de conselhos morais a normas constitucionais

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(j) 12 De Conselhos Morais a Normas Consti tucionais "Não há, ~uma Constituição, cláus ulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conse lhos, aviso s ou liçõ es.Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular de seus órgãos." Rui Barbosa Objet ivos do capítu lo: conhecer as características dos dir eitos fun- damen tais, que decor rem de sua força nor mativ a, perce bendo como es- sas caract erísti cas são capaz es de influencia r a apli cação e a interp reta- ção do direito. As p rimeir as decla raçõe s de direitos , elabo radas por volta do século XVIII, tinha m prete nsão muito mais pol ítica do que propr iamen te juríd ica. O discurso adotado nessa s declarações geral mente refletia o calor do mo - mento revol ucion ário, incor poran do frase s de efeito, simbologi as e aspi- raçõe s utópi cas sem muita objetiv idade práti ca. A Dectar ação da VIrgí nia de 1776, por exemplo , que foi a pio neira entre as declar ações liber ais de direito, chegou a preve r um direito de todo homem obter a felicida de!

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(j)

12

De Conselhos Morais a

Normas Constitucionais

"Não há, ~uma Constituição, cláusulas a que se deva

atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou

lições.Todas têm a  força imperativa de regras, ditadas pela

soberania nacional ou popular de seus órgãos."

Rui Barbosa

Objetivos do capítulo: conhecer as características dos direitos fun-

damentais, que decorrem de sua força normativa, percebendo como es-

sas características são capazes de influenciar a aplicação e a interpreta-

ção do direito.

As primeiras declarações de direitos, elaboradas por volta do século

XVIII, tinham pretensão muito mais política do que propriamente jurídica.

O discurso adotado nessas declarações geralmente refletia o calor do mo-

mento revolucionário, incorporando frases de efeito, simbologias e aspi-

rações utópicas sem muita objetividade prática. A Dectaração da VIrgínia

de 1776, por exemplo, que foi a pioneira entre as declarações liberais de

direito, chegou a prever um direito de todo homem obter a felicidade!

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268 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

Essa visão exageradamente idealista e sonhadora tinha uma explica-

ção: o constitucionalismo moderno ainda não havia desenvolvido toda a

sua potencialidade jurídica, e a Constituição, enquanto documento escri-

to que regulamentava o exercício do poder estatal, não havia alcançado a

força normativa que hoje possui. Por isso, os direitos fundamentais eram

muito mais orientações éticas do que propriamente imperativos de condu-

ta. Sua função era equivalente ao de uma carta de boas intenções dirigida

ao legislador e ao administrador sem impor qualquer sanção jurídica parao seu descumprimento.

Com isso, as declarações de direitos foram comparadas a simples pro-

gramas de ação, que ficavam na dependência de uma atuação do legisla-

dor para alcançarem algum efeito prático. Na verdade, a lei era a norma

  jurídica por excelência, de modo que a Constituição não desfrutava do

mesmo prestígio que possuíam os códigos.

Foi um longo processo evolutivo para que os direitos fundamentais

deixassem de ser meros conselhos morais facultativos para se tornarem

verdadeiras normas jurídicas. Isso se deu com o desenvolvimento das

ideias de rigidez constitucional, de supremacia da Constituição e de con-

trole de constitucionalidade. A partir daí, as normas constitucionais ga-nharam um novo status jurídico, tornando-se o fundamento de valida-

de de todo o ordenamento. Consequentemente, os direitos fundamentais

também foram promovidos na pirâmide normativa, obtendo uma posição

privilegiada dentro do sistema de normas.

Desde então, esses direitos adquiriram algumas características jurí-

dicas que fizeram que eles se tomassem normas especiais em relação aos

demais direitos. De simples recomendações éticas, eles se tornaram verda-

deiras normas constitucionais irrevogáveis e vinculantes, de observância

obrigatória, com aplicação direta e eficácia imediata, capazes de se irra-

diar por todos os ramos do direito.

Nesta Parte IH,essas características serão analisadas com mais profun-

didade. Por razões didáticas, elas foram divididas em diversos capítulos.

Primeiro, serão tratados os atributos ligados à supremacia dos direi-

tos fundamentais (normatividade potencializada). Depois, será analisa-

da a questão da irrevogabilidade (os direitos fundamentais como cláusulas.

pétreas). Em seguida, serão estudadas as características ligadas à dimen-

são subjetiva dos direitos fundamentais (aplicação direta e imediata e

exigibilidade). Por fim, serão vistas as características ligadas à chamada

dimensão objetiva desses direitos (eficácia irradiante e horizontal).

De Conselhos Morais a Normas Constitucionais 269

Todas essas características estão conectadas, de modo que uma, mui-

tas vezes, é consequência da outra. E todas estão, de alguma forma, liga-

das à ideia de supremacia da Constituição. Por isso, vale começar anali-

sando esse importante atributo dos direitos fundamentais.

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13

A Supremacia dos Direitos

Fundamentais

UNão há poderes, quer legislativos, quer executivos,

senão dentro das normas constitucionais, lei suprema que

avassala todas as outras leis, atos administrativos, decisões

  judiciárias, desde que a violem ... "

Juiz Federal Henrique Vaz Pinto Coelho, em sentençaproferida em 1895, que pode ser considerada corno o

marco inicial do controle de constitucionalidade no Brasil

Objetivos do capítulo: demonstrar que os direitos fundamentais, porserem normas constitucionais, gozam de supremacia formal e materialdentro do sistema normativo, a exigir que todo ato de poder busque neles

o seu fundamento de validade.

13.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONSTITUIÇÃO

O ordenamento jurídico, como se sabe, é um sistema hierárquico denormas, na clássica formulação de Kelsen. Estaria, assim, escalonado comnormas de diferentes valores, ocupando cada norma uma posição intersis-

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 271

temática, formando um todo harmônico,1com i~terdependência de fun-ções e diferentes níveis normativos de forma que "uma norma para serválida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma normasuperior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja valida-de pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam umsistema de normas, uma ordem normativa". 2 É a famosa teoria da constru-ção escalonada das normas jurídicas.

Dentro desse sistema escalonado em forma de pirâmide, a Constitui-ção ocupa o patamar mais alto. Ela está no topo do ordenamento jurídico,de modo que qualquer norma para ser válida deve ser compatível com aConstituição.

O mesmo se pode dizer dos direitos fundamentais, já que tambémpossuem a natureza de norma constitucional. Eles correspondem aos va-lores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder cons-tituinte),-que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada. Elessão (perdoem a tautologia) fundamentais porque são tão necessários paraa garantia da dignidade dos seres humanos que são inegociáveis no jogopolítico. Daí por que essa concepção pressupõe um constitucionalismo rí-gido, no qual a Constituição goza de uma supremacia formal sobre as de-

mais normas jurídicas e, por isso, os mecanismos de mudança do textoconstitucional impõem um processo legislativo mais complicado em rela-ção às demais leis.

A rigidez constitucional funciona, nesse sentido, como uma técnicacapaz de impedir ou pelo menos dificultar a adoção de medidas legislati-vas que possam aniquilar a dignidade de grupos sociais que não possuamforça política suficiente para vencer no jogo democrático.

Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais, em razão da rigi-dez constitucional, estão protegidos do legislador ordinário. Se não fosseassim, então não seriam direitos diferentes dos outros. O que destaca es-ses direitos dos demais é justamente a sua supremacia formal e material.

Eles estão acima das leis, constituindo o fundamento ético de todo orde-namento jurídico.

O reconhecimento da supremacia formal e material dos direitos fun-damentais gera três consequências práticas extremamente relevantes naaplicação do direito:

1 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Nonna Jurídica 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 12.

2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 248.

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272 Curso de Direiros Fundamentais • Marmelstein

a) em primeiro lugar, gera a inconstitucionalidade das normas in-fraconstitucionais incompatíveis com os direitos fundamentais;

b) do mesmo modo, provoca a não recepção das normas infracons-titucionais anteriores à promulgação da Constituição que nãosejam compatíveis com o espírito dos direitos fundamentais;

c) por fim, impõe a necessidade de reinterpretar as leis anteriores àConstituição, de modo a adequá-las aos novos parâmetros axio-lógicos estabelecidos pelo constituinte.

Essas consequências serão vistas nos tópicos seguintes, sendo essen-cial, antes de tudo, tecer alguns comentários sobre a chamada jurisdiçãoconstitucional.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

PIRÂMIDE NORMATIVA (ESCALONAMENTO DO ORDENAMENTO JURíDICO)

13.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Aceitar que a Constituição é a norma suprema do ordenamento signi-fica reconhecer a necessidade do controle de constitucionalidade das leis.Dessa forma, um dos pressupostos para a eficiente proteção dos direitosfundamentais é a possibilidade de fiscalizar a validade constitucional dosatos estatais por um órgão imparcial e independente. Sem esse mecanis-

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 273

mo, os direitos fundamentais ficariam, de fato, à mercê da vontade do Es-tado, o que é incompatível com a própria ideia de limitação do poder.

A atividade de controlar a constitucionalidade dos atos públicos é co-nhecida comojurisdição constitucional, que nada mais é do que a formapela qual um órgão imparcial e independente exerce a função de fiscalizaro cumprimento da Constituição. Se determinada lei contiver regras que,de algum modo, sejam incompatíveis com o que diz o texto constitucional,

cabe ao órgão responsável pela jurisdição constitucional excluir essa lei doordenamento jurídico.

Sempre houve intensa discussão sobre quem deveria ser o órgão res-ponsável pelo controle de constitucionalidade das leis. O próprio legisla-dor? O governante? O Poder Judiciário? Ou outro órgão criado especifica-mente para exercer essa função?

De c.<'l:ra,deve-se concluir que nem o legislador nem o governante de-veriam ficar responsáveis por essa tarefa. Do contrário, seria o mesmo queindicar a raposa para vigiar o galinheiro. Nesse sentido, Kelsen recomen-dou: "uma vez que nos casos mais importantes de transgressão da Consti-tuição, o parlamento e o governo passam a ser partes litigantes, recomen-

da-se apelar para uma terceira instância para decidir o conflito".3 Some-sea isso a constatação de que os parlamentares e os governantes, por esta-rem mais vulneráveis a pressões políticas dos mais variados tipos, inclusi-ve financeiras, já que precisam de verbas para financiar suas dispendiosascampanhas eleitorais, não estariam em uma posição de imparcialidadepara proteger os interesses de grupos com pouca representação eleitoral,ainda que os interesses desses grupos fossem garantidos pela Constitui-ção. Logo, nem os membros do Executivo, nem os do Legislativo, possui-riam legitimidade para realizar o controle de constitucionalidade dos atospúblicos, pois eles sempre tenderão a escolher a opção política que geremais votos, o que nem sempre resultará em escolhas justas e compatíveiscom a dignidade humana.

E o Judiciário? Seria ele o órgão mais apto a realizar a função de con-trolar a constitucionalidade das leis?

Nos momentos iniciais do Estado de direito, havia grande desconfian-ça em relação ao papel do Poder Judiciário. Durante rrmito tempo, os juí-zes foram um dos principais violadores dos direitos do homem, até porque

3 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. ISO.

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274 Curso de Direitos Fundamentais. Marmelstein

-

eles agiam como agentes do soberano.4 Não é à toa que muitos direitos

fundamentais foram estabelecidos justamente para diminuir os poderes

dos juízes, como o devido processo legal, o direito ao contraditório e à

ampla defesa, o dever de fundamentar as decisões judiciais, a publicidade

do processo, a vedação de penas cruéis etc.

Por isso, Montesquieu defendia que "os juízes não devem ser mais do

que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não

podem moderar nem a força nem o rigor das leis" e por isso "o poder de  julgar é de algum modo nulo".5

Do mesmo modo, Beccaria, um dos primeiros defensores do garantis-

mo penal, afirmava que era perigoso deixar que os juízes interpretassem

as leis, pois. do contrário, estaria aberta a possibilidade para a prática de

arbitrariedades.6 Ou seja: o modelo ideal de juiz seria aquele que aplicas-

se a lei literalmente, sem criatividade, sem ponderação, sem preocupação

com a justiça do caso concreto.

Portanto, dentro desse modelo de separação de poderes, o papel do

Poder Judiciário se resumia a resolver as disputas entre particulares, se-

guindo fielmente as regras ditadas pelo legislador, não podendo deixar de

cumprir a lei, ainda que houvesse uma possível inconstitucionalidade emseu conteúdo.

Essa visão predominou durante muito tempo. Aliás, ainda hoje, as

correntes mais formalistas do pensamento jurídico reservam ao Judiciário

uma função de mero aplicador mecânico das leis.

Deve-se aos norte-americanos a mudança de paradigma que permitiu

que o Poder Judiciário fosse visto como o guardião da norma constitucio-

nal e, consequentemente, dos próprios direitos fundamentais.

Enquanto na Europa, naqueles primeiros anos do Estado de Direito,

o Judiciário era visto com extrema desconfiança, lá nos Estados Unidos,

Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, no livro OFederalista, pu-

blicado por volta do ano de 1787, desenvolveram um sistema de freios econtrapesos (checks and balances) que reservava ao Judiciário um lugar

de destaque.

4 Sobre o assunto, vale a leitura de DALLARl, Dalmo. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva,

1996.

5 MONTESQUIEU, Barão de La Brede e de. Do espírito das leis. Coleção Os Pensadores, São

Paulo; Nova Cultural, v. 1, 1997, p. 203.

6 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. 11. ed. São

Paulo: Hemus, 1995.

ASupremacia dos Direitos Fundamentais 275

O princípio da supremacia da Constituição, nos EUA,teve contornos

bem definidos, graças ao pensamento desses federalistas. Se o Parlamento

aprovasse uma lei contrária à Constituição, essa lei não seria válida e, por-

tanto, deveria ser anulada. E o Judiciário seria o órgão apto a exercer esse

controle de constitucionalidade, na ótica daqueles pensadores.

Esse modelo foi esboçado especialmente nos escritos de Hamilton.

Nos textos desse pensador, encontra-se o germe do que viria a ser o judi-

cial review, mecanismo que permite aos juízes a fiscalização da constitu-cionalidade das leis.

Os principais argumentos utilizados por Hamilton, desenvolvidos no

texto conhecido como "Federalista n. 78", eram, em síntese, os seguin-

tes: (a) a Constituição estatui limitações à atividade legislativa, não sen-

do adequado que o Legislativo seja "juiz" de suas próprias limitações;

(b) a interpretação das leis é função específica dos juízes, razão pela

qual é natural que lhes seja atribuída a função de interpretar a Consti-

tuição; (c) o Judiciário, pela própria natureza de suas funções, por não

dispor nem da "espada" nem do "tesouro", é o ramo menos perigoso

(the least dangerous branch) do poder para proteger os direitos previs-

tos na Constituição.7

Tendo como suporte doutrinário as idéias de Hamilton, a Suprema

Corte norte-americana, sob o comando do Chief Justice John Marshall,

adotou o controle judicial de constitucionalidade das leis no célebre caso

Marbury vs. Madison, em 1803, mesmo sem qualquer apoio expresso do

texto da Constituição, que nada falava sobre esse poder da Suprema Corte

de invalidar atos do Legislativo.A lógica adotada por Marshall foipratica-

mente uma reprodução das ideias de Hamilton.8

7 Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como democracia. Tese de Doutorado, Curitiba,

2004.

8 Eis as palavras utilizadas no voto de Marshall para justificar o judicial review: uÉ enfatica-

mente a província e o dever do ramo judiciário dizer o que é o Direito. Aqueles que aplicam

as regras aos casos particulares devem, por necessidade, expor e interpretar a regra. Se duas

leis estão em conflito, as cortes devem decidir sobre a aplicação de cada uma. Então, se uma

lei estiver em oposição à constituição; se ambas, a lei e a constituição, forem aplicáveis ao caso

particular, então a corte deve decidir o caso conforme a lei, desconsiàerando a constituição; ou

conforme a constituição, desconsiderando a lei; a corte deve determinar qual dessas regras em

conflito governa o caso. Essa é a essência do dever judicial. Se, então, as cortes devem observar

a constituição, e a constituição é superior a qualquer ato ordinário da legislatura, a constituição,

e não o ato ordinário, deve governar o caso ao qual ambas são aplicáveis" (Cf. MORO, Sérgio

Fernando. Jurisdição como democracia. Tese de Doutorado, Curitiba, 2004).

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276 Curso de Direitos Fundamentais' Marmelstein

Com isso, os EUAdesenvolveram o modelo de controle judicial de

cons~itucicnalidade que até hoje é a marca do constitucionalismo ociden-

tal. E esse modelo norte-americano, descrito há mais de duzentos anos,

que mais se assemelha com os contornos atuais do princípio da separação

de poderes adotado aqui no Brasil, desde a primeira Constituição republi-

cana, de 1891.

Paralelamente ao modelo norte-americano, os Europeus, ao longo

do século XX,passaram a melhor assimilar o princípio da supremacia daConstituição e, inspirados em Kelsen,9desenvolveram outro tipo de con-

trole de constitucionalidade, que se caracteriza pela concentração das de-

~isõesconstitucionais em uma Corte especificamente criada para esse fim.

E o chamado modelo concentrado de controle constitucionalidade, no

qual, toda vez que surge uma controvérsia constitucional, a matéria deve

ser submetida ao órgão competente para resolver a questão.

13.2.1 A jurisdição constitucional no Brasil

No Brasil,a jurisdição constitucional surgiu com a criação da Justiça Fe-

deral, que, por sua vez, começou juntamente com a história da República.

Tão logo ruiu o regime monárquico, houve uma intensa movimenta-

ção intelectual e política para definir os alicerces do novo modelo estatal

que estava surgindo.

Nesse ambiente, Governo Provisório convidou para redigir o arca-

bouço jurídico da nova ordem normativa ninguém menos do que Rui

Barbosa, o jurista mais preparado para essa tarefa. E foi assim que Rui

Barbosa, em sua casa na praia do Flamengo e em apenas quinze dias, es-

creveu praticamente sozinho todo o texto do documento que viria a ser a

Constituição de 1891.

Um dos grandes dilemas que Rui Barbosa teve de enfrentar ao dese-

nhar o projeto do novo modelo político referia-se à definição de qual ór-gão estatal exerceria a importante missão de controlar a constitucionali-

dade das leis.

No regime imperial, essa função era exercida pelo chamado Poder Mo-

derador. O próprio Imperador era responsável pela fiscalização da consti-

9 As ide ias desenvolvidas por Kelsen estão em: KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

ASupremacia dos Direitos Fundamentais 277

tucionalidade dos seus atos e dos'atõs do Legislativo, tendo absoluto con-

trole sobre o Judiciário, cuja missão restringia-se a solucionar os conflitos

entre particulares.

Rui Barbosa sabia que essa fórmula não era compatível com o modelo

republicano, pois nem o Executivo nem o Legislativo possuiriam a impar-

cialidade necessária para se autocontrolarem. Foi aí que Rui teve a idéia

de buscar inspiração no direito norte-americano, descrito há mais de du-

zentos anos pelos federalistas e colocado em prática em 1803, no "Mar-bury VS. Madison".

Essa influência norte-americana fica ainda mais visível se for analisa-

da a Exposição de Motivos do referido Decreto nº 848/1890, apresentada

pelo então Min. Campos Salles, que instituiu a Jllstiça Federal. Eisum tre-

cho da Exposição que ressalta qual seria o papel da magistratura federal

no novo regime (o vernáculo não foi atualizado, a fim de manter a origi-

nalidade-cio texto):

"Cabendo ao ministerio que me foi confiado a importante tarefa de orga-

nizar um dos poderes da União, e consultando os grandes interesses confiados

à suprema direcção do Governo Provisório, pareceu-me necessário submetter

desde já à vossa approvação e assignatura o decreto que institue a Justiça Fe-

deral, de conformidade com o disposto na Constituição da Republica.

A proximidade da installação do Congresso constituinte, que poderia pa-

recer em outras circumstancias um plausivel motivo de adiamento, afim de

que lhe fosse submettido o exame de uma questão de tal magnitude, torna-

se, entretanto, nesta situação, que é profundamente anormal, uma poderosa

razão de urgencia a aconselhar a adopção desta medida.

O principal, sinão o unico intuito do Congresso na sua primeira reunião,

consiste sem duvida em collocar o poder publico dentro da legalidade. Mas

esta missão ficaria certamente incompleta si, adoptando a Constituição e ele-

gendo os depositarios do poder executivo, não estivesse todavia previamente

organizada a Justiça Federal, pois que só assim poderão ficar a um tempo e

em definitiva constituidos os tres principaes orgãos da soberania nacional.

Trata-se, portanto, com este acto, de adoptar o processo mais rapido para a

execução do programma do Governo Provisorio no seu ponto culminante - a

terminação do período dictatorial.Mas, o que principalmente deve caracterisar a nee€ssidade da immedia-

ta organização da Justiça Federal é o papel de alta preponderância que ella

se destina a representar, como orgão de um poder, no corpo social.

Não se trata de tribuanes ordinarios de justiça, com uma jurisdicção

pura e simplesmente restricta à applicação das leis nas multiplas relações do

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278 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

direito privado. A magistratura que agora se instala no paiz, graças à õ regi-

men republicano, não é um instrumento cego ou mero interprete na execu-

ção dos actos do poder legislativo. Antes de applicar a lei cabe-lhe o direito

de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sancção, si ella lhe parecer con-

forme ou contraria à lei organica. "10

Como se observa, a Justiça Federal foi criada com a finalidade espe-

cífica e expressa de controlar a constitucionalidade das leis. Assim, pelo

menos no papel, havia uma crença de que a Justiça Federal seria capaz

de fiscalizar os demais poderes, servindo como guardiã da Constituição

dentro do sistema de freios e contrapesos que se pretendia implementar.

Restava saber se na prática o controle seria eficaz, já que a fiscalização

  judicial da constitucionalidade das leis ainda não fazia parte de nossa tra-

dição jurídica.

O primeiro caso de grande relevância surgiu, como não poderia ser

diferente, graças ao trabalho de Rui Barbosa.

Em 1893, Rui Barbosa publicou um texto denominado "Os actos in-

constitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal", onde

traçou as primeiras linhas do que viria a ser o controle judicial de consti-

tucionalidade no Brasil.

O texto não é propriamente uma obra acadêmica, mas a consolidação

de trabalhos forenses envolvendo um mesmo tema: as ações civis dos mi-

litares reformados pelos Decretos de abril de 1892 assinados pelo governo

ditatorial do Marechal Floriano Peixoto.

Rui,na qualidade de advogado, ingressou com diversas ações civis pe-

rante a recém-criada Justiça Federal, visando anular judicialmente os atos

de reforma dos militares que se opuseram ao golpe de Floriano, o Mare-

chal de Ferro.11

A Justiça Federal estava dando seus primeiros passos e, portanto, ain-

da não havia um sentimento constitucional no país. Soava, no mínimo,

estranho dizer que umjuiz federal- de primeiro grau, diga-se de passagem

- teria tamanho poder, a ponto de decretar a nulidade de um ato da mais

alta autoridade do Executivo, especialmente em um regime autoritário.

10 CJF - Conselho da Justiça Federal. Justiça Federal - Legislação. Brasília: CJF, 1993.

11 A famosa carta-manifesto dos treze generais dirigida a Floriano Peixoto, exigindo nova elei-

ção presidencial pode ser lida em: AMARAL, Roberto; BONAVIDES, Paulo. Textos políticos da

história do Brasil. 3. ed. v. 2, Brasília: Senado Federal, 2002, p. 333.

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 279

Ninguém imaginaria que um magistrado de primeira instância agi-

ria com a coragem suficiente para enfrentar o Executivo. Afinal, aquele

era um período em que, por muito pouco, prendiam-se parlamentares e

  jornalistas, demitiam-se professores e servidores públicos, reformavam-

se militares, aposentavam-se juízes compulsoriamente e fuzilavam-se os

que fossem contra o regime. Além disso, os juízes federais, embora vita-

lícios, ainda não tinham a garantia de inamovibilidade, de tal modo que

um juiz no Rio de Janeiro poderia ser removido para os mais longínquosrincões do país com uma simples penada - e se desse por satisfeito por

ainda estar vivo!

Para se ter uma noção de como ainda era frágil a aceitação da tese de

que os magistrados detinham o poder de controlar a validade dos atos do

Executivo e do Legislativo, basta dizer que alguns juízes que, naquele pe-

ríodo, se negaram a aplicar leis, sob o fundamento de inconstitucionalida-

de, chegaram a ser acusados por crime de responsabilidade ou de preva-

ricação, o que levou Rui Barbosa a escrever uma obra memorável sobre o

tema, em defesa da liberdade de consciência dojuiz, intitulada "Defesa do

Dr. Alcides de Mendonça Lima no Recurso de Revisão contra a Sentença

do Superior Tribunal do Rio Grande do Sul", que serviu de fundamento à

defesa de mIl magistrado que havia sido condenado à pena de nove mesesde suspensão do emprego por haver declarado a inconstitucionalidade da

Lei de Organização Judiciária do Rio Grande do SulL12

O certo é que, para surpresa geral, o Juiz Federal Henrique VazPinto

Coelho, em 1895, julgou a favor dos militares reformados, garantindo aos

autores das ações o direito de receberem os vencimentos dos cargos/pa-

tentes como se não tivessem sido reformados.

As referidas sentenças foram uma surpresa até para Rui Barbosa, con-

forme se pode observar no seguinte trecho de uma carta escrita por ele à

época, durante exílio que estava vivendo em Londres:

"Ontem recebi do Rio um telegrama anônimo nesses termos - 'Vitória.

Juiz seccional reformas militares. Hurra maior campeão liberdades civismili-

tares tempo legalidade'. Quer isso dizer que o juiz federal sentenciou a favor

12 Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo 111891-1898.

2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 84. O Supremo Tribunal Federal acabou

firmando o entendimento de que faz parte da função jurisdicional o controle de constitucio-

nalidade das leis, razão pela qual os juízes não poderiam ser responsabilizados por negarem

aplicação a leis que reputem inconstitucionais.

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280 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

dos meus clientes na famosa questão? É um triunfo, que eu não esperava,descrente que estou das qualidades morais da nossa magistratura. [... ]

Vejoque venci a questão dos generais e lentes demitidos, perante a jus-tiça federal. É um triunfo, que me surpreendeu, ante a desmoralização geraldo paIs. Noutra terra esse arresto seria recebido como a primeira conquistapara a liberdade constitucional. No Brasil não sei se ele terá merecido as hon-ras dos comentários. "13

A decisão foi confirmada pelo STF, que adotou o entendimento deque "é nulo o ato do Poder Executivo que reforma forçadamente um ofi-cial militar, fora dos casos previstos em lei". Logo após a decisão do STF,

o Governo, em respeito ao julgado, anulou os decretos de abril de 1892,tendo os militares favorecidos pela decisão sido anistiados e reintegradosaos cargos que ocupavam.

O caso é exemplar. Foi a primeira vez no Brasil que se sustentou,perante a Justiça Federal, a inconstitucionalidade de um ato do execu-tivo. Tratava-se, como disse o próprio Rui Barbosa, de "novidade de um

regime inteiramente sem passado entre nós". Aliás, novidade essa quefora recebida "muito desfavoravelmente pelos amigos do ex-Presidente

Marechal Peixoto", conforme noticiaram os jornais The Standard e TheFinantial News. 14

A sentença, escrita com objetividade, mas com profunda noção do seupapel simbólico, contém alguns aspectos dignos de nota, que ressaltam afunção que seria desempenhada pelo Poder Judiciário dentro do EstadoRepublicano e Federativo que acabara de surgir:

"É manifesta a competência do Poder Judiciário para dizer em espéciede ofensas ao poder político contra os direitos individuais com preteriçãodas leis e da Constituição [... ]. Pelas opiniões da corrente geral dos consti-tucionalistas, firmando de modo claro e positivo que ao Poder Judiciário, noregímen americano (que é o da nossa Constituição) cabe a suprema missãode garantir a verdade constitucional e legal e proteger os direitos individuaiscontra as exorbitâncias do Executivo e Legislativo. [ ... ] O Poder Judiciáriose acha que a lei do congresso viola a Constituição, pronuncia-se por esta.

13 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. v. XX, 1893, Torno V, Rio de Janeiro:Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. XXXVI(introdução).

14 Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Torno 1/1891-1898.2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 63.

ASupremacia dos Direitos Fundamentais 281

Mister, porem, é que haja controvérsia entre as partes acêrca de algum caso -sujeito. Dá-se aos cidadãos o meio de tomar efetivos os direitos individuaisquando violados por lei contrária a êles; mas ainda que o Tribunal Supremodeclare que a aplicação dela no caso debatido é inconstitucional, de nenhumvalor nem efeito, não deixa por isso a lei de continuar em vigor. Continua aser obrigatória para todos, mas cada qual quando lhe chega a vez em casosubmetido à justiça, tem o mesmo recurso acima indicado para evitar-lhe aaplicação. (Florentino Gonzales - Lição  de Dir. Const.). É manifesto, pois, lei

ou ato administrativo que ataque um direito subjetivo, o lesado pode recor-rer ao departamento judiciário e êste tem competência. [... ] Não há poderes,quer legislativos, quer executivos, com exerCÍciolegal, senão dentro das nor-mas constitucionais, lei suprema que domina e avassala tôdas as outras leis,atos administrativos, decisões judiciárias, desde que a violem. [... ] Não háonipotência no Congresso, como não há no Executivo - têm atribuições cons-titucionais e legais e fora delas são exorbitantes e seus atos nulos."15

Eis aí, nessa formidável decisão, o marco inicial da jurisdição consti-tucional no Brasil. E que bela lição foi-nos deixada pelo julgado: não hápoderes, quer legislativos, quer executivos, senão dentro das normas cons-titucionais, lei suprema que avassala todas as outras leis, atos administra-

tivos, decisões judiciárias, desde que a violem.A partir daí, o modelo difuso de controle de constitucionalidade, no

qual todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dosatos infraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem in-

compatíveis, passou a fazer parte da tradição jurídica brasileira.

Nos últimos trinta anos, as Constituições brasileiras (de 1967/1969 ede 1988) passaram a contemplar técnicas do controle concentrado, atra-vés da via direta (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratóriade Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento a Preceito Funda-mental), em processo objetivo decidido pelo STE Ou seja, aqui no Brasil,há tanto o modelo difuso de controle de constitucionalidade, no qual

todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dos atosinfraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem incom-patíveis, como também o modelo concentrado, através da via direta, em

processo objetivo decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

15 Extraído do livro: BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. v. 20, 1893, Torno V,

Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. 219.223.

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282 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

13.2.2 A inconstitucionalidade das normas

contrárias aos direitos fundamentais

Conforme já visto, os direitos fundamentais estão positivados na Cons-tituição. Logo, qualquer norma que seja incompatível com os valores poreles consagrados será inconstitucional. Desse modo, é natural que, através

da jurisdição constitucional, seja possível fiscalizar o respeito a esses direi-tos. Serão esses direitos que fornecerão o substrato ético e a legitimidadematerial do controle de constitucionalidade.

Para ilustrar essa faceta dos direitos fundamentais, que os coloca notopo do ordenamento jurídico, vale citar um exemplo em que um direito

fundamental foi invocado para anular uma norma com ele incompatível.

O caso foi julgado pelo STF, em sede de controle concentrado de cons-titucionalidade (ADIn-Me 1969-4/DF), e envolvia um conflito de normas(antinomia). Ou seja, havia duas normas jurídicas prevendo conseqüên-cias opostas para um mesmo fato.

De um lado, havia um Decreto, expedido pelo Governo do DistritoFederal, que proibia a realização de manifestações públicas na Praça dosTrês Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti, em Bra-sília. O objetivo da norma era impedir a realização de protestos no centropolítico da capital brasileira.

Esse Decreto se chocava frontalmente com o direito fundamental à li-berdade de reunião e de manifestação pública, previsto no art. 5º inc. XVI,da Constituição de 88:

')\n. 5º [... ] XVI- todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, emlocais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que nãofrustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendoapenas exigido prévio aviso à autoridade competente."

Em razão disso, o STF, naturalmente, declarou a inconstitucionalida-de do referido Decreto, autorizando, como consequência, a realização demanifestações públicas nos mencionados locais.16

16 ~TF, ADIn-MC 1969-4, reI. Min. Celso de Mello, j. 24/3/1999. Confira a ementa: "EMENTA:

AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDE-

RAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AOART. 52, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins

. lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 283

Nesse caso7-ã supremacia dos direitos fundamentais foi aplicada para

invalidar um ato normativo que transgredia a estrutura axiológica dos di-reitos fundamentais, demonstrando que o poder público, ao editar normas

gerais, deve respeito ao conteúdo material da Constituição.

No mesmo sentido, pode-se mencionar a decisão tomada pelo STF

na ADIn 869/DF, em que se discutiu a constitucionalidade do artigo 247,~ 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). De acor-

do com a referida norma, qualquer meio de comunicação que divulgasseo nome ou o retrato identificável de criança ou adolescente acusados de

prática infracional poderia ser punido administrativamente com a suspen-são de suas atividades pelo período estabelecido na lei. 17

Para o STF,ainda que fosse razoável punir a empresa de comunicação

que praticasse tais condutas reprováveis, a sanção administrativa previstana lei seria incompatível com a liberdade de imprensa protegida enfatica-mente pela- Constituição de 88, até porque "o efeito que dela resulta vem

  justamente de encontro ao direito que tem o público à informação sobrefatos e idéias, privados que dela pode ficar por até dois dias. Não se trata,pois, de providência que se possa ter por tolerada pela Constituição, aindaque implicitamente, como limitação plausível ao direito à manifestação

do pensamento, mais precisamente ao direito à informação jornalística". 18

As demais sanções previstas na lei para aquele ilícito, contudo, não foram

consideradas inconstitucionais, pois tinham como objetivo inibir a mídiade divulgar informações que pudessem prejudicar os interesses de meno-res infratores, sem afetar arbitrariamente a liberdade de imprensa.

modernas democracias políticas. U. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decretodistrital 20.098/99. a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcionalquando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). lII. Ação direta jul-

gada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99."17 Eis a redação do artigo: '~rt. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida,

por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, admi-

nistrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional: Pena_ multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. ~ 12

Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente

envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos

que lhe sejam atnlJUídos, de forma a permitir sua identificação, direta...ou indiretamente. ~ 22

Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da penaprevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinara apreensão da publicação ou a

suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico

até por dois números."18 STF, ADI 869/DF, reI. Min. Ilmar Galvão,j. 4/8/1999.

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I 1284 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

Qualquer ato de poder que seja incompatível com a ordem de valores

imposta pelos direitos fundamentais poderá ser anulado, por inconstitucio-

nalidade material, pelo órgão responsável pela jurisdição constitucional.

13.2.3 A não recepção das leis incompatíveis

com os direitos fundamentais

A supremacia formal e material dos direitos fundamentais acarreta a

não recepção da legislação promulgada em data anterior à Constituição

que seja incompatível com os direitos fundamentais. Se um juiz deparar

com uma norma anterior à Constituição que seja incompatível com esses

direitos, deverá entendê-la como revogada. Diz-se, numa linguagem mais

técnica, que essa norma não foi recepcionada, ou seja, não foi recebida

pelo novo ordenamento constitucional. Essa não recepção tem o mesmo

efeito prático da revogação, de modo que o juiz não pode aplicar a norma

não recepcionada.

Assim, no âmbito do controle difuso, uma vez detectada a existência

de uma lei anterior à Constituição que não tenha sido recepcionada, o juiz

tem o poder-dever de não a aplicar.

No controle concentrado de constitucionalidade, a lei anterior à Cons-

tituição não pode ser atacada via Ação Direta de Inconstitucionalidade,

conforme jurisprudência pacífica do STF:

"a Ação Direta de Inconstitucionalidade não se revela instrumento ju-

ridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos nor-

mativos do poder público que tenham sido editados em momento anterior

ao da vigência da constituição sob cuja égide foi instaurado o controle nor-

mativo abstrato".19

Isso não impede, contudo, o controle concentrado de constitucionali-

dade da lei pré-constitucional em sede de Argüição de Descumprimento a

Preceito Fundamental, com base no artigo 1º, parágrafo único, inc. I, da

Lei nº 9.882/98, que diz que caberá arguição de descumprimento a pre-

ceito fundamental "quando for relevante o fundamento da controvérsia

constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,

incluídos os anteriores à Constituição".

19 STF,ADI 7/DF, reI. Min. Celso de Mello, j. 4/9/1992.

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 285

Nesse sentido, o STFjá decidiu:

"Assim, toda vez que configurar controvérsia relevante sobre a "legitimi-

dade do direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição, em

face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitima-

dos para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade propor argui-

ção de descumprimento. Também essa solução vem colmatar uma lacuna im-

portante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsiasrelevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo STF com

eficácia geral e efeito vinculante."2o

Há vários exemplos de leis existentes antes da promulgação da Cons-

tituição de 1988 que não foram recepcionadas pelo novo regime centrado

nos direitos fundamentais.

Podem-ser citados, por exemplo, os arts. 51 e 52 da Lei de Impren-

sa (Lei nº 5.250/67), que estabelecem o chamado dano moral tarifado,

ou seja, criam limites rígidos à fixação da indenização por dano moral no

caso de responsabilidade civil de jornalistas e empresas jornalísticas.21 O

dano moral tarifado era plenamente aceitável antes da Constituição de

1988, já que não havia norma constitucional prevendo o direito à inde-

nização por dano moral como direito fundamental. A Constituição de 88,

contudo, estabeleceu que "é assegurado o direito de resposta, proporcio-

nal ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à ima-

gem" (art. 5º, inc. V).

Como se vê, a CF/88 não estabeleceu qualquer limite à indenização

por dano moral. Logo, não recepcionou o dano moral tarifado estipulado

pela Lei de Imprensa (que foi promulgada em 1967).

20 STF,ADPF 33/PA, reI. Min. Gilmar Mendes, 7/12/2005.

21 ''Art. 51. A responsabilidade civil do jornalista profissional que concorre para o dano por

negligência, imperícia ou imprudência, é limitada, em cada escrito, transmissão ou notícia: I - a

2 salários-mínimos da região, no caso de publicação ou transmissão de notícia falsa, ou divulga-

ção de fato verdadeiro truncado ou deturpado (art. 16, ns. II e IV); II - a cinco salários-mínimos

da região, nos casos de publicação ou transmissão que ofenda a dignidade ou decoro de alguém;

III - a 10 salários-mínimos da região, nos casos de imputação de fato -;fensivo à reputação de

alguém; IV- a 20 salários-mínimos da região, nos casos de falsa imputação de crime a alguém,

ou de imputação de crime verdadeiro, nos casos em que a lei não admite a exceção da verdade

(art. 49, S 1º). [... ] Art. 52. A responsabilidade civil da empresa que explora o meio de informa-

ção ou divulgação é limitada a dez vezes as importâncias referidas no artigo anterior, se resulta

de ato culposo de algumas das pessoas referidas no art. 50."

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286 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

Nesse sentido, o STF entendeu que "toda limitação, prévia e abstra-ta, ao valor da indenização por dano moral, objeto de juízo de eqüidade,é incompatível com o alcance da indenizabilidade irrestrita asseguradapela atual Constituição da República. Por isso, já não vige o disposto noart. 52 da Lei de Imprensa, o qual não foi recebido pela ordenamento ju-rídico vigente".22 O STJ também já sumulou o mesmo entendimento: "aindenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de

Imprensa" (Súmula 281).Aliás, já que se falou na lei de imprensa, vale mencionar a decisão li-

minar proferida pelo STF, na ADPF 130/DF, que reconheceu a não recep-ção de diversos artigos da referida lei, suspendendo sua aplicação até o

  julgamento do mérito.

Na citada decisão, o relator, Min. Carlos Brito, após defender que ademocracia é "o princípio dos princípios da Constituição de 1988", afir-mou que ela se apoia em dois pilares: (a) o da informação em plenitudee de máxima qualidade e (b) o da transparência ou visibilidade do poder.Levando em conta a Íntima ligação entre liberdade de imprensa e demo-

cracia, concluiu o seguinte:

"a atual Lei de Imprensa - Lei nº 5.250/67 -, diploma normativo que se

põe na alça de mira desta ADPF, não parece mesmo serviente do padrão de

democracia e de imprensa que ressaiu das pranchetas da nossa Assembleia

Constituinte de 1987/1988. Bem ao contrário, cuida-se de modelo prescri-

tivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem visto corno tracejado por

urna ordem constitucional (a de 1967/1969) que praticamente nada tem a

ver com a atual".23

Com isso, foi concedida medida liminar para afastar diversos disposi-tivos da referida lei que continham ranços autoritários incompatíveis como espírito democrático prestigiado pela Constituição de 88.

Seguindo essa mesma linha, há várias leis, promulgadas antes de1988, que estabelecem repressões penais ao pensamento que não se mos-tram afinadas com a liberdade de expressão. O art. 234 do Código Penal,por exemplo, criminaliza o fato de "realizar, em lugar público ou acessívelao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter

22 STF,RE 447584/RJ, reI. Min. Cezar Peluso, j. 26/11/2006.23 STF,ADPF 130/DF (decisão liminar), reI. Min. Carlos Ayres Brito, j. 21/2/2008.

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 287

obsceno, ou qualquer olltroespetáculo, que tenha o mesmo caráter". Emigual sentido, o art. 219 do Código Penal Militar considera como crime adivulgação de fatos capazes de ofender a dignidade ou abalar. o créditodas forças armadas ou a confiança que estas merecem do público. O art.22 da Lei de Segurança Nacional tipifica como crime o fato de fazer pro-paganda defendendo a alteração da ordem política ou social. Essas nor-mas penais, nitidamente, mostram-se descompassadas com o direito de

manifestação do pensamento e, portanto, não foram recepcionadas pelaConstituição de 1988.

Outro exemplo ainda mais patente de não recepção refere-se às hi-póteses de prisão que, por força de leis anteriores ao novo regime consti-tucional, podiam ser decretadas por autoridades não judiciárias. A títuloilustrativo, o Código de Processo Penal, em seu artigo 319,24 autorizava aprisão administrativa sem ordem judicial. Do mesmo modo, os arts. 69, 80e 81 do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) conferiam ao Ministroda Justiça a possibilidade de determinar a prisão do estrangeiro submeti-do a processo de expulsão ou de extradição.

Essas normas destoam claramente da nova sistemática adotada peloartigo 5º, inc. LXI, da Constituição de 88, que submeteu o regime das pri-

sões à chamada reserva de jurisdição, de modo que somente as autorida-des judiciárias possuem competência para decretar prisões, ressalvadasas exceções constitucionais:

'~rt. 5º - [... ] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou

por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,

salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, defi-

nidos em lei."

Desse modo, a prisão administrativa prevista no art. 319 do CPp, bemcomo a prevista nos arts. 69, 80 e 81 do Estatuto do Estrangeiro, assim

24 "Art. 319. A prisão administrativa terá cabimento: I - contra remissos ou omissos em entrar

para os cofres públicos com os dinheiros a seu cargo, a fim de compeli-los a que o façam; II- contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercante, surto e m porto nacional; III - nos

demais casos previstos em lei. 9 1º A prisão administrativa será requisitada à autoridade policialnos casos dos ns. I e III, pela autoridade que a tiver decretado e, no caso do nº lI, pelo cônsul do

país a que pertença o navio. 9 2º A prisão dos desertores não poderá durar mais de três mesese será comunicada aos cônsules. 9 3º Os que forem presos à requisição de autoridade adminis-trativa ficarão à sua disposição."

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288 Curso de Direitos Fundamentais. Marmelstein

como qualquer hipótese de prisão que não seja em flagrante delito ou de-corrente de transgressão militar ou crime propriamente militar, somen-te serão válidas se determinadas por autoridade judiciária competente,através de ordem judicial devidamente fundamentada, devendo ser consi-deradas como não recepcionadas as leis anteriores à CF/88 que autoriza-vam a decretação de prisões por autoridades não judiciárias. 25

13.2.4 A reinterpretação das leis anteriores à Constituiçãoem face dos direitos fundamentais

Outra consequência da supremacia dos direitos fundamentais é o en-tendimento de que a legislação anterior à Constituição deve ser reinter-pretada para qu~ se adapte ao novo espírito axiológico que os direitos fun-damentais impõem. Como explica Luís Roberto Barroso:

"Asnormas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vi-gor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e ape-nas subsistem se conformes com as suas normas e os seus princípios, nãose lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no

regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da herme-nêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pelaqual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inovenada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo."26

Um caso bastante interessante e elucidativo ilustra esse aspecto. Tra-ta-se do caso Diogo Mainardi VS. Presidente Lula,27

Eis a síntese do processo: Diogo Mainardi é um polêmico jornalista,cujos escritos são impregnados de conteúdo político, com uma clara opo-

25 Eis O entendimento do STF sobre o assunto: "EMENTA: EXTRADIÇÃO. QUESTÃO DE OR-

DEM SOBRE A COMPETÊNCIA PARAA DECRETAÇÃO DA PRISÃO DO EXTRADITANDO. - Emface da atual Constituição, tornou-se o Ministro da Justiça incompetente para decretar a prisão

do extraditando, estando, assim, derrogada a Lei 6815/80. - Essa competência passa a ser dorelator sorteado para, se for o caso, decretá-la, o qual ficara prevento para a direção do processo

de ~xtradição, após ser a prisão em causa efetivada, Questão de ordem decidida nos termos dovoto do relator" (Ext-Q0478/ SI - SUíÇA, reI. Min, Moreira Alves, j. 30/11/1988). Com relaçãoà prisão administrativa prevista no Cpp,o Superior Tribunal de Justiça sumulou o entendimentode que "o artigo 35 do Decreto-Lei n. 7.661, de 1945, que estabelece a prisão administrativa, foi

revogado pelos incisos LXI e LXVIIdo artigo 5º da Constituição Federal de 1988."26 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed, São Paulo:

Saraiva, 1998,27 STF, PET 3486/DF, reI. Min. Celso de Mello.

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 289

sição ideológica ao-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dosTrabalhadores de modo geral.

Na edição de 3/8/2005, em sua coluna semanal publicada.na revis-ta Veja, Mainardi escreveu uma crônica intitulada "Quero derrubar Lula",onde defendeu o impeachment  do Presidente da República, pois, de acor-do com ele, "pior do que está não pode ficar".

Em razão dessa coluna, alguns partidários do Presidente Lula ingres-

saram com petição no STF-(PET 3486/DF) requerendo a abertura de pro-cedimento penal para apurar suposto "crime de subversão contra a segu-rança nacional, que está colocando em perigo o regime representativo edemocrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito e crime contra apessoa dos Chefes dos Poderes da União".

O Min. Celso de Mello, do STF, relator do caso, proferiu memoráveldecisão em favor da liberdade de imprensa, determinando o arquivamentodo processo, pois a situação fática narrada estaria protegida pela liberdadede manifestação do pensamento e, portanto, não poderia ser punida.28

Como se observa, foi afastada a prática de suposto delito contra a se-gurança nacional por estar a conduta protegida pelo direito fundamentalà manifestação do pensamento. A liberdade de expressão teve a força demodificar a interpretação e a aplicação da Lei de Segurcmça Nacional nocaso concreto, adequando-a ao novo espírito democrático, num interes-sante exemplo que fortaleceu enormemente a democracia brasileira.

De modo semelhante, o STF, ao julgar o Habeas Corpus 83125/DF,em 16/9/2003, teve a oportunidade de trancar inquérito policial militarde um historiador que havia publicado, já sob a égide da CF/88, um livrointitulado Feridas da ditadura militar, no qual criticava ferrenhamente asForças Armadas no período do regime militar. No livro, o autor afirmouque existiam "militares criminosos e picaretas", "farsantes que se acham

28 Eis um trecho do voto: "O teor da petição em referência, longe de evidenciar supostas práticasdelituosas contra a segurança nacional, alegadamente cometidas pelos jornalistas mencionados,traduz, na realidade, o exercício concreto, por esses profissionais da imprensa, da liberdade deexpressão e de crítica, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República,

que assegura, ao jornalista, o direito de expender crítica, ainda que d€5favorável e exposta emtom contundente e sarcástico, contra quaisquer pessoas ou autoridades. Ninguém ignora que,no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repres-são penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica - por mais dura que seja - revele-se

inspirada pelo interesse público e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de umaliberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF,art. 5º, Iv, c/c o art. 220)."

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290 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

acima da lei", bem como narrou a prática de dIversos crimes ecológi-cos, torturas, experiências médicas ilegais com prisioneiros, assassina-tos, estupros, sequestros, entre outros delitos, supostamente praticadospor militares.

Em razão desse livro, o historiador foi denunciado, perante a JustiçaMilitar, por haver cometido o crime previsto no art. 219 do Código PenalMilitar (Decreto-lei nQ 1.001, de 21 de outubro de 1969), que prevê o cri-me de "ofensa às forças armadas": "Propalar fatos, que sabe inverídicos,capazes de ofender a dignidade ou abalar crédito das Forças Armadas oua confiança que estas merecem do público. Pena - detenção, de seis me-ses a um ano."

No julgamento, o STF, além de entender que não estava presente oelemento subjetivo do tipo ("que sabe inverídicos"), decidiu que a publi-cação do livro estaria protegida pela liberdade de expressão. Na ementado julgado, ficou assentado que "a liberdade de expressão constitui-se emdireito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposiçãode fatos atuais ou históricos e a crítica". 29 Logo, a norma penal não pode-

29 Na Alemanha, houve um caso parecido (caso "Soldados são assassinos" - "Soldaten Sind 

 Morder"), em que estava em jogo a liberdade de expressão do pensamento e a proteção dahonra de militares. Nesse caso, que ficoy. bastante conhecido na literatura especializada so-bre direitos fundamentais, vários cidadãos foram processados e condenados criminalmente porinjúria por haverem participado, de várias maneiras diferentes, de protestos contra militares,defendendo, em síntese, através de manifestos escritos (faixas, panfletos, adesivos, cartas etc.),que soldados são assassinos ou são assassinos potenciais. Inconformados com as sanções aplica-das, os cidadãos condenados ingressaram com Reclamações Constitucionais, perante o TribunalConstitucional Federal, alegando que aqueles manifestos estariam protegidos pela liberdade deexpressão e do pensamento. O TCF acolheu as Reclamações Constitucionais, decidindo que ostribunais ordinários não haviam procedido a uma análise objetiva e consistente dos fatos, à luzda liberdade de expressão: "As declarações pelas quais os reclamantes foram condenados por

injúria gozam da proteção do Art. 5 I 1 GG. Essa norma constitucional dá a todos o direito delivremente expressar e divulgar seu pensamento por palavra, escrito ou imagem. Pensamen-tos são, diferentemente de afirmações de fatos, caracterizados pelo posicionamento ideológicosubjetivo daquele que se expressa sobre o objeto da expressão (cf. por último BVerfGE 90, 241[247 et seq.]). Eles contêm seu julgamento sobre fatos, ideias ou pessoas; a proteção do direito

fundamental se refere a esse posicionamento pessoal. Por isso ele existe, independentemente deser a expressão racional ou emocional, fundamentada ou sem base alguma e se é consideradapor outros como útil ou prejudicial, valiosa ou sem valor (BVerfGE 30,336 [347]; 33, 1 [14];61, 1 [7]). A proteção não se refere apenas ao conteúdo da expressão, mas também à sua forma.Pelo fato de ser formulada de modo polêmico ou ofensivo, ela não deixa de fazer parte da área

de proteção do direito fundamental (BVerfGE 54,129 [138 s.]; 61,1 [7 s.]). Além disso, prote-

gida é também a escolha do local e hora da expressão. Aquele que se expressa não tem apenaso direito de manifestar seu pensamento. Ele também pode escolher aquelas circunstâncias apartir das quais espera conseguir a maior divulgação ou o maior efeito possível da divulgação

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 291

ria punir um historiador que estava tão somente exercendo seu direito de

crítica, ainda que de modo exagerado.

O que se deve extrair desses exemplos é que a Constituição de 88acarretou o surgimento de uma nova ordem jurídica. Ela é o "marco zero"do sistema normativo. Toda a legislação produzida antes da sua promul-gação deverá assimilar o novo espírito ético-constitucional, sob pena denão ser recepcionada. Da mesma forma, os juristas deverão constante-

mente exercer um juízo crítico em relação a essas leis, de modo a adequá-las à atual realidade democrática.

13.3 CONTROLE CONCENTRApO VERSUS CONTROLE DIFUSO

A interpretação dos direitos fundamentais, geralmente, é voltada parao caso concreto. Ou seja, o juiz analisará os argumentos apresentados pe-las partes, diante de um fato ocorrido, e irá dizer quem tem razão naquelasituação. É o que se chama de interpretação tópica.30

A tópica é plenamente compatível com o controle difuso de constitu-cionalidade, no qual todo juiz tem a missão de realizar a análise da com-

patibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição, invalidandoos que forem incompatíveis, com efeitos apenas para aquele caso especí-

de seu pensamento. No caso das expressões que fundamentaram as decisões condenatórias emface dos reclamantes por injúria, trata-se de pensamentos nesse sentido, que sempre estão soba proteção do direito fundamental. Com suas expressões, segundo as quais soldados seriam as-

sassinos ou assassinos potenciais, os reclamantes não fizeram afirmações sobre soldados certose determinados que teriam cometido assassinato no passado. Muito mais expressaram um juízode valor sobre soldados e sobre a profissão de soldado, que em certas circunstâncias força aohomicídio. Os tribunais (instanciais) penais consideraram a expressão como sendo um juízode valor, não uma afirmação de fatos. Existe, na condenação por causa dessas expressões, umaintervenção na área de proteção do direito fundamental da liberdade de expressão do pensa-mento" (SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional

Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006).30 A tópica, explica BOVANIDES, é um método que parte do "problema à sua solução", que

  já era utilizado por ARISTÓTELES, mas foi, modernamente, revitalizada por THEODORVIEHWEG, em 1953. Em suas palavras: a tópica seria "uma técnica de investigação de premis-

sas, uma teoria da natureza de tais premissas bem como de seu emprego na fundamentação doDireito e, enfim, uma teoria de argumentação jurídica volvida primariamente para o problema,para o caso concreto, para o conceito de 'compreensão prévia' (Vorverstdndnis), único apto afundamentar um sistema material do direito, em contraste com o sistema formal do deduti-vismo lógico, carente de semelhante fundamentação" (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito

Constitucional, p. 454).

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292 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

fico. Por isso se diz que o controle difuso é concreto ou incidental ou in-

direto, demonstrando que a análise da constitucionalidade é apenas uma

questão acessória dentro de uma discussão fática principal.

Ocorre que o Brasil, conforme visto, adota um controle misto de cons-

titucionalidade. Além do modelo difuso, há ainda o controle concentrado,

através da via direta, em processo objetivo decidido pelo STE No modelo

concentrado, o STF analisa a constitucionalidade dos atos normativos em

abstrato, ou seja, sem qualquer ligação com um caso concreto. Aliás, atual-mente, existe até mesmo uma tendência de se valorizar o controle concen-

trado de constitucionalidade, já qile ele prestigia a segurança jurídica, ga-

rantindo maior isorlomia, pois seus efeitos valem para todos (erga omnes),

muitas vezes com efeito vinculante.

Apesar disso, ainda subsiste a importância do controle difuso para po-

dar eventuais injustiças que a aplicação da norma, no caso concreto, pode

gerar. Dito de outra forma: uma lei pode ser abstratamente constitucio-

nal/proporcional/válida, mas, na casuística, pode gerar efeitos indeseja-

dos, cabendo ao juiz, através do controle difuso, corrigir essas situações

de injustiças pontuais na aplicação da norma.

Quem captou com precisão esse fenômeno foi a Min. Cármen Lúcia,

do STF:

"a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitu-

cionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos con-

cretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do

direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social 'a quem

dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social', te-

nham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da

pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria

manutenção ou de tê-la provida por sua família".31

No caso específico, estava sendo discutida a validade de uma sen-

tença de um juiz federal que desrespeitou a autoridade da decisão pro-

ferida pelo STF, na ADIn 1.232/DE Na referida ADln, o STF declarou,

com efeito vinculante e erga omnes, a constitucionalidade do art. 20, S

3º, da Lei nº 8.742/93, cuja redação é a seguinte: "considera-se incapaz

de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a

31 STF, Rei nº 3.805/SP' reI. Min. Cármen Lúcia, DJ18/10/2006.

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 293

família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do

salário-mínimo" .

A citada lei regulamenta o disposto no artigo 203, inc. \( da Constitui-

ção Federal, que garante benefício mensal de um salário-mínimo aos por-

tadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de

prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua falllllia.

Vários juízes, apesar da decisão do STF que reconheceu a constitu-

cionalidade da Lei nº 8.742/93, estão julgando que a impossibilidade da

própria manutenção, por parte dos portadores de deficiência e dos idosos,

que autoriza e determina o benefício assistencial de prestação continuada,

não se restringe à hipótese da renda familiar per capita mensal inferior a

1/4 do salário mínimo, podendo caracterizar-se por concretas circunstân-

cias outras, que devem ser demonstradas ao longo do processo.32

Curiosamente, o próprio STP tem aplaudido a postura dos juízes que

assim agem e está indeferindo, sistematicamente, as reclamações do INSS

contra as sentenças que desrespeitam a autoridade da decisão proferida

na ADIn 1.232/DE

Essa desobediência generalizada é um caso interessante em que o con-

trole difuso de constitucionalidade está ocasionando uma mutação cons-titucional de posicionamento já firm~do em controle concentrado. O Min.

Gilmar Mendes, de certo modo, captou esse fenômeno:

"O Tribunal [STF] parece caminhar no sentido de se admitir que o crité-

rio de 1/4 do salário-mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicati-

vos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão

do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V,da Constituição.

Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão

proferida na Rcl2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por

omissão do ~ 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, diante da insuficiência de cri-

térios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover

a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art.

203, inciso V,da Constituição.

A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que

vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser re-

veladora de um processo de inconstitucionalização dõ ~ 3º do art. 20 da Lei

nº 8.742/93."33

32 Aliás, até o próprio STJ tem decisões nesse sentido, nunca elara afronta à decisão do STE

Entre outros: STJ, AGA 521467, reI. Min. Paulo Medina, j. 18/11/2003.

33 STF, Rei. 4374/PE, reI. Min. Gilmar Mendes, 1º/2/2007.

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294 Curso de Direitos Fundamentais • Marmelstein

Outro exemplo semelhante ocorreu com a Ação Declaratória de Cons-

titucionalidade nº 4, que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e

com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qual-

quer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública,

que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade

do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10/9/97. Em outras palavras, proibiu-se aos

  juízes, entre outras coisas, a concessão de antecipação de tutela contra a

Fazenda Pública que resultasse em aumento de vantagens para os servi-

dores públicos.

Apesar dessa decisão, o STF tem admitido a concessão de antecipação

de tutela, mesmo em face da vedação legal, nas situações em que a de-

negação da medida antecipada possa comprometer, injustificadamente, a

efetividade do processo.34

Desse modo, mesmo que o STF tenha declarado, em sede de controle

concentrado, com efeito vinculante e contra todos, que determinada nor-

ma é constitucional, é possível que o juiz, no caso concreto, diante de pe-

culiaridades de uma situação a ser julgada, afaste a aplicação dessa lei, se,

na casuística, resultar em flagrante injustiça incompatível com os valores

constitucionais. O importante é que o juiz apresente argumentos novos

para não aplicar a lei, não podendo simplesmente reproduzir as alega-ções de inconstitucionalidade que já foram rejeitadas pelo STF no contro-

le concentrado. O descumprimento da decisão proferida pelo STF só por

capricho pessoal do juiz não é aceitável, já que o Supremo é, no final das

contas, o "guardião da Constituição".

O mesmo raciocínio vale para as chamadas súmulas vinculantes. Nada

impede que a súmula vinculante deixe de ser aplicada em um caso concre-

to se a sua aplicação gerar uma situação de inconstitucionalidade ainda

pior. Nesse caso, o ideal,é que o juiz justifique detalhadamente por que

não está aplicando a súmula vinculante.

34 Por exemplo: STF, Rcl-Agr 1132/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 23/3/2000. Eis a ementa:"não se justifica a concessão de medida liminar, em sede de reclamação, se a decisão de que

se reclama - embora não observando a eficácia vinculante que resultou do julgamento de ação

declaratória de constitucionalidade (CF, art. 102, 9 22) - ajustar-se, com integral fidelidade, à

  jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal no exame da questão de fundo (autoapli-

cabilidade do ano 40, 9 5º, da Constituição, na redação anterior à promulgação da EC nº 20/98,

no caso). - A eventual outorga da medida liminar comprometeria a efetividade do processo, por

frustrar, injustamente, o exercício, por pessoa quase nonagenária, do direito por ela vindicado,

e cuja relevância encontra suporte legitimador na própria jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal."

A Supremacia dos Direitos Fundamentais 295

Nunca se deve perder de visa que o juiz constitucional, comprometido

com os direitos fundamentais, tem a obrigação de sempre buscar a justiça

do caso concreto, mas sempre com base nos valores constitucionais.