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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – FACULDADE DE EDUCAÇÃO EDF-0283 - INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS DE EDUCAÇÃO Prof. Dr. José Sérgio Fonseca de Carvalho 1 o semestre de 2006 – Turma 23 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221 (Escrito em 1936 sob o título Der Erzähler : Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows). Notas: Oldimar Cardoso e José Sérgio Fonseca de Carvalho. 1 Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov * como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência 1 quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando [fim da p. 197] se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos * Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H. Beck. 1

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE EDUCAO

EDF-0283 - INTRODUO AOS ESTUDOS DE EDUCAO

Prof. Dr. Jos Srgio Fonseca de Carvalho1o semestre de 2006 Turma 23BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221 (Escrito em 1936 sob o ttulo Der Erzhler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows). Notas: Oldimar Cardoso e Jos Srgio Fonseca de Carvalho.1

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador no est de fato presente entre ns, em sua atualidade viva. Ele algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador no significa traz-lo mais perto de ns, e sim, pelo contrrio, aumentar a distncia que nos separa dele. Vistos de uma certa distncia, os traos grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traos aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distncia apropriada e num ngulo favorvel. Uma experincia quase cotidiana nos impe a exigncia dessa distncia e desse ngulo de observao. a experincia de que a arte de narrar est em vias de extino. So cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando [fim da p. 197] se pede num grupo que algum narre alguma coisa, o embarao se generaliza. como se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias.

Uma das causas desse fenmeno bvia: as aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nvel est mais baixo que nunca, e que da noite para o dia no somente a imagem do mundo exterior, mas tambm a do mundo tico sofreram transformaes que antes no julgaramos possveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua at hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia comunicvel. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experincia transmitida de boca em boca. No havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes. Uma gerao que ainda fora escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de foras de torrentes e exploses, o frgil e minsculo corpo humano.

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A experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se distinguem das histrias orais contadas pelos inmeros narradores annimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de mltiplas maneiras. A figura do narrador s se torna plenamente tangvel se temos presentes esses dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como algum que vem de longe. Mas tambm escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu pas e que conhece suas histrias e tra- [fim da p. 198] dies. Se quisermos concretizar esses dois grupos atravs dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um exemplificado pelo campons sedentrio, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famlias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos sculos, suas caractersticas prprias. Assim, entre os autores alemes modernos, Hebel e Gotthelf pertencem primeira famlia, e Sielsfield e Gerstcker segunda. No entanto essas duas famlias, como j se disse, constituem apenas tipos fundamentais. A extenso real do reino narrativo, em todo o seu alcance histrico, s pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetrao desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetrao. O mestre sedentrio e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua ptria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artfices que a aperfeioaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentrio.

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Leskov est vontade tanto na distncia espacial como na distncia temporal. Pertencia Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesistica no era menos genuna. Como suas relaes com o funcionalismo leigo no eram melhores, os cargos oficiais que exerceu no foram de longa durao. O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possveis, o mais til para sua produo literria. A servio dessa firma viajou pela Rssia, e essas viagens enriqueceram tanto a sua experincia do mundo como seus conhecimentos sobre as condies russas. Desse modo teve ocasio de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou traos em suas narrativas. Nos contos lendrios russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia orto- [fim da p. 199] doxa. Escreveu uma srie de contos desse gnero, cujo personagem central o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltao mstica alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questes de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questes temporais correspondia a essa atitude. coerente com tal comportamento que ele tenha comeado tarde a escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: "Por que so os livros caros em Kiev?". Seus contos foram precedidos por uma srie de escritos sobre a classe operria, sobre o alcoolismo, sobre os mdicos da polcia e sobre os vendedores desempregados.

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O senso prtico uma das caractersticas de muitos narradores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que d conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da iluminao a gs, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informaes cientficas em seu Schatzkstlein (Caixa de tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso utilitria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador um homem que sabe dar conselhos. Mas, se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, porque as experincias esto deixando de ser comunicveis. Em conseqncia, no podemos dar conselhos nem a ns mesmos nem aos outros. Aconselhar menos responder a uma pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria que est sendo narrada. Para obter essa sugesto, necessrio primeiro saber narrar a histria (sem contar que um homem s receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situao). O conselho tecido na substncia viva da existncia tem um nome: sabedoria. A arte de narrar est definhando porque [fim da p. 200] a sabedoria - o lado pico da verdade - est em extino. Porm esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um "sintoma de decadncia" ou uma caracterstica "moderna". Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo d uma nova beleza ao que est desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evoluo secular das foras produtivas.

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O primeiro indcio da evoluo que vai culminar na morte da narrativa o surgimento do romance no incio do perodo moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopia no sentido estrito) que ele est essencialmente vinculado ao livro. A difuso do romance s se torna possvel com a inveno da imprensa. A tradio oral, patrimnio da poesia pica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - que ele nem procede da tradio oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los. Escrever um romance significa, na descrio de uma vida humana, levar o incomensurvel a seus ltimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrio dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gnero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heris da literatura so totalmente refratrias ao conselho e no contm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos sculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento - talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinao de Wilhelm Meister) -, essas tentativas resultaram sempre na [fim da p. 201] transformao da prpria forma romanesca. O romance de formao (Bildungsroman), por outro lado, no se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frgil as leis que determinam tal processo. A legitimao dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formao, essa insuficincia que est na base da ao.

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Devemos imaginar a transformao das formas picas segundo ritmos comparveis aos que presidiram transformao da crosta terrestre no decorrer dos milnios. Poucas formas de comunicao humana evoluram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primrdios remontam Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favorveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa comeou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dvida, ela se apropriou de mltiplas formas, do novo contedo, mas no foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidao da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo, um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicao que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma pica. Agora ela exerce essa influncia. Ela to estranha narrativa como o romance, mas mais ameaadora e, de resto, provoca uma crise no prprio romance. Essa nova forma de comunicao a informao.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essncia da informao com uma frmula famosa. "Para meus leitores", costumava dizer, "o incndio num sto do Quartier Latin mais importante que uma revoluo em Madri. Essa frmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informao sobre acontecimentos prximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradio -, dispunha de uma autoridade que era [fim da p. 202] vlida mesmo que no fosse controlvel pela experincia. Mas a informao aspira a uma verificao imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensvel "em si e para si". Muitas vezes no mais exata que os relatos antigos. Porm, enquanto esses relatos recorriam freqentemente ao miraculoso, indispensvel que a informao seja plausvel. Nisso ela incompatvel com o esprito da narrativa. Se a arte da narrativa hoje rara, a difuso da informao decisivamente responsvel por esse declnio.

Cada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A razo que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da informao. Metade da arte narrativa est em evitar explicaes. Nisso Leskov magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A guia branca). O extraordinrio e o miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na informao.

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Leskov freqentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Herdoto. No captulo XIV do terceiro livro de suas Histrias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema Psammenit. Quando o rei egpcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada condio de criada, indo ao poo com um jarro, para buscar gua. Enquanto todos os egpcios se lamentavam com esse espetculo, Psammenit ficou silencioso e imvel, com os olhos no cho; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miservel, na fila dos cativos, golpeou a ca- [fim da p. 203] bea com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.

Essa histria nos ensina o que a verdadeira narrativa. A informao s tem valor no momento em que nova. Ela s vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente a narrativa. Ela no se entrega. Ela conserva suas foras e depois de muito tempo ainda capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude histria do rei egpcio e pergunta: porque ele s se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta que ele "j estava to cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". a explicao de Montaigne. Mas poderamos tambm dizer: "O destino da famlia real no afeta o rei, porque o seu prprio destino". Ou: "muitas coisas que no nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator". Ou: "as grandes dores so contidas, e s irrompem quando ocorre uma distenso. O espetculo do servidor foi essa distenso". Herdoto no explica nada. Seu relato dos mais secos. Por isso, essa histria do antigo Egito ainda capaz, depois de milnios, de suscitar espanto e reflexo. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas cmaras das pirmides e que conservam at hoje suas foras germinativas.

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Nada facilita mais a memorizao das narrativas que aquela sbria conciso que as salva da anlise psicolgica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia s sutilezas psicolgicas, mais facilmente a histria se gravar na memria do ouvinte, mais completamente ela se assimilar sua prpria experincia e mais irresistivelmente ele ceder inclinao de recont-la um dia. Esse processo de assimilao se d em camadas muito profundas e exige um estado de distenso que se torna cada vez mais raro. Se o sono o ponto mais alto da distenso fsica, o tdio o ponto mais alto da distenso psquica. O tdio o pssaro de sonho que choca os ovos da experincia. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tdio [fim da p. 204] - j se extinguiram na cidade e esto em vias de extino no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histrias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narr-las. Assim se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h milnios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

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A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de arteso - no campo, no mar e na cidade -, ela prpria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicao. Ela no est interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informao ou um relatrio. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retir-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mo do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de comear sua histria com uma descrio das circunstncias em que foram informados dos fatos que vo contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa histria a uma experincia autobiogrfica. Leskov comea A fraude com uma descrio de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os episdios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a herona de A propsito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma reunio num crculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens interessantes. Assim, seus vestgios esto presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata.

O prprio Leskov considerava essa arte artesanal - a narrativa - como um ofcio manual. "A literatura", diz ele em uma carta, "no para mim uma arte, mas um trabalho [fim da p. 205] manual." No admira que ele tenha se sentido ligado ao trabalho manual e estranho tcnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro "a apontar a insuficincia do progresso econmico... estranho que Dostoievski seja to lido... Em compensao, no compreendo por que no se l Leskov. Ele um escritor fiel verdade". No malicioso e petulante A pulga de ao, intermedirio entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra-prima, a pulga de ao, chega aos olhos de Pedro, o Grande e o convence de que os russos no precisam envergonhar-se dos ingleses.

Talvez ningum tenha descrito melhor que Paul Valry a imagem espiritual desse mundo de artfices, do qual provm o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, prolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acmulo dessas causas s teria limites temporais quando fosse atingida a perfeio. "Antigamente o homem imitava essa pacincia", prossegue Valry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposio de uma quantidade de camadas finas e translcidas... - todas essas produes de uma indstria tenaz e virtuosstica cessaram, e j passou o tempo em que o tempo no contava. O homem de hoje no cultiva o que no pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar at a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradio oral e no mais permite essa lenta superposio de camadas finas e translcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem luz do dia, como coroamento das vrias camadas constitudas pelas narraes suces- [fim da p. 206] sivas.

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Valry conclui suas reflexes com as seguintes palavras: "dir-se-ia que o enfraquecimento nos espritos da idia de eternidade coincide com uma averso cada vez maior ao trabalho prolongado". A idia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa idia est se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformao a mesma que reduziu a comunicabilidade da experincia medida que a arte de narrar se extinguia.

No decorrer dos ltimos sculos, pode-se observar que a idia da morte vem perdendo, na conscincia coletiva, sua onipresena e sua fora de evocao. Esse processo se acelera em suas ltimas etapas. Durante o sculo XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituies higinicas e sociais, privadas e pblicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetculo da morte. Morrer era antes um episdio pblico na vida do indivduo, e seu carter era altamente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Mdia, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direo ao qual se precipita o povo, atravs das portas escancaradas. Hoje, a morte cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes no havia uma s casa e quase nenhum quarto em que no tivesse morrido algum. (A Idade Mdia conhecia a contrapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relgio solar de Ibiza: ultima multis). Hoje, os burgueses vivem em espaos depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, sero depositados por seus herdeiros em sanatrios e hospitais. Ora, no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existncia vivida e dessa substncia que so feitas as histrias - assumem pela primeira vez uma forma transmissvel. Assim como no interior do agonizante desfilam inmeras imagens - vises de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecvel aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, [fim da p. 207] para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa est essa autoridade.

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A morte a sano de tudo o que o narrador pode contar. da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histrias remetem histria natural. Esse fenmeno ilustrado exemplarmente numa das mais belas narrativas do incomparvel Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkstlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de tesouros do amigo renano das famlias) e chama-se Unverhofftes Wiedersehen (Reencontro inesperado). A histria comea com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun. Na vspera do casamento, o rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterrnea. Sua noiva se mantm fiel alm da morte e vive o suficiente para reconhecer um dia, j extremamente velha, o cadver do noivo, encontrado em sua galeria perdida e preservado da decomposio pelo vitrolo ferroso. A anci morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o incio da histria, e sua soluo foi a seguinte: "Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruda por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesutas foi dissolvida, e a Polnia foi retalhada, e a imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi executado, a Amrica se tornou independente, e a potncia combinada da Frana e da Espanha no pde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador Jos morreu tambm. O rei Gustavo da Sucia tomou a Finlndia dos russos, e a Revoluo Francesa e as grandes guerras comearam, e o rei Leopoldo II faleceu tambm. Napoleo conquistou a Prssia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses semeavam e ceifavam. O moleiro moeu, e os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram procura de files metlicos, em suas oficinas subterrneas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...". Jamais outro narrador conseguiu inscrever to profundamente sua histria na histria natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com [fim da p. 208] ateno: a morte reaparece nela to regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam ao meio-dia nos relgios das catedrais.

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Cada vez que se pretende estudar uma certa forma pica necessrio investigar a relao entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia no representa uma zona de indiferenciao criadora com relao a todas as formas picas. Nesse caso, a histria escrita se relacionaria com as formas picas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja entre todas as formas picas a crnica aquela cuja incluso na luz pura e incolor da histria escrita mais incontestvel. E, no amplo espectro da crnica, todas as maneiras com que uma histria pode ser narrada se estratificam como se fossem variaes da mesma cor. O cronista o narrador da histria. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom claramente o da crnica, e notar-se- facilmente a diferena entre quem escreve a histria, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episdios com que lida, e no pode absolutamente contentar-se em represent-los como modelos da histria do mundo. exatamente o que faz o cronista, especialmente atravs dos seus representantes clssicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia est o plano da salvao, de origem divina, indevassvel em seus desgnios, e com isso desde o incio se libertaram do nus da explicao verificvel. Ela substituda pela exegese, que no se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua insero no fluxo insondvel das coisas.

No importa se esse fluxo se inscreve na histria sagrada ou se tem carter natural. No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fenmeno. Tanto o cronista, vinculado histria sagrada, como o narrador, vinculado histria profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas [fim da p. 209] de suas narrativas, difcil decidir se o fundo sobre o qual elas se destacam a trama dourada de uma concepo religiosa da histria ou a trama colorida de uma concepo profana. Pense-se, por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor nos velhos tempos em que "as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrrio dos dias de hoje, em que tanto no cu como na terra tudo se tornou indiferente sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recm-descobertos no desempenham mais nenhum papel no horscopo, e existem inmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu peso especfico e sua densidade exatamente calculados, mas elas no nos anunciam nada e no tm nenhuma utilidade para ns. O tempo j passou em que elas conversavam com os homens".

Como se v, difcil caracterizar inequivocamente o curso das coisas, como Leskov o ilustra nessa narrativa. determinado pela histria sagrada ou pela histria natural? S se sabe que, enquanto tal, o curso das coisas escapa a qualquer categoria verdadeiramente histrica. J se foi a poca, diz Leskov, em que o homem podia sentir-se em harmonia com a natureza: Schiller chamava essa poca o tempo da literatura ingnua. O narrador mantm sua fidelidade a essa poca, e seu olhar no se desvia do relgio diante do qual desfila a procisso das criaturas, na qual a morte tem seu lugar, ou frente do cortejo, ou como retardatria miservel.

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No se percebeu devidamente at agora que a relao ingnua entre o ouvinte e o narrador dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante assegurar a possibilidade da reproduo. A memria a mais pica de todas as faculdades. Somente uma memria abrangente permite poesia pica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder - da morte. No admira que para um personagem de Leskov, um simples homem do povo, o czar, o centro do mundo e em [fim da p. 210] torno do qual gravita toda a histria, disponha de uma memria excepcional. "Nosso imperador e toda a sua famlia tm, com efeito, uma surpreendente memria".

Mnemosyne, a deusa da reminiscncia, era para os gregos a musa da poesia pica. Esse nome chama a ateno para uma decisiva guinada histrica. Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscncia - a historiografia - representa uma zona de indiferenciao criadora com relao s vrias formas picas (como a grande prosa representa uma zona de indiferenciao criadora com relao s diversas formas mtricas), sua forma mais antiga, a epopia propriamente dita, contm em si, por uma espcie de indiferenciao, a narrativa e o romance. Quando no decorrer dos sculos o romance comeou a emergir do seio da epopia, ficou evidente que nele a musa pica - a reminiscncia - aparecia sob outra forma que na narrativa.

A reminiscncia funda a cadeia da tradio, que transmite os acontecimentos de gerao em gerao. Ela corresponde musa pica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma pica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em ltima instncia todas as histrias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova histria em cada passagem da histria que est contando. Tal a memria pica e a musa da narrao. Mas a esta musa deve se opor outra, a musa do romance que habita a epopia, ainda indiferenciada da musa da narrativa. Porm ela j pode ser pressentida na poesia pica. Assim, por exemplo, nas invocaes solenes das Musas, que abrem os poemas homricos. O que se prenuncia nessas passagens a memria perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memria do narrador. A primeira consagrada a um heri, uma peregrinao, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras palavras, a rememorao, musa do romance, surge ao lado da memria, musa da narrativa, depois que a desagregao da poesia pica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscncia. [fim da p. 211]14

Como disse Pascal, ningum morre to pobre que no deixe alguma coisa atrs de si. Em todo caso, ele deixa reminiscncia, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. O romancista recebe a sucesso quase sempre com uma profunda melancolia. Pois, assim como se diz num romance de Arnold Bennet que uma pessoa que acabara de morrer "no tinha de fato vivido", o mesmo costuma acontecer com as somas que o romancista recebe de herana. Georg Lukcs viu com grande lucidez esse fenmeno. Para ele, o romance "a forma do desenraizamento transcendental". Ao mesmo tempo, o romance, segundo Lukcs, a nica forma que inclui o tempo entre os seus princpios constitutivos. "O tempo", diz a Teoria do romance, "s pode ser constitutivo quando cessa a ligao com a ptria transcendental... Somente o romance... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal; podemos quase dizer que toda a ao interna do romance no seno a luta contra o poder do tempo... Desse combate,... emergem as experincias temporais autenticamente picas: a esperana e a reminiscncia... Somente no romance... ocorre uma reminiscncia criadora, que atinge seu objeto e o transforma... O sujeito s pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscncia... A viso capaz de perceber essa unidade a apreenso divinatria e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimvel".

Com efeito, "o sentido da vida" o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questo no outra coisa que a expresso da perplexidade do leitor quando mergulha na descrio dessa vida. Num caso, "o sentido da vida", e no outro, "a moral da histria" - essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histrico completamente diferente de uma e outra forma. Se o modelo mais antigo do romance Dom Quixote, o mais recente talvez seja A educao sentimental. As ltimas palavras deste romance mostram como o sentido do perodo burgus no incio do seu declnio se depositou como um sedimento no copo da vida. Frdric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua [fim da p. 212] mocidade e lembram um pequeno episdio: uma vez, entraram no bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e limitaram-se a oferecer dona da casa um ramo de flores, que tinham colhido no jardim. "Falava-se ainda dessa histria trs anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembranas do outro, e quando terminaram Frdric exclamou: - Foi o que nos aconteceu de melhor! - Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! disse Deslauriers." Com essa descoberta, o romance chega a seu fim, e este mais rigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito, numa narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - plenamente justificada. O romance, ao contrrio, no pode dar um nico passo alm daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da pgina a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida.

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Quem escuta uma histria est em companhia do narrador; mesmo quem a l partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance solitrio. Mais solitrio que qualquer outro leitor (pois mesmo quem l um poema est disposto a declam-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solido, o leitor do romance se apodera ciosamente da matria de sua leitura. Quer transform-la em coisa sua, devor-la, de certo modo. Sim, ele destri, devora a substncia lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tenso que atravessa o romance se assemelha muito corrente de ar que alimenta e reanima a chama.

O interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto? "Um homem que morre com trinta e cinco anos", disse certa vez Moritz Heimann, " em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos." Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana dimenso do tempo. A verdade contida na frase a seguinte: um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecer sempre, na rememorao, em cada momento de sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras: a frase, que no tem nenhum sentido com relao [fim da p. 213] vida real, torna-se incontestvel com relao vida lembrada. Impossvel descrever melhor a essncia dos personagens do romance. A frase diz que o "sentido" da sua vida somente se revela a partir de sua morte. Porm o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler "o sentido da vida". Ele precisa, portanto, estar seguro de antemo, de um modo ou outro, de que participar de sua morte. Se necessrio, a morte no sentido figurado: o fim do romance. Mas de preferncia a morte verdadeira. Como esses personagens anunciam que a morte j est sua espera, uma morte determinada, num lugar determinado? dessa questo que se alimenta o interesse absorvente do leitor.

Em conseqncia, o romance no significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graas chama que o consome, pode dar-nos o calor que no podemos encontrar em nosso prprio destino. O que seduz o leitor no romance a esperana de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro.

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Segundo Gorki, "Leskov " o escritor... mais profundamente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influncias estrangeiras". O grande narrador tem sempre suas razes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Contudo, assim como essas camadas abrangem o estrato campons, martimo e urbano, nos mltiplos estgios do seu desenvolvimento econmico e tcnico, assim tambm se estratificam de mltiplas maneiras os conceitos em que o acervo de experincias dessas camadas se manifesta para ns. (Para no falar da contribuio nada desprezvel dos comerciantes ao desenvolvimento da arte narrativa, no tanto no sentido de aumentarem seu contedo didtico, mas no de refinarem as astcias destinadas a prender a ateno dos ouvintes. Os comerciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mil e uma noites.) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimnio da humanidade, so mltiplos os conceitos atravs dos quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser interpretado numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar-se espontaneamente s categorias pedaggicas do Iluminismo, [fim da p. 214] surge em Poe como tradio hermtica e encontra um ltimo asilo, em Kipling, no circulo dos marinheiros e soldados coloniais britnicos. Comum a todos os grandes narradores a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experincia, como numa escada. Uma escada que chega at o centro da terra e que se perde nas nuvens - a imagem de uma experincia coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experincia individual, a morte, no representa nem um escndalo nem um impedimento.

"E se no morreram, vivem at hoje", diz o conto de fadas. Ele ainda hoje o primeiro conselheiro das crianas, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difcil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergncia. Era a emergncia provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mtico. O personagem do "tolo" nos mostra como a humanidade se fez de "tola" para proteger-se do mito; o personagem do irmo caula mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da pr-histria mtica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem "inteligente" mostra que as perguntas feitas pelo mito so to simples quanto s feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma criana mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou h muitos sculos humanidade, e continua ensinando hoje s crianas, que o mais aconselhvel enfrentar as foras do mundo mtico com astcia e arrogncia. (Assim, o conto de fadas dialetiza a coragem (Mut) desdobrando-a em dois plos: de um lado Untermut, isto , astcia, e de outro bermut, isto , arrogncia). O feitio libertador do conto de fadas no pe em cena a natureza como uma entidade mtica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto s percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto , quando est feliz; para a criana, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensao de felicidade. [fim da p. 215]17

Poucos narradores tiveram uma afinidade to profunda pelo esprito do conto de fadas como Leskov. Essas tendncias foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulao de Orgenes, rejeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admisso de todas as almas ao Paraso, desempenha um papel significativo. Leskov foi muito influenciado por Orgenes. Tinha a inteno de traduzir sua obra Dos primeiros princpios. No esprito das crenas populares russas, interpretou a ressurreio menos como uma transfigurao que como um desencantamento, num sentido semelhante ao do conto de fada. Essa interpretao de Orgenes o fundamento da narrativa O peregrino encantado. Essa histria, como tantas outras de Leskov, um hbrido de contos de fadas e lenda, semelhante ao hbrido de contos de fadas e saga, descrito por Ernst Bloch numa passagem em que retoma sua maneira nossa distino entre mito e conto de fadas. Segundo Bloch, "nessa mescla de conto de fadas e saga o elemento mtico figurado, no sentido de que age de forma esttica e cativante, mas nunca fora do homem. Mticos, nesse sentido, so certos personagens de saga, de tipo taosta, sobretudo os muito arcaicos, como o casal Filemon e Baucis: salvos, como nos contos de fada, embora em repouso, como na natureza. Existe certamente uma relao desse tipo no taosmo muito menos pronunciado de Gotthelf; ele priva ocasionalmente a saga do encantamento local, salva a luz da vida, a luz prpria vida humana, que arde serenamente, por fora e por dentro". "Salvos, como nos contos de fadas", so os seres frente do cortejo humano de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, o cabeleireiro, o domador de ursos, a sentinela prestimosa - todos eles, encarnando a sabedoria, a bondade e o consolo do mundo, circundam o narrador. incontestvel que so todos derivaes da imago materna. Segundo a descrio de Leskov, "ela era to bondosa que no podia fazer mal a ningum, nem mesmo aos animais. No comia nem peixe nem carne, tal sua compaixo por todas as criaturas vivas. De vez em quando, meu pai costumava censur-la... Mas ela respondia: eu mesma criei esses animaizinhos, eles so como meus filhos. No posso comer meus prprios filhos! Mesmo na casa dos vizinhos ela se abs- [fim da p. 216] tinha de carne, dizendo: eu vi esses animais vivos; so meus conhecidos. No posso comer meus conhecidos.

O justo o porta-voz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnao. Ele tem em Leskov traos maternais, que s vezes atingem o plano mtico (pondo em perigo, assim, a pureza da sua condio de conto de fadas). Caracterstico, nesse sentido, o personagem central da narrativa Kotin, o provedor e Platnida. Esse personagem, um campons chamado Pisonski, hermafrodita. Durante doze anos, a me o educou como menina. Seu lado masculino e o feminino amadurecem simultaneamente e seu hermafroditismo transforma-se em "smbolo do Homem-Deus".

Leskov v nesse smbolo o ponto mais alto da criatura e ao mesmo tempo uma ponte entre o mundo terreno e o supra-terreno. Porque essas poderosas figuras masculinas, telricas e maternais, sempre retomadas pela imaginao de Leskov, foram arrancadas, no apogeu de sua fora, escravido do instinto sexual. Mas nem por isso encarnam um ideal asctico; a castidade desses justos tem um carter to pouco individual que ela se transforma na anttese elementar da luxria desenfreada, representada na Lady Macbeth de Mzensk. Se a distncia entre Pavlin e essa mulher de comerciante representa a amplitude do mundo das criaturas, na hierarquia dos seus personagens Leskov sondou tambm a profundidade desse mundo.

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A hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figura do justo, desce por mltiplos estratos at os abismos do inanimado. Convm ter em mente, a esse respeito, uma circunstncia especial. Para Leskov, esse mundo se exprime menos atravs da voz humana que atravs do que ele chama, num dos seus contos mais significativos, "A voz da natureza". Seu personagem central um pequeno funcionrio, Filip Filipovitch, que usa todos os meios a seu dispor para hospedar em sua casa um marechal-de-campo, que passa por sua cidade. Seu desejo atendido. O hspede, a princpio admirado com a insistncia do funcionrio, com o tempo julga reconhecer nele algum que havia encontrado antes. Quem? No consegue [fim da p. 217] lembrar-se. O mais estranho que o dono da casa nada faz para revelar sua identidade. Em vez disso, ele consola seu ilustre hspede, dia aps dia, dizendo que "a voz da natureza" no deixar de se fazer ouvir um dia. As coisas continuam assim, at que o hspede, no momento de continuar sua viagem, d ao funcionrio a permisso, por este solicitada, de fazer ouvir "a voz da natureza". A mulher do anfitrio se afasta. "Ela voltou com uma corneta de caa, de cobre polido, e entregou-a a seu marido. Ele pegou a corneta, colocou-a na boca e sofreu uma verdadeira metamorfose. Mal enchera a boca, produzindo um som forte como um trovo, o marechal-de-campo gritou: - Pra! J sei, irmo, agora te reconheo! s o msico do regimento de caadores, que como recompensa por sua honestidade enviei para vigiar um intendente corrupto. - verdade, Excelncia, respondeu o dono da casa. Eu no queria recordar esse fato a Vossa Excelncia, e sim deixar que a voz da natureza falasse." A profundidade dessa histria, escondida atrs de sua estupidez aparente, d uma idia do extraordinrio humor de Leskov.

Esse humor reaparece na mesma histria de modo ainda mais discreto. Sabemos que o pequeno funcionrio fora enviado "como recompensa por sua honestidade... para vigiar um intendente corrupto". Essas palavras esto no final, na cena do reconhecimento. Porm no comeo da histria lemos o seguinte sobre o dono da casa: "os habitantes do lugar conheciam o homem e sabiam que no tinha uma posio de destaque, pois no era nem alto funcionrio do Estado nem militar, mas apenas um pequeno fiscal no modesto servio de intendncia, onde, juntamente com os ratos, roa os biscoitos e as botas do Estado, chegando com o tempo a roer para si uma bela casinha de madeira". Manifesta-se assim, como se v a simpatia tradicional do narrador pelos patifes e malandros. Toda a literatura burlesca partilha essa simpatia, que se encontra mesmo nas culminncias da arte: os companheiros mais fiis de Hebel so o Zumdelfrieder, o Zundelheiner e Dieter o ruivo. No entanto, tambm para Hebel o justo desempenha o papel principal no theatrum mundi. Mas, como ningum est altura desse papel, ele passa de uns para outros. Ora o vagabundo, ora o judeu avarento, ora o imbecil, que entram em cena para representar esse papel. A pea varia segundo as circunstncias, uma improvisao moral. [fim da p. 218] Hebel um casusta. Ele no se solidariza, por nenhum preo, com nenhum princpio, mas no rejeita nenhum, porque cada um deles pode se tornar um instrumento dos justos. Compare-se essa atitude com a de Leskov. "Tenho conscincia", escreve ele em A propsito da Sonata de Kreuzer, "de que minhas idias se baseiam muito mais numa concepo prtica da vida do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada, mas j me habituei a pensar assim. De resto, as catstrofes morais que ocorrem no universo de Leskov se relacionam com os incidentes morais que ocorrem no universo de Hebel como a vasta e silenciosa torrente do Volga se relaciona com o riacho tagarela e saltitante que faz girar o moinho. Entre as narrativas histricas de Leskov existem vrias nas quais as paixes so to destruidoras como a ira de Aquiles ou o dio de Hagen. surpreendente verificar como o mundo pode ser sombrio para esse autor e com que majestade o mal pode empunhar o seu cetro. Obviamente, Leskov conheceu estados de esprito em que estava muito prximos de uma tica antinomstica, e esse talvez um dos seus poucos pontos de contato com Dostoievski. As naturezas elementares dos seus Contos dos velhos tempos vo at o fim em sua paixo implacvel. Mas esse fim justamente o ponto em que, para os msticos, a mais profunda abjeo se converte em santidade.

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Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das criaturas, mais sua concepo das coisas se aproxima do misticismo. Alis, como veremos, h indcios de que essa caracterstica prpria da natureza do narrador. Contudo poucos ousaram mergulhar nas profundezas da natureza inanimada, e no h muitas obras, na literatura narrativa recente, nas quais a voz do narrador annimo, anterior a qualquer escrita, ressoe de modo to audvel como na histria de Leskov, A alexandrita. Trata-se de uma pedra semipreciosa, o piropo. A pedra o estrato mais nfimo da criatura. Mas para o narrador ela est imediatamente ligada ao estrato mais alto. Ele consegue vislumbrar nessa pedra semipreciosa, o piropo, uma profecia natural do mundo mineral e inanimado dirigida ao mundo histrico, na qual ele prprio vive. Esse mundo o de [fim da p. 219] Alexandre II. O narrador - ou antes, o homem a quem ele transmite o seu saber - um lapidador chamado Wenzel, que levou sua arte mais alta perfeio. Podemos aproxim-lo dos ourives de Tula e dizer que, segundo Leskov, o artfice perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo criado. Ele a encarnao do homem piedoso. Leskov diz o seguinte desse lapidador: "Ele segurou de repente a minha mo, na qual estava o anel com a alexandrita, que como se sabe emite um brilho rubro quando exposta a uma iluminao artificial, e gritou: - Olhe, ei-la aqui, a pedra russa, proftica... siberiana astuta! Ela sempre foi verde como a esperana e somente noite assume uma cor de sangue. Ela sempre foi assim, desde a origem do mundo, mas escondeu-se por muito tempo e ficou enterrada na terra, e s consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre, quando um grande feiticeiro visitou a Sibria para ach-la, a pedra, um mgico... - Que tolices o Sr. est dizendo! interrompi-o. No foi nenhum mgico que achou essa pedra, foi um sbio chamado Nordenskjld! - Um mgico! digo-lhe eu, um mgico, gritou Wenzel em voz alta. Veja, que pedra! Ela.contm manhs verdes e noites sangrentas... Esse o destino, o destino do nobre czar Alexandre! Assim dizendo, o velho Wenzel voltou-se para a parede, apoiou-se nos cotovelos... e comeou a soluar".

Para esclarecer o significado dessa importante narrativa, no h melhor comentrio que o trecho seguinte de Valry, escrito num contexto completamente diferente. "A observao do artista pode atingir uma profundidade quase mstica. Os objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e claridades formam sistemas e problemas particulares que no dependem de nenhuma cincia, que no aludem a nenhuma prtica, mas que recebem toda sua existncia e todo o seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mo de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo, e para as produzir.

A alma, o olho e a mo esto assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prtica. Essa prtica deixou de nos ser familiar. O papel da mo no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narrao est agora vazio. (Pois a narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produto exclusivo da [fim da p. 220] voz. Na verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que dito). A antiga coordenao da alma, do olhar e da mo, que transparece nas palavras de Valry, tpica do arteso, e ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relao entre o narrador e sua matria - a vida humana - no seria ela prpria uma relao artesanal. No seria sua tarefa trabalhar a matria-prima da experincia - a sua e a dos outros - transformando-a num produto slido, til e nico? Talvez se tenha uma noo mais clara desse processo atravs do provrbio, concebido como uma espcie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provrbios so runas de antigas narrativas, nas quais a moral da histria abraa um acontecimento, como a hera abraa um muro.

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para alguns casos, como o provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria experincia, mas em grande parte a experincia alheia. O narrador assimila sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom poder contar sua vida; sua dignidade cont-la inteira. O narrador o homem que poderia deixar a luz tnue de sua narrao consumir completamente a mecha de sua vida. Da a atmosfera incomparvel que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stenvenson. O narrador a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. [fim da p. 221]NOTAS (por Oldimar Cardoso e Jos Srgio Fonseca de Carvalho)* Nikolai Leskov nasceu em 1831 na provncia de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientao religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra so exatamente aqueles em que tais tendncias assumem uma expresso dogmtica e doutrinria - os primeiros romances. A significao de Leskov est em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve vrias tentativas de difundir essas narrativas nos pases de lngua alem. Alm das pequenas coletneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Mller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleo em nove volumes da editora C. H. Beck.

experincia [Erfahrung] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 137) [...] Os elementos do [...] conceito kantiano de experincia [...] so desenvolvidos na filosofia crtica. Define experincia como a "conexo sinttica de aparncias (percepes) na conscincia, na medida em que essa conexo necessria" [...]. A experincia , pois, sinttica, descrita como "esse produto dos sentidos e do entendimento" que pode ser analisado em elementos. Existe na base de tudo "a intuio, da qual estou consciente, isto , a percepo (perceptio) que s pertence aos sentidos" [...]. Estes ltimos fornecem o elemento de experincia externa mas no se somam para uma experincia plena. H a sntese num juzo, mas essa sntese tem propriedades particulares; ela no se limita a "comparar percepes e a conect-las mediante o juzo numa conscincia", como foi pretendido pelas definies empiristas da percepo, mas as intuies devem ser subsumidas sob um conceito "que determina a forma de julgar em geral com relao intuio" [...]. H conceitos a priori do entendimento, tais como causa, os quais no so derivados da experincia mas conferem-lhe o carter de necessidade.

Na explicao mais sutil de experincia [...], a sntese que constitui a experincia no a simples unificao conceitual de um mltiplo intudo, mas tem lugar na base de uma adaptao mtua de conceito e intuio. Kant sustenta que toda a sntese, "pela qual se torna possvel a prpria percepo, est submetida s categorias: e como a experincia um conhecimento mediante percepes ligadas entre si, as categorias so condies da possibilidade da experincia e tm, pois, tambm validade a priori em relao a todos os objetos da experincia [...]. Kant, fundamentalmente, deriva as categorias da espontaneidade do entendimento, estabelecendo assim as condies da possibilidade da experincia na mtua adaptao entre a experincia exterior (receptividade da sensibilidade) e a experincia interior (espontaneidade do entendimento). As formas a priori da intuio (espao e tempo), assim como os conceitos puros do entendimento ou categorias, estabelecem as condies da experincia possvel que determinam os limites do conhecimento legtimo. Como Kant assinalou a respeito das categorias, "tudo o que o entendimento extrai de si prprio, sem o recurso da experincia, no serve para qualquer outra finalidade que no seja o uso da experincia" [...].

experincia [Erfahrung] (INWOOD, M. Dicionrio Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 130-132) [...] Erfahren provm do prefixo er- e fahren, originalmente "viajar, ir, vaguear", da "progredir, ir (por exemplo, bem)", e "viajar ou jornadear". Assim, o significado radical de erfahren "partir em viagem para explorar ou ficar a conhecer algo". Erfahrung refere-se a esse processo ou ao seu resultado. Erfahrung foi usada pela primeira vez por Paracelso para traduzir o latim experiencia. Contrasta com o que meramente pensamento e com o que aceito com base na autoridade ou tradio. Kant argumentou [...] que todo o nosso conhecimento comea com Erfahrung mas no nasce todo de Erfahrung, porquanto Erfahrung o produto conjunto de nossas intuies sensveis e das formas de intuio (espao e tempo) e categorias do entendimento com que contribumos para tais intuies. No podemos ter cognio, no entender de Kant, do que transcende tal experincia, ou seja, das coisas-em-si-mesmas e de entidades tais como Deus, a alma e liberdade.

Hegel usa Erfahrung de mais de uma maneira. Em Fenomenologia do Esprito, no est associada a qualquer forma particular de conscincia, mas a experincia por que passa a conscincia em seu caminho para a cincia. Neste caso, est em jogo a sugesto de uma viagem de descoberta. Alm disso, a experincia da conscincia no especificamente emprica: Erfahrung no contrasta com "pensamento" (embora Hegel faa distino das experincias da conscincia da lgica), mas indica aquilo por que passa a conscincia ou o que descobre por si mesma, em contraste com o que ns, espectadores, conhecemos a seu respeito. "Experincia", neste sentido, difere do seu sentido usual, na medida em que a conscincia descobre a inadequao de uma de suas formas e avana para a seguinte, no por encontrar algum outro objeto em sua experincia mas por experimentar a incoerncia interna entre seu objeto e sua concepo desse objeto e a transformao dessa concepo em seu objeto seguinte. [...]

No original, a expresso de pessoa a pessoa Mund zu Mund, j utilizada no pargrafo anterior. Ela significa literalmente de boca em boca, expresso d mais nfase ao carter oral da narrativa.

O conceito de foras produtivas [Produktivkrfte] definido por Marx no captulo 1 de O Capital: A fora produtiva do trabalho determinada por meio de circunstncias diversas, entre outras pelo grau mdio de habilidade dos trabalhadores, o nvel de desenvolvimento da cincia e sua aplicabilidade tecnolgica, a combinao social do processo de produo, o volume e a eficcia dos meios de produo e as condies naturais. Assim, por exemplo, o mesmo quantum de trabalho em condies climticas favorveis, se representa em 8 bushels de trigo, em condies climticas desfavorveis, em somente 4. A mesma quantidade de trabalho fornece mais metais em minas ricas do que em minas pobres etc. Diamantes aparecem muito raramente na crosta terrestre; encontr-los custa, portanto, em mdia, muito tempo de trabalho. Em conseqncia representam, em pouco volume, muito trabalho. [William] Jacob duvida que o ouro tenha alguma vez pago seu valor total. Com maior razo, vale isso para o diamante. Segundo Eschwege, em 1823 a explorao de oitenta anos das minas de diamante, no Brasil, no alcanava sequer o preo do produto mdio de 1,5 ano das plantaes brasileiras de acar ou caf, apesar de que ela representava muito mais trabalho e, portanto, mais valor. Com minas mais ricas o mesmo quantum de trabalho representar-se-ia em mais diamantes, e diminuiria o seu valor. Caso se conseguisse, com pouco trabalho, transformar carvo em diamante, o valor deste poderia cair abaixo do de tijolos. Genericamente, quanto maior a fora produtiva do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho exigido para a produo de um artigo, tanto menor a massa de trabalho nele cristalizada, tanto menor o seu valor. Inversamente, quanto menor a fora produtiva do trabalho, tanto maior o tempo de trabalho necessrio para a produo de um artigo, tanto maior o seu valor. A grandeza do valor de uma mercadoria muda na

razo direta do quantum, e na razo inversa da fora produtiva do trabalho que nela se realiza. MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica. So Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 48-49.

O termo utilizado no original Mitteilung, referente ao conceito kantiano de comunicabilidade [Mitteilung] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant, p. 60-61) A comunicabilidade um conceito central na antropologia e filosofia da histria de Kant, assim como em sua exposio sobre o juzo esttico do gosto. Em Conjunturas sobre o incio da histria humana, ele descreve o "desejo irrefrevel de comunicar", do primeiro homem, expresso em sons que tinham a inteno de "anunciar sua existncia a criaturas vivas que lhe so estranhas" [...]. Em Crtica da faculdade do juzo, descreve o fim da histria em funo do refinamento dessa capacidade: "Finalmente, quando a civilizao atingir o seu apogeu, ela far desse trabalho de comunicao quase a principal tarefa da mais refinada inclinao, e s se atribuir s sensaes todo o seu valor medida que possam comunicar-se universalmente." Esse estado de comunicao pura previsto na atividade reflexiva do sensus communis, o qual abstrai do contedo de um juzo para somente prestar ateno sua comunicabilidade formal. Isso est fundamentado, mas tambm fundamenta, a relao de imaginao e entendimento "sem a mediao de um conceito, o que prprio do juzo esttico do gosto. Kant sugere tambm que o interesse na comunicabilidade pode explicar por que se considera que os juzos de gosto envolvem "uma espcie de dever" que no baseado, porm, na lei moral.

Os comentrios de Kant sobre comunicabilidade tomaram-se cada vez mais importantes para a filosofia do sculo XX. Inspiraram as tentativas de Arendt e Lyotard de aplicar o modelo kantiano de juzo reflexivo poltica e arte, assim como as tentativas de Habermas para estabelecer uma tica comunicativa na base de uma teoria comunicativa de ao (Habermas, 1981). Nos termos da exegese de Kant, eles apontam para uma dimenso de intersubjetividade que corrobora as mais austeras explicaes do juzo terico e prtico propostas nas primeiras duas crticas.

Essa palavra experincia no foi escrita pelo autor, mas pelo tradutor, e nesse caso no equivale a Erfahrung. A melhor forma de compreender essa frase simplesmente excluir a expresso pela experincia de seu final.

O termo utilizado no original erklrt, que remete ao conceito kantiano de definio [Erklrung] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant, p. 93) Kant descreve definio em Crtica da razo pura como a apresentao do "conceito original e pormenorizado de uma coisa dentro dos limites estabelecidos para o conceito", sendo pormenorizao usada com o significado de "clareza e suficincia de caractersticas" limites refere-se ao nmero preciso de caractersticas no conceito pormenorizado; e original quer dizer que a determinao dos limites no foi derivada de qualquer outra coisa [...]. Kant empenha-se em mostrar em detalhe que, estritamente falando, no podem existir definies filosficas. Os conceitos empricos no podem ser definidos porque impossvel conhecer seus limites precisos e ter a certeza de que so originais. Podem ser explicados tomando seus contedos explcitos, mas no preenchem os critrios de definio. Tampouco produzem conceitos a priori, porquanto impossvel estar certo de que a anlise foi completamente efetuada: "a minuciosidade da anlise do meu conceito sempre duvidosa e pode apenas, mediante mltiplos exemplos concordantes, tornar-se provvel, mas nunca apoditicamente certa" [...]. A tais conceitos pode ser dada uma exposio, que consiste apenas em uma "aproximao" probabilstica [...] de definio. O nico conceito que pode ser definido um "que eu inventei" [...], pois nesse caso tenho a certeza de sua concordncia com os requisitos de "limite" e "originalidade". S a matemtica possui tais conceitos, pelo que s ela est na posse de definies.

faculdade [Vermgen] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant, p. 143) A palavra "faculdade" traduz duas idias distintas: a primeira significa uma parte da estrutura de uma universidade, a segunda um potencial ou poder para realizar algum fim. O interesse de Kant pelo primeiro sentido foi suscitado pelo lugar anmalo da filosofia no currculo e organizao da universidade setecentista. filosofia no foi concedido um lugar natural em qualquer das trs "faculdades superiores" de direito, medicina e teologia, e servia usualmente como propedutica para o estudo numa dessas disciplinas. Kant fazia parte de um movimento cultural que procurava redefinir o lugar da filosofia na universidade, assim como justificar suas incurses nas reas de jurisprudncia filosfica e teologia das faculdades superiores. [...]

O segundo sentido de faculdade traduz o termo Vermgen que, por sua vez, derivado do latim facultas e do grego dynamis. Embora este ltimo fosse usado por muitos filsofos pr-socrticos, com destaque para Empdocles, o seu significado foi definitivamente fixado por Aristteles na Metafsica. De uma forma geral, atribuiu dois sentidos ao termo: o primeiro referia-se a urna capacidade ou poder para realizar um fim, o outro a um potencial para mudar que seria efetivado atravs de energeia. Essa definio dual de faculdade exerceu enorme influncia e permaneceu notavelmente estvel ao longo de toda a sua transmisso no aristotelismo medieval. Teve especial destaque na discusso da natureza da alma, a qual estava dividida em vrios potenciais ou faculdades de ao. Os dois sentidos de faculdade como potencialidade e como um poder da mente persistem em Descartes e ainda em Wolff: o wolffiano Philosophisches Lexicon de Meissner (1737) d facultas e potentia como sinnimos de Vermgen e define-o em termos aristotlicos como a possibilidade de realizar ou sofrer uma ao. Especifica ainda as faculdades de apetio como desejo sensvel ou apetite e a vontade, e as faculdades de conhecer como sensibilidade e razo. [...]

O termo utilizado no original Erinnerung, que remete aos conceitos hegelianos de memria, internalizao e imaginao [Erinnerung] (INWOOD, M. Dicionrio Hegel, p. 219-221) [...]

O verbo erinnern est relacionado com a preposio in ("em") e significou originalmente fazer (algum) entrar em, isto , ficar por dentro de (algum assunto), perceber (algo). [At hoje, como na poca de Hegel, significa "ter reminiscncia de, recordar (algo) a (algum).] (Tambm significa "criticar desfavoravelmente, chamar a ateno contrria ia para".) A forma reflexiva, sich erinnern significa assim "lembrar-se de, relembrar, recordar (algo)". Tal como o grego anamimneskesthai ("recordar"), sugere o resultado bem sucedido, mais do que o processo, de uma tentativa de trazer de volta ou relembrar algo que conhecemos ou foi previamente encontrado. O substantivo Erinnerung significa um "lembrete" mas tambm "memria, recordao". A doutrina de Plato de que toda a aprendizagem a recordao (anamnesis) de coisas previamente conhecidas mas depois esquecidas segue de perto os usos de Erinnerung pelos idealistas; Schelling escreveu que a "idia platnica de que toda a filosofia recordao verdadeira neste sentido: toda a filosofia consiste numa internalizao do estado em que ramos solidrios com a natureza" (Deduo universal do processo dinmico ou das categorias da fsica, 1800). [...]

Em Enciclopdia das cincias filosficas [...] no atribui a erinnern o significado de "trazer memria" ou "ser reminescente de", mas o de "internalizar", enquanto que sich erinnern menos "recordar" do que "internalizar, recolher-se". A palavra freqentemente contrastada com (sich) entussern, "externalizar(-se)". usada com freqncia mesmo quando a memria no est explicitamente em jogo [...].

A recordao de um evento passado , em certo sentido, uma internalizao do evento: por assim dizer, o evento est em mim e, no, a alguma distncia de mim no espao e no tempo. Mas, para recordar um evento, eu devo, na poca do evento, t-lo internalizado e adquirido uma lembrana dele que pode ser mais tarde relembrada; essa lembrana menos internalizada por minha recordao do que externalizada, dragada da minha memria. Assim, Hegel considera que Erinnerung no primordialmente recordao, mas a internalizao de uma intuio sensria como uma imagem (Bild); a imagem abstrada da posio espao-temporal concreta da intuio e a ela se confere um lugar na inteligncia (a qual tem seu prprio espao e tempo subjetivo). Mas a imagem fugaz e sai da conscincia. A imaginao e necessria, portanto, para reviver ou reproduzir a imagem. A imaginao sucessivamente reprodutiva, associativa e produtiva ou criativa (Phantasie). [...]

No original, a expresso experincias temporais Zeiterlebnisse, que seria melhor traduzida como vivncias temporais, j que os conceitos de Erfahrung (experincia) e Erlebnis (vivncia) so distintos para o autor.

sentido [Sinn] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant, p. 285-286) Em Antropologia de um ponto de vista pragmtico, Kant divide a sensibilidade em sentido e imaginao, onde sentido caracteriza "a faculdade de intuio na presena de um objeto" e imaginao a mesma coisa sem a presena do objeto [...]. Ele distingue ainda entre sentido interno e externo, com este ltimo denotando a afeco do corpo humano por coisas fsicas, o primeiro a afeco do corpo pelo prprio nimo (Gemt). Os sentidos externos correspondem aos cinco sentidos fsicos [...], e esto divididos nos sentidos "objetivos" do tato, viso e audio, e nos sentidos "subjetivos" do paladar e do olfato. Por sua vez, o sentido interno corresponde a uma "conscincia do que os seres humanos experimentam, na medida em que so afetados por sua prpria atividade de pensamento [...].

No original, o termo no descrever, mas darstellt, derivado de apresentao [Darstellung] (CAYGILL, H. Dicionrio Kant, p. 35) Apresentao uma funo especfica do juzo determinante, o qual consiste na apresentao (exhibitio) de uma intuio que corresponde a um dado conceito [...]. A natureza da apresentao ainda mais pormenorizada em Primeira introduo Crtica da faculdade do juzo, onde situada em relao aos "trs atos da faculdade espontnea de cognio". O primeiro ato a "apreenso (apprehensio) do mltiplo de intuio", a qual requer imaginao; o segundo a sntese ou "a unidade sinttica da conscincia desse mltiplo no conceito de um objeto"; enquanto o terceiro ato a "apresentao (exhibitio) na intuio do objeto correspondente a esse conceito" [...]. um dos grupos de termos que Kant usa para descrever as relaes extremamente complexas entre conceito e intuio, e que permite a realizao de sua sntese.