nossas interpretações equivocadas, não estaria oculta uma idéia de como deve ser a ciência da fé, na sua encarnarão, que penetra todas as camadas do ser, desde a divindade até o minúsculo pó do excremento da terra, envolvendo cada ente na bondade difusiva do amor divino? E talvez uma tal concepção e um tal programa do saber universal já não fossem mais medievais nem modernos e nem antigos, não fossem europeus, africanos, asiáticos nem sul-americanos nem progressistas nem tradicionalistas nem “teológicos” nem “filosóficos”, não fossem científicos nem simples, mas simples e concretamente saber intelectual universal do espírito cristão?

b) De um outro lado, porém, juntamente com essa concepção teológica, acima mencionada, interpretada usualmente no nível de uma teologia manualística tradicionalista, temos, dentro dessa mesma teologia tradicionalista, a concepção de que as filosofias que não pertencem a essa síntese teológica ou que não se entendem como um momento desse sistema, não são ciências mas apenas mundividências. E juntamente com tudo isso, dentro dessa mesma concepção tradicionalista, se considera também a fé como atitude pessoal, convicção religiosa etc. etc., i.é, também como mundividência.

Com outras palavras, examinando o a) e o b) podemos concluir que, aqui, na maneira como operamos a nossa formação intelectual nos nossos programas de ensino de teologia-filosofia-ciências positivas, está atuando uma pressuposição de que tanto as filosofias (i.é, filosofia) como a teologia (como síntese teológica no estilo escolástico medieval) são mundividências, e somente as ciências positivas são ciência. Ao lado dessa há ainda outra pressuposição, mencionada no ponto a), a saber, somente a grande síntese teológica é a ciência como tal.

A nossa confusão usual consiste em não percebermos que estamos operando com duas concepções do saber, do racional, i.é, da ciência, inteiramente distintas. Por não percebermos isso, não pensamos muito ao falarmos da ciência. Assim, estando dentro de duas concepções, em operando nelas, não assumimos tematicamente nem a concepção a), pois dizemos que é uma ideologia tradicionalista do passado, nem a b), pois a consideramos como decadência do relativismo historicista moderno, apesar de acharmos que a b) é o moderno atualizado e a a) o que todos devem aceitar como o fundamento da identidade cristã.

Por isso, quando examinamos os documentos eclesiásticos que falam na e a partir da concepção a), os achamos um tanto ou bastante tradicionalistas. E, no entanto, como já foi rapidamente mencionado acima, atrás dessa impressão, que aliás pode não ser somente impressão, pode estar escondida e pulsando uma autocompreensão interessantíssima e grandiosa de como deve ser uma formação intelectual para quem a fé de/em Jesus Cristo e seu Evangelho é tudo, o princípio, o meio e o fim da sua existência.

Deixando para mais tarde os detalhes desse assunto, aqui somente assinalemos que a compreensão de ciência presente nesses documentos, tanto em referência à filosofia

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como em referência às ciências positivas, já está subsumida, unificada e coordenada a partir da teologia e da autocompreensão da teologia. Mas, nessa autocompreensão, a pressuposição que se tem da ciência, seja como for o conteúdo, não coincide com a compreensão que temos hoje de ciência, a partir das ciências positivas. Isto não significa, porém, que essa autocompreensão da teologia acima mencionada como a) se compreenda como mundividência, portanto que pertença ao outro extremo do binômio ciência-mundividência.

De tudo isso podemos tirar a seguinte conclusão:

Em nossa formação intelectual, como é exigida nos documentos eclesiásticos, o estudo da teologia (subsumindo filosofia e algumas ciências positivas) não é um estudo dentro e a partir da mundividência. É antes um estudo da ciência sui generis. Mas não de uma ciência no sentido simplesmente moderno da ciência.

Assim, surge um grande problema e uma dificuldade incômoda para o planejamento da ratio studiorum. Isso porque, se se exige um estudo dentro e a partir de um sistema grandioso da teologia, como acima foi mencionado no ponto a), cuja pressuposição na compreensão da ciência é toda própria, e no entanto, se os mesmos documentos eclesiásticos querem igualmente que o estudo da filosofia e das ciências, dentro desse sistema teológico, seja feito sem camuflar nem apagar as diferenças do ser e do método dessas ciências, como colocar-se com honestidade intelectual e científica diante das exigências de cientificidade, tanto da teologia como da filosofia e das ciências positivas? Mas para de alguma forma encaminhar uma resposta a essa dificuldade, devemos examinar melhor como se deve entender as ciências e a filosofia, a partir delas mesmas, hoje, e não já a partir da teologia.

2. Estudo e doutrinação

Nessa compreensão do que seja ciência, devemos distinguir nitidamente entre o estudo e a doutrinação. É dessa distinção que depende, se a nossa formação intelectual é realmente intelectual ou é apenas doutrinal. Uma pessoa pode ter absorvido um curso acadêmico universitário especializado brilhantemente e, no entanto, permanecer no nível doutrinário, e nunca atingir o nível do estudo intelectual. Aqui, usamos a palavra doutrina, doutrinal no sentido usual, e não no sentido originário da doctrina como é de uso na teologia e na espiritualidade, quando, p. ex., a teologia é chamada de sacra doctrina.

Como é a diferença entre o estudo e a doutrinação?

Na doutrinação, trata-se de aprender uma ciência no seu estado atual da constituição, em todas as suas informações e práxis, a modo de dominar todo seu funcionamento; mas não se tem a preocupação temática de investigar, como no caso do estudo intelectual, as suas pressuposições metódicas, as proveniências de seus conceitos fundamentais, a fundamentação de suas estruturas, o sentido do ser do horizonte de suas constituições. Por isso, na doutrinação, a pessoa aprende a ciência como doutrina numa mundividência ou ideologia, não se preocupa pela verdade racional do sistema em que funciona, é uma formação para o funcionário da ciência e não para seu investigador. É por isso que a palavra doutrinação hoje é sinônimo de ideologização.

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Na colocação usual em que estamos na formação intelectual, quando a compreendemos como formação pastoral no nível da formação de agentes pastorais, por mais completos que sejam no sentido acadêmico, os estudos teológicos, filosóficos e científicos estão no nível de doutrinação. E quando os documentos eclesiásticos falam da formação intelectual do clero, e nós a buscamos para poder dialogar com o mundo de hoje e compreender suas necessidades, crises, aspirações e perigos, esse nível de doutrinação é inteiramente insuficiente, por que não forma pessoas que sabem ler entre as linhas da funcionalidade uma outra realidade oculta mais fundamental. E isto principalmente hoje, em nossa era, que se caracteriza como científica, uma vez que o que hoje decide se uma ciência é realmente ciência não é a quantidade de suas informações mas a investigação crítica de sua própria fundamentação. Enquanto persistir a doutrinação dentro da ciência, torna-se naturalmente um desafio muito grande encontrar um modo como se possa realizar esse estudo.

Em todo caso, em nosso currículo de formação intelectual, que contém tanto teologia, quanto filosofia, se além dessas quisermos introduzir certas ciências, devemos ter bem claro que doutrinar alguém numa ou em várias ciências em apenas 6 ou 7 anos de estudo já é uma tarefa quase impossível, quanto mais introduzi-lo no estudo investigador, quando não se limitar bem, numa determinação bem competente, o que é e como se faz todo esse estudo. Por isso, querer dar cursos de diferentes ciências, conforme as necessidades da moda da publicidade na nossa formação intelectual, num estilo enciclopedista um pouco melhor do que o do Reader’s Digest, é uma brincadeira irresponsável e uma total alienação do que seja uma ciência hoje. Assim, o estudo da psicologia, da sociologia, da economia etc., por exemplo, deve ser bem examinado, para que o estudante seja realmente iniciado no espírito científico, conforme a seriedade da consciência crítica investigadora das ciências hoje.

E para a ratio studiorum da nossa formação franciscana, essa diferença entre a ratio studiorum e a ratio doctrinationis deve ser um constante desafio que incita sempre de novo, tanto formadores como formandos, a buscar elevar e manter o nível da intelectualidade, dedicando-se conscientemente ao modo de ser do estudo, que é investigação crítica da fundamentação. E toda essa exigência de distinguir na própria dinâmica da ciência dois movimentos, o movimento studiorum e o doctrinarionis, não é uma exigência de brio e nível, no sentido de poder e de elite, mas sim, a grande vontade de, humildemente, de todo coração, estar na disponibilidade da verdade.

3. As teorias das ciências

Hoje, se quisermos saber o que é ciência, devemos recorrer a assim chamada teoria das ciências. Parece que um outro termo para indicar essa disciplina é meta-ciência.

Mas o problema, aqui, aliás como em toda parte hoje, é que existem várias teorias das ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria ciência, surgida dentro das próprias ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais quando falamos das ciências hoje ou quando falamos da necessidade de estarmos aggiornados para nossa era científica. O que se segue está baseado no artigo de

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Heinrich Rombach, intitulado “Wissenschaftstheorie und Philosophie”21. Aqui daremos um pequeno resumo de parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das ciências que poderíamos chamar de teoria ingênua das ciências. Embora obsoleta, essa teoria ingênua das ciências está presente ainda hoje em toda parte, na nossa compreensão usual e popularizada da ciência, nas publicações, mesmo especializadas, sobre o assunto e na mente de muitos cientistas, eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das ciências e a ingenuidade ou a boa fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim dogmatiza e fixa um conceito unilateral da ciência? Em geral, o teorético ingênuo das ciências retira da ciência esse conceito unilateral, ciência na qual ele é especialista. Ele faz essa generalização porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, haveria também historicamente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos, surgirem novas ciências, evoluir, mas todas elas têm o mesmo conceito de ciência. Em todas elas, a cientificidade é sempre a mesma. É o modo típico de pensar de A. Comte, quando fala de “regime définitif de la raison humaine”, i.é, a era da ciência positiva. É o conceito de ciência do positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção de ciência, tudo que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. O saber científico, ao contrário, é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das ciências se caracteriza pelos seguintes preconceitos:

a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se podem dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Essas informações nos dizem o que é objetivamente ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.

b) Assim, existe propriamente apenas uma única ciência (e uma só cientificidade). A multiplicidade das ciências surge apenas devido à multiplicação dos objetos da ciência. Em sua multiplicidade, as ciências são como que diferentes objetos sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma ciência conhece a ciência.

c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e definitiva definição de cientificidade da ciência. Por isso, através das histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos corre uma linha contínua e bem definida do que seja e o que deve ser ciências. O conceito de ciência não tem história. História só têm os conhecimentos que, dentro desse conceito, evoluem, crescem segundo a cientificidade. A história dos conhecimentos científicos se dá dentro de um horizonte de cientificidade único, supra-histórico e imutável.

d) Por mais diferentes que sejam as ciências, o desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. Tudo que não

21 In: ROMBACH, H. (ed.). Wissenschaftstheorie. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1974, p. 12-19.

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segue essa lógica ou está fora dela só tem valor de verdade enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na teologia, onde a ciência é considerada um conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, visto que o modo de ser dos dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da ciência sui generis chamada teologia; ao passo que, nas ciências, onde se pretende ser radicalmente questionador e crítico, o maior pecado que se pode cometer é o dogmatismo.

Começamos a despertar para a consciência crítica da nova teoria das ciências quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. É que não existe a ciência, mas apenas ciências. E se, de alguma forma, pudermos falar de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuos, vai crescendo numa transmutação contínua.

Assim, o reinado do absolutismo do conceito unilateral da ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o avanço das ciências, que progridem não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico de ciência de modelo matemático e lógico, do conceito empíristico-positivista nos moldes da física e da biologia, do conceito materialista nos moldes da química, do conceito relativista nos moldes da historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização auticientíficas dos conceitos unilaterais da ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciência, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.

Essa nova atitude científica da nova consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:

a) Não há um conceito de ciência fixo, parado; não há portanto uma forma fundamental de “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas se dá interação de influência mútua.

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b) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem o que é conhecimento científico e o que não é devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado no item a) acima.

c) Não há conceito de ciência aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração, método etc. etc., têm um significado diverso nas diferentes ciências particulares ou nos diferentes grupos de ciências.

d) Como existe uma pluralidade de métodos de ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular pode existir uma pluralidade de métodos, que coexistem numa ambigüidade complementar. Os métodos recebem seu aviamento a partir do toque de abordagem principal e, assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, criando dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementariedade, que não é ajuntamento nem síntese, não é substituição nem mistura, mas uma tensão que contém a espera de uma descoberta. Temo um exemplo disso na abordagem ondulatória e na abordagem corpuscular da luz na física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.

e) Cada ciência permanece em questão até a raiz de seus fundamentos, desde os mais principais e básicos. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.

f) No questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, a nova consciência científica sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Sabe porém que as regras de jogo imanentes à própria ciência, provenientes dos fundamentos autoconstitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionarem-se como ciências, sabem-se partícipes das convicções operativas fundamentais de seu tempo e de sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstraem, mas assumem plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evitam cair no dogmatismo do historicismo e do sociologismo. Por isso, a consciênia científica não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, como um dogmatismo não científico.

g) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações, tais como, saber-objeto, homem-realidade, teoria-práxis etc. etc., não é mais colocada ingênua, externa e materialmente, mas como circulação de mútua interação. A ciência não está diante, contra, em frente à vida, à realidade, mas está nela inserida. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.

À primeira vista, essa nova compreensão dinâmica das ciências parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade num fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e

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rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é considerada ciência.

Na realidade, porém, não se trata de uma dissolução numa confusão e num caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração dos velhos e obsoletos ídolos do dogmatismo e torná-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutizada, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma mathesis universalis.

Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a filosofia.

4. Ciências e filosofia

A nova concepção de ciência, acima mencionada, nos proporciona uma nova compreensão do relacionamento entre ciências e filosofia.

Mas, para podermos compreender esse relacionamento, é necessário deixar de lado o esquema usual em que costumamos explicar esse relacionamento.

Costumamos representar o relacionamento mútuo entre as próprias ciências, entre as ciências, a filosofia e a teologia, num esquema que representa diante de nós o objeto (realidade, a coisa, o campo, a região, a área etc.) sobre o qual as ciências, a filosofia, a teologia empostam a mirada do seu ponto de vista e cada qual, as ciências, a filosofia, a teologia capta um aspecto parcial desse objeto. E ajuntando-se os resultados dessas captações temos um conhecimento cada vez mais global. Por isso, quanto mais captações de diferentes pontos de vista, tanto melhor, porque se somam as informações de diferentes aspectos. Aqui, as ciências, a filosofia e a teologia são três miradas diferentes, uma ao lado da outra, sobre um mesmo objeto, cada qual com seus conhecimentos parciais do objeto, conhecimentos que podem ser somados entre si, dando assim informações cada vez mais abundantes sobre o mesmo objeto.

Esse esquema é ingênuo demais para poder ser levado a sério. Trata-se simplesmente de um esquema estereotipado, que não faz nenhum jus à realidade complexa do relacionamento das ciências. É uma representação ingênua de um realismo epistemológico caricatural, que na realidade não diz nada. E no entanto, no uso comum, mesmo entre nós, é freqüente encontrarmos uma tal representação, orientando a composição de um programa de estudos da filosofia e da teologia. É preciso, pois, que abandonemos essa ingenuidade dogmatizada se quisermos compreender as ciências, a filosofia e a teologia, hoje.

Essa representação ingênua da ocorrência do objeto ali diante de mim e eu aqui, com o meu ponto de vista das ciências, da filosofia e da teologia a mirar o objeto, adquirindo informações sobre o mesmo, é na realidade uma abstração. Isso porque a realidade não está diante de nós. Nós, com tudo que nos cerca, tanto por dentro quanto por fora, em totalidade, já somos realidade, já somos a realidade e sua compreensão. E isto que, na representação ingênua da realidade como objeto, achamos que está diante de nós, aparece como estando diante de nós, porque nós nos pontualizamos como esta coisa-objeto aqui, relacionada com aquela coisa-objeto pontualizada lá, e cortamos por assim dizer a ligação viva e concreta com a experiência anterior a toda essa operação de

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pontualização objetivante, experiência que nos possibilita essa pontualização dual, eu aqui e coisa lá como sujeito e objeto. Essa experiência anterior é a percepção direta-imediata simbiótica da realidade que somos nós mesmos como a totalidade do mundo.

Na nova teoria das ciências essa realidade da percepção direta e imediata, em sendo como totalidade-mundo, se chama realidade pré-científica, que a teoria ingênua das ciências dogmatizada, já mencionada acima, confunde com mundo primitivo, imerso na obscuridade da vitalidade irracional, ainda infante e sem consciência. Na realidade, ela é a presença e plenitude da totalidade dinâmica da possibilidade da vida, no nosso viver, em sendo, na pregnância da evidência imediata da coisa ela mesma. Edmund Husserl chamou essa realidade na concreção-vida de “Lebenswelt”. Esse termo alemão é usado sem tradução na nova teoria das ciências, e poderia ser traduzido como “mundo vital circundante”. Essa Lebenswelt é o espaço aberto da plenitude da possibilidade, que poderíamos chamar de insondável abismo desvelante das possibilidades do ser.

Ora, toda ciência se funda e está assentada nesse abismo desvelante, na Lebenswelt, que não é um espaço escancarado e homogêneo, mas implicações de diferentes níveis e dimensões de Lebenswelten numa contenção, pregnância e dinâmica de possibilidades genéticas infinitamente ricas e pluriformes de ser. É desse abismo desvelante que provêm as diferentes decisões de possibilidades epocais da história.

As ciências, cada vez, em diferentes epocalidades, em se fundando e se assentando nesse abismo desvelante, como que se fixam numa dessas Lebenswelten e começam a trazer cada vez mais à tona as implicações dessa possibilidade. Mas, em fazendo essa explicitação, essa ciência estabelece um corte, um entalhe na totalidade dessa imensidão do abismo desvelante, e em cima dessa Lebenswelt-entalhe começa, por assim dizer, a construir todo um mundo de explicitações, ordenações coerentes, desenvolvidas a partir do modo de ser próprio ali dado nessa Lebenswelt-entalhe.

As ciências, portanto, se movimentam ao mesmo tempo em duas direções:

a) Para cima, no sentido de construção positiva de estruturações, que são explicitações das possibilidades da Lebenswelt, sobre a qual e a partir da qual as ciências erguem essas estruturações. E é da Lebenswelt que elas colhem seus conceitos fundamentais, o modo de ser do método etc., que então se transformam em pressuposições fundamentais de cada ciência. É esse movimento construtivo que dá às ciências o seu característico de ciências positivas, i.é, cada ciência tem o seu positum, i.é, o embasamento, o posicionamento, o assentamento na terra fértil da(s) Lebenswelt(en) do abismo desvelante vida.

Tematizando, explicitando e ordenando, esse movimento construtivo das ciências positivas ganha clareza e precisão no mapeamento e na presentificação das possibilidades, dadas pela Lebenswelt, sobre a qual repousa; mas, quando nas ciências, contínua e conscientemente não se trabalha o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido do ser, que incessantemente emerge do abismo desvelante da vida, esse movimento perde ao mesmo tempo a radicalidade, a imensidão e a orginariedade de sua pertença ao abismo desvelante.

b) Esse movimento de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser da Lebenswelt a emergir do abismo desvelante é o segundo movimento das ciências que vai na direção

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oposta ao do movimento construtivo, portanto para baixo, para as profundezas da Lebenswelt.

Esse movimento de penetração na raiz da própria ciência não é construtivo, mas destrutivo. Não é destrutivo no sentido de agressão a uma posição para aniquilá-la, impondo-lhe uma outra posição. É destrutivo no sentido de, sempre de novo reconduzir, i.é, reduzir toda e qualquer construção positiva das ciências à radicalidade da sua pertença ao abismo desvelante, desfazendo toda e qualquer infiltração ou sedimentação de dogmatismos e unilateralidades, hipostatizações e absolutizações e mantendo sempre de novo e nova a abertura à possibilidade abissal de renovação e ao toque do inesperado. Do jogo desse movimento construtivo e destrutivo, do jogo desse movimento estruturante-constitutivo e do movimento desestruturante-redutivo se dá a fundamentação da ciência, e a cientificidade e o quilate de uma ciência se medem pela limpidez e pelo equilíbrio desse jogo.

Esse movimento que se dirige à profundidade radical do abismo desvelante, que caracteriza a nova ciência e a distingue da ideologia e da mundividência, levado agora às últimas conseqüências e tematicamente buscado, constitui o movimento da filosofia. Isto significa que as ciências e a filosofia copertencem intimamente. A filosofia é no fundo o movimento de redução que corre no próprio seio das ciências, juntamente com o movimento da constituição. Essa maneira nova de compreender as ciências nos seus dois movimentos constitutivo-redutivos talvez possa ser esquematizada da seguinte maneira. Talvez seja útil observar que os dois movimentos não são propriamente lineares opostos, mas sim movimentos espirais em implicação centrifugal-centripetal.

5. O ensino da filosofia

No passado, quando o ensino da teologia e da filosofia ao clero estava estabelecido numa bem ordenada e fixa estrutura do ensino manualístico da escolástica, a filosofia ministrada era escolástica ou melhor neo-escolástica; possuía seu conteúdo, seu método bem determinados e tinha a função de ser a “ancilla theologiae”, servindo de prolegômena da teologia. E uma vez que tanto a teologia quanto a filosofia tinham o mesmo estilo escolástico, havia uma coordenação e sintonia perfeitas entre ambas as disciplinas, de tal sorte que a filosofia, no fundo, era uma iniciação à teologia sistemática. Nesse sentido, a filosofia do antigo ensino clerical, fora do meio eclesiástico, não era considerada propriamente filosofia, mas já teologia. Essa totalidade bem coesa e coerente do ensino teológico-filosófico era ainda, mesmo numa escala já institucionalizada e padronizada e com pouco vigor especulativo, uma herança da grandiosa síntese conquistada pelo pensamento medieval, repristinada pelos esforços do assim chamado movimento da neo-escolástica. E visto que, quando bem ministrado, tudo que é verdadeiramente grande no pensamento dá boa forma ao pensamento, as pessoas que se dedicavam com empenho ao estudo da teologia e da filosofia escolástica, principalmente em contacto direto com os textos dos grandes mestres clássicos da escolástica, recebiam uma formação coesa, coerente, bem assimilada e assentada, embora também corressem o grande risco de deixarem se doutrinar; e, então, em vez de aprender a pensar grande, podiam cair no dogmatismo intransigente e estreito, próprio de funcionários clericais, adestrados ideologicamente, sem a capacidade de pensar.

O revigoramento nas pesquisas históricas sobre a Idade Média, novas descobertas e edições críticas dos grandes mestres do pensamento da Idade Média, desencadearam

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dentro da Igreja um estudo cada vez mais vasto e profundo do pensamento medieval, e a grande síntese teológico-filosófica da escolástica começou a vir à tona como um dos “sistemas” de pensamento, os mais bem trabalhados e consumados do Ocidente, revelando um vigor especulativo inaudito.

Essa redescoberta da escolástica medieval, no estudo da filosofia no seio da Igreja, deu deslanchou uma tentativa chamada neo-escolástica, que procurava retomar e continuar o trabalho realizado na Idade Média pelos grandes mestres da teologia, a saber, partindo do “Fides quaerens intellectum”, fazer uma síntese teológico-filosófica, que assimilasse agora as novas filosofias, modernas e contemporâneas, como contribuições valiosas ao crescimento do pensamento católico, como foram as antigas filosofias não-cristãs para os mestres medievais.

Assim, no ensino da filosofia dentro da formação intelectual do clero, hoje, em muitos países, principalmente lá onde a Igreja ainda tem muita influência e guarda a tradição, o ensino de filosofia se dá no modelo da neo-escolástica: o núcleo do pensamento é constituído de teses fundamentais da escolástica, mantendo grande abertura para as filosofias novas, modernas e contemporâneas, para as ciências e as diversas questões de nossos tempos. Foi assim que a neo-escolástica acabou formado dentro da Igreja gerações de grandes intelectuais, autores e professores.

Todavia, com exceção da época de seu florescimento no seio da Igreja, em décadas passadas, onde grandes intelectuais, muitos deles convertidos, acabaram aderindo ao movimento, a neo-escolástica jamais encontrou muita credibilidade no meio filosófico extra-eclesiástico. E embora se reconhecesse particularmente o mérito e a competência acadêmica de seus grandes representantes, filosoficamente a neo-escolástica ela mesma parecia um ser híbrido; parecia ser mais um conjunto de doutrinas teológicas da mundividência católica do que propriamente filosofia. A nova consciência científica de hoje, quer na filosofia como nas ciências, considera que o modo como a neo-escolástica, a priori, abordava a filosofia e as ciências modernas, não passa de uma espécie de instrumentalização da filosofia e das ciências em função da manutenção da mundividência teológica católica. Além disso, o conceito de filosofia pressuposto nesse sistema teológico-“filosófico” parecia jamais poder aceitar e compreender, sim admitir a autonomia reivindicada pela nova consciência científica da filosofia moderna como sendo a essência da filosofia, pois já a partir do seu sistema a neo-escolástica não admitia o direito e o dever da absoluta e total autonomia do pensar à filosofia, considerando-a no fundo uma mundividência.

Na prática, sob a camuflagem do ensino sistemático e temático, a formação intelectual desse sistema de ensino de filosofia da neo-escolástica acabava no fundo reduzindo a filosofia à história da filosofia. A filosofia era ensinada como uma sucessão interminável de mundividências de diferentes épocas, sobre as quais se falava resumidamente, numa interpretação já padronizada. A “filosofia” (leia-se teologia) cristã confrontava-se com essas mundividências para examinar o que nelas era verdadeiro e o que era falso.

Um tal ensino de filosofia durava usualmente 2 anos, e assim jamais conseguia realmente formar intelectualmente alguém na filosofia. Desse modo, começou a produzir pseudo-intelectuais, que falavam de todas as filosofias e da filosofia como o faz um ideólogo crente, que sabe julgar tudo com a segurança de quem crê tudo saber, sem saber que nada sabe, determinando o que é certo e o que é errado.

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Entrementes, depois da grande abertura do Vaticano II, o próprio ensino da teologia começou a buscar novos caminhos para o ensino teológico. E as influências das teologias, das filosofias e das ciências modernas, desenvolvidas fora da ambiência clerical-católica, começaram a desencadear mudanças significativas dentro do ensino tradicional da teologia. Com isso, no ensino da formação intelectual clerical, começou a desmoronar aquela coesão e unidade orgânica da escolástica na sua síntese teológico-“filosófica” medieval. O nome escolástica se transformou aos poucos numa denominação pejorativa, para indicar um ensino tradicionalista, fechado, obsoleto e anacrônico de teologia e filosofia. As disciplinas teológicas e filosóficas, que formavam uma unidade bem estruturada, começaram a se dispersar, cada qual para si, no estilo, no modo de ser e na filiação a diferentes “escolas” de pensamento, correspondentemente antigo ou moderno.

Na escolástica, o que segurava num pulso dinâmico e firme e unia as disciplinas numa mútua ordenação de confrontos, debates, embates, diálogos e correturas mútuas, no aprofundamento em direção a uma síntese cada vez mais profunda, vasta e originária, subsumida pela fé, desaparecia completamente, restando apenas a organização institucional externa de um instituto, de uma universidade ou centro de estudos com seus programas. Mas por dentro esse ensino não possuía mais unidade nem coerência, a não ser numa ou noutra disciplina particular. Começou então a infiltração de diferentes mundividências, justaposições de métodos, nivelamento de dimensões de diferentes ciências. Essa confusão e a perda do centro começou a abaixar muito o nível de formação intelectual. O apelo unilateral, pragmaticista e pouco refletido à ação e à pastoral engajada diante da avalanche de urgências e necessidades da humanidade hoje, ao caluniar a formação intelectual como luxo burguês sem efetividade, abaixou ainda mais o nível da formação intelectual.

Diante dessa situação incômoda e bastante confusa da formação intelectual, hoje, estamos querendo reagir, buscando retomar com seriedade e muito empenho a formação intelectual para valer.

No entanto, agora, quando lemos os documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero hoje, parece-nos que a Igreja tem em mira o método, a concepção de filosofia e de ciências próprios do sistema de pensar que acima caracterizamos como neo-escolástica.

Surge então uma suspeita: Será que a Igreja não está querendo colocar ordem nessa confusão e levantar o nível de nossa formação intelectual retomando o ideal da neo-escolástica? Mas isso não será um anacronismo, uma tendência tradicionalista, que teme realmente um diálogo e confronto mais sério com a nova consciência científica de hoje, quer na filosofia quer nas ciências? Não significa agarrar-se a um sistema que não deu certo, justamente por implicar pressuposições não tematizadas o suficiente para nos fazer ver com maior evidência?

Como compor uma ratio studiorum que realmente tenha validade real numa tal situação recheada de dúvidas?

6. A filosofia como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante

Todavia, o que está sendo dito pelos documentos eclesiásticos acerca de nossa formação intelectual pode significar algo bem diferente do que uma volta tradicionalista a um

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estilo de formação neo-escolástico, mesmo que toda a linguagem e as concepções ali pressupostas acerca da filosofia e das ciências apresentem um colorido acentuadamente neo-escolástico. É que a própria neo-escolástica é uma maneira de realizar uma concepção que, por ser neo, já capta a própria escolástica num nível já bem pouco pensado e minguando na sua profundidade e vigor. Não somente isso, a própria escolástica, mesmo na consumação clássica da sua plenitude, é uma realização concreta de outro vigor essencial e transcendente, cuja realidade não coincide nem com a escolástica clássica medieval nem com a neo-escolástica moderna. Esse vigor outro e transcendente é o abismo desvelante da vida que possibilita concreções como a escolástica e neo-escolástica, ele mesmo se nos ocultando e ao mesmo tempo nos acenando nessas próprias concreções da escolástica ou neo-escolástica, para que nos aviemos a uma busca intrépida de uma sabedoria que vem das alturas e profundezas desse abismo insondável, inundando com seu sopro vital todas as nossas possibilidades, como a sabedoria do Deus de Jesus Cristo: a teo-logia.

Com outras palavras, não são os documentos eclesiásticos que falam a partir e dentro da neo-escolástica ou da escolástica. Pelo contrário, são a neo-escolástica e a escolástica que falam e pensam, de alguma forma, de modo bastante insuficiente, a partir e dentro da grande tradição da Igreja. E se a escolástica e a neo-escolástica foram apoiadas, fomentadas pela Igreja na formação intelectual do seu clero, é porque elas de alguma forma ecoam no grande pensamento que flui e palpita na tradição da Igreja.

Isto significa que as recomendações da Igreja na formação intelectual do clero, quando falam “escolástica e neo-escolasticamente”, propondo um “sistema” semelhante ao defendido e apresentado pela escolástica e neo-escolástica, não nos estão dizendo que hoje, devemos de novo incrementar um ensino como a escolástica e a neo-escolástica. Estão nos dizendo, antes, que, se quisermos nos formar intelectualmente como pessoas que pertencem a essa grande realidade do corpo místico de Cristo, devemos colocar como idéia (leia-se eidos) reguladora de nosso intelecto e de nossa formação intelectual um saber tomado pela plena pregnância da presença do Deus de Jesus Cristo. Esse Deus (compreendido a partir desse mesmo saber e não a partir de outro horizonte), como sabedoria insondável, que inunda e penetra todas as coisas, é em tudo e em todas as coisas luz, lógica, conhecimento que nos guia e nos orienta em nossa caminhada através de todos os tempos; é, portanto, um saber e ideal de um saber que, no passado, brilhou por um instante e de modo fragmentário mas concreto, na forma do pensamento dos grandes mestres da escolástica medieval. Apesar de ser o intento da neo-escolástica retomar esse saber, ela acabou fracassando em sua busca.

Todavia, como quer que se queira compreender esse argumento, na prática, tudo isso não acaba numa implícita recomendação de se buscar retomar um empreendimento já tentando no tempo relativamente recente do florescimento da neo-escolástica? E como na prática não existe nenhum sistema filosófico extra-cristão, que tenha esse característico recomendado pela Igreja, em última instância, não acabamos adotando a neo-escolástica como o ensino de filosofia, apoiado e recomendado pelos documentos eclesiásticos?

Tudo isso não teria nenhuma inconveniência se a precompreensão de filosofia, implícita na própria neo-escolástica, tivesse um nível filosófico adequado às exigências da filosofia. Mas não é o que acontece, uma vez que essa compreende a filosofia como filosofia cristã, i.é, como teologia.

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Surge assim uma pergunta: por que ensinar filosofia na formação intelectual clerical? Por que não ensinar só teologia, plenamente, profundamente, exclusivamente, como um grande e completo saber, sem o acréscimo da filosofia e das ciências compreendidas num nível tão provisório, instrumentalizado, a modo de mundividências? Por que ministrar filosofia e ciências, se já não são mais nem filosofia nem ciências, mas “preparados” com aparência de filosofia e de ciências, sem clareza de sua função precisa dentro da formação teológica do clero? Por que a própria teologia não assume interpretações e informações “ajeitadas” da filosofia e das ciências, a seu modo, para a teologia, para ministrar a seus alunos como teologia? Por que recorrer à filosofia e às ciências, se já de antemão, no modo de ser da “sacra doctrina”, a partir da sua colocação, a teologia não pode aceitar as exigências da plena e absoluta autonomia das pesquisas filosóficas e científicas?

Assim, as recentes recomendações dos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, de que se tome cientificamente a sério o estudo da filosofia e que se ministre a teologia e a filosofia, distinguindo nitidamente a diferença dessas duas matérias, soam como mera retórica curial ou como sintoma da falta de rigor e precisão na compreensão do que a nova consciência científica compreende por essência da filosofia e das ciências. Ou será que, apesar de toda essa aparência, esse modo de ver e falar pensa uma outra coisa e tem plena razão?

Vamos focar o ponto nevrálgico da questão. Segundo a nova consciência científica na autocompreensão da filosofia e das ciências, hoje, o ensino da teologia compreende a filosofia não como filosofia, mas como mundividência. Por isso, se a filosofia quiser dar o melhor de si para a formação intelectual do clero, não pode ser ensinada nesse sistema, porque não pode corresponder à expectativa do ensino clerical, sem perder inteiramente a sua identidade. Mas, se apesar de tudo a filosofia for ensinada não como mundividência mas na precisão e no rigor da sua “cientificidade”, irá permanecer como algo paralelo à teologia ou será considerada por ela como sua destruição. Com outras palavras, quanto mais a teologia e a filosofia quiserem permanecer fiéis à sua identidade própria, tanto mais parecem ser irredutíveis uma a outra, de tal sorte que pensar numa síntese, complementação ou coisas similares se torna um sinal do desconhecimento da questão.

E, no entanto, exatamente nesse impasse, onde começa a aparecer uma fenda irredutível entre a teologia e a filosofia naquele sistema coeso e unitário do ensino teológico-“filosófico” eclesiástico tradicionalista escolástico, parece começar a se insinuar uma solução! Uma solução que não apaga os contornos das diferenças, não facilita o diálogo aparente e superficial, mas exige o máximo na precisão e no rigor em manter-se limpidamente atinente, cada qual, à sua identidade profunda e originária. E a partir dessa insinuação de uma possível solução, talvez possamos entender as recomendações de colorido “neo-escolástico e escolástico” dos documentos eclesiásticos, num sentido mais profundo, em referência a nossa formação intelectual. Mas como? Em que sentido?

Vamos procurar explicitar melhor essa questão repetindo esquematicamente o modo como a nova consciência científica compreende a filosofia, compreensão que já mencionamos acima no nº 4.

a) As ciências são um conjunto ordenado de conhecimentos, em mútua implicação e fundação, construído, como um todo cada vez mais crescente, sobre e a partir de uma

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experiência imediata, no uso e na vida, no existir humano chamado Lebenswelt. A inesgotável e insondável imensidão do abismo da possibilidade pulsante do ser aparece, cada vez em concreto, como Lebenswelt. Como Lebenswelt, i.é, como mundo-circundante, que somos nós mesmos, cada vez em sendo no uso e na vida, tematizamos um setor, uma incisão, um átimo, uma área, uma região ou um campo dessa imensidão, para fazermos desse campo destacado o horizonte dentro e a partir do qual vamos explicitando, segundo a lógica desse horizonte, as implicações ali prejacentes como possibilidades – o positum de uma ciência –, construindo um conjunto coeso de conhecimentos, a partir dos princípios, conceitos fundamentais e do modo de proceder, oferecidos por esse campo.

b) Esse movimento construtivo, com toda sua estruturação materializada em conhecimentos, métodos, instituições, ensino, pesquisas etc. etc., perfaz a constituição, a concreção externa, digamos, exotérica (i.é, virada para fora) das ciências. Os conteúdos de uma ciência como conjunto de conhecimentos transmissíveis pertencem a essa parte exotérica das ciências.

É no processo dessa construção positiva, nos trâmites de seus passos explicitativos que podem surgir desvios, defasagem, extrapolações, insuficiências na diferenciação, esquecimentos da lógica do horizonte, mistura indevida de horizontes etc. etc. Essas defasagens, às quais o processo de construção de uma ciência está continuamente exposto, transformam a ciência em ideologias, mundividências, com seus inúmeros dogmatismos, conhecidos sob diferentes títulos e usualmente determinados como ismos como no caso do naturalismo, positivismo, racionalismo, historicismo etc.

c) O modo como se processa esse movimento exotérico da construção das ciências, na sua pluriformidade, e pluridimensionalidade e seus mútuos relacionamentos, está resumido nos pontos já mencionados no nº 3.

d) Pertence essencialmente à ciência a consciência crítica da sua cientificidade. Essa consciência crítica não é mais a fixação referencial à idéia unidimensional da ciência, própria da teoria ingênua das ciências, como foi descrita no nº 3; é, ao contrário, a limpidez, a precisão, o pulso certeiro de sondagem da lógica implícita no positum de cada campo, dentro e a partir do qual as ciências recebem a possibilidade de sua construção. Esse movimento de sondagem e ausculta da e para a raiz-horizonte de uma ciência, portanto, esse movimento de recondução ou re-dução da construção a seus princípios, sua fundamentação, suas pressuposições fundamentais, se direciona no sentido contrário ao movimento da construção, é um movimento virado para dentro, i.é, esotérico, movimento para a profundidade, para a interioridade de uma ciência. É esse movimento que faz com que a construção de uma ciência se processe como ciência verdadeira ou não. É esse movimento que mantém o vigor, a precisão e a vitalidade de uma ciência, é dele que depende sua cientificidade.

e) Os grandes progressos revolucionários de uma ciência não se dão na parte exotérico-construtiva, embora na publicidade as novidades e as descobertas espetaculares nessa parte das ciências sejam celebradas como progressos revolucionários de uma ciência. O autêntico progresso revolucionário de uma ciência se dá quando, devido a uma sondagem de penetração e ausculta do positum do horizonte, dentro e a partir do qual a ciência levanta a sua construção, acontece uma recolocação do campo para dentro de uma Lebenswelt mais profunda, mais rica e mais abrangente, operando uma mudança

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dos conceitos fundamentais de uma ciência, possibilitando e provocando a revisão de toda a construção, a partir e dentro de um horizonte mais profundo, vasto e originário.

f) Esse movimento de redução, na ausculta da possibilidade prejacente no horizonte de uma ciência, não tem conteúdo. Não constitui, portanto, conhecimento do tipo conteúdos e saber como o tem a parte exotérica das ciências. É movimento, dinâmica de penetração, sondagem, ausculta, é a dinâmica de precisão e sensibilidade no ler entre linhas, i.é, do intelecto.

g) Por não ser um conteúdo, não está delimitado a um determinado saber ou conhecimento. Ele nada tem, nada sabe de antemão, a tudo examina, a tudo aborda, sondando o sentido das pressuposições, inclusive e principalmente das suas próprias investigações que podem se depositar como conteúdos.

h) Esse duplo movimento caracteriza a cientificidade de uma ciência. Em suas respectivas polaridades, esse duplo movimento apresenta seu modo próprio de se processar, algo como movimento centrifugal e centripetal de um redemoinho espiral. Quanto mais o movimento positivo da construção alarga o seu âmbito e cresce, tanto mais o movimento de recondução à profundidade da Lebenswelt deve centrar-se na sondagem do sentido que se desvela a partir da imensidão abissal do ser.

i) Como dissemos acima no nº 3, esse movimento que se dirige à profundidade radical do abismo desvelante das Lebenswelten, que caracteriza a nova ciência e a distingue da ideologia e da mundividência, levado agora às últimas conseqüências, à radicalização e tematicamente buscado, constitui o movimento, a dinâmica da filosofia. Tentemos, por assim dizer, aplicar tudo isso que dissemos acima à filosofia para vermos com maior clareza o que a pensa hoje a filosofia em relação a sua própria identidade.

7. A finitude ou a pobreza da filosofia

a) Na filosofia, propriamente, não se têm conteúdos. Tudo que ali aparece como conteúdo, como explicações, argumentos, descrições da realidade, termos, conceitos, são materiais do exercício da colocação das questões, que são no fundo um único empenho e intrépido movimento de, em sondando e auscultando, buscar o sentido do ser que emerge nas Lebenswelten, da imensidão abissal do ser. O sentido do ser não é um conteúdo determinado, mas um desvelar-se do abismo da serenidade do nada, que afeiçoa cada vez mais a nossa busca, para sabermos cada vez menos, a fim de nos dispormos cada vez mais a melhor ouvir, a melhor auscultar e a melhor receber as novas possibilidades de ser, emergentes dessa plenitude abissal do nada. Essa busca, quanto mais busca, tanto mais se torna pura disponibilidade da espera auscultante do inesperado, na total pobreza do saber, na plenitude do vazio de uma recepção atenta, na vulnerabilidade da finitude alegre e grata.

b) É dentro e a partir desse não-saber, como disposição de ausculta do fundo que dissolve e faz permeável o fundamento de uma ciência, i.é, o seu horizonte fundante, que uma ciência levanta seu edifício. Ele possibilita-lhe uma fundamentação mais profunda e mais vasta, uma radicalização nos níveis e nas dimensões mais originários do ser, abrindo assim à ciência novos horizontes.

c) A filosofia, propriamente, não apresenta nenhum conteúdo, mas se avia cada vez à ausculta e ao aprofundamento nos abismos do sentido do ser no permeio dos conteúdos

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das ciências, hoje. Não somente no permeio dos conteúdos das ciências, mas também junto de todo e qualquer conteúdo da existência, hoje, ontem, amanhã, aqui, lá, cada vez, onde o empenho da busca se concretiza a partir e dentro de um determinado horizonte da Lebenswelt. Por isso, ela toma diferentes formas de aparecimento, constituindo variegadas e infindas modalidades de “filosofias”, que povoam os manuais da história da filosofia.

d) Quando a filosofia é tomada na sua forma de aparecimento exotérico e usada como conteúdos de saber, opiniões, doutrinas, sabedoria, experiências, ciências, ideologias, expressões culturais etc., ela como filosofia se retrai, e o que sobra ali são mundividências de um ou mais sujeitos ou de uma certa época da história.

e) No ensino da filosofia, se quisermos ter um encontro com a filosofia ela mesma, é necessário intuir e captar o movimento de descida à interioridade radical do abismo do sentido do ser, que a filosofia, enquanto ela mesma, efetua cada vez no permeio das “filosofias”.

f) Essa intuição e captação do movimento radical da filosofia enquanto filosofia, no permeio das “filosofias” e das vicissitudes da existência humana, se chama ontologia, i.é, ciência do sentido do ser ou questão do sentido do ser.

Questão ou busca do sentido do ser, a ontologia é o mover-se da busca e não uma disciplina. Mas ela pode se estabelecer como disciplina. Nesse caso, participa da mesma ambigüidade que inere às “filosofias” como mundividências.

g) Como ontologia ou questão do sentido do ser, a filosofia é sempre e em toda parte, i.é, cada vez, em concreto, sempre de novo e sempre nova a mesma (não igual!). Como tal, não há filosofia antiga, medieval, moderna nem contemporânea.

h) Aqui sempre a mesma não significa absoluta, imutável, definitiva, perene. Significa estar sempre na disponibilidade finita do frescor da vulnerabilidade pelo sentido surgente do ser. Como tal, esse movimento ontológico deve ser exercitado e apreendido cada vez no permeio de uma ou mais concreções históricas das vicissitudes do empenho da existência humana.

O equívoco da filosofia perene é entender o “sempre a mesma” no sentido do absoluto e eterno infinito e não no sentido do cada vez nova e de novo na disponibilidade finita. E o equívoco do relativismo, do historicismo é entender esse “cada vez nova e de novo” no sentido de negação do infinito. A negação do infinito não faz nascer a dinâmica e a novidade da finitude. Pelo contrário, estraçalha o infinito em indefinidos pedaços iguais da infinitude do agora, agora, agora, agora.

i) No ensino da filosofia, amontoar informações sobre a filosofia, tomada como “filosofias”, não possibilita a captação da essência da filosofia como ontologia, no sentido acima insinuado. O mesmo se deve dizer de uma especialização numa única “filosofia” com todos os detalhes históricos e temáticos sobre ela. Aqui, conhecendo bem a estruturação ambígua da filosofia em dois movimentos, centrifugal e centripetal, através de um concreto permeio ou de um ou mais filósofos e suas obras, ou através de uma ou mais obras de quaisquer áreas da existência humana como religião, arte, ciências, experiências da vida etc., e adaptando-se à disposição do tempo de estudo (2, 3, 4, 5 anos etc.), o decisivo é conduzir o estudante a amar e assumir o movimento

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da questão do sentido do ser. Aqui se abre uma pista concreta de como ensinar filosofia na nossa formação intelectual franciscana.

j) Todos os grandes pensadores da filosofia entenderam a essência da filosofia como questão do sentido do ser.

k) A questão do sentido do ser, a disponibilidade atenta da ausculta, na plenitude da espera do inesperado, que constitui a essência da filosofia, não deve ser confundida com vivência “mística” de “passividade” pietista. Antes, é o movimento intenso de trabalho intelectual, i.é, o empenho máximo de, no permeio da materialidade desta ou daquela vicissitude da existência humana (esta obra, este autor, esta arte, esta questão etc.), exercitar-se na disponibilidade que realmente penetra no abismo de profundidade do sentido do ser. O equívoco de identificar a espera do inesperado com a passividade pietista acaba caindo no vitalismo, no espontaneísmo, no espiritualismo, eivados de esteticismo. Essa espera do inesperado, na plena atenção no permeio do trabalho árduo e intenso, é antes um labor operário, corpo a corpo com o sentido da vida. Exige engajamento de toda a nossa liberdade, de todo o nosso ser humano.

l) Na linguagem de Kierkegaard, a disponibilidade da espera do inesperado é o estágio ético da existência, levado a sua máxima consumação.

8. Filosofia e teologia

A essência da teologia está condensada na expressão da escolástica medieval “fides quaerens intellectum”.

Se entendermos a palavra fides como a nossa crença cristã e o intellectus como a razão humana, essa expressão parece significar que a nossa crença sobrenatural se expressa e busca uma concretização através da razão humana. E imediatamente surge a seguinte questão: Como se dá esta síntese, qual é o ponto de ligação entre o saber da fé e o saber da razão, entre o sobre-natural e o natural? Será uma justaposição, uma mixagem, uma subsumpção, uma fundamentação, uma dialética? Fides necessita de intellectus para se expressar, para se fundamentar? Não há a menor possibilidade de ela mesma, a partir de si, se expressar, se fundamentar? Para que a filosofia? Para que a teo-logia? Por que não simplesmente a fé? O que significa formar-se intelectualmente na fé? Essas questões entram e se traduzem no cotidiano da nossa vida cristã em posicionamentos que encontram sua expressão numa linguagem como essa: Estudam, estudam a teologia, mas não acreditam mais; eu que sou simples, ao menos tenho a fé; ou, essa gente que não estuda teologia permanece no estado de ignorância da fé do carvoeiro; é necessário esclarecer e formar melhor a fé desse povo etc.

E se desencadeia um rolo de discussões, para onde se contrabandeiam compreensões de fé e intelecto provenientes de outros contextos; um exemplo disso seria compreender a fé como vivência do ato de sentimento, portanto, um ato da área dos atos humanos irracionais, que necessita de uma orientação proveniente da razão etc.

Aqui, em vez de entrar nessas discussões, exatamente para entender melhor o relacionamento teologia e filosofia, tentemos compreender essa expressão medieval fides quaerens intellectum não como um indicativo da síntese fé e razão, mas como vir à fala da estruturação interna da suprema experiência chamada fé cristã.

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a) Por fé, aqui, não entendemos em primeiro lugar nosso ato de fé como vivência nem nossa crença ou nossa confiança, nem a atitude de disposição ou o conjunto de dogmas e artigos da nossa doutrina cristã. Tudo isso, de alguma forma, pode ser chamado de fé ou ser referido à fé, porque tudo isso já é fruto da fé.

Por fé entendemos a própria presença do Deus de Jesus Cristo, que se nos doou e nos amou primeiro (a aprioridade da fé) vindo ao nosso encontro em Jesus Cristo seu Filho, no-lo dando para nossa salvação. Com essa descrição muito imperfeita, tenta-se acenar para a inefável e insondável ternura e vigor do amor misericordioso do Pai como ele se manifestou em Jesus Cristo e continua se manifestando através da história da salvação: a fé é a fidelidade da doação do amor do Deus de Jesus Cristo, a fidelidade que é o próprio Deus.

b) Tudo que de alguma forma pertence à nossa vida cristã, desde Jesus Cristo até um pequeno gesto de bênção, toda a Igreja, o corpo místico de Cristo, com tudo que ele implica, a vida cristã como seguimento de Jesus, as doutrinas cristãs, os dogmas, as experiências místicas cristãs, as nossas atitudes de confiança, disponibilidade, amor e fidelidade, a nossa vocação, sim tudo que é de alguma forma cristão, existe e ali está porque tudo isso é sustentado, doado pelo Pai de Jesus Cristo, porque tudo isso é a própria presença viva do Pai em Jesus Cristo como fé, i.é, como fidelidade da doação do Pai. É nesse sentido que dizemos: não somos nós que temos a fé, é a fé que tem a nós. A própria possibilidade e a disposição de nos abrirmos à fé são doação da fé.

c) A nossa tentação aqui é levantar uma falsa questão, perguntando: mas, se é assim, onde fica a nossa liberdade e responsabilidade? E com isso embarcamos na célebre polêmica do relacionamento entre a graça e o livre arbítrio. Essa questão, em referência à fé, porém, é uma questão extrapolada. Levantar uma questão extrapolada é como levantar falso testemunho. Um falso testemunho parece verdadeiro e razoável somente porque sorrateiramente se infiltra na raiz de uma verdade, de uma pressuposição que não pertence a essa verdade, mas é tirada de outro lugar, desviando assim o percurso de busca e de investigação para uma coisa inteiramente diversa.

A fidelidade do Deus de Jesus Cristo nos amou primeiro. Quando falamos dessa fidelidade, absolutamente independente da nossa iniciativa, tão absolutamente anterior e primeira que a nossa própria iniciativa de receber já é a iniciativa do amor que é Deus, estamos falando já dentro da experiência possibilitada pela fé e como fé. E como se trata de experiência, é anterior a toda e qualquer explicação, anterior também à dúvida se essa experiência não é um ato subjetivo psicológico etc. etc. A melhor explicação, o melhor critério de verdade é a evidência da experiência. Aliás, a evidência é a própria experiência e não há testemunho mais verdadeiro do que o testemunho da experiência, i.é, o toque direto e corpo a corpo do amor primeiro que é o próprio Deus.

As objeções surgem quando, em vez de permanecer na experiência e buscar sua inteligibilidade a partir dos fios condutores que surgem na própria experiência, nos dispersamos e disparamos a perguntar, a partir de certas pressuposições usuais, em que estamos atrelados, sem, no entanto, ter evidência do que e a partir de onde estamos perguntando. Assim, ao objetarmos sobre as iniciativas livres de Deus e do homem, estamos representando as iniciativas como impulsos que partem de e pertencem a dois pontos separados como ocorrência e coisa, ponto Deus e ponto homem. Como um ponto não é o outro, dizer que aqui há somente uma iniciativa do ponto Deus parece eliminar o ponto homem. E como 2 não pode ser 1, entramos na perplexidade e perguntamos:

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Como? Em vez de permanecermos na fluência viva da fé, estamos sendo conduzidos e atrapalhados pelo princípio de contradição, hipostatizado como princípio que diz respeito a 1 e 1 e 1, à identidade concebida como igualdade quantitativa de coisas. E com isso, caímos completamente fora da experiência primeira, nos extrapolamos completamente...

Mas o testemunho da experiência diz bem outra coisa, aliás inteiramente diferente. A tal ponto diferente que uma questão colocada como concorrência e contradição entre duas iniciativas, referindo-se a Deus que nos amou primeiro e a nós que com gratidão recebemos uma tal doação, é semelhante à pergunta de alguém que, ao ouvir falar da grandeza de uma mãe gestante, que, atacada de câncer, apesar de terríveis dores, não toma nenhum remédio para aliviar a sua dor, por amor, para não prejudicar o bebê, que está em seu seio, pergunta quantos metros cúbicos tem a grandeza dessa mulher e quanto pesa...

d) A lógica da fé, no sentido acima mencionado, é muito simples; é una, inteiriça, coerente. Trata-se da experiência da gratuidade do encontro e encontro da gratuidade. A absoluta doação da fidelidade do amor do Pai é toda ela, inteira e radicalmente gratuita. Quanto mais claramente captada como ela própria, essa gratuidade suscita também em nós a doação da mesma “natureza”, portanto inteira e radicalmente gratuita. A uma doação primeira de encontro de tamanha boa vontade só se pode corresponder da mesma maneira, ser do mesmo modo, ser uno, ser o mesmo. Esse ser o mesmo não é ajuntamento de duas coisas, mas simples, concretamente a própria dinâmica e o ser do encontro, o próprio encontro ele mesmo. Quem assim é, dá o melhor de si, em tudo, e em assim se dando, se percebe não como dono, como proprietário da doação, mas como agraciado pela doação do outro. Aqui não se trata de acionar ou não o livre arbítrio da minha vontade. Trata-se de um novo modo de ser, que atinge e impregna a nossa liberdade, despertando-a para a essência mais entranhada dela mesma.

e) Talvez possamos denominar esse modo como ser de afeição obediente. Trata-se de um movimento de crescente “passividade” (leia-se afecção), não no sentido da passividade vazia, neutra e indiferente, mas no sentido de aumento cada vez mais diferenciado e profundo da possibilidade de ser atingido, e, em sendo atingido, deixar ser em máximo grau o ser de quem nos atinge. É o que se expressa na formulação usual: fazer a vontade de Deus. Essa habilidade e esse hábito de co-responder pode crescer a tal ponto de todo o vigor do nosso empenho não ser outra coisa do que o fluir grato e gratuito na gratuidade do outro: “Não eu, mas Cristo vive em mim” (S. Paulo); “meu alimento é fazer a vontade do Pai” (Evangelho).

f) Esse modo de ser é a essencialização que sofre nosso ser quando somos agraciados pela fé, i.é, quando somos afetados, atingidos pela fidelidade do Deus de Jesus Cristo: a vida pela fé e na fé cristã.

g) A teologia é um saber que constrói todo um mundo de conhecimento (leia-se conascimentos) dentro e a partir do “horizonte” dessa afeição obediente. Por isso, tudo que vem à fala a partir da afeição obediente da fé é palavra de Deus, o logos, o verbum, a colheita e obra de Deus. A sondagem e a ausculta do sentido do ser que emerge da profundidade aberta pela afeição obediente da fé são o positum da teologia, a imensidão abissal e o mistério absoluto e último da ternura do amor do Deus de Jesus Cristo, que é tudo em todas as coisas.

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Quem faz essa sondagem e ausculta, porém, não somos nós mesmos a partir de nós, mas o espírito de Deus, i.é, o sopro vital da própria ternura do amor do Deus de Jesus Cristo, que continuamente mantém límpida, na precisão da gratuidade a dinâmica desse ab-ismo.

Agora, se observarmos bem esse vigor da doação da gratuidade, que vem a nosso encontro, nos atingindo, impregnando todo o nosso empenho na afeição obediente a essa gratuidade, perceberemos que esse modo de ser, embora muito mais qualificado e elevado como a plenitude da liberdade, na docilidade à graça-Deus, possui muita semelhança com o modo de ser que na filosofia aparece como intelecto, i.é, como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante. Também no intelecto há o movimento de ausculta e de disponibilidade, em direção à profundidade do sentido do ser, para além das pressuposições que formam a base de construção de nossos empenhos. Também no intelecto a busca da disponibilidade recorda algo como doação gratuita na radical responsabilização da liberdade. Também no intelecto há a acribia de manter sempre de novo a limpidez da espera do inesperado.

Mas o que no intelecto é a vontade do trabalho, na afeição obediente da fé é deixar-se levar na fluência da doação.

O que no intelecto é plena atenção da especulação, na afeição obediente da fé é a pregnância da translucidez.

O que no intelecto é precisão e rigor de penetração, na afeição obediente da Fe é a docilidade na ternura do encontro.

O que no intelecto é o puro movimento da busca, sem conteúdo, na afeição obediente da fé é a plenitude da verdade absoluta, que contém todas as coisas.

E, no entanto, nessa diferença do modo de ser do intelecto e da afeição obediente da fé, se auscultarmos bem o modo de ser do intelecto como movimento de redução à profundidade do abismo desvelante, perceberemos que ele pulsa como que no mesmo ritmo da repercussão da gratuidade da afeição obediente da fé.

E, de repente, a expressão fides quaerens intellectum nos faz suspeitar:

Será que a afeição obediente da fé, na sua gratuidade, não busca com simpatia os que se dispõem de corpo e alma à busca e ao empenho no modo de ser do intelecto? Não porque a fé necessitasse do intelecto. Não para se expressar; não para se complementar. Mas, sim, porque no intelecto há a repercussão do toque da afeição obediente...?! Pois não diz o Salmista que o abismo chama o abismo? E o que se move no encontro não é a syn-tonia da syn-patia?

Tentemos esquematizar esse relacionamento entre a afeição obediente e o intelecto, i.é, entre a teologia e a filosofia num gráfico imperfeito, mas que nos pode ajudar a segurar na representação os movimentos que constituem esse relacionamento.

9. A teologia, a filosofia, as ciências

Isto tudo significa que, no cerne da filosofia e no cerne da teologia, há movimentos gêmeos, do intelecto, i.é, da redução à profundidade do abismo desvelante, e da afeição obediente, na fluência da doação da graça misericordiosa. Esses dois movimentos, por

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sua vez, se movem em espiral, à semelhança do movimento espiral centrifugal e centripetal das ciências, mas agora de uma forma toda própria, estranha. O movimento do intelecto, que se esvazia cada vez mais na limpidez da espera do inesperado, quanto mais se radicaliza, tanto mais se reduz à clareza, precisão e rigor do nada, e nada dá de conteúdo ou de positivo à teologia. Pois ele é algo como o tinir cada vez mais intenso da espera. Esse nada é mantido com árduo e intenso labor no permeio da construção positiva das ciências e dos outros empenhos e desempenhos humanos, que, em se estruturando em mundos e mundos de realização, são convocados, ao mesmo tempo, a se trabalhar criticamente como busca sempre mais intensa do sentido do ser, na nadificação de fixações, dogmatizações e hipostatizações do sentido do ser. A filosofia é pois o trabalho operário da existência humana, em todas as manifestações do seu empenho, de perfazer-se como a radical responsabilidade de ser a verdade do seu ser: é o intelecto. Esse trabalho conduz tudo e qualquer empenho humano à raiz de si mesmo, que é a disponibilidade absolutamente autônoma da liberdade de ter que ser cada vez o seu próprio ser. Essa disponibilidade é a essência do homem: finitude do nada, disposta na espera do inesperado.

A graça do amor do Deus de Jesus Cristo, quando gratuitamente se afeiçoa na sua simpatia a esse nada e desce sobre ele como orvalho, faz florir no deserto límpido desse nada da espera todos os empenhos que permeiam o todo da existência humana, impregnando-os com o modo de ser radicalmente outro, e, no entanto, sem nada mudar nos seus conteúdos, como que concebendo tudo na ternura e no calor de um outro hábito: é a encarnação.

Essa subsumpção de tudo em todas as coisas do empenho humano pela graça é fides quaerens intellectum e é o movimento chamado teologia.

Como a filosofia é um movimento de redução ao abismo desvelante do sentido do ser, assim a teologia é um movimento de constituição toda nova da totalidade das possibilidades de existência humana em todos os tempos, a partir da afeição obediente da ternura e do vigor da fidelidade do Deus de Jesus Cristo.

E como a filosofia, na sua manifestação exotérica, aparece em diferentes estilos e escolas de filosofia como mundividências, assim também a teologia aparece na sua manifestação exotérica, em diferentes escolas e estilos de teologia.

Mas, como na filosofia, também na teologia, estando em uma ou em mais dessas manifestações, o essencial da formação intelectual é fazer o movimento esotérico, i.é, o movimento-cerne, que atravessa como intelecto a filosofia, e como afeição obediente a teologia.

Como dissemos, a filosofia não pode contribuir em nada para a teologia com conteúdos positivos. Ela, porém, pode servir de ancilla theologiae, no sentido da faxineira, que varre e limpa os habitantes espúrios, alojados na teologia, camuflados de filosofias ou filosofemas. Com outras palavras, a acribia do intelecto, no seu movimento de redução de toda a positividade das ciências ao exame das suas pressuposições, abre cada vez mais profundamente a limpidez do seu horizonte e do sentido do ser que ali se desvela. Assim, a filosofia detecta na teologia a presença de elementos, cuja crítica pertence à filosofia, por tratar-se, não de teologia, i.é, da afeição obediente da fé, mas sim do intelecto, i.é, das ciências e de outros empenhos da existência humana.

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Mas, para que a teologia mantenha o seu horizonte na limpidez da afeição obediente, não basta somente esse serviço da filosofia. Isso porque esta não lhe pode dar nada, a não ser retomar para si o que a teologia foi buscar fora de si, para usá-lo como muletas.

Para que positivamente a teologia seja teologia, ela necessita se enraizar continuamente na afeição obediente do encontro com o Pai. O vigor crítico, i.é, purificativo da cientificidade da teologia reside no encontro com o Pai.

IV- “Santidade e sabedoria” e a formação intelectual

Soa estranho afirmar que o vigor crítico que mantém a limpidez da cientificidade da teologia está no encontro com o Pai. Não é isto reduzir a teologia a uma intimidade pessoal subjetiva? Não é confundir a teologia com a piedade, a espiritualidade, a mística? Certamente, o encontro com o Pai, a vida interior é importantíssima para a formação espiritual do religioso e sacerdote. Mas essa formação espiritual, sem negar sua necessidade e importância, não é propriamente a formação intelectual, muito menos a quinta essência da formação intelectual, a teologia...

O que significa, pois, a afirmação: para ser ela mesma na sua cientificidade, a teologia necessita estar continuamente enraizada na afeição obediente do encontro com o Pai?

Se examinarmos bem o processo de aprendizagem num estudo, seja de que matéria for, ciência, arte ou técnica, percebemos que, além da disponibilidade, disposição positiva e do talento do discípulo, o segredo do progresso na aprendizagem e no saber está na competência do mestre. Por isso, um velho provérbio chinês recomenda a quem quer aprender uma das inúmeras e dificílimas artes marciais chinesas, que se não tiver muito tempo à disposição, gaste ao menos 3 anos para procurar um ótimo mestre! Com outras palavras, em vez de, com pressa, pegar qualquer mestre e logo iniciar o treino de 3 anos, é mais eficiente gastar esses 3 anos procurando um ótimo mestre, porque este o pode fazer progredir, em pouco tempo, mais do que um mestre incompetente em muitos anos.

Já imaginou cair nas mãos de um mestre como Basílio, Justino, Boaventura, Mestre Eckhart, Aristóteles, Platão, para não dizer um anjo, um serafim, um querubim, um Gabriel, que nos pegasse pelas mãos e nos ensinasse?

Mas, se abrirmos as Sagradas Escrituras, elas nos dizem constantemente que o próprio Deus, ele mesmo em pessoa, o Espírito Santo nos ensina todas as coisas! Deveríamos uma vez fazer um levantamento, tanto no NT como no AT, para sentirmos em grande volume a imensa boa vontade de Deus em nos ensinar! E se fizermos um levantamento acerca dessa boa vontade de Deus em nos ensinar, nas experiências de iluminação que tiveram os grandes místicos e santos de todos os tempos, ficaremos impressionados quão pouco acreditamos em tudo isso, a ponto de, no fundo, sermos indiferentes diante desse mestre de todos os mestres; por outro lado, passamos anos a fio, gastando milhões, para fazer cursos junto a certos professores, especialistas, p. ex., em psicologia, cuja origem não se sabe lá muito bem donde vem... e que não são lá grandes coisas.

Se pois considerarmos a aprendizagem da teologia, compreendida como acima insinuamos, quando falamos do relacionamento entre ciências, filosofia e teologia, logo compreenderemos que o melhor e o único mestre absoluto dessa ciência maravilhosa, que Deus tem, a teo-logia, é o próprio Pai de Jesus Cristo. Assim sendo, não é nada

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estranho, antes completamente coerente que a teologia tenha a fonte de sua cientificidade no contato profundo, pessoal e íntimo com o Pai.

Numa aprendizagem, porém, uma vez já tendo um bom mestre, o decisivo é o volume de trabalho. Mas por que é importante o volume de trabalho? Para nos familiarizarmos com o mestre e sua matéria. Como a palavra familiarizar-se nos diz, é necessário entrar a ser familiar com o mestre e sua matéria. Na família estamos todos os dias juntos, um próximo do outro, estamos em contato, corpo a corpo na busca, na intimidade do trabalho, num diálogo, confronto e desafios constantes com o mestre.

Digamos que, para conseguir um doutoramento, para adquirir a habilidade esportiva, para aprender uma profissão de alta tecnologia, para tornar-se competente nas pesquisas, gastamos anos a fio, sim toda a vida, dia por dia, hora por hora, engajando-nos nesse ou naquele trabalho de uma aprendizagem. Experimentemos então fazer uma estatística para ver quantas horas gastamos nesse trabalho em 20 anos. Imaginemos agora alguém que faz todo esse trabalho, gastando 30, 40, 60 anos, só para entrar corpo a corpo, em contato imediato com Deus, tornar-se familiar com ele, ter intimidade com ele, de sorte que, aos poucos, ele vá nos revelando seus segredos, os mais abscônditos do seu coração, ensinando-nos tudo acerca de todas as coisas.

Mas como se faz isso, o contato imediato, corpo a corpo com Deus? Se ele é o Pai que habita uma luz inacessível? Não estamos aqui fazendo uma confusão, dando exemplos de aprendizagem do estudo humano, onde o mestre é visível, material e físico, aplicando isso à aprendizagem do estudo, onde o mestre é o próprio Deus, que transcende todas as nossas medidas, todos os nossos sentidos, físicos e sensíveis? Não é assim que aqui não há contato pessoal, corpo a corpo, mas sempre através da mediação de mestres visíveis?

O interessante dessa objeção é que ela nos aponta para uma equivocação, que raras vezes percebemos. Equivocação de identificar o visível, o físico com o imediato, com o contato direto, com o corpo a corpo. Por causa dessa identificação, consideramos o não-visível, o não físico como não senso imediato, não sendo contato direto, não sendo corpo a corpo! Logo, é mediato!

Juntamente com essa equivocação, corre paralelo uma outra. É a equivocação de identificar o visível, físico e sensível, já identificado com o imediato, com contato direto e corpo a corpo, com o pessoal. E identificar o não-visível também aqui com o mediato, o mediatizado, e muitas vezes com o não-pessoal, no sentido de mediatizado pelo grupo, pela sociedade, instituição etc. Por isso, quando p. ex., dizemos que, para ser ensinado diretamente por Jesus Cristo, ele deveria estar ali fisicamente presente, para podermos ter um contato imediato, direto com ele, pessoalmente, estamos agenciando todas essas equivocações. E continuamos a operar nas mesmas equivocações quando dizemos que, como ele viveu há 2.000 anos, só nos pode ensinar indireta, mediatamente, através das pessoas, mestres atuais, Igreja etc. que nos cercam como comunidade e instituição.

E, no entanto, quando nos examinamos bem, percebemos que o problema é bem outro. A questão de imediato ou mediato, do contato corpo a corpo direto ou mediatizado e indireto, é um problema da familiarização. Não está relacionada nem com o visível ou invisível, nem com o físico ou espiritual, nem com pessoal ou institucional. Mas em que sentido?

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Todas as coisas com que nos familiarizamos depois de um longo convívio de empenho, estudo, confronto, se tornam próximas de nós, nós as tocamos, se nos tornam imediatas. E todas as coisas que nos são estranhas são longínquas, não nos tocam, não tem relacionamento direto conosco, devem ser mediatizadas pelas coisas que nos são mais familiares. Mas todas as coisas que se nos tornaram familiares, para que possam ser familiares, pressupõem de nós uma decisão de assumi-las, e na medida em que se nos tornam cada vez mais familiares, nos exigem cada vez mais que as assumamos corpo a corpo.

Com outras palavras, o que experimentamos como pessoal, direto, imediato, corpo a corpo, contato pele a pele não tem propriamente nada a ver com o físico, sensível, individual, corporal. Antes, tem tudo a ver com o índice de transformação no meu modo de ser, que eleva o meu ser a uma qualificação antes não existente.

Esse modo de ser qualificado recebe vários nomes, por ser difícil de ser dito, mas que na experiência se pode perceber com simplicidade e relativa facilidade. É o modo de ser do encontro, relacionamento pessoal, intimidade, familiaridade etc. Só que, infelizmente, essas denominações dificilmente nos conseguem mostrar que aqui não se trata de sentimento ou sensação, mas sim de um quilate novo de ser.

Esse modo de ser qualificado, esse quilate novo de ser, acima também designado como corpo a corpo, imediato, contato direto, só se dá no e através do empenho. E o empenho, dizemos nós, quanto mais decisivo, intenso e engajado, quanto mais se aproxima de uma busca de vida ou morte, onde a pessoa põe em jogo todo o seu ser, tanto mais se torna pessoal.

Como foi dito, é difícil não entender esse pessoal como subjetivo e individual. Mas perguntemos, o que é o oposto de pessoa. O impessoal? O grupal, comunitário? Para que seja pessoal deve haver só uma pessoa (leia-se indivíduo)? Quando é mais de uma pessoa, se torna impessoal? Ou se torna comunitário? Logo percebemos que aqui entra uma confusão. Ou melhor, a nossa compreensão do pessoal próprio do comunitário está confusa. Sem entrar em discussões e exames mais detalhados da questão, observemos apenas que essa confusão aparece porque temos na nossa mente o esquema: um sujeito = o pessoal; mais sujeitos = grupo, comunidade. Deixemos de lado por completo esse esquema e olhemos com simplicidade e diretamente o fenômeno. O que percebemos? Percebemos que, quanto mais a intensidade da experiência se torna forte, profunda, familiarizada, assumida num trabalho de engajamento para valer, tanto mais a experiência se torna única, cada vez minha, singular. Então, em assim sendo singular, percebemos o que quer dizer pessoal. Pessoal é quando a minha existência alcança a densidade de um corpo a corpo, na radical seriedade de ter que ser, sem poder transferir essa tarefa de ser a um outro. Essa singularidade e unicidade, porém, não têm muito a ver com 1 no sentido numérico quantitativo, mas sim com a inexorabilidade, inalienabilidade, a identificação do encontro. Essa intensificação absoluta da singularidade do encontro nada tem a ver com individual, privativo e subjetivo, pois estes não possuem o quilate todo próprio do ser que caracteriza o pessoal, i.é, a absoluta doação de si e a abertura transcendente universal.

Mas o que tem a ver essa singularidade do encontro com a formação intelectual e principalmente com a manutenção da cientificidade da teologia?

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Tem tudo a ver com o estudo da teologia, entendida como foi colocada nos capítulos anteriores. Pois, se olharmos os nossos estudos da formação intelectual franciscana, não no seu aspecto virado para fora, i.é, exotérico, mas na sua estruturação virada para dentro, i.é, para a sua essência, esotérica, perceberemos sem dificuldade que, aqui, está em questão o engajamento e o radical empenho de toda uma existência humana na busca apaixonada pelo último e absoluto sentido de tudo. Mas esse tudo não é mais a totalidade dos entes, a modo de uma paisagem panorâmica da explicação da verdade do universo, mas sim união, comunhão, identificação, encontro pessoal de amor que faz gritar a um Francisco de Assis: Meu Deus e meu tudo!

Certo!... Tudo muito bonito, mas... e a teologia, e a formação intelectual? Por mais profundo e belo que tudo isso seja, não é apenas uma experiência pessoal de Francisco, subjetiva, particular?

Se compreendermos bem o que viemos refletindo nos capítulos anteriores acerca do estudo da nossa formação intelectual, todas essas objeções não passam de escrúpulos estéticos de uma existência humana que tem a cabeça feita num academismo estéril e não fez ainda experiência da teo-logia, i.é, “do contato imediato de primeiro grau” com o único mestre de todas as ciências e sabedorias, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aqui, como já foi dito antes, não se trata de um saber nosso acerca de Deus, do homem e do universo, a teologia no sentido de “theologia quoad nos”, mas sim “Theologia quoad Deum”, participação discipular, filial, esponsal, íntima, pessoal, total com a sabedoria que Deus tem!?

Sabedoria e santidade, a formação intelectual!

Não é essa a única formação pela qual vale a pena dar toda uma vida, toda a vida de nossa Ordem, sim da nossa humanidade?

V - A fraternidade da formação intelectual franciscana

Ao nos engajarmos no estudo, para nós, de ciências, filosofia e teologia, entramos de cheio na comunidade humana que podemos caracterizar como comunidade científica. Usualmente, não percebemos tematicamente com suficiente profundidade e consciência essa “iniciação” a um modo de ser, pensar e agir todo próprio, que cunha ou poderia cunhar o nosso ser numa essencialização, de uma importância decisiva para a nossa formação franciscana. É que consideramos o estudo somente no seu aspecto exotérico, i.é, virado para fora, como um fenômeno sócio-cultural de formação acadêmica. Assim, não percebemos que o estudo científico-acadêmico possui o seu lado virado para dentro, i.é, esotérico, o qual perfaz uma busca humana altamente existencial, i.é, o empenho de uma qualificação todo própria e universal da existência humana, que já há muito tempo irrompeu em nossa história humana, colocando exigências inteiramente novas na empostação do nosso ser no mundo, criando novas tarefas, novas interpretações, abrindo questões antes não questionadas. Com outras palavras, a existência científica é para nós um “sinal dos tempos”. Dito de outro modo, o estudo de ciências, filosofia e teologia em nossa formação intelectual franciscana, hoje, não é apenas uma formação cultural para poder exercer melhor a nossa pastoral nos tempos modernos, mas sim uma tarefa essencial de participação no trabalho árduo, exigente, mas fascinante de uma nova humanização, proposta por Deus, através da história, como “sinal dos tempos”.

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E se examinarmos atentamente, em concreto, essa existência científica em sua profundidade esotérica, poderemos perceber claramente que ela constitui uma das forças mais vigorosas e mais eficazes para criar um profundo elo da fraternidade comunitária, na afeição e no atingimento discipular da busca apaixonada da verdade e da sabedoria.

1. A necessidade de tematizar esse elemento fortíssimo de dinamização e união da fraternidade

Parece ser de importância decisiva conscientizar-nos, de uma maneira muito mais temática e pregnante, de que, no estudo, na formação intelectual, existe uma força altamente qualificada e essencial para amalgamar e fortificar a união fraternal comunitária, tanto dos estudantes como dos professores, no tempo da formação inicial e também nos estudos posteriores universitários de especialização. E a experiência bem feita de fraternismo, através desse elemento fortíssimo de dinamização e união, cunha a capacidade fraternal dos irmãos para mais tarde saber dialogar entre si mutuamente com inteligência e cordialidade, visando o bem comum e a verdade, quando há diferenças ou até contraposições de colocações, e poder trabalhar juntos, mesmo quando não há unanimidade de posições e opiniões.

Mas para podermos ver no estudo da nossa formação intelectual, como o expusemos nos capítulos anteriores, esse elemento fortíssimo de dinamização e união da fraternidade, é necessário desfazer-nos de uma porção de preconceitos e dogmatismos, instalados na nossa mente usual, acerca do intelecto. A tentativa de desfazer-se um pouco dos preconceitos e dogmatismos acerca do estudo e do intelecto foi exposta no capítulo II, 1, 2 e 3. Aqui apenas examinemos um grande e pernicioso equívoco de empostação acerca da afeição na formação de uma fraternidade como a nossa no seguimento de Jesus Cristo, equívoco que se infiltrou em nossa reflexão acerca da afeição da vida religiosa, nos impedindo de ver a importância do estudo e da formação intelectual como elemento de dinamização e união da fraternidade.

a) O equívoco de impostação acerca da afetividade e afeição

Existe, ao menos em certas regiões, uma tendência de acentuar muito a necessidade de cultivar a afetividade no relacionamento fraternal na formação de uma fraternidade. Em geral, essa acentuação vem acompanhada de uma espécie de reação contra uma formação demasiadamente rigorosa e racional-intelectualizada, que desconfiava de ou até reprimia o sentimento e o afeto e ignorava a sua importância para a formação humana integral e equilibrada. Sem entrar no mérito da questão dessa acentuação e reação contra a antiga formação, pode-se perceber logo que essa tendência, como ela aparece usualmente nas reuniões e discussões dos religiosos e do clero, independente de diferenças existentes nas suas colocações, sofre de indeterminação e indiferenciação muito grande na compreensão tanto acerca do intelecto como da afeição. Com outras palavras, opera numa teoria psicológica fraquíssima pseudo-científica, misturada com extrapolações provenientes de opiniões correntes, que circulam na opinião pública do nosso consumismo intelectual como verdades da constatação da realidade. E mesmo lá onde se usam informações e técnicas comprovadamente competentes do ponto de vista científico existe, sorrateiramente no fundo da colocação acerca da afeição na vida religiosa, um equívoco.

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Trata-se de um equívoco proveniente não tanto do que se afirma acerca da afetividade humana, mas sim do que se deixa de dizer acerca da vida religiosa e do modo de ser próprio da afeição da vida religiosa.

Mas o que é isto que, ao falarmos da afetividade humana na vida religiosa, deixamos de dizer acerca da vida religiosa e do modo de ser próprio da afeição da vida religiosa? Não existe uma infinidade de tratados e estudos sérios e equilibrados acerca da afeição e afetividade na vida religiosa, seja do ponto de vista psicológico, seja do ponto de vista espiritual e religioso?

É que falar sobre afetividade e falar a partir da afeição são impostações essencialmente diferentes. Mas como? Em que sentido?

Quando falamos de afetividade, não estamos falando da afeição no seu experimentar concreto; estamos empostando o visual do nosso saber psicológico, pedagógico ou antropológico sobre o fenômeno-concreto-afeição. E nessa empostação, juntamente com a afetividade já dissemos também a faculdade intelectiva, a faculdade volitiva; já posicionamos, colocamos um modelo da compreensão de homem, como uma substância dotada de três ou mais faculdades, tipos diferentes de energia, de instinto etc. etc. Como se trata de faculdades, energias, instintos ou impulsos, integrantes do homem, para que este seja equilibrado, é necessário desenvolvê-los, não unilateralmente, mas global e harmonicamente. Quem unilateralmente cultiva a faculdade do intelecto, p. ex., no estudo e na formação acadêmica muito exigente e demorada, pode-se desequilibrar, descuidando da afetividade. Ora, na formação religiosa e clerical tradicional, em acentuando muito a faculdade de intelecto, se descuidou inteiramente da afetividade. Por isso, hoje, é necessário cuidar muito do desenvolvimento e cultivo da afetividade. E isto, principalmente, quando se trata da formação da fraternidade e comunidade religiosa etc. etc. Toda essa explicação usual, que aqui foi reproduzida de uma forma simplificada, sim caricatural, pode receber formulações muito mais diferenciadas e complexas. E o que ela afirma está correto, se aceitarmos esse modelo da interpretação do homem, pressuposto nessa explicação. Mas se examinarmos mais de perto o que estão dizendo palavras como faculdade, energia, impulso, instinto, ficamos na perplexidade de não sabermos bem o que querem dizer. E quando começamos a questionar, se, p. ex., a afeição intensa de uma Santa Clara a Jesus Cristo Crucificado que ela chama de “l’ardente desiderio del crocifisso povero”, não é ela mesma enquanto afeição, ao mesmo tempo, vontade, afetividade e intelecção, começamos a perceber que na acentuação da afetividade na formação da fraternidade está havendo uma equivocação. Esta equivocação aparece mais claramente quando perguntamos se, nesse ardente desejo, Clara desenvolveu numa síntese harmoniosa tanto a afetividade como a faculdade de intelecção e volição, e se a afetividade precedeu ou seguiu à intelecção, e se esta antecedeu à volição etc. etc., Pois uma tal interrogação diante do encontro de vida ou morte de toda uma existência como a de Clara com Jesus Cristo Crucificado, soa ridiculamente alienada da realidade concreta dessa experiência religiosa. E a tal ponto alienada, que nem sequer se pode dizer que esteja errada. Antes, trata-se de uma outra coisa. No caso da afeição “ardente desejo”, trata-se da realidade do encontro e da história de toda uma existência, ao passo que, no caso da empostação sobre a afetividade e a faculdade intelectiva e volitiva, trata-se de uma espécie de análise e descrição clínica sobre o estado de coisa chamada equilíbrio e harmonia psíquicos de um sujeito, sob o ocular da empostação de um determinado “sistema” de explicação e interpretação da realidade.

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Se aqui aplicarmos o que dissemos no capítulo III, 4 sobre a fundamentação das ciências positivas, podemos dizer o seguinte: a fala sobre a afetividade, pressuposta na tendência de acentuar a afetividade em reação ao intelecto, está inteiramente esquecida de um exame crítico do positum de suas afirmações, e, a fortiori, inteiramente desenraizada d sua Lebenswelt. Essa alienação instala-a numa crença dogmatizada de que está falando diretamente da realidade em si. Ao passo que a fala de Clara, da afeição “ardente desejo do encontro com o Crucificado pobre” não é outra coisa do que o eclodir, o vir à luz, o aparecer, portanto, o fenômeno da própria Lebenswelt da experiência religiosa, num nível de profundidade muito grande, para dentro e a partir do abismo desvelante do sentido do ser. Ora, essa realidade, a afeição é infinitamente anterior àquela, a afetividade, mais ou menos como a água límpida e fontal do poço é infinitamente anterior às gotas de água grudadas no fundo do balde, vazio e encostado no muro do poço. E se toda essa fala sobre a afetividade contra a unilateralidade do cultivo exacerbado do intelecto nos ajuda na vida, não é tanto porque ela fala acerca da coisa ela mesma da realidade humana, mas porque de alguma forma participa de e está referida à Lebenswelt da afeição da existência.

Na medida, porém, em que recuperarmos um olho claro para colher as evidências que nos provêm da Lebenswelt da afeição da existência, aprendemos a intuir que afeição, intelecto e vontade são três termos exotéricos de uma realidade esotérica, a qual atua, cresce e se implica de si para si, consigo mesma como o abrir-se de um mundo, numa dinâmica de concreção estrutural bem diferenciada e subsumida por um perfazer altamente venturoso e aventureiro da liberdade de ser. Afeição, intelecto e vontade são momentos estruturais da existência na tarefa e no empenho de ter que ser. Por isso, nesse nível da realidade, não se pode dizer que a existência humana se tornou desequilibrada pela supervalorização e pelo cultivo unilateral do intelecto e que por isso, agora, devemos acentuar de novo a importância da afetividade.

Por isso, quando falamos da fraternidade e do elo de união da fraternidade, sobretudo quando essa fraternidade é uma comunidade de pessoas que se decidiram a seguir a Jesus Cristo e estão unidas por essa busca, não é muito real falar de cultivo da afetividade, como se faz usualmente entre os religiosos, hoje. Mas é de importância decisiva aqui seguirmos a lógica da estruturação da existência, no seu modo todo próprio de ser afeição. Se assim seguirmos essa lógica da existência, descobriremos com facilidade que o estudo e a formação intelectual de ciências, filosofia e teologia constituem um elemento fortíssimo para criar uma fraternidade, cuja característica essencial é empenho de busca da verdade e afeição transcendentes. Para poder intuir melhor essa lógica da existência, principalmente da existência cristã, vamos a seguir reproduzir um trecho do documento da nossa Ordem sobre a formação durante o tempo da profissão temporária, adaptando-o, para nossa reflexão.

b) O cultivo e a acentuação da afeição na lógica da existência cristã

O tempo da formação intelectual e do estudo de filosofia e de teologia quase sempre coincide com o período de profissão temporária e os primeiros tempos depois da profissão solene. Em todo esse tempo, os estudantes formam uma fraternidade, onde a ocupação principal é o estudo de ciências, filosofia e teologia. Para o convívio comunitário e fraternal nesse período, se acentua muito o cultivo da afetividade, do coração, do sentimento. E isto principalmente, como se costuma dizer, para equilibrar e compensar a demasiada ocupação com o intelecto e a razão. Sem entrar em discussão com essa colocação, é necessário recordar que tudo isso está sendo dito de e a pessoas

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que se reuniram numa fraternidade, cuja característica essencial é o seguimento de Jesus Cristo, e que se consagraram de corpo e alma, por um juramento, a assumir esse caminho por toda a sua vida. Trata-se portanto de uma fraternidade do projeto de vida. E quiçá de um projeto de vida que não vem da carne nem dos nossos planos e de nossas competências, mas que vem do próprio Pai de Jesus Cristo, como incumbência, missão e vocação.

Esse projeto de vida, que se chama seguimento de Jesus Cristo, é um encontro. Não há encontro sem afeição. Em se tratando de uma busca todo própria como a do nosso encontro de seguimento a Jesus Cristo, não é viá-vel a-viar-se num tal caminho decisivo e nele permanecer, sem uma grande afeição. A afeição de um encontro jamais vem de nós mesmos como o poder e o arbítrio da nossa própria vontade e do nosso intelecto. Ela já é o dom do próprio encontro. No seguimento, Jesus Cristo já sempre nos amou primeiro. O gosto, a afeição do seguimento, a afeição desse caminho, nós recebemos de Jesus Cristo. É necessário, pois, receber essa afeição, guardá-la, cultivá-la e fazê-la crescer, para uma emoção entranhada, dinâmica, para um sentimento profundo e forte, para uma cordialidade firme, constante, efetiva e fiel, enraizada na evidência da pura positividade da busca discipular.

Essa afeição inicial pode ser sentida através de atração, fascínio, entusiasmo profundo e intenso, mas sempre em vivências. Vivências vem e vão, podem embotar, definhar ou disparar, exacerbar-se em euforias e fogos de palha. É necessário, pois, conduzir o aumento da afeição inicial, sentida e vivida como vivências, a alimentar-se, aos poucos e em medida crescente, de confrontos reais e mais radicais com lutas, dificuldades, labutas de conquistas, tenaz trabalho de retomadas, para que se torne, cada vez mais clarividente, sóbria e firme, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais intensa, generosa, equilibrada, constante e fiel, a ponto de o aumento da afeição transformar a afeição inicial vivida como vivências numa vontade bem temperada na luta e nos sofrimentos, nas contradições e contrariedades, numa vontade esclarecida que, de corpo e alma, por toda a vida e por toda a eternidade, pode amar o Senhor e o mestre, a quem quer seguir, em tudo e por toda parte.

Esse processo de amadurecimento da afeição inicial do seguimento tem um modo de ser todo próprio, específico da vida de seguimento. Esse processo, essa conquista, esse perfazer-se não pode ser substituído por outros processos usuais de maturação da afetividade psicológica. Essa transformação e esse crescimento da afeição inicial do seguimento não são também um processo terapêutico. Não são algo como recuperação da normalidade da saúde afetiva, embora uma tal cordialidade radical seja o que há de mais saudável possível na existência humana. Saúde essa que nem sempre coincide, ou quase nunca coincide com o que a sociedade de consumo padronizou como saúde psíquica... Não é também um desenvolvimento da personalidade no sentido da psicologia, como ela é entendida usualmente. Não é pois “realização afetiva”!... Não se trata, pois, de “pedagogia”, de “psicologia” ou de “terapia”.

Trata-se de um ser, um perfazer-se, um tornar-se cuja essência tem todas as características de maturação e perfeição que nasce de um encontro na história de amor, onde tudo é busca, doação, engajamento, conquista e risco, dom de um encontro todo especial, de uma aventura singular, perigosa e fascinante, única e absoluta: da existência cristã, i.é, do seguimento de Jesus Cristo!

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Na formação de uma fraternidade franciscana, jamais podemos esquecer de colocar essa afeição essencial como o centro gerador da união e como o elemento fundamental absoluto de todas as nossas amizades, de todos os nossos relacionamentos fraternais. Se substituirmos essa afeição essencial pelo cultivo de outras afetividades, a nossa fraternidade franciscana pode viver bem, em paz e amor, mas se transforma numa outra coisa qualquer e perde sua identidade própria. Com o tempo, essa perda de identidade desvirtua e perverte por dentro toda a estrutura da fraternidade.

c) A afeição do seguimento e o estudo na formação intelectual

Esta colocação do documento sobre a formação durante o tempo da profissão temporária nos faz ver que a abordagem da afeição, que une e forma a fraternidade, é bem outra da que é feita por aquela tendência, acima mencionada, de tentar revitalizar o relacionamento mútuo dos irmãos dentro da fraternidade pelo cultivo e pela valorização da afetividade em “quase oposição” ao intelecto. É necessário não se equivocar, entendendo a colocação acima feita como um enclausuramento “chauvinista” dentro da absolutização dogmática de um espiritualismo, em oposição à psicologia e a outros recursos modernos de cuidado da saúde psíquica do homem de hoje. Trata-se antes de uma outra abordagem, que vem de um outro nível de radicalização, i.é, do enraizamento e fundamentação numa Lebenswelt mais profunda e mais próxima à existência cristã; é uma abordagem diferente da abordagem daquelas colocações, todas elas construídas sobre o positum da ciência positiva chamada psicologia. Não se trata portanto de opor uma colocação contra outra, mas de dizer que as colocações psicológicas não podem substituir a colocação mais profunda, proveniente da existência cristã, quando se trata da formação da fraternidade de pessoas que seguem a Jesus Cristo. Trata-se da distinção que Dietrich Bonhoeffer no seu livro “A vida comum” faz entre uma comunidade anímica e uma comunidade cristã.

Se entendermos limpidamente a palavra afeição dentro do seguimento de Jesus Cristo, i.é, como pertencente à dinâmica essencial da existência cristã, e entendermos o estudo, a formação intelectual, o intelecto como viemos refletindo nos capítulo precedentes, então podemos sem muita dificuldade intuir que entre a afeição e o intelecto reina uma syn-pathia e syn-tonia profunda e íntima, a tal ponto de o crescimento na afeição aumentar o intelecto, i.é, a evidência eidética, e o aumento do intelecto fazer crescer a afeição. Nessa syn-biose toda singular e própria não existe o problema de super-valorização de uma parte em detrimento da outra, a necessidade de equilibrar a harmonia entre as duas partes, cultivando as duas partes orgânica e simultaneamente etc. etc., pois a afeição e o intelecto não são partes, mas sim momentos das articulações da estruturação da existência.

Aqui não é o lugar de aprofundar em detalhes essa questão do relacionamento entre a afeição e o intelecto, e também entre o intelecto e a vontade, dentro dessa abordagem estrutural da existência. É importante perceber porém que faz uma diferença enorme na prática de uma formação possuir uma intuição teorética que capta diferenças de níveis das dimensões e suas lógicas ou não possuir nada disso e operar apenas em conceituações vagas, esquecidas da questão de sua fundamentação e sua precompreensão. Acentuar a afetividade contra o intelecto pode ser até muito prático em certas situações ocasionais. Mas quando se trata de um trabalho de formação, sério e engajado, o grande problema na práxis não é a prática. É a teoria da teoria e prática que comanda a impostação prática de um formador.

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A seguir tentemos examinar brevemente como a nossa formação intelectual, i.é, o estudo de ciências, filosofia e teologia constitui um elemento riquíssimo para a formação da fraternidade franciscana.

2. Alguns elementos fundamentais do caminho do estudo, decisivos na formação da fraternidade

Elementos são modo de ser, que, sempre de novo, ocorrem em tudo que fazemos, como posturas e movimentos básicos, sobre os quais se podem estruturar modulações, variantes, formas diferentes e diferenciadas, sem que percamos a unidade e a coerência de um todo dinâmico, sempre o mesmo e sempre de novo aberto a novas possibilidades. Estudo aqui deve ser entendido na acepção do empenho de uma existência, i.é, como caminho, como a-viar-se num processo de busca do sentido do ser. Foi nessa acepção de caminho, de via, que tentamos descrever o estudo e a formação intelectual nos capítulos precedentes.

a. O estudo das ciências

As matérias das ciências se chamam disciplinas. A disciplina é o elemento fundamental que as ciências nos podem ensinar e nos disciplinar para a fraternidade. O problema todo é compreender, com precisão, em que sentido devemos entender a palavra disciplina, quando se afirma que as ciências nos podem ensinar a disciplina e nos disciplinar para a fraternidade.

a1. A disciplina das ciências como habilidade de sistematização

Entendemos usualmente o disciplinar como adestrar alguém para entrar numa funcionalidade preestabelecida, para que opere adequadamente ali dentro. Nesse sentido disciplina seria adequação à funcionalidade preestabelecida, adquirida por treinos e adestramentos. Como nas ciências reina uma funcionalidade bem determinada, hoje usualmente exemplificada pelas ciências naturais, onde reina o rigor físico-matemático-lógico, pensamos que as ciências são úteis para colocar a cabeça dos estudantes em ordem, para que aprendam a pensar logicamente...

Entender assim a disciplinação das ciências e a sua atuação formativa sobre os irmãos estudantes pode ser até prático e interessante superficialmente e à primeira vista. Mas esse tipo de disciplinação ou melhor de adestramento, não forma pessoas que saibam pensar, mas sim cria tipos de funcionários de uma empresa, dominada pela prepotência do formalismo lógico. E nenhum funcionário do formalismo lógico conseguiu sobreviver a e muito menos sondar, auscultar e amar a ordenação caótica da fraternidade franciscana. A logização, a formalização, o adestramento, a “militarização” não pertencem à intencionalidade originária das ciências. São formas defasadas, são modos deficientes da disciplina científica em função de uma dominação totalitária.

Como todos já sabemos, a palavra disciplina vem do verbo latino discere (disco, didici, -ere) que significa aprender. A disciplina seria então a dinâmica de aprendizagem. A nossa dificuldade hodierna, porém, provém do fato de compreendermos quase automaticamente a palavra aprendizagem como adestramento e funcionalização dentro de uma funcionalidade preestabelecida. Como pois entender o discere, a dinâmica de aprendizagem no seu sentido elementar?

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Ao sermos introduzidos numa ciência, começamos a receber informações. Geralmente essas informações estão empacotadas com mais ou menos didática dentro dos manuais daquela matéria. Nesses manuais encontramos um histórico sobre a evolução da ciência em questão, sua definição, informação sobre o objeto dessa ciência, sobre o método e as técnicas usadas nela etc. etc. Em geral, o que usualmente entendemos por e encontramos como manuais de uma ciência nas livrarias e escolas são resumos didaticamente elaborados das informações sobre os dados conquistados pela ciência e sobre os meios usados para conquistá-los. Mas existem manuais e manuais. E na realidade a idéia do manual na sua intencionalidade originária não é tanto de resumir para facilitar a introdução na aprendizagem de uma ciência, mas de cuidar para conservar todo o acervo de conquistas feitas por uma ciência em todos os seus detalhes, ordenando-as em dados comprovados, menos comprovados, dados conjeturais, prováveis, teorias, hipóteses, diferentes abordagens, métodos etc. Esse acervo que constitui o conjunto sistemático da construção chamada ciência, no seu aspecto virado para fora, i.é, exotérico, é posto à mão (manual) dos que pertencem ou querem pertencer à fraternidade de pesquisa e investigação de uma determinada ciência. Por isso, p. ex., no meio acadêmico alemão, o manual, o Handwerk de uma ciência perfaz uma série de tratados, contendo digamos de 10 a 20 ou mais grossíssimos volumes, i. é, toda uma enciclopédia.

Isto significa que a disciplina, i.é, a dinâmica da aprendizagem, a aprendizagem nas ciências, não tem muito a ver com adestramento para e encaixe dentro da funcionalidade preestabelecida, mas tem tudo a ver com o despertar, o crescer e amadurecer da capacidade e habilidade de sistematização.

A palavra sistema (sistematização, sistemático) tornou-se para nós sinônimo para indicar um conjunto fechado em si, com estruturas fixas, preestabelecidas ou fossilizadas, onde é exígua a possibilidade de uma vida livre, onde a criatividade, a originalidade, a abertura de novos horizontes são abafadas. Essa compreensão do sistema não está errada, pois na maioria dos casos, um sistema acaba se instalando nessa forma defasada e deficiente. Sistema, no entanto, tem muito mais a ver com constituição, consistência, instituição e construção, do que com um conjunto fechado de estruturas prefixadas e fossilizadas.

O termo systema vem do verbo grego syn-ístemi, que significa: ístemi = colocar em pé, por em pé, fazer tomar pé num lugar; syn = com, numa unidade, como totalidade coerente e bem ordenado em sua estruturação, portanto com-sistir, com-struir, com-sistência, com-stituir, in-sistir, instituir. Sistema é obra da ação de synístemi; sistematização é a ação e a obra de synístemi: a construção e instituição. Instituição aqui entendemos como a ação de in-stituir, de in-sistir, i.é, de fazer sistir, stituir in, a saber, a ação de fazer ou ficar em pé in, para dentro de si como uma totalidade bem assentada no seu fundamento.

Sistema, sistematização, é pois obra e ação, o perfazer-se, a perfeição essencial da estruturação interior de uma construção desde o fundamento até o cume o mais alto da sua constituição.

O animal, dizemos nós, constrói. Mas na realidade o uso da palavra construir para o animal não é muito exato. O construir é propriamente um apanágio do homem. Construir no sentido de sistematização, de sistema, só o pode o homem, pois essa ação pertence e revela a essência da sua existência. Ao passar pela clareira de uma floresta selvagem, de repente o homem é atingido pela beleza esplêndida mas fugaz da mata.

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Esse atingimento faz despertar dentro dele um anelo profundo e misterioso, antes adormecido, que embora ainda indeterminado, começa a surgir como desejo de perpetuar e assegurar aquela beleza fugaz. Compra a floresta e começa a construir. Adapta a construção da moradia à floresta, ou melhor, deixa-se ditar as normas e o modo de construir pela floresta, mas ao mesmo tempo que vai construindo, vai melhorando o aspecto da própria floresta, ao redor da casa, abrindo clareiras, limpando com cuidado a mata, plantando jardim, traçando sendas e atalhos. Do caótico dado, generoso da possibilidade selvagem i-munda de uma floresta virgem, faz surgir, faz ficar em pé, faz tomar pé um mundo, uma habitação. Nesse mundo que assim surge, todas as coisas, não somente a moradia e o seu arredor, mas tudo, a floresta, o céu, a terra, o dia e a noite, cidades vizinhas, a região, o país, o continente, os homens, as civilizações, o universo inteiro no tempo e no espaço estão presentes como articulações de possibilidades veladas, sustentando numa unidade e totalidade viva o surgir da pequena moradia na clareira da floresta. O homem tem o poder e o dever de ser atingido por uma dada possibilidade do seu ser, da Lebenswelt, assumi-la como decisão de posicionamento da sua possibilidade e coerente e generosamente ir explicitando as possibilidades implícitas no positum dessa decisão. Assim, da imensidão do abismo desvelante do sentido do ser, ele acolhe uma possibilidade como Lebenswelt, toma pé nessa possibilidade e constrói todo um mundo de realidade como sistema. É o movimento da constituição das ciências positivas exposto no capítulo III, 4.

O exemplo acima mencionado não serve bem para ilustrar o movimento da constituição das ciências positivas, pois embora muito mal descrito, soa demasiadamente digamos “poético”, particular e caseiro, para poder ilustrar a gênese das ciências. Mas talvez possamos manter o exemplo, dizendo que a construção da moradia modesta na floresta se move no nível da sistematização, i.é, da constituição das ciências em seu enraizamento numa Lebenswelt. Embora soe “poético” e particular-caseiro, na realidade o exemplo evoca o velamento na possibilidade pré-científica na Lebenswelt, onde pulsam numa presença silenciosa riquíssimas possibilidades provenientes do abismo desvelante do sentido do ser. Esse enraizamento na Lebenswelt aparece na construção da moradia na floresta, pelo modo de posicionar-se do homem na floresta. Ele deixa-se guiar pelo atingimento da beleza esplêndida e fugaz da clareira, no acionar a construção. Assim, ele não constrói a casa contra a lógica da doação imediata da Lebenswelt. E nessa obediência à Lebenswelt, em tudo que articula, aparece a totalidade do ser de uma forma velada, i.é intensamente profunda, proporcionando a todas as articulações da construção uma unidade e plasticidade viva, dinâmica, mas silenciosa e contida. A casa se casa com a floresta, com o céu e a terra. Digamos que esse homem, ao habitar longo tempo nessa moradia, atrai outras pessoas que vêm morar na sua proximidade. Estabelece-se uma colônia. Mas todos eles deixam-se guiar pelo mesmo vigor da possibilidade da Lebenswelt que tocou e continua tocando aquele homem que construiu por primeiro uma casa na clareira da floresta daquela região. Da colônia surge uma cidade. Mas uma cidade toda própria, que em tudo, no modo de habitar, no modo de fazer o negócio, no modo de economia, no modo de governar, continua seguindo a lógica do toque originário da Lebenswelt. Na medida em que cresce a cidade, a possibilidade da Lebenswelt em questão se explicita cada vez mais, revelando possibilidades cada vez mais profundas, e na medida em que vão aparecendo possibilidades mais profundas, implícitas na Lebenswelt, elas vão organizando o progresso daquela “cultura”. Emerge assim como construção, como sistematização um mundo cada vez mais diferenciado em suas articulações, unidas organicamente numa totalidade coerente. Podemos agora tomar uma dessas articulações, como p. ex., o modo

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de construir a moradia, dado nessa “cultura”, e fixar normas, leis e princípios que constituem essa ação de construir. E, a partir dessas fixações, começar a fazer experimentações, pesquisas de materiais mais adequados etc. etc. Nós estamos tomando uma das articulações da Lebenswelt como o positum, o fundamento de uma ulterior construção, i.é, sistematização e desenvolvendo uma ciência que poderíamos chamar de engenharia ou arquitetura.

a2. A habilidade de sistematização e a fraternidade

Examinemos brevemente em que sentido a habilidade de sistematização que as ciências nos podem dar em nossa formação intelectual constitui um elemento essencial e precioso para a formação da fraternidade.

Como foi descrita acima, a habilidade de sistematização é um modo de ser que tem mais ou menos as seguintes características:

– A sensibilidade intuitiva de ser afetado pelo toque da Lebenswelt e imediatamente perceber ali uma possibilidade implícita da gênesis de um mundo, i.é, ordenação de uma totalidade estruturada, p. ex., Newton, a queda de uma maçã, a lei da gravidade e a possibilidade de descoberta de um princípio, a partir do qual se pode interpretar o todo do universo.

– A perspicácia de descobrir fios condutores, que estão implícitos nesse toque e trazê-los à luz como articulação da totalidade, nessa gênesis do mundo.

– A capacidade de sair do entocamento no que se apresenta diante de si como uma coisa, para ver nessa coisa um momento do toque de horizonte de possibilidades de todo um mundo.

– A habilidade e o gosto de lidar não tanto com fatos, mas com possibilidades, portanto, ser carismático da possibilidade, i.é, ser intuitivo dos novos horizontes e das novas fronteiras.

– E, no entanto, uma vez atingido pelo toque da Lebenswelt, saber construir a partir do positum dessa Lebenswelt, passo a passo, tenaz e coerentemente, uma estruturação limpidamente adequada à possibilidade oferecida por aquele positum.

– Uma mente alheia a extrapolações de dimensões, contrária ao avoamento, à euforia festiva, a saltos desconexos, à frouxidão intelectual.

– Uma mente altamente responsável pela atenção crítica, numa atinência constante ao princípio que se constitui como fundamento do mundo que constrói, na acribia de comprovação de cada passo que dá nessa construção, no seu todo e nas suas articulações parciais.

– E nesse cuidado de posicionar-se e construir passo por passo, comprovando sempre de novo cada passo que se dá na construção, ao mesmo tempo em que se assenta e toma pé na atinência ao fundamento escolhido, portanto ao mesmo tempo em que se institui, se firma em si, não perde o gosto, o cuidado, sim a paixão pela busca de novas possibilidades. Com outras palavras, ao mesmo tempo em que assume com todo o cuidado o que se levanta como construção a partir de um fundamento e coerentemente

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constrói sempre mais alto, questiona sempre de novo o próprio fundamento, investigando novas possibilidades e novos horizontes de possibilidades.

Se agora examinarmos bem o modo de as ciências se constituírem, perceberemos que o modo de, p. ex., uma ordem religiosa se edificar, a partir de uma inspiração carismática, se assemelha muito ao modo da constituição das ciências. Deixando para uma outra ocasião um exame mais cuidadoso da diferença e semelhança da gênesis dessas duas constituições, aqui apenas observemos o seguinte em referência à formação da fraternidade.

No seu modo de viver, na maneira como organiza o seu cotidiano, nas suas regras e constituições, uma ordem religiosa está impregnada de disciplina. E desde o noviciado até o fim da vida, o religioso é treinado sempre de novo e mesmo na “marra” nos exercícios de disciplina. O mesmo se pode dizer da vida clerical dentro da Igreja Católica. É que tanto a Igreja como a Ordem são constituídas como um grande sistema, no sentido acima explicitado. E, no entanto, embora externamente apareça coeso e bem disciplinado, por dentro esse sistema sofre grandíssimas dificuldades para vitalizar e fazer crescer o vigor de sistematização, sempre no sentido acima explicado. Essa defasagem se sente também em nossas fraternidades, principalmente nas fraternidades franciscanas. Nós somos ótimos e fraternais quando se trata de confraternização. Mas quando se trata de construir juntos, planejar, assumir o que a geração anterior fez e levá-lo adiante, fazendo-o progredir, quando se trata de abrir todos juntos um novo horizonte, mudar nossos hábitos inveterados, desinstalar-nos como fraternidade para um ideal novo etc. etc., sentimos um peso quase impossível de remover. Por que isso, se toda a estruturação de nosso sistema está impregnada de sistematização, da disciplina sistemática?

Hoje, diante dos desafios do mundo contemporâneo, falamos muito de novas fronteiras, de novos horizontes, dos sinais dos tempos. Falamos da necessidade de nos desinstalarmos e nos adaptarmos ao mundo de hoje. E culpamos a estrutura da Ordem, as leis e as normas da nossa vida como arcabouços antiquados de um sistema passado que nos impedem de darmos passos carismáticos para frente. E, nas fraternidades, tentamos revitalizar o vigor de união e de colaboração mútua, acentuando a afetividade, falando da necessidade de cultivar a afetividade. Embora não o digamos cruamente, embora repitamos constantemente para não exagerar, não radicalizar unilateralmente as coisas, sabemos no fundo muito bem que todas essas tentativas e falas não têm lá muito efeito duradouro. No fundo sentimos que estamos fazendo um trabalho, sem pensar muito, sem examinar bem as causas, digamos de um modo diletante, a tal ponto que, por mais idealismo e mais “boa” vontade que testemunhemos, torna-se irresponsável um tal diletantismo, em se tratando de um sistema de busca transcendente como o nosso, chamado Ordem dos Frades Menores no seguimento de Jesus Cristo. E surge uma suspeita. Será que, apesar de toda a nossa boa vontade e do enorme desgaste de energias e de sacrifícios, não estamos operando como quem constrói sobre areias? Não estamos acentuando demasiadamente pontos que não são muito nevrálgicos, negligenciando por completo o pivô da questão?

Talvez o pivô da questão esteja no endurecimento, no bitolamento da nossa mente. Por mais boa vontade que tenhamos, não sabemos pensar, sopesar palavras, situações, problemas e soluções. Mesmo muito academizados não sabemos agilizar a mente fora do adestramento de nossas especializações. E nas nossas especializações não adquirimos a maturação do modo de ser científico acima insinuado, da sistematização,

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mas somos apenas funcionários ideologizados de uma determinada “ciência”, endurecida no dogmatismo obsoleto na compreensão de si mesma.

Com outras palavras, o que falta não é adquirir o modo de ser da disciplina, como no-la dão as ciências em sua constituição? Imaginemos um grupo de pessoas, reunidas numa fraternidade do seguimento de Jesus Cristo, engajadas de corpo e alma nessa busca, exercitadas na habilidade da disciplina, com as características acima enumeradas, de uma mente aberta, capaz de construir como as ciências sabem construir?

Em nossa formação intelectual, ao estudarmos as ciências, não seria algo altamente útil, sim necessário, transmitir a mística dos estudos científicos e o modo de ser da disciplina, como no-la oferece uma ciência bem transmitida?

Por que então não considerar a fraternidade do estudo e da formação intelectual, p. ex., institutos de uma província para a formação filosófica e teológica e mesmo os nossos seminários, como lugar e tempo de intenso labor na formação dessa habilidade disciplinar?

a3. O perigo da disciplina científica

O que foi dito de uma forma muito imperfeita e desengonçada acerca da disciplina que as ciências nos podem ensinar para a formação não coincide com a recomendação entusiástica do estudo das ciências, quase no sentido da euforia ingênua de um positivismo obsoleto, dogmatizado na crença do poder das ciências. Quando aqui se fala de ciências e sua disciplina, estamos falando do modo de ser da existência científica na sua profundidade esotérica, voltada para dentro, e não tanto no seu lado exotérico, onde pode reinar defasagem e esquecimento do sentido originário da constituição das ciências, sim, hoje, até uma dominação sinistra da busca do poder totalitário, organizada em instalações cada vez mais complicadas e sofisticadas, poderosas, monopolizando para si o título de cientificidade. É o que vemos no gigantismo das universidades, sua politização, sua instrumentalização, sua ideologização. Não se trata pois de mais técnica, mais organização funcional, racionalização dos setores etc. etc. Trata-se da idéia reguladora, dos eidos, da essência da formação científica no seu núcleo, que na realidade é muito finito e mortal. Principalmente para nós, franciscanos, ao insistirmos na formação intelectual e científica, o perigo de esquecer a nossa identidade dos seguidores da senhora pobreza e embarcar nessa nave espacial do poderio “jesuítico” do saber é muito grande. Mas desse perigo não escapamos pelo fato de tentarmos voltar à simplicidade e à sabedoria do pobre, fugindo do estudo, desprezando o estudo, num espiritualismo cômodo e fácil, preguiçoso, eivado de “romanticismo” adolescente e estético, que se esquiva do confronto duro e necessário com as ciências e o estudo. Hoje, a única maneira de sermos realmente pobres no sentido de Francisco, na disponibilidade de oferecer o seu corpo para a luta corpo a corpo pela causa da Senhora Pobreza, do Senhor Jesus Cristo, o Crucificado, é ir até o fundo da constituição das ciências, e ali aprender a disciplina da finitude do synistemi, intrépida e generosa no seu afã de bem edificar.

Para que as ciências na sua constituição não pervertam o vigor da finitude do synistemi no poder de dominação totalitária de um determinado positum, esquecido da sua Lebenswelt e do seu enraizamento no abismo desvelante, é necessário aprender o modo de ser da autonomia da filosofia, como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante (cf. cap. III, 6).

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b. O estudo da filosofia

O movimento chamado filosofia, que é o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante, já existe na própria constituição das ciências, mas operativa e não tematicamente. Nas ciências, esse movimento operativo de redução aparece quando uma ciência entra em crise de seu fundamento, e se vê na necessidade de reexaminar as pressuposições ou precompreensões fundamentais de seu construir. Com outras palavras, em vez de simplesmente construir para o alto, acrescentando estruturas cada vez mais complexas e sofisticadas do saber, em explicitando a possibilidade assumida no positum do seu início, a ciência volta a sondar o positum em referência à Lebenswelt da experiência pré-científica, na ausculta de possibilidade talvez mais profunda e mais rica, esquecida no afã de construir sempre mais o edifício da ciência. Essa crise do fundamento e essa volta ao positum determinam o real progresso qualitativo de uma ciência. Nas ciências, esse movimento de redução não é buscada nele mesmo, i.é, tematicamente, mas somente enquanto serve à refundamentação do positum de uma ciência num fundamento mais eficaz, fecundo e profundo. Na filosofia, ao contrário, esse movimento de redução é buscado nele e por ele mesmo, digamos, como o tema da busca, e assim a busca busca o fundamento da própria busca, num a-profundar sempre mais intenso para dentro de si mesmo, afundando-se para dentro do abismo desvelante do sentido do ser. É pois uma busca por buscar, não no sentido de um alienado brincar de busca, sem compromisso nem responsabilidade, mas sim no sentido de um engajamento total e absoluto em assumir a responsabilidade da busca, a partir e dentro da busca, sem extrapolar-se por mínimo que seja para outros recursos alheios à própria busca na auto-responsabilização da liberdade. Esse modo de ser se chama autonomia e constitui a essência da liberdade. Por isso a disciplina, i.é, a dinâmica da aprendizagem da filosofia é autonomia.

b1. A disciplina da autonomia

A palavra autonomia é ouvida muitas vezes como auto-suficiência. A auto-nomia não é a pretensão de se dar a lei a si mesmo? Não é a hybris do homem moderno, que na afirmação absoluta da sua própria liberdade, corta as amarras do transcendente, e se imanentiza na absoluta autodeterminação por e para si: o homem que se arroga a aseidade de Deus (a se: a partir de si) e se declara a medida de todas as coisas... Essa interpretação da autonomia, principalmente da autonomia da assim chamada filosofia moderna, é freqüente no nosso meio clerical, embora não tão simplificada caricaturalmente como o é aqui nessa exposição. E a partir da “teologia e da filosofia cristã” declaramos a insuficiência de uma tal autonomia, como sendo um absurdo trágico do homem contingente que, em negando e se revoltando contra sua contingência, se proclama absoluto em assumir a própria contingência, rejeitando e ignorando a sua total dependência de Deus, como algo indigno da liberdade, da autonomia humana. É claro que numa interpretação assim, o estudo da filosofia moderna não pode ser levado muito a sério. Estudando-a desse modo, já a estamos abordando como uma colocação, digamos, errada, doentia, esquecida da verdade da heteronomia da nossa existência criatural.

Na realidade, a autonomia e a disciplina da autonomia não são uma característica da filosofia moderna. Nós a entendemos assim porque na história da filosofia colocamos o pensamento medieval, p. ex., como filosofia (cristã = teísta, religiosa) e a moderna como uma mundividência baseada na independização a-teísta que o homem fez da dimensão transcendente e divina. E não percebemos que a autonomia e a disciplina da

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autonomia são a essência da própria filosofia. Lá onde filosofia é filosofia e não apenas mundividência em função e a serviço da teologia, filosofia e autonomia dizem o mesmo. E o Deus do filósofo não coincide com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó e muito menos com o Deus de Jesus Cristo (cf. Pascal). Por isso, a autonomia da filosofia como tal, atribuída à filosofia moderna, não é negação, indiferença nem “saudades” de Deus, mas sim o modo de ser todo próprio da própria filosofia que, no cap. III, 7, denominamos de finitude ou pobreza da filosofia. É esse modo de ser que nos interessa na formação intelectual, pois constitui um dos elementos preciosíssimos para a formação da fraternidade.

Sem nenhuma garantia de que o que segue tenha de alguma forma uma comprovação filológica válida, tentemos ilustrar o que seja a autonomia como finitude ou pobreza da filosofia. Provavelmente as explicações das palavras sejam uma pura chutação. Mas talvez, mesmo sendo chutação, possa ilustrar o fenômeno.

A palavra autonomia é grega e se compõe de auto e nomia. E significa independência, liberdade, o modo de ser dos que vivem segundo a sua própria lei. A palavra auto significa mesmo, em si, por e para si, pessoalmente, a partir de si. Mas propriamente auto indica um movimento, o movimento que podemos circunscrever como erguer-se a si mesmo, destacar-se, realçar-se, alçar-se, colocar-se a si mesmo a partir de si. Nomia vem de nomos, que usualmente traduzimos por lei, prescrição, ordem, mas também significa uso, costume, hábito, os costumes. Nomos por sua vez vem do verbo nemo (nemein) que significa repartir, partilhar; outorgar, conceder, conferir; receber como sua parte em uso, possuir; dominar, reger, administrar; habitar, cultivar a terra etc. Etimologicamente parece que o radical nem significa propriamente dobrar, curvar. O que tem todas essas significações variantes a ver com autonomia?

Numa conjetura diletante e chutada talvez se possa dizer que todas essas significações da palavra auto e nomos (nemo), de algum modo indicam um modo todo próprio de ser do empenho humano.

Tudo no ser humano é um erguer-se a si mesmo e nesse movimento constituir-se como ele mesmo. Nada no homem é ocorrência, nada nele é simplesmente dado, nenhum momento nele e dele é fato, mas sempre e cada vez de novo um ter que ser. Mesmo para o homem ser uma simples ocorrência, p. ex., ficar deitado num “dolce far niente” na cama, ele deve se alçar a si mesmo a partir de si. Isto ele não vê, se fica na cama ocasionalmente, mas se ficar, p. ex., três dias seguidos, sentirá com certeza o peso da fadiga do empenho do “far niente”. Com outras palavras, para o homem ser, ele deve ser auto. Por isso, o termo auto de auto-móvel ou auto-mático, por exemplo, empregado para se referir a uma máquina, denota uma incompreensão total da palavra auto. O empenho humano e o próprio humano como tal, como o movimento de ter que ser, de ter que se pôr, se colocar a si mesmo a partir de si, têm o modo de ser de partilhar, repartir, não tanto no sentido usual dessas palavras, i.é, de distribuir, mas no sentido de uma referência ao ato de curvar(-se) e dobrar(-se). Isto é, em todo nosso empenho humano, o homem se dobra, se curva e nesse encurvamento, nessa dobra, se partilha a si, se participa de si, se dá, se outorga, se concede, e se confere a si mesmo e se recebe a si mesmo como sua parte em uso. Mas o que querem dizer todas essas insinuações? Talvez um exemplo possa salvar todo esse palavrório.

Conta uma legenda japonesa que o famoso guerreiro do antigo Japão, Kussunoki Massashige, celebérrimo pela sua inteligência e pelos seus lances geniais de estratégia,

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já na sua infância vivia no meio dos guerreiros. Uma vez, no castelo do seu pai, observava os vassalos do seu pai, que reunidos ao redor de um enorme sino de bronze, suspenso por uma armação de grossas madeiras, estavam apostando quem deles conseguia pôr em movimento o sino que pesava toneladas. Mas nenhum deles, mesmo o mais hercúleo, conseguia mover o sino, nem sequer por um milímetro, por mais ímpeto e violência que empregasse. O menino assistia a tudo isso com muito interesse. E de repente se oferece para mover o sino. E lhes pergunta se pode usar todo tempo que necessitasse para um tal empreendimento. Meio zombeteiros, meio admirados e achando graça, os guerreiros o desafiam a realizar o seu propósito. O menino cola todo o seu corpo ao sino, e, sem pressa, sem ânsia, suavemente, mas com toda a possibilidade do seu pequenino corpo, empurra até onde pode e solta, empurra e solta, como que sondando o tempo do sino, cordialmente, sempre de novo e sempre novo, como que recebendo e dando parte do sino e parte de si, num intercâmbio simbiótico amigo, por horas a fio. E aos poucos, de início imperceptivelmente, mas aos poucos visivelmente o enorme sino começa a balançar.

No movimento desse pequenino corpo colado ao sino se dá numa simultaneidade viva, um dar e receber que não é propriamente o dar e receber do um para o outro, como se se estabelecesse um contato entre dois pontos extremos em si, separados entre si, no qual o sino desse e recebesse e o menino também desse e recebesse. Certamente, visto por um terceiro, o sino e o menino são duas coisas. Mas na experiência do corpo colado ao sino, a imensidão do sino é a impossibilidade da possibilidade finita do corpo, colado ao sino num empenho corpo a corpo. O corpo da possibilidade finita do menino não sabe o que pode, mas em sentindo a imensidão do sino como impossibilidade da sua possibilidade finita, ao empurrar, se dá todo e inteiro à sua impossibilidade, recebendo-a de volta como imensidão abissal para dentro da qual e a partir da qual a possibilidade finita se alça, se ergue, toma pé como disposição de ser. Esse erguer-se não é propriamente um pôr-se de pé heróico, prometeico, da afirmação do eu, nem um desafiar trágico e revoltado contra o destino impossível, mas sim um curvar-se, um dobrar-se para dentro da possibilidade finita, sentida não como privação indevida da infinitude, mas como um vigor todo próprio, intrépido e cordial de ser o nada da sua possibilidade como a total disponibilidade de querer e ter que ser o próprio ser na inteira responsabilização de si mesmo. Esse vigor re-fletido, esse vigor ponderado, o corpo finito o sente como parte de si, e ao mesmo tempo como porção da imensidão abissal, doada a si como a sua parte para o seu uso. E assim nesse dar-se e receber-se simbiótico da impossibilidade da possibilidade finita, como o intercâmbio, como o comércio do finito e infinito, a possibilidade finita, a finitude, que é a essência, o vigor fundamental do homem, o seu modo próprio de ser, cresce como que parte por parte, partilha, participa de, lhe é outorgada, conferida, recebe a disposição da liberdade: a autonomia. É desse modo de ser autônomo, dobrado, curvado para dentro da disposição da liberdade – e nessa disposição –, dobrado e curvado para dentro do abismo insondável da imensidão desvelante do sentido do ser, é desse modo de ser próprio do homem que, para os gregos, surgiam leis, cidades, costumes, uso, reinos, é nesse modo de ser que se cultivava a terra, ordenavam-se as casas, é esse modo de ser que constituía a morada na terra dos homens. Por isso nomia, nomos, nemo se referiam ao uso, aos costumes, ao habitat, a dominar, reger, administrar, habitar, cultivar a terra.

Tudo isso significa que a autonomia, a disciplina da autonomia, nada ou pouco tem a ver com a hybris e a auto-afirmação orgulhosa da negação ou independentização de Deus. Mas essa autonomia da filosofia, que não é outra coisa do que a absoluta

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responsabilização de o homem ser e ter que ser na disposição da liberdade, não é propriamente dispor-se à graça de Deus ou abrir-se à “transcendência” do Deus de Jesus Cristo. Pois é a essa disposição da liberdade que, hoje, na filosofia, chamamos de transcendência. Esta não coincide com o Deus cristão. E a tarefa da filosofia na sua profundidade esotérica é dispor o estudante à essa transcendência responsável e cordial da autonomia.

b2. A disciplina da autonomia e a fraternidade

Examinemos agora, brevemente, em que sentido a autonomia, a disposição da liberdade, é um elemento precioso para a formação da fraternidade franciscana.

A disciplina da sistematização como as ciências no-la poderiam dar poderia nos habilitar para sermos competentes e dispostos agentes da formação da fraternidade, conforme o que foi descrito anteriormente. No entanto, essa disciplina da sistematização, no sentido explicitado nessa nossa reflexão, embora pudesse preparar um irmão menor para poder realmente ser construtor da verdadeira instituição fraternal, não consegue formar o irmão menor para ser fraternal até o fim, na vida e fraternidade franciscana, se ele não se disciplinar na autonomia.

Em geral, quando permanecemos na compreensão da fraternidade no nível de um convívio amigo e familiar e de realização da afetividade etc. provavelmente não surge a dificuldade sobre a qual queremos refletir a seguir. Mas, se colocarmos a fraternidade na exigência da fraternidade, inteiramente dedicada ao seguimento de Jesus Cristo, como instituição, surgirá a dificuldade, para cuja solução não basta a disciplina da sistematização. De que dificuldade se trata?

Celano relata uma previsão de S. Francisco na Vita II, 157 que diz:

Verrà tempo, in cui questa diletta religione di Dio sarà talmente infamata dai cattivi esempi, che se proverà vergogna a uscire in pubblico. Quelli che verrano in quelle circostanze all’Ordine, vi saranno condotti unicamente dall’azione dello Spirito Santo, non li contaminerà né la carne né il sangue e saranno veramente benedetti da Dio. Non compiranno azioni di grande merito, per il raffreddarsi della carità, la virtù che spinge i santi ad agire fervorosamente. Però sopraggiungeranno per loro tentazioni immense, e quanti alora avranno superato la prova, saranno megliori dei loro predecessori. Ma guai a quelli che, soddisfatti della sola apparenza di vita religiosa, intorpidiranno nellózio e non rimarranno saldi nele tentazioni permesse per provare i giusti! Perché soltanto chi avrà superato la prova, dopo essere stato nel frattempo tribolato dalla malizia degli empi, riceverà la corona di vita.

Esta fala de Francisco vem da fé. Por isso, não é muito adequada para ilustrar a reflexão acerca da importância da disciplina da autonomia, como no-la dá o estudo da filosofia, para a formação da fraternidade. Mas, salvaguardada essa diferença de dimensão entre filosofia e teologia, ela nos aponta para um problema real que ocorre na formação da fraternidade: o problema da corrupção e queda de nível da busca essencial da instituição religiosa no seu todo. Toda e qualquer instituição, na maneira de ser vivida por seus membros, pode apresentar corrupção e queda de nível do ideal proposto pela instituição. Numa linguagem usual, que a prática não corresponda à teoria, ou que a vida não espelhe o ideal, é algo que experimentamos todos os dias. Que numa fraternidade franciscana nossa, não se viva muito bem o nosso ideal, pode escandalizar muito as pessoas que entram na fraternidade com todo o idealismo e entusiasmo juvenil. Mas, se essas pessoas são pessoas que têm mais experiência de vida e foram curtidas na luta e no labor de uma sociedade moderna como a nossa, e estando bem exercitadas na

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disciplina de sistematização, como no-la dão as ciências, assumem essa dificuldade com relativa facilidade e se engajam para construir uma fraternidade que aos poucos viva melhor o seu ideal. E se essas pessoas verem que não somente uma ou mais fraternidades não vivem o ideal, mas toda uma Província, sim toda a Ordem, terão a suficiente capacidade para examinar, se vale a pena se engajar numa tal instituição, e depois de bem examinados todos os itens, decidirão ficar ou não ficar numa tal instituição. Se ficarem, o fazem porque vêem que os membros da instituição, embora não vivam o que professam, acreditam no ideal e o conservam, ao menos teoreticamente. Numa tal instituição, a vida de seus membros está corrupta, mas não o ideal da instituição. Essa maturidade intelectual de distinguir a teoria da prática, e dispor-se a trabalhar na construção do ideal de uma instituição, no-la podem dar as ciências na disciplina da sistematização.

Mas, se na própria teoria que orienta e coordena uma instituição, se no seu ideal entra a corrupção e a queda essencial de nível de compreensão, mesmo com toda a maturidade de uma pessoa bem exercitada e esclarecida pela disciplina de sistematização, não há possibilidade de ver um sentido em entrar ou ficar numa tal instituição. Pois aqui a instituição como tal deixou de ser aquela instituição, constituída para aquele ideal que ela professa em suas constituições, e se transformou numa outra coisa, numa outra instituição. Com outras palavras, a fraternidade perdeu o fundamento em vista do qual é fraternidade, negou a sua filiação ao pai, de quem recebeu o mesmo sangue, que une a todos como verdadeiros irmãos.

Suponhamos que aconteça na fraternidade da Ordem um tal esquecimento do fundamento, uma tal queda de compreensão teorética do ideal, que todas as palavras e todos os conceitos usados, embora guardem externamente toda a configuração e forma, indicando o que Francisco buscou e amou, na realidade na interpretação de todos da Ordem significam bem outra coisa. E isso de tal maneira que ninguém mais percebe essa troca de identidade, e todos acreditam cegamente que o ideal falsificado é o ideal originário da própria Ordem.

A disciplina de sistematização, ensinada pelas ciências, mesmo com toda sua habilidade de construção, não consegue ver aqui algum sentido em permanecer na instituição como instituição, nem uma possibilidade de contribuir positivamente para a formação de uma tal fraternidade. A única possibilidade que aqui resta à pessoa é sair da instituição, i.é, da fraternidade, criar uma nova ou, se permanece, viver para si só, em particular, carregando a incoerência absurda de estar numa instituição cujo ideal não é mais o seu, vivendo por dentro bem outra coisa, em particular, continuamente atribulada pela oposição incompatível entre a vida particular individual e vida social comunitária. Observemos assim de passagem que numa fraternidade onde já se deu o esquecimento do fundamento do seu ser-fraterno e entrou uma outra coisa, como p. ex., em vez da afeição do seguimento de Jesus Cristo entrou a busca da afetividade realizada, quando a dominação dessa busca esquecida de sua origem é total, a tal ponto de se acreditar cegamente que é nisso que consiste o amor fraternal, não surge esse conflito, acima mencionado, pois todos estão de acordo que a busca da afetividade realizada é o mandamento do Senhor. E assim, debaixo desse novo teto da fraternidade, todos vivem fraternal e comunitariamente, mas, na realidade, cada qual está buscando sua realização particular, e como todo mundo faz o mesmo, e exatamente nisto está agora o novo ideal, começa a reinar o individualismo coletivo, no qual a instituição e a fraternidade estão a serviço de cada um.

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A disciplina da autonomia vê nessa situação extrema de impossibilidade uma nova possibilidade toda própria de se colocar na formação da fraternidade.

O movimento da redução à profundidade do abismo desvelante do sentido do ser, na acribia de uma busca apaixonada da finitude ou da pobreza de ser como disponibilidade total na espera do inesperado, não está mais interessado na reforma, na melhoria da fraternidade, mas em se purificar de todo e qualquer resto de posse, posição, dogmatismo, pré-compreensões, portanto não em limpar os preconceitos e erros da fraternidade que esqueceu sua origem, mas a si mesmo, a sua própria compreensão acerca dessa fraternidade, e sua situação dentro dela. Está assim totalmente concentrado na luta corpo a corpo, a tal ponto de não haver mais nada a não ser essa luta de vida ou morte para se despojar de si, de todo o seu saber, para poder ser inteiramente um não saber da disponibilidade de ser inteiramente na espera do advento do radicalmente outro. Essa disposição transcendental para o toque do inesperado é a autonomia, essa finitude, essa pobreza de ser é o que a filosofia nos poderia dar, como uma preparação para a formação de uma fraternidade, construída não no vigor de carne e sangue, nem na força da vontade do homem, nem na clarividência da sabedoria e ciências humanas, mas na sabedoria e no vigor da loucura da cruz.

Talvez seja interessante observar assim de passagem que a disciplina da autonomia poderia nos indicar o estilo de relacionamento entre os irmãos na fraternidade do estudo das ciências e da filosofia, baseado no movimento da redução ou recondução ao abismo desvelante do sentido do ser como disponibilidade da espera do inesperado. Se, pois, tentarmos traduzir o que dissemos acima nos capítulos onde falamos das ciências e da filosofia na concepção da nova teoria das ciências, teríamos mais ou menos o seguinte estilo de ser, que poderia reger o relacionamento de uma fraternidade do estudo de filosofia, tome ele empiricamente a forma que tomar:

– Não haveria hierarquia de saber nem graus de poder do saber.

– Portanto, embora em sua forma de organização, os estudantes e os professores se dividam em classes, no estilo de ser e agir não haveria propriamente classes, professores nem alunos; não haveria alunos ou professores mais sabidos ou menos sabidos, mais adiantados ou menos adiantados, antiquados ou modernos.

– Todos ensinam a todos, ou melhor, todos e cada um aprendem do outro a ser cada vez mais disponível para aprender a ser disponível em deixar os preconceitos e abrir-se ao sentido do ser, cada vez novo, sempre de novo.

– O critério de verdade numa discussão ou num diálogo não é mais a autoridade do saber, a doutrina nem a ideologia, mas sim a mostração; vale o que melhor se manifesta como sentido do ser, quer na sua imensidão, quer na profundidade, quer na originariedade.

– O modo de ser do ensino é diálogo, i.é, conversação, mesmo que sua forma externa seja tranqüilamente preleção ou discurso.

– A correlação fraterna tem o estilo da crítica científico-filosófica, i.é, não crítica colocando a posição do outro dentro de uma tabela de referência já prefixada, a qual declara ser a certa, mas tanto quem critica como quem recebe a crítica, mutuamente

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tentam examinar as suas próprias pressuposições, para juntos na mútua contenda, ir entrando para dentro da disponibilidade de aprender e limpar-se de pré-conceitos.

– Mutuamente, quer na maneira de trabalhar, quer na maneira de expor opiniões, de planejar, sim de se contrapor, se procura em tudo aprender a construir, i.é, a estruturar o pensar, o agir, o sentir, o querer segundo o movimento da sistematização, como ele foi explicitado acima.

– E faz-se tudo isso, deixando intatas todas as estruturas existentes, exigidas pela nossa Regra, Constituições, Diretórios, horários da casa etc., pois em tudo isso que, acima, de modo superficial e em chutação, foi colocado, o que conta é o exercício e o crescimento na autonomia e não a busca de reformar a estrutura da organização. Por isso trata-se não tanto disso ou daquilo, mas sim do modo de ser.

Parece ser de uma importância muito grande que os irmãos, tanto estudantes como professores, façam o tirocínio dessa radical autonomia, antes de buscar uma disciplina de uma outra dimensão na fé e na teologia, pois a radical obediência discipular no seguimento de Jesus Cristo na fé e na teologia, sem essa experiência da finitude e pobreza da liberdade de ser da autonomia, deixa de ser a disciplina cordial da obediência da fé, e decai para um misticismo e espiritualismo estético ou para um dogmatismo xiita de um fundamentalismo fanático, em oposição ao qual, a própria disciplina da autonomia decai para um cientificismo e criticismo dogmatizados na fixação racionalista.

Levar a redução crítica da autonomia até alcançar a disponibilidade total ao sentido do ser na finitude e pobreza de nada ser a não ser a disposição de ausculta é o único meio de conduzir o nosso intelecto ao verdadeiro espírito crítico e à responsabilidade madura da sua inquietação pela verdade.

c) O estudo da teologia

Ao vigor disciplinar do estudo da teologia poderíamos chamar de disciplina do discipulado. Aqui a dinâmica não é mais dispor-se, mas sim obedecer positivamente à incumbência, ao envio, à inspiração e à revelação que vem pela fé. O que na disciplina de sistematização e na disciplina de autonomia era a vontade do trabalho, aqui na disciplina do discipulado é obedecer à fluência da doação que vem da fé. O que na disciplina da autonomia era plena atenção da especulação e rigor da redução, aqui na disciplina do discipulado é a pregnância da translucidez que vem da revelação na fé. O que na disciplina da autonomia era precisão e rigor de penetração, aqui na disciplina do discipulado é a docilidade na ternura do encontro. E o que no puro movimento da disciplina da autonomia era disponibilidade, vazia de conteúdo, tinindo na espera do inesperado, aqui na disciplina do discipulado é a plenitude da verdade. Absoluta, que contêm todas as coisas e exige o engajamento de um fiat pessoal, absoluto, de um íntimo encontro com o Pai de Jesus Cristo.

E é somente nesse encontro com o Pai, experimentado agora não apenas como uma questão privativa de uma alma, mas como a revelação, iluminação universal da compreensão de todas as coisas no espírito do Senhor e no seu modo de operar, que encontraremos o elemento o mais precioso, necessário e essencial que fundamenta tudo da vida da fraternidade cristã franciscana. Somente à luz dessa disciplina discipular, que a teologia nos poderia ensinar, podemos compreender que tudo que Jesus disse acerca

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do amor do Pai e do Pai do amor, todos os mandatos de Jesus de amar-nos uns aos outros como ele nos amou, toda a vida e morte de Jesus, enfim tudo que devemos e queremos viver e compreender como cristãos e franciscanos é a própria vida, o vigor-núcleo, a vitalidade da nossa fraternidade.

Mas, para que a teologia se transforme num elemento tão essencial da formação da fraternidade, e o estudo da filosofia e das ciências sejam elementos preciosíssimos para nos dispor para uma tal teologia, é necessário que como comunidade, como fraternidade de estudos, nós franciscanos nos conscientizemos de que o que mais importa no estudo de ciências, filosofia e teologia, não é tanto a informação técnica, a erudição, a cultura ou a habilitação pastoral, mas sim o espírito, a mística do estudo.

Conclusão

O espírito do estudo, a mística do estudo, não é isto o studium, o empenho da formação intelectual? Espírito, mística não é nenhuma coisa como doutrina, ensinamento, energia ou força, mas um encontro com o pai de Jesus Cristo numa vida de total doação e engajamento no discipulado do seguimento de Jesus Cristo! Juntos, como irmãos de uma mesma busca, nos doamos inteiramente a essa busca, à busca dessa sabedoria do Deus de Jesus Cristo, que “enche o universo, tudo unifica e conhece todas as línguas” (Sb 1,7); não é isto o amor e a afeição da fraternidade de estudo e a Ratio Studiorum dos frades menores?

Como um longínquo toar de uma época do passado franciscano, que para nós, hodiernos, começa a ressoar, vindo de um advento futuro, ouçamos as palavras que a liturgia da festa de São Boaventura põe em sua boca, e que nos fazem vislumbrar a paixão do enamoramento pela verdade que pulsava nos corações jovens dos estudantes menores nas universidades de Oxford e Paris:

Hanc (Sapientiam) amavi, et exquisivi a juventute mea, et quaesivi sponsam mihi eam assumere, et amator factus sum formae illius. Generositatem illius glorificat, contubernium habens Dei; sed et omnium Dominus dillexit illam. Doctrix enim est disciplinae Dei, et electrix operum illius. Et si divitiae appetuntur in vita, quid sapientiae locupletius quae operatur omnia? Si autem sensus operatur, quis horum quae sunt magis quam illa est artifex? Et si justitiam quis diligit, labores hujus magnas habent virtutes: sobrietatem enim et prudentiam docet, et justitiam, et virtutem, quibus utilius nihil est in vita hominibus... Intrans in domum meam, conquiescam cum illa: non enim habet amaritudinem conversatio illius, nec taedium convictus illius, sed laetitiam et gaudium. Haec cogitans apud me et commemorans in corde meo, quoniam immortalitas est in cognitione sapientiae, et in amicitia illius delectatio bona, et in operibus manuum illius honestas sine defectione, et in certamine loquelae illius sapientia, et praeclaritas in communicatione sermonum ipsius, circuibam quaerens, ut mihi illam assumerem (Sap VIII, 2-7; 16-18).

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São Francisco de Assis e os estudos, uma questão

O tema da reflexão diz: “São Francisco de Assis, e os estudos, uma questão”. O tema fala do que vamos tratar. Do que pode significar sobre o que ou a partir do que. Assim o tema nos orienta a falar sobre o que São Francisco de Assis pensava sobre os estudos. E ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que São Francisco pensava dos estudos, a parir da implicância de uma questão. Isto significa que o tema nos coloca de antemão dentro da seguinte situação de busca: No início da ordem, com São Francisco e seus primeiros companheiros, e a seguir na evolução da ordem franciscana, no seu primeiro século, os estudos apareceram como problema. Mas trata-se de um problema que se deve tornar para nós, uma questão: questão dos estudos, hoje1.

Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histórico se nos convoca hoje a colocarmos em questão o evento que se fossilizou como realidade óbvia de um fato historiográfico. Colocar em questão um problema na sua factualidade significa avivar o palpitar da inquietação de um questionamento fundamental. Pois, um questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema já estabelecido não mais investiga nem sonda o móvel da situação, em que se achava colocado quando se consolidou como fato. A ação de in-vestigar o móvel de fundo, onde se assenta um fato, se chama questão.

Para colocar em questão o problema dos estudos em São Francisco e transformar problema do passado em questão hoje, formulemos o nosso problema como o costuma expor e explicar a maioria dos historiadores, peritos no franciscanismo. Mas antes, para que essa formulação usual do problema não fique no ar, como que isolada e abstrata no seu conteúdo, mencionemos, ainda que de modo bem geral e panorâmico, alguns fatos que constituem as etapas da evolução do problema dos estudos na ordem franciscana e resumamos o que Gratien de Paris2 diz da organização dos estudos no início da ordem.

I – O problema dos estudos e sua formulação usual

1. Um apanhado geral historiográfico

O período que abrange a origem e o primeiro século do franciscanismo vai de 1209 até 1318. Esse longo período pode ser considerado em 2 etapas: a primeira vai de 1209 a 1219 e a segunda de 1219 a 1318. Na primeira, trata-se da origem da ordem, onde os

1 Geralmente os termos questão e problema são usados como sinônimos ou quase sinônimos ambiguamente. Na nossa reflexão distinguimos problema, da questão. Problema é o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição já estabelecida. Questão se refere à busca do sentido disso, a partir e dentro do qual se acha a posição estabelecida. O problema dos estudos em São Francisco foi e é um problema implicante que deve se tornar uma questão para nós, por sermos franciscanos. A ambigüidade do fundador da Ordem franciscana a respeito dos estudos sempre nos incomodou e nos incomoda, cada vez de novo sempre mais, pois parece incidir decididamente na compreensão do que seja propriamente o carisma franciscano da pobreza. Assim sendo, a presente reflexão pode não dizer nada, ou até parecer estranho, a quem não está preocupado com a inserção na espiritualidade franciscana.

2 GRATIEN DE PARIS, Histoire de la Fondation et de l’évolution de l’ordre des frères mineurs aux XIIIe siècle. Bibliographie mise à jour par Mariano D’Alati et Servus Gieben. Roma, 1982. Instituto Storico dei Cappuccini, Capítulo IV, 3, p. 125-135.

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estudos não aparecem ainda como estudos organizados e não se constituem ainda como problema. Na segunda se dá a evolução da ordem, onde os estudos se manifestam explicitamente como problema e se consolidam como problema, congelados numa determinada impostação do problema.

Na primeira etapa, de 1209 a 1219 temos os seguintes fatos: Depois da conversão de Francisco, os primeiros companheiros se agrupam ao redor de Francisco. Surge a idéia de uma ordem. Constatamos em Francisco um plano, seus meios de ação e princípios que segue. As características principais da instituição franciscana se tornam visíveis e com isso também idéias e ideais de Francisco sobre pregação, estudos e ciência. Surge a Primeira Regra (1209), hoje perdida; se inicia o processo de formulação das regras mais elaboradas, que nos deu a Regra não Bulada (1221) e a Regra Bulada, a definitiva (1223).

Na segunda etapa, de 1219 a 1318 podemos distinguir 3 momentos: primeiro momento de 1219 a 1257. É tempo da consolidação da ordem, aprovada pelo Papa, oralmente: a Primeira Regra, a elaboração da Regra Não Bulada, da Regra Bulada, do Testamento, a morte de São Francisco (1226), e a sucessão dos primeiros ministros gerais da ordem (João Parente 1227-1232; Frei Elias 1232-1239; Aymon de Faversham 1240-1244; Crescêncio de Jesi 1224-1247; João de Parma 1247-1257). O segundo, de 1257 a 1274. É o tempo do generalato de São Boaventura. O terceiro, de 1274 a 1318. É o tempo de luta ao redor da questão da pobreza.

Nessa segunda etapa temos os seguintes fatos: a clericalização da ordem; a introdução dos estudos institucionalizados e a sua organização na ordem; surgimento das casas de estudos em Bolonha, Paris e Oxford; a atuação dos frades na universidade de Bolonha, Paris e Oxford; a luta dos mendicantes pelo direito de ensinar nas cátedras da universidade de Paris; o generalato de São Boaventura, sua postura acerca dos estudos e da ciência; o surgimento e a exacerbação da controvérsia sobre a pobreza.

2. A organização dos estudos

Segundo Gratien de Paris3, há inúmeros indícios que mostram como os estudos foram introduzidos na ordem, provavelmente já no tempo em que São Francisco ainda vivia. E rapidamente se espalharam por todas as províncias da ordem, logo depois da morte de São Francisco. Jordão de Jano nos relata que em 1228 “O ministro geral João Parente, ao perceber que a província da Alemanha não possuía professor em teologia, tirou do cargo de provincial a frei Simão e o nomeou professor”. Essa observação nos faz suspeitar que nas outras províncias também havia o cultivo da ciência sacra. O Papa Gregório IX na sua bula Quo elongati (1230) dispensa do exame e da aprovação do ministro geral os frades instruídos na teologia. E Jordão de Jano menciona entre os objetos dos quais os frades podiam ter uso, de modo especial os livros. Os apelos dos pontífices à caridade pública em favor dos frades se referem sempre à ajuda para construções e aquisição de livros. Assim, Gratien de Paris deduz que desde 1230 o estudo da Sagrada Escritura i. é, da teologia estava implantado na Ordem Franciscana e que o número dos clérigos aumentava de dia para dia. Uma tal afluência de pessoas sábias e estudadas fomentou no interior da ordem uma corrida ao estudo. E como observa Gratien de Paris, o estudo era uma necessidade inevitável. Os frades não podiam cumprir com seus deveres e suas missões pastorais sem ele. É que havia em

3 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 125-135

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toda parte, em cada esquina, em cada praça pública os heréticos, armados até aos dentes com argumentos falaciosos, sutis e capciosos. Não havia a possibilidade de evitar o confronto e a controvérsia. Os irmãos sentiam nitidamente que não os podiam enfrentar sem possuir um sério e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras. Gregório IX, renovando os cânones dos concílios antigos proibira a pregação aos irmãos leigos, fossem eles de que ordem fossem (1235). Por outro lado, os sacerdotes estavam mal preparados para sua missão. O Papa sentiu o grande perigo que a Igreja corria devido à decadência dos estudos eclesiásticos. Na tentativa de levantar o nível espiritual e intelectual do clero, os papas começaram a recorrer às ordens mendicantes: aos dominicanos e franciscanos. Os dominicanos, desde o início, já pela natureza de sua fundação, se dedicavam aos estudos e estavam aptos para o desempenho de pregação e confronto com hereges. Os papas e alguns bispos, vendo a disposição da nova ordem de São Francisco para o serviço à Igreja, começaram a incentivá-la aos estudos, e isso tanto mais, ao verem como uma grande multidão de pessoas instruídas, estudadas e muitos universitários tomavam o hábito da pobreza franciscana. Assim as vozes amigas de um Jacques de Vitry, de Roberto Grossetête, chanceler da universidade de Oxford, de Guilherme d’Auvergne, bispo de Paris, de Eudes de Châteauroux, chanceler da universidade de Paris, encorajavam os filhos de São Francisco a seguirem o exemplo dos filhos de São Domingos. Logo começaram a surgir entre os próprios frades pessoas que confirmavam no seu ser e nas suas obras a eficácia e a fecundidade da aliança entre o ideal franciscano e o cultivo dos estudos, como p. ex., César de Spira, João de Plan Carpin na Alemanha, Gregório de Nápolis e Aymon de Faversham em Paris, Santo Antônio de Pádoa na Lombardia e na França. Bem logo se estabeleceu entre dominicanos e franciscanos, no âmbito e no nível das ciências, uma rivalidade fecunda e amiga, cujo exemplo temos na amizade que unia Santo Tomas de Aquino e São Boaventura na busca da verdade. Em 1231 os frades já possuiam 3 grandes centros de estudos: Bolonha, Paris e Oxford.

3. A formulação usual do problema dos estudos

A exposição desses dados historiográficos, colocados como fatos que constituem o problema dos estudos, poderia ser bem mais completa em número de fatos e nos seus detalhes informativos. Uma vez colocados como constituintes do problema de estudos, há diferenças de interpretações e valorização dos fatos, em diferentes autores franciscanólogos, conforme as perspectivas de impostações que lançam sobre os dados. No entanto, no seu todo, na colocação do problema enquanto problema dos estudos na ordem, há na maioria dos autores, uma e a mesma impostação, um e o mesmo enfoque. Essa colocação comum e unânime pode ser formulada mais ou menos da seguinte maneira:

Os estudos estão intimamente ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à sua clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às exigências da Igreja, por causa da evangelização. No problema dos estudos assim colocado, trata-se mais da diferença existente entre São Francisco e o pequeno grupo de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação com o Cristo Crucificado de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado, que como comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver enquanto comunidade o radicalismo ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio da presença física do fundador. E ao mesmo tempo, na medida do seu crescimento, a ordem estava dentro da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria Igreja de se dispor e se

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adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que se refere à Evangelização.

4. As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência

O problema dos estudos assim colocado na formulação acima, como problema de transição entre o modo de ser da experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco e de seus primeiros companheiros e o modo de ser nascido da necessidade de evolução e adaptação da coletividade da ordem em franco crescimento, precisa ser des-estabilizado, para que nela surja a possibilidade de interrogações que nos façam perceber na sua raiz uma questão. Para que isso se torne viável, vamos expor mais em detalhes o que São Francisco na origem do franciscanismo pensou a partir e através da sua experiência pessoal e privativa dos estudos e da ciência.

Certamente, essa descrição atinge apenas um momento ainda bem inicial do problema na origem do franciscanismo. Seria ideal, se pudéssemos também demorar-nos na descrição de cada etapa do outro momento do fato, a saber, da evolução e adaptação da ordem na sucessão do processo da sua clericalização e institucionalização no primeiro século do franciscanismo. Mas, nessa nossa reflexão nos limitamos apenas a examinar com mais detalhes as idéias de S. Francisco sobre estudos e ciência. Se por essa descrição de um momento apenas do fato-problema pudermos desestabilizar de algum modo a fixação factual desse momento, talvez estejamos possibilitando também a mobilização de todo o resto, a ponto de podermos começar a colocar interrogações que acordem o interesse da questão para o primeiro século do franciscanismo. Para essa descrição mais detalhada, reproduzimos num resumo o parágrafo 3 do Capítulo III da obra já citada de Gratien de Paris, onde se fala de Idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência4.

a) Pregação

São Francisco tinha grande estima pelas Sagradas Escrituras e sua pregação (2 Cel 103, 104, 105). Segundo Celano, Francisco dizia que: “os pregadores eram dignos de respeito e veneração por serem arautos das ordens que recebem da boca de um grande rei, para anunciá-las ao povo” (2 Cel 163). Depois da aprovação da ordem pelo Papa Inocêncio III, a pregação era um ofício reservado a religiosos especialmente designados para isso. No cumprimento do ministério da pregação Francisco pedia com insistência que os irmãos guardassem com muito cuidado e fidelidade os seguintes dois pontos: o primeiro, que em nenhum caso o apostolado da palavra diminuísse ou substituísse o apostolado do exemplo; e que jamais ferisse as duas grandes principais diretrizes da ação franciscana, a saber, submissão à Igreja de Roma e fidelidade à vida de oração (RNB 17). A pregação não menos do que o trabalho corporal e o cuidado dos leprosos, não é um fim em si nem tem importância em e por si, mas é caminho que conduz os irmãos a dar antes de tudo o exemplo cristão. A ordem que Francisco quer instituir é antes mais uma ordem de imitadores de Cristo do que uma ordem de pregadores. Por isso Francisco insiste que o pregador franciscano medite profundamente o que deve ensinar aos outros e que para isso esteja livre de todo outro encargo para poder doar-se inteiramente aos estudos espirituais (2 Cel 163); e coloca o apostolado do exemplo no centro de toda a ação; e quer que o irmão menor, de tempo em tempo, se engaje no humilde trabalho corporal e no serviço dos doentes e leprosos e na mendicância (2 Cel

4 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 81-90.

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74ss.; LP 71). O segundo ponto a ser observado no ministério da pregação pelos irmãos é que jamais se abandone o gênero simples e popular da pregação penitencial. Segundo Gratien de Paris, se nos ativermos com precisão à intenção de Francisco, não deveria propriamente haver na ordem dois tipos de pregação, digamos um, comum a todos os religiosos, p. ex., exortação piedosa; e um outro, o da pregação eclesiástica propriamente dita, reservado para os clérigos. Mesmo os mais eruditos e sábios deveriam a modo dos irmãos não-clérigos se ater ao “terreno moral”5. Essa atitude de São Francisco em referência à pregação nos faz entrever o que ele pensava a respeito dos estudos e da ciência.

b) Estima de São Francisco pela ciência

Francisco se qualifica e se denomina como simplex et idiota. Simples e idiota soa hoje como simplório e ignorante, diríamos gente ingênua, sem maneiras, sem formação nem instrução. E logo associamos a tudo isso a conotação de grosseiro, inculto, estulto, selvagem. São Francisco parece colaborar para esse modo de o interpretar, quando se chama de vil. Vil é quem mora na vila, i. é, no sítio; nós diríamos caipira, caboclo. Francisco, porém, é tudo menos grosseiro, vilão e selvagem. Ele é de fino tato e trato, na sensibilidade fora do comum, de uma percepção e penetração extraordinária, altamente inteligente, com força de criatividade fora de série. E não era nem ignorante, nem analfabeto. Sabia ler e escrever. Não possuía uma formação acadêmica, não freqüentou cursos teológicos. Mas, segundo Gratien de Paris, no que toca às “coisas” de Deus, pela leitura atenta e pela meditação das Sagradas Escrituras, recebera aquela sabedoria que “vem do alto”6. Numa alma tão nobre e inteligente não há lugar para desprezo e medo que vêm do ressentimento e complexo diante da ciência e da superioridade do saber verdadeiro. Assim, tratava com grande respeito, natural e tranqüilamente as produções do espírito humano, as quais acolhia com veneração, veneração esta que mais tarde viriam demonstrar os humanistas cristãos para com os escritos pagãos (1 Cel 81, 82, 83). No entanto, Francisco considerava os estudos e a ciência sob dois aspectos distintos: Primeiro, em referência a sua função dentro da Igreja; segundo, em referência a sua função dentro da ordem. Em referência a função da ciência dentro da Igreja, Francisco reconhecia que é de necessidade vital. E possuía uma estima muito grande para com os que possuíam conhecimento da ciência Sagrada. Assim, diz ele no Testamento: “Devemos honrar e venerar todos os teólogos e todos aqueles que nos explicam a Palavra de Deus, porque eles nos dão espírito e vida” (cf. LP 70). Mas em referência à função da ciência na sua ordem, Francisco não coloca a ciência como um dos meios de sua ação. E aqui, percebemos uma impostação bem diferente à de São Domingos que considerava a ciência como elemento constitutivo essencial da ação da sua ordem.

c) São Francisco não considera a ciência como elemento constitutivo essencial da ação da sua ordem

5 RNB 16; RB nos mostra bem o que foi dito. Nem todos respeitam essa intenção de Francisco; daí é interessante observar bem o que RNB 17 diz a respeito da vã gloria; cf. 2 Cel 164; LP 71.

6 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 83; cf. GILSON, E. La Philosophie de saint Bonaventure, 194, p. 47. Diz 2 Celano 102-104 “Embora pouco familiarizado com a terminologia da escolástica, a penetração e a superioridade da sua inteligência se revelava na justeza de suas soluções”.

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Francisco, por um momento de sua vida, teve a idéia de colocar a ciência como um dos elementos constitutivos da ação franciscana. Quando um noviço lhe pediu a licença de ter um saltério disse: “Eu, também como tu, já fui tentado a ter livros, mas eu abri o evangelho para conhecer a vontade de Deus, e então ali eu li: A Vós foi dado conhecer o reino dos céus; a outros, só o conhecem em parábolas” (LP 71, 72 73). E acrescentou: “São tantos os que querem subir os degraus da ciência que bem-aventurado será quem a ela renuncia por amor do Senhor Deus”(LP 72). Essa renúncia, a que tipo de estudos e de ciência se refere? Certamente, não se refere a estudos e conhecimento de edificação pessoal, mas sim a um trabalho verdadeiramente científico e que tenta alcançar ciência por ciência7. O estudo, i. é, o empenho8 que Francisco e seus primeiros companheiros cultivavam com intenso engajamento é o de poder progredir sempre mais no espírito de conversão e na santidade (1 Cel 34-41; 2 Cel 195). A Francisco e seus primeiros companheiros, nesse tipo de estudo, de empenho e engajamento, não ocorre sequer pensar na possibilidade e na utilidade de sentar-se nos bancos da escola e da universidade. Por outro lado, Francisco compõe o Cântico do sol, envia irmãos a pregar, cantando. Francisco e seus irmãos se consideram jongleurs de Deus, entoam o louvor de Deus, pregam e cantam e por salário desse seu trabalho somente pedem que os ouvintes se convertam e se tornem bons cristãos. Francisco usa poesia e música para levar as almas ao Senhor. Assim, para Francisco, a arte entra, até certo ponto, na existência franciscana como elemento válido e recomendado da sua ação (2 Cel 126, 213; LP 24, 43, 44). Não há, porém, no programa da formação, na origem do franciscanismo, lugar para o cultivo científico, expressamente recomendado como no caso do trabalho manual e cuidado dos leprosos9. Portanto, Francisco, segundo Gratien de Paris, não somente não quis promover ciência na sua ordem, mas nada absolutamente fez para remover obstáculos que o gênero de vida, imposta por ele a seus discípulos, criava contra o cultivo da ciência (RNB 3, 7; 2 Cel 21, 22, 62, 129, 194, 195; LP 66-74, 96, 97). Enquanto São Domingos quer estabelecer seus irmãos nas cidades universitárias, Francisco se revolta contra a construção duma casa de frades estudantes em Bolonha (2 Cel 58). Portanto, conclui Gratien, é um fato que Francisco não foi promotor do movimento científico dentro da sua família religiosa.

Mas como compreender uma tal atitude num homem de uma inteligência tão vasta e dum espírito tão elevado? Pois a ciência teológica é por excelência uma arma do apostolado, um meio eficaz e utilíssimo para salvar almas, destruindo as armadilhas dos argumentos capciosos das exposições das ideologias heréticas. Aqui, não bastava ser apenas piedoso, humilde e simples para vencer os adversários da fé; pois os sacerdotes cátaros, p. ex., eram muito mais preparados e sabidos do que o clero católico. É pois necessário unir a ciência à virtude. Assim pensava São Domingos, o fundador dos

7 A ciência como nós hoje a concebemos não havia na Idade Média. Por isso, em nossa reflexão precisaríamos discutir sobre a diferença entre a compreensão da ciência hoje e da scientia, doctrina, sapientia na Idade Média. Deixamos porém de fazê-lo, pois isto nos levaria a um excurso muito longo. Aqui apenas observemos que ciência medieval, no sentido da reflexão como é usado por Gratien, se refere antes de tudo a filosofia e teologia como eram ensinadas nas universidades da época e também a medicina e direito. Não se tratava, pois, de ciências (ciências naturais e ciências humanas) cujo modo de ser nos domina hoje e transforma tudo tecnologicamente.

8 Studium é uma palavra latina para indicar empenho.

9 RNB 7, 8; RB 10; Testamento. Certamente nenhuma regra monástica anterior à época de São Francisco e de São Domingos fazia do trabalho intelectual um dever para os religiosos. Mas na sua intenção encorajava os estudos da ciência.

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dominicanos; assim pensavam também os intelectuais que começavam a povoar a ordem de São Francisco em grande número. Eles deduziam a necessidade dos estudos da tarefa do compromisso e da responsabilidade de se prepararem adequadamente para a pregação. Por mais lógico que seja esse raciocínio dos discípulos sábios e letrados de Francisco, este surpreendentemente pensava de modo inteiramente diferente. É, pois importante marcar bem essa diferença. A missão que Francisco escolheu para si e para seus primeiros companheiros não requeria uma erudição para além do que serviria a seus fins práticos imediatos. Francisco não pretendia responder, ele sozinho, a todas as necessidades do coração e do espírito do homem, nem possuía, ele sozinho, os remédios da ciência para a glória de Deus. Que outros se sirvam dos estudos, erudição e ciência para glorificar a Deus; que outros reproduzam os traços de Cristo, Doutor e mestre de toda a verdade! O que, porém, Francisco, ele mesmo queria era imitar o Cristo humilde, pobre, amando e sofrendo. O seu apostolado e o da sua ordem, sua vocação, não é a de, com a ajuda de polêmicas sábias, defender a fé da Igreja contra seus inimigos de fora, mas sim, renovar no seio da Igreja a vida conforme ao Evangelho e isto, pela força do exemplo e da pregação da penitência. Os doutores, com a ajuda da ciência, da dialética e da controvérsia, demonstram a verdade do Evangelho. Francisco por sua vez, mostra a beleza oculta, a intimidade da ternura do mistério evangélico. Para essa busca intensa e total de encontro corpo a corpo, “full contact” com Cristo pobre, humilde, estudos científicos lhe pareciam inúteis e perigosos para o espírito de vida interior, de simplicidade, humildade e pobreza, que são os fundamentos da sua ordem (2 Cel 195; LP 70). Os estudos e a ciência exigem a posse de ricas bibliotecas, moradia estável, conforto e ambiente protegido. A ciência orna a fronte de quem a possui de uma aura de glória, e atrai honras (2 Cel 194). Além disso, Francisco desconfiava principalmente do saber livresco. Dizia: “A ciência torna muitas pessoas indóceis, não deixando que alguma coisa de rígido nelas se dobre aos ensinamentos humildes ” (2 Cel 194, 195). A rejeição de Francisco contra o saber livresco vinha do receio de que o saber livresco criasse um intelectual inepto à ação e vazio de boas obras (2 Cel 195).

d) A ciência e a ação apostólica franciscana

Mas então, por que Francisco aceitou na sua ordem os intelectuais, sábios e letrados? A isto responde com uma parábola relatada por 2 Cel 191:

Vamos supor que todos os religiosos da Igreja tenham se reunido em um só capítulo geral! Estando presentes letrados e analfabetos, sábios e os que sabem agradar a Deus mesmo sem sabedoria, encomendaram um sermão a um dos sábios e a um dos simples. O sábio, por ser sábio, calculou consigo mesmo: “isto aqui não é lugar de demonstrar conhecimentos, porque estão presentes homens perfeitos na ciência e não convém que eu me faça notar pela afetação, dizendo coisas sutis diante das pessoas mais sutis. Talvez seja mais proveitoso falar com simplicidade”. Amanheceu o dia combinado, reuniram-se as congregações dos santos, sequiosas de ouvir o sermão. O sábio se apresentou vestido de saco, com a cabeça coberta de cinza e, diante da admiração de todos, pregando mais com o exemplo, foi breve nas palavras. Disse: “Prometemos grandes coisas, maiores são as que nos foram prometidas. Observemos as primeiras e, suspiremos pelas segundas. O prazer é breve, o castigo, perpétuo, o sofrimento é pequeno, a glória não tem fim. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos, todos têm a sua retribuição”. Os ouvintes romperam em lágrimas com o coração compungido, e veneraram aquele verdadeiro sábio como um santo.

“Vejam só”, disse o simples em seu coração. “O sábio me tirou tudo que eu ia fazer e dizer. Mas já sei o que faço. Conheço alguns versículos de salmos: vou agir como sábio, já que ele agiu como um simples”.

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Chegou a sessão do dia seguinte. O simples se levantou, propôs um Salmo como tema. Inspirado pelo Espírito Santo, falou com tanto fervor, com tanta sutileza, com tanta doçura, por um dom que só podia vir de Deus, que todos ficaram muito admirados e disseram: “Deus fala com os simples”.

E 2 Cel 192 continua: Depois o homem de Deus explicou assim a parábola que tinha contado:

Nossa ordem é uma assembléia muito grande, um verdadeiro capítulo geral que se reuniu de todas as partes do mundo para viver de uma maneira comum. Nela os sábios aproveitam o que é dos simples, vendo que os ignorantes buscam as coisas do céu com inflamado vigor e que os não instruídos pelos homens aprenderam com o espírito as coisas espirituais. Nela também os simples aproveitam o que é dos sábios, porque vêem que nela convivem com eles homens preclaros, que poderiam gozar de grande conceito no mundo. É isso que faz brilhar a beleza desta bem-aventurada família, cuja variedade tanto agrada ao pai de família.

O que nos quer dizer essa parábola a respeito da concepção de Francisco sobre o relacionamento da ciência e da ação apostólica franciscana?

Diz Gratien de Paris: “São Francisco tentava assim fazer compreender que os novos membros da ordem deviam se formar, seguindo a própria natureza e missão dessa ordem, e não, transformá-la10. Assim, os sábios e os letrados não deviam ter um outro método e uma outra meta do que os simples e os ignorantes (2 Cel 192). Ao sábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar, não somente aos bens materiais, mas também, de uma certa maneira, à ciência, para que desapegado de tudo, se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorar seus pecados na solidão e no silêncio. Uma vez assim preparado, o irmão menor podia ser considerado apto para a pregação. E ele então “sairá qual leão solto, com força para todos os trabalhos do apostolado, ‘leo excatenatus ad omnia robustus exire’” (2 Cel 194). Ao receber sábios e letrados na sua ordem, São Francisco não fazia apelo à ciência deles, nem contava com ela para converter almas, mas sim, apelava a e contava unicamente com o exemplo de humildade, simplicidade e pobreza. Em aceitando os homens de estudos e de ciência na sua fraternidade humilde e pobre, Francisco pôde consagrar e engajar as mais belas e profundas inteligências à educação da gente pobre, devotou grandes clérigos, estudados e sábios ao apostolado dos humildes, pobres e marginalizados. Um mestre na teologia, um doutor, diplomado na universidade de Paris, Oxford e Bolonha, explicando com amor e diligente cuidado o catecismo aos camponeses, às empregadas, aos velhos e às crianças…eis a imagem que Francisco fazia do sábio franciscano! E é por isso que devemos escutar a recomendação escrita por ele na RNB, como valendo para todos os irmãos, sejam iletrados ou letrados e sábios: “E devem alegrar-se quando se encontram entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos da rua” (cap. 9).

Portanto, se, em nos apoiando nas palavras de São Francisco, e sem nos deixarmos influenciar pela importância que os estudos recebem mais tarde na ordem franciscana, perguntarmos qual foi o verdadeiro pensamento de Francisco a respeito dos estudos e da ciência, percebemos que para compreendê-lo com precisão, não basta dizer: Francisco não rejeitou os estudos e a ciência, mas apenas rejeitou seus abusos, i. é, a curiosidade, a vã erudição, o orgulho de superioridade, a vaidade. Essa desconfiança e atitude crítica contra os abusos e modos deficientes provenientes dos estudos e da vida científica eram um lugar comum da eloqüência eclesiástica do século XIII. Segundo Gratien de Paris,

10 Gratien de Paris, pgs 91

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Francisco vai além desse lugar comum. Isso porque deliberadamente recusa assumir a ciência como um dos meios da ação franciscana, por causa do perigo que ela fazia correr ao seu ideal, à estrutura do seu instituto, ao seu sistema de apostolado, alicerçado mais e essencialmente sobre a força do exemplo do que sobre o poder do ensinamento verbal. Nem o apostolado da palavra nem o apostolado da ciência deviam nem podiam substituir o apostolado do exemplo (2 Cel 185, 193; RB 7).

e) Sob que condição Francisco permitia os estudos científicos?

No entanto, recusando em se fazer promotor da ciência dentro da sua ordem, São Francisco não a quis banir. Cedendo a inúmeras solicitações dos clérigos, ele até consentiu que ela fosse cultivada, mas sob certas condições bem precisas, destinadas a imunizar os frades contra perigos demasiadamente reais, existentes nos estudos (cf. LM XI, 1)11. Assim:

Em princípio, cada um dos seus seguidores deveria permanecer no seu estado e na sua profissão (RNB 7).

Interditou os estudos aos irmãos não-clérigos (2 Cel 195).

Portanto, os estudos foram permitidos àquele a quem já eram de direito pela profissão, e isto conforme a orientações então em vigor na Igreja, a saber, estudos da ciência sagrada exclusivamente. Outros tipos de pesquisa dificilmente se conciliavam, segundo Francisco, na interpretação de Gratien, com a vocação do frade menor. É o que se mostra nos elogios à simplicidade que Francisco faz diante dos seus irmãos (2 Cel 189). Tudo isso insinua dentro de que espírito, feitio e forma, os filhos de São Francisco deveriam e poderiam se doar aos estudos, a saber: no espírito de profunda humildade.

Francisco ensina a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e não a beleza estética (2 Cel 62). Dizia, pois: a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção (2 Cel 102).

Adquirida na meditação e na contemplação, a ciência que sabe São Francisco se perfaz na ação e deve tender a ação (Adm 7), conforme o seu axioma: “Um homem tanto possui da ciência, quanto aquilo que realiza em suas obras; e um religioso tanto possui da oração, quanto aquilo que na vida põe em prática” (LP 74).

O verdadeiro frade menor não deve se dedicar aos estudos em vista principalmente da pregação, para buscar nos Livros Sagrados temas de especulações teoréticos, de belos materiais para discurso, para argumentos potentes, portanto não

11 LM = Legenda maior de São Boaventura: Alguns irmãos um dia lhe pediram, para aqueles que haviam estudado, a permissão de se dedicar aos estudos da Sagrada Escritura. Respondeu: “Permito, contanto que não se esqueçam de se dedicar também à oração, como Cristo, que, como se lê, mais rezou do que estudou, e contanto que não estudem unicamente para saber como falar, mas para pôr em prática primeiro aquilo que tiverem aprendido e, depois de terem posto em prática, para ensinar aos outros aquilo que eles devem fazer. Quero que meus irmãos sejam discípulos do Evangelho e que seus progressos no conhecimento da verdade sejam tais, que eles cresçam ao mesmo tempo na pureza da simplicidade. Dessa forma não hão de separar aquilo que o mestre uniu com sua bendita palavra: a simplicidade da pomba e a prudência da serpente”.

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aprender somente a falar, mas em vista da sua própria santificação, i. é, aprender a agir, a melhor amar, a melhor viver.

Essas colocações de Francisco não são apenas eloqüências; elas saem das suas entranhas, da sua própria experiência, de toda a sua vida.

E conclui Gratien de Paris: “A lealdade e a atividade que figuram entre os traços, os mais característicos da espiritualidade de São Francisco, lhe ditam esta atitude em vista da ciência”12.

O que dissemos até agora é o que geralmente se costuma dizer mutatis mutandis sobre o problema estudos em São Francisco no início da ordem.

II – A questão dos estudos e sua interrogação

1. A necessidade de desestabilizar a factualidade e despertar a realidade existencial

A descrição do que São Francisco pensava dos estudos na origem do franciscanismo é um problema. Como dissemos na nota n. 1 da introdução, problema é o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição lançada como estabelecida. Examinemos em que sentido esse fato dado como sendo “experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco e seus companheiros” é algo estabelecido. Acima grifamos a expressão como sendo. Por que dissemos, grifando o como sendo? O que significa precisamente como sendo? O como sendo diz ao mesmo tempo sendo como. Mas, quando destaca o como do sendo do fato simplesmente dado, esse como já está predeterminado, já está posto, sim localizado num sentido do ser que se oculta como lugar comum ou pré-jazida, na qual, a partir da qual, para a qual e ao longo da qual o fato, os fatos, os momentos do fato repousam e recebem sua localização e consistência. Os fatos são, por assim dizer, entificações consolidadas desse prévio sentido do ser; algo como solidificações atomizadas desse sentido do ser. O que usualmente captamos, como quê simplesmente dado à nossa frente enquanto esta coisa, aquela coisa, enquanto isto e aquilo, são como blocos de formas terminais dessa entificação. Assim, temos diante de nós Francisco como este indivíduo, os seus companheiros como esta entidade, mais outra, mais outra etc. E a cada uma dessas coisas ou entidades, seja a cada uma, seja ao conjunto delas como a um bloco, atribuímos então atos de diferentes tipos que costumamos classificar como vivências, pensamentos, sentimentos, volições, ações etc. Temos assim, deste modo, o fato denominado “experiência pessoal e privativa” do indivíduo Francisco e de seus primeiros companheiros. O mesmo processo se dá, quando então, ao estabelecermos essa experiência pessoal de Francisco como fato e também os atos dos franciscanos posteriores como outro fato, opomos o fato experiência pessoal do indivíduo Francisco ao fato coletividade da Ordem na sua evolução e necessidade de adaptação. E sobre essa plataforma estabelecida de posição de fatos é que tentamos explicar o problema, sem des-estabilizar, sem lhe tirar essa fixidez da sua factualidade, i. é, o modo de ser do fato, no qual estão os fatos incrustados como se fossem coisas em si, ali dadas simples e obviamente.

A seguir, vamos ilustrar essa situação, tomando dois textos de Celano como pretexto para ampliar a reflexão sobre a diferença de colocação, quando miramos a vivência

12 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 95.

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pessoal de Francisco como fato e quando tentamos de alguma forma intuir13, i. é, ir para dentro do fundo dinâmico do movimento, da origem e estruturação da vida, denominada experiência pessoal de Francisco.

1.1 Ilustração-exemplo 1

O primeiro texto é 2 Cel 102, citado por Gratien para nos mostrar que Francisco ensinava a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e não a beleza estética. Segundo Francisco, pois, a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção. Diz Celano:

Embora não tenha tido nenhum estudo, o santo aprendeu a sabedoria do alto, que vem de Deus, e iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor. Lia, às vezes, os livros sagrados, e o que punha uma vez na cabeça ficava indelevelmente gravado em seu coração. Usava a memória no lugar dos livros, porque não perdia o que ouvia uma vez só, pois ficava refletindo com amor em contínua devoção. Dizia que esse modo de aprender e de ler era muito vantajoso, sem ter que folhear milhares de tratados. Era um verdadeiro filósofo, porque não preferia coisa nenhuma mais que a vida eterna. Afirmava que passaria facilmente do conhecimento de si mesmo para o conhecimento de Deus aquele que estudasse as Escrituras com humildade e sem presunção. Era freqüente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões porque, embora não fosse culto nas palavras, destacava-se vantajosamente na inteligência e na virtude.

Esse relato de Celano se refere a uma experiência pessoal sui generis de Francisco. O relato, porém, ao falar da experiência pessoal, o faz a modo de uma constatação de fatos e ocorrências. Relata, pois, não a partir de experiência pessoal de Francisco, mas sim sobre ela como fato constituído de inúmeros fatos, todos eles já pressupostos. Temos assim o fato este indivíduo sujeito, chamado Francisco de Assis; sua inteligência; o seu afeto, cheio de amor; sua cabeça privilegiada; sua memória. Temos as ocorrências da ação desse indivíduo sujeito Francisco: aprendia sabedoria do alto; era iluminado pelos fulgores da luz divina; penetrava os segredos dos mistérios; lia livros sagrados; não perdia o que ouvia uma vez etc. Os atos desse indivíduo sujeito Francisco se dirigem sobre fatos reais ou tidos como tais, a saber, p. ex., estudos; sabedoria do alto; Deus; iluminação dos fulgores da luz eterna; Sagradas Escrituras; segredos dos mistérios; livros; milhares de tratados; vida eterna; conhecimento de si mesmo; conhecimento de Deus; inteligência; memória; amor; virtude; humildade etc. Todos esses fatos que, por sua vez, são como que um todo tecido por outros pequenos fatos expressam no seu conjunto a constatação do fato real ou supostamente ocorrente de que esse indivíduo sujeito, chamado Francisco não tinha estudos, mas aprendeu a sabedoria do alto; e que a sua inteligência estava iluminada e plena da luz e do vigor da sabedoria divina; que mais do que do saber intelectual humano dos estudos recebia o seu conhecimento do sabor da afeição do seu coração, cheio de amor, da sua busca preferencial da vida eterna, na virtude da humildade etc. Cada fato e cada conjunto de fatos, em pluriformes concatenações no percurso da narração de Celano – (na sua totalidade e dentro dessa totalidade, cada fato por sua vez também como totalidades na sua conjuntura, correspondente a cada momento da narração) – são como que objeto(s) da própria ação narrativa do relator Celano que, por sua vez, ao narrar os fatos, ali está também como fato, cercado por inúmeros diferentes fatos, relatados ou pelo próprio relator ou por outros relatores que nos informam sobre Celano.

13 Intu = intus (para dentro); emos = eamus (de ire = vamos).

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Nessa complexa rede, tecida de fatos, onde os fatos são como que nós, i. é, pontos de convergências de concatenações do todo, os fatos não estão ali como entidades, cujo sentido do ser seja unívoco e homogêneo, mas operam como entroncamentos de diferentes linhas do sentido do ser. Assim, cada fato conforme a conjuntura em que se acha, pode aparecer como componente de um todo, cuja referência é, p. ex., historiografia, psicologia, sociologia, antropologia cultural etc., conforme o horizonte e enfoque sob cuja mira o relator considera o fato. Desse modo cada vez ao redor de cada fato, abre-se uma bem determinada paisagem própria que se constitui como conjunto de fatos impregnado por um determinado sentido do ser, o qual cada vez deveria ser sondado e tematizado para se perceber em que sentido o fato deve ser entendido. P. ex. no relato de Celano a constatação de que Francisco, apesar de não ter nenhum estudo, aprendeu a sabedoria do alto etc., se estou concentrado em averiguar se tudo isso é de fato real ou apenas uma atribuição devota subjetiva de veneração de um admirador fiel do Francisco, o fato se apresenta apenas no seu modo de ser formal abstrato. Aqui o fato não libera de si o conteúdo interno e assim é compreendido meramente como dado “objetivo” da ocorrência físico-real material. Numa tal perspectiva do horizonte de averiguação factual é que surge então a dúvida se essa sabedoria do alto que vem de Deus, os fulgores da luz eterna etc. de fato são reais ou apenas projeções subjetivas, provenientes do enfoque de uma crença religiosa.

Se agora consideramos como fatos a inteligência, a memória de Francisco, suas virtudes, o que ali entendemos por inteligência, memória, virtudes etc. por estarem já na formalização generalizante da perspectiva do horizonte de enfoque do saber psicológico, do antropológico etc., apenas nos revelam que são faculdades de alma, uma vez como capacidade de compreensão intelectual, outra vez como depósito mental dos dados adquiridos, ou hábito ético adquirido pela contínua repetição de exercícios.

Dentro desse enfoque factual, por mais que detalhemos os dados, por mais que acrescentemos fatos sobre fatos, o todo do relato – e cada fato ali ocorrente – é como que recoberto por uma camada de solidificação “coisificante”, a ponto de não deixar transparecer a dinâmica de pulsões estruturantes que fazem eclodir de dentro pluriformes níveis de dimensões que surgem, crescem e se consumam cada vez de novo como totalidades que não são outra coisa do que gênesis das possibilidades da abertura livre de novos mundos. Desestabilizar a solidificação factual da projeção objetivante e deixar aparecer a “vida interior” dos fatos é o que designamos por desestabilizar e deslocar o(s) fato(s) para dentro de experiência pessoal, no nosso caso de Francisco de Assis. Essa desestabilização não consiste apenas em examinar as vivências subjetivas “pessoais” de Francisco, mas sim muito mais em considerar o que usualmente chamamos de experiência pessoal de Francisco como, digamos, um buraco de fechadura de um quarto trancado, através do qual começamos a vislumbrar uma paisagem aberta de todo um mundo novo, até agora não percebida. No entanto, tão logo começamos a detalhar o fato “experiência pessoal e particular do indivíduo Francisco”, determinado como “idéias de São Francisco sobre estudos e ciência”, a opacidade e a fixidez começam a diminuir e aparecem detalhes de conteúdos, relacionamentos, implicações e explicações que nos começam a esboçar toda uma região ou paisagem de significações e valores que constituem todo um mundo próprio chamado experiência pessoal de Francisco. Assim, o que antes ali estava dado simplesmente como fato se abre, a partir de dentro na sua implicação, como explicação de um todo, mais profundo, oculto para dentro de uma pré-jazida viva, digamos, pré-factual. Se agora, tomarmos as indicações dos textos, donde Gratien de Paris tirou as descrições dos fatos, as quais resumimos a

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cima, e formos ler, nós mesmos, esses textos, cuja fonte assinalamos entre parentes ou nas notas do roda-pé, então o fato, há pouco explicitado como todo um mundo de significações e valores chamado experiência pessoal e privativa de Francisco, continua a se explicitar e a se intensificar, a se estruturar, se adensando, se diferenciando cada vez mais como mundo, e se revela e se oculta ao mesmo tempo como imensidão, profundidade e originariedade de uma totalidade viva e dinâmica do mundo, no qual, para o qual, a partir e através do qual pulsa a realidade todo própria, chamada usual e banalmente de vida de São Francisco. A fixidez da locação dos entes-fatos se liquefaz e começam a eclodir regiões e regiões da paisagem dos entes que povoam e constituem o mundo exterior e o mundo interior, onde Francisco e seus primeiros companheiros estão inseridos até o pescoço. Mas este Francisco não é mais aquele Francisco-indivíduo, ali dado simplesmente como fato, qual substância-bloco no meio de outros fatos, mas sim como que a vivência, a explicitação viva e concrescida de todos os fatos que lhe cercam por fora e por dentro, os quais ele assume, dos quais se responsabiliza a partir de um fundo, o mais profundo da intimidade dele, na qual e para a qual ele se per-faz e a partir da qual se constitui como experiência corpo a corpo do e no toque de uma inspiração que abre toda uma nova realidade, todo própria e única denominada seguimento de Jesus Cristo, Crucificado. Essa “realidade” inspiradora não é no entanto algo já existente em si, a modo de entes e fatos simplesmente dados, nem é fato entre outros fatos que estão dentro e fora do sujeito Francisco, mas sim o que impregna todo o ser de Francisco como o sentido do seu pensar, agir e sentir, de todos os seus anelos e desejos, de todos os seus afazeres, de todas as paisagens que constituem a sua vida.

1.2 Ilustração-exemplo 2

O segundo texto diz respeito ao relacionamento pessoal, íntimo de Francisco para com Jesus Cristo Crucificado, que, por assim dizer, seria o protótipo da experiência pessoal de Francisco. Diz 1 Cel 115:

Os frades que conviveram com ele sabem, (...) que estava todos os dias e continuamente falando sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava da abundância do coração, e a fonte de amor iluminado que enchia todo o seu interior extravasava. Possuía Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros. Quantas vezes, ao sentar-se para almoçar, ouvindo ou falando ou pensando em Jesus, esquecia-se do alimento corporal e, como lemos a respeito de um santo: “Vendo, não via; ouvindo, não ouvia”. Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando em Jesus ou cantando para ele, esquecia-se do caminho e convidava todos os elementos para louvarem a Jesus. E porque conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado, foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros. Contemplava-o, em êxtase, sentado numa glória indizível e incompreensível, à direita do Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo vive e reina, vence e impera, Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos. Amém.

Como no texto anterior de Celano, observamos que também aqui se fala da experiência pessoal de Francisco a modo de uma fala sobre o fato indíviduo-Francisco e sobre seu ato denominado relacionamento íntimo com Jesus Cristo. Aqui também se apresentam diferentes tipos de fatos: fato indivíduo-Francisco; fato seus atos; fato Jesus Cristo, objeto do ato de relacionamento íntimo do indivíduo-Francisco; fato indivíduo-Celano que fala sobre Francisco e seus atos; fato-indivíduo ou grupo de indivíduos que examinam e pesquisam todos esses fatos referentes ao indivíduo-Francisco etc.,etc. Divisamos, em todos esses fatos dados, seus diferentes modos de ser como diferenças ônticas. Diferenças ônticas indicam, pois, o modo, de cada ente aqui dado como fato,

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aparecer como sendo14. A identidade desses como sendo, o sentido do ser desses como sendo, que encobre e subsume todos esses diferentes entes nas suas diferenças ônticas é o sentido do ser que caracteriza o modo de se dar, o modo de se apresentar do fato, da entidade, cujo ser é a presença da objetividade, i. é, da realidade objeto-coisa físico-material15. Costumamos denominar o sentido do ser desse modo de ser comum a todos os entes e que serve como de horizonte geral-formal dentro e a partir do qual os entes são dados como fatos a modo da realidade objeto-coisa físico-material, de ser-ocorrência ou ser simplesmente dado. Esse horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado inclina sempre de novo tenazmente a servir de fixador na tentativa e na tentação de salvaguardar a “realidade” dos fatos, para não se esvair no fluxo caótico de aparecimento desordenado dos entes no seu ser. Essa tendência fixadora dos entes na dinâmica da entificação, decai sempre de novo e, se fixa na sua decadência, no sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado como o critério, a medida básica, elementar e suprema da compreensão de toda e qualquer “realidade”, como o sentido do ser fundamental e fundante, comum e geral de todos os entes. Com isso as diferenças ônticas são encobertas sob uma maciça camada de univocação generalizante, cujo conteúdo significativo não libera a concreção viva e dinâmica do próprio de cada ente na sua diferença. A diferença do ser de cada ente, não é considerada a não ser como uma diferença ôntica já dentro e a partir de uma identidade geral-formal que então serve como identidade ontológica de duas coisas diferentes entre si, mas tendo como modo de ser básico e fundamental de ser, ao menos e antes de tudo, de “algo”, “coisa”, fato, ocorrência. Dentro dessa colocação, temos, pois, coisas materiais e espirituais; coisas humanas, coisas não-humanas de vários tipos, coisas divinas, coisas apenas coisas, coisas apenas idéias, coisas concretas e reais, coisas subjetivas e coisas objetivas etc. etc. Como aparece, pois, dentro dessa perspectiva do horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado, a experiência pessoal acima mencionada de São Francisco no seu relacionamento íntimo com Jesus Cristo, como é relatada em Celano? P. ex. onde se localiza o sentido vivo e concreto de continuamente falando sobre Jesus; sua conversação doce, suave, bondosa e cheia de amor; sua boca falava da abundância do coração; o amor iluminado que enchia todo o seu interior e extravasava; sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros; conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado; foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros; em êxtase; o Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo; Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos? Respondemos usualmente: entre coisas psicológicas, coisas vivenciadas, espirituais, divinas, coisas projetadas por Francisco, coisas, em todo o caso mais subjetivas do que reais, factuais e ocorrentes em si, como dados objetivos verificáveis concretamente. Ou melhor, incluindo todos os dados desse gênero sob a denominação geral de coisas subjetivas da experiência pessoal do indivíduo sujeito-Francisco. No entanto, com essa resposta reduzimos a experiência pessoal-Francisco ao fato-coisa sujeito e seus atos subjetivos individuais ao lado de outros fatos coisas ou subjetivos ou objetivos de diferentes tipos e classificações já estabelecidas e fazemos com que toda a paisagem inteiramente nova, viva e concreta de

14 O particípio ativo do esse (ser) é ente ou também sendo. Substantivado: o ente, o em sendo. Em grego το ον, -οντος, daí, ôntico.

15 Os entes que não são coisa-objeto físico-material como p. ex. atos, vivências, objetos ideais etc. são dados de alguma forma como “algo” factual, real, sempre de certo modo referido ao modo de ser da realidade coisa-objeto físico-material.

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um mundo todo próprio real, realíssimo e bem estruturado na sua dinâmica criadora fique neutralizada sob opacidade indiferente e a factualidade monótona, sem cor, sem tonância, sim sem vida. Com isso todos os termos e as expressões do relato acima mencionado não vêm à fala, a não ser como referências aos fatos, às coisas diversificadas do modo de ser preestabelecido, sim padronizado do sentido do ser da ocorrência, do simplesmente dado; impedindo que consigam percutir e repercutir como toque da origem de todo um mundo da realidade realíssima nova, portanto como diferença ontológica de uma identidade ontológica todo própria de um sentido do ser mais vasto, mais profundo e mais originário do que o sentido do ser preestabelecido como ocorrência ou simplesmente dado.

O que acontece com a assim chamada experiência pessoal, i. é. individual privativa e subjetiva de Francisco, se ela não for um dos fatos entre outros fatos que ocorrem nele “interiormente” junto com outros que o rodeiam “exteriormente”, mas sim o próprio saltar, o próprio surgir de todo um mundo, cuja paisagem está impregnada de um sentido do ser inteiramente novo, não vindo desse fato particular subjetivo do indivíduo denominado Francisco, mas sim do toque de inspiração que possibilita e cria a realidade originária em cujo âmbito aberto se tornam possíveis Francisco e seus atos, suas obras, seus companheiros e a Ordem, seu destinar-se através da história, em suma, onde se torna possível a existência franciscana? Mas para que uma tal abertura da possibilidade da gênesis da nova realidade possa ser vista e intuída, o ser do homem e o homem no seu ser devem ser compreendidos não a partir do sentido do ser que solidifica tudo na entificação factual, mas sim a partir e dentro do sentido do ser mais vasto, mais profundo e mais originário, denominado na fenomenologia de existencialidade da existência humana, ou ser da existência16.

2. Excurso: fato e existência

Para marcar bem essa diferença entre fato e existência recorramos a uma descrição de um par de sapatos do camponês, que na captação usual cotidiana ali está como uma entidade-fato simplesmente dada. A descrição nos mostra como é diferente considerar um fato como fato e vivenciar o mesmo fato como mundo, i. é, como estruturação da existência. A descrição se refere ao par de sapatos da obra de Vincent van Gogh, feita

16A palavra existência e similares como existencialidade, existencial está sendo usada em nossa reflexão no sentido da fenomenologia do Ser e tempo (Martin Heidegger), indicando o próprio do ser do homem ou da “vida humana”. Em vez de o próprio do ser do homem podemos também dizer o ontologicum do humano. Usualmente, quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não “entre” o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra existência e seus derivados, no seu uso específico fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica, mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é não representar a diferença “entre” ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala, se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando de frente na mira a diferença entre ente e ente, divisarmos numa “mira”, digamos, oblíqua a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse “intus” “ire” como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser se chama homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é existência.

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por Martin Heidegger na famosa conferência intitulada A origem da obra de arte17. Reproduzimos simplesmente, sem comentá-la, a descrição da conferência, pois, aqui queremos apenas registrar, sentir e perceber a mudança de tonância e de colorido de toda uma paisagem da realidade operada pela mudança do sentido do ser que está à raiz do abrir-se de toda uma nova possibilidade da realização da realidade.

a) O fato:

Escolhemos como exemplo um artefato: um par de sapatos de camponês. Para sua descrição não é, sequer, necessário colocar diante de nós uma peça real dessa espécie de artefato de uso. Todo mundo o conhece. Mas, porque se trata de uma descrição imediata, seria bom facilitar a visualização. Para sua ajuda basta uma apresentação pictórica. Para isso escolhemos um conhecido quadro de van Gogh, que várias vezes retratou o artefato-sapato. Mas o que há ali para ver? Todo mundo sabe o que pertence ao sapato. Se não são especialmente sapatos de madeira ou de corda, encontramos ali a sola e a cobertura de couro, ambas costuradas com fio-barbante e agulha. Um tal artefato serve para cobrir os pés. Correspondendo à utilidade, se é para trabalho do campo ou dança, são diferentes matéria e forma.

b) Desestabilização do fato e interrogação

Tais dados corretos interpretam apenas o que nós já sabemos. O ser do artefato consiste na sua utilidade. Mas o que há com a utilidade, o uso ele mesmo? Captamos com o uso já a essência do artefato? Não devemos, para que isto se dê, visitar o útil artefato no seu servir? A camponesa no campo calça os sapatos. Somente aqui, os sapatos são o que são. E eles o são tanto mais autenticamente, quanto menos a camponesa pensa neles ou os visualiza ou apenas sente. A camponesa está de pé e anda neles. É assim que os sapatos servem efetivamente18. Nesse processo do artefato em uso, a essência do artefato deve nos vir ao encontro efetivamente.

Em contrapartida, enquanto representamos um par de sapatos apenas assim em geral ou olhamos em imagem os sapatos que ali estão, vazios e fora do uso, jamais haveremos de experienciar o que é em verdade o ser-artefato do artefato. Segundo o quadro de van Gogh, não podemos nem sequer constatar, onde estão estes sapatos. Ao redor desse par de sapatos de camponês, não há nada, aonde e onde eles poderiam pertencer, apenas um espaço indeterminado. Nem sequer estão grudados neles torrões dos blocos de terra, deixados pelos sulcos do arado ou do caminho do campo, o que aliás poderia ao menos indicar a sua utilização. Um par de sapatos do camponês e nada mais. E no entanto.

c) A existência e sua estruturação

Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência19. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somenteno

17 HEIDEGGER, Martin, Der Ursprung des Kunstwerkes, Philipp Reclam.

18 Wirklich = significa ao mesmo tempo efetivo e real = atuante.

19 Insistência recorda a expressão da escolástica medieval para dizer substância, i. é, in se. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: upokeimenon.

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artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade20. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos “apenas” e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser ele próprio21.

3 - A questão dos estudos e uma interrogação existencial ao problema dos estudos

Os exemplos e o excurso acima apresentados nos podem mostrar como é diferente, de um lado, lidar com os fatos e estabelecer ligações entre fatos e fatos e então discutir e detalhar os problemas das “realidades” factuais e, por outro lado, considerar os fatos e seus problemas sob a mira de uma busca do sentido do seu ser, portanto, como é diversa a abordagem da história enquanto historiografia e a aproximação da investigação que tenta trazer à fala o acontecer de um evento, em deixando ser o destinar-se ou historiar-se no seu ser. Para que essa diferença se torne também nítida entre o problema e a questão dos estudos em São Francisco na origem e no primeiro século de franciscanismo seria necessário realizar algo semelhante ao que Heidegger fez acerca do artefato-sapato, reduzindo i. é, reconduzindo a reflexão para a origem22 do artefato ou ao ser-artefato do artefato. Portanto, no nosso caso, reconduzir os fatos simplesmente dados da vida de São Francisco e os conteúdos da sua fala e de seus escritos sobre isso e

20 Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade que em alemão é Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, deixar atrás de si, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável, e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do “inteiramente confiável”, p. ex., de um artefato que cumpre totalmente com o que promete e deve ser e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.

21 Essa descrição da redução de-cadente do artefato à entificação factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupõe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato há toda uma presença viva de uma estruturação da manualidade, onde se acena a uma dimensão mais profunda e subterrânea da existencialidade, lá onde “algo” como realidade humana ou vida humana ou existência se torna possível.

22 Origem pode significar início, enquanto o primeiro da série na linha de uma sucessão. Mas pode também significar princípio, i. é, o lance do todo da possibilidade, a condição da possibilidade de ser do todo da série.

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aquilo, à dinâmica da inquietação in-vestigante das impulsões que desvelem toda uma dimensão do ser, a assim chamada existência franciscana, que uma vez decaída do seu modo de ser originário, se transmuda na mundividência chamada franciscanismo. Este trabalho não podemos realizar aqui como seria necessário para evidenciar a implicação do nosso tema, pois extrapolaria os limites de um artigo. No entanto, tentemos na medida do possível tecer algumas reflexões acerca do modo de ser da interrogação existencial do problema dos estudos em São Francisco, para que esse assunto que nos toca como franciscanos adquira maior seriedade e concreção enquanto questão do nosso ser franciscano, hoje.

Pelo que viemos refletindo, tornou-se de alguma forma mais claro que examinar os estudos na ordem no nível da factualidade não nos satisfaz plenamente, por causa da opacidade e do imobilismo formal abstrato da colocação factual no seu todo. Tornou-se também mais temática a diferença existente entre a abordagem objetiva dos fatos a modo historiográfico e a investigação do fundo ontológico do fato como realidade-existência, a modo da história do ser do homem. Muita coisa está ainda obscura e indeterminada no que toca a compreensão da existencialidade do ser do homem em contraste com a factualidade da entificação coisista da realidade, inclusive do homem. Mas, mesmo assim, mesmo a partir dessa compreensão bastante imperfeita e provisória, tentemos colocar sob uma única interrogação a formulação usual do problema dos estudos em São Francisco, na origem e no primeiro século do franciscanismo, tendo também à mão o que com mais detalhes expusemos ao resumir as colocações de Gratien de Paris na nossa reflexão I, 4 sob o título: “As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência”.

Dissemos no início de nossa reflexão, I, 3, que sobre os estudos enquanto problema, na origem em São Francisco e no primeiro século do franciscanismo, há, na quase totalidade dos autores, uma e a mesma impostação. Segundo essa colocação, os estudos estão ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à sua clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às exigências da Igreja, por causa da evangelização. Assim trata-se mais da diferença existente entre São Francisco e o pequeno grupo de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação com o Cristo Crucificado, de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado que como comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver como coletividade o radicalismo23 ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio da presença física do fundador. Na medida do seu crescimento, a ordem estava dentro da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria Igreja, de se dispor e se adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que se refere à evangelização.

A essa colocação do problema dos estudos em São Francisco, na origem da Ordem franciscana interroguemos: o seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, em São Francisco é algo pessoal, privativo só para poucos indivíduos e não para a ordem como coletividade? ou será aqui não se trata decididamente de uma dimensão

23 Radical pode ser entendido como radicalismo e como referente à raiz. É bem diferente entender a palavra “radical” como volta à raiz e como exacerbação de um aspecto da coisa, unilateral e com fanatismo. Talvez o radicalismo de São Francisco pouco tenha a ver com radicalização, mas muito ou tudo com volta à raiz, à fonte, à dimensão originária.

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totalmente nova e diferente da realidade que exige de nós uma inteiramente nova compreensão do ser?

4. Franciscanismo e a existência franciscana

O fato-experiência de seguimento em Francisco, compreendido dentro da colocação usual do problema dos estudos, como radical, mas pessoal privativo, só é possível24 a poucos e a pequenos grupos, não, porém à ordem evoluída para um grande estamento social… Os predicados radical, ideal, pessoal privativo atribuídos à experiência religiosa de Francisco, como também os correspondentes moderados, real concreto, comum atribuídos à ordem como coletividade, para explicar o porquê do surgimento dos estudos entre frades, são binômios de segmentos da tabela de classificação, na qual, de um lado a experiência de Francisco e de seus primeiros companheiros é taxada de individual e, de outro lado, a vivência e a resolução da ordem já evoluída, são taxadas de coletivas e comunitárias. Mas em assim se efetuando a classificação, não está examinado nem tematizado o que realmente no seu conteúdo e na evidência significam esses binômios. É que os binômios achatam a compreensão dos fatos, reduzindo-a a suas significações usuais já estabelecidas e não permitem que os fatos venham à luz na mostração do que são. Lancemos pois sobre o fato-experiência de seguimento em Francisco e seus primeiros companheiros uma interpelação interrogativa e lhe perguntemos o que é, como é, esse acontecimento já de antemão classificado como radical, ideal, pessoal e privativo. Uma resposta a esse interrogatório só pode vir, a partir do próprio fato, mas agora captado, não no achatamento da classificação já feita, mas sim nele mesmo, em concreto, na e-vidência.

No outono (setembro-dezembro) de 1205 Francisco recebe a voz do crucifixo de São Damião: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai pois e restaura-a para mim”. O título do capítulo 5 da Legenda dos 3 companheiros onde está relatada a fala do crucifixo é: Da primeira vez em que o Crucificado lhe falou, e como, desde este momento até a morte trouxe a paixão de Cristo em seu coração. E a resposta de Francisco, a decisão de sua existência é: Com muito boa vontade o farei, Senhor! No prosseguimento dessa tarefa, se dá o confronto com o pai, Pedro Bernardone e a entrega total a Deus, diante do bispo de Assis. Aos poucos se agrupam ao redor dele seguidores. E em 1209 Francisco escreve a sua primeira regra, vai a Roma com 11 companheiros pedir a aprovação de Inocêncio III para a vida de seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, a vida da pobreza. Obtém a aprovação, mas só oralmente. Trata-se da assim chamada Primeira Regra franciscana, hoje perdida.

Do conteúdo dessa regra nada sabemos. Aliás, por isso mesmo ela nos parece inteiramente inútil para termos notícias sobre se e o que ela fala acerca dos estudos. No entanto, o surgimento da Primeira Regra e suas implicações e pressupostos, suas subseqüentes reformulações como Regra Não Bulada, e finalmente como Regra Bulada e o Testamento, o qual Francisco quer que consideremos não como uma outra Regra, nos podem revelar o modo de ser, digamos, interno e entranhado disso que, externa e

24 Possível, possibilidade se entende usualmente como o que ainda não foi realizado, o que carece de atualização, como ainda apenas virtual. Nesse sentido o possível é menos do que o real. Mas pode ser entendido como dinâmica real, como poder no sentido de potência real, como atuação poderosa do poder, no sentido de “pode quem pode”. É nessa última acepção que dizemos: Amar assim, só pode um deus. Aqui o possível é maior do que o real. Mas, se pensarmos com precisão, esse possível que é maior do que o real não está no mesmo nível do ser do possível como do virtual, como menor do que o real, pois possibilidade aqui diz: condição da possibilidade do possível e do real.

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usualmente denominamos de fato-experiência religiosa de Francisco na sua conversão pessoal. O fato-surgimento da Primeira Regra 1209 é como a pequena ponta visível de um ice-berg. Oculta sob a camada “objetiva” de um fato historiográfico, cronologicamente datado em 1209 e caracterizado como uma etapa final da experiência subjetivo-pessoal do sujeito-indivíduo Francisco, o surgir e crescer de intensificação do ser da realidade, a qual podemos denominar de mundo franciscano ou ser-no-mundo todo próprio chamado existência franciscana.

Em geral, quando falamos de existência franciscana, pensamos a mundividência franciscana, i. é, visão, concepção do mundo e da vida do(a)s franciscano(a)s. É o francisicanismo. Essa mundividência se origina com Francisco, se inspira nele. Mas não é a experiência pessoal e originária do próprio Francisco. É já derivada, e muitas vezes até um modo deficiente. Nessa perspectiva, portanto, o franciscanismo, a “existência franciscana” ou mundividência franciscana não coincide simplesmente com a experiência pessoal e originária de São Francisco. Temos então, de um lado: a experiência pessoal e privativa de Francisco (e de seus primeiros companheiros); e de outro lado: a concepção do mundo e da vida, aceita e cultivada por muitos, por um grupo ou grupos de pessoas que simpatizam, amam e seguem a São Francisco nos inúmeros movimentos inspirados por sua espiritualidade ou pertencendo à ordem que ele fundou. A palavra existência franciscana pode ser também entendida como indicando a plena vida de Francisco com a sua experiência pessoal de seguimento de Jesus Cristo Crucificado. Nesse caso existência franciscana não é sinônimo de franciscanismo nem de mundividência franciscana, mas sim do que há de mais nuclear, autêntico, íntimo e profundo na vivência e experiência do indivíduo Francisco. É o próprio coração, a própria alma de Francisco. Trata-se de todo um mundo de “realidades” vivas de estruturações complexas que constituem o interior, o cerne da “pessoa” (leia-se indivíduo ou sujeito) Francisco. É o que vislumbramos tão logo começamos a cavar debaixo da superfície opaca e fixa dos fatos e deixamos vir à tona a dinâmica constitutiva da paisagem interior dos fatos e acontecimentos. É mais ou menos nessa perspectiva de fundo que Gratien de Paris nos mostrou as idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência. Aqui, o fato “experiência pessoal e privativa” de Francisco se torna muito mais complexa, rica e diferenciada nos seus detalhes. Mas Francisco é sempre ainda considerado como sujeito que faz, vivencia e agencia a sua experiência religiosa, que ele possui (e é por ela possuída), em contraposição à mundividência dos que o seguiram, mas de um modo menos radical, mais adaptado às necessidades e exigências das épocas posteriores.

A situação muda inteiramente, se entendermos existência franciscana no sentido especificamente fenomenológico, acima explicitado, principalmente à mão da descrição dos sapatos do quadro de van Gogh, feita por Heidegger25. Isso porque existência franciscana, nesse caso, não significaria nem a vida de Francisco e sua experiência pessoal, privativa, na origem do movimento franciscano, nem a vida dos que a ele sucederam como seus seguidores ou fãs, nem suas vivências e mundividências,

25 O processo de um compreender, des-locando um fato da sua factualidade, liquidando, i. é, liquidificando a fixidez de sua entificação e libertando a estruturação do mundo atuante na raiz do seu ser se chama redução, a saber, recondução à situação originária da dinâmica genética do ser. A redução é cada vez diferente. Por isso, a “citação” da descrição redutiva dos sapatos de van Gogh só serviu para marcar bem a diferença entre a abordagem factual de um ente e a in-vestigação redutiva, existencial do mesmo. No nosso caso, a redução dos fatos da vida de São Francisco à sua estruturação existencial deveria ser feita concretamente, para poder também ver concretamente esses fatos no seu ser todo próprio.

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inspiradas por Francisco, mas sim, o que possibilita a ambas, o que dá essência, o sentido do ser, tanto a Francisco como a nós, seus seguidores, tanto na origem, no primeiro século do franciscanismo, como nos séculos subseqüentes, como também hoje e amanhã. Existência franciscana é o que se denominou na tradição da espiritualidade, de espírito de São Francisco ou carisma fundacional.

III – A questão dos estudos na ordem, ontem e hoje

1. Existência franciscana como espírito ou carisma fundacional

Essa compreensão fenomenológica1 do que denominamos há pouco de existência franciscana, agora como espírito ou carisma fundacional2 de São Francisco, se torna de importância decisiva na questão do problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo. Isso porque ela modifica inteiramente a impostação da busca em referência aos fatos do problema dos estudos na ordem. Em que sentido? No sentido de a experiência pessoal e privativa de Francisco não ser mais considerada como algo individual, particular, subjetivo, só válido para este caso, aqui e agora, para este fato empírico e ôntico “Francisco”; mas sim, ser ela o lugar, onde vem à fala e toma corpo o lance fundacional de uma inteiramente nova possibilidade do sentido do ser que se torna condição da possibilidade do ser franciscano, portanto se torna existencialidade da existência franciscana. Trata-se pois da medida fundamental, universal e apriorística de

1 Em vez de fenomenológica, podemos também dizer existencial, mas de preferência ontológica. Aqui ontológico não se refere à grande região dos entes não-humanos, os assim chamados entes “objetivos”, em contraposição à outra grande região dos entes humanos, os assim chamados entes “subjetivos”. Ontológico aqui se refere ao sentido do ser, não à significação lógica do termo ser, abstrata formal, sem nenhum conteúdo, comum ou geral a todos os entes extensionalmente. Sentido do ser deve ser entendido como aceno à dinâmica da gênesis de estruturação do mundo, cada vez nova, criativa, em cujo vir à luz se anuncia cada vez de novo o desvelar-se e ocultar-se do abismo insondável da possibilidade de ser.

2 Espírito, spiritus em latim, é respiração, o sopro vital. Significa a fonte da vida, sustentação da vitalidade, a própria vitalidade, o vigor, o ânimo, o que impregna todo o ser de uma pessoa em todas as suas ações; portanto significa existência, a existencialidade. Carisma, em grego kharisma, significa dom, presente, graça. A palavra grega kharis, de onde deriva kharisma, significa esplendor, graça como beleza, encanto, fascínio, i. é, a graciosidade e também gratuidade. Em geral, quando falamos de graça de Deus, entendemos a graça como dom, presente, talento, i. é, como o quê recebemos ou damos. E quando recebemos um presente, o nosso inter-esse pode estar antes apegado ao quê recebemos, deixando no retraimento a pessoa de quem recebemos. É bem diferente a tonância de um relacionamento com uma pessoa, quando no presente, o nosso inter-esse se enamora pela pessoa de quem vem o dom, nele vê e sente a presença da pessoa que se dá a si mesma através de e no presente. A beleza, a vitalidade, a graciosidade da nobreza e amabilidade da doação de si na bondade do amor é kharis, a graça, o fascínio e o encanto de atração, o esplendor do amor na sua epifania e diafania: é a difusão da bondade, da perfeição do amor. A bondade do amor de Deus, difusiva de si, a misericórdia é a graça, a graciosidade, a beleza da SS. Trindade no seu mistério. Jesus Cristo, o Deus Encarnado é o kharisma, a concreção, a obra consumada, o dom desse Belo amor. Nesse sentido, Maria, a Virgem e Mãe, é chamada na antiga liturgia latina de Mãe do Belo amor. Quando a presença e atuação, a vitalidade de Jesus Cristo no seu seguimento, impregna um dos seus discípulos, e o faz incandescente no seu amor, a ponto de ele se tornar início de um movimento concreto de seguimento em outras pessoas, dentro do mesmo estilo de sua vida, se chama carisma fundacional. Fundacional, por que funda, inicia e fundamenta a partir da força que o move uma ordem ou congregação. O carisma fundacional é pois participação no ser de Jesus Cristo, da epifania e diafania da cháris de Deus, Uno e Trino. Nesse sentido, a existência franciscana é ontologicamente anterior e mais fundamental do que a experiência pessoal e privativa de um indivíduo chamado Francisco ou de indivíduos ou de um grupo de indivíduos que seguem a Francisco. Só que existência franciscana, o carisma, o espírito de São Francisco não existe, no sentido de ocorrência como entidade factual como coisa. Ela se dá no processo vivo, responsabilizado e buscado com todo o empenho de todo o ser da pessoa dos que vão ao encontro da convocação do amor do encontro.

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todo e qualquer movimento que pretende carregar o qualificativo de franciscano, inclusive do próprio Francisco3. Enquanto medida universal de tudo que é e pode ser franciscano, essa experiência pessoal de Francisco, enquanto existência franciscana, se torna a única questão, i. é, a única ação de busca dos estudos dos seus seguidores. O que usualmente denominamos de experiência de uma pessoa, entendendo-a como vivência subjetiva, i. é, da pessoa enquanto sujeito indivíduo, em São Francisco é existência. Para que compreendamos vivência subjetiva de Francisco como concreção do ser da existência, é necessário que a vivência seja entendida como um momento, portanto dentro da perspectiva da absoluta doação de toda a vida de Francisco inteiramente dedicada ao seguimento de Jesus Cristo Crucificado. A intensidade dessa doação apaixonada é tamanha que culmina na conformidade de Francisco com o Crucificado, na total identificação com Ele, na estigmatização sobre o Monte Alverne. Assim, Francisco é chamado de um outro Cristo. Uma tal identificação com o outro na doação e recepção mútua de si se chama encontro. É união, comunhão no amor. A identificação unitiva no amor de encontro no seguimento de Jesus Cristo Crucificado é talvez a realização suprema, ou melhor, uma das tentativas – das mais intensamente experimentadas na história do pensamento ocidental – de penetrar e perfazer um novo sentido do ser da realidade no seu todo, que no cristianismo recebeu o nome de Boa Nova ou Evangelho do mistério da Encarnação. Na mística do cristianismo medieval, como pressuposição ontológica de sua metafísica4, o sentido do ser do ente na sua totalidade se dá num único ente, todo próprio, sui generis, supremo e absoluto que concentra em si toda a intensidade do ser. E isso de tal sorte que aqui ser e ente coincidem. Esse ente único, o ente como tal se chama Deus. Deus é ipsum esse, fora de Deus não há propriamente ente, a não ser a modo analógico. Por concentrar em si toda a força da entidade, se atribui a Deus ser no grau de excelência infinito, absoluto, necessário, onipotente, onisciente etc. No entanto, o característico próprio desses atributos de supremacia como infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser necessário, ser a se não é a supremacia e o poder da metafísica do sentido do ser simplesmente dado, mas sim de ternura e vigor de liberdade, cuja excelência, cuja consumação se chama pessoa5 e é desvelada no mistério da Santíssima Trindade, um Deus em três pessoa. Nesse sentido a infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser necessário, ser a se, diz: o sentido do ser é suma, infinita, icomensurável, clara e livre, sem nenhuma exigência de condições, toda e absolta doação infinita que tudo pode na ternura e vigor da gratuidade da oferta de si. Essa colocação fundamental como o sentido do ser da totalidade que impregna e estrutura criativamente todo um mundo próprio de ser, pensar, agir, é proposta como princípio prático da introdução à experiência fundamental e fundante do mundo cristão, formulado como o grande mandamento do amor, a saber, amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37-40). Mandamento esse

3 Apriorístico e apriori não devem ser entendidos como dados prefixados, a modo de uma norma fixa, mas no sentido da dinâmica do abismo insondável e inesgotável do ser; portanto no sentido da essência. Ao que essência aqui está intimamente ligada à compreensão de que a excelência e originariedade do ser não está no sentido do ser como simplesmente dado, como ocorrência, mas sim como pessoa no encontro da doação de si do Deus, como amor difusivo de si.

4 Heidegger, Martin,, Die Grundprobleme der Phänomenologie. Vittorio Klostermann, Frankfurt a. m. 1975, p. 127.

5 Cf. ROMBACH, Heinrich, Struktur-anthropologie. “Der menschliche Mensch”, Verlag Karl Alber, Freiburg/München, 1978, p. 27-37.

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que em Jesus Cristo, na última ceia, alcança a sua consumação como o novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jo 13,34).

Toda essa concatenação de referências que liga a experiência pessoal de Francisco ao seguimento, à identificação com o Crucificado, e esta ao amor unitivo denominado encontro, e tudo isso à realização suprema do grande mandamento do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo, do novo mandamento, dado por Cristo na última ceia, portanto, tudo isso quer apenas realçar que todas essas “coisas” referidas, uma vez entendidas como constituintes essenciais da existência franciscana, não mais devem ser representadas como ações e compreensões de um sujeito chamado Francisco, mas sim como toda uma dimensão, como todo um mundo de “realidades” e “possibilidades” de ser, caracterizado no Evangelho como Reino dos céus ou novo céu e nova terra. Lembremos que as idéias de São Francisco sobre estudos e a ciência, como Gratien de Paris as apresentou no III, 3 do seu livro já citado no início dessa exposição, pertencem como elementos constitutivos a essa realidade da união de amor de encontro, e somente recebem o seu pleno sentido a partir dela.

Usamos há pouco a expressão “realidade da união do amor de encontro”. Realidade diz e pressupõe ser. Ser, a saber, um sentido do ser6. União, amor e encontro só tem sentido próprio, a partir e dentro do horizonte de um determinado sentido do ser. São conceitos que revelam, por assim dizer, o fundo pré-jacente do horizonte desse sentido do ser. Como tais, são suas categorias fundamentais denominadas existenciais. Com o risco de tornar-se chato e pedante, repitamos o que já foi dito várias vezes anteriormente: Mas o sentido do ser aqui operante na união do amor do encontro, não pode ser apreendido a partir e dentro do horizonte do sentido do ser dos fatos-coisas. Dito com outras palavras, para se compreender devidamente o que seja união do amor do encontro, necessitamos intuir, i. é, ir para dentro de uma nova e outra compreensão de um outro e novo sentido do ser, muito mais rico, mais diferenciado, vivo e dinâmico do que a usual compreensão do ser que está à base da compreensão dos entes como coisas e fatos. Surge aqui a possibilidade e a necessidade de uma nova e outra ciência do ser, da ontologia existencial ou fenomenológica7. O que aparentemente parecia ser um fato da experiência pessoal e privativa que pertence à classe dos atos da vivência chamada religiosa ou mística se revela como sendo o vir à fala da possibilidade de uma nova e outra ciência do ser. Isto significa que quanto mais pessoal, íntima e religiosa for uma experiência, tanto mais deve estar impregnada da clarividência do modo de ser de uma nova e outra ontologia, ciência do ser.

6 Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um a priori, para que se receba. Mas, aqui, não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo.

7 Ciência do ser é ontologia. Mas aqui entendida, não como ciência dos entes na sua generalidade, mas sim como ontologia fundamental na acepção fanomenológica, explicitada no Ser e tempo (Heidegger). Ser aqui não significa ente, mas sim o sentido do ser oculto na subjetividade transcendental ou subjetidade, ainda interpretada a partir do ser da entificação factual.

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Por isso essa nova e outra ciência do ser8 diz: quanto mais pessoal, íntimo e religioso for o ente, tanto mais intensidade, profundidade, vastidão e pregnância deve possuir do ser. E, como foi dito acima, segundo os medievais, o ente que por excelência é pessoa absolutamente, a tal ponto de ser três pessoas numa só natureza ou essência, de ser o amor entranhado na ternura e vigor da doação e recepção mútua de si na benevolência e comunhão, é o Deus Uno e Trino, o Deus do amor do encontro e do encontro do amor da vida divina, no abismo da intimidade do mistério da Encarnação. Tudo isso quer dizer, por sua vez, que todo o seguimento de Jesus Cristo Crucificado, vivido corpo a corpo, em todas as dimensões do ser, até a consumação de total identificação com o Crucificado, ou numa palavra, a vida de pobreza, foi para Francisco o seu único e grande empenho, i. é, studium, os seus estudos na aprendizagem dessa suprema, nova e outra ciência do ser do “espírito do Senhor e do seu santo modo de operar” (RM 10).

6. A questão dos estudos, hoje

Na perspectiva de uma tal compreensão do ser por excelência, onde o ser coincide com o ente único, singular e supremo, que não é outra realidade do que o amor do encontro e o encontro do amor, a SS. Trindade no mistério da Encarnação, portanto o amor de Deus e Deus de amor temporalizado e de-finido como este, concreto indivíduo-pessoa Jesus Cristo; portanto, na mira de uma tal ciência do ser do amor de Deus, o conceito, i. é, a concepção do que seja pessoal, se liberta inteiramente do binômio subjetivo-objetivo, individual-coletivo, para se estruturar livremente como coincidentia oppositorum9, na unidade viva da singular totalidade, denominada pelos medievais de universal. Por isso, em vez de essencial, substancial, em vez de concentração ou intensificação ou qualificação e plenitude do ser, diziam os medievais também uni-versal10. Por conseguinte, universal diz vertido, com-vertido, virado de volta, centrado ao uno. Isto é: convergência do e para o uno, recolhimento e expansão, acolhimento e doação do e no uno, a saber na absoluta concentração do ser, a saber, do ser do Deus de amor uno e trino, na contração do mistério da encarnação como Jesus Cristo, o crucificado: i. é, segundo São Francisco, a Senhora pobreza.

Portanto, assim questionado, o problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo não é mais a diferença e contraposição existentes entre o pessoal e particular da experiência individual de Francisco e o comum, geral e coletivo da ordem em evolução e crescimento na adaptação às necessidades dos tempos posteriores. É antes, uma corajosa, imensa e profunda convocação universal, uma chamada, um convite para a tarefa decisiva de cada um e da comunidade dos seguidores vindouros de Jesus Cristo. É, pois, a proposta de um a priori, cuja analítica é a diligente ternura da precisão de uma criatividade fontal que brota continuamente, sempre, i. é, cada vez nova e de novo, do abismo do mistério do Deus feito finitude da Encarnação. Uma tal analítica liquida e dissolve todo e qualquer bloqueio, endurecimento ou dogmatismo do saber entificante factual, acordando, cordializando o nosso saber para o gosto e a sensibilidade, para o sabor, para o rigor cordial da generosa afeição à síntese encarnada.

8 Na Idade Média, é na sua mística cristã que encontramos a autêntica teologia. E na mística medieval está, não temática, mas operativamente atuante de modo incoativo essa nova e outra ontologia existencial.

9 Coincidentia oppositorum é expressão usado por Nicolau de Cusa para indicar um dos existenciais mais importantes da sua ontologia, que possui uma grande afinidade com a ontologia fenomenológica de hoje.

10 Católico ou na grafia antiga cathólico vem do grego kata olou, i. é segundo ou seguindo o todo.

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E reduz, i. é, reconduz todos os entes, i. é, cada ente, à auto-identidade, ao cada vez seu, à própria finitude de si agraciada, sob o céu aberto da imensidão, profundidade e originariedade do surgimento, da gênesis da existência, a saber, da liberdade da graça, estruturante do mundo, da disponibilidade generosa, expedita de uma vida inteiramente devotada, engajada no empenho, i. é, no studium, nos estudos, no inter-esse da busca que sabe à sabedoria do pobre de Assis.

Mostrar tudo isso em detalhes e em concreto, à mão dos textos-fontes, citados por Gratien de Paris, quando no III, 3 expôs as idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência, seria a tarefa mais completa desse capítulo. Mas, deixemos tudo isso para uma outra ocasião. Se, porém, o fizermos, haveremos de perceber que dentro dessa nova impostação, aquelas condições sob as quais Francisco permitiu os estudos na ordem, os conceitos como apostolado do exemplo, e a sua primazia sobre o apostolado da fala, o trabalho manual corporal, o cuidado dos leprosos, a mendicância, a paciência, a humildade, a simplicidade, a cruz, a pobreza etc.,, são existenciais, i é, como que lugares onde se encontram fatos, quais pequenos orifícios da chave de uma porta fechada, através dos quais, se pode vislumbrar toda uma paisagem da “realidade” abissal de uma nova ciência que nos introduz para dentro do coração de todas as coisas, cuja razão exige uma nova inteligência, um novo intelecto. E segundo Beato Egídio de Assis, fiel companheiro de São Francisco e grande mestre da ciência útil11, esse novo intelecto deve estar cordialmente disposto a querer saber muito, para poder dever aprender muito, humilhando-se a si mesmo, abaixando a cabeça até que o ventre toque no chão. Nessa busca, se o nosso empenho, o studium se perfizer, se se fizer, se vier a si, na jovialidade generosa dessa luta “full contact”, corpo a corpo com a coisa ela mesma do espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, então o Senhor nos dará toda a ciência, toda a sabedoria do belo amor.

A cientificidade dessa ciência útil, formulada como humilhar-se muito12, abaixando a cabeça, até que o ventre toque no chão, para receber em cheio, através de todas as coisas, a evidência e claridade da epifania e diafania do Deus Uno e Trino no amor de encontro, encarnadas como a obra-prima Jesus Cristo, o Crucificado, é o nosso empenho, o nosso studium, os estudos na Ordem dos franciscanos.

E, assim, o que era um problema do passado medieval se torna hoje uma tarefa atual de busca enraizada e radical, uma questão. Uma busca cuja emissão e missão é o envio, o apostolado13, necessariamente a modo do exemplo, a saber, práxis14, uma luta corpo a corpo, sem simulacro de apenas demonstração, do fazer de conta que, do show de

11 EGÍDIO DE ASSIS, Os ditos de Frei Egídio de Assis, cap. 13, Da ciência útil e inútil.

12 Aqui, humilhar-se nada tem a ver com o masoquismo ou complexo de inferioridade, em ser pisado e sofrer na frustração e tristeza do ensimesmamento do eu ferido e ressentido com a vida. Tem tudo a ver com estar firmemente enraizado na finitude da terra dos homens, na acolhida corajosa e cordial da graça de poder ser como Jesus Cristo, o Deus Encarnado.

13 Apóstolo, apostolado, apostolicidade vêm do grego apostellein, que significa enviar, deslanchar.

14 Praxis, práxis vem do verbo prattein que significa agir, mas no sentido de criar, fazer obra, trazer à luz obra-prima. O modo de ser da teoria, em grego theórein, significa divisar o vislumbre da incandescência do transluzir da realidade. Nesse sentido, a práxis, a prática não é outra coisa do que o árduo labutar, venturoso, artesanal, corpo a corpo, usando as próprias mãos em deixar ser a coisa ela mesma na clara lucidez da alegria de ser. Os medievais denominavam uma tal ação de contemplação.

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erudição fútil ou do saber geral, informativo formal; uma práxis de experiência, vivida, vivificante, não a “destilada” teorética da generalização neutra indiferente em classificações e informações processadas dentro de padrões já há tempo sorrateiramente preestabelecidos e congelados. Trata-se, pois, da questão, da busca do saber real e essencial, da autêntica práxis da teoria, disposta mortalmente à verdade, cuja jovialidade brota continuamente, na atenta e vigilante alerta cordial, da con-templação do espírito do Senhor e do seu santo modo de operar.

Conclusão

Se, no problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo, de alguma forma, essa nossa confusa e longa reflexão, apesar de tudo, despertar em nós o interesse pela questão do ser dos estudos no franciscanismo, certamente haveremos de perceber que com essa questão estamos sendo tocados pela inquietação que se oculta no âmago da nossa modernidade, pulsando no subterrâneo dos nossos cotidianos óbvios e usuais; inquietação epocal que nos faz pensar na dominância da factualidade nas abordagens que fazemos das coisas do espírito na espiritualidade. Por que reduzimos as nossas buscas à averiguação dos fatos na acribia e no zelo do asseguramento da certeza? Por que para nós, hoje, verdade significa certeza dos fatos? Por que verdade não mais pode ser o risco de uma intrépida aventura apaixonada da exposição disposta ao inesperado, ao abismo do não saber agraciado, da docta ignorância? Por que se nivelou a verdade, a tal ponto de crescer em toda parte a aridez baldia do sentido do ser, em cuja secura e vazio, ser não diz nem sequer apenas ocorrência factual de algo, nem sequer nos mobiliza a nos indagarmos se não está acontecendo algo de estranho na nossa compreensão do sentido do ser na sua totalidade? Esse crescente campo da aridez baldia da factualidade no tempo de indigência do espírito não poderia ocultar no subterrâneo do seu esquecimento do esquecimento do sentido do ser um ante-início de um novo hálito que pudesse nos preparar para um puro deserto, cuja acribia e rigor de precisão interrogativa nos conduzam ao ermo da pobreza do saber, cada vez mais sóbria, silenciosa, simples e atenta, qual pura ausculta dos vigias de uma nova vigília, a preparar a nasciva disposição da alegria da espera inesperada…? A questão dos estudos na origem do franciscanismo…A perfeita alegria nos estudos do seguimento de Jesus Cristo, Crucificado1… O zelo e o rigor, a precisão da pura ausculta do ser da pobreza de São Francisco de Assis: A Idade Média da contemplação e mística {e}O saber do deserto no nihilismo do ser das ciências da factualidade… A modernidade das ciências naturais, físico-matemáticas2: a espera cada vez mais esquecida, retraída do aceno mudo de um “deus vindouro”…

Deixar-se tocar profundamente pela inquietação da busca augusta na indigência do tempo da espera, viver intensamente o estreito dos riscos e perigos da pobreza agraciada na dor e alegria da passagem, não estaria aqui, o in-stante da existência hodierna franciscana, inserida na questão dos estudos na ordem de São Francisco “medieval”?

1 Cf. I Fioretti de São Francisco de Assis, cap. 8.

2 A predominância da certeza na abordagem de todas as coisas a partir do asseguramento dos fatos na sua factualidade não seria um modo de ser deficiente do sentido do ser que atua no fundo das assim chamadas ciências naturais ou exatas no seu modo de ser físico-matemático?

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Estudar, filosofia?

Introdução

Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o estudo? Supondo-se que seja sobre ambos, devemos saber o que é filosofia e o que é estudo. Mas, se estudar filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar3, então esse filosofar não mais seria saber sobre filosofia nem sobre estudo, mas apenas questão4. Na questão, interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à disposição da jovialidade incondicional da busca.

Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas da aprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, como conjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas, como coleção de ensinamentos profundos da vida e da história como sabedoria. Como matérias de estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com “ranking” do saber acadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer outra matéria de estudo escolar, a filosofia está sujeita a variegadas e diferentes apreciações dos que a estudam. Mas usualmente, a filosofia como mundividência, ciência, ideologia, cultura, sabedoria, disciplina de ensino e aprendizagem escolar, de grau superior, seja o que for e como for, é considerada como uma das manifestações e expressões do espírito humano, do espírito europeu-ocidental.

Filosofia, porém, não é boa para indicar a profissão de uma pessoa, a não ser como professor de filosofia. Soa estranho chamar alguém de filósofo, como se costuma classificar, chamando alguém de engenheiro, mecânico, lixeiro, advogado, operário, médico, historiador. Filósofo soa assim, não como alguém que tem uma função social, um status, uma tarefa ou trabalho bem definido, mas como alguém solitário, todo próprio, digamos particular e singular, algo diferente, de alguma forma afim com excêntrico, alienado, excepcional, estranho, sábio quem sabe, de vez em quando até santo, mas em todo caso não oficial, não comum, e sempre como privativo, próprio, singular. Nesse sentido, se, em vez de dizer filósofo é aquele que estudou filosofia, é a pessoa que é formada na especialização da filosofia, se disser filósofo é aquele que filosofa, pensa, matuta, “crania”, a gente se sente melhor, mais familiarizado com a qualificação. Mas pensar, matutar, “craniar” não é de toda gente, de todo mundo? O que há de especial no filosofar? O que quer dizer a famosa expressão: Filosofia é filosofar?

Filosofia é filosofar

formalmente a formulação filosofia é filosofar quer dizer: o substantivo filosofia tem como substância ser um verbo. Filosofia não é isso ou aquilo, não é algo ali pré-jacente, dado de antemão, mas uma ação bem “encorpada”, um verbo. Não um verbo, uma ação que ocorre, mas sim o ter que ser, o ter que se perfazer. Nesse sentido filosofia é só em

3 Filosofia é filosofar. Cf. HEIDEGGER, Martin, Os conceitos fundamentais da Metafísica. Mundo-finitude-solidão, tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2003. p. 5.

4 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar.

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filosofando. Ser filosofia é: ser como em sendo. Filosofia como filosofar está responsabilizada, é responsável de cabo a rabo, em todas as articulações e fibras de sua estruturação, no seu método e no seu modo de ser e não ser, na sua gênese, no seu crescimento e na sua consumação: em, por e para ser (verbo) ela mesma, em sendo. Ser assim não é sujeito, não é agente, não é um quê, que age, que tem a ação, mas é o próprio, em sendo, o pura, plena e totalmente inteiriço “verbo”, ser. Em assim sendo, ser é pura ação, anterior à atividade e passividade, um ato, “em si”, a partir de si nele mesmo, de todo e plenamente próprio, ele mesmo, na soltura, na autonomia da auto-identidade. É, pois, ser ab-soluto. Esse caráter de ser ab-soluta liberdade de si, da pura ação se diz em latim studium, e em grego scholé5, que se diz em português estudo, empenho e desempenho, o zelo. Esse caráter típico de se ser próprio se chama hermético. Enquanto propriedade de se ser, na ab-solutidade, na ab-soltura da liberdade de autonomia, absoluto não significa propriamente fixidez da imutabilidade; nem hermético trancamento e fechamento; mas pelo contrário franca abertura na imensidão, profundidade e criatividade da jovialidade de ser, no seu perfazer-se, no seu consumar-se per-feito. Em vez de na sua consumação perfeita, podemos também dizer na sua bom-dade.

Quando em português dizemos “bom!”, significamos um ente, um em sendo que está no ponto, ou melhor, no seu ponto. No ponto aqui quer dizer no seu próprio, na sua. Para indicar esse “na sua”, “no seu próprio” apertamos de leve a ponta, o lóbulo da orelha, lá onde se é fofo, redondo, pleno, solto, digamos na sua “identidade”, na sua coerência, na sua auto-adesão. Ser assim solto na coerência, como uma gota de água, redondinha, tinindo na sua contenção plena é ser no acima insinuado sentido verbal da bom-dade.

Quando a filosofia é filosofar, na sua caracterização de ser ela mesma, de estar na sua, “em casa”, no tinir da sua coerência, i. é, na sua scholé (leia-se: em casa na escola), para quem não consegue “ver” o ser como verbo, mas apenas como “substância” deslocada no seu sentido do ser para uma coisa-bloqueada como algo, a tênue vibração do tinir da contenção da bom-dade perfeita, o ponto nevrálgico da plenitude consumada de ser não é percebida, como também não se percebe a dinâmica da densidade de ser de uma turbina em plena rotação a não ser como estaticamente parada; e a soltura absoluta da autonomia da identidade é vista como fechamento, trancamento, como superfície dura de um espaço ou de uma coisa hermeticamente fechada.

A filosofia enquanto filosofar sofre da ambigüidade da “hermeticidade” acima mencionada, deslocada de sua dinâmica interna, quando vista de fora. É nesse sentido que se costuma dizer que a filosofia é hermética. Ou, dito de outro modo, numa constatação banal: Filosofia é dura, difícil de se estudar, pois não há, a partir de fora, nenhuma entrada de acesso.

5 Scholé, em latim schola, em português escola significa ócio, repouso, tempo livre de lazer. Ócio, aqui, porém, não quer dizer dolce far niente. Antes indica um modo de ser e de agir, uma modalidade de trabalho todo próprio, caracterizado como labor livre, gratuito, assumido cordialmente por causa dele mesmo, e por isso, isento de remuneração seja ela prêmio ou castigo, por ele ser querido voluntariamente, como realização da vocação de uma pessoa. Por isso, scholé significava estar livre dos negócios (=ne ou non+otium = negotium = trabalho forçado do escravo ou empregado); atividade da formação de ensino e aprendizagem escolar, conferência, diálogo, conversação erudita e filosófica. (Cf. MENGE, Hermann, Langenscheidts Grosswörterbuch Griechisch, Teil 1 Griechisch-deutsch. Berlin/München/Zürich: Editora Langenscheidt, 1970, p. 670. Essa compreensão do trabalho livre é a mesma das assim chamadas profissões liberais.

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O hermético da filosofia

Tentemos verificar esse pretenso fechamento da filosofia para dentro dela mesma, mencionando algumas de suas características, destacadas por Heinrich Rombach, quando analisa o modo de ser da filosofia moderna no seu livro Substanz, System, Struktur6.

1. Filosofia como filosofar é autoconstituição. Como tal ela não recebe nenhuma causação, ordenação, nenhum apoio ou subsídio de fora. Enquanto tal não há da parte de fora nenhum ponto de referência que nos possibilitasse ou facilitasse entrar nela. Não resta, pois, a não ser entrar em contato direto, corpo a corpo com ela, a partir dela e nela mesma; ou deixar que ela fale, dite a sua lei. Por isso: “ela pode ser definida como o pensar que se coloca a si mesmo sobre si mesmo e empreende tomar todas as suas soluções e fundamentações, de si mesmo, e todo o empréstimo de outras fontes, sejam elas experiência, autoridade, revelação, é rejeitado; e isto, não porque elas lhe pareçam incredíveis, mas porque elas estão sob as leis de um outro âmbito. Não somente é rejeitada a condução, mas também todo e qualquer conteúdo de pensamento de fora”. Aqui não se trata de reação de movimento de emancipação contra autoridade, seja ela qual for e donde vier, mas da precisão de uma busca, na qual se procura manter a coerência e limpidez do ser próprio de cada dimensão.

2. Porque a filosofia como filosofar cria o seu médium próprio, vive, se move e é nele e a partir dele, não se acha mais na ordenação do mundo que lhe é dado fora de sua autoconstituição. “Assim a filosofia não assume nenhuma posição visível e distinta em referência à sociedade do seu tempo”. Assim, ela não possui nenhuma familiaridade e credibilidade simples no meio da sociedade, não lhe é acessível de imediato, não encontra receptividade junto dos seus contemporâneos. Nesse sentido “ela não mais fala para fora, mas fala ainda apenas para si mesma; ela é coisa de especialista para especialista. Ao filósofo não mais interessa ocupar uma posição educativa no todo do seu mundo circundante, ou demonstrar através da forma de sua existência a forma a mais sublime e excelente da existência humana, mas ele se retrai, se torna invisível para a sociedade e não possui nenhum característico que tivesse para com o povo a significação e importância de um perfil exemplar do humano numa configuração prenhe de significação. Assim, o filósofo parece qualquer um, age como todo mundo, e não faz da sua filosofia um objeto doutrinário transmissível”. Isto quer dizer: ele não possui nenhuma posição oficial, não é da oficialidade, não é clérigo nem público. O Filósofo não é aquele que é chamado para uma tarefa humanitária pela vocação, o político, o educador, professor, alguém como teólogo, juiz ou médico. Ele im-porta apenas a si mesmo, por e para si, e vive no seu pensamento como o eremita na sua cela.

3. Já que a filosofia como filosofar está de pé somente sobre si mesma, e fala somente por e para si; para as décadas e os séculos futuros ela fica fora das escolas. “Todos os pensadores decisivos da nova filosofia, Descartes, Hobbes, Arnauld, Pascal, Espinosa, Locke, Leibniz e Hume são mestres não funcionários e não possuem nenhuma conexão digna de menção com a universidade. Eles trabalham e pensam como pessoas

6 O que segue é resumo e citação da exposição de Rombach das páginas mencionadas abaixo. As citações estão em itálico. Cf. ROMBACH, Heinrich, Substanz System, Struktur, Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft (Substância, Sistema Estrutura. A ontologia do funcionalismo e o fundo de trás da ciência moderna) Freiburg/München: Verlag Karl Alber, 1965, pp. 349-354.

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privativas e se relacionam com os colegas somente na forma privativa. A universidade e os estudos gerais permanecem, por longo tempo, intocados por esse pensar”.

4. A filosofia como filosofar não ocupa nem assume um determinado lugar descritível e visível dentro do mundo espiritual. Pois ela implica, contém em si todo o mundo do espírito, ou melhor, ele é todo o mundo do espírito. E assim, “ela agora somente pode apelar a isso que surgir nela mesma e é nela pensado. Ela é pensar sem pré-suposição. Ela não pode tomar da outra forma nem axiomas, nem princípios, nem verdades primeiras, nem os dados, mas deve tudo pro-duzir, gerar de si mesma. Agora sim, somente agora, a filosofia se torna “fundante”, “fundamental” de modo que tem que fundamentar tudo que ela usa como meios do pensar nela mesma”. Desse modo a filosofia é acossada em direção ao fundo e fundamentação do fundo, de tal modo que uma vez a caminho, não lhe resta mais nenhuma outra orientação a não ser a ausculta e a sondagem do abismo insondável e sem fundo da possibilidade de ser. Assim, não se pensa em expandir, estender a extensão do saber, não se está mais na tarefa do pensar enciclopédico, da vasta erudição, mas toda a tarefa consiste em se concentrar na questão do início, do toque de origem e retorno a ela na busca do outro início. “Não mais os summa, não mais um speculum universale é a tarefa, a missão da filosofia; não o processamento e a propagação do saber “substancialista” sobre mundo e vida podem ser para ela tarefa, mas apenas ainda a questão de fundo da sua própria facticidade”. Essa concentração na questão do início faz surgir diferenciados e variegados estilos nas manifestações literárias na causa da filosofia. Temos assim, p. ex., tratados, ensaios, discursos, correspondências, fragmentos, anotações, diários etc., que por sua vez mais do que estilos, gêneros ou obras literárias, são vestígios do pensar como caminhos, sendas, trilhas que acenam. Não visam, pois, o quantum do saber, o seu resultado, mas somente se trata do toque do início, do retorno ao início de fundamentações.

O como dos diálogos entre filosofias não é mais o de confronto argumentativo de pressuposições, usadas na fundamentação das teses principais de cada filosofia. As pré-suposições são mantidas intactas, intocadas ou até compreendidas da melhor maneira possível dentro da lógica do todo da colocação. No entanto, o todo da colocação de cada filosofia em contacto mútuo entre si sofre uma espécie de escavação de sapa, na qual a posição de fundo do todo de cada colocação é interrogada no seu ser, e este no sentido do ser, subsumido operativamente por cada uma dessas filosofias em “confronto”, ao “construir” o conjunto visível exotérico da sua aparição. Aqui no “confronto” não estão em jogo posições particulares dentro do todo da colocação, mas sim o toque inicial da abordagem do todo da colocação. “Confira-se nessa perspectiva a controvérsia, p. ex., de um Locke contra Descartes, então de novo de um Leibniz contra Locke, de um Kant contra Leibniz etc.” Aqui cada oponente se conserva mutuamente protegido nas suas afirmações internas, esotéricas. Mas ao mesmo tempo, cada uma das abordagens do todo de colocação de cada oponente é colocada em questão, i. é, na busca, como ainda uma posição, portanto, não suficientemente no fundo, onde se possa vislumbrar um abismo sem fundo do pensar de origem.

5. “Na medida em que a filosofia não mais é mantida, determinada e esclarecida através e por meio de um mundo do ser e do sentido do ser extra-filosóficos, ela deve não somente pensar ela mesma, mas também deve determinar todas as suas particularidades e posições fundamentais. Por isso ela começa cada vez com uma autocolocação, auto-exame e autoconsideração. Antes de adentrar os problemas intra-filosóficos, o pensador deve, antes de tudo, clarear como tal o seu conceito de filosofia. Cada filosofia tem como seu primeiro e fundamental tema a possibilidade do próprio

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filosofar ele mesmo. Com isso cada uma filosofia se torna a filosofia. Ela se torna uma nova fundação do filosofar como tal e deve tudo pensar novo de novo no seu reino”. Isso faz com que o pensador seja considerado como isolado e apenas ligado na referência ao seu próprio espírito. Assim começa cada qual, consigo mesmo. Aqui, cada qual é descobridor do campo o mais próprio da filosofia. Cada pensador se compreende uma nova erupção, uma nova eclosão, uma retomada, como o início de toda uma época do pensar e não apenas como uma nova tese dentro de uma moldura que permanece igual, do filosofar como tal. “Somente agora o pensar se torna num modo destacado historial. Filosofia se torna epocal. Ela se adentra cada vez de tal maneira na história que com ela (filosofia) inicia um novo tempo. Cada filosofia se compreende como a incisão epocal entre as eras do universo temporal”. Assim a interpretação dos outros filósofos se torna volta às e retomada das pressuposições como sondagem e ausculta do que elas ocultam da possibilidade de ser. Nenhuma filosofia pode se estabelecer, sem dar ao mesmo tempo a sua própria apresentação e exposição da história da filosofia. A história da filosofia não é mais apresentação das diferentes opiniões sobre as mesmas perguntas, mas é entendida agora como uma história da questão do sentido do ser que contém cada vez diferentes possibilidades fundamentais da compreensão do mundo, homem e Deus, que projeta nessas possibilidades, diferentes perguntas e modos de perguntar.

Nessa perspectiva, “não existe uma base comum para discussão direta entre as filosofias. Com a criação nova do conceito de filosofia surge também cada vez uma nova, própria e i-repetível terminologia do pensar. Essa “terminologia”, quiçá, esclarece esse pensar em si, mas não o deixa mais se referir ao outro pensar e a teses em outro pensar. Cada filosofia deve ser concebida a partir da sua própria terminologia, e por isso mesmo suas enunciações não podem ser ditas para fora dela, portanto não mais no sentido usual como “diálogo” entre os filósofos. Os pensadores se isolam na absoluta solidão do seu mundo conceptual cada vez seu. Todas as categorias como essência, substância, ser, verdade, pensar, fundo e fundamento, causa, matéria, forma, assumem diferentes significações, sim até conteúdos contrários, na medida em que se atêm a diferentes círculos de pensamento”. Diante disso, não se pode mais falar na filosofia de “Introdução geral da filosofia”, já que cada filosofia por e para si mesma é introdução, o adentrar-se no filosofar.

6. Do que até agora dissemos, a filosofia como filosofar se assenta sobre e em si mesma e não é propriamente uma forma específica de espírito como tal. Assim, ela possui uma impostação e implicância toda própria, totalmente irredutível para com a sua tarefa. Ela é um modo de pensar que difere totalmente do modo de pensar do usual cotidiano, quer na ciência, quer na vida. Por isso a filosofia é difícil para a gente. Ela se torna assim inacessível e des-natural, artificial para quem se acha fora dela.

Esse resumo da exposição muito mais detalhada das características da filosofia como filosofar, feita por Rombach, nos pode induzir a tirarmos conclusões precipitadas. Falemos, pois, brevemente somente sobre uma dessas conclusões equivocadas que mais ocorrem, desviando-nos de um questionamento adequado da questão.

Evitando uma conclusão apressada

Acima mencionada conclusão precipitada em questão consiste em tirarmos de tudo quanto dissemos até aqui, caracterizando o modo de ser próprio da filosofia como

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filosofar, a conclusão de que tal estudar filosofia é um puro fechamento para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista.

Admitindo a possibilidade de tal conclusão, sem entrar no questionamento das pressuposições ali pré-jacentes não analisadas, queremos aqui apenas apontar um item que poderia insinuar uma conclusão diferente, conclusão que longe de ser uma solução, é antes uma questão mais exigente.

O termo hermético, como já foi mencionado bem no início, conota fechamento, trancamento completo para dentro de si.

Nos supermercados encontramos e compramos à beça produtos alimentícios embalados e fechados em sacos de plástico resistente, de cujo interior se retirou de todo o ar, de modo que os alimentos estão totalmente blindados contra o contato com o ar exterior. É esse tipo de fechamento que nos vem à mente de imediato, quando ouvimos ou lemos a palavra “hermético”. Assim, para nós hoje, o adjetivo “hermético” se refere de imediato ao fechamento, é relativo ao fato de se estar trancado por e para dentro. No entanto, “hermético” contém o nome Hermes, um dos deuses principais e mais influentes da mitologia grega. O que tem deus Hermes a ver com trancamento por e para dentro, com o fechado hermeticamente? Talvez, segundo Dicionário Aurélio, porque “hermético” significa também “encimado por um Hermes”. Hermes ou herma é um bloco quadrilátero quadrangular de pedra, cuja parte de cima é um busto esculpido de Hermes, em que o peito, as costas e os ombros são cortados por planos verticais, formando a parte inferior do bloco a modo de um pedestal quadrangular; ou é um meio-busto esculpido ou estátua de Hermes aplicada a um plinto. Essa peça quadrilátero quadrangular de pedra, quando era usada para tampar um espaço aberto, o fechava de tal modo que de fora, ali nada mais entrava. Daí, num sentido figurado, algo cuja compreensão nos é fechada, inacessível ou muito difícil e obscura, é qualificado de hermético.

Mas a referência do “hermético” ao fechamento pode ter uma acepção mais profunda do que o simples fato de uma abertura ser fechada com um plinto encimado por busto de Hermes. É o que se insinua na ligação que a palavra “hermética” tem para com “ciência” oculta de mutação e transmutação das forças elementares das profundezas da matéria, da alquimia. “Hermético” agora se refere diretamente a deus Hermes, enquanto relacionado com as forças ocultas das profundezas obscuras da matéria. A referência da palavra “hermético” com fechamento, não poderia vir da sua direta referência a deus Hermes? Deus Hermes no seu modo de ser, nas suas propriedades, não nos poderia levar a uma interpretação da filosofia como filosofar, e que na exposição acima do item “O hermético da filosofia” parecia se caracterizar como hermeticamente fechada em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista?

A filosofia como filosofar está fechada com deus Hermes

Fechar em português pode significar trancar, cerrar, tapar a abertura etc. Mas pode também em tudo isso significar concluir, levar ao cabo, consumar, perfazer. Nesse sentido é que dizemos: fechei um negócio, fechei um contrato. E no Brasil a expressão fechar com pode significar estar a favor ou ao lado de; concordar com. Não é assim que na mesma direção vai também a acepção da expressão: estou contigo e não abro?

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Fechamento hermético da filosofia como filosofar não poderia significa então que a filosofia esteja declarando a deus Hermes: Estou contigo e não abro? Ou melhor, que a filosofia no seu filosofar não é outra coisa do que ser simples e totalmente inserção no “estar na sua” da divindade de Hermes, no entusiasmo de Hermes? Em que consiste o estar “na sua”, no próprio divino de Hermes, no seu entusiasmo? Hermes é deus, uma divindade. E deus na sua divindade é representação da excelência do ser, concentrada num ente, i.é, em um “em sendo”. Essa concentração muitas vezes na “mitologia” é entendida como personificação, subjetivação ou hipostatização, gramaticalmente substantivação do adjetivo ou verbo, de tal sorte que o deus Hermes se transforma num sujeito-pessoa, num substantivo que indica um algo substancial, um quê ocorrente em si, que por sua vez possui qualidades ocorrentes e acrescentadas a ele como seus atributos e ações. Se “des-mitologizamos”7 o mito dos deuses gregos dessa personificação e os consideramos na dinâmica do seu ser próprio como divindade, como o divino, então “deus” ou “divindade” como excelência do ser, concentrada num ente, i.é, em um “em sendo” não deve mais ser entendida como fixação num ponto como centro, mas como onipresença cujo centro está cada vez em toda a parte, sem ocupar lugar, mas cada vez em cada momento de todo o “em sendo”, como plenitude, como alegria, como vitalidade de ser. O quê, aqui qualificado como concentração do ser, não é um quê ponto, um núcleo subjacente a propriedades e atuações, mas vigência qual difusão a modo de claridade ou afinação. A modo de claridade ou afinação é tal que instante, momento, vigência ali é cada vez instante do instante, momento do momento, vigência da vigência em crescimento e decrescimento da densidade de liberação da auto-identidade de cada “em sendo”. Esse modo de ser da vigência, do momento, do instante difusão no crescimento e decrescimento da liberação da auto-identidade é insinuado pelas expressões afins entre si como: o próprio, na sua, cada vez seu e expressa a excelência de ser que personificada e qualificada em suas diversificadas aparições recebe o nome de deus, deuses ou o divino.

Hermes, diferindo de seu irmão Apolo, que é deus do sol meridiano, deus da luz do dia, é deus da luz sombreada do lusco fusco do despertar da manhã; e é deus da luz sombria da noite, das trevas incandescentes. O seu elemento, a sua ambiência familiar, o seu “em casa” é vigência das forças ocultas das profundezas do mistério do ser, do abismo insondável e inesgotável das possibilidades de ser. Ele é assim o mensageiro, o arauto dos enigmas dos deuses, é condutor das almas para dentro do desconhecido, inesperado, e inaudito do mistério da origem e do seu toque. O seu reinado começa a se sentir em casa lá onde todas as nossas possibilidades do ser e pensar aparentemente estabelecidas sobre certeza do saber, exatidão do cálculo e controle, sobre firmeza do querer do poder, colocadas, padronizadas e classificadas, nas suas posições e pressuposições, afundam nas nuvens do não saber, do não poder, do não ser, impulsionadas na paixão da busca hermética do sentido do ser.

O fechamento hermético! O que, à primeira vista, sob a luz gélida e neutra e ao mesmo tempo tórrida e causticante da interpelação produtiva do auto-asseguramento de um cientificismo objetivante exacerbado, aparece como fechamento em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista da filosofia como filosofar, não seria antes tentação e tentativa de uma boa aventurança, na busca da disposição, da prontidão atenta da espera do inesperado, trabalhada, renovada, buscada tenazmente sempre de

7 Desmitologizar aqui não significa desmascarar o mito de suas interpretações defasadas e supersticiosas, não objetivas factuais, mas sim desbloquear o mito de amarras de perspectivas a ele inadequadas, para deixá-lo ser ele mesmo na sua liberdade própria.

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novo pela existência “acadêmica” que de todo fecha com a paixão de Hermes e não abre?

Mas e a filosofia institucionalizada no ensino e na aprendizagem escolar com todas as suas exigências formais e de conteúdo, monitoradas pela sociedade acadêmico-científica? Nelas e através delas assumir o empenho e desempenho de nos exercitarmos em infindas tentativas de resolver os problemas e as dificuldades provenientes de suas determinadas posições e pressuposições; e nessas tentativas aguçar, ampliar, questionar a precisão e a cordialidade da busca na mira da única questão do fundo de todas as pressuposições, para dentro do abismo hermético de uma espera, inteiramente nova e jovial da possibilidade do ser, seja talvez a tarefa hodierna do estudo da filosofia.

Conclusão

O estudo? A filosofia? Filosofia é filosofar? O que vale, porém, em tudo isso, é não esquecer o aceno da recordação, a mais necessária dos tempos de urgência:

Pois odeiaO deus sensatoCrescimento intempestivo (HÖLDERLIN, Do motivo dos Titãs, IV, 218)8.

8 Cf. HEIDEGGER, Martin, Introdução à Metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 227.

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Estudar filosofia, um nada!?

Introdução

A referência da interrogação do título é ambígua. Diz respeito ao estudar? À filosofia? E/ou ao estudar filosofia?

Ambigüidade no começo de um curso superior não é bem vinda. Ela é tida, ora como titubeio, indecisão, dúvida, insegurança, ora como astenia, falta de ânimo intrépido. Essa constatação, porém, nada diz, se não se mostra em que consiste o objeto da inquietação expressa nesses termos. Ele é múltiplo. Mas, geralmente na prática, se pensa no que se pode resumir mais ou menos na pergunta: o que faço com esse tipo de conhecimento, com sua graduação, seu diploma, na e para a realização do projeto da vida, individual, social, pública, que busco para o futuro?

Quem assim aborda o começo des seus estudos superiores já está bastante motivado em seu projeto de vida, sabe o que quer ser na vida, e por isso, escolheu esta determinada disciplina científica como meio para alcançar o objetivo, colocado como projeto do seu futuro.

Nas disciplinas que não são filosofia, a inquietação presente nos termos acima mencionados, expressando a preocupação inerente ao começo de todo e qualquer curso, em relação à matéria disciplinar, não se refere em primeiro lugar nem principalmente à validade da disciplina e à sua utilidade, à sua cientificidade e positividade, mas sim à condição da possibilidade subjetiva da consecução, da realização do objetivo do seu projeto da vida futura.

A interrogação do título desse pequeno artigo se coloca na situação, vivida por quem quer estudar uma disciplina científico-acadêmica no nível de graduação e pós-graduação, dentro da perspectiva do objetivo de um projeto de vida. Mas a interrogação que expressa insegurança e o receio no começo de um curso universitário, acima relacionados à condição da possibilidade subjetiva da realização do objetivo do seu projeto da vida futura, é algo comum e geral a quaisquer iniciativas e empreendimentos da vida humana. Como tal, não é propriamente do interesse desse artigo que quer se concentrar especificamente no estudo da filosofia.

Diferentemente das outras disciplinas universitárias das ciências positivas, aqui no estudo da filosofia, situado dentro da ambigüidade geral da inquietação inicial de todo e qualquer estudo superior, surge e se intensifica uma implicância estranha que vem da própria filosofia, cuja manha somente aparece depois de se ter andado um bom trecho. É que, na filosofia, interrogação, titubeio, indecisão, dúvida e insegurança, em suma, o sentimento da ambigüidade atinge a própria filosofia, enquanto disciplina, na sua estranheza.

No estudo da filosofia, começa-se com estranheza da disciplina. Estranheza aumenta na medida em que com ela nos familiarizamos; e se consuma num estranho nada. Nada saber, nada poder, nada ser. Daí a exclamação da interrogação: Estudar filosofia, um nada!?

I - Filosofia, uma estranha “disciplina”

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Por que chamamos a matéria de um saber científico, no ensino e na aprendizagem, de disciplina? A resposta parece óbvia: é porque o ensino e a aprendizagem de um saber científico exigem e pressupõem empenho e desempenho bem disciplinados. A aquisição do saber científico é um trabalho, bem organizado, positivo e construtivo, de um todo sistemático, coerente e fundamentado numa exatidão lógica, altamente racional. Trata-se, pois, de impostação humana afinada à objetividade da certeza e controle. Essa imposição da objetividade da certeza coordena, comanda a praxe do ensino e da aprendizagem; e se chama disciplina. O oposto da disciplina é a indisciplina, desordem, anarquia, o acaso, subjetivismo, o irracionalismo, o contraditório, a alógica, a assistemática.

Mas todas essas significações já fixadas da disciplina e do seu oposto já são derivações defasadas do sentido simples, uno e imediato, mais próximo da origem da palavra disciplina que diz propriamente: a dinâmica, o élan do aprender.

É que a palavra disciplina vem do verbo latino discere (disco, didici, discitum, discere). Discere significa aprender, saber, estudar; conhecer, tomar conhecimento, informar-se.

Assim colocada, a disciplina filosófica não tem nada de estranho. Estranho, porém, é não estranharmos essa maneira de considerar a filosofia como uma disciplina do aprender, saber, estudar, conhecer, tomar conhecimento, informar-se da impostação humana afinada à objetividade. É que a filosofia é uma das atividades humanas que, juntamente com a arte e a religião, possuem a maior implicação e implicância com a criatividade e a liberdade humana. Assim, o seu ensino, a sua aprendizagem, a maneira de se estruturar e se constituir em conjunto de conhecimentos possuem o seu caminho e o seu modo de ser todo próprio. Podemos, por conseguinte, supor que a sua disciplina, i. é, a dinâmica, o élan do aprender possui características todo especiais. Com outras palavras, o verbo discere na disciplina chamada filosofia se nos apresenta como ação, cujo modo de ser deve ser observado com precisão. Com outras palavras, o ser ativo, estudioso, inteligente, empenhado e competente na disciplina da filosofia tem razões que a efetividade e afetividade da racionalidade, da objetividade e do seu oposto, da subjetividade desconhecem9.

1. Aprender na filosofia é ativo, passivo, reflexivo?

Seja em que língua for, na compreensão do modo de ser dos verbos, é de grande importância observar o significado das modalidades das suas vozes.

Segundo o Aurélio, num verbo, voz significa gramaticalmente: “Aspecto ou forma com que um verbo indica a ação como praticada pelo sujeito (voz ativa), ou por ele recebida (voz passiva), ou simultaneamente praticada e recebida por ele (voz reflexa ou média)”. Sem entrar em detalhes especializados na sintaxe gramatical dessas vozes, observemos o seguinte: a classificação das ações humanas em ativas, passivas e reflexivas pressupõe a compreensão da ação humana dentro do esquema: homem, como sujeito e agente da ação, tendo como o término da intenção da ação, o objeto. Usualmente a respeito das ações humanas, delas, como já foi acima mencionado, distinguimos a fonte donde e onde se dá a ação, a saber, o sujeito. O homem é sujeito e agente das ações humanas. Como tais as ações humanas se realizam ora como ações

9 Pedimos perdão a Pascal por esse modo banal e boçal de parafrasear o seu profundo pensamento. Cf. PASCAL, Blaise, Pensées (Pensamentos), edição Lafume, n. 423; edição Brunschvicg, n. 277.

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ativas (= o sujeito agente atua sobre); como ações passivas (= o sujeito sofre a atuação de outro sujeito sobre ele); e... também como ações reflexivas. O adjetivo re-flexivo significa que na ação ativa do sujeito, se dá reviravolta na direção, de tal sorte que a ação ativa que vai sobre um objeto para fora do sujeito, se vira para o próprio sujeito, fazendo-o objeto da própria ação ativa, sofrendo-a. É como se o sujeito fosse atingido pela ação ativa de outro sujeito, portanto, se tornasse sujeito da ação passiva. Só que a ação ativa da qual se torna receptor, provém do próprio sujeito, enquanto agente da sua ação ativa. É o que diz o Aurélio: a voz reflexiva é ação simultaneamente praticada e recebida por sujeito. Só que aqui, o advérbio simultaneamente recebe uma acepção inexata, pois não é possível que ao mesmo tempo se dêem ação ativa e passiva no sentido preciso e rigoroso em igual tempo, pois há sempre uma prioridade temporal da ação ativa sobre a ação passiva. Isto significa que na divisão das ações humanas em ativa, passiva e reflexiva, a ação humana é considerada preferencialmente a partir da ação ativa, da atuação. A dinâmica verdadeira é a atuação, é representada pela ação ativa.

Outra classificação da ação do verbo é em verbo transitivo e intransitivo. No transitivo a atuação da ação do sujeito transita, passa para o objeto, in-flui na coisa do objeto, mas propriamente não retorna ao sujeito. No intransitivo, a atuação da ação não transita do sujeito ao objeto, mas permanece, fica no sujeito e agente da ação. Por isso, no verbo intransitivo não encontramos objeto. Aparentemente, o que na classificação anterior denominamos de reflexivo seria uma variante do intransitivo e que designamos também como sendo uma atuação reduplicativa. A atuação da ação sai do sujeito para o objeto, mas retorna ao ou sobre o sujeito, se reduplicando. É o que é expresso no verbo se perfazer. No entanto, se bem observarmos, considerar sem mais a atuação intransitiva com a reduplicativa ou reflexiva pode nos induzir a imprecisão, a saber, a de equiparar a classificação da atuação da ação do verbo em voz ativa, passiva, reflexiva à do verbo transitivo e intransitivo. Essa equiparação é possibilitada por uma pressuposição ou pré-conceito tacitamente admitido em geral de que a atuação excelente e propriamente dita da ação é a voz ativa; e que a passiva é uma não ação. A classificação do verbo em transitivo e intransitivo – e este como variante do reflexivo no sentido do reduplicativo – conserva em si ainda de algum modo no intransitivo o que é insinuado na assim chamada voz medial.

Depois dessa observação acerca da classificação da atuação da ação do verbo, lancemos a modo de “chutação”, aqui assinalada com empáfia como hipótese especulativa, a seguinte colocação:

Voz média não significa propriamente voz que fica entre ativa e passiva, digamos, assim meio a meio, mas referente ao “medium”. Daí medial. Medium aqui é latim e significa: permeio, ambiência, o modo de ser que dá o todo na sua concreção de pregnância, a entonação, a tonalidade, o colorido. Outra insinuação do medium é humor, atmosfera, sabor no uso da expressão “este pão sabe a panetone”. É o quê ou o como, dito na palavra presença. É a ência do pré. O termo pré indica antecedência. Ência, vigência, essência, ser. Vejamos de alguma forma a dinâmica da estruturação do ser dessa antecedência. Tentemos, pois, atentar para essa transcendência imanente, o a priori que é, em tudo e a tudo que é e não é; que se torna e deixa de ser, em sendo, cada vez a seu modo ente e não ente em concreção, em crescimento coincidente, cada vez diferente na auto-identidade da sua dia-ferênia.

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A nossa reflexão hipotética se limita apenas a dizer que o próprio do empenho e desempenho do estudo da filosofia é, para quem ensina e quem aprende, adentrar a disciplina, i. é, o élan da dinâmica do mover-se na ação medial10.

2. Parábola e seu plágio

Para de alguma forma poder dizer isso, recorramos a um trecho da conferência, intitulada Supervisão e orientação na área dos meios pictóricos e sua ordenação espacial11 de Paul Klee, quando ele fala desse “tipo” de “coisa”, ilustrando-o com a imagem de uma árvore. Essa ilustração de Klee é uma parábola. Pará bola é uma palavra lançada a alguém, um projétil que lhe passa bem a lente, quase o atingindo por um triz, no seu âmago, acordando-o para o que lhe subjazia oculto como seu ser. O comentário que aqui segue depois do texto citado de Klee é plágio. Plágio é uma cópia mal feita da parábola bem dita que atinge e cordializa o essencial da causa da comunicação, i. é, da linguagem. Por ser cópia mal feita, não possui a força da chamada da pro-vocação vital, e assim se esvai em blá-blá formal. É nesse sentido que se diz: não diz coisa com coisa.

Antes, porém, de citar o trecho de Klee, como introdução ao que segue, apenas ouçamos o que o poeta pensador alemão, do século XVIII, Johann Peter Hebel12 diz acerca do ser humano, do que é o seu próprio, a saber, da existência:

3. Parábola

“Nós somos plantas, que – o possamos gostar ou não de confessar – devemos subir, da terra, com as raízes, para poder florescer no éter e trazer frutos”13.

Diz Klee:

Deixai que use uma comparação, a comparação da árvore. O artista se ocupou com esse mundo de multifária configuração e arranjo, – é o que queremos supor - bem de certa maneira ali dentro, de todo, silenciosamente.

Ele ali está tão bem orientado que pode ordenar a fuga dos fenômenos e das experiências. A essa orientação nas coisas da natureza e da vida, a essa ordenação cifrada em enigmas múltiplos e ramificados eu gostaria de comparar à raiz da árvore.

Daí fluem ao artista as seivas para irem, através dele e através do seu olho. Assim, o artista está no lugar do tronco.

10 Dito de modo exagerado, o verbo discere, independente de sua forma gramatical, é no seu ser uma ação medial. E, radicalizando a exageração, todas as ações humanas, originariamente, antes de ser ativas, passivas e reflexivas, substancialmente, essencialmente são simplesmente mediais. Cf. A conclusão dessa reflexão.

11 KLEE, Paul. Übersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihre räumliche Ordnung, conferência pronunciada aos 26.01.1924, por ocasião de uma exposição de quadros, na Sociedade artística de Jena. O texto foi publicado pela primeira vez em 1945, sob o título Paul Klee, Über die moderne Kunst (Sobre a arte moderna), editora Bentell, Bern. On modern art, tradução de Douglas Cooper, Bentell, Bern, 1945.

12 (1760-1826) pastor protestante, poeta-pensador e educador.

13 HEBEL, Johan Peter, Obras, editadas por Wilhelm Altweg, , Zurique e Frigurg i. Br.: Editora Atlantis, 1940, volume III, p. 314.

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Pressionado e movido pela força daquele fluxo, ele conduz adiante o intuído para dentro da obra.

Como a copa da árvore, visivelmente se desdobra temporal e espacialmente para todos os lados, assim acontece também com a obra.

A ninguém há de ocorrer idéia de exigir da árvore que ela forme a copa exatamente como a raiz. Todo mundo há de compreender que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exato entre em baixo e em cima. É claro que as diferentes funções em diferentes dimensões elementares devem temporalizar vivas declinações diferenciais.

Entrementes, no entanto, quer se vetar justamente ao artista essas pictoricamente já necessárias declinações que se afastam dos protótipos. Foi-se tão longe no zelo, a ponto de acusar o artista de impotência e de falsificação intencionada.

E ele, no entanto, no lugar a ele indicado junto do tronco não faz outra coisa do que recolher o que vem da profundeza e conduzi-lo adiante. Nem servir, nem dominar, apenas mediar.

Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E ele mesmo não é a beleza da copa, ela só passou através dele.

(...)

Gostaria, agora, de considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si e ali tentar mostrar como o artista vem muitas vezes a uma tal deformação aparentemente arbitrária da forma natural do aparecer.

Por sua vez, ele não dá a essas formas naturais do aparecer a importância obrigatória como o fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele não se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas terminais. Sem o querer, seja ele talvez, justamente, filósofo. E se não faz como os otimistas que explicam este mundo como de todos os mundos, o melhor e se também não quer dizer que esse nosso mundo circundante seja ruim demais para tomá-lo por exemplo, diz ele, no entanto assim:

O mundo, nessa sua configuração formada, não é o único de todos os mundos!

Assim, o artista olha as coisas que a natureza formou e lhe faz desfilar diante dos seus olhos com mirada penetrante.

Quanto mais profundamente mira, tanto mais facilmente ele consegue distender os pontos de vista, de hoje para ontem. Tanto mais lhe impregna no lugar de uma figura pronta da natureza, a figura somente ela essencial da criação como a gênese.

Então, se permite também o pensamento de que a criação hoje mal poderia estar concluída, e com isso, estende aquela ação criativa do mundo, de trás para frente, dando duração à gênese.

Ele avança ainda mais.

Diz para si, ficando desse lado: Esse mundo apareceu diferente e ele há de aparecer diferente.

Tendendo para além, porém, pensa: Nas outras estrelas se pode ter vindo, de novo, a formas de todo diferentes.

Tal mobilidade nos caminhos naturais da criação é uma boa escola de formas.

Ela consegue mover a quem cria, do seu fundo, e ele mesmo já móvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seus próprios caminhos de configuração.

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A partir dessa impostação a gente deve ter como a seu favor, quando o artista esclarece o presente estágio do mundo do fenômeno que lhe diz respeito, como casualmente bloqueado, bloqueado temporal e localmente. Como demasiadamente delimitado em contraposição ao intuído profundamente e sentido vivamente por ele.

E não é verdade que, já o relativamente pequeno passo do olhar através do microscópio faz desfilar diante dos olhos figuras, que nós todos haveríamos de declarar como fantásticas e exacerbadas, se, sem pegar o pivô da coisa, as víssemos de todo por acaso em algum lugar?

Senhor X, porém, ao dar de cara com uma cópia de tal figura, haveria, numa revista sensacional, de clamar indignado: isto seriam formas naturais? Isto é, sim, o pior dos comércios de arte!

Portanto, o artista, pois, se ocupa com microscópio? História? Paleontologia?

Apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilidade. E não no sentido da possibilidade de um domínio do controle científico da fidelidade à natureza!

Apenas no sentido da liberdade!

No sentido de uma liberdade que não conduz a determinadas fases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ou que em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel, como o é a grande natureza.

Do exemplar para o arquétipo!

Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porém, são os artistas que hoje penetram até a uma certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originária alimenta os desenvolvimentos.

Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal, chame-se ele cérebro ou coração da criação, ocasiona todas as funções. Quem como artista não gostaria de morar lá?

No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde a chave do mistério para tudo jaz guardada?

Mas não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali, aonde a batida do seu coração acena.

Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressionistas tinham plena razão em morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar do nosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo abissal.

O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idéia, fantasia é de todo para se tomar a sério, se ele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricos adequados.

Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais ou menos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuído na intimidade oculta (geheim).

II - Filosofar é ser medial

Filosofia é filosofar. Filosofar é ser. Ser é medial.

A seguir, a modo de plágio, tentemos comentar o texto-parábola de Klee. E isto com a expectativa de que se estabeleça de algum modo a seqüência acima formulada, explicando a atuação da ação do verbo na voz medial.

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1. Sujeito-ato-objeto na existência artística

O mundo da arte é comparado ao mundo natural da árvore. O mundo da arte se constitui de artista, de sua ação criativa e de produtos dessa ação, de obras ou objetos artísticos e de tudo quanto se refere a eles. A relação entre os elementos constitutivos do mundo da arte se estrutura no esquema sujeito-ato-objeto. Em Klee esses elementos, na comparação, se dão da seguinte maneira: o artista; este se ocupa e se arranja; com o mundo de multifária configuração. E ali, no mundo de multifária configuração, o artista está bem orientado e ordena a fuga dos fenômenos e das experiências. Essa orientação nas coisas da natureza e da vida, essa ordenação cifrada em enigmas múltiplos e ramificados Klee compara à raiz da árvore.

a) Sujeito

Na maneira corriqueira de usar o esquema acima mencionado sujeito-ato-objeto, o que aqui Klee compara à raiz da árvore, a saber, orientação e ordenação, é colocado dentro do sujeito, na sua mente, como atos que classificam e ordenam os objetos ali ocorrentes diante e ao redor do sujeito-homem. Essa colocação considera no fundo o próprio sujeito homem como raiz e passa por cima do que Klee acentua com insistência: que o artista é tronco, ele é apenas passagem. Klee não fala nem do sujeito nem das suas ações. Fala do artista. O artista, de todo e em concreto, é o ente cujo ser é existência. Aqui, ser é responsabilidade por e para ser cada vez, na absoluta liberdade de ter que ser como mundo: artista é ab-soluta ocupação, a soltura livre por e para a prenhez de cuidado da con-creção e con-creação como mundo de multifária configuração; e se perfaz na in-sistência dessa ação. Ali se dá a realização da realidade arte: o artista se ocupa e se arranja, se justifica, torna-se real a partir e dentro da possibilidade denominada arte: está em casa, está adentrado no âmago, no imo da vigência, no todo da possibilidade de ser: é ser-no-mundo.

Essa pré-sença antecedente não antecede nem sucede, mas qual discreta diligência retraída entoa, compenetrada num silêncio claro, tudo que é e não é, tudo que antecede e sucede. Assim, de antemão, a priori, sem antecedência e sem seqüência se dá um quê todo próprio, que penetra, impregna, recolhe e dá volume, consistência, densidade ao todo da possibilidade de ser, e faz ver tudo a partir e dentro, sob o esplendor, i. é, sub specie, do ser arte. Em vez desse modo enrolado e indiferenciado de dizer, Klee fala com cuidado e discrição de orientação nas coisas da natureza e da vida. Essa orientação que ele compara à raiz da árvore aparece como ordenação, cifrada em enigmas múltiplos e ramificados. Dessa orientação, dessa raiz fluem ao artista as seivas para irem, através dele e através do seu olho. (...) Pressionado e movido pela força daquele fluxo, ele conduz adiante o intuído para dentro da obra. É nesse processo da gênese da obra que Klee coloca o artista como passagem, na tarefa de ser passagem: Assim, o artista está no lugar do tronco.

Por conseguinte, o artista não é nem sujeito, nem agente da obra. E ele, no entanto, no lugar a ele indicado junto do tronco, não faz outra coisa do que recolher o que vem da profundeza e conduzi-lo adiante. Nem servir, nem dominar, apenas mediar.

Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E ele mesmo não é a beleza da copa, esta só passou através dele.

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Trata-se, pois, da mediação, do modo de ser do medium, da ação medial. Mediação, o perfazer-se na e como mediação, ser medium do permeio não é ao modo da atuação ativa, passiva, reflexiva, não é nem objetiva nem subjetiva, é apenas surgir, crescer e consumar-se como obra. É o nada silencioso e retraído, sempre cuidadoso e diligente, onipresente em todos os momentos da gênese da obra de arte, em se tornando, em sendo, cada vez novo e de novo. E o mundo da obra que surge é como a copa da árvore: visivelmente se desdobra temporal e espacialmente para todos os lados. (...) Todo o mundo há de compreender que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exato entre embaixo e em cima. É claro que as diferentes funções em diferentes dimensões elementares devem temporalizar vivas declinações diferenciais.

São a orientação, a fonte, a raiz de onde fluem inspiração e toques da atuação medial do ação de mediar, que ordenam as diferentes funções em diferentes dimensões elementares e que devem temporalizar vivas declinações diferenciais nas obras; por sua vez atuam cifrados em enigmas múltiplos e ramificados, constituindo a “lógica” da arte na sua criatividade.

Resumindo o que Klee nos disse até agora, temos o seguinte:

● orientação (na raiz das raízes) → ● ordenação (raízes) → abre-se em: inspirações e toques da ordenação, codificados em enigmas múltiplos e ramificados

{ ∞ o artista (tronco): mediação, passagem, atuação da ação medial ∞ }

● o mundo das obras de arte, de multifária configuração na fuga dos fenômenos e das experiências da existência artística (a copa, os galhos).

b) Objeto:

Para nós, hodiernos, as obras da ação criativo-medial da mediação artística são consideradas como efeitos, causados pelo homem-sujeito, i. é, sub-stância de sustentabilidade e agenciamento da produtividade estética. Assim, obras são o conjunto de objetos, de diversos tipos, mas todos referidos à interpelação produtiva do agenciamento desse sistema objetivo da estética.

O mundo das obras de arte, de multifária configuração na fuga dos fenômenos e das experiências artísticas, orientado e ordenado pela atuação da ação medial da artista-mediação não é objeto. Não são soma de objetos do sistema, mas estruturações concretas de eclosões, crescimentos e consumações da possibilidade de ser na natureza e vida. São, antes, diferentes funções da dinâmica de ordenação sob o toque da orientação proveniente das profundezas da possibilidade de ser, que temporalizam e se fazem visíveis em diferentes dimensões elementares, como vivas declinações diferenciais. A linguagem, i. é, o modo de vir a si, o tornar-se, o destinar-se no tempo e no espaço, portanto, a epocalidade dessa estruturação é o mundo e sua mundidade. Assim, mundidade não pode ser compreendida plenamente na lógica da objetividade, correlativamente também não na da subjetividade.

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Assim, na sua Confissão criativa14, diz Klee: Arte não reproduz o visível, mas faz visível.

Mas faz visível o quê?

Ao considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si, a saber, como mundo, e ao nos convidar a ver a obra de arte, não como esse e aquele objeto ali ocorrente, mas como forma terminal de todo um movimento da vigência e da dinâmica de formação criativa, enquanto realização da realidade inesgotável da possibilidade da arte, Klee responde a essa pergunta: Arte faz visível a existência artística como trilha do retorno à origem da força formativa do mundo das estruturações artísticas. Nesse sentido, no inter-esse da existência artística, o artista não dá a essas formas naturais do aparecer a importância obrigatória como o fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele não se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas terminais.

(...) Assim sendo, o mundo, nessa sua configuração formada, não é o único de todos os mundos! A mira da aberta na existência artística, quanto mais profundamente ela mira, tanto mais facilmente consegue distender os pontos de vista, de hoje ali ocorrente para ontem, para a estruturação da origem, tanto mais, em vez de ficar parada no lugar de uma figura pronta da natureza e/ou da vida, impregna as configurações das formas terminais com a vigência da força abissal da possibilidade, “nadificando”-as com a plenitude da entificação finita, em cuja possibilidade onipresente reflui, aliás, como forma sem forma, somente ela essencial da criação como gênese, crescimento e consumação.

Essa mira, a visão translúcida, situada no mundo das formas terminais, vai por assim dizer atravessando camadas de formas terminadas, fixadas como pressuposições, classificações e padronizações do que se fez na e da natureza, do que se fez na e da vida; vai subindo e adentrando a modo de contracorrente o fluxo da força formadora, em retorno ao toque inicial da origem e agiliza a prontidão da aberta do ex-sistir artístico numa mobilidade cada vez mais disposta, generosa e livre. Essa mobilidade livre consegue mover a quem cria a vitalidade da contenção a partir do seu fundo; e ele mesmo, uma vez vitalizado e já móvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seus próprios caminhos de configuração, seguindo os ductos da ordenação e da orientação que vem da raiz, cuja origem é abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser.

Portanto, se o artista, enquanto ex-sistência artística, é tronco que é passagem, não faz outra coisa do que recolher o que vem do abismo da profundeza e o conduz adiante; se ele nem serve, nem domina, mas apenas media; se ele, verdadeiramente, pois, ocupa uma posição modesta de ser medial; e assim, se ele mesmo não é a beleza da copa, que só passa através dele; então, nesse nada de função medianeira, ele apenas deixa ser ● a orientação (raiz das raízes) que conduz ● a ordenação (raízes); esta por sua vez se abre em inspirações e toques da ordenação, codificados em enigmas múltiplos e ramificados; e deixa eclodir o mundo das obras de arte, de multifária configuração na fuga dos fenômenos e das experiências da existência artística (a copa, os galhos). Ora, se é

14 KLEE, Paul. “Schöpferische Konfession”, publicada pela primeira vez em Tribüne der Kunst und Zeit, editada por Kasmir Edschmid, Berlim: Editora Erich Reiss, 1920.

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assim, então esse movimento, essa mobilidade, representada estaticamente como seqüência ocorrente de fundamentos, a modo de causa e efeito, a modo meta-físico não é compreendida adequadamente. A terra na qual se assenta a raiz se adentrando nela é considerada como um ente absoluto, imutável, perene, um ser, que causa e dá o fundamento absoluto a outros entes, representados na comparação como partes componentes da árvore como: raiz das raízes, raízes, tronco, galhos principais, galhada, folhagem e flores e frutos, portanto, como a copa. E tudo isso, numa hierarquia de causas e fundamentos como camadas de entidade fixa em diferentes níveis de excelência do ser. A comparação da árvore, se a olharmos externamente como partes de um todo, pode nos induzir a essa maneira defasada de entender a comparação de Klee. Ao passo que a precisão, a simplicidade certeira da sua exposição concreta da estruturação da origem da e na existência artística, da e na obra de arte, nos apresenta a con-juntura da dinâmica de estruturação, na qual todos os elementos se referem à origem, i. é, ao toque do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser, em multifárias funções do mesmo, na mobilidade e na liberdade da soltura ab-soluta da e na vigência da criatividade.

Tudo isso quer dizer: o artista, cujo ser é existência artística, com diligente preocupação, cuida de tudo, tudo se lhe torna função e referência da busca da criatividade, de tal modo de tudo que se pergunta: o artista, pois, se ocupa com microscópio? História? Paleontologia? Química? Psicologia, sociologia etc. etc.?

Responde Klee: apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilidade. E não no sentido da possibilidade de um domínio do controle científico da fidelidade à natureza, portanto, da objetividade. Mas então, essencialmente, radicalmente, em que modo, em que sentido?

Apenas no sentido da liberdade! No sentido de uma liberdade que não conduz a determinadas fases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ou que em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel, como o é a grande natureza.

Do exemplar para o arquétipo!

Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porém, são os artistas que hoje penetram até certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originária alimenta os desenvolvimentos.

Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal, chame-se ele cérebro ou coração da criação, ocasiona todas as funções. Quem como artista não gostaria de morar lá?

No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde a chave do mistério para tudo jaz guardada?

Mas não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali, aonde a batida do seu coração acena.

Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressionistas tinham plena razão, em morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar do nosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo abissal.

O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idéia, fantasia é de todo para se tomar a sério, se ele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricos adequados.

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Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais ou menos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuído na intimidade oculta, na qual sempre já estamos e sempre de novo vamos estar como em casa (Geheim)15.

2. Mas de que estamos falando? Da arte ou da filosofia?

Sem dúvida alguma, da filosofia. Estamos perguntando, a atuação da ação chamada filosofia, seu ensino e sua busca, a dinâmica do trabalho, do empenho e desempenho do aprender a filosofia, portanto, a disciplina filosófica é a modo medial?

Mas então para quê toda essa fala da arte e da sua gênese? Filosofia não pertence à dimensão racional do homem, à sua mais alta excelência (metafísica) para uns, para outros, à época histórica do passado, mas que serviu para despertar a humanidade da irracionalidade (da superstição, da religião) e nos fez evoluir para a excelência suprema do saber racional, a saber, das ciências modernas? E a arte por sua vez não pertence à dimensão irracional do sentimento, da emoção e intuição do coração, portanto à área da subjetividade, oposta à da objetividade?

A justificativa para ilustrar a estruturação interna do estudo da filosofia através das palavras de Klee, que fala da essência da arte, nós a recebemos do próprio Klee, quando ele ao caracterizar o inter-esse do artista diz: ele não se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas terminais. Sem o querer, seja ele talvez, justamente, filósofo.

Segundo a afirmação de Klee, o inter-esse essencial do artista, a saber, o de ir à origem da sua dinâmica criativa, portanto, o retorno ao toque inicial donde atua a força formadora das formas terminais ocorrentes como do mundo já ali constituído da arte seria o mesmo do filósofo: nisso de buscar na origem, na sua gênese o abismo da possibilidade de ser, nisso sem o querer seja ele talvez, justamente, filósofo. Há portanto, entre filosofia e arte uma afinidade de fundo. E talvez possamos acrescentar: e também há a mesma afinidade de fundo com a religião. Isso, admitindo-se como hipótese inicial que entre inúmeras atividades que preocupam a humanidade, há três verbos, i. é, ações, a saber, poetar, pensar e crer, em cujo seio ainda se contém o frêmito de grande saudade e indigência pela plena soltura da ab-soluta liberdade. Poetar é vigor de origem que vem à fala na arte e quando defasada se instaura como estética; pensar é vigor da origem que vem à fala na filosofia e quando defasada se instaura como ideologia; e crer é vigor da origem que vem à fala na fé e quando defasada se instaura como religião. Trata-se de totalidades, de mundos cuja mundidade são diferentes, mas que possuem afinidade de fundo, cuja identidade, não mais pode ser compreendida como generalidade, comunidade, igualdade, significados esses, agenciados nos termos usados como óbvios na estética, na ideologia e na religião. A sensibilidade pelo sentido do ser de todos esses termos somente começa a tornar-se busca, questão, quando o ser da arte, o ser da filosofia e o ser da fé não mais é considerado como uma das atividades entre outras atividades dos nossos afazeres, mas como o destinar-se historial da própria autonomia, como existência. Poetar, pensar e crer, existência artística, existência filosófica e existência crente, sua identidade e diferença é um tema que extrapola a

15 Em alemão o prefixo Ge conota ajuntamento, recolhimento, densificação. Heim significa lar, em casa. Geheim, Geheimnis, significa mistério, o per-meio, o toque mais próximo a nós mesmos do que nós a nós mesmos.

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finitude de nosso ensaio, se não o abordarmos com um novo cuidado, discrição e ânimo próprio. Por isso, aqui deixemos apenas mencionada a questão, para nos justificarmos por que citamos um longo texto de Klee para refletir acerca do ser do estudo da filosofia.

III – Um nada?!

Depois de todo esse blá blá que não disse coisa com coisa por ser plágio, enrolados e emaranhados, voltemos ao problema do começo, onde constatamos como fato a seguinte situação: em todo o começo do estudo, principalmente quando se trata de adquirir, dominar e gerenciar o saber superior como um excelente instrumento para uma determinada meta a ser alcançada. Nessa perspectiva, tudo quanto não possui o modo de ser da mira (do fuzil, p. ex.), clara e distinta, exata e certeira é tido por inseguro, duvidoso, defasado, interferência a ser eliminada da busca de objetivo e objetividade na meta. Esse modo de interpelação produtiva cria uma consciência do poder e eficiência que se faz necessária cada vez mais, na medida em que tal intencionalidade fascina e impregna o agir, julgar e ver no usufruto de tudo transformar, tudo produzir, tudo processar para criar um novo mundo, isento de dor, sofrimento, fraqueza, titubeio, de ambigüidades e incertezas, isento de tudo isso que acena para a diferença de fundo. Toda e qualquer instituição de ensino, aprendizagem e pesquisa, na medida em que não apenas funciona correta-politicamente, seguindo os padrões e as medidas impostas pela publicidade do poder dominante, um dia vai ter que colocar questões que tocam o fundo, a raiz de toda e qualquer posição fundamental das nossas impostações disciplinares das matérias do ensino, aprendizagem e pesquisa do saber, não em referência à excelência e ao valor da medida e do critério que ali operam como óbvios, mas enquanto o sentido do ser do todo que ali se constituiu como mundo estabelecido, a partir da mobilidade e da liberdade de um toque da possibilidade de ser. Repetindo, nesse ânimo da busca de aprofundamento ou do retorno pela origem, pela gênese in-tuitiva, para dentro do abismo insondável da possibilidade de ser, filosofia e arte são afins. O artista e o filósofo, no toque do poetar e do pensar, são animais de fundo. Seu existir é conter-se, manter-se, é ser aberta do fundo abissal, suspenso ao e no nada. Esse nada não nadifica, apenas entifica, até mesmo a nadificação. É a imensidão, profundidade, a magnanimidade, livre, solta, generosa, serva e moça, cada vez ali jovial, disposta, apenas disposta, sem nada poder, sem nada querer, sem nada saber, sem nada ser e/ou não ser, a não ser pré-sença. Pré-sença alegre no cuidado finito, recatada e diligente em tudo recolhendo e acolhendo sob a sombra da sua ab-soluta soltura da mobilidade e liberdade da possibilidade agraciante, ou melhor agradecida. Os entes no seu todo, seja o que e como for, nascem, crescem e se realizam através da humanidade, como eclosões do mundo e sua mundidade. E a existência, na fiel sistência no ex; é a grata e agraciada mira da maravilha, do instante da passagem livre da reviravolta do e para a possibilidade de ser e não ser, é a privilegiada filha da liberdade abissal e vivificante do nada inominável.

Conclusão

Insatisfeitos, concluamos esse plágio, perguntando: o que tem a ver tudo isso com a ambigüidade no começo do estudo da disciplina chamada filosofia e as vozes ativa, passiva, reflexiva ou média ou medial do verbo?

Talvez as inúmeras inquietações encontradas no começo do estudo, i.é, do zelo e empenho do ensino, aprendizagem e pesquisa da filosofia – para além ou aquém de

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todas e quaisquer inquietações, apresentadas pelo começo de quaisquer ações em geral de qualquer empreendimento humano –, dirigidas desde o começo ao próprio ser da filosofia, não tenham algo a ver, ou melhor, tudo a ver com o nada inominável que nos visita em todas as vicissitudes da existência, em tudo que é e não é, em tudo que se torna e se consuma, em tudo que prospera e definha, cada vez, sempre, no começo, no meio e no fim, a cada instante como sentido do ser? E assim ao vir ao encontro, nos visitando, se retrai e se esconde, nos atraindo sempre de novo para dentro de um permeio, de uma ambiência, re-cordando um sabor, uma entoação, uma afinação de fundo longínquo, nos envolvendo, nos impregnando com a proximidade, com a satisfação in-quieta de estar em toda parte, em casa?

Mas e a voz medial?

Não é assim que na medida em que nos enredamos nas inúmeras e variegadas trilhas da filosofia, começamos a perceber que o que im-porta é ficarmos intrigados cada vez mais e sempre de novo com o verbo ser?16 Pois, seja qual for a interpretação que dermos a esse verbo, seja em que escola e corrente de filosofia, o ser sopra sob mil e mil tonalidades em todos os verbos do nosso falar, seja na voz ativa, na passiva, na reflexiva. E assim, em suma, ser é a ação de fundo, a ação onipresente em todas as atuações de todas as nossas ações e não ações. Não será por isso que as trilhas da disciplina filosófica, seja qual for o modo de ser de suas sendas, mais cedo ou mais tarde, se perdem na clareira do in-transitado, denominado questão do sentido do ser? E... o que os antigos denominavam de medial, que hoje defasado, restou como voz reflexiva do verbo, não seria propriamente o modo da possibilidade de ser que é o modo originário, elementar e primeiro de todas as ações, paixões, recepções e reações reflexivas, portanto, a potência, a possibilidade dada de antemão, a priori, como entoação do nada, onipresente, retraído no pudor e na continência da plena liberdade da sua jovialidade? Antes de e em todas as possíveis e atuais variantes de entidades, silencioso, modesto e discreto é o nada, antes e depois, dentro e fora do ser e nada, de tudo e nada, em sendo o constante sustento da ocorrência do simplesmente dado, de tal modo simples que se é, antes e sem precisar dizer que ser e pensar é o mesmo. A correspondência da existência filosófica, do empenho e zelo, do estudo da e para a disciplina filosofia não seria retornar a ser sempre em repetição in-sistente o silêncio do nada, a voz medial, o permeio de todas as coisas, das que são e não são? Ser assim nascituros de todo a cada momento no corre-corre das atividades, atuações, das passividades e depressões, e das suas reações, no afã dos nossos afazeres, e sempre de novo dar reviravolta de retorno para e na disposição da soltura, na liberdade da existência por e para o abismo inesgotável de ser filhos e filhas do nada, não seria isso o que os bem antigos gregos do início denominavam de physis; a partir da qual um Heráclito, tiritando de frio no inverno, encostado no forno aquecido da queima do pão, convidou os visitantes ávidos do infinito na busca do extraordinário a entrar no recinto do permeio da banal simplicidade que se engraçou com a gratidão da finitude ab-soluta, dizendo: Também aqui, pois, estão os deuses presentes17? E isso porque, como diz de novo Heráclito: A physis ama o retraimento18.

16 A designação outrora dada ao verbo ser era verbo substantivo. Talvez em vez de sub-stantivo possamos dizer pré-sencial?

17 Cf. ARISTÓTELES, De part. anim. A5. 645 a 17: einai gar kaì entautha theous.

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Não é bom, ontem, hoje e amanhã, poder sempre de novo implicar com a pergunta: Estudar filosofia, um nada?

18 Fragmento 123: Physis kryptesthai philei (Cf. HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90).

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Princípio do saber, estranho

Certamente, o seguinte comentário está deslocado numa revista científica, cujo número comemorativo homenageia Beato frei João Duns Scotus. Pois, o comentário se refere a um dos ditos do Beato frei Egídio de Assis (+1262) que se intitula: Da ciência útil e inútil. Para que aqui se comente o princípio do saber, dito por um irmão leigo, certamente analfabeto, que cuidava da horta, de “formação campesina”, da mesma ordem de Duns Scotus (+1308), a única justificativa reside no que W. Dettloff denominou de “Pré-decisão franciscana”19. Esta indica uma impostação prévia, herança de São Francisco de Assis, ao redor e a partir da qual os pensadores franciscanos, de todas as épocas, raças, tipos e formações, convergem no “pouco saber e muita jovialidade”20 dada aos que amam a finitude agraciada do mistério da Encarnação, a saber, da Senhora Pobreza. A suspeita, quem sabe, infundada, aqui no comentário, é que há algo muito próximo e comum entre a altíssima e “mais do que subtil” especulação de um Beato frei João Duns Scotus e a graça da simplicidade certeira dos ditos de um Beato frei Egídio de Assis.

Da ciência útil e inútil21

(1) Quem quer saber muito incline muito a cabeça e opere muito e arraste a barriga na terra, e o Senhor o ensinara muito. (2) A suma sabedoria é fazer boas obras, custodiar-se bem e considerar os juízos de Deus. (3) Disse uma vez frei Egídio a alguém que queria ir à escola para aprender: “por que queres ir à escola? (4) O sumo de toda a ciência é temer e amar a Deus; estes dois te bastam. (5) O homem tem tanta sabedoria quanto age bem, e não mais. Portanto, não confies na tua sabedoria, mas empenha-te em trabalhar com toda solicitude, e confia radicalmente naquelas obras. (6) Por isso diz o Apóstolo: “Não amemos em palavra nem em língua, mas em obra e em verdade” (1Jo 3,18). (7) Não sejas demasiadamente solícito em ser útil aos outros; mas sê mais solícito em seres útil a si mesmo. (8) De quando em quando queremos saber muitas coisas para os outros e poucas para nós. (9) A Palavra de Deus não é de quem ouve ou fala, mas de quem opera. (10) Muitos, não sabendo nadar, entraram nas águas, para ajudar aos que nelas pereciam e com eles pereceram. Antes havia um dano; depois, dois. (11) Se procuras bem a saúde de tua alma, procurarás bem a saúde de todos os teus amigos. (12) Se fazes bem o teu feito, fazes bem o feito de todos os teus benevolentes. (13) O pregador da palavra de Deus foi posto por Deus para ser candeia, espelho e porta-bandeira do povo de Deus. (14) Bem-aventurado é aquele que dirige os outros por caminho reto, de tal modo que ele mesmo não cesse de caminhar por ele; e convida os outros a correr, de tal modo que ele mesmo não desiste de correr. (15) E assim ajuda outros a ficarem ricos sem com isso ele mesmo tornar-se pobre. (16) Creio que o bom pregador fala mais para si do que para os outros.

Comentário

1. Ciência

19 DETTLOF, W. “Bonaventura”, in TRE (Theologische Realenzyklopädie) VII (1981) 48-55.

20 Diz, pois, Hölderlin, o poeta-pensador, o vigia avançado do tempo da indigência: Pouco saber, mas

muita jovialidade é dada a mortais (IV, 240).

21 16. “Da ciência útil e inútil e dos pregadores da palavra de Deus”, in: Ditos do bem-aventurado Egídio de Assis, Fontes Franciscanas, Santo André: Editora O Mensageiro de Santo Antônio, 2005, pp. 1136-1140.

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Aqui ciência não está no sentido da ciência moderna positiva, atual e atuante na nossa época. A compreensão da palavra ciência no nosso sentido moderno das ciências positivas, quer naturais quer humanas, possui acepção toda própria, bem determinada, definida e específica. Comparada a ela, a ciência (scientia) aqui em frei Egídio pode soar mais vasta no sentido lato, menos estrito, mais geral, caracterizado como de uso vulgar, vago, abrangendo indeterminadamente diferentes tipos de saber. Assim, em “ciência útil e inútil”, ciência parece querer referir-se ao saber que o povo usa, saber mais em voga entre o vulgo, ciência no sentido usual, no nível prático, portanto, no sentido pragmático, ou sob o aspecto teórico, uma ciência popularizada.

Mas pode ser que ciência útil, aqui em frei Egídio, esteja referida ao que a palavra grega epistéme indicava outrora no sentido literal lexicográfico do verbo epistamai (epí+hístamai) que significa propriamente: postura adequada para adentrar e se colocar dentro da disposição, atitude necessária, para se acercar de modo próprio às exigências de uma determinada ação ou atividade. Nesse caso, trata-se de um saber competente de como e o que fazer para que surja um bom resultado, uma obra confiável, per-feita, bem iniciada, bem conduzida e “per-fazida”, per-feita. Ciência útil seria, pois, saber técnico de habilidade e habilitação do trabalho, da operação dentro da existência medieval artesanal. Técnico aqui não indica a maneira de ser moderno relativo à tecnologia, mas ao saber e ao sabor da habilidade e poder ou potência artesanal proveniente da palavra latina ars, -tis. Essa referência ao ars , ao artesanal e à existência artesanal pode estar no fundo do uso que frei Egídio faz do adjetivo útil e inútil na expressão ciência útil e inútil. Para de modo bem sucinto indicar essa referência, reproduzimos o que o glossário-apêndice anexo no fim do volume I da tradução dos sermões alemães de Mestre Eckhart22 diz a esse respeito.

2. Útil, utilidade, em uso: ars, artesanal e existência artesanal medieval

“Adjetivo artesanal diz respeito à habilidade ou ao hábito de uma classe de trabalhadores denominados artesãos, na confecção de um artefato. No pensamento medieval, essa habilidade, no entanto, não se referia primordialmente só à produção do objeto arte-fato. Isso porque o artefato aqui não era propriamente um objeto fabricado, mas sim uma obra, em cuja elaboração, a própria humanidade do artesão, i.é, o ser do homem se perfazia, vinha a se tornar cada vez mais ser. A obra não era outra coisa do que o vir à luz, o vir a uma determinada consumação desse perfazer-se do próprio ser humano do artesão. A habilidade do artesão em latim se diz ars, -tis. Trata-se, pois, da competência de um agir todo próprio, cujo modo de ser se caracteriza como um saber que está por dentro de e capta a dinâmica da possibilidade de ser, do poder ser. Esse saber no alemão é Kunst. Kunst vem do verbo können que significa saber poder. Na ars, na Kunst não se trata da potência de uma força natural, mas sim de uma possibilidade da concreção humana na habilitação do seu ser, conquistada a duras penas, a partir de um dom natural, e tornada uma sua segunda natureza, denominada virtude23. A um tal saber poder se chega através do empenho de busca, no uso da inteligência e vontade, i.é, no exercício da liberdade, em contínuo e bem orientado exercício de aprendizagem. É dom de uma conquista, pois, o surgir, crescer e consumar-se na realização desse perfazer-se não é causado simplesmente pelo arbítrio de quem busca, mas salta da total

22 ECKHART, Meister: Sermões alemães. Tradução e introdução de Ênio Paulo Giachini, Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2006, pp. 327-329.

23 Em latim,virtus, i.é, vigor do varão.

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disponibilidade de dar de si o melhor para acolher a possibilidade finita, bem determinada, concedida gratuitamente de antemão à pessoa, em busca; e de seguir a condução que lhe vem ao encontro, do fundo dessa própria possibilidade. É desse encontro do empenho de total doação de si e do dom da possibilidade gratuita que salta a possibilidade do ser inteiramente novo como obra de uma criação, do perfazer-se de si, como obra da perfeição.

Como foi acima dito, o adjetivo artesanal indica o modo da ars.-tis, próprio do artesão, no seu agir e criar obra. Esse modo de ser, no entanto, era a manifestação do que constituía o modo de ser e se interpretar do homem medieval, na realização de sua humanidade, como gênese, crescimento e estruturação de um mundo, sob o toque de uma determinada possibilidade de ser. Uma tal abertura da possibilidade de ser se chama existência. Assim, o artesanal no medieval, não é apenas um atributo e qualificação de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, mas sim o modo de ser, que uma vez subsumido pelo sentido do ser denominado filiação divina, se tornou o característico próprio do ser medieval.

Essa existência artesanal subsumida pelo sentido do ser da filiação divina nos pode levar a crer que todo o pensamento medieval é unilateralmente teológico. Essa constatação é correta. Mas não no sentido de uma absolutização do teológico, entendido como um ponto de vista parcial, ao lado de outros pontos de vista. O teológico do medieval é antes uma pré-compreensão ontológica, i. é, o sentido do ser da existência medieval, o uni-verso da realização da realidade a priori, toda própria, cuja lógica de seu ser somente se torna acessível e necessária se nos colocarmos no ponto de salto, a partir e dentro do qual se dá a aberta24 da eclosão e manifestação do mundo medieval. Nesse sentido a criação como filiação divina é algo como condição da possibilidade de ser, agir, e sentir, portanto, é o ser do ser-no-mundo medieval, e não um ponto de vista, um aspecto parcial”.

Porque assim, a ciência útil se refere em última instância e fundamentalmente ao ser da existência cristã, à cristidade, i.é, ao renascer em e com Cristo, na origem e vigor da filiação divina, a ciência útil está intimamente ligada ao anúncio da boa nova, à pregação. Daí, o título desse dito de frei Egídio: Da ciência útil e inútil e dos pregadores da palavra de Deus.

3. Querer e dever: vigor da finitude livre

(1) Quem quer saber muito incline muito a cabeça e opere muito e arraste a barriga na terra, e o Senhor o ensinará muito.

Incline, opere e arraste são imperativos. Indica o dever, o ter que ser, a necessidade da liberdade, a necessidade livre, a possibilidade i. é, a potência do querer: quem quer deve, “se acha obrigado”, ligado a25.

Querer mesmo não é voluntarioso. Querer voluntarioso parece querer muito, mas na realidade não passa de cobiça exacerbada. Em vez de agir, se agita; em vez de se

24 Aqui na significação de clareira, abertura; nesga do céu que as nuvens, abrindo-se por instante, deixam entrever, através da qual vislumbramos a imensidão do céu aberto.

25 Cf. o termo aprisionado em: ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY, O pequeno príncipe.

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concentrar, gira falso; em vez de fazer, se “a-voa”, jogando à sua volta intermináveis, infinitos castelos no ar. Não está aqui, agora, mas sempre lá, alhures26, fora do tempo oportuno; jamais na sua possibilidade, mas na impotência novidadeira sempre vazia, sem contensão concreta, cada vez apenas escancarada. Falta-lhe a realidade, o húmus da terra dos homens, a humildade; não adere, não está colado à fecundidade do fundo; não habita no inesgotável e insondável abismo jovial da terra-mãe, não conhece a generosidade benigna da matriz das possibilidades de ser; anda cheirando nuvens, passos cambaleantes, sem se assentar, sem repousar na realidade, em realizações vãs, cheias de empáfia e pretensões. O seu saber sabe a elevações disparadas e disparatadas de representações padronizadas, sem o sabor cada vez todo próprio, prenhe de virtude dia-noética do co-nascimento. Não sabe à recepção cordial, humilde, aberta à amplidão, pro-fundidade e liberdade do Filho primogênito do Pai, que é a pura, simples e imediata recepção, atenta, grata e filial do Verbo: a linguagem, o intelecto do Pai, na benignidade, estima do amor do Pai, na intimidade e ternura do mútuo encontro e união como ab-soluta doação e recepção do poder, querer, saber ser. A alegria do saber e saber muito é cordialidade da humildade, no empenho impregnado de boa vontade, da labuta terra à terra, pele à pele no e do temor e amor na recepção do co-nascimento que vem do mistério da filiação divina, desse Deus feito homem: Quem quer saber muito incline muito a cabeça e opere muito e arraste a barriga na terra, e o Senhor o ensinará muito.

4. Aprendizagem na escola da ciência útil

Aprendizagem real e verdadeira é aprender o aprender. O aprender aprendido pelo aprender é apreender. Por isso, aprender o aprender quer dizer apreender o apreender. O apreender desse apreender o apreender é recepção. A pura, simples, imediata recepção, é benigna, totalmente doada em gratidão por e para poder receber, na mais íntima simpatia de querer dar tudo de si a quem assim se doa tudo de si com tamanha humildade e ab-negação de si. Essa doação e a recepção da doação, tanto do doador como do receptor é a pura gratidão da pura apreensão simples, imediata, da pura recepção do encontro no amor. Em se doando de todo e tudo de si, o doador pede humildemente que a doação seja aceita qual recepção benigna doada por receptor ao doador; e o receptor, em assim doando a recepção benigna, ao aceitar a doação, agradece humildemente ao doador, a própria possibilidade de poder receber, a ele concedida por doador, juntamente com a doação. Aqui, tanto quem doa como quem recebe, mutuamente se colocam da referência do servo ao seu senhor. Ao doar, se faz servo. Ao receber, se faz servo, sempre agradecendo que foi recebido benignamente. Aqui o relacionamento de senhor e servo não tem nada a ver com senhor e escravo, mas com temer e amar: intimidade reverente para dentro do sumo de toda ciência é temer e amar a Deus de Jesus Cristo que é de todo e apenas, simplesmente, de imediato,

26 Cf. a introdução dos tradutores dos ditos de frei Egídio, Fontes Franciscanas, op. cit., p. 1154: “Frei Egídio achava o “canto” dos corvos, horrível, e o canto dos homens belíssimo. Mas preferia o grasnar dos corvos ao canto dos homens. É que estes entoam “lá, lá, lá”, ao passo que aqueles grasnam “quá, quá, quá”. O “lá” é belo, sublime, vem das alturas e eleva os corações para o alto. É sempre para além, “espiritualista”, “celestial”. Jamais está aqui e agora. Jamais inserido no concreto definido de uma dada situação-terra, misturado com a podridão e a decadência humana, acolhendo-o com gratidão e responsabilidade, como o dom precioso, único da possibilidade agraciada. O “cá” de Frei Egídio é a dinâmica da espiritualidade da graça cristã que conhece a possibilidade agraciada e “engraçada” de Jesus Cristo crucificado. Na quadratura do encaixe, da incrustação nas vicissitudes, corpo-a-corpo, da existência histórica e finita, descobre as sementes de uma condução, em cuja descida para dentro da terra dos homens encontra o tesouro escondido no subterrâneo do mistério do abaixamento de Deus: a Encarnação”.

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operativamente temer e amar. E o início <a saber, o princípio, a fonte, a origem que tudo faz saltar de modo redondo, perfeito, bem acabado como obra perfeita do bem fazer> – de toda sabedoria é temer e amar. Estes dois momentos que perfazem o amor de Deus – <tanto no sentido subjetivo como objetivo, e isso tanto da parte de Deus, Pai como da parte dos filhos e das filhas no Filho de Deus> – bastam, pois o amor assim é tudo de todas as coisas, seja nos céus seja na terra, o por e para quê, o saber, a inteligência e sentimento, o sabor de tudo quanto foi, é, será, seja possível e impossível, para além e para aquém de toda e qualquer impossibilidade lógica, numa medida transbordante, calcada, imensa, generosa do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser e não ser.

O fazer e o feito de uma operosidade desse quilate se chama fazer bem, fazer o bem, o bom, o útil, o per-feito, como acima insinuado. O lugar e o próprio fruto de um tal trabalho, em grego se diz scholé, que significa ócio, otium em latim; que no entanto, pouco ou nada tem a ver com preguiça, com dolce far niente, mas tem tudo a ver com o termo em latim studium que significa empenho e desempenho, intenso, trabalho gratuito livremente querido como o perfazer-se da liberdade da existência humana autônoma no seu ser que faz bem a todas as coisas e todas as coisas. Guardar-se bem, jamais afrouxar na plena atenção de colocar-se nesse labor profissional de bem fazer, de operar, de fazer obras, de ser bom operário e prontamente manter-se alegremente na disposição de aprender, apreender, considerar o modo certeiro, competente e profissional, atender com atenção pronta a tomada de pulso de tudo que faz, i. é, os juízos do nosso mestre e guia Deus, é o gosto dos discípulos, dos que estão na dinâmica de aprendizagem e ensino da escola da ciência útil. É que as palavras escola, escolaridade e escolar vêm da scholé. Assim nos diz frei Egídio: (2) A suma sabedoria é fazer boas obras, custodiar-se bem e considerar os juízos de Deus. E por isso perguntou e respondeu frei Egídio a alguém que queria ir à escola para estudar: (4) O sumo de toda a ciência é temer e amar a Deus; estes dois te bastam.

5. Um tema que importa no estudo da ciência útil

Muitas vezes se entende no sentido lato, por tema, o objeto de um saber. Objeto é o que nos vem ao encontro como isto e aquilo pertencente ao enfoque de um determinado interesse. Objeto assim é o ponto de vista de um enfoque, em cujo horizonte de visualização se destaca isso ou aquilo. No tema, no objeto, pode(m) assim tornar-se presente(s) de modo realçado o(s) momento(s) característico(s) do modo de ser, referente(s) ao todo de um saber. No saber a modo da existência artesanal, é de importância, i. é, decisiva para que se vá para dentro da ciência útil, o trabalhar a si mesmo, para si mesmo, em si mesmo, no seu perfazer-se. Pertence essencialmente à eficiência e à excelência da ciência útil a direção reduplicativa do trabalho, o empenho e o desempenho do labor deve retornar a quem trabalha, no se perfazer. Dito de outro modo, no modo de ser do trabalho da ciência útil, cuja aprendizagem e nela frutificar é da scholé, do otium, da ars, portanto da profissão livre, o inter-esse do zelo e do estudo (studium) sou eu mesmo e não o outro. O engajamento nesse e desse tipo de trabalho livre não pode ser terceirizado, não pode ser feito pelo outro, nem eu fazer o trabalho no lugar do outro, é inalienável. Aqui, todo o trabalho e cuidado pelo próximo, pelo outro, se é feito sacrificando-se a si mesmo, em detrimento de si mesmo, não é mais virtuoso e autêntico, mas vicioso e defasado. É desse modo todo próprio do trabalho de autonomia no crescimento do ser humano essencial que fala agora frei Egídio, quando diz: (7) Não sejas demasiadamente solícito em ser útil aos outros; mas sê mais solícito em seres útil a si mesmo. (8) De quando em quando queremos saber muitas coisas para os outros e

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poucas para nós. (10) Muitos, não sabendo nadar, entraram nas águas, para ajudar aos que nelas pereciam e com eles pereceram. Antes havia um dano; depois, dois. (11) Se procuras bem a saúde de tua alma, procurarás bem a saúde de todos os teus amigos. (12) Se fazes bem o teu feito, fazes bem o feito de todos os teus benevolentes27.

Esse momento decisivo da ciência útil que pode ser resumido num slogan antes cuidar de si do que do outro facilmente pode ser considerado num nível muito superficial de compreensão, onde se interpreta o vigor e a vitalidade do engajamento de toda uma existência na busca apaixonada do Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, na expressão de São Francisco de Assis, dentro do problema particular espiritualista, a saber, do perigo de egoísmo ensimesmado no cuidado da perfeição pessoal de santidade, alienando-se da responsabilidade social e comunitária; ou do bitolamento fundamentalista no verticalismo da metafísica medieval, ignorante da dimensão horizontal antropológica do humanismo etc. etc.

Aqui, em tais casos, se faz necessário recordar que esses e similares ditos dos místicos medievais que dizem dos fatos, das dicas de cunho prático, moral e empírico devem ser lidos como pontas dos fios de meada que nos conduzem às dimensões de fundo, ocultas à primeira vista, às possibilidades, sim ao abismo de imensidão, profundidade e liberdade das possibilidades insondáveis e inesgotáveis do ser da filiação divina. Para nós, hodiernos, filhos da época dos fatos, dos empirismos, das objetividades, fatos são realidade; e a possibilidade, apenas virtual ou mental, ou não contradição lógica; ao passo que para os medievais a possibilidade é realidade, o uni-versal e os fatos, apenas realizações efêmeras, privativas e particulares.

Assim, enquanto a nós o antes cuidar de si do que do outro soe como se um galho falasse com seus botões: “devo cuidar de mim para tornar-me vigoroso e forte e por isso não devo me ocupar dos outros galhos, mas só cultivar a mim mesmo” ou “não posso ficar parado e cuidar somente de mim mesmo, pois, devo, tenho responsabilidade social de cuidar de tantos outros galhos que devem quebrar tantos “galhos” na sua vida e estão a se definhar cada vez mais emaranhados em si”; aos medievais soava: Cuidar de si, quer dizer cuidar do que é o próprio de si, para aquém, para o anterior daquilo que como possibilidade de ser, como núcleo, como cerne, como âmago do ser de cada qual ali está pré-sente em todas as etapas do seu surgir, crescer e se consumar, como abismo da generosidade e jovialidade de ser, cada vez novo e cada vez de novo, sustentando o nosso ser. Assim, se eu fosse galho de uma árvore, dentro de mim, bem no centro de mim, há um fio condutor que me liga às raízes, através das quais me vem toda a minha vitalidade. Cada qual dos galhos está unido com outros através, a partir, e dentro do seu cerne, da sua interioridade fundamental, está vertido, virado para o uno vital radical, a partir, dentro e através do qual recebe a alegria de ser da terra dos homens, formando leques de diversidades das possibilidades de ser galhos, grandes,

27 Esse momento decisivo da ciência útil é hoje no espiritualismo subjetivista considerado como o grande

defeito da assim chamada espiritualidade de perfeição pessoal, atribuída à Idade Média.

Abordagem desse equívoco que acontece não raras vezes também no meio erudito, em referência à espiritualidade e à mística da Idade Média, requer maiores explicitações do pensamento, principalmente ontológico, pré-jacente no fundo da existência medieval. Como tais explicitações ultrapassam o âmbito desse comentário do texto de frei Egídio, aqui as omitimos, pressupondo conhecidas a ontologia e a metafísica medievais. Apenas mencionemos que não se devem confundir indivíduo, privativo, particular com pessoal e singular; geral com universal; social com coununitário.

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médios, pequenos, infinitesimais, como tronco, galhos principais, galhos arteriais finos, mais finos, finíssimos, cada qual no seu vigor e alegria de ser. Cada galho antes de tudo, como o a priori do empenho e desempenho do trabalho cuidadoso centrado, virado, vertido nesse uno de todas as coisas, jamais deve se esquecer que desse trabalho profissional do cultivo de si é o verdadeiro, autentico serviço e cuidado comunitário, uni-versal.

Os ditos de frei Egídio que falam pois de salva-vidas, da candeia, da bandeira, espelho, daquele que corre e em correndo convida a correr em correndo, dos pregadores que sabem que a palavra de Deus não é de quem ouve, de quem fala, mas de quem opera e se nela perfaz, nos insinuam todos eles esse estranho modo de saber e saborear a possibilidade de ser, a realidade. Nessa realização da realidade, cada vez seu, uni-versal

(5) o homem tem tanta sabedoria, quanto age bem, e não mais. Portanto, não confies na tua sabedoria, mas empenha-te em trabalhar com toda solicitude, e confia radicalmente naquelas obras. (6) Por isso diz o Apóstolo: “Não amemos em palavra nem em língua, mas em obra e em verdade” (1Jo 3,18).

Conclusão provisória

Terminemos esse comentário um tanto desbaratado com os ditos de Frei Egídio:

(9) A palavra de Deus não é de quem ouve ou fala, mas de quem opera. (6) Por isso diz o apóstolo: “Não amemos em palavra nem em língua, mas em obra e em verdade” (1Jo 3,18). A ciência útil é pois o studium universale do amor de Deus. Aqui vale o estranho princípio do saber: (1). Quem quer saber muito incline muito a cabeça e opere muito e arraste a barriga na terra, e o Senhor o ensinara muito.

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TEXTOS PARA A CONTRA-CAPA DO LIVRO DO HERMÓGENES

(Coisas, novas e velhas, HERMÓGENES HARADA)

Opção 1

“Digamos que o próprio da formação religiosa é a espiritualidade, é o cultivo cordial do

espírito. Mas o próprio da cura, do cultivo é deixar ser o sentido do mistério, é a

ausculta do ad-vento da jovialidade da maravilha, é ser todo ouvido à referência da

gratuidade do ser. E isso é tudo. Tudo que articula e mobiliza toda uma existência,

exigindo-lhe a dedicação radical do fazer, sentir e pensar, o engajamento total e

totalizante da liberdade. A minha dificuldade, portanto, consiste nisso: se a formação

religiosa é o amor radical e totalizante do espírito, por que a consideramos unilateral,

por que a achamos demasiadamente pouca, a ponto de sentirmos a necessidade de

completá-la com enfoques científicos, cuja estrutura não é a acolhida do espírito, mas

sim o poder do saber? O poder do saber que se exacerba na escalação do fazer e da

informação para superar a insuficiência cardíaca, isto é, a ausência da cordialidade do

espírito.” Hermógenes Harada

OU texto 2:

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Texto para orelhas

“Os autênticos homens antigos não tinham medo

Quando ficavam a sós com suas opiniões.

Nenhuma grande proeza. Planos, nenhum.

... dormiam sem sonhos, acordavam sem preocupações.

Sua comida era simples, respiravam profundo.

... Mentes livres, pensamentos distantes,

Frontes limpas, faces serenas...

Estavam frescas? Frescas apenas como o outono

Quentes? Nem mais quentes que a primavera.”

Tais palavras, retiradas do poema “O homem autêntico” de Chuang Tzu (MERTON, T. A via de Chuang Tzu. Vozes, 1989, p. 79s.), se aplicam à perfeição ao mestre da espiritualidade Hermógenes Harada. Ele nunca teve medo de ficar a sós com suas opiniões, nunca buscou grandes proezas e nem quis conhecer as belas paisagens do mundo. O que buscou de todo coração e no que colocou o devotamento de seus dias foi seguir a via radical de uma existência franciscana. Seu pensamento original descia pela raiz as palavras, desdobrava as pregas do existente e ia fundo na busca do verdadeiro vigor que move o humano. A espiritualidade de Hermógenes brota de dentro, é um alento que ajuda a seguir em frente quando muitos outros já estão sem fôlego. A grande cordialidade de seu espírito acolhia com simplicidade os que apenas iniciavam, acreditando firmemente na comunhão misteriosa que une todos os que perfazem na luta o seu discipulado. Um samurai franciscano. Um mestre. Agora podemos dizer isso dele, pois em vida não o teria aceitado. Sua obra, um tesouro escondido na modéstia, torna-se com este volume da Coleção Estudos Franciscanos disponível a um público mais vasto.

Alberto da Silva Moreira

Quarta capa

“O mistério é pois a origem, a nascividade da raiz, do habitat de nós mesmos, o ab-ismo

da intimidade do ser. Todos os nomes como Deus, transcendência, Selbst, psiqué, ser,

são definições, pelas quais a dominação do saber, na teologia, na filosofia, na psicologia

tenta aprisionar e assegurar a nascividade do mistério. Como dissemos, o modo de ser

que per-faz a abertura e acolhida, ausculta a pertinência do mistério é o espírito. E como

dissemos também, a espiritualidade não é outra coisa do que o cuidado, a cura, o

cultivo, o amor do espírito. Espiritualidade portanto não é disciplina de ensino. Não é

doutrina. Não é ciência do saber. Não é objeto nem meio de formação. É antes um modo

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de ser radical, mais radical do que todo fazer e não fazer da subjetividade” (Coisas,

novas e velhas, H. HARADA)

Frei Hermógenes Harada nasceu em Miyasaki, Japão, em 1928. Em 1936, veio para o

Brasil. Estudou no seminário franciscano de Rio Negro, PR, cursou os estudos

superiores nos institutos da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil,

filosofia em Curitiba, PR e teologia em Petrópolis, RJ. Aprofundou seus estudos

filosóficos em Freiburg e Würzburg, Alemanha. Ensinou filosofia nos institutos da

Província durante aproximadamente 20 anos. Dentre muitos outros escritos, destacam-

se suas obras Coisas, novas e velhas (Edusf, 2006), Em comentando I Fioretti (Edusf,

2006). Faleceu no dia 21 de maio de 2009.

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