da teologia À tÉcnica: benjamin lendo mallarmÉ

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Revista do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFOP ISSN: 2526-7892 ARTIGO DA TEOLOGIA À TÉCNICA: BENJAMIN LENDO MALLARMÉ 1 Romero Freitas 2 , Resumo: O artigo procura chamar a atenção para a riqueza sutil da leitura benjaminiana de Mallarmé em Rua de mão única e no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. Pretende-se mostrar como a interpretação benjaminiana de Um lance de dados e da estética da “arte pela arte” deu origem a interessantes reflexões sobre a crise da autonomia da arte e sobre a possibilidade de sua superação. Palavras-chave: Benjamin; Mallarmé; l'art pour l'art; montagem/construção. Abstract: This paper seeks to draw attention to the subtle richness of the Benjaminian reading of Mallarmé in “One-Way Street” and in the essay on technological reproducibility. It is intended to show how the Benjaminian interpretation of “Un coup de dés” and of the aesthetics of “art for art's sake” generated interesting reflections on the crisis of the autonomy of art and the possibility of its overcoming. Keywords: Benjamin; Mallarmé; l'art pour l'art; montage/construction. 1 From theology to technique. Benjamin reading Mallarmé 2 Professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. Endereço de e-mail: [email protected]

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Romero Freitas 2,
Resumo:
O artigo procura chamar a atenção para a riqueza sutil da leitura benjaminiana de Mallarmé em Rua de mão única e no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. Pretende-se mostrar como a interpretação benjaminiana de Um lance de dados e da estética da “arte pela arte” deu origem a interessantes reflexões sobre a crise da autonomia da arte e sobre a possibilidade de sua superação.
Palavras-chave: Benjamin; Mallarmé; l'art pour l'art; montagem/construção.
Abstract:
This paper seeks to draw attention to the subtle richness of the Benjaminian reading of Mallarmé in “One-Way Street” and in the essay on technological reproducibility. It is intended to show how the Benjaminian interpretation of “Un coup de dés” and of the aesthetics of “art for art's sake” generated interesting reflections on the crisis of the autonomy of art and the possibility of its overcoming.
Keywords: Benjamin; Mallarmé; l'art pour l'art; montage/construction.
1 From theology to technique. Benjamin reading Mallarmé 2 Professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. Endereço de e-mail: [email protected]
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Nossos bares e ruas metropolitanas, nossos escritórios e quartos alugados, nossas estações de trem e fábricas pareciam aprisionar-nos de modo desesperançado. Então veio o cinema com a dinamite dos décimos de segundo e explodiu esse mundo carcerário, de modo que nós agora podemos empreender tranquilas viagens aventurosas entre os seus escombros espalhados na vastidão.
Walter Benjamin
Dinamite fotográfica
A presença de Mallarmé no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica tem sido pouco explorada. Na interpretação de Benjamin, o projeto estético de Mallarmé situaria a obra de arte no limiar do declínio da aura: a “poesia pura” (entendendo- se “pureza” como negatividade) constituiria uma espécie de entre-deux onde coabitariam de modo não inteiramente pacífico a criação artística que ainda depende do elemento teológico (a “arte pela arte”) e a experimentação estética que se libertou do valor da “autenticidade” (a poesia como constelação musical e tipográfica). Isso é o que se depreende de uma passagem que em geral não se lê com o devido cuidado:
o valor único da obra de arte “autêntica” tem sua fundamentação sempre no ritual. Como quer que essa seja transmitida, ela ainda é reconhecível, nas formas mais profanas do culto à beleza, como ritual secularizado. [...] Quando, com o surgimento do primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário, a fotografia (simultaneamente ao despontar do socialismo), a arte percebeu a proximidade da crise, que, após cem anos, tornou-se impossível de ignorar, ela reagiu com a doutrina da l’art pour l’art, que é uma teologia da arte. Diretamente a partir dela surgiu, então, uma teologia negativa, na configuração da ideia de uma arte “pura”, que recusa não apenas toda função social, mas também toda determinação mediante um tema concreto. (Na literatura, Mallarmé foi o primeiro a alcançar essa posição).3
Aparentemente, o que Benjamin nos diz nesse trecho não é muito diferente do que se lerá depois em autores tão diversos como Hugo Friedrich, Octávio Paz e Luiz Costa Lima4. Mallarmé teria prenunciado o papel da arte no século XX ao conferir às suas criações poéticas um duplo destino: por um lado, haveria o
3 BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Band VII: Nachträge. Teilband 1, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 356. 4 Cf. FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991; PAZ, Octavio. Os signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976. LIMA, Luís Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
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esvaziamento da transcendência imanente das obras de arte, isto é, daquilo que faz da obra de arte um substituto para a transcendência divina; por outro lado, combatendo a banalização resultante da perda dessa transcendência imanente, haveria uma “reentronização” da arte a partir de sua “pureza”, isto é, de sua negatividade em relação a qualquer conteúdo não-artístico.
Cabe-nos perguntar, contudo, sobre uma peculiaridade da leitura de Benjamin: o que esse duplo destino da obra mallarmeana (auge da autonomia da arte e começo do seu declínio) teria a ver com a invenção da fotografia? É nesse ponto que a leitura de Benjamin torna-se original, pois, como veremos, Benjamin foi capaz de inserir Mallarmé numa moldura bem maior que a da “poesia pura”: o limiar (ou a passagem) entre a aparência e o jogo, a “primeira” e a “segunda técnica”, o teatro tradicional e o cinema, a escrita linear e a escrita “ideogramática”. Para criar essa interpretação, Benjamin partiu de uma hipótese bem simples: a “poesia pura” nasce de uma defesa da arte aurática diante do abalo produzido pela invenção da fotografia. Associando essa hipótese com uma formulação sobre Mallarmé em Rua de mão única, veremos que Benjamin apresenta um esboço de uma teoria daquilo que poderíamos chamar de a poesia na era da sua construtibilidade técnica. O interesse de se investigar essa teoria é evidente, pois, no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin não vai muito além de dizer que a revolução tecnológica da literatura se deu com a invenção da imprensa. Lido em conjunto com Rua de mão única, esse ensaio revela uma posição mais complexa, na qual o surgimento de novas técnicas de reprodução de textos e imagens (como o cartaz publicitário) interfere na própria forma como a poesia passa a ser lida e escrita.
Como veremos na sequência, a leitura que Benjamin faz de Mallarmé nesses dois textos parece apontar para duas reações diferentes diante do abalo fundamental representado pela fotografia (e pelo seu irmão mais novo, o cinema): uma estética da crise da aparência, que se exprime numa espécie de “teologia negativa da arte”; e uma estética da superação dessa crise, que se constitui através da exploração do elemento lúdico, construtivo e experimental das obras de arte.
A polpa deliciosíssima do nada
Benjamin utilizou várias vezes a expressão “bela aparência” para designar o elemento decisivo da estética tradicional. Como poderíamos avaliar a poética de Mallarmé a partir dessa noção? Tomemos um exemplo concreto: em termos benjaminianos, talvez não seja incorreto dizer que um poema como A Tumba de Edgar Poe seria uma forma de criação artística na qual já não predomina inteiramente a estética da bela aparência, muito embora esse poema tão pouco represente uma ruptura com esta última. A bela aparência sobrevive ainda na imagem do poeta como herói capaz de doar “Um sentido mais puro às palavras da tribo”, mas aí ela já está atrofiada devido ao fracasso intrínseco de toda atividade poética na modernidade (se pensarmos essa atividade como uma tentativa de recriar uma instância transcendente no “tempo de indigência” de que falava Hölderlin). O resultado final da atividade poética é, portanto, “Calmo bloco caído
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de um desastre obscuro”, túmulo do poeta heroico, lápide (e verso lapidar) que sinaliza a morte da significação transcendente da poesia no espaço literário do mundo moderno.
O mesmo procedimento pode ser encontrado no verso inicial do poema Brinde: “Nada, esta espuma, virgem verso”. O que se opera aqui, neste verso incrivelmente sintético? Ao iniciar com a palavra “Nada” (um signo decisivo na metafísica poética de Mallarmé), ao justapor esse Nada à virgindade do verso (tarefa impossível da poesia “pura”) e ao associá-lo à substância efêmera da espuma (o próprio poema, que não é mais do que um brinde, um gesto evanescente), esse verso nomeia de modo crítico a própria ilusão que o constitui, a sua bela (mas enganadora) aparência. Talvez não seja um exagero ler Brinde como uma homenagem póstuma ao valor de culto da obra de arte.5
Se esse brinde é de fato uma despedida, o que vem depois, em termos benjaminianos, é uma estética do jogo. Rigorosamente falando, não há uma “morte da aparência” e um “nascimento do jogo”, pois jogo e aparência são, para Benjamin, as duas dimensões fundamentais da arte. Mas há um deslocamento da ênfase: passamos da hegemonia da aparência para a hegemonia do jogo. Essa passagem de uma hegemonia à outra pode ser entendida a partir de uma importante utilização do conceito de “bela aparência” no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. (Note-se que, nesse caso específico, há um uso explícito do conceito, pois a noção de bela aparência está de certa forma implícita várias vezes, quando Benjamin fala de autenticidade, ritual, valor de culto, eternidade e aura). Trata-se de um parágrafo que discorre sobre o conceito de montagem cinematográfica utilizando uma comparação entre o desempenho dos atores no teatro e no cinema:
Seu desempenho [do intérprete cinematográfico] não é unitário mas, antes, composto de vários desempenhos particulares. Ao lado de questões contingentes como o aluguel do estúdio, a disponibilidade de outros atores, a cenografia, etc., são as necessidades elementares do maquinário que dissociam a atuação do intérprete em uma série de episódios montáveis. [...] Pode-se exigir de um intérprete que ele se assuste após ouvir baterem à porta. Talvez esse estremecimento não se dê como desejado. O diretor pode então recorrer ao expediente de, quando o intérprete estiver ocasionalmente de novo no estúdio, mandar disparar um tiro às suas costas, sem avisá-lo. O espanto do intérprete nesse momento pode ser filmado e montado no filme. Nada demonstra de modo mais drástico que a arte abandonou o reino da “bela aparência”, que por muito tempo foi considerado o único no qual ela poderia florescer.6
5 No caso dos dois poemas, citamos as versões presentes em CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 33 e 67. 6 BENJAMIN, 1991, p. 368.
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Pode-se interpretar esse trecho a partir do conceito de “inconsciente ótico”7. O inconsciente ótico de que fala Benjamin no ensaio é (dentre outras coisas) uma espécie de ampliação tecnológica do campo de percepção da humanidade. Os exemplos dados por Benjamin são a câmera lenta, a aceleração da imagem e a “perspectiva de voo de pássaro” (Vogelperspektive). Mas podemos pensar também, a partir do trecho supracitado, na atuação involuntária ou “inconsciente” daqueles que não sabem que estão sendo filmados. Podemos nos lembrar do fato de que no cinema contemporâneo – tanto na ficção como no documentário – é frequente o uso de imagens feitas por câmeras de segurança de todos os tipos, desde as que “observam” pessoas nas ruas até as que registram a decolagem e o pouso de aviões8.
A fragmentação da experiência do ator mostra-nos como Benjamin vincula técnica e estética na sua teoria da arte contemporânea. O que a montagem faz, ao cortar e colar pedaços de cenas, é jogar livremente com o material da filmagem. A autenticidade da experiência, que é essencial na atuação teatral naturalista, é substituída por um princípio construtivo. Deste modo, o cinema justapõe fragmentos de filmagens, como os dadaístas justapunham palavras recortadas do jornal ou como o próprio Benjamin justapõe citações e comentários críticos. Até aqui, nada de muito novo. A novidade introduzida por Benjamin está na interpretação da montagem como um caso particular do jogo, atividade mimética que caracteriza toda a produção artística, ao lado da aparência.
Técnica, jogo e montagem
Jogo e aparência são, no dizer de Benjamin, “os dois lados da arte”. Isso é o que se lê numa importantíssima nota da versão mais interessante do ensaio9, que Benjamin acrescenta ao final da passagem citada sobre o ator que atua “inconscientemente” no cinema:
Os dois lados da arte, a aparência e o jogo, estão dormindo dentro da mímesis, bem próximos, dobrados um dentro do outro, como as membranas de uma semente. Essa polaridade, naturalmente, só pode interessar ao dialético se ela tiver um papel histórico. Mas isso é, de fato, o que acontece. E esse papel é determinado pela contraposição, na história universal, entre a primeira e a segunda técnica. A aparência é, com efeito,
7 Cf. BENJAMIN, 1991, p. 374. 8 Um exemplo bem conhecido é o filme Der Riese (Alemanha, 1981, 81 min), do cineasta alemão Michael Klier, que foi feito exclusivamente a partir de imagens produzidas por câmeras de sistemas de segurança. 9 Trata-se da segunda versão. Sobre a história da redação do ensaio e sobre os contextos de surgimento das cinco versões que chegaram até nós, ver BENJAMIN, Walter. Werke und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe - Band 16: Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. Berlim: Suhrkamp, 2013.
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o esquema mais distante, mas com isso também o mais estável de todos os tipos de processos mágicos da primeira técnica, o jogo, o reservatório inesgotável de todos os tipos de processos experimentais da segunda técnica. Nem o conceito de aparência, nem o conceito de jogo são estranhos à estética tradicional; e, na medida em que o par conceitual “valor de culto” e “valor de exposição” se disfarça no primeiro par conceitual mencionado, ele não diz nada de novo. Mas isso muda de uma vez só, tão logo esses conceitos percam a sua indiferença com relação à história. Com isso, eles levam a um discernimento prático. Este nos diz: nas obras da arte, o que surge com o murchar da aparência, com o declínio da aura, é um ganho gigantesco para o espaço de jogo ou campo de ação [Spiel-Raum]. O mais amplo espaço de jogo ou campo de ação [Spielraum] se inaugurou no cinema.10
Lendo essa nota em conjunto com outros ensaios da época, perceberemos que, de fato, Benjamin pensa as mutações decisivas do mundo da arte no início do século XX (a “nova barbárie” de Loos, Klee e Scheerbart, as “saladas de palavras” dadaístas, o teatro anti-naturalista de Brecht, a pintura cubista, o surrealismo) como eventos distintos que podem ser entendidos como expressão de um mesmo princípio: a construção por coordenação, que podemos chamar de “colagem”, “montagem” ou (nos termos de Adorno) “paratáxis”. Essencial para nós, no entanto, é a interpretação desse princípio como um dos “processos experimentais da segunda técnica” e como um “ganho gigantesco para o espaço de jogo ou campo de ação”, pois essa interpretação nos remeterá diretamente à exploração lúdica e experimental do espaço da página, tornando possível uma extrapolação da linearidade tipográfica do verso nesse “espetáculo ideográfico de uma crise ou aventura intelectual”11 que constitui o poema Um lance de dados.
Antes de passarmos à interpretação benjaminiana de Um lance de dados, devemos discutir um problema teórico. Em que sentido a ampliação do espaço de jogo ou campo de ação se afasta da estética da bela aparência? Benjamin não fala exatamente de ruptura, mas de uma predominância de um elemento sobre outro. Tal predomínio pode ser entendido da seguinte forma: trata-se de um segundo desencantamento da natureza, que corresponde àquilo que Benjamin chama de “segunda técnica”. O primeiro desencantamento da natureza tem início com a dominação mágica do ambiente ameaçador no pensamento mítico, desenvolve-se de forma sutil na desmagicização do mundo natural promovida pelos contos populares medievais e chega ao auge com a crítica do belo natural na filosofia hegeliana. A ideia de bela aparência é seu principal resultado estético-filosófico, pois ela nasce precisamente da operação de “transferência” dos poderes mágicos da natureza para o domínio da arte.
Paralelamente a esse primeiro desencantamento da natureza, há um processo que constitui o seu avesso: a progressiva dominação da natureza desencantada por uma forma de racionalidade que se torna cada vez mais “espiritual” (isto é,
10 BENJAMIN, 1991, p. 368-369. 11 VALÉRY, Paul. Apud CAMPOS, Augusto, et al., 1974, p. 187.
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separada do mundo natural). O processo como um todo (seus dois lados) é aquilo que Benjamin chamou de “primeira técnica”. Inversamente, o segundo desencantamento da natureza corresponde ao que Benjamin chamou de “segunda técnica”: uma forma de estabelecermos relações não violentas com a natureza (ou mesmo uma espécie de “libertação da natureza”, como podemos ler na XI Tese de “Sobre o conceito da história12), que seria possível por meio de potencialidades intrínsecas das artes de vanguarda (como o dadaísmo, o surrealismo e o teatro épico) e que estaria presente também na própria natureza da montagem cinematográfica.
Como testemunho do primeiro desencantamento da natureza, podemos tomar a analogia entre arte e natureza presente em uma das obras fundadoras da estética como disciplina independente, a terceira Crítica de Kant. No parágrafo 45, Kant faz com que a aparência atue como o elemento mediador entre a arte e a natureza, fazendo confluir na obra de arte tanto a artificialidade do que é fabricado quanto o caráter não artificial, substancial ou suprassensível do que aparece através dessa fabricação. Nas palavras de Kant:
Diante de um produto da arte bela tem-se que tomar consciência de que é arte e não natureza. Todavia, a conformidade a fins na forma do mesmo tem de parecer [scheinen] tão livre de toda coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples natureza.13
De um ponto de vista benjaminiano, pode-se dizer que a ideia de beleza artística atua, aqui, de modo implícito, como um análogo sensível da natureza suprassensível, ou seja, como forma secularizada de um elemento mítico. Dito de outra forma: a arte é a mais digna herdeira da antiga magia natural. Ela é apenas uma fabricação humana, mas tem um “brilho” próprio (scheinen pode significar tanto “brilhar” quanto “parecer”) que a envolve no sortilégio da natureza, ou seja, que faz dela um sucedâneo moderno do pensamento mítico.
Essa digressão em torno de Kant é necessária para entendermos o que Benjamin chamou de “primeira técnica”, pois, com essa noção, ele pretende designar tanto o domínio da natureza pela tecnologia moderna quanto a técnica própria da estética da aparência, capaz de produzir objetos “pseudo-mágicos” que são justamente uma espécie de refúgio do sagrado na era do controle da natureza pela razão. Dito de outra forma: o pensamento mágico se seculariza e se torna arte no exato momento em que o domínio técnico de todas as coisas já não lhe confere nenhum lugar no mundo. Que a estética tenha surgido na era da racionalidade instrumental não é, portanto, nenhuma coincidência.
12 Cf. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Band I: Abhandlungen. Teilband 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974 a, p. 699. 13 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 172.
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Um segundo desencantamento da natureza, que corresponde ao que Benjamin chamou de “segunda técnica”, pode ser localizado no texto que serve de epígrafe ao presente trabalho:
Nossos bares e ruas metropolitanas, nossos escritórios e quartos alugados, nossas estações de trem e fábricas pareciam aprisionar-nos de modo desesperançado. Então veio o cinema com a dinamite dos décimos de segundo e explodiu esse mundo carcerário, de modo que nós agora podemos empreender tranquilas viagens aventurosas entre os seus escombros espalhados na vastidão.14
A “dinamite” do cinema tem um poder libertador porque ela coloca o homem de igual para igual com o cenário urbano moderno: ela transpõe o fosso entre o homem e a técnica, criado pela dimensão mítica da primeira técnica. A cidade tornou-se espaço de jogo ou campo de ação porque um meio tecnológico original pôde mostrá-la em sua materialidade oculta15 (“inconsciente ótico”), desencantando o fetichismo da mercadoria (que dominava os espaços públicos na forma da propaganda) e a aura da obra de arte (que era o duplo dos interiores burgueses). É nesse sentido que tanto o interior quanto o exterior deixam de ser um “mundo carcerário”.
Uma figura de transição entre o primeiro e o segundo desencantamento pode ser localizada na negatividade implícita na noção de “poesia pura”. Em termos gerais, essa noção poderá ser bem compreendida se levarmos em consideração algumas observações de Hugo Friedrich. Segundo A estrutura da lírica moderna, a ideia de “pureza” presente em Mallarmé significa essencialmente “o prescindir de matérias da experiência cotidiana, de conteúdos didáticos e outros utilitários, de verdades, de sentimentos corriqueiros, da embriaguez do coração”; a “poesia pura” também estaria ligada à música (não só à música dos sons, mas também à música da “vibração dos conteúdos intelectuais da poesia e de suas tensões abstratas”) e à temática do vazio, da negação e do Nada: “o conceito de poésie pure se insere de forma coerente na disposição fundamental da lírica mallarmeana. É, em seu significado privativo, o equivalente teórico poético do Nada, em torno do qual ela gira”.16
Friedrich não se engana ao enfatizar a musicalidade da poesia de Mallarmé. Mas ele silencia (provavelmente, de modo deliberado17) sobre aquilo que é sem dúvida um dos seus aspectos mais relevantes: o seu aspecto gráfico ou “ideogramático”.
14 Cf. BENJAMIN, 1991, p. 376. 15 Talvez possamos associar essa “materialidade oculta” à forma como Eugène Atget fotografou os “vazios” de Paris. Sobre a interpretação benjaminiana de Atget, ver “Pequena história da fotografia” in BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Band II: Aufsätze, Essays, Vorträge. Teilband 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977. 16 FRIEDRICH, 1991, p. 135-136. 17 No prefácio à segunda edição de seu livro (1966), Friedrich escreveu: “a chamada ‘poesia concreta’, com seu entulho de palavras e sílabas jogadas mecanicamente, permanece, graças à sua esterilidade, totalmente fora de consideração”. FRIEDRICH, 1991, p. 14.
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Não só em Um lance de dados, como também no inconcluso Para um túmulo de Anatole ou em poemas breves como Leque de Madame Gravolett, Mallarmé cria o poema a partir de uma distribuição não-linear das palavras na página. Em termos benjaminianos, isso significa uma revolução que testemunha o início da era em que o espaço de jogo ou campo de ação (“segunda técnica”) predomina sobre a contemplação da beleza (“primeira técnica”). Brinde e A Tumba de Edgar Poe podem ainda apresentar uma beleza esotérica ou negativa (ou a beleza daquilo que desaparece, como Benjamin diz a respeito nas narrativas de Nikolai Leskov), mas Um lance de dados e outros poemas e fragmentos já pertencem a uma outra época, justamente aquela que Benjamin chamou de “era da reprodutibilidade técnica”.
Teologia negativa da arte
A associação da divisa l’art pour l’art com a ideia de uma teologia da arte não introduz nada de muito novo. Em termos benjaminianos, podemos considerar essa versão da doutrina da autonomia da arte uma espécie de “teologia secularizada da arte”, considerando esta última noção como um equivalente da expressão “formas profanas de culto à beleza” (ver citação de Benjamin sobre Mallarmé no início deste trabalho). A verdadeira ruptura, portanto, deve estar no elemento da negatividade. Dito de outra forma: quando Benjamin fala em “teologia da arte”, parece apontar para uma espécie de continuidade oculta entre a antiga inserção da obra de arte no âmbito do ritual e a sua moderna independência em face do culto religioso (em sentido estrito). Nesse processo de transformação, é como se o profano fosse o invólucro do sagrado: não há propriamente ruptura com o elemento teológico, uma vez que a secularização da arte é, nesse caso, uma continuação do ritual por outros meios.
Por essa razão, não há nada de essencialmente incompatível entre os defensores medievais do culto da imagem, como João Damasceno18, e os autores modernos que vêem a arte como forma sensível do absoluto, como Schelling ou Hegel. No primeiro caso, naquilo que podemos chamar de “proto-estética dos teólogos medievais”, Deus se dá a conhecer não apenas por meio das Escrituras, mas também através da imagem de Cristo. Nos termos de João Damasceno: “o Filho é uma imagem viva, natural e imutável de Deus invisível”.19 O culto prestado à imagem de Cristo não constitui nenhuma forma de idolatria, diversamente do que afirmam os iconoclastas, pois “toda honra rendida à imagem reverte, em verdade, ao seu modelo”.20 No segundo caso, na estética propriamente dita, no auge de sua teorização metafísica, o absoluto é o conteúdo que se manifesta na forma artística,
18 Cf. DAMASCENO, João. Discurso apologético contra os que rejeitam as imagens sagradas. In LICHTENSTEIN, Jacqueline. (org.). A teologia da imagem e o estatuto da pintura. São Paulo: Editora 34, 2004. 19 DAMASCENO, 2004, p. 33. 20 DAMASCENO, 2004, p. 38.
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como na célebre definição de Hegel para o conceito de “belo artístico”: “aparência sensível da Ideia”21.
O elemento realmente novo, que afasta Mallarmé da tradição idealista inaugurada por Shaftesbury e levada ao auge por Hegel, é o elemento negativo, que poderíamos chamar também de “sublime”, “decadente” ou “iconoclasta”. Benjamin interpreta essa negatividade como uma resposta reativa da autonomia da arte à invenção das novas técnicas de reprodução. A invenção da fotografia é, portanto, a novidade que opera a primeira mutação decisiva no culto profano da beleza, levando-o a se defender através de uma radicalização da materialidade simbólica das obras, em detrimento do seu conteúdo representacional ou “objetivo”. Só então poderemos falar em “uma teologia negativa na forma da ideia de uma arte ‘pura’, que renega não apenas toda função social, mas também toda determinação através de um tema concreto”.22 O movimento que produz a arte “pura” é um movimento ao mesmo tempo auto-defensivo e auto-destrutivo. É como se a poesia se fechasse sobre as suas próprias formas, instituindo a si própria como objeto de culto, com o intuito de escapar ao destino da arte após a invenção da fotografia, ou seja, o declínio da aura. Esse movimento, no entanto, está destinado ao fracasso: sem objeto, tema ou função, a poesia devora a si mesma; seu momento máximo corresponde ao de sua morte ou de sua nulidade, como se lê em Brinde ou A tumba de Edgar Poe.
A escrita lançada às ruas
Para compreendermos a transformação da crise do verso (que ocorre ainda no domínio da “primeira técnica”) na implosão do verso linear (que já é fruto da “segunda técnica”), devemos relacionar a citação sobre a teologia negativa com um importante fragmento de Rua de mão única. A partir daí será possível identificar também o que podemos chamar de “iconofilia” poética na obra tardia de Mallarmé: não uma libertação de tarefas extrínsecas à poesia (“liberdade de” ou “liberdade negativa”), mas uma auto-afirmação da poesia (“liberdade para” ou “liberdade positiva”), mediante um projeto gráfico “tátil” e construtivo. Se nossa hipótese estiver correta, então poderemos dizer que Mallarmé passa da “iconoclastia” da l’art pour l’art (a negação da arte como aparência sensível do
21 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 126. 22 No original: “eine negative theologie in Gestalt der Idee einer ‘reinen’ Kunst [...], die nicht nur jede soziale Funktion sondern auch jede Bestimmung durch einen gegenständlichen Vorwurf ablehnt” (BENJAMIN, 1991, p. 356). Na linguagem dos místicos medievais, Vorwurf era a tradução de empréstimo para a palavra latina objectum: “aquilo que está diante dos sentidos” (que foi “lançado” diante deles); mais tarde, passou a significar o tema ou assunto de uma obra de arte. Cf. KLUGE, Friedrich. Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. Berlim: de Gruyter, 2002, p. 964.
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absoluto) à “iconofilia” materialista do poema visual (a construção da obra de arte literária a partir de elementos visuais da vida urbana moderna).
No fragmento intitulado “Revisor de livros juramentado”, Benjamin escreveu:
Como se vislumbrando, no âmago da cristalina construção de sua escrita certamente tradicional, a vera imagem do vindouro, Mallarmé no COUP DE DÉS reelaborou pela primeira vez as tensões gráficas do reclame na figuração da escrita [Schriftbild]. Posteriormente, os Dadaístas empreenderam a pesquisa da escrita, mas o seu ponto de partida não era a construtividade, e sim, antes, o acurado reagir dos nervos dos literatos. Por isso, a pesquisa dadaísta é muito menos consistente que a de Mallarmé, oriunda do que havia de mais intrínseco no estilo desse poeta. Fica, assim, patente a atualidade da descoberta, daquilo que Mallarmé, monadicamente, no mais íntimo recesso de seu estúdio, porém em preestabelecida harmonia com todos os eventos decisivos do seu tempo na economia e na técnica, tornou público. A escrita, que tinha encontrado asilo no livro impresso, para onde carreara o seu destino autônomo, viu-se inexoravelmente lançada à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal heteronomia do caos econômico. Eis o árduo currículo escolar de sua nova forma. Se ao longo de séculos, pouco a pouco, ela se foi deixando deitar ao chão, da ereta inscrição ao oblíquo manuscrito jazendo na escrivaninha, ei-la agora que se reergue lentamente do solo. O jornal quase necessariamente é lido na vertical – em posição de sentido – e não na horizontal; filme e anúncio impõem à escrita a plena ditadura da verticalidade.23
Um elemento interessante dessa passagem é o uso de dois termos bem conhecidos do vocabulário de Leibniz. Benjamin utiliza aqui a noção de “harmonia preestabelecida” da mesma forma peculiar com que havia empregado a noção de “mônada” em Origem da peça de luto alemã: ele transfere uma categoria do domínio da metafísica para o domínio da escrita e da história. Seu objetivo é revelar a excepcional atualidade de Um lance de dados, reconhecendo a vida póstuma desse poema na era em que o cinema e a publicidade levaram a escrita para além do livro impresso (devolvendo-lhe a verticalidade que ela possuía antes em templos, inscrições tumulares e obeliscos). Numa palavra, a solidão “monádica” de Mallarmé, típica dos oficiantes modernos de um novo culto literário, conteria (por uma espécie de paralelismo entre público e privado que emula a “harmonia preestabelecida” entre corpos e mentes) imagens involuntárias que remetem ao menos poético e cultual dos mundos: a metrópole capitalista.
O processo urbano de verticalização da escrita derivaria não de um retorno à antiga magia das inscrições mas, antes, da criação de uma nova “magia” econômica: o fetichismo da mercadoria. Uma célebre afirmação do chamado “Projeto das Passagens” poderia nos ajudar a compreender essa questão: “As exposições universais são as estações de peregrinação rumo ao fetiche que é a
23 In CAMPOS, Augusto, et al., 1974, p. 193; BENJAMIN, 1991, p. 102-103.
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mercadoria”.24 Como se situa a poesia de Mallarmé em meio a essas transformações da paisagem cultural e econômica nas grandes cidades? A posição de Mallarmé, segundo Benjamin, será ambígua. Essa ambiguidade pode ser melhor entendida se dividirmos a produção de Mallarmé, artificialmente, em dois momentos. De início, essa produção é “reacionária”, pois recusa o declínio da aura através da trincheira da “arte pela arte”. Num segundo momento, porém, ela é “revolucionária”, pois integra ao poema o processo de “verticalização da escrita” que faz parte da paisagem “pós-aurática” da cidade moderna. Na interpretação de Benjamin, o primeiro momento corresponderia a poemas “negativos” como Brinde e à “teologia negativa da arte” mencionada no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica; o segundo, ao poema Um lance de dados e ao fragmento citado de Rua de mão única (“Revisor de livros juramentado”). Dissemos que essa divisão é artificial porque Benjamin parece apontar, como veremos, para uma ambivalência fundamental de Mallarmé. Os dois momentos devem significar, portanto, duas forças ou duas atitudes.
O efeito singular de Um lance de dados foi ter reelaborado, na sua própria construção gráfica, a situação concreta em que a escrita foi levada às ruas, “arrastada pelos reclames”. Em certo sentido, essa operação transfere ou desloca a realidade heterônoma do “caos econômico” para o imaginário autônomo da poesia, pois ela reorganiza na página impressa, de um modo construtivo, aquilo que é a contraparte imagética do culto da mercadoria: uma proliferação não-linear e vertical de escritas publicitárias (uma espécie de nova escrita hieroglífica, que substitui os obeliscos pelos cartazes). O elemento da autonomia da arte se mantém, e é por isso que Benjamin qualifica essa escrita como “certamente tradicional”. Algo aqui, no entanto, aponta para além da negatividade da “poesia pura”, pois, ao falar de “construção cristalina”, “pesquisa consistente” e “construtividade”, Benjamin apresenta Mallarmé antes como um construtor do que como um destruidor. Para falarmos de forma mais precisa: antes como um artista que constrói a partir da destruição, como em Um lance de dados, do que como um artista que destrói a partir da construção, como em Brinde ou A tumba de Edgar Poe.
Nesse sentido, a comparação de Mallarmé com os dadaístas torna-se o provavelmente o achado teórico decisivo do fragmento “Revisor de livros juramentado”. Ela terá muito a nos dizer, se fizermos uma leitura a partir da distinção entre choque físico e choque moral, tal como a encontramos no ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. As criações dadaístas, voltadas essencialmente contra o gosto burguês, envolviam por isso um “aviltamento fundamental” dos materiais da obra de arte. Ao utilizar materiais como botões de roupa e bilhetes de trânsito, o que se pretendia era a “a não-empregabilidade” das obras de arte enquanto “objetos da imersão contemplativa”. Ao invés do prazer estético contemplativo, o
24 BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Band V: Das Passagen-Werk. Teilband 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982, p. 50.
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que se pretendia com essas obras era produzir uma “veemente distração”25. O dadaísmo destruía, assim, através de um efeito de choque, a aura das obras de arte.
Porém, na medida em que esse choque se orienta pelo objetivo de desafiar o gosto burguês, utilizando o escândalo para combater a arte institucionalizada (“o reagir dos nervos dos literatos”26), ele é apenas um “choque moral”. O “choque físico” surge mais tarde, com a difusão do cinema, pois é no cinema que, pela primeira vez, uma forma moderna de experiência de choque faz parte da própria estrutura técnico-formal da obra de arte. Esse seria o papel da montagem cinematográfica na medida em que ela se constitui essencialmente a partir do choque das imagens entre si, como uma experiência sensorial intrinsecamente descontínua. Essa modalidade tecnológica da experiência de choque é o que tornaria as obras cinematográficas inadequadas para a experiência estética de tipo contemplativo27.
Em relação ao choque físico criado pelo cinema, o choque moral das colagens dadaístas tem uma função de antecipação. O dadaísmo preparou o público para a difusão do cinema, pois as suas anti-obras de arte redescobriram a dimensão tátil da experiência estética. Tal dimensão poderia ser definida da seguinte forma: “tudo o que é percebido, que é sensível, é algo que nos atinge”.28 Choque físico e tatilidade são, como se vê, noções bem próximas29. Ambas são centrais na teoria da percepção artística desenvolvida por Benjamin no final dos anos 20 e ao longo de toda a década de 30. Nesse contexto, o cinema representa o momento histórico em que a percepção tátil se manifesta de modo predominante até mesmo no elemento ótico. (Isso acontece por causa dos choques que impedem a atitude contemplativa – atitude predominante na recepção de obras pictóricas, bem como na percepção aurática em geral.)
Podemos entender melhor, agora, porque o fragmento “Revisor de livros juramentado” associa filmes a cartazes publicitários. Além de uma afinidade evidente, que consiste na sua participação no processo de retorno da escrita à verticalidade, filmes e cartazes têm em comum o seu pertencimento à estética dos choques físicos e da tatilidade. Ambos são filhos do princípio da montagem, que justapõe dois ou mais elementos sem forçá-los a um encadeamento linear (como acontece na escrita em versos ou na prosa tradicional). Nesse sentido, a tatilidade de que fala Benjamin pode ser entendida como uma forma de “emprego a nu do pensamento”, tal como escreveu Mallarmé no prefácio a Um lance de dados. A “cenografia espiritual” das formas nos atingirá antes de qualquer possibilidade de
25 BENJAMIN, 1991, p. 379. 26 BENJAMIN, 1991, p. 379. 27 Cf. BENJAMIN, 1991, p. 378-380. 28 BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Band I: Abhandlungen. Teilband 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974b, p. 464. 29 Outra dimensão importante da “tatilidade” benjaminiana está presente na sua interpretação das “imagens mnêmicas” de Proust, que possuem essencialmente três características: são involuntárias, sensoriais e efêmeras. Cf. GAGNEBIN, Jeanne- Marie. De uma estética da visibilidade a uma estética da tatilidade. In Limiar, aura, rememoração. São Paulo: 34 Letras, 2014.
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contemplação, pois, a partir da livre justaposição dos elementos, “a ficção assomará e se dissipará, célere, conforme à mobilidade do escrito”.30 Seja na página impressa, na tela de cinema ou no papel do cartaz, o princípio da justaposição garantirá a mobilidade da leitura ou da recepção, transformando a experiência estética num novo espaço de jogo ou campo de ação.
Os cartazes enxameiam as ruas das metrópoles e essas ruas são o espaço por excelência dos choques físicos, tal como Benjamin nos mostra no ensaio “Sobre alguns motivos em Baudelaire”. Nunca é demais lembrar que em “Perda da auréola”, o poema em prosa de Baudelaire que é central para a análise de Benjamin, o poeta romântico perde a sua auréola no momento em que atravessava a rua, correndo para não ser atropelado pelos carros31. Não deve ser coincidência, portanto, o fato de que Benjamin, no ensaio sobre as técnicas de reprodução, menciona os “bilhetes de trânsito” que os dadaístas utilizavam em suas colagens. No fragmento “Revisor de livros juramentado”, a grande cidade surge através do reclame, do jornal e do cinema, isso sem esquecermos da economia e da técnica. Podemos facilmente deduzir que os anúncios luminosos e a propaganda política também fazem parte desse amplo leque de objetos visuais tipicamente modernos, que “nos atingem” nas ruas e que são impróprios para a contemplação. Como parte de uma escrita vertical dispersa, onipresente nas grandes cidades, eles pertencem à estética da tatilidade. Por isso, quando Benjamin diz que Mallarmé “reelaborou pela primeira vez as tensões gráficas do reclame na figuração da escrita”, podemos entendê-lo da seguinte forma: Um lance de dados trouxe a percepção distraída, descontínua e tátil da vida urbana para a estrutura gráfica da página impressa. Utilizando a distinção entre os dois tipos de choque, pode-se dizer que nas páginas de Um lance de dados, tal como no cinema, o choque é físico, pois ele faz parte da própria materialidade da obra, concebida como o resultado de uma técnica de montagem.
Através de uma construção rigorosa, que ao mesmo tempo nega o caos econômico e reelabora na página impressa a imagerie desse caos, Um lance de dados vai além do “acurado reagir dos nervos” produzido pelos dadaístas. Esse princípio construtivo é o que reúne monadicamente o Mallarmé de Um lance de dados e os “novos bárbaros” do ensaio “Experiência e pobreza”: os criadores que reagem à destruição da experiência sem olhar para trás, sem propor restaurações nostálgicas, mas também sem se limitar apenas à alegria dadaísta da destruição, pois o que eles querem é construir a partir da destruição. Como os arquitetos e designers da Bauhaus, como a pintura de Paul Klee e dos cubistas, Mallarmé teria concebido uma arte aparentada ao mundo dos diagramas matemáticos e dos desenhos industriais. Nas palavras de Benjamin:
30 In CAMPOS, Augusto, et al., 1974, p. 151. 31 “Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos quebrados”. BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Trad. Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 112.
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Entre os grandes criadores sempre houve aqueles implacáveis, que primeiramente fizeram uma tábula rasa. Especificamente falando: eles queriam uma prancheta, eles foram construtores. Um construtor desse tipo foi Descartes, que de início queria para a toda a sua filosofia nada mais do que uma única certeza – “Penso, logo existo” – e dela ele partiu. [...] E os artistas tinham em mente esse mesmo começar do princípio quando se ativeram aos matemáticos e construíram o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se apoiaram nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são como que projetadas na prancheta e, assim como num bom automóvel também a carroceria obedece sobretudo às necessidades do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece sobretudo ao interior. Ao interior [Innern] mais que à interioridade [Innerlichkeit]: é isso que as faz bárbaras.32
Entenda-se: os rostos desenhados ou pintados por Klee obedecem ao espaço pictórico no interior do quadro, não à interioridade do sujeito criador. Isso mostra como o procedimento construtivo, ludicamente inspirado nas pranchetas dos engenheiros, está a serviço de uma atitude crítica, paródica e experimental, destituída tanto da nostalgia romântica da “bela alma” quanto da angústia metafísica da “arte pela arte”.
Se voltarmos agora à nossa epígrafe, ao cinema e à sua “dinamite dos décimos de segundo”, compreenderemos o que foi propriamente o gesto de Mallarmé em Um lance de dados: ele explodiu o mundo das linhas tipográficas, propondo tranquilas viagens aventurosas no interior – não na “interioridade” – do espaço da página.
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32 BENJAMIN, 1977, p. 215-216.
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Artigo recebido em 11/02/2020 Aceito em 11/02/2020