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“DO AZUL AO BRANCO”: MALLARMÉ E AS CONSTELAÇÕES DA CRISE por Liana Carreira Martins Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas. (Estudos Literários Literaturas de Língua Francesa). Orientador: Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes Rio de Janeiro Agosto de 2011

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“DO AZUL AO BRANCO”: MALLARMÉ E AS

CONSTELAÇÕES DA CRISE

por

Liana Carreira Martins

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Mestre em Letras

Neolatinas.

(Estudos Literários – Literaturas de

Língua Francesa).

Orientador: Prof. Doutor Marcelo

Jacques de Moraes

Rio de Janeiro

Agosto de 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

“Do Azul ao Branco”: Mallarmé a as constelações da crise Liana Carreira Martins

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como quesito para a obtenção do título de Mestre em

Letras Neolatinas (Estudos Literários – Literaturas de Língua

Francesa).

Examinada por:

_________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes

_________________________________________________

Profa. Doutora Paula Glenadel Leal – UFF

_________________________________________________

Profa. Doutora Izabela Guimarães Guerra Leal – UFPA

_________________________________________________

Prof. Doutor Edson Rosa da Silva – LEN – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Prof. Doutor João Camillo Penna – LEL - UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Agosto de 2011

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Para Marcelo Jacques de Moraes. Minhas palavras se perderiam

diante de tanta admiração e gratidão. Apenas tento esboçar um muito

obrigado por tudo. Por acreditar, e por me fazer acreditar, que isso

daria certo.

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Agradecimentos

À Marcia, Gilberto e Naor pelo bem mais precioso da vida: a fé e a

perseverança de que um dia tudo vai dar certo.

À Luisa Ruas pela presença, mesmo que ausente.

A Caio Meira pelas primeiras observações, pela confiança e incentivo dès

2005/2.

A Leonardo Gandolfi pelas primeiras viagens Rio-Portugal-França-Rio. E

pela amizade que vale por uma vida.

A Rafael Viegas por fazer da Mediateca da Maison de France um lugar além

dos livros e fichas catalográficas. E, claro, pelas quintas de tempero carioca.

À Estela, Olívia, Paula, Irene, João e Élvio pela presença irrestrita e

constante. Mesmo por entre corredores mofados, cadeiras despencando,

salas com casas de marimbondo, infiltrações e “485” tínhamos a certeza – e

continuamos tendo – de que tudo é possível.

À Paula Glenadel e Izabela Leal pela generosidade, consideração e

paciência de lerem essas folhas até o fim.

À CAPES pelo auxílio financeiro durante esses dois anos, o que me

permitiu viver como uma estudante latino americana.

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Resumo

O presente trabalho busca revisitar temas emblemáticos da obra de

Mallarmé, contextualizando-os criticamente no discurso da Modernidade.

Tendo por método a análise de alguns de seus poemas e de algumas cartas,

essa imersão crítica visa a questionar certos paradigmas estabelecidos pela

recepção dessa obra no contexto histórico de final do século XIX. Nesse

intuito, procura-se mostrar como a constituição do pensamento poético de

Mallarmé é sempre permeada por uma crise, que explicita, ao menos, um

momento fundamental em sua obra, simbolizada na passagem metafórica do

“Azul ao Branco”. Ou seja, a transformação de um estado angustiante de

impotência em criação de uma forma possível de encenação, ou ainda, de

ajuste, que garante uma dramatização da poesia na história.

Palavras chaves: Poesia francesa, Mallarmé, Modernidade, crise.

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Resumé

Cette étude se propose de revisiter des thèmes emblématiques de

l'œuvre de Mallarmé, en les contextualisant dans le discours critique de la

modernité. Ayant pour méthode l'analyse de certains de ses poèmes et de

quelques lettres, cette immersion critique vise à interroger certains

paradigmes établis par la réception de ce travail dans le contexte historique

de la fin du XIXe siècle. En ce sens, on cherche à montrer comment la

constitution de la pensée poétique de Mallarmé est toujours imprégnée par

une crise, qui explicite au moins un moment clé de son travail, le passage de

l’"Azur au Blanc." Autrement dit, celui d'un état affligeant d'impuissance

qui devient une possibilité de création d’une forme possible de mise-en-

scène, ou même, d’un ajustement qui assure une dramatisation de la poésie

dans l'histoire.

Mots-clés: Poésie française, Mallarmé, Modernité, la crise.

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Abstract

The purpose of this study is to revisit emblematic themes of the work

of Mallarmé, critically contextualizing them into Modernism. It consists in

the analysis of some of his poems and letters, this critical immersion, aims

to question certain paradigms established by the reception of this work in

the historical context by the end of the 19th century. Thus, it seeks to show

how the constitution of the poetic thought of Mallarmé is always permeated

by a crisis, which explicit, at least, one fundamental moment in his work,

the transition of “Blue to White”. In other words, the rupture of a

melancholic state of powerlessness to the creation a possible way of acting,

or even, of adjustment, that guarantees a dramatization of poetry in history.

Keywords: French poetry, Mallarmé, Modernism, crisis.

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Prólogo

Nous sommes allés dans la campagne. Le poète “artificiel” cueillait

les fleurs les plus naives. Bleuets et coquelicots chargeaient nos bras. L’air

était feu; la splendeur absolue; le silence plein de vertiges et d’échanges; la

mort impossible ou indifférente; tout formidablement beau, brûlant et

dormant; et les images du sol tremblaient.

Au soleil, dans l’immense forme du ciel pur, je rêvais d’une enceinte

incandescente où rien de distinct ne subsiste, où rien ne dure, mais où rien

ne cesse; comme si la destruction elle-même se détruisît à peine accomplie.

Je perdais le sentiment de la différence de l’être et du non-être. La musique

parfois nous impose cette impression, qui est au-delà de toutes les autres.

La poésie, pensais-je, n’est-elle point aussi le jeu suprême de la

transmutation des idées?

Mallarmé me montra la plaine que le précoce été commençait de

dorer: “Voyez, dit-il, c’est le premier coup de cymbale de l’automme sur la

terre.”

Quand vint l’automme, il n’était plus.

(VALÉRY, Paul. “Dernière visite à Mallarmé” in Varieté I et II. Paris:

Gallimard, 1998, p. 275.)

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Introdução ao desmallarmento

13

Primeira Constelação

A crise e o verso

19

Segunda Constelação: O Azul

“L’Azur! L’Azur! L’Azur! L’Azur!”

38

Terceira Constelação: O Branco

“Nada, essa espuma, virgem verso”

60

Um relance de dados (ou a conclusão) 81

Anexos 91

Bibliografia

109

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Anexos

Lettre à Henri Cazalis [7 janvier 1864]

92

Carta a Henri Cazalis [7 de janeiro de 1864]

95

Lettre à Henri Cazalis [14 mai 1867]

98

Carta a Henri Cazalis [14 de maio de 1867]

102

Sonnet en Yx [duas versões] 106

L’Azur 107

Renouveau

108

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Nota:

Todas as traduções presentes nesse trabalho, tanto das cartas de Mallarmé quanto das

citações de todos os autores, cujo texto original encontra-se em francês, foram feitas por

mim, salvo aquelas em que explicito o tradutor.

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INTRODUÇÃO

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Estatuto do desmallarmento

minha senhora, tem um mallarmé em casa?

você sabe quantas pessoas morrem por ano

em acidentes com o mallarmé?

estamos organizando uma consulta popular

para banir de vez o mallarmé dos nossos lares

as seleções do reader’s digest fornecerão

contêineres onde embarcaremos os exemplares,

no porto de santos, de volta para a frança.

seja patriota, entregue seu mallarmé. olê1

No poema de Angélica Freitas, a associação lúdica entre a imagem

construída de Mallarmé e o contexto do desarmamento não se faz por acaso.

O poema ilustra uma “destituição” de Mallarmé, que é explicada nas

seguintes linhas:

O estatuto do desmallarmento vem questionar certo uso do poeta,

aquele associado ao porte ilegal de seus poemas, textos em prosa, e, até

mesmo, cartas descontextualizadas da crise instaurada na sociedade do

século XIX. Acidentes circunstanciais culminaram no estopim da crise que

se tornou iminente. Todos os envolvidos culpam o verso, pois ele, outrora

escravo do Alexandrino, mesmo diante da inquietude e do caos, proclama

sua libertação. Supõe-se que essa libertação esteja ligada à morte de Victor

Hugo. Apesar de tudo isso, Mallarmé mantém-se como seu fiel e

incontestável defensor. Teria ele alguma culpa nisso? Ou através dele quem

fala é quem eles chamam de Linguagem? A confissão do verso surge

tardiamente e se intitula “Crise de vers”. Mas desconfia-se que essa crise 1 FREITAS, Angélica. Rilke Shake. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 53.

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já tenha se anunciado antes, em uma rápida aparição discreta já em 1656.

O estatuto nasce então como uma tentativa de entendimento dessa crise,

que não diz respeito somente ao verso. Há estudos que comprovam que ela

se espalhou por diversas esferas sociais. Mas esses estudos não são

exatamente certeiros. Eles se autointitulam ficção. Por isso,

acompanharemos nas próximas páginas a análise das evidências

encontradas na correspondência de Stéphane.

Juntam-se a Mallarmé, os suspeitos Henri Cazalis, Eugéne Léfèbure,

Théodore Aubanel, Catule Méndes. Até mesmo nomes mais conhecidos,

como Villiers de l’Isle-Adam e Paul Valéry não ficam imunes. Trabalha-se

com a possibilidade de existência de uma conspiração que se reúne toda

terça-feira em uma casa na rue de Rome. Lá eles discutem em código, falam

em outra língua, que eles chamam de poética, e que ninguém entende.

Mallarmé é o líder do grupo. Tudo o que ele fala é difícil de entender, em

momento algum faz sentido. Ele diz que o sentido está implícito nas

próprias palavras, e quem não o vê é porque não está realmente interessado

em ver. Acredita-se que eles inventaram essa língua apenas para proteger o

verso de ataques caluniosos.

Essa brincadeira narrativa encena o objetivo do presente trabalho.

Esse “desmallarmento” se traduz por uma revisitação de parte da sua obra,

para inseri-la no discurso crítico da Modernidade. E essa crítica não se

limita ao poético, pois não está afastada do contexto histórico e social de um

“estado de crise” geral (crise da linguagem, crise dos costumes, crise da

razão, entre outras) que ganha certa notoriedade na segunda metade do

século XIX. Essa contextualização nos permite também procurar entender a

dificuldade de recepção que a poesia de Mallarmé encontra nesse século e

que se estende ao longo do século XX. Essa dificuldade vai gerar definições

duvidosas atribuídas a ele, desde poeta ícone do Simbolismo, até “caricatura

ou caso limite da nova escola [parnasiana]”2. Sem dúvida, a figura do poeta

hermético e parnasiano destoa completamente de qualquer discurso crítico,

2 MARCHAL, Bertrand (org.). “Préface” in Mallarmé. Mémoire de la critique. Paris:

Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1998, p. 7.

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e por isso ela também merece ser questionada. Para tal tarefa, o método

utilizado encontra-se na análise de certas cartas de Mallarmé, presentes na

sua vasta correspondência, algumas delas reunidas sob o título de

Correspondance. Lettres sur la póesie.

O foco do estudo recai principalmente nas cartas em que fica

explícita uma “passagem” ao poético, ou seja, quando elas deixam de ser

apenas registros autobiográficos para se tornarem também esboços críticos.

Essa crítica abrange o próprio processo de criação literária, visando à

aquisição de um método. Isso é comprovado, especificamente, em duas

cartas endereçadas a Henri Cazalis - não por acaso - um de seus maiores

“confidentes”: uma sobre a concepção de um poema, intitulado “L’Azur”; e

outra que relata o momento de aparição de uma Obra descrita por Mallarmé

como a “explicação órfica da terra”. Essas duas cartas tornam-se

emblemáticas por definirem uma mudança, em que se opera uma ruptura,

um “antes e depois” no pensamento de Mallarmé em relação à criação de

sua poesia. Elas viriam então coroar dois momentos pontuais constituintes

da estética mallarmaica.

O primeiro momento é percebido na carta de 1864, em que Mallarmé

explica o método por ele utilizado na criação do poema “L’Azur”3. A

Impotência figura aqui como o principal empecilho na obtenção do

resultado almejado no poema. E ela aparece materializada pelo Azul: “O

Azul tortura o impotente em geral”4, confessa Mallarmé. Além disso, esse

Azul passa a representar um ideal de totalidade impossível de ser traduzido

na escrita. E essa impossibilidade, que torna o poeta um impotente, faz com

que ele só possa se lamentar e cantar sua desgraça. Sendo assim, o poema

condensaria toda a angústia do poeta, simbolizando seu estado melancólico

diante daquilo que ele não pode compor.

No segundo momento, diante dessa consciência da impossibilidade

de acesso a uma escrita ideal, que expressasse uma totalidade “perfeita”

3 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].

4 Cf. Idem, ibidem.

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(como o Azul), resta ao poeta jogar com a possibilidade de criação poética.

Essa aposta se traduz na carta de 18675, após a visão de uma Obra perfeita.

Depois dessa “revelação”, Mallarmé encena a morte de seu pensamento

anterior (simbolizado na primeira carta), para que dessa eliminação possa

imergir, posteriormente, uma “poética muito nova”, cujo lema seria pintar

não a coisa em si, mas o efeito que ela produz ao mostrar inteiramente em

sua “nudez ideal”6. Esse efeito nasceria então da ausência do objeto, da

“coisa”, que no momento de seu apagamento, nos deixaria seu rastro. Esse

rastro seria contornado pelo Branco: vazio passível de preenchimento pelo

surgimento de uma ideia que assumiria o lugar do objeto perdido. Portanto,

o Branco representaria simbolicamente, nessa “poética de efeitos”, um

espaço possível onde poderia emergir qualquer ideia obtida mediante uma

aposta no pensamento.

Em suma, essa passagem do “Azul ao Branco” marca uma passagem

de um estado angustiante de impotência à criação de uma forma possível de

dramatização, ou ainda, de ajuste, a partir do qual, segundo Marcos Siscar,

“a poesia pode pensar sua relação com a crise não apenas como contexto,

mas como discurso (como projeto e como retórica) da época moderna”7.

Essa crise enquanto contexto, vai sempre permear o processo criativo de

Mallarmé, seja sob a forma de uma depressão, ou pelo medo do “abismo da

morte”; e enquanto discurso se materializa em dois textos cruciais: “Crise

de vers” e “Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard”. Nesses textos,

apesar de suas diferenças estruturais, vemos a condensação, pela própria

linguagem, do discurso de uma crise que se encontra internamente e

externamente a ela. Sendo assim, esse discurso dá ao verso, à linguagem, o

direito de reivindicar uma voz própria, ou antes, uma participação crítica,

visando sua “regulamentação” na Modernidade.

5 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [14 de maio de 1867].

6 Cf. MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in

Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,

pp. 380-381. 7 Idem, ibidem, p. 112.

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Como o poema de Angélica Freitas mostra, a discussão sobre essa

“regulamentação” se estende para além da Modernidade. Mas digamos que,

se ela não começa com Mallarmé, é ele que passa a ser, de fato, seu

principal defensor. É o que o “estatuto” vem ironicamente constatar. Todo o

poder que o poeta atribui à linguagem merece ser reconhecido e repensado

de uma forma crítica, pois só assim podemos estabelecer um lugar a sua

poesia no nosso tempo. E isso significa dar à linguagem toda autonomia

para que ela seja destituída de seu papel “servil”, para que não possa mais

figurar como simples “moeda de troca”. Quando esse reconhecimento for

instituído, Mallarmé começaria então a ser repensado. Com esse intuito,

“estatuto do desmallarmento” entra em vigor a partir de agora.

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PRIMEIRA CONSTELAÇÃO

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19

“Nous avons tous, encore et toujours,

conscience de la Crise et nous sommes tous

persuadés qu’il faut <intervenir>”

Philippe Lacoue-Labarthe

A importância de Mallarmé na cena artística da época em que viveu

foi, sem dúvida, reconhecida já aos olhos dos seus contemporâneos. A prova

de que era visto como uma figura relevante é o fato de ele inspirar, ainda em

vida, dezenas de outros importantes artistas, como os escritores simbolistas

franceses e os compositores da escola impressionista. Em 1894, Mallarmé já

havia se tornado uma personalidade bastante presente no meio parisiense.

Conhecido por sua elegância e gentileza, pelo seu talento de “causeur

rafinné”, ele se punha no centro de um círculo social em que todos o

admiravam. Seus encontros, suas famosas “Terças-feiras na rue de Rome”,

eram sempre frequentados por seus ilustres amigos pintores, poetas,

músicos, como Manet, Degas, Vuillard, Chavannes e Debussy, entre outros.

Entretanto, o efeito produzido pela obra de Mallarmé na construção da

subjetividade que hoje chamamos moderna ainda não havia sido percebido

naquela época. Essa percepção foi se fortalecendo e sendo desenvolvida

com o passar dos anos. Sem dúvida, falar sobre Mallarmé envolve a análise

de alguns mitos criados ao longo dos anos pela proporção que sua obra

tomou no que podemos nomear como “discurso da Modernidade”; e esse

discurso não cessou de crescer.

Por exemplo, uma interpretação simbolista da obra de Mallarmé nos

levaria ao uso sistemático de adjetivos que até hoje permanecem ligados a

ele, como hermético, misterioso, obscuro. No entanto, há muitos

“Mallarmés” a serem considerados. Pode-se falar do jovem que em 1862

publica, anônimo, seu primeiro livro; ou do aluno do liceu de Sens,

profundo admirador e possível tradutor de Edgar Allan Poe1, cujo método

de trabalho inspira a feitura de seus poemas, mas que também os escreve

pensando em Hugo e Musset. Há também o Mallarmé spleenético,

1 Mallarmé tentava desde 1860 traduzir a obra de Poe.

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profundamente marcado pela melancolica e pela poesia de Charles

Baudelaire, que em 1866 publica dez poemas no Parnasse Contemporain.

Assim como temos o professor de inglês, entediado com uma vida no Liceu;

ou ainda, o marido devoto, o pai marcado pela dor da morte prematura do

filho, o anfitrião dos “mardis à la Rue de Rome”, o poeta obcecado pelo

trabalho do verso.

Porém, em contraste com todos os mitos e possíveis definições que

lhe possam ser atribuídos, o que vemos em sua correspondência,

principalmente no período em que morou na province francesa (em

Tournon, em Besançon e em Avignon), é o esboço de um homem simples,

Stéphane2. Em suma, um pai de família, profundamente angustiado com sua

condição, e forçado a levar uma vida como professor de inglês “unicamente

porque a vida de homem das letras não assegurava a existência de [sua]

mulher e de [uma] adorável menininha”3. O ar provinciano das cidades onde

morou antes de se estabelecer em Paris o perturbava pela sua incapacidade

de produzir “boa conversa”, assim como a situação em que viviam os poetas

da época, e a própria forma como era tratada a poesia. Mallarmé punha em

questão o lugar da poesia em seu tempo, e principalmente, o lugar, ou

melhor, a falta de lugar do poeta na sociedade moderna. O que o leva a

2 Stéphane Mallarmé nasce, na verdade, Étienne Mallarmé no dia 18 de março de 1842 em

Paris. Filho de Numa Florent Joseph Mallarmé e de Elisabeth Felice Desmolins, perde a

mãe muito cedo (1847), o que o leva aos cuidados de seus avós. Dez anos após a morte da

mãe, perde a irmã mais nova Maria nascida em 1844. Na juventude, leva uma vida em

pensionatos, primeiro em Passy (1852) e depois em Sens (1856), onde conhece o professor

e, posteriormente, amigo Emmanuel des Essarts. Em 1862 conhece a governanta alemã

Maria Gerhard, que seria sua esposa durante toda a vida. Nesse mesmo ano, parte para

Londres para viver ao lado dela; seis meses depois seu pai morre. Em 1863 é nomeado

professor de inglês, função que exercerá em Tournon, depois em Avignon e, por fim, em

Besançon. Em 1864, começa a escrever seu poema Hérodiade, pouco antes de sua filha

Geneviève nascer. No ano seguinte, compõe L’Après-Midi d’un faune, na mesma época em

que conhece o poeta Leconte de Lisle. No mesmo ano em que volta a morar em Paris, 1871,

realizando um antigo desejo seu, nasce seu filho Anatole, que morrerá de forma trágica aos

oito anos de idade. A dor da perda do filho irá acompanhar Mallarmé no resto de sua vida,

até sua inesperada morte no dia 9 de setembro de 1898. 3 “Entré dans un lycée, grâce à quelques mots d’anglais appris à Londres, uniquement parce

que la vie d’homme de lettres n’assurait pas l’existence de ma femme et d’une charmante

petite enfant”. (MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Victor Pavie” [Fevereiro de 1866] in

Correspondance. Lettres sur la poésie, MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard,1995,

p. 283.)

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afirmar: “O caso do poeta, nesta sociedade que não lhe permite viver, é o

caso do homem que se isola para esculpir seu próprio túmulo”4.

Mas seguindo os passos de Baudelaire e Poe, Mallarmé enxergava

no espaço poético – seu próprio “túmulo” – a possibilidade de criação que

lhe tiraria de um ostracismo existencial. No longo período em que viveu na

cidade de Tournon, tendo enfrentado uma crise existencial que culminou em

um período de depressão, Mallarmé agarrou-se ao verso como à

possibilidade de “cura” de sua existência cotidiana. É por isso que, nas

cartas endereçadas a seus amigos também poetas, notamos uma

preocupação do autor em dar forma e preponderância a uma busca em meio

ao processo artístico. As constantes referências em sua obra à Beleza e à

Perfeição podem ser traduzidas como parte de um projeto de busca da

“grande Obra”, a Obra perfeita, que daria sentido a sua vida. Entretanto,

ironicamente, esse projeto já nasce fadado ao fracasso, pois Mallarmé sabia

da impossibilidade dessa Obra enquanto forma finita, acabada: “Eu a sonho

tão perfeita que não sei se ela existirá um dia”5. Assim, o que se passa no

percurso dessa busca é desde sempre mais interessante do que seu próprio

resultado. A própria busca em si, que, segundo o escritor francês Maurice

Blanchot, constitui-se em uma experiência de risco, em uma arriscada

“busca obscura, atormentada”6.

Essa busca corroboraria o próprio processo de aquisição do que hoje

nomeamos “moderno” em poesia. Processo esse que não se completa, pois

está em constante renovação. Não é à toa que Henri Meschonnic afirma que

a “Modernidade é um combate”7, onde diferentes subjetividades sempre se

encontram em um estado nascente, indefinidamente nascente, de sua história

e de seu sentido. Sendo assim, ao admitirmos a Modernidade como um

4 “La vocation póetique est le cas d’un homme qui s’isole pour sculpter son propre

tombeau”. (MALLARMÉ, S. in ABASTADO, Claude. Expérience et théorie de la création

poétique chez Mallarmé. Paris: Lettres modernes, 1970, p.17. 5 “(...) Je la rêve si parfaite que je ne sais seulement si elle existera jamais”. (MALLARMÉ,

S. “Carta a Catulle Mendès” [24 de abril de 1866], op. cit., p. 295.) 6 Cf. BLANCHOT, Maurice. « O Desaparecimento da literatura » in O livro por vir. São

Paulo: Martins Fontes, 2005. 7 Cf. MESCHONNIC, Henri. Modernité Modernité. Paris: Verdier, 1988, p. 9.

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dispositivo que nos permite criar inúmeras possibilidades do sujeito, de sua

história e de seu sentido, não resta à poesia - que se quer moderna – nenhum

tema, nenhum sentido, nenhuma história previamente conhecidos. O que a

põe em contato com seu próprio “desconhecimento de si”. Pelas palavras do

escritor alemão Herman Hesse, a poesia não teria hoje nenhum outro valor

senão o “de exprimir sob forma de confissão, e com [a] maior sinceridade

possível, seu próprio desamparo e o desamparo de nosso tempo”8.

Essas palavras – mesmo tendo sido pronunciadas em 1925 –

poderiam muito bem ilustrar essa busca “obscura e atormentada” referida

por Blanchot. Ou ainda explicar o valor da poesia “moderna” na sociedade

moderna que seria “confessar o seu desamparo”, traduzir a sua própria

insustentabilidade, o seu próprio fracasso frente a sua época. Da mesma

forma, o artista também se encontra no mais completo desamparo, pois, de

acordo com Blanchot, ser artista é nunca saber que já existe uma arte, nem

que já existe um mundo, sua solidão é seu risco, o risco inerente da escrita9.

Por isso, é necessário para o artista moderno sempre arriscar-se, a fim de

buscar uma linguagem, um mundo. Escrever para tentar suprir uma falta –

da escrita e do mundo: esse é o seu risco constante, o risco da escrita. E essa

busca da forma estética capaz de exprimir a “falta inerente” a cada artista

esbarra, na Modernidade, em uma crise da representação, uma “crise da

linguagem”. Essa crise ganha forma e relevância no texto de Mallarmé

intitulado Crise de Vers, onde ele anuncia: “A literatura aqui sofre de

refinada crise, fundamental”10

. A partir daí, a linguagem encenaria e

cantaria sua própria crise.

Convém dizer que a historicidade, o “aqui” da afirmação de

Mallarmé, remete à França da segunda metade do século XIX, onde o

fracasso da Segunda República e das revoluções sociais (inclusive a maior

8 HESSE, Herman in BLANCHOT, M. Op. cit., pp. 246-247.

9 Cf. BLANCHOT, Maurice. “La solitude essentielle” in L’espace littéraire. Gallimard,

1988. 10

MALLARMÉ, Stéphane. “Crise de verso”. Tradução de Ana Alencar. Inimigo Rumor.

Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008, p.150.

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23

delas, a Revolução de 1848) levou o país de volta ao Império11

. Durante o

reinado de Napoleão III, Paris viveu a estabilidade e o apogeu de seus “anos

burgueses”12

, o que a transformou na capital européia – senão mundial - por

excelência13

. É nesse cenário de falsa estabilidade e progresso que o artista –

ou a chamada geração de 1850 - toma consciência de sua alienação frente

aos valores dominantes da cultura burguesa, surge então uma escrita

visionária, consciente e crítica14

. Essa escrita se enuncia e se inscreve em

um contexto filosófico maior, segundo Leyla Perrone-Moisés, não só de

“crise da linguagem”, mas também de “crise do sujeito, crise da

representação, crise da razão, crise da metafísica, crise dos valores, crise do

humanismo, enfim crise de tudo aquilo em que se esteavam a instituição

literária e o exercício da crítica”15

.

Porém, no plano da linguagem das artes essa transformação já se

anunciava antes, mas de forma “contida”. Como notou Michel Foucault16

,

mesmo no Classicismo, em que se almejava um discurso claro, pleno e

objetivo (que fundamentava o pensamento clássico), nota-se “uma luz um

pouco confusa”: “Nem é de obscuridade que se deveria ainda falar, mas de

uma luz um pouco confusa, falsamente evidente e que oculta mais do que

manifesta”17

. A própria imagem que ilustra a capa do livro As palavras e as

coisas, de Foucault, é um exemplo dessa luz, e constitui um prelúdio dessa

“crise da representação”. No quadro “As meninas”18

, de Velásquez, a meia-

11

Com o golpe de Louis Napoleon Bonaparte (Napoleão III), instaura-se o Segundo

Império (1852 a 1870). 12

É, de fato, no Segundo Império que ocorre a consagração da alta burguesia industrial. 13

Foi no conturbado século XIX que a França passou por profundas transformações

políticas e sociais, dentre elas a reformulação da cidade de Paris. Pelas mãos do barão de

Haussmann, a cidade passou por uma modernização que, em parte, consistiu na demolição

das ruas estreitas, assim como dos pequenos comércios e moradias da capital para

enquadrá-la à arquitetura dos grandes bulevares. O fator político também influenciou a

mudança arquitetônica da cidade, pois com o alargamento das ruas procurava-se também o

cessar das barricadas - muito recorrentes na época e tão presentes na Revolução de 1848. 14

Cf. OEHLER, Dolf. Terrenos Vulcânicos. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p.25. 15

PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Que fim levou a crítica literária?” in Folha de S. Paulo,

Caderno Mais!. São Paulo, 25 ago. 1996, p. 9. 16

Cf. FOUCAULT, Michel. « O Homem e seus duplos » in As palavras e as coisas. Uma

arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 17

Idem, ibidem, p. 325. 18

Esse quadro, cujo verdadeiro nome é “A família de Filipe IV”, foi pintado pelo pintor

espanhol Diego Velásquez em 1656.

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luz que emana do fundo da tela ilumina o tema central da pintura (nesse

caso, o retrato da infanta Margarida de Espanha), mas a presença dos

espelhos no quarto onde a cena acontece nos revela diversos personagens

que agem sobre a tela, o que proporciona à cena um movimento contínuo.

Esse quadro se impõe até hoje como um enigma, pois explicita a tensão das

diversas influências externas e internas que um objeto sofre ao ser

representado. O aparecimento de diferentes perspectivas e presenças (no

quadro, são elas: a infanta, as “meninas”, o casal real, o próprio pintor, e o

homem que movimenta a cortina ao fundo) torna sua recepção confusa, o

que nos suscita constantemente a pergunta: o que, de fato, Velázquez pinta,

representa?

Esse questionamento vem ilustrar o grande “problema” da arte

enquanto forma representativa, mimética. No quadro, o que ganha

notoriedade em sentido amplo, mais do que os personagens representados, é

a dúvida de como representar, e o que é plausível de ser representado. A

insustentabilidade - ou a quebra - de um discurso único, totalizante, pleno,

que marcaria o limiar do Classicismo para a Modernidade, possibilita à

linguagem das artes ser considerada como uma alteridade, ou, de acordo

com Foucault, como “um ser próprio” dotado de uma “espessura

inquietante”. Torna-se então inevitável a consideração da subjetividade e da

historicidade no seu processo de produção. A Modernidade não vem

inaugurar essa nova concepção, ela apenas destitui-se da pretensão a um

discurso que fosse dotado de uma unidade de sentido. A partir daí, as

palavras não mais representariam as coisas, elas iriam ao encontro de sua

outra face, mais obscura, e se colidiriam no abismo deixado pela linguagem.

Essa dúvida em relação ao objeto e à forma por meio da qual ele é

representado – na pintura e na literatura - se estende ao questionamento da

própria representação em si, ou ainda, da própria possibilidade de se

representar algo ou alguém, e atinge diversas esferas da linguagem artística

e subjetiva. Na poesia, isso vai se traduzir - grosso modo- em inúmeras

tentativas de se pensar a subjetividade, não só expressa pelo

“desaparecimento elocutório do poeta” (“A obra pura implica no

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desaparecimento elocutório do poeta, cedendo iniciativa às palavras”19

), mas

também subentendida na “crise” que atingirá o verso, dando ao poema - ao

verso, tout court - certa autonomia perante a linguagem representativa (“No

tratamento, interessantíssimo, dispensado à versificação, entre repouso e

interregno, jaz, menos que em nossas circunstâncias mentais virgens, a

crise”20

). Sendo assim, a crença no poder de criar palavras perfeitamente

idênticas às “coisas” é definitivamente abalada.

Essa “discórdia” entre representação e linguagem vai gerar –

segundo Octávio Paz – uma “dispersão da imagem do mundo”, que se

converte “no tema central, muitas vezes secreto, [da] poesia”21

. Ou seja,

quando a relação entre as palavras e as coisas se esfuma, e elas cessam de se

entrecruzar, a linguagem perde então sua capacidade de nomear. E nessa

“crise da representação”, a literatura conquista sua autonomia, “o poético, o

artístico e o belo convertem-se em valores próprios e sem referência a

outros valores”22

. Dessa cisão problemática e paradoxal entre linguagem,

realidade e pensamento nasceria o projeto estético da Modernidade. A partir

do momento em que a “grande rede das representações” se desfaz,

rompendo com a estrutura clássica, tradicional, que fundamentava um

pensamento totalizador, inaugura-se um novo “modelo” a ser seguido: um

novo tempo que sempre se renova, uma “escrita do presente”, “um presente

fixo e interminável e, não obstante, em contínuo movimento”23

. Um tempo

presente “mais pleno de subjetividade”, segundo Meschonnic, “em que se

faz, isto é, se desfaz e se refaz, incessantemente, o sentido”24

.

Porém, esse modelo feito de rupturas e carente de referências já

nasceria dúbio, sendo, ao mesmo tempo, crítica e criação. “Uma espécie de

19

MALLARMÉ, S. “Crise do verso”, op. cit., p. 158. 20

(grifo meu) idem, ibidem, p. 156. 21

PAZ, Otávio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1984, p. 11. 22

Idem, ibidem, p. 52. 23

PAZ, Otávio. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:

Perspectiva, 1996, p. 121. 24

MESCHONNIC, H. Op. cit., p. 69.

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autodestruição criadora”25

, em meio à qual “escrever um poema é construir

uma realidade à parte e auto-suficiente”26

. Essa união entre criação e crítica

- ou melhor, a literatura enquanto teoria, e vice-versa27

- já figurava no

cenário literário anterior à Modernidade. Ela se consolida no rastro do

Romantismo alemão, tendo como principal mote a crítica do racionalismo

francês, da submissão ao método que levava a conclusões reducionistas.

Pois como relatam Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em seu livro

L’Absolu Littéraire, os românticos não pretendiam reduzir nada à “tabula

rasa”, como faziam os franceses (les esprits savants), e muito menos

falavam em ruptura ou “instauração do novo”, como defendiam os

modernos. Eles se apoiavam, quase exclusivamente, na afirmação da poesia

enquanto possibilidade crítica, o que hoje definimos como uma primeira

reivindicação do pensamento poético. Como sintetiza Marcos Siscar, em

Poesia e Crise:

Tal capacidade [crítica da poesia] está ligada à

possibilidade, atribuída ou recusada ao poema, mas antes

de mais nada reivindicada por ele, de constituir-se como

um discurso sobre a verdade, de constituir-se como uma

teoria, uma história, ou uma crítica de si mesmo. Existiria

um pensamento poético? Trata-se de uma questão que

fervilha dentro do campo literário, desde pelo menos o

Romantismo alemão, e que se aproxima muito

freqüentemente, [...], na sua versão mais radical, não

apenas da autonomia da poesia, mas da própria

possibilidade da poesia28

.

Essa reivindicação está próxima também do que Michel Collot

chama de engajamento da poesia moderna. Em La Poésie Moderne et la

Structure d’Horizon, ele salienta o caráter ativo e engajado da poesia em

buscar uma referência, um horizonte possível, em construir uma linguagem,

25

PAZ, O. Os Filhos do Barro, p. 19. 26

Idem, ibidem, p. 52. 27

“(...) le romantisme théorique d’Iéna se caractérise comme la question critique de la

littérature dans tout l’ampleur de la surdétermination historique et conceptuelle qui vient

d’être évoquée – ou peut-être même comme la formulation la plus proprement critique

(dans toutes les valeurs et limites du terme) de la crise de l’histoire moderne ”. LACOUE-

LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. L’Absolu Littéraire. Théorie de la Littérature

du Romantisme Allemand. Paris: Seuil, 1978, p. 14. 28

SISCAR, Marcos. “Poesia Cou Coupé” in Poesia e Crise. Campinas: Editora da

Unicamp, 2010, p. 68.

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27

um “discurso sobre a verdade”. Isso se torna explícito pela escolha do verbo

engager que nos transmite a idéia de ação, de movimento, ou, para falar

com Henri Meshonic, de combate: “Todo poema engajando um assunto, um

mundo e uma linguagem”29

. Ou seja, a poesia que surge como um

cruzamento desses três elementos, busca sua “verdade”, seu “horizonte” de

forma engajada, empenhada e comprometida na própria linguagem. Esse

aspecto engajado da poesia vai nos apontar para uma possível e visível

distinção interior da linguagem, questão bastante explorada por Mallarmé:

“Um desejo inegável de meu tempo é o de separar, como por atribuições

diferentes, o duplo estado da fala, bruto ou imediato, aqui, lá essencial”30

.

Se, por um lado, ela seria pragmática, servil, “comunicativa” - a “universal

reportagem”, segundo a formulação célebre de Crise do Verso -, por outro

lado, ela aparece como possibilidade de autenticidade, na medida em que as

palavras, longe da “servidão a um sentido” mais ou menos estável, podem

figurar como protagonistas de seu próprio discurso, encenando-se ora como

ausência, ora como expressão de sua mais completa irredutibilidade ao

sentido.

Dessa forma, a poesia produziria essa nova experiência, em que a

própria busca e reflexão sobre a sua possibilidade de existência seriam o

fundamento necessário ao seu processo de criação, constituindo a

característica sine qua non de seu discurso. Não é à toa que “o Foucault dos

anos 1960, [...] vê em Mallarmé o marco inicial da “literatura propriamente

dita”31

, reconhecendo nele o empenho de “encerrar todo discurso possível

na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a

tinta sobre o papel”32

. “Encerrar todo o discurso na frágil espessura da

palavra” significa abrir o verso a uma generalização, transformá-lo em um

lugar onde esse contexto de crise em sentido lato (crise da representação,

29

(grifo meu) “Tout poème engageant un sujet, un monde et un langage”. (COLLOT,

Michel. La Poésie Moderne et la Structure d’Horizon. Paris : Presses Universitaires de

France, 1989, p.7). 30

MALLARMÉ, S. “Crise de verso”, op. cit., p. 159. 31

SCHEIBE, Fernando. “Sobre Divagações” in Divagações. Stéphane Mallarmé. Tradução

e apresentação Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010, p. 9. 32

FOUCAULT, M. Op. cit., p. 419.

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mas também, crise das instituições, crise política, crise moral, e etc.) vai

resumir-se na sua “frágil espessura”. Talvez isso explique a escolha do título

“Crise de vers” e não “Crise du vers”, a preferência do autor pela preposição

de e não pelo du, expressa um “estado de verso”, ou seja, como diz Siscar:

A crise de verso não designa [apenas] uma interrupção ou

um colapso histórico do verso; antes, uma irritação do

verso, dentro do verso, e a propósito dele. [...] É a situação

na qual ele se manifesta irritado, enervado, em estado

crítico33

.

Por isso, logo no início de “Crise de Verso”, Mallarmé afirma que

lhe apraz “seguir os clarões da tormenta”, antes de aludir à morte de Victor

Hugo como um acontecimento histórico:

Algum leitor francês, com os hábitos interrompidos pela

morte de Victor Hugo, não pode senão se desconcertar.

Hugo, em sua tarefa misteriosa, carregou toda a prosa,

filosofia, eloqüência, história, para o verso, e, como ele era

o verso em pessoa, quase acabou por confiscar, de quem

pensasse, discorresse ou narrasse, o direito de se

enunciar. Monumento neste deserto, com o silêncio longe;

em uma cripta, a divindade, e com ela, a majestática idéia

inconsciente de que a forma chamada verso é

simplesmente a própria literatura, de que há verso tão logo

acentuada a dicção, ritmo tão logo estilo34

.

A morte de Hugo, “o verso em pessoa” e que havia “confiscado” de

qualquer outro poeta “o direito de se enunciar”, abre a perspectiva para a

poesia dos “deliciosos quases”, ao invés dos “orgíacos excessos” expressos

pela altivez do alexandrino. Porém, isso não significa dizer que junto com a

morte de Hugo, opera-se a morte do verso. Muito pelo contrário, nesse

acontecimento decisivo para a poesia (a morte do maître), vemos ela se

libertar do mètre, da métrica. Essa libertação é relatada por Mallarmé: “O

verso, acredito, esperou com deferência que o gigante que o identificava à

sua mão tenaz e sempre mais firme de ferreiro, desertasse, para, então ele

33

SISCAR, M. Op. cit., pp. 107-108. 34

(grifo meu) MALLARMÉ, S. “Crise do Verso”, op. cit., p.151.

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mesmo, romper-se”35

. Na verdade, o que Mallarmé apontava – assim como

o fez, anteriormente, Baudelaire - era a incompatibilidade de continuar a se

fazer poesia em dissonância com a realidade da vida “moderna” e que

carregasse toda a tradição solene e imponente da rima e da métrica. E por

isso, mesmo sabendo que a poesia de Victor Hugo também foi fundamental

ao embasamento da crise, sobretudo por sua tendência à prosa (expressa

pelo uso sistemático do enjambement), isso não o destituía da imagem

autoritária para seus contemporâneos.

A “refinada crise” ganha contornos na própria insustentabilidade do

verso frente às antigas regras formais de composição poética. Após sua

“libertação”, a tradição solene da rima e da métrica passaria a ser vista como

uma herança, que apareceria então como um modo de atualização do verso

em relação ao tempo presente, ou seja, como crítica. Uma crítica que não só

diz respeito à opressora necessidade de clareza imposta pelas regras

parnasianas e neoclássicas (expressa pelo alexandrino e também pelo

pensamento iluminista francês que pregava, acima de tudo, a lucidez da

razão contra as trevas da ignorância), mas também questiona os valores

burgueses de uma classe em notável ascensão. E, por causa desse desacordo

do verso com os valores tradicionais e burgueses, o espaço poético

funcionaria não apenas como resistência à tradição, mas antes e, sobretudo,

como possibilidade de discussão, de crítica a essa tradição, dando respaldo à

experimentação e à criação de novas formas poéticas. Por isso, essa crise

também passa a ser “fundamental”, pois na medida em que questiona a

tradição ancorada no alexandrino, “abre” o verso a novas formas de rima e

de métrica, e, até mesmo, à ausência delas, como o poema em prosa e o

verso livre. É o que nos relata Shoshana Felman:

A revolução poética consiste basicamente na introdução do

verso livre na poesia francesa, uma mudança de forma ou

um afrouxamento das regras poéticas que envolve uma

destituição ou desintegração do alexandrino clássico, o

verso oficial francês, com as tradicionais 12 sílabas e cujas

35

Idem, Ibidem, p. 151.

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rimas e ritmos simétricos tinham se imposto durante

séculos como a única forma possível – e como a única

marca formal – da escrita poética francesa36

.

O verso livre surge para gerar um profundo abalo nas estruturas

hierárquicas da escrita. A quebra da estrutura linear e previsível da poesia

francesa (expressa pelo alexandrino) gerou uma ruptura, um choque que

eliminaria a divisão tradicional entre poesia e prosa, e que seria um prelúdio

para a experimentação visual proposta, por exemplo, pelo poema Um lance

de dados. Pois a partir desse momento, enquanto houvesse escrita, o verso

passaria a ser tudo (Le vers est tout37

), ou “simplesmente a própria literatura

(...) [pois] há verso tão logo acentuada a dicção, ritmo tão logo estilo”38

. E

nesse “interregno” entre tradição e ruptura, continuidade e corte, reiteração e

cesura, surgiria um novo primado do verso. Testemunha de uma crise

inadiável, ele viria para “remunerar o defeito das línguas”39

.

Essa idéia de verso – como já foi aqui frisado – não se limitaria à

frágil espessura da palavra disposta em sequência numa linha. Esse campo

semântico se abriria para o contexto social, cultural, e, até mesmo, para uma

crítica ao papel da linguagem frente à sociedade burguesa do século XIX.

Por isso se torna tão importante a distinção que Mallarmé faz do “duplo

estado da fala”. Da reivindicação da poesia como um discurso que rejeita a

“servidão” ao utilitário, ao imediatismo, ou ainda, que não cede ao apelo

comercial da sociedade de consumo; e também onde o questionamento e a

experimentação da forma poética – entre tradição e ruptura – seriam

possíveis. Utilizando a palavra interregno, Mallarmé atribuiria à poesia um

lugar inerente de crise, entre dois reinados, onde jaz – “entre repouso e

interregno” - uma potencialidade crítica, que longe de um esteticismo

radical - que apartaria o seu discurso do “sentimento de realidade” -

36

FELMAN, Shoshana. “Educação e Crise ou as vicissitudes do ensinar” in Catástrofe e

Representação, São Paulo: Escuta, 2000, p. 31. 37

MALLARMÉ, Stéphane. “Autobiographie” in Oeuvres complètes. Paris: Gallimard,

Pléiade, 1945, p. 664. 38

MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, p. 151. 39

Cf.“Seulement, sachons n’existerait pas le vers: lui, philosophiquement rémunère le

défaut des langues, complement supérieur.” (MALLARMÉ, S. “Crise de vers” in Oeuvres

complètes p. 364.)

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31

“pretende elaborar um lugar para a poesia que se define - pelo menos, é o

caso de Mallarmé - como avaliação e como resposta ao contemporâneo”40

.

É por isso que situar a obra poética de Mallarmé nesse contexto de

crise significaria entendê-la não apenas como uma “mera passagem”, “uma

superação, na transposição de um além da crise: trata-se, em vez disso, de

“uma passagem para a crise, para uma situação em grande parte dilemática,

ou seja, uma situação propriamente de crise, na qual a poesia será entendida

como realização crítica"41

. E isso recai diretamente no tratamento – dado

por ele – ao verso, e, mais especificamente, ao poder sugestivo, encantatório

da literatura frente às outras linguagens: “Falar só não trai a realidade das

coisas quando comercial: na literatura, contenta-se em fazer-lhe alusão ou

em distrair-lhe uma qualidade sua que alguma idéia virá incorporar...”42

A

traição operada nesse processo de “fala poética” é o que vai abrir espaço

para a atualização da idéia da “coisa” representada. Um curioso exemplo

disso é a palavra ptyx, presente no “Soneto em Yx”43

, de Mallarmé. A

palavra, nascida de um estudo sobre a fala (“Extraio esse soneto, com o qual

eu havia uma vez sonhado neste verão, de um estudo projetado sobre a

Fala”44

), destituída de qualquer sentido preestabelecido, figura no soneto

como uma “qualidade” que alguma idéia, dependendo das circunstâncias,

virá incorporar. É o que ele escreve a Eugène Lefébure45

:

[...] faria um soneto e só tenho três rimas em ix, organize-

se para me enviar o sentido real da palavra ptyx, ou me

confirmar que ela não existe em nenhuma língua, o que eu

40

SISCAR, M. Op. cit., p. 74. 41

Idem, ibidem, pp. 74-75. 42

MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, op. cit., p. 157. 43

Cf. Anexos: “Sonnet en Yx”. 44

“J’extrais ce sonnet, auquel j’avais une fois songé cet été, d’une étude projetée sur la

Parole” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [18 de julho de 1868], op. cit., p. 392.) 45

Eugène Lefébure (1838-1908) foi um egiptólogo francês. Mesmo tendo estudado no

Liceu de Sens, assim como Mallarmé, os dois só se conheceram e tornaram-se amigos anos

mais tarde, em 1862. A correspondência entre os dois foi conservada pelo filho de

Lefébure.

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32

preferiria por me proporcionar o encanto de criá-la pela

magia da rima46

.

O fato de Mallarmé criar o ptyx pelo poder da rima nos leva a crer

que a forma adquirida pela palavra se fundamenta na sua sonoridade, na

“musicalidade” de um estudo sobre a fala. Não há busca, ou “legitimação”

do ptyx em nenhum sentido exterior à sonoridade. A proposta de Mallarmé

seria até mesmo um esvaziamento de um possível sentido desconhecido da

palavra. Esse desejo de esvaziamento se faz presente também pela célebre

flor em “Crise de Verso”: não uma simples flor presente nos jardins e nos

buquês, antes uma ideia de flor, que “musicalmente se ergue, idéia em si

mesma e suave, a ausente de qualquer buquê.”

Sem dúvida, o “Soneto em Yx” figura entre os poemas de Mallarmé

taxados como os mais difíceis. As tentativas de esclarecimento do seu

sentido – o que inclui a própria palavra ptyx – sempre foram falhas. O ptyx

surge como um impasse, um “travamento” que não deixa a leitura do poema

fluir, e que ainda impede o desenvolvimento de sua significação como um

todo. Sendo assim, Mallarmé nos explica que o sentido da palavra só seria

garantido momentaneamente, por uma “miragem” que duraria o tempo de

leitura do poema: “Quero dizer que o sentido, se nele existe um, [...] é

evocado por uma miragem interna das próprias palavras”47

. Ou seja,

Mallarmé admite a “falta de sentido” do ptyx, e ainda “cria” ironicamente

uma situação para o entendimento do soneto, como vemos na carta a Henri

Cazalis:

- Por exemplo, uma janela noturna aberta, as duas

persianas amarradas; um quarto sem ninguém dentro,

apesar do ar estável que as persianas amarradas

apresentam, e em uma noite feita de ausência e

interrogação (esquecimento), sem móveis, a não ser o

esboço plausível de vagos consoles, uma moldura,

46

“[...] Je fisse un sonnet, et que je n’ai que trois rimes em ix, concertez-vous pour

m’envoyer le sens réel du mot ptyx, ou m’assurer qu’il n’existe dans aucune langue, ce que

je préférais de beaucoup afin de me donner le charme de le créer par la magie de la rime”.

(MALLARMÉ, S. “Carta a Eugène Lefébure” [3 de maio de 1868], op. cit., p. 386). 47

“[...] je veux dire que le sens, s’il en a um (...) est evoque par un mirage interne des mots

mêmes”. (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [18 de julho de 1868], op.cit., p. 392).

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33

monstruosa e agonizante, de um espelho suspenso ao

fundo, com sua reflexão, estelar e incompreensível, da

grande Ursa (Ourse), que religa (relie) apenas ao céu essa

morada abandonada do mundo48

.

A referência “fechada” do ptyx, “alegórica de si mesma”49

nos

lembra o comôdo onde é pintado o quadro de Velásquez, e também o

ambiente descrito no início de “Crise de Verso”: “Diversas obras, sob o

vidrilho da cortina, virão alinhar sua própria cintilação: apraz-me como

neste céu maduro, no reflexo da vidraça, seguir os clarões da tormenta”50

. A

linguagem que se refletiria nela mesma, ou as palavras expostas em sua

própria cintilância e que “se acendem pelos reflexos recíprocos”,

enfatizariam a materialidade da linguagem, assim como o problema de sua

referência. Isso se torna mais evidente no segundo terceto do poema, quando

aparece a figura do espelho, o mesmo espelho visto no quadro do pintor

espanhol, que remete igualmente ao efeito de espelhamento percebido na

atmosfera descrita no início de “Crise de Verso”, e no ambiente proposto

por Mallarmé para o entendimento do soneto.

O efeito de “espelhamento” do soneto é acentuado em sua versão

final – que data de 1887 – se a compararmos com a primeira versão de

1868. A mudança do título (de “Sonnet allégorique de lui-même” para

“Sonnet en yx”), e, principalmente do segundo verso, da segunda estrofe (de

“insolite vaisseau d’inanité sonore”, ele se transforma em “Aboli bibelot

d’inanité sonore”), confirmariam esse efeito: abOLI bIbeLOt d’inanité

sonore. Isso nos leva a considerar que o sentido do poema e da palavra ptyx

– se é que existe um, como diz Mallarmé – só pode ser percebido na própria

48

“- Par exemple, une fenêtre nocturne ouverte, les deux volets attachés, et dans une

nuitfaite d’absence et d’interrogation, sans meubles, sinon l’ébauche plausible de vagues

consoles, un cadre, belliqueux et agonissant, de miroir appendu au fond, avec sa réflexion,

stellaire et incompréhensible, de la grande Ourse, qui relie au ciel Seul ce logis abandonée

du monde” (Idem, ibidem). 49

Inicialmente, o “Soneto em Yx” se chamava “Sonnet allégorique de lui-même”. 50

MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, op. cit., p. 151.

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“miragem interna das palavras”, e é criado pela própria forma, pois “a

palavra precede a coisa, a forma cria o sentido”51

.

Mas pela análise da metáfora da grande Ursa que religa esse

ambiente (essa morada) ao céu, percebe-se um novo adendo no

entendimento do sentido e da referência desse soneto. Se considerarmos

essa morada abandonada do mundo como a própria poesia, acentua-se seu

caráter solitário e hermético, tendo como única fonte de referência ela

mesma. No entanto, através do espelho, mais especificamente, do reflexo

que vai trazer para o “quarto” a constelação da grande Ursa, ela pode

encontrar uma ligação com o céu. Sendo a Ursa maior uma das mais

facilmente identificáveis constelações, ela traria à poesia uma maior

visibilidade, ao mesmo tempo em que a afasta da solidão e do “hermetismo”

do quarto. Essa ligação entre a constelação e a poesia gera uma espécie de

comunidade entre elas, onde a poesia se reconhece no espaço delimitado do

céu, e a constelação ganha um “espaço” no cômodo fechado, afastado do

mundo. A poesia então, mesmo gozando de sua auto-referência, mantém um

vínculo que a religa ao mundo – ao céu, às constelações – e que traz esse

mundo a ela.

Essa questão da referência expõe o problema da impossibilidade de

uma recepção “quase” pragmática do soneto. Mas esse impasse, ao invés de

tornar a recepção desse poema – e seu próprio entendimento - ininteligível,

impossível, acentua a possibilidade que a poesia tem de apostar em um dos

muitos sentidos possíveis de lhe serem atribuídos. Essa possibilidade de um

“quase-sentido” é que vai caracterizar – grosso modo - a poesia dos

deliciosos “quases”.

Se a linguagem passa, no século XIX, de um discurso pleno e

totalizador para um discurso de crise, onde se opera uma ruptura,

fragmentação de sua totalidade, a singularidade de seu sentido e de sua

referência unívoca fica prejudicada. O que também implicaria na sua

51

“[...] le mot precede la chose, le forme crée le sens”. (MALLARMÉ, S. “Carta a Eugène

Lefébure” [3 de maio de 1868], op. cit., p. 386).

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recepção “confusa” por parte do público. O questionamento da forma

poética, expresso não só na quebra da estrutura do verso (subentendida no

aparecimento do verso livre em detrimento do alexandrino), mas na

impossibilidade de se estabelecer acabamento e finitude à própria forma em

geral, aparece como um imperativo nessa “nova” concepção da arte. Nesse

sentido, a palavra ptyx surge como um emblema do “fracasso” da unidade

formal, ou como um contratempo que dificulta a assimilação do poema. Isso

porque sua forma é um reflexo de uma crise interna e externa ao verso. Pois

o poema – a forma verso, ou a própria literatura - não carrega apenas um

“estilo de escrita” de determinado autor, ou de determinada época; de

maneira que pelo desaparecimento elocutório do poeta, e pela iniciativa

concedida às palavras, no interregno da forma, elas (as palavras) seriam seu

próprio paradoxo.

O caráter revolucionário e engajado da poesia enquanto forma se

pronunciaria por meio dessa ambigüidade. Como explica Hugo Friedrich,

Mallarmé “não quer somente que a palavra seja o grau mais elevado, o mais

solene da língua inteligível, mas ainda que ele seja a dissonância absoluta,

irredutível a toda normalidade”52

. Talvez essa seja sua diferença em relação

a Victor Hugo. Enquanto Hugo via e defendia um certo uso da poesia – e do

alexandrino – ancorado “na tradição solene da rima e da métrica, que

combinaria com brindes em recepções elegantes e com o aparato de festas

cívicas”53

, Mallarmé propõe outro tipo de brinde, aquele que celebraria a

própria alteridade da poesia, ou a tornaria mais próxima de uma comunidade

poética. Onde, em uma constelação (“Sonnet em Yx”), ou mesmo na

iminência de um naufrágio (“Salut”, “Um Lance de Dados”), ela pudesse se

reconhecer como parte integrante na busca – ou no engajamento – de um

sujeito (tema), de uma linguagem, de um mundo. Mallarmé não

desqualificava a tradição, muito menos a negava. Ele reconhecia seu lugar

52

“Il ne veut pas seulement que le mot soit le degré le plus élevé, le plus solennel de la

langue intelligible, mais encore qu’il soit la dissonance absolue, irréductible à toute

normalité”. (FRIEDRICH, Hugo. Structure de la poésie moderne. Paris: Librairie Générale

Française, 1999, p. 163). 53

SISCAR, M. Op. cit., p. 108.

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“raro e excepcional”, mas ao defender a “dissonância da normalidade” ele

estimularia a “busca obscura e atormentada” da forma, do sentido, e da

referência dentro do espaço literário. Uma busca pelo que essa linguagem

teria de “moderno”, no sentido que Meschonnic atribui ao termo: não uma

procura vil pelo “novo” em si, mas antes “a abolição da oposição entre o

antigo e o novo”54

.

Mas essa experiência “da crise” começa a ganhar forma e contexto

em Mallarmé junto de uma crise pessoal, a chamada “crise de Tournon”55

.

Por essa crise, notamos uma virada em sua obra, que, segundo Marcos

Siscar, passaria de “uma poesia de juventude mais próxima de elementos

idealistas, ou seja, do desejo escapista do mergulho no azur, para uma fase

que inclui tanto a preocupação com o efeito [...] quanto a obsessão pelo

tema da impotência”56

. Essa ruptura é influenciada também pelo início da

escrita de seu poema Herodíade. Assim, pode-se dizer que cooexistem na

obra de Mallarmé (e também em sua correspondência) um verdadeiro

paradoxo, ou, dois momentos, duas fases cruciais marcantes. Uma

representa a consciência de que não há uma linguagem capaz de materializar

aquilo que o poeta sonha em escrever (o que apontaria para certa

“Impotência”, e “ausência da linguagem”); e outra aponta o caminho que, a

partir dessa constatação, transformaria essa Impotência em trabalho, em

“apego” total ao que o verso poderia criar, ao efeito e à capacidade que ele

tem de construir um lugar possível de inscrição do poético, capaz de encenar

uma existência representativa, e, ao mesmo tempo, crítica. Um lugar onde se

desenrolaria e se encenaria a crise. E é isso que tentarei mostrar nos dois

capítulos subseqüentes.

54

MESCHONNIC, H. Op. cit., p. 76. 55

Essa “crise” data de 1863 a 1866, época em que Mallarmé morava na cidade de Tournon,

no interior da França, onde ele teria enfrentado uma forte depressão. 56

SISCAR, M. Op. cit., p.74.

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SEGUNDA CONSTELAÇÃO

O Azul

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38

“As coisas não querem mais ser vistas por

pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de

azul”

Manoel de Barros

Na manhã do dia sete de janeiro, aos vinte e um anos de idade,

Mallarmé envia a seu amigo Henri Cazalis1 uma carta sobre um poema

intitulado L’Azur:

Enfim envio-lhe este poema sobre o Azul, que você parecia

tão desejoso de possuir. Trabalhei nele, nestes últimos dias,

e não esconderei que ele me causou um desconforto

infinito – além do fato de que antes de pegar a pena era

preciso, para conquistar um momento de perfeita lucidez,

demolir minha desoladora Impotência.*

A carta explica o método de composição utilizado por Mallarmé para

chegar a tal poema. Junto com a carta está o próprio poema que Cazalis

“parecia tão desejoso de possuir”. Ao descrever seu processo de criação, o

jovem Mallarmé relata um desconforto infinito que culmina em uma terrível

agonia, sofrida em seu pensamento: “Juro a você que não há uma palavra

que não me tenha custado várias horas de pesquisa”. Isso ocorre antes de ele

encontrar uma forma que pudesse traduzir perfeitamente aquilo que ele se

dispunha a dizer, pois era necessário primeiramente acabar, silenciar, sua

“desoladora Impotência”. Essa Impotência, o principal assunto a ser

desenvolvido no poema, e que causa o “desconforto infinito” no poeta,

aparece aqui – na carta e no poema – materializada e representada pela

simbologia atribuída ao “Azul”, que remeteria a um Ideal inacessível e que

por isso “tortura [e oprime] o impotente em geral”2.

1 Henri Cazalis (1840-1909) foi um médico e poeta francês muito próximo de Mallarmé. A

inúmera correspondência entre os dois mostra o grau de amizade, de consideração que

Mallarmé nutria por Cazalis. Ele vai figurar como seu principal mentor, opinando

decisivamente em diversos poemas de Mallarmé.

* A versão integral e original da carta sobre o poema “L’Azur” encontra-se nos “Anexos”,

junto do próprio poema, e de uma versão da carta traduzida por mim. 2 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].

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Para entender essa afirmação, é preciso contextualizá-la no universo

em que vivia Mallarmé naquela época. A carta foi escrita em 1864, ano em

que ele foi morar no interior da França – na cidade de Tournon – com a

missão de ensinar inglês em uma escola da região, situação que não lhe

agradava em nada. Ele se via obrigado a aceitar essa vida de funcionário

público para sustentar sua esposa Marie Gerhard, sua “alemãzinha”. Os

relatos que temos desse tempo mostram um jovem extremamente

angustiado, e essa “terrível agonia”, relatada na carta, fazia parte de um

longo processo de angústia que o acometia desde os tempos do Liceu de

Sens3, e que imperava tanto sobre sua vida profissional (o trabalho como

professor de inglês no Lycée era demasiado desgastante) quanto sobre sua

vida pessoal (ele se declarava infeliz por não ter o tempo necessário para se

dedicar à poesia). Em relação à escrita, as cartas anteriores ao ano de 1864

mostram um sentimento de impotência, no sentido mais amplo:

impossibilidade de se consagrar integralmente à poesia, mas, sobretudo,

impossibilidade de criar em poesia algo autoral, digno de ser considerado

“novo”. Porém, seria justamente essa necessidade de inovação – em sua

vida e em sua poesia – que o tiraria de um estado inicial de estagnação.

Como se a aquisição de um Ideal – por mais que sua realização lhe

parecesse longínqua - lhe garantisse uma renovação espiritual e poética.

Esse ideal parece se configurar em 1862, quando ele comenta pela

primeira vez seu soneto “Vere Novo”4. Após um período de “impotência”

(que se reflete em certa escassez literária), ele finalmente consegue terminar

o soneto motivado pela necessidade de inovar. Esse soneto – uma primeira

versão de “Renouveau”5 - já nos prepara, posteriormente, para o poema “O

Azul”. Aqui, a impotência já aparece estendida “em um longo bocejo”

3 Dos 17 aos 20 anos, Mallarmé estudou no Liceu de Sens, onde conhece o então professor

que se tornaria seu amigo Emmanuel des Essarts. Antes de se estabelecer em Tournon,

Mallarmé passa uma temporada em Londres (1862/1863). Nessa época ele começa a

traduzir alguns poemas de Edgar Allan Poe. O tempo vivido na Inglaterra o capacita a dar

aulas de inglês na França. 4 Cf. MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Henri Cazalis” [4 de junho de 1862]

Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,

p. 55. 5 Cf. Anexos: “Renouveau”.

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(“L'impuissance s'étire en un long bâillement”6), e cabe ao poeta apenas

esperar o tédio7 (“J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève...”) e o

“riso” do azul (“Cependant l'azur rit sur la haie et l'éveil”). Segundo

Mallarmé, o novo gênero de poesia que o poema postulava - em que “os

efeitos materiais, do sangue, dos nervos são analisados e mesclados aos

efeitos morais, do espírito, da alma” - seria uma “combinação [...] bem

harmonizada, [...] nem tão física, nem tão espiritual”, e que poderia enfim

“representar alguma coisa”8. Ou seja, esse estado mental (de “impotência”,

de “tédio”, de “angústia”) que parece ter se apropriado de Mallarmé durante

a primavera, mesclando-se ao trabalho da escrita, do verso, lhe daria a

autoridade de tentar defini-lo pela escrita, de “dizê-lo”, ou melhor, de

maldizê-lo (“Após três meses de impotência, estou finalmente livre, e meu

primeiro soneto é consagrado a descrevê-la, ou melhor, maldizê-la”9) E por

isso – em uma clara referência a Baudelaire – o soneto poderia se chamar

Spleen Printanier.

A influência de Baudelaire no poema não se restringe apenas ao

nome. Se lermos “Vere Novo” / “Renouveau” à luz do soneto

“Correspondances”10

, encontraremos muitas semelhanças entre os dois, ao

6 Vale lembrar também o poema de abertura de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, “Au

lecteur”: “Il ferait volontiers de la terre un débris / Et dans un bâillement avalerait le

monde; / C’est l’Ennui!” (BAUDELAIRE, Charles. “Au lecteur” in Les Fleurs du Mal.

Paris: Librarie Générale Française, 1972, p. 7). 7 Na primeira versão (1862) do soneto, ao invés de esperar o tédio (ennui), o poeta espera o

Nada: “J’attends, en m’abîmant, que Le Néant se lève...”. 8 “C’est un genre assez nouveau que cette poésie, où les effets matériels, du sang, des nerfs

sont analysés et mêles aux effets moraux, de l’esprit, de l’âme. [...]Quand la combinaison

est bien harmonisée et que l’oeuvre n’est ni trop physique ni trop spirituelle, elle peut

représenter quelque chose” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [4 de junho de 1862]

in op. cit., p. 54-55). 9 “Après trois mois d’impuissance, j’en suis enfin débarrasé, et mon premier sonnet est

consacré à la décrire, c’est-à-dire à la maudire”. (Idem, ibidem). 10

“La Nature est un temple où de vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L'homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

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ponto de pensarmos em uma possível correspondência entre eles. Se

Mallarmé diz que os efeitos materiais associados aos efeitos morais

produziriam “alguma coisa”, mesmo um estado de espírito (impotência)

materializado no poema pelo “longo bocejo do tédio”, Baudelaire faz

transparecer essa “coisa” ao recriar uma imagem da natureza, onde

“confusas palavras”* só seriam inteligíveis quando os sons, as cores e os

perfumes se respondessem. Seria quando os elementos do universo se

encontrassem em perfeita harmonia que essa natureza descrita no poema

ganharia forma, através, precisamente, do jogo das correspondências. Essa

possibilidade de recriar a natureza ideal, mesmo inacessível, inalcançável,

como o “Azul”, passaria pelo crivo da escrita, pois somente na linguagem

ela existiria. A impotência se justificaria e, ao mesmo, tempo se anularia

nesse ponto.

Ela seria justificada primeiramente pela própria impossibilidade de

se atingir – por parte do poeta - o equilíbrio inerente à natureza, na qual

existiria um estado de perfeição, expresso no poema de Baudelaire pela

harmonia dos “sons, [d]as cores e [d]os perfumes”, e em Mallarmé pela

serenidade do azul. Essa impossibilidade de harmonia é expressa em

“Renouveau” de forma revoltante, pois são os “perfumes das árvores” que

fazem com que o poeta furioso (énervé) e cansado (las) tombe diante dessa

perfeição. O grito final do poema L’Azur também traduz a “revolta pérfida e

impotente do poeta”11

com esse estado de perfeição, ou, segundo

Baudelaire, com o “estudo do belo”, que origina “o duelo em que todo

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,

- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l'expansion des choses infinies,

Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,

Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.”

(BAUDELAIRE, C. “Correspondances” in op. cit., p. 16).

* Todas as traduções dos versos dos dois poemas (“Renouveau” e “Correspondance”) para

o português são feitas por mim. Meu objetivo é valorizar a tradução literal de alguns versos

para minha leitura dos poemas, sem me preocupar com a questão da forma. 11

Os versos do poema “L’Azur” citados em português por mim correspondem à tradução

de Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,

2002, pp. 40-43.

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artista se envolve e no qual antes de ser vencido, solta um grito de terror”12

.

Esse grito mostra então a desolação, a angústia do “poeta incapaz que

maldiz a poesia”, diante daquilo que não pode compor. Porém, a natureza

descrita nos poemas – assim como o “Azul” – seria uma tradução, ou uma

transmutação, de um ideal de natureza perfeita, que só poderia ser criada

através da analogia entre o meio natural e o homem que a atravessa. Esse

templo, descrito em “Correspondências”, é composto por uma “floresta de

símbolos” (symboles), ou um conjunto de signos que esperam sua

profanação feita pelas confusas palavras (paroles), e pelo homem que nela

reconhece “olhares familiares”, e, ao mesmo tempo, é observado por eles.

Assim seria por meio desse reconhecimento que ressurgiriam as

reincidências reconhecíveis aos olhos do poeta, o que possibilitaria a

correspondência entre o tempo presente e o passado. Essa rememoração o

levaria a um outro tempo, um tempo reincidente, análogo, “místico”, no

qual existiria a união entre a poesia e a vida.

Nas palavras de Octavio Paz, Baudelaire via “o universo como uma

linguagem. Não uma linguagem quieta, mas em contínuo movimento"13

,

reincidente, no ritmo das analogias. E se “a analogia concebe o mundo

como ritmo”14

, esse ritmo (ou equilíbrio) estaria presente na própria

natureza, no mundo. Mas se para o Romantismo, o equilíbrio dessa

linguagem traria uma promessa de uma estabilização do mundo em uma

unidade perfeita, na Modernidade, a consciência de que não há mais

unidade, nem perfeição, tornaria esse ritmo e essa linguagem fragmentada.

A partir dessa “quebra”, só poderíamos pensar na analogia enquanto

alegoria, ou seja, como atualização e crítica desse tempo anterior, mas que

se expõe apenas de forma fragmentada no tempo presente. Nesse ponto

então, a impotência se anularia. Pois longe de ser uma doença que aflige o

12

Cf. “L'étude du beau est un duel où l'artiste crie de frayeur avant d'être vaincu.”

(BAUDELAIRE, Charles. “Le Confiteor de l’artiste”. Tradução de Ernst Raynaud in

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do

capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 68). 13

PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1984. p. 97. 14

Idem, Ibidem, p. 88.

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poeta, ela seria apenas o reconhecimento, operado pelas reincidências entre

passado e presente, do desejo inalcançável de se criar uma linguagem que

“dissesse” o mundo – ou a natureza – em seu “todo”. Essa consciência

origina uma visão da obra de arte entendida agora como forma marcada pela

temporalidade, e não mais fundamentada em um pensamento divino. Isso

aparece sutilmente em “Renouveau” pela interessante metáfora que

Mallarmé faz das estações, onde mesmo a natureza não estaria imune de

uma referência histórico-temporal: a primavera doentia (representando o

tempo presente), que caça, expulsa o inverno, tempo da arte serena, plena

(tempo analógico), dá ao poeta a consciência do tempo “perdido” em que

teria sido ainda possível uma unidade plena, serena, mas que agora se impõe

inalcançável.

Essa idéia da correspondência universal é provavelmente tão antiga

quanto a sociedade humana. “A analogia torna o mundo habitável”15

, nos

diz novamente Paz. Mas a tradução dessa analogia chega a nós, na

Modernidade, pelo viés da alegoria. Por ela, traduziríamos as reincidências,

o ritmo do mundo, as correspondências entre vida e arte. “Tornar o mundo

habitável”, do ponto de vista alegórico, seria paradoxalmente expor a

própria incapacidade de se criar um mundo perfeito, e até mesmo habitável.

Por meio da alegoria, a linguagem não se transportaria a um primeiro

momento da criação poética, onde ela se encontraria próxima de um ideal de

plenitude, de serenidade. Não se trata de atribuir ao poeta, e à poesia, “a

função estéril de imitar a natureza”16

, como critica Baudelaire, mas de

conceber a criação literária, nesse sentido, como uma tradução crítica dessa

natureza, cujo verdadeiro autor seria a linguagem. No entanto, na visão

alegórica e profanadora, destituída de sua singularidade e divindade, essa

tradução se multiplicaria em uma “pluralidade de textos”, oriundos das

diversas interpretações, profanações feitas “do mundo”. Essa ausência de

unidade que pudesse traduzir o mundo em uma só forma, de acordo com

15

Idem, ibidem, p. 93. 16

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. São Paulo:

Paz e Terra, 1997.

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Paz, “subentende que não há um texto original”17

, e remete novamente à

impotência não só do poeta, como também da poesia. É nesse ponto que a

ironia presente em Mallarmé começa a ser percebida, revelando

inexoravelmente o desejo e, ao mesmo tempo, a incapacidade da linguagem

em recriar uma experiência de totalidade.

Esse “vazio” explorado por Baudelaire, por exemplo, no poema

“L'Héautontimorouménos”, onde o homem seria ironicamente o “falso

acorde” de si próprio, ou o que destoa de uma sinfonia que deveria ser

divina18

, é, posteriormente, desenvolvido, correspondido por Mallarmé em

“Renouveau” (“não é Baudelaire, mas Mallarmé, quem se atreverá a

contemplar esse buraco e a transformar essa contemplação do vazio na

matéria de sua poesia”19

). No fim de “Renouveau” e de

“L'Héautontimorouménos”, respectivamente vemos o poeta condenado ao

riso “eterno” do “azul”, e impossibilitado de ter seu próprio “riso”20

. O

paradoxo estabelecido pela sentença faz parte dessa nova consciência do

mundo como um lugar onde o poeta só poderia encenar uma “totalidade

perdida”. A ironia dessa constatação residiria justamente nesse ponto, no

fato de que essa experiência só pode ser fingida, dramatizada, pois mais do

que pela historicidade, somos marcados, na Modernidade, pela consciência

de nossa finitude. É o que Mallarmé realiza no poema “L’Azur”, e explica

na carta a Cazalis: perseguido pelo “Azul”, ele recorre à matéria (“munido

de admirável certeza, imploro à Matéria”), a escrita, as palavras, lhe servem

como “névoa” (“Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono”), que

“disfarçam” temporariamente sua impotência: “O céu está morto!/ (...) Eis

aí a alegria do Impotente.” Mas a suposta vitória sobre o Céu é, para o

infeliz poeta, apenas uma fuga continuada. No fim, ele constata que o céu

17

PAZ, O. Op. cit., p. 98. 18

Cf. BAUDELAIRE, C. “L'Héautontimorouménos” in op. cit., p.79. 19

PAZ,O. Op. cit., p. 98. 20

Cf. “Je suis de mon coeur le vampire,

— Un de ces grands abandonnés

Au rire éternel condamnés

Et qui ne peuvent plus sourire!”

(BAUDELAIRE, C. “L'Héautontimorouménos” in op. cit., p. 79).

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morto reaparece (“Em vão. O Azul triunfa e canta em glória”21

), o que

culmina no grito final: “O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!”.

Reparem que esse grito é materializado em Mallarmé com uma certa

dose de ironia, pois, como diz Paul Bénichou, “como comentarista, [ele]

torna ridículo esse grito de triunfo que, como poeta, ele empresta a seu

herói, ou seja, a si mesmo: ‘Exclamação grotesca de colegial liberto’". A

própria palavra Azul, substantivo que em francês – Azur – remete ao azul do

céu na pintura e na literatura, e não ao azul “ordinário”, comum (bleu), já

denota um sentido totalizador e, ao mesmo tempo, irônico: uma totalidade

estética expressa por uma única forma, em uma única palavra, que põe o

escritor em contato com sua impotência de criar algo tão perfeito e acabado.

Segundo Bénichou, "o Azul, com sua maiúscula, não é somente o azul do

céu que vemos; ele é esse ideal longínquo que obceca os homens”22

.

Em Baudelaire, esse ideal longínquo figura aos olhos do poeta

moderno pela natureza, descrita em “Correspondências” como uma tentativa

de recriação, rememoração da plenitude de um “templo” cuja unidade não

seria mais acessível ao nosso tempo. A origem dessa incapacidade é

inseparável da consciência do mundo – e da linguagem - enquanto

experiência fragmentada para o homem do século XIX. É na tensão

verificada, na obra poética de Baudelaire, entre o ideal (experiência poética

representada pela ordenação do pensamento transfigurador) e o spleen

(experiência transfiguradora do homem moderno calcada no tédio e na

melancolia), que se verifica um estado de crise na experiência plena do

mundo. Sua poética seria emblemática, na medida em que, segundo Paz,

esses “dois extremos [ideal e spleen] que dilaceram a consciência do poeta

moderno aparecem [nela] com a mesma lucidez – com a mesma

ferocidade”23

.

22

BÉNICHOU, Paul. Selon Mallarmé. Paris: Gallimard, 1995, p. 99. 23

PAZ, O. Op. cit., p. 100.

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46

Em seu texto “Experiência e pobreza”24

, Walter Benjamin trata da

“perda da aura” na sociedade moderna. Em meio ao declínio das

experiências coletivas (Erfahrung) – que remeteria a uma volta às origens,

ao nosso passado “mítico” – surge a vivência individual (Erlebnis) da arte e

dos homens. A parábola do velho moribundo (presente no texto de

Benjamin) que transmite a seus filhos uma experiência vem mostrar como

esse conhecimento transmitido de pai para filho, passado de uma geração a

outra, está fadado ao fracasso, por não caber mais no mundo moderno. Isso

se justifica principalmente pelo declínio da vida em comunidade (e sua

conseqüente substituição pela vida urbana) e pela impossibilidade de contar

essa experiência através da linguagem, após a “perda da aura”. Segundo

Jeanne Marie Gagnebin, a “experiência se inscreve numa temporalidade

comum a várias gerações”25

, e numa continuidade da palavra. Por isso ela

não é mais possível no mundo moderno, no qual a relação entre o homem e

o mundo é marcada por um “imediatismo” que dificulta a assimilação das

experiências individuais. De acordo com Guy Debord, essas experiências no

mundo moderno são sempre mediadas por imagens recortadas impostas pela

ocasião, em que a percepção da mensagem passada chega a nós apenas

como um “resumo simplificado do mundo sensível”26

. A esse fenômeno,

Debord chama de “dominação espetacular”, que guiaria a apreensão do

sentido dessa experiência pelo homem moderno.

Nesse sentido, a palavra não possuiria mais uma continuidade nesse

mundo, já que as experiências apareceriam apenas como fragmento, resumo,

oriundas da experiência do choque, e incompatíveis com a vivência de uma

experiência plena27

. Essa descontinuidade da palavra no mundo moderno

remeteria à exacerbação da experiência da solidão e da morte. Solidão

porque não há mais a quem contar, e conseqüente morte, pois a palavra não

24

Cf. BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:

Brasiliense, 1985. 25

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Não contar mais?” in História e Narração em Walter

Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 57. 26

Cf. DEBORD, G. Commentaires sur la société du spectacle. Paris, Ed. Gérard Lebovici,

1988. 27

Cf. ROSA, Edson. “Da impossibilidade de contar e cantar: um olhar benjaminiano sobre

a literatura” in http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/10Sem_09.html

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47

encontra mais um circuito reprodutivo. A expressão privilegiada da

experiência tradicional era então veiculada pela palavra do moribundo (a

palavra profética), que ganhava força na morte, pois nesse limiar – entre a

morte e a vida – ela apresentava um mundo novo, e, ao mesmo tempo, a

transmissão de um mundo comum a todos. E por isso, ela seria tão

perseguida pelos poetas modernos28

. No instante de sua “morte”, ela traria o

momento da redenção, transformando-se na própria alegoria da experiência

do eterno retorno às origens da palavra sagrada.

O conceito de alegoria, presente em Benjamin, refere-se a um

pensamento estético que estabelece uma relação complexa com o tempo

presente, que busca em um tempo anterior, através da correspondência dos

sentidos, de forma crítica, um antídoto contra a reificação no tempo

presente. É isso que Baudelaire tenta fazer em “Correspondências”. No

soneto, a visão da natureza é alegórica, pois sua comparação a um templo

traz a remissão ao passado não só da memória individual do poeta, mas

também deixa transparecer a memória coletiva da humanidade, conseguida

através das sensações (e da harmonia) proporcionadas pelo entrelaçamento

de sons, perfumes e odores. A visão alegórica do poeta seria expressa pelos

“olhos familiares” que o observam. O fato de ele reconhecer que é “olhado”

pela natureza, não garante a sua própria visão, nem o “entendimento” – que,

na Modernidade se mostra já “digerido” – de sua experiência com a

natureza, pois, como nos afirma Benjamin, seus olhos “haviam (...) perdido

a capacidade de olhar”29

. Essa “perda” se traduz no poema “L’Azur” pela

fuga de olhos fechados empreendida pelo poeta que tenta se libertar do

“infinito azul”, ao mesmo tempo em que esse azul o espreita (“Em fuga,

olhos fechados, sinto-o que espreita/ (...) A minha alma vazia”).

Benjamin, ao analisar “Correspondências”, percebe essa conjunção

entre tempo passado (memória coletiva) e tempo presente (memória

individual) e a disjunção da rememoração plena no presente:

28

Cf. “Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?/ Au fond de l’Inconnu pour

trouver du noveau” (BAUDELAIRE, C. “Le voyage” in op. cit., p.177). 29

BENJAMIN, W. Obras escolhidas, III. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.141.

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48

Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram

em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado

individual com outros do passado coletivo. Os cultos, com

seus cerimoniais, suas festas, (...) produziam

reiteradamente a fusão desses dois elementos na memória.

Provocavam a rememoração em determinados momentos e

davam-lhe pretexto de se reproduzir durante toda a vida30

.

Assim, a concepção do mundo moderno como lugar do spleen só é

possível pelo esforço da tentativa de rememoração de um ideal perdido. A

verdadeira experiência de rememoração de uma coletividade só se

completaria na fusão entre o passado e o presente, e só seria possível através

da escrita de forma alegórica. Nesse sentido, os dois termos (o spleen e o

ideal) são inseparáveis, da mesma forma que os dois poemas (“Renouveau”

e “Correspondências”) se completam. Não é à toa que Mallarmé diz que o

soneto poderia se chamar “Spleen printanier”, pois o estado de angústia,

tédio, melancolia vivido pelo poeta, e que vai culminar no riso irônico do

azul, não seria possível (nem irônico) sem o reconhecimento do desejo do

ideal da plenitude representado no soneto “Correspondências”. Mallarmé

reconhece esse ideal através da ironia, pois ela torna ridículo o exercício

daquilo que deveria ser a “função do poeta”: transformar em arte esse

mundo spleenético, desencantado e prostituído31

. Ou seja, a ironia do poema

de Mallarmé é reconhecida através da analogia com o soneto de Baudelaire.

Outra possível correspondência/ analogia entre Mallarmé e Baudelaire pode

ser feita à luz da aproximação de “L’Azur” com o poema em prosa “Le

Confiteor de l’Artiste”, onde, em três frases, o azul de Baudelaire aparece

como um prelúdio ao poema de Mallarmé: “Solidão, silêncio, incomparável

castidade do azul!/ E agora a profundeza do céu me consterna; sua limpidez

me exaspera./ Ah! É preciso eternamente sofrer, ou fugir eternamente ao

30

BENJAMIN, Walter. “Paris, Capitale du XIXe. Siècle” in Paris, Capitale du XIXe.

Siècle. Le Livre des Passages. Paris: Les Éditions du Cerf, 3ª edição, 2002, p.611. 31

Baudelaire também compara o escritor à prostituta, pois os dois “vendem sua alma” em

busca de alguns trocados: “Para ter sapatos, ela vendeu sua alma;/ Mas o bom Deus riria se,

perto dessa infame,/ Eu bancasse o Tartufo e fingisse altivez,/ Eu, que vendo meu

pensamento e quero ser autor.” (Cf. BAUDELAIRE, C. in BENJAMIN, W. “A Boêmia”.

Obras escolhidas III, p.30).

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49

belo?”32

. Como vimos, essa fuga do belo, do “azul”, encontra resposta

afirmativa em Mallarmé. A questão agora é: para onde fugir? “Onde

fugir?”33

.

A ironia e a analogia constituem então elementos centrais tanto na

poética baudelairiana quanto na mallarmeana: “Baudelaire fez da analogia o

centro de sua poética. Um centro em perpétua oscilação, sacudido sempre

pela ironia, a consciência da morte e a noção do pecado”34

. Para Mallarmé, a

analogia evocaria a ironia que, por sua vez, suscitaria angústia e melancolia,

idéias essencialmente românticas. E por isso, nessa época (entre 1862 e

1864), Baudelaire figura ainda como principal mentor de Mallarmé. As

inúmeras referências a Baudelaire aparecem claramente não apenas em

“L’Azur” e “Renouveau”, mas também em “Le sonneur” (“J'ai beau tirer le

câble à sonner l'Idéal/De froids péchés s'ébat un plumage féal”), “Don du

poème” (“La solitude bleue et stérile a frémi”), “Brise Marine” (“O nuits!

Ni la clarté déserte de ma lampe/ Sur le vide papier que la blancheur

défend”). A alusão ao tédio (Cher Ennui) (na carta sobre, e no próprio

poema “L’Azur”) e à Matéria como a “alegria do impotente” só reforça a

fase “baudelairiana” de Mallarmé, pois, segundo ele próprio, sua poesia

seria um “misto de elementos dramáticos (hostis à idéia de poesia pura e

subjetiva) com a serenidade e a calma das linhas necessárias à Beleza”35

.

Essa mistura de elementos dramáticos e temas clássicos, junto com a

necessidade de inovação na linguagem do poema, dariam o tom da poesia

do jovem Mallarmé. Como define Paul Bénichou:

Desde os primeiros anos 1860, (...) [ele] retoma os temas

negativos do segundo romantismo agravando-os: o real e a

humanidade odiosamente baixa, o ideal inacessível e

32

“Solitude, silence, incomparable chasteté de l'azur!/ Et maintenant la profondeur du ciel

me consterne; sa limpidité m'exaspère./ Ah! faut-il éternellement souffrir, ou fuir

éternellement le beau?”. (BAUDELAIRE, C. “Le confiteor de l’artiste” in Les petits

poemes em prose. Paris: Librio, 2002, p. 45). 33

MALLARMÉ, S. “O Azul” in Mallarmé, p. 41. 34

PAZ, O. Op. cit., p. 96. 35

Cf. Anexos: MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].

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50

inimigo, a consciência suspensa na solidão e na

desesperança36

.

O tema da solidão viria da postura crítica assumida por Mallarmé

perante a sociedade que desprezava o artista. No entanto, sintetiza

Bénichou, "a miséria de um poeta só é miséria porque ele se acreditava feito

para desempenhar um papel glorioso"37

. Nesse sentido, podemos lembrar o

poema “O Albatroz”, de Baudelaire, onde a figura bizarra do albatroz,

tentando se locomover com suas asas demasiadamente grandes, de forma

tortuosa, seria uma alusão crítica à imagem do poeta frente ao lugar por ele

ocupado na sociedade do século XIX. Ela também apontaria para uma

alegoria da “perda da aura” que desmistifica a imagem do poeta. O “pobre

rei destronado”, outrora gozando de sua majestade na imensidão do céu

azul, vê-se obrigado – depois de sua queda – a caminhar desprezado por

entre a multidão, como um simples mortal. Como repara Marcos Siscar, “ao

solitário príncipe das nuvens, cabe o reinado do convés”38

.

Essa solidão compartilhada com o leitor (como afirma ainda Siscar:

“a solidão do poeta solicita, também, a solidão do leitor, de modo que a

recusa da solidão significa, freqüentemente, uma recusa da literatura”39

), de

modo algum, assemelha-se à do romântico caminhante solitário que, desde

Jean-Jacques Rousseau, pretende encontrar sua paz no exílio da natureza,

longe dos homens40

. Essa solidão, tanto em Baudelaire quanto em

Mallarmé, “está longe do retiro paradisíaco, ao modo conhecido como

romântico, e mais próxima da reivindicação bem definida do desejado

inferno da solidão”41

. E esse inferno moderno é legitimado primeiramente,

como já vimos, pela perda da comunhão do poeta com a natureza

(comunhão essa que impera na obra de Rousseau); e também pela

experiência urbana e pelo surgimento de um público burguês ávido de

36

BÉNICHOU, P. Op.cit., p.32-33. 37

Idem, ibidem, p. 15. 38

SISCAR, Marcos. Poesia e Crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da

modernidade. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 56. 39

Idem, ibidem, pg. 57. 40

Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Les Revêries du promeneur solitaire. Paris: Gallimard,

1965. 41

SISCAR, M. Op. cit., p.58.

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51

consumir obras de arte como mercadoria42

. O que põe o poeta novamente

em um estado de dupla impotência: “uma experiência comum do sujeito que

não se reduz nem à afirmação dos desejos nem ao esquecimento de si”43

.

Em Rousseau, a miséria do poeta estaria no seu afastamento da sociedade,

fato que o condena a uma vida de “caminhante solitário” incompreendido,

mas que encontra refúgio e cumplicidade na natureza. Em Mallarmé e em

Baudelaire, essa miséria está justamente na consciência irônica da falta de

um lugar privilegiado que lhe pudesse garantir a plenitude interior

reivindicada por Rousseau.

Dessa forma, Mallarmé retoma vários temas românticos, como a

solidão do poeta, a aquisição de um ideal, a impotência da poesia, a angústia

do tempo presente, porém criticando-os através da ironia. Essa crítica

irônica aparece para desautorizar o discurso da analogia. Se a analogia torna

o mundo habitável, a ironia, junto com o pensamento alegórico, “desaloja”

esse mundo. Ela insere no discurso análogo o paradoxo, a falta de

correspondências, a incomunicabilidade. Se para Octávio Paz, a analogia vê

o mundo como uma escrita, a ironia prova o contrário:

A ironia mostra que (...) cada tradução dessa escrita é

diferente, e que o concerto das correspondências é um

galimatias babélico. (...) O universo, diz a ironia, não é

uma escrita; se fosse, seus signos seriam incompreensíveis

para o homem porque nela não figura a palavra morte, e o

homem é mortal44

.

É por isso que tanto o discurso alegórico, quanto o irônico tomam

proporções essenciais para se explicar o pensamento moderno. Esse

discurso surge na Modernidade como a consciência da historicidade dos

homens e da linguagem produzida por eles. É por isso que, em

“Correspondências”, ao atravessar “essa floresta de símbolos” tentando

desvendá-la, o homem só encontra pelo caminho confusas palavras, que lhe

impedem o entendimento da real significação do mundo. Pois seria preciso

42

Vale lembrar as críticas de Baudelaire aos salões de arte do século XIX. 43

SISCAR, M. Op.cit., p. 57. 44

PAZ, O. Op. cit., p. 101.

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que o homem adquirisse a eternidade e a imortalidade para entender e

assimilar essa significação em sua completude. É por isso também que

Mallarmé, em “O Demônio da analogia”, descreve essa errância do poeta

em um labirinto de símbolos que perderam seu sentido, uma vez que se

perderam também seus referentes externos: “Palavras desconhecidas

cantaram sobre seus lábios, farrapos malditos de uma frase absurda?”45

.

Essa situação impossível mostra que, entre o Real ignóbil e o Ideal

inacessível, a distância que separa o Azul do poeta não é suscetível de

tradução. Como vimos, esse “silêncio” só poderia ser traduzível em partes

pela suspensão dessa consciência baseada na temporalidade do presente, na

constatação de nossa própria temporalidade ou, ironicamente, no fato de que

“somos mortais”. O grito bizarro e grotesco no fim do poema “O Azul” é,

segundo Octavio Paz, uma forma de reconhecer a mortalidade do poeta, e de

também provar que “o mundo da alteridade e da ironia não é afinal senão a

manifestação do nada. (...) A poesia como máscara do nada”46

.

É cavando o verso que Mallarmé vai encontrar esse “nada”. O que

nos relata em 1866:

Infelizmente, cavando o verso a [tal] ponto, encontrei dois

abismos que me desesperam. Um é o Nada, ao qual

cheguei sem conhecer o Budismo, e me encontro ainda

muito desolado para poder crer até mesmo em minha

própria poesia e voltar ao trabalho que esse pensamento

esmagador me fez abandonar. Sim, eu sei, não passamos de

formas inúteis da matéria – porém sublimes por termos

inventado Deus e nossa alma. Tão sublimes, meu amigo!

Que quero me proporcionar este espetáculo da matéria,

tendo consciência dela, e, entretanto, me lançando

furiosamente ao Sonho que ela sabe não ser, cantando a

Alma e todas as divinas impressões semelhantes que se

acumularam em nós desde as primeiras eras, e

proclamando diante do Nada que é a verdade essas

gloriosas mentiras! Tal é o plano do meu volume Lírico, e

45

MALLARMÉ, S. “O Demônio da Analogia” in Divagações. Tradução e apresentação de

Fernando Scheibe. Florianópolis : Ed. da UFSC, 2010, p. 23. 46

PAZ, O. Op. cit., p. 103.

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53

tal poderá ser seu título, A Glória da Mentira (La Gloire du

Mensonge), ou a Gloriosa Mentira (Glorieux Mensonge)47

.

A interessante metáfora do “cavar o verso” desperta um outro viés da

ambigüidade do trabalho empreendido por Mallarmé. O próprio ato de

cavar supõe um esvaziamento, mas também pode gerar um conseqüente

preenchimento desse conteúdo “perdido”. Sendo assim, esse “nada”, outrora

esvaziado, poderá ser novamente completado. Em se tratando

especificamente do verso, Mallarmé afirma ter encontrado primeiro o Nada

– expresso aqui pelo substantivo Néant, que supõe uma altivez filosófica

perseguida e desenvolvida posteriormente por Mallarmé – e logo após, ter

constatado a “horrível visão de uma obra pura”48

. Nesse sentido, ter “cavado

o verso” significaria para Mallarmé tê-lo aprofundado até o ponto de ele

significar “alguma coisa”, que poderia ser tanto “a verdade” quanto o Nada,

Rien (“le Rien qui est la vérité”) que apareceria aqui como o pronome

indefinido substantivado, designando talvez menos substancialmente o

mesmo sentido. Mas essa coisa agora - ao contrário da carta explicando o

soneto “Vere Novo” – não apontaria mais para uma impossibilidade, um

estado de espírito paralisante, e sim para a possibilidade de criação de algo

realmente “novo”, mesmo que nascido, surgido pela mediação negativa de

um Nada.

Por esse viés então, o “cavar o verso” de Mallarmé se aproximaria da

palavra do moribundo, de Benjamin, que no limiar da morte, do

esvaziamento, nos põe diante de algo desconhecido, mas que se mostra

47

“Malheureusement, em creusant le vers à ce point, j’ai rencontré deux abîmes, qui me

désespèrent. L’un est le Néant, auquel je suis arrivé sans connaître le Boudhisme, et je suis

encore trop désolé pour pouvoir croire même à ma poésie et me remettre au travail, que

cette pensée écrasante m’a fait abandonner. Oui, je le sais, nous ne sommes que de vaines

formes de la matière, - mais bien sublimes pour avoir inventé Dieu et notre âme. Si

sublimes, mon ami! Que je veux me donner ce spectacle de la matière, ayant conscience

d’elle, et, cependant, m’élançant forcément dans la Rêve qu’elle sait n’être pas, chantant

l’Ame et toutes les divines impressions pareilles qui se sont amassées en nous depuis les

premiers âges, et proclamant, devant le Rien qui est la vérité, ces glorieux mensonges! Tel

est le plan de mon volume Lyrique, et tel sera peut-être son titre, La Gloire du Mensonge,

ou le Glorieux Mensonge.” MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [28 de abril de 1866]

in op. cit., p. 297/298. 48

“(...) Arrivé à la vision horrible d’une Oeuvre pure, j’ai presque perdu la raison et le sens

des paroles le plus familières.” (Idem, “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in

op. cit., p. 380).

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54

estranhamente familiar49

. Estranha “coisa” na medida em que, mesmo se

abrindo ao “novo”, permanece com os resquícios de um ideal familiar que

estava “enterrado”, “perdido”. A partir daí, então, essa “escavação”

materializada por Mallarmé seria a própria alegoria da passagem, segundo

os termos de Benjamin, da Erfahurg à Erlebniss. Ou seja, da experiência de

um ideal de plenitude à vivência individual de uma negatividade, expressa

pelo Nada, constituinte de “alguma coisa”, que seria agora a “verdade”.

Mallarmé retoma o discurso analógico até certo ponto, e o faz pela

via alegórica. Se Baudelaire traduzia, pela experiência moderna do spleen, a

impossibilidade de vivência de um ideal totalizador, Mallarmé vai descobrir

– ao cavar o verso – que esse ideal se revela vazio. Ele retoma esse ideal,

mas o faz por intermédio de um esvaziamento e de uma negatividade. A

partir daí, a vivência dessa, digamos, “transcendência vazia” vai marcar sua

escrita. Não é por acaso que após essa “escavação”, Mallarmé vai se dedicar

a escrever seus famosos tombeaux e versos de circunstâncias50

. Outro

poema que também evoca o trabalho de cavar é “Las de l’amer repos”,

publicado pela primeira vez, em 1866, na revista Le Parnasse

Contemporain, em que Mallarmé compara o trabalho do verso com o do

coveiro (fossoyeur): “De creuser par veillée une fosse nouvelle / Dans le

terrain avare et froid de ma cervelle, / Fossoyeur sans pitié pour la stérilité.

(...)”

Fato curioso também é que, após a descoberta do Nada e a visão de

uma Obra que se mostra como um “Sonho em sua nudez ideal”51

, ele afirma

a Henri Cazalis: “A primeira fase da minha vida terminou. A consciência

excedida pelas sombras desperta lentamente formando um homem novo, e

deve reencontrar meu Sonho após a criação desse último”52

. Essa afirmação

já mostra o ideal de destruição / reconstrução que marcaria uma “nova fase”

49

Cf. FREUD, Sigmund. “L’inquiétante étrangeté” in L’inquiétante étrangeté et autres

essays. Tradução de Bertrand Féron. Paris: Gallimard, 1985. 50

Cf. MALLARMÉ, S. Poésies et autres textes, p.34 51

Cf. Idem. “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in Correspondance, p. 380. 52

“La première phase de ma vie a été finie. La conscience, excedée d’ombres, se réveille,

lentement formant um homme nouveaux, et doit, retrouver mon Rêve après la création de

ce dernier”. Idem. “Carta a Henri Cazalis” [18/19 de fevereiro de 1869] in op. cit., p.425.

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55

da vida do poeta. No entanto, essa declaração não deixa também de ser

irônica, e é por esse viés da ironia que poderíamos situar a força da poesia

de Mallarmé sobre o “Nada”. Seus famosos Rondels e seus poemas sobre

“ovos de Páscoa” começam a ser escritos depois dessa época. Essa

“descontração” traz à poesia de Mallarmé uma leveza, próxima do jogo, do

lúdico, que contrasta com a seriedade da fase vivida em 1864, em que o

poeta realmente enfrentou uma crise pessoal, que culmina no sentimento de

impotência generalizada (e que vai desaguar num longo período de

depressão). Essa declaração de “morte” feita em 1869 não aponta

efetivamente para uma verdadeira morte, do poeta e da linguagem. Ela

apenas encena a iminência da morte de um ideal de transcendência (da

mesma forma que encena um “abandono” de sua poesia na carta de 1866),

assim como o seu renascimento diante dessa ruptura. E marca também o

começo de uma “nova vida”, uma ruptura e, ao mesmo tempo, abertura de

uma nova fase marcada pela eterna busca de uma obra que pudesse

apreender esse Nada pelo verso. A partir daí, como nos situa Hugo

Friedrich, “Mallarmé substitui em seus poemas as palavras rien e néant

onde antes eram postas palavras como azur, rêve ou idéal”53

.

Nos poemas entregues para serem publicados no Parnasse

Contemporain, é bastante nítida a preocupação com a disposição das folhas

e a tipografia das letras, como se, pela exploração dos “brancos da página”,

Mallarmé buscasse a significação do branco, onde antes era visto o azul.

Mallarmé explica - de forma exaustiva, e até mesmo, exagerada - a Catule

Mendès - a maneira como vislumbra a disposição desses poemas na revista

(“Em todo caso, eu gostaria, também, de um grande branco após cada um,

em repouso”54

). Depois dessa significativa mudança de ideal - da angústia e

melancolia representadas pelo azul para a “transcendência vazia”

materializada pelo branco, - sua obra55

passa então a figurar como estudo

53

FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 174. 54

“En tous cas, je voudrais, aussi, um grand blanc après chacun, en repos.” (MALLARMÉ,

S. “Carta a Catulle Mendès” [24 de abril de 1866] in op. cit., p. 294). 55

É nessa época que Mallarmé começa a escrever os textos em prosa que seriam reunidos

sob o título de Divagações. Assim como vemos aparecer uma infinidade de poemas

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56

sobre determinados temas56

. Ele nunca admite seus poemas e textos em

prosa como acabados, enquanto formas são apenas esboços57

(ébauches),

pois a forma acabada está sempre por vir, nunca se concretiza. E através

desses estudos, Mallarmé começa a vislumbrar a possibilidade de criação de

um livro. Não um livro qualquer, mas um Livro que resumiria o mistério

“órfico da Terra”, como ele explica em 1885, na conhecida carta a Paul

Verlaine, intitulada “Autobiografia”:

Um livro, simplesmente, em vários tomos, um livro que

seja um livro, arquitetônico e premeditado, e não uma

coletânea de inspirações casuais por maravilhosas que

fossem... Irei mais longe, e direi: o Livro (...) A explicação

órfica da terra, que é o único dever do poeta e o jogo

literário por excelência: pois o próprio ritmo do livro então

impessoal e vivo, até na sua paginação, justapõe-se às

equações do sonho, ou da ode58

.

Através de seus estudos sobre o verso, e de sua experimentação,

contra o acaso e a circunstância, Mallarmé pretendia solucionar em um livro

todo o impasse entre analogia e ironia. E por um paradoxo em relação ao

pensamento moderno que ele próprio desenvolve, esse livro seria único,

ideal, como ele mesmo descreve, “expressão total da letra”59

, auge da forma

poética. Mas único e ideal porque nele estariam todas as possíveis traduções

e combinações do Universo, de forma que, quando essas traduções

atingissem seu máximo de combinações, a explicação órfica da Terra estaria

resolvida, o mistério se dissolveria, assim como a noção de temporalidade.

Segundo Jean-Pierre Richard:

Quando, após alguns anos de leitura, todas as permutações

possíveis tiverem sido realizadas, a linha do poema se

“lúdicos”, por exemplo, os “quatrains-adresses”, as “recréations postales”, as “dédicaces”,

etc. 56

Por exemplo: “Beaucoup de ces poèmes, ou études en vue de mieux, comme on essaye

les becs de plume avant de se mettre à l’oeuvre” (MALLARMÉ, S. Oeuvres complètes,

p.77). 57

“Je te parlerai de tout cela, et te montrerai quelques spécimens d’ébauches”

(MALLARMÉ, S. “Carta a Théodore Aubanel” [28 de julho de 1866] in Correspondance,

p. 314). 58

FONTES, Joaquim Brasil. Os anos de exílio do jovem Mallarmé. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2007, p. 33. 59

MALLARMÉ, S. Divagações, p. 182.

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57

fechará sobre si própria, e com ela o tempo se acabaria, se

anularia. Mesmo linear, o livro permanece então túmulo

fechado, acesso à eternidade60

.

Túmulo fechado, cuja escavação reconduziria a escrita à sua origem

primeira, ao tempo de uma unidade que se impõe como onipresente, onde

não há mais lugar para a ruptura, e para o acaso. O Nada que o mundo é –

“que é a verdade”, segundo Mallarmé – se permutaria em um acesso à

eternidade. E por isso essa obra se mostra terrível a Mallarmé, pois sua

existência implica em sua própria morte como autor, e também na morte de

seu pensamento, assim como de sua linguagem. Mesmo produzindo uma

obra impessoal – onde a língua se torna protagonista, e, ao mesmo tempo,

autora – Mallarmé se preocupava com a ordenação das folhas desse Livro

(da mesma forma que se preocupava com os brancos da página), “pois o vôo

das folhas marca uma abertura do livro-túmulo, e assim uma ressurreição

do sentido. (...) De uma sessão a outra o Livro irá então, ele também, se

transformar fisicamente em si...”61

.

Essa transformação do Livro “em si” ocorreria no momento de sua

anulação. Quando o livro-túmulo se abrisse, ao mesmo tempo, cessaria a

comunicação universal, posto que haveria “uma reabsorção integral de todos

os discursos numa única palavra, de todos os livros numa página, de todo o

mundo num livro”. A língua se fecharia nela mesma, tornando-se um

receptáculo da eternidade. Talvez seja por isso que esse Livro nunca tenha

sido finalizado por Mallarmé. Apesar dos inúmeros esboços, dos papéis com

anotações, fragmentos, reflexões e dúvidas, ele de fato não poderia existir,

porque “no entanto, tudo isso é obra da língua. O que se produz na língua

não pode se produzir em nenhum mundo real”62

. O azul da impotência e da

60

RICHARD, Jean-Pierre. “Le Livre” in L’Univers Imaginaire de Mallarmé. Paris: Seuil,

1961, p. 566. 61

“car l’envol des feuillets marque une ouverture du livre-tombeau, et donc une

résurrection du sens. (...) D’une séance à l’autre le Livre va donc lui aussi se transformer

physiquement en soi...” (Idem, ibidem, p. 568). 62

Cf. FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 182-183.

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58

angústia cede lugar à transparência significativa do Nada, ao branco. “A

analogia termina em silêncio”63

; ou não?

63

PAZ, O. Op. cit., p. 103.

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TERCEIRA CONSTELAÇÃO

O Branco

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60

“O livro, expansão total da letra, deve dela

tirar, diretamente, uma mobilidade e,

espaçoso, por correspondências, instituir um

jogo, não se sabe, que confirme a ficção.”

Stéphane Mallarmé

Em 1867, após passar “um ano pavoroso” na cidade de Tournon,

Mallarmé escreve duas cartas bastante intrigantes - endereçadas a seus

amigos Henri Cazalis e Eugène Lefébure – e que possuem declarações

decisivas e fundamentais para que se possa perceber o amadurecimento

posterior do seu pensamento. Elas também expressam uma latente ruptura

com um “estado poético” anterior e a necessidade de criar uma Obra sua,

mas que, ironicamente, emergiria de uma impessoalidade. A primeira

intuição de Mallarmé relativamente a sua Obra surgiria então no instante de

uma “perda”, que, segundo ele, naquele momento, lhe traria também a

imagem do encontro do Universo com seu “eu impessoal”. Essa imagem

seria então o impulso para Mallarmé pensar nessa Obra como um “Livro

total”, que, de acordo com Paul Bénichou, lhe daria aparentemente um

entendimento, “uma representação escrita da necessidade universal”1.

Mas para chegar a essa concepção, Mallarmé relata antes uma longa

agonia que seu pensamento teria sofrido. Na primeira carta, para Henri

Cazalis, ele afirma: “Acabo de passar um ano pavoroso: meu Pensamento se

pensou, e chegou a uma Concepção Pura”.* O fato de seu pensamento ter

“pensado” a si mesmo já indica um questionamento, seguido de um

esgotamento que culminaria na seguinte afirmação: “Estou perfeitamente

morto (...) [e] agora sou impessoal, e não mais o Stéphane que você

conheceu”. Na segunda carta, que pode ser considerada um complemento à

primeira, escrita para Eugène Lefébure, Mallarmé também descreve um

estado de agonia: “Meu pensamento está ainda tão nu e tão horrivelmente

1 BENICHOU, Paul. Selon Mallamé. Paris: Gallimard, 1995, p. 60.

* A versão integral e original dessa carta encontra-se nos “Anexos”, junto de uma versão

traduzida por mim.

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61

sensível – que tenho medo de tocá-lo”2. Ao final das duas cartas,

percebemos que a “morte” de seu pensamento, resultante de um longo

processo de sofrimento, é reflexo de sua mais importante constatação

anterior, a descoberta do Nada.

Após essa descoberta (relatada a Henri Cazalis, no ano de 1866, e

discutida no capítulo anterior), Mallarmé se encontrava em um abismo.

Logo após cavar o verso e encontrar a “transcendência vazia”3 do Nada, ele

tem a visão de uma Obra que, naquele momento, ainda não estava bem

definida. Essa revelação, ainda que obscura, deflagra uma verdadeira

revolução em seu pensamento. Como ele relata nas duas cartas de 1867,

todo o seu sofrimento, a “horrível sensibilidade” que ele afirma ter

adquirido durante o processo de descoberta, culminam na “morte de seu eu

pessoal”. Os danos sentidos e os triunfos dessa mudança lhe servem como

uma preparação para seu “desaparecimento subjetivo”, ou para o ponto em

que ele se torna impessoal. Em outros termos, para que essa obra - a Obra,

segundo ele próprio – pudesse ser efetivamente realizada, ele deveria elevar-

se a uma categoria universal que ele chamaria de absoluto, e que Hugo

Friedrich tenta associar à categoria do Nada: “O absoluto conserva esse

nome, entretanto, porque deve ser cortado das categorias do tempo, do

lugar, e da coisa, mas, uma vez realizado esse desligamento, ele toma o

nome de nada”.4

Esse esvaziamento da temporalidade, do espaço e da significação, já

anteriormente discutido, nos aponta – na obra de Mallarmé - para um desejo

de vivência de um ideal literário. Pois, além de uma simples descoberta,

esse absoluto literário encontraria um desenvolvimento, uma encenação

possível no espaço do verso. E isso se refletiria na necessidade, expressa nas

2 “(…) ma pensée est si nue encore et si horriblement sensible – que j’ai peur d’y toucher.”

(MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Eugène Lefébure” [27 de maio de 1867] in

Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,

p. 348). 3 Cf. FRIEDRICH, Hugo. Structure de la poésie moderne. Paris: Librairie Générale

Française, 1999. 4 “L’absolu conserve cependant ce nom parce qu’il doit être coupé des catégories du temps,

du lieu, de la chose, mais, une fois ce détachement accompli, il prend le nom de néant”.

(Idem, ibidem, p. 175).

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cartas, de se criar uma “Obra” que fosse radicalmente inédita, embora

reveladora desse absoluto, ou “a genericidade da literatura, apreendendo-se

e produzindo-se a si própria em uma Obra inédita, infinitamente inédita. O

absoluto, por conseqüência, da literatura”5.

Essa busca do absoluto selaria um comprometimento radical com a

escrita. Ela viria representar o desaparecimento dos traços pessoais do

escritor enquanto texto, posto que o autor dessa Obra não poderia ser

Mallarmé – “desaparecido” na crise de 1867 – e também nenhum outro

autor. Uma das características inéditas dessa Obra se traduziria pela própria

radicalidade desse processo de abolição da autoria. Anos mais tarde, Roland

Barthes escrevia em seu famoso texto “A Morte do Autor”:

Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a

sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no

lugar daquele que até então se supunha ser o seu

proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que

fala, não é o autor; escrever é, através de uma

impessoalidade prévia [...], atingir aquele ponto em que só

a linguagem atua, «performa», e não «eu»: toda a poética

de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da

escrita6 [...].

O fato de Barthes ter estudado e amplificado posteriormente essa

“morte do autor”, que teve sua primeira aparição em Mallarmé, mostra a

importância dessa “descoberta”. Mas é interessante observar que, para

chegar a isso, Mallarmé relata, na primeira carta de 1867, uma briga com a

imagem primordial e metafórica do Absoluto: Deus, “essa velha e medíocre

plumagem”7. Ele afirma ter se libertado de Deus, e após essa disputa com

ele, encontra-se imerso nas Trevas Absolutas de onde brotaria sua Obra,

nascida do questionamento de toda impressão já conhecida:

5 “La généricité […] de la littérature, se saisissant et se produisant elle-même en une

Oeuvre inédite, infiniment inédite. L’absolu, par conséquent, de la littérature”. (LACOUE-

LABARTHE, Philippe ; NANCY, Jean-Luc. L’Absolu Littéraire. Théorie de la Littérature

du Romantisme Allemand. Paris : Seuil, 1978, p. 21). 6 BARTHES, Roland. “A Morte do Autor” in O Rumor da língua . Trad. Mário Laranjeira.

São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. 7 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [14 de maio de 1867].

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Criei minha Obra somente por eliminação, e toda verdade

adquirida nascia apenas da perda de uma impressão que,

tendo cintilado, se havia consumido e me permitia, graças

às suas trevas liberadas, avançar mais profundamente na

sensação das Trevas Absolutas. A Destruição foi minha

Beatriz8.

Por eleger a Destruição como sua musa, Mallarmé atesta que "o

reconhecimento do Nada e a luta contra o Ser [...], nomeado Deus, são um

único e mesmo momento da [sua] busca"9. Para que a visão dessa Obra

única se mostrasse plausível, era necessário acabar com qualquer impressão

que pudesse lhe atribuir um sentido previamente conhecido, automatizado,

“cintilado”, ou até mesmo divino. E essa eliminação também vale para o “eu

pessoal” do poeta – que agora se encontra “perfeitamente morto”. Por isso,

tanto a “briga” com Deus - e a conseqüente imersão nas Trevas Absolutas -

quanto o reconhecimento do Nada fazem parte de um rompimento com um

estado de pensamento anterior.

A necessidade de formar um método que traduzisse - ou ainda que

mostrasse - essa “perda” explicita um distanciamento em relação ao

Mallarmé anterior: spleenético e, de certa forma, até romanticamente

idealista. Essa visão do poeta demasiadamente sensível contrasta com a

postura que ele assumirá após a descoberta do Nada. Sem dúvida, essa

descoberta se apresenta como um contraponto na maneira de tratar certos

temas recorrentes em sua poesia. Essa mudança transparece no próprio

processo de elaboração de um método próprio que “fingisse” um ideal

literário. Pois esse ideal, longe da aspiração romântica da plenitude,

apontaria antes para uma possível superação da Impotência que tanto

perseguiu Mallarmé, conforme foi mostrado no capítulo anterior. E para

conceber esse método, ele recorre à obra de Edgar Allan Poe, como tentarei

mostrar a seguir.

8 “[…] je n’ai créé mon Oeuvre que par élimination, et toute vérité acquise ne naissait que

de la perte d’une impression qui, ayant étincelé, s’était consumée et me permettait, grâce à

ses ténèbres dégagées, d’avancer plus profondément dans la sensation des Ténèbres

Absolues. La Destruction fut ma Béatrice”, (MALLARMÉ, S. Op cit, p. 349). 9 BENICHOU, P. Op cit, p. 44.

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De fato, os poemas e escritos de Mallarmé até o ano de 1867

mostravam uma forte influência de Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, o

que ele não se preocupava em esconder. Em diversas cartas, principalmente

no ano de 1864, as alusões ao spleen baudelairiano e à “filosofia da

composição” de Poe são bastante visíveis. Mas o diálogo com Poe e

Baudelaire prevalece mesmo após 1864. Sobretudo se lermos as duas cartas

já mencionadas à luz do método esclarecido por Poe em seu texto “Filosofia

da composição”, e traduzido para o francês por Charles Baudelaire, o que

aumenta a ligação entre os três. Poderíamos dizer que o longo processo de

“perda” do pensamento que Mallarmé descreve e que culmina em uma

síntese final (ou “Concepção Pura”), ou ainda na morte de seu “eu pessoal”,

remeteria ao que Poe/ Baudelaire chama de efeito geral ou efeito a produzir

em uma obra de arte10

, e que deveria ser a primeira de todas as

considerações anteriores ao processo da escrita: “Para mim, a primeira de

todas as considerações é aquela de um efeito a produzir”11

. Escolhido o

efeito, necessita-se de um começo, que, especificamente no caso do poema

“O Corvo”, nasceria nos últimos versos, ou seja, no fim. Também parece ser

o caso de Mallarmé ao vislumbrar e delimitar sua Obra após a morte ter

invadido seu pensamento e seu próprio ser: “Começarei então pelo que

devia ser o fim”12

.

Se considerarmos essas duas cartas por um viés ficcional, diríamos

que o processo de “perda”, do abandono de um pensamento anterior já faria

parte de uma grande encenação do projeto da Obra que justificaria a

intenção ou o efeito pretendido pelo autor. Esse efeito consistiria em dar à

Obra o status de inédita, singular. E encenar esse efeito seria considerar e

dispor cada uma das situações ou momentos da evolução de um enredo.

10

No caso do texto “Filosofia da composição”, Poe toma seu poema intitulado “O corvo”

como exemplo. 11

“Pour moi, la première de toutes les considérations, c’est celle d’un effet à produire.”

(POE, Edgar Allan. Traduzido por Charles Baudelaire. “La Genèse d’un Poème” in

Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade, 2 vol. Paris: Gallimard, 1976, p. 984). 12

Cf. Mallarmé escreve essa frase em carta a Villiers de l’Isle-Adam, em 1 de outubro de

1867, ao mencionar seu projeto de um livro sobre a Beleza, que se chamaria “Esthétique du

Bourgeois” ou “Théorie Universelle de la Laideur”: “Je commencerai donc par ce qui

devait être la fin”. (MALLARMÉ, S. Op. cit., p. 369).

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Pois, segundo o método de Poe, antes de a pena tocar o papel, seria

necessário um plano capaz de garantir a realização da composição, “fazendo

com que todos os incidentes, e particularmente o tom geral se submetessem

ao desenvolvimento da intenção”13

almejada. Essa tese ganha ainda mais

força se aprofundarmos um pouco mais a leitura do texto de Poe por meio

do processo descrito por Mallarmé nas cartas. Em sua “Filosofia da

Composição”, Poe afirma:

De todos os temas melancólicos, qual é o mais melancólico

segundo a inteligência universal da humanidade? – A

morte, resposta inevitável. – E quando, diga-me, esse tema,

o mais melancólico de todos, é o mais poético? [...]

Quando ele se alia intimamente à Beleza14

.

Em suma, a morte, que viria representar a “perda” de um estado

melancólico do pensamento (que parece dominar a poesia do jovem

Mallarmé até 1866), encaixa-se perfeitamente na afirmação de Poe. Assim,

a longa descida às Trevas permite a Mallarmé reconhecer que a verdadeira

“tese” da poesia e da arte em geral consiste no efeito do Belo, pois “o Belo é

o único domínio legítimo da poesia”15

: “Depois de ter encontrado o Nada,

eu encontrei o Belo”16

, ele nos confessa. E dentro desse domínio, o poeta se

utiliza da singularidade dessa Beleza para desenvolver sua Obra. No

entanto, essa singularidade não passa também de uma impressão (uma

“excitação ou o delicioso arrebatamento [enlèvement] da alma”), não se trata

de uma qualidade inerente ao objeto artístico, mas de um efeito que só na

Poesia teria sua expressão.

Na verdade, a relação de Mallarmé com o “Belo” é bastante

complexa e contraditória, e se insere na discussão proposta por ele ao criar

essa “nova poética de efeitos”. Tendo perdido, na Modernidade, o “véu” que

13

“[...] en faisant que tous les incidents, et particulièrement le ton général, tendent vers le

développement de l’intention ” (POE, E. Op. cit., p. 984). 14

“De tous les sujets mélancoliques, quel est le plus mélancolique selon l’intelligence

universelle de l’humanité? – La Mort, réponse inévitable. – Et quand, me dis-je, ce sujet, le

plus mélancolique de tous, est-il le plus poétique? [...] C’est quand Il s’allie intimement à la

Beauté. ” (POE, E. Op. cit., p. 990). 15

“Le Beau est le seul domaine légitime de la poésie” (POE, E. Op. cit., p. 987). 16

Cf. FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 162.

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lhe dava o status de divina, a Beleza aparece agora de uma forma profanada

na obra de Mallarmé, ou seja, como um último vestígio, um fragmento, uma

reincidência que nos remete a uma totalidade e a uma perfeição. Por isso seu

caráter contraditório. Na carta, além de eleger a Destruição como sua musa,

Mallarmé afirma ter encontrado a Beleza imersa “nas Trevas Absolutas”.

Essa Beleza, proveniente de um encontro das “trevas”, seria então uma

alegoria de um ideal da Beleza, que se afasta assim, por meio dessa poética

de efeitos, de toda a impressão, de todo sentido já conhecido. Dessa forma,

o Belo também se mostra esvaziado, seu “túmulo” encontra-se profanado

pelo processo de escavação. E a única possibilidade de “recuperá-lo”, de

preenchê-lo, assumiria a forma de um efeito a ser perseguido, conquistado,

pelo poema.

Segundo Marcos Siscar, a “teoria do efeito” tal como concebida por

Mallarmé entraria em conflito “com o deslocamento que [ele] faz da

transcendência do sagrado”17

, e isso seria feito pelo viés da profanação, do

esvaziamento dessa transcendência, o que resultaria então na já referida

“transcendência vazia”. Como vimos, o vazio dessa transcendência se

definiria no espaço deixado pela “perda” das impressões “cintiladas” das

coisas, ou no próprio revestimento “sagrado” atribuído a elas. Essa

mudança, ou deslocamento, da transcendência sagrada para a profana

tornaria então essa teoria um “dispositivo de compreensão da coisa

humana”18

, que possibilitaria assim um “ajuste”, ou ainda, uma forma de

dramatização da poesia na história. E isso se aplica, por exemplo, à estrutura

– ou à própria intenção – do projeto mais audacioso de Mallarmé no ano de

1864: o poema- tragédia “Hérodiade”. A personagem, sendo originária de

uma história bíblica19

, vai sofrer, na obra de Mallarmé, um esvaziamento,

uma destituição dessa “origem”. É o que nos explica Siscar:

17

SISCAR, Marcos. “Poesia Cou Coupée” in Poesia e Crise: ensaios sobre a “crise da

poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p.76 18

Idem, ibidem, p.76. 19

Hérodiade era filha de Salomé, que no Novo Testamento é apontada como a responsável

pela morte de São João Batista.

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Da figura antiga, Mallarmé retira o conteúdo

representativo, noticioso ou narrativo [...] e destaca o

elemento estruturante da cumplicidade entre a beleza e a

crueldade. Ou seja, tenta preservar o dramático da cena20

.

Mesmo tentando preservar o elemento dramático da cena, o desejo

de Mallarmé não era simplesmente “recontar” a história de Hérodiade, tal

como conhecida através da Bíblia. Ao afirmar insistentemente que gostaria

de concebê-la como a expressão máxima da Beleza (“Em uma palavra, o

tema de minha obra é a Beleza, e o assunto aparente é apenas um pretexto

para ir ao seu encontro”21

), ele a exploraria pela dramatização de sua

cumplicidade com a “crueldade” do próprio processo de escavação e de

perda das impressões que sofre o verso. Sendo a Beleza, segundo Mallarmé,

a própria palavra da Poesia (“Creio eu ser esta a palavra da Poesia”22

), ele

reivindicaria por Hérodiade o direito a essa fala. Assim, o poema apareceria

então:

Como figura que coloca em jogo a invenção daquilo que é

apresentado como uma ‘poética muito nova’, relacionada

com a famosa ‘crise de versos’, ou seja, com um certo

modo de conceber a inserção da poesia na história23

.

Por meio desse poema, que se tornará um verdadeiro fetiche para

Mallarmé, ele sonhava então alcançar a forma perfeita, ideal, que viria

expressa pelo método de Poe, o perfeito “POEma”: “Eu terei enfim feito o

que sonho ser um POEme , - digno de Poe e que os seus não

ultrapassarão”24

. Essa “busca” do perfeito POEma se fundamenta em uma

declaração anterior feita ao mesmo Cazalis, em 30 de outubro de 1864. Para

que isso fosse possível, seria necessário criar uma língua “que deve[sse]

necessariamente jorrar de uma poética original/ nova”: “Pintar, não a coisa,

20

SISCAR, M. Op. cit., p.76. 21

“En un mot, le sujet de mon oeuvre est la beauté, et le sujet apparent n’est qu’un pretexte

pour aller vers Elle.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Villiers de l’Isle-Adam” [31 de dezembro

de 1865] op. cit., p. 279). 22

“C’est, je crois le mot de la Poésie”. (Idem, ibidem, loc cit.) 23

SISCAR, M. Op. cit., p. 71. 24

(grifo meu) “[...] j’aurait enfin fait ce que je rêve être un Poeme, - digne de Poe et que les

siens ne surpasseront pas”. (MALLARMÉ, S., “Carta a Henri Cazalis [28 de abril 1866],

op. cit., p. 297”).

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mas o efeito que ela produz”25

. Nessa “nova poética”, como nota Marcos

Siscar, “o poeta visa[ria] à produção de um efeito que é chamado

tradicionalmente de estético”. Definido o efeito, Mallarmé teria já o plano

de sua obra e de sua teoria poética:

Tenho o plano da minha obra e sua teoria poética que será

essa: ‘Oferecer as mais estranhas impressões, é claro, mas

sem que o leitor por elas esqueça sequer um minuto o

prazer que lhe proporcionará a beleza do poema26

.

A base dessa nova estética seria percebida então pelas sensações

proporcionadas pela escrita. "Trata-se de sugerir as sensações, e não mais

somente de as suportar"27

. Ou seja, ao invés de apostar em uma arte que

evocaria determinados significados já conhecidos, Mallarmé sugere uma

arte cujo foco não está na apreensão do objeto em si - nem de seu sentido

mais comum, usual – mas nos efeitos – ou intenções – que podemos aplicar

a ele. Mallarmé não narra o objeto, antes o sugere. Pois segundo ele próprio,

“nomear um objeto é suprimir os três quartos do prazer do poema que é

feito de revelar pouco a pouco: sugeri-lo, esse é o sonho”28

. A possibilidade

de evocação permitida nessa poética atribuiria ao objeto um poder

“encantatório”, uma espécie de “feitiçaria evocatória”, como observa

Baudelaire29

. Para “salvar uma língua”, livrá-la de seu aspecto mais usual,

medíocre, seria preciso revesti-la de um efeito “sobrenatural”, alcançado

pela exploração de sua capacidade sugestiva que abrange os campos da

significação e da sensação oculta.

25

“[...] J’ai enfim commencé mon Hérodiade. Avec terreur, car j’invente une langue qui

doit nécessairement jaillir d’une poétique très nouvelle, que je pourrais définir en ces deux

mots: Peindre, nom la chose, mais l’effet qu’elle produit.” (MALLARMÉ, S. “Carta a

Henri Cazalis” [30 de outubro de 1864], op. cit., p. 206). 26

“J’ai le plan de mon oeuvre, et sa théorie poétique qui sera celle-ci: ‘donner les

impressions les plus étranges, certes, mais sans que le lecteur oublie pour elles une minute

la jouissance que lui procurera la beauté du poème’” (Idem. “Carta a Villiers de l’Isle-

Adam” [31 de dezembro de 1865], op. cit., p. 279). 27

BENICHOU, P. Op. cit., p. 41. 28

MALLARMÉ, S. in FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 171. 29

Cf. BAUDELAIRE, C. “Salon de 1846” in Oeuvres complètes. Bibliothèque de la

Pléiade, 2 vol. Paris: Gallimard, 1976.

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O próprio ato de sugerir já desperta no leitor as emoções, ou os

efeitos, previamente escolhidos pelo autor. “A alma do leitor frui

absolutamente como o poeta quis”30

. Além de lhe proporcionar um efeito

requerido, a sugestão de um objeto ou nome faz com que igualmente surja

na alma do leitor uma ideia. Assim, captar o efeito, e não a coisa em si,

significa para Mallarmé a abolição do objeto, e igualmente a aquisição de

uma ideia. Esvaziar o objeto para nele encontrar seu “nada” significa dar a

ele a possibilidade de aquisição de algo “novo”, porém, muitas vezes,

problemático e indecifrável:

A recusa de nomear o objeto, e o conselho de evocar uma

direção pela impressão que ele produz não estão

evidentemente separados da experiência do Nada: o verbo

poético renuncia a acabar com o ser tenebroso e

problemático das coisas; ele as faz aparecer nelas mesmas

na distância e na alusão, condições novas do Belo. Nesse

sentido, a poética da sensação rejunta e acompanha, em um

mesmo espírito de solidão, a técnica do enigma31

.

Mallarmé afirma ainda que se o nome Hérodiade não existisse, ele o

teria inventado, pela magia da sugestão e pelo poder das palavras que fazem

renascer diante dos olhos do pensamento a imagem daquilo que não mais

está – ou que nunca esteve – presente. Nessa obra, segundo ele próprio, a

mais bela página conteria apenas o nome Hérodiade. “Sombria e vermelha

como uma romã [grenade] aberta”32

, tudo começaria a ganhar forma por

essa palavra, clef de voûte, ou centro de sua própria criação33

. Essa

cintilação imanente às palavras34

remete - para Poe – a “uma certa soma de

complexidade, ou mais propriamente de combinação”, por isso, elas

formariam – na obra de Mallarmé – uma estrutura que funcionaria como

30

Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864]. 31

“Le refus de nommer l’objet, et le conseil de l’évoquer de biais par l’impression qu’il

produit ne sont évidemment pas séparables de l’expérience du Rien: le verbe poétique

renonce à saisir l’être ténébreux et problématique des choses; Il les fait apparaître en lui-

même dans la distance et l’allusion, conditions nouvelles du Beau. En ce sens la poétique

de la sensation rejoint et accompagne, dans un meme esprit de solitude, la technique de

l’énigme.” (BENICHOU, P. Op. ci.t, p.40). 32

“Ce mot sombre, et rouge comme une grenade ouverte” (MALLARMÉ, S. “Carta a

Eugène Lefébure” [18 de fevereiro de 1865], op. cit., p. 226). 33

Cf. Idem, “Carta a Théodore Aubanel” [28 de julho de 1866], op. cit., p. 315. 34

Cf. Idem. “Carta a François Coppée” [5 de dezembro de 1866], op. cit., p. 328.

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uma sinfonia e que desencadearia na obra “uma certa quantidade de espírito

sugestivo, algo como uma corrente subterrânea de pensamento, não visível,

indefinida”35

. Pintar esse espírito sugestivo, de maneira “intima e singular”,

como Mallarmé gostaria, seria apreender as impressões mais “estrangeiras”,

mas que se adequariam perfeitamente no “todo”, formando uma composição

íntima e singular. Nessa composição, somente após as palavras terem

adquirido seu “estado de maturação”, ou seja, livres de todas as impressões

“artificiais”, o poema atingiria sua forma independente, “natural”,

adquirindo vida própria, sem se submeter a um sentido já automatizado. É o

que Mallarmé define, a Théodore Aubanel36

, como “lei natural do verso”37

.

Segundo Maurice Blanchot, no livro A Parte do Fogo, a palavra em

Mallarmé só adquiria sentido quando nos livrava do objeto que nomeia38

. O

poema ideal, “natural”, como queria Mallarmé, seria então pura

transposição, não teria compromisso com o sentido das coisas, funcionando

somente enquanto “noção pura”. Como afirma Mallarmé no final de “Crise

de Verso”:

De que serve a maravilha de transpor um estado de fato em

seu quase desaparecimento vibratório segundo o jogo da

palavra, entretanto; senão para que dele emane, isenta do

incômodo de um próximo ou concreto apelo, a noção

pura39

.

Essa abolição do objeto que tenderia ao surgimento de uma idéia,

como já foi discutido, poderia também levar à abolição da materialidade

dessa linguagem. Uma característica dessa linguagem autêntica, essencial,

segundo Mallarmé, seria pintar a ausência produzida pela eliminação do

35

“[...] l’une, une certaine somme de complexité, ou, plus proprement, de combinaison;

l’autre, une certaine quantité d’esprit suggestif, quelque chose comme un courant souterrain

de pensée, non visible, indéfini” (POE, E., op. cit., p. 996). 36

Théodore Aubanel (1829-1886) foi um poeta e tipógrafo francês muito próximo de

Mallarmé, quando ele ainda trabalhava em Tournon. Mesmo depois de sua mudança, os

dois continuaram a se corresponder até a morte de Aubanel. 37

Cf. MALLARMÉ, S. “Carta a Théodore Aubanel” [16 de julho de 1866], op. cit., pp.

311-314. 38

Cf. BLANCHOT, Maurice. “O Mito de Mallarmé” in A parte do Fogo. Tradução Ana

Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. 39

MALLARMÉ, Stéphane. “Crise de verso”. Tradução de Ana Alencar. Inimigo Rumor.

Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008, p. 160.

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objeto, o que implicaria um risco. Esse risco consiste no emudecimento de

qualquer discurso significativo. Mallarmé, de acordo com Blanchot, “não

teme privilegiar a linguagem em detrimento do pensamento; como poderia

temê-lo?”40

. Por isso, ao evidenciar a linguagem em seu estado bruto, puro,

apostaria também em destruir a realidade material das coisas com seu poder

abstrato e “destruir com o poder de evocação sensível das palavras esse

valor abstrato”41

. Sendo assim, o que restaria a essa linguagem a não ser o

silêncio?

À primeira vista, esse silêncio parece ter dominado a obra de

Mallarmé até 1897, ano de publicação de “Um Lance de Dados Jamais

Abolirá o Acaso”42

. Pois, apesar de seus poemas, textos críticos e traduções

– incluindo “Hérodiade” e uma tradução de “O Corvo”, de Poe – serem

publicados em revistas e jornais esparsos, Mallarmé ainda era um escritor

“sem livro”. Suas “terças-feiras na rue de Rome” já eram famosas e

freqüentadas pela nata da intelectualidade da época, mas ainda lhe faltava

um livro (para ele, o Livro). Mas para Mallarmé, esse silêncio não

significava um fracasso, pois não se colocava numa oposição à escrita desse

Livro. Ao contrário, ele representava antes o continuum da palavra, seu

próprio parti pris; e, sendo assim, aparecia “como a possibilidade derradeira

da palavra, (...) única exigência válida”43

. Ocorreria então um movimento

oposto, Mallarmé tentaria dar forma a esse silêncio, materializar a ausência

oriunda das palavras. Ao fazer isso, ele esperava que o verso seguisse sua

“lei natural”, um estado que seria alcançado quando as palavras atingissem a

maturação necessária para que o poema pudesse se “destacar”. Como se

40

BLANCHOT, M. Op. cit., p. 39. 41

Idem, ibidem, p. 39. 42

O poema é publicado pela primeira vez na revista Cosmópolis, e, segundo Joaquim

Fontes, “deveria aparecer no ano seguinte sob forma de livro, com litografias de Odilon

Redon, projeto jamais levado a bom termo: o pintor se sentia desesperadamente incapaz de

uma interpretação visual do poema; e Mallarmé, antes de rever as provas, recebe a visita da

morte.” (FONTES, Joaquim Brasil. Os anos de Exílio do Jovem Mallarmé. São Paulo:

Ateliê Editorial, 2007, pp. 63-64.) 43

BLANCHOT, M. Op. cit., p. 42.

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elas, agora, “longe de nos desviarem das coisas, devessem ser delas o

decalque material”44

.

A tarefa de materializar esse silêncio levaria Mallarmé à exploração

dos “brancos da página”. “Tanto que prefiro, segundo o meu gosto, uma

página em branco”45

, profetiza ele. A página branca, unidade que, na carta

sobre “l’Azur”, despertava o pavor por “demandar os versos por muito

tempo sonhados”, é vista agora como um espaço privilegiado de

significação, um “significativo silêncio”, diria Mallarmé. Tão belo quanto o

verso46

, esse silêncio levaria o poeta à exploração de sua “brancura vazia”,

“envoltório de um nada”. Mas afinal, “tudo isso é linguagem, mas

linguagem que, expressando o vazio, deve finalmente ainda expressar o

vazio da linguagem”47

. Essa expressão aparece então materializada em um

poema: “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”. Através desse poema,

Mallarmé considera a possibilidade de esse silêncio nos dizer alguma coisa.

Ora pelo espaçamento dos “brancos” da página e pela disposição tipográfica

usada, ora pela indeterminação do sentido derivada do ato de “cavar” o

verso, uma das principais constatações que emana do poema é a

impossibilidade de eliminação total do acaso na língua, assim como da

arbitrariedade das palavras.

Sendo assim, essa constatação leva Mallarmé a apostar, em “Um

Lance de Dados”, num espaço possível para a literatura. Onde “lançar os

dados” seria, em uma breve e simplória interpretação do poema, colocar o

acaso da linguagem “em jogo”, ou ainda, dramatizá-lo, mas não para anulá-

lo, e sim para encená-lo, simulá-lo enquanto possibilidade do espaço

poético. Porém, a simulação desse acaso torna o percurso do poema, do

início até seu fim, caótico e duvidoso. Essa dúvida começa já no título (“Um

lance de dados jamais abolirá o acaso”) e, paradoxalmente, termina no seu

44

Idem, ibidem, p.45. 45

MALLARMÉ, S. in BLANCHOT, M. Op. cit., p. 45. 46

Cf. “L’armature intellectuelle du poème se dissimule et tient – a lieu – dans l’espace qui

isole les strophes et parmi le blanc du papier: significatif silence qu’il n’est pas moins beau

de composer, que les vers.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Charles Morice” [27 de outubro de

1892], op. cit., p. 613.) 47

BLANCHOT, M. Op. cit., p. 43.

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ápice, o verso final (“Todo pensamento emite um Lance de Dados”). Entre

eles existe um hiato, um branco que pode ou não significar alguma coisa. É

interessante perceber que pela inversão do título e do verso final do poema,

poderíamos construir uma pergunta: “Se todo pensamento emite um Lance

de Dados, um lance de dados jamais abolirá o acaso?” A resposta para essa

pergunta não parece encontrar lugar no poema. Como vimos, por mais

estruturado e organizado que seja, todo pensamento, quando aplicado ao

verso, estará sempre à mercê do acaso, pois ele encontra-se presente em

qualquer aposta e/ou escolha de determinada possibilidade do verso. Sendo

assim, essa questão nos remete a uma aporia. E se admitirmos ainda que

“todo pensamento poético é um lance de dados”, e que a palavra hasard

(acaso) deriva do árabe az-zahr, cujo significado designa “um jogo de

dados”, formamos uma tautologia: “Um pensamento emite um pensamento”

e “um lance de dados nunca abolirá o lance de dados”.

Segundo Georges Poulet, em La pensée indéterminée, essa

indeterminação do pensamento presente em Mallarmé se origina na

constatação de uma ruptura entre dois momentos: um que representaria um

passado edênico, onde os conceitos eram completos [comblés], e as formas

iguais e únicas; e outro que representaria a “queda” e o exílio do homem

destituído desse “Paraíso” e forçado a viver em um presente que usurpa seu

lugar48

. Na distância entre esses dois momentos, ou dois pontos - de acordo

com Poulet - o “discurso indeterminado” de Mallarmé começa a se formar.

Em “Um Lance de Dados”, ao invés de tentar novamente juntar esses

pontos, acabar com essa “distância”, ele vai dar forma a esse hiato, cuja

criação vai ser marcada pela consciência da divisão do mundo – outrora

“único e singular” – em mil fragmentos. O reconhecimento dessa

fragmentação seria então encenado no poema, e representaria uma resposta

negativa, um não “extraordinariamente fechado”49

à possibilidade de

48

POULET, Georges. “Mallarmé” in La pensée indéterminée II. Du Romantisme au XX

siècle. Presses Universitaires de France: Paris, 1987. 49

Cf. Idem, Ibidem, p. 188.

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retorno a um discurso unívoco e singular. Assim, a aporia surgida do

questionamento do sentido do poema simboliza esse “fechamento”.

Mas para se chegar a esse entendimento, é necessário antes

confrontar-se com duas visões, aparentemente inversas e contraditórias que

surgem ao lermos o poema, ou seja, no ato de sua recepção. Uma que

concebe “Um Lance de Dados” como uma vasta unidade indeterminada,

incompreensível, e outra que o enxerga em sua multiplicidade de elementos

distintos e que funcionariam assim, pela sua diferença, como um todo

determinado. Por isso, sua recepção torna-se tão confusa, o que nos leva até

a especular se existe ou não um sentido que lhe possa ser atribuído. Pois, de

acordo com Poulet, “Mallarmé parece jogar perpetuamente com as

experiências que nos faz fazer [...] Tudo se passa como se [...] o próprio

alicerce do real se encontrasse em jogo”50

. E por esse jogo, Mallarmé

experimenta em “Um Lance de Dados” a linguagem de todas as formas. As

palavras, diante da abundância dos espaços em branco, parecem se apagar,

figurando apenas como meros contornos do branco, “desenho espaçado de

vírgulas e de pontos... melodia nua”51

, como diz Mallarmé no prefácio do

poema. Exatamente por colocar esse real “em jogo”, a “promessa” de um

sentido garantido – ou de uma visão preterida - no fim do poema fica então

suspensa. Não há nem mesmo a certeza, para o leitor, se o mestre atirou ou

não os dados, e é essa incerteza que o confronta, mas, ao mesmo tempo,

também lhe garante, frente a esse “vazio”, a possibilidade de apostar em um

sentido, de “jogar” ou não os dados.

Essa aposta do leitor em um “sentido” não se resume apenas a uma

escolha arbitrária. Mallarmé já dizia que o sentido, se ele existisse, seria

criado por uma miragem interna das palavras que compõe o poema. Elas

imediatamente despertariam ao receptor múltiplas sensações, que levariam à

aquisição de uma ideia. Por isso, apostar em um sentido para um poema é

50

“Mallarmé semble jouer perpétuellement avec les expériences qu’il nous fait faire [...]

Tout se passe comme si, [...], l’assise même du réel ele-même se trouvait mise en jeu”

(Idem, ibidem, p. 189). 51

MALLARMÉ, S. in BLANCHOT. M. Op. cit.

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deixar-se levar pelas impressões que dele se destacariam, pelo efeito

previamente produzido pelo autor. E essa parece ser a recepção almejada

por Mallarmé. Como parece ter sido a sensação de Paul Valéry ao ler pela

primeira vez “Um Lance de Dados”, e nos dar sua confissão em Variété II:

Creio ter sido o primeiro homem que viu essa obra

extraordinária. [...] Mallarmé tendo lido [...] seu Um Lance

de Dados, como simples preparação a uma grande

surpresa, me fez enfim considerar o dispositivo. Lembro-

me de ver a figura de um pensamento, pela primeira vez

posto em nosso espaço. [...] A espera, a dúvida, a

concentração eram coisas visíveis. [...] Eu contemplava

comodamente inapreciáveis instantes: a fração de um

segundo, em que se desponta, brilha e se apaga uma ideia.

[...] O todo me fascinava como se um novo asterismo no

céu fosse proposto, como se uma constelação tivesse

nascido e tivesse enfim significado alguma coisa. [...] Eu

me sentia livre na diversidade de minhas impressões, [...]

procurava uma resposta no meio de milhares de questões

surgidas e que me impediam de perguntar qualquer coisa.

Imerso em um complexo de admiração, resistência,

interesse apaixonado, analogias em estado nascente, diante

dessa invenção intelectual52

.

A “confusão” de sensações de Valéry justifica o efeito geral

pretendido por Mallarmé. Pois, ainda que por uma fração de segundo, ou em

inapreciáveis instantes, vemos surgir diante de nós uma ideia visível, “a

figura de um pensamento” disposta em toda a sua complexidade, como uma

constelação em que pequenos elementos juntos pudessem então “significar

alguma coisa”. É por isso que “Um Lance de Dados” está incrustado na

própria essência do Livro. Haja vista que esse Livro deveria ser a explicação

órfica da Terra, a condensação de todos os discursos em um só, que nele

também residiria a origem, e, ao mesmo tempo, o fim de todo pensamento,

de todo discurso. Esse Livro só poderia aparecer então enquanto fragmento,

disposto em “subdivisões prismáticas da Idéia”53

:

52

Cf. VALÉRY, Paul. “Le coup de dés” in Variété I et II. Paris: Gallimard, 1998, pp 264-

270. 53

MALLARMÉ, S. “Crise de verso” in op. cit., p.151

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Que mil vezes eu rejeitei, o espírito ferido ou cansado, mas

isso [o Livro] me possui e pode ser que eu consiga, não

fazer essa obra em seu todo (era preciso ser não sei quem

para isso!), mas mostrar um fragmento dela executada

[...] Provar por porções feitas que esse livro existe54

.

A existência desse Livro55

poderia ser comprovada na fração de um

segundo, tempo possível para que uma ideia desponte visivelmente para

nós, e tendo então sido cintilada, se apague, retorne ao Nada. O que sobraria

dessa cintilação que pudesse ser apreendido pela escrita? Apenas o rastro

desse movimento cíclico que permanece “visível”. Como nos explica

novamente Poulet: “Alguma coisa de insubstancial [...] se interpõe, e essa

interposição é a única coisa que subsiste de todo o evento”56

. E esse

“insubstancial” seria a própria “figura de um pensamento, pela primeira vez

posto em nosso espaço”, segundo Valéry.

Essa aposta de Mallarmé no pensamento seria simbolizada pela

apologia da página branca. Considerada agora - em “Um Lance de Dados” -

como uma unidade (destituída da linha que a dividia ao meio), ela se

transforma em uma enorme lacuna, um enorme espaço passível de ser

preenchido por possíveis cintilações de ideias, em constante movimento.

Dessa forma, pelo poema, Mallarmé gostaria de atingir a “expansão total da

letra”, em que “constelações de palavras pingadas em uma folha de papel

branco”57

pudessem expressar, segundo Octávio Paz, um “poema

impessoal”, cuja autoria não se atribuiria a Mallarmé, pois “através do

poeta, que já não é mais que uma transparência, fala a linguagem”58

.

Portanto, esse “poema impessoal” aparece como um fragmento possível da

Obra pura, que se mostra a Mallarmé em 1867. A primazia da linguagem e

do pensamento, conforme visto em “Crise de Verso”, implicaria no

desaparecimento elocutório do poeta, que, consequentemente, cederia

54

(grifo meu) MALLARMÉ in BENICHOU, P. Op. cit., p. 56. 55

Mallarmé oscila em relação à grafia dessa palavra. Ora ele a escreve com maiúscula, ora

com minúscula. 56

“Quelque chose d’insubstantiel [...] s’interpose, et cette interposition est la seule chose

qui subsiste de tout l’événement.” (POULET, G. Op. cit., p. 188.) 57

Cf. FONTES, J. Op. cit., p 19. 58

PAZ, O. Op, cit., p. 103.

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iniciativa às palavras. Sendo assim, esse Livro existira “sozinho”, aquém e

além de um autor, como o próprio Mallarmé escreve em Divagações: “O

Livro, contanto que dele nos separemos como autor, [...], entre os acessórios

humanos, ele existe sozinho: feito, sendo”59

. Cabe ao poeta que estiver

“interessado em ver” essa Obra a tentativa de transpô-la à escrita apenas

enquanto receptor. A partir de 1866, o desenvolvimento desse Livro passa a

ser então o principal assunto na correspondência, e o principal objetivo na

vida de Mallarmé, posto que essa Obra sempre se impôs como uma

presença real: “Acredito que tudo isso está escrito na natureza, de modo que

só se deixe de olhos fechados os interessados em nada ver. Essa obra existe,

todo mundo tentou fazê-la, sem o saber”60

.

Esse Livro, que se mostra como presença “perfeitamente delimitada”

com uma estrutura cambiante61

, porém definida (como uma tarefa acabada),

viria para coroar o fim “de tudo”. Isso porque seu conteúdo, sua “proposição

sumária” quer que o mundo exista para culminar em seu próprio fim. E esse

fim viria representar também para Mallarmé a “omissão de si”, não só pelo

apagamento de seus traços pessoais enquanto escritor, ou seja, “sua morte

autoral” descrita na carta de 1867 a Cazalis, mas implícita no medo de uma

“outra” morte, um “segundo abismo” como ele definiu na carta onde afirma

ter “cavado o verso”, aparentemente oculto e “esquecido:” “O outro vazio

que encontrei é aquele do meu peito. Tenho respirado verdadeiramente mal,

não consigo fazê-lo nem mesmo na volúpia de querer viver bem. Enfim, não

59

MALLARMÉ, S. “Quanto ao Livro” in Divagações/ Stéphane Mallarmé. Tradução e

apresentação Fernando Scheibe. Florianópolis : Ed. da UFSC, 2010, p 173. 60

MALLARMÉ, S. in BLANCHOT, M. Op. cit., p. 332. 61

Cf. Segundo Blanchot, “esse livro único é feito de vários volumes: cinco volumes, diz ele

em 1866, muitos tomos, afirma ainda em 1885. (...) Em 1867, ele <delimita> o

desenvolvimento da Obra a três poemas em verso e quatro poemas em prosa. Em 1871, mas

aqui o pensamento é um pouco diferente, anuncia um volume de contos, um volume de

poesias, um volume de crítica. No manuscrito póstumo, publicado por Jacques Scherer,

prevê quatro volumes, capazes de diversificarem-se em vinte tomos.” BLANCHOT, M. O

Livro por vir, pp. 327-328. Ainda sobre o Livro, afirma Paul Bénichou: "Quanto à natureza

da Obra, as indicações, nas mesmas cartas, são vagas e cambiantes: a Aubanel, ele fala de

cinco volumes, a serem escritos em vinte anos (...); a Cazalis, de três poemas em verso,

mais quatro em prosa sobre a "concepção espiritual do Nada", a ser feito em dez anos; a

Villiers, ele escrever que lhe resta a fazer dois livros, "um todo absoluto, Belo, outro

pessoal, Alegorias suntuosas do Nada". Nada disso, no entanto, teve sequência"

BÉNICHOU, P. Op. cit., p. 55

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vamos falar sobre isso”62

. As “dores no peito”, conseqüência de problemas

de respiração, transformam a vida de Mallarmé em um constante alerta ao

“abismo da morte”. Esse medo se expunha em muitas de suas cartas e

alguns de seus poemas. Não é por acaso que “Um lance de dados” termina

em um naufrágio, seguido de um afogamento, ou seja, na impossibilidade de

respiração. A “descoberta” da finitude de seu pensamento (na carta a

Cazalis) e também de seu corpo, marcam para sempre esse processo de

feitura do Livro. Sabendo de sua saúde frágil, ele tenta concluir uma parte

desse projeto, que encontra expressão, por exemplo, em poemas como “Um

Lance de Dados”, “Hérodiade”, e “Igitur”, nos quais ele trabalhará

insistentemente até o fim da vida.

Mallarmé sofria por não ter tempo de traduzir integralmente esse

Livro, mesmo sabendo que ele só poderia existir enquanto fragmento. A

herança mais importante que sua aparição, ainda que encenada - “captada”

no rastro de sua ausência - nos deixa talvez seja a primazia da ideia, ou “o

nascimento de um espaço ainda desconhecido, o próprio espaço da obra”63

.

No fim de sua vida, num instante de saúde, ele percebe um novo espaço que

se abre, desconhecido talvez, mas imposto novamente. Sofrendo da dor no

peito que tanto o perseguiu, ele ainda encontra voz para confessar, em tom

de frustração, esse espaço, que poderia e deveria ter sido “muito belo”: não

um “livro-total”, mas o resumo de sua vida como artista. Em uma última

carta, escrita para a mulher e a filha, no momento de sua morte, ele delimita

o que deverá ser sua Obra:

Mãe, Vève,

O espasmo terrível de sufocação sofrido há pouco

pode se reproduzir durante a noite e triunfar sobre mim.

Então, vocês não se espantarão ao me ver pensar na pilha

semissecular de minhas notas, a qual só se tornará um

grande estorvo para vocês; estejam certas de que nem uma

62

(grifo meu) “Car l’autre vide que j’ai trouvé, est celui de ma poitrine. Je ne vais vraiment

pas bien, et ne puis respirer longuement ni avec la volupté du bien-être. Enfin, ne parlons

pas de cela.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [28 de abril de 1866] in op. cit. p.

298) 63

BLANCHOT, M. Op. cit., p. 344.

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só folha pode ter utilidade. Eu mesmo, o único, poderia

extrair daí o que há... Eu o teria feito se os últimos anos

que faltam não me tivessem traído. Queimem,

consequentemente: não existe aí herança literária, pobres

crianças. Não a submetam sequer à apreciação de alguém:

ou recusem toda ingerência curiosa ou amiga. Digam que

não se decifrava nada, o que é verdade, no fundo, e, vocês,

minhas pobres abatidas, os únicos seres no mundo capazes

a este ponto de respeitar toda uma vida de artista sincero,

creiam que isto deveria ser muito belo.

Assim, não deixo uma só folha inédita, com exceção de

alguns fragmentos impressos que vocês encontrarão depois

de Um Lance de Dados e de Herodíade, terminada se a

sorte quiser64

.

O autor que tanto sonhou com uma Obra que pudesse abarcar a

totalidade do Universo e da escrita, acaba por ser obrigado a manter-se fiel à

realidade da vida ordinária. Vencido pelo “acaso” do tempo (faltaram-lhe os

anos preteridos), na necessidade imposta pela arte, ele se vê mais do que

nunca ligado ao que lhe ensinou Edgar Allan Poe. No final da sua

existência, consciente de sua mortalidade, ele vê surgir novamente sua obra.

Não mais um vislumbre de algo grandioso escrito na natureza - a Obra - que

ele relata em 1867, e sim uma obra que começaria do fim, de seu fim, só

que, dessa vez, nada mais que divagações dispostas ao acaso em

publicações imprevistas65

.

64

Cf. “Carta a Marie e Geneviève Mallarmé” Tradução de Joaquim Brasil Fontes. Op. cit.,

p. 64. 65

Em 1957, a edição póstuma dos manuscritos sobre o Livro é publicada por Jacques

Scherer sob o título Le “Livre” de Mallarmé. Premières recherches sur documents inédits.

Certamente, esse não era o Livro sonhado por Mallarmé.

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CONCLUSÃO

(Ou Um Relance de Dados)

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Como vimos ao longo dos capítulos, a transformação do pensamento

poético de Mallarmé deixa explícito dois momentos que podemos definir

como emblemáticos de sua poética. Segundo George Poulet, é exatamente a

consciência dessa ruptura que forma o pensamento “indeterminado” de

Mallarmé. E essa indeterminação vai possibilitar às próximas gerações

muitas interpretações distintas de sua obra. Caberia aqui ainda um breve

comentário sobre a relação adquirida e construída da recepção da obra de

Mallarmé ao longo do século XX. Sabendo que sua morte ocorre no limiar

dos séculos (1898), seu discurso não deixa de se projetar no novo século que

despertava. A dimensão e a apropriação tomada por esse discurso no cenário

literário europeu, especialmente nas vanguardas artísticas surgidas no início

do século XX, mostra como foi importante a releitura de Mallarmé e a

retomada de seu pensamento crítico. Por algum motivo e de alguma forma a

arte “pós-século XIX” procurava nele uma resposta ou um repúdio aos

caminhos por ela traçados ou impostos.

Se pensarmos no contexto histórico da “crise”, ela agora se

anunciava menos “refinada”, e, digamos, mais “fundamental”. O âmago

dessa questão consistiria principalmente na transformação sofrida no

cenário artístico e cultural europeu, ou, se quisermos mundial, que começa

já na segunda metade do século XIX e se consolida no século XX. Essa

transformação ganha proporções gigantescas e fundamentais com o apogeu

daquilo que denominamos técnica, ou progresso, como diria Baudelaire. O

surgimento de novas modalidades da arte - como a fotografia e o cinema -

fundamentadas na técnica coincide com a crescente difusão e

mercantilização do objeto artístico, possibilitadas agora pela sua

reprodutibilidade quase instantânea.

Essa crise também se deixa apreender por uma historicidade latente.

Ao longo dos capítulos desse trabalho vimos que, paralelamente ao

progresso tecnológico, opera-se um imponente esvaziamento geral dos

conceitos e uma ruptura dos ideais baseados em uma totalidade, em uma

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unidade perfeita. “Ficamos pobres”, nos denunciava Benjamin1. Nessa

época de pobreza dos homens e das experiências, nessa “nova barbárie” –

para usar as palavras de Benjamin, o que sobra ao mundo, e,

consequentemente, à arte seria um grande vazio. O vazio aludido por

Mallarmé, oriundo do ato de “cavar o verso”, toma outras proporções no

século XX. Com o surgimento da indústria cultural e com a massificação da

arte, a busca por um “preenchimento” periga torná-la um mero instrumento

da indústria cultural, o que possibilitaria posteriormente a sua utilização

como divulgação dos discursos totalitários. A perda da aura, que Baudelaire

associa à perda da imagem sagrada da poesia e do poeta, vai agora ratificar

esse processo de apropriação da arte por quem quer que seja. Pois, segundo

Benjamin, com o desaparecimento da aura, acaba-se também com o

“incômodo da autenticidade”, ou seja, a “aparição única de uma coisa

distante, por mais perto que ela esteja”2. Esse distanciamento passa a ser

suprimido pelo apogeu da técnica, pela “tendência a superar o caráter único

de todos os fatos através da sua reprodutibilidade”3. Em suma, trata-se de

fazer as coisas “ficarem mais próximas”. E essa proximidade levaria

também ao pressentimento da proximidade de uma crise, a crise da própria

identidade daquilo que poderia ser classificado como arte no século XX.

Essa crise seria então combatida com a doutrina da “arte pela arte”, que

resultaria em uma “teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura,

que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer

determinação objetiva”4. E na literatura, de acordo com Benjamin, teria sido

Mallarmé o primeiro a alcançar esse estágio.

A análise dessa afirmação de Benjamin sobre a obra de Mallarmé

nos abre a infinitas questões. Principalmente porque ela se apoia quase

exclusivamente naquilo a que é atribuído estatuto político. Um uso muito

corriqueiro nas interpretações de Mallarmé ao longo do século XX é

1 Cf. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza” in Obras escolhidas I. Magia e

Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. 2 BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” in op. cit., p.

170. 3 Idem, ibidem, p. 170.

4 Cf. Idem, ibidem, p. 171.

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considerá-lo apenas como um poeta “da forma”, considerando sua obra –

em especial, sua poesia – como uma oposição a uma arte, digamos,

engajada, política. Mesmo os vanguardistas, que consideravam Mallarmé

um poeta “revolucionário”, pelo seu trabalho de exploração do aspecto

visual e imagético do verso, não atribuíam a sua poesia um caráter engajado.

O curioso é que essa interpretação de Benjamin sobre a doutrina da arte pela

arte se basearia em um paradoxo. Ao mesmo tempo em que ele pode

concebê-la como um engajamento positivo, uma “defesa” da arte surgida

pela constatação da crise iminente, ele também lhe atribui uma “alienação”

negativa, uma “recusa” do tempo presente, e, principalmente, do que esse

tempo tem de crítico. Seria então Mallarmé um ícone, e sua obra um espaço

de negação da crise do presente? Ou, pelo contrário, seria sua obra uma

forma de reação atualizada desse tempo que se faz presente?

Sem dúvida essa questão perpassa aquilo que Benjamin chama de

função social da arte. Pois como ele mesmo afirma, na época da técnica, a

arte passa a se fundamentar na política e não mais no sagrado. Ocorreria

então uma estetização da política, que resultaria na mudança da própria

essência da obra de arte. Outrora criada para ser autêntica e única, ela se

emancipa, e com isso - para manter-se enquanto tal - necessitaria ser

reproduzida (vale outra vez lembrar, como exemplo, as duas principais

modalidades de arte surgidas nesse contexto – o cinema e a fotografia – que

correspondem a esse quadro). Essa exposição imposta – e, agora, inerente –

ao objeto artístico clamaria uma aproximação maior entre arte e sociedade,

ou ainda, uma comunicação entre elas. Ou seja, o objeto artístico perigaria

só ter espaço nessa nova sociedade de consumo se servisse a determinado

fim social. Seu valor de culto passaria a ser regido pelo seu valor de

exposição e de troca. Sendo assim, um paradoxo se estabeleceria; a

emancipação da arte seria apenas um subterfúgio para a imposição, nos

“tempos modernos”, do autofinalismo da técnica? A arte passaria a ser então

apenas um instrumento que garantisse a supremacia da técnica perante a

sociedade?

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No campo literário, Marcos Siscar, na tentativa de responder a essas

perguntas, afirma: “(...) Retomo a hipótese de que a técnica é um problema

para a literatura. Não apenas atinge a literatura, mas é um problema para

ela, para sua constituição como discurso, em especial como discurso

cultural”5. A crise a que Benjamin aludia geraria agora (longe de uma

“teologia negativa”) a possibilidade de um discurso cultural para a poesia,

onde o que estaria em jogo não seria apenas uma resposta emocional às

novas condições de cultura, mas “um pensamento ou um drama da

técnica”6. Ou seja, trata-se novamente de uma encenação - visando a um

entendimento - da técnica no verso, onde ela passa a figurar como elemento

constitutivo de uma poética, fenômeno que Siscar chama de estetização da

crise. Ou a própria inscrição da poesia no contexto histórico da crise no

século XX.

Nesse sentido, a obra de Mallarmé, ao contrário do que afirma

Benjamin, não remeteria a uma negação do real pelo literário sem qualquer

“determinação objetiva”, nem mesmo a um esteticismo “fechado em si”, ou,

a um “esteticismo da torre de marfim”, imagem tão cara à doutrina da arte

pela arte, que supõe um recolhimento, e um afastamento da sociedade. Ela

seria antes um espaço de encenação dessa crise iminente, fosse pela recusa

da linguagem como uma “moeda de troca”, ou pela aparição constante em

seus poemas (por exemplo, “Um Lance de Dados” e “Salut”) da imagem do

“naufrágio”, modo pelo qual se pode expressar esse sentimento de crise7.

Assim, a “defesa” da arte contra a estetização da política e da técnica

passaria – na obra de Mallarmé - por uma dicotomia que se estabeleceria

entre comunicação e comunicabilidade, entre a busca de uma mensagem

comunicativa no espaço do verso e a aceitação da poesia enquanto discurso

crítico que expressa uma comunicabilidade entre versos. Ou, “de certa

forma, conclui Siscar, trata-se de um modo característico que a poesia tem

5 SISCAR, Marcos. “O grande deserto de homens” in Poesia e Crise. Campinas: Editora da

Unicamp, 2010, p. 63. 6 Idem, ibidem, p. 61.

7 Cf. Idem, ibidem.

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de criar comunidade”8. De reivindicar o direito à fala – ou à palavra –

inerente ao poema e ao poético, e que o atualize enquanto leitura crítica do

presente. Um esteticismo “repaginado”, pois “aquilo que a história da

literatura chama de esteticismo está longe de ser um discurso apartado do

sentimento de realidade”9.

A relação entre o verso e a era da técnica não deixa, portanto, de ser

conflituosa. Ela se estabelece sempre por uma tensão, onde a poesia ora

encena o papel de vítima, ora assume um pacto com a técnica, “como

tentativa de rejuvenescimento, de atualização, de invenção”10

. Esse pacto

parece ter sido o caso das vanguardas, pela sua já conhecida apropriação e

exploração do aparato tecnológico. Mas, de fato, não é o caso de Mallarmé.

Por mais que a interpretação dos vanguardistas o considere “revolucionário”

pela exploração do quesito formal e experimental do verso em poemas como

“Um Lance de Dados”, por exemplo, não encontramos em sua obra uma

“saída ao verso”, uma derrocada do “ciclo histórico do verso”, ou uma

ruptura de sua “unidade rítmico-formal” (posteriormente descrita por Décio

Pignatari e os irmãos Campos11

). Ele clamava antes por uma ruptura de

determinado uso do verso (que em “crise de verso” se refere

especificamente à forma tradicional conhecida como “alexandrino”), e sua

apropriação por autores tradicionais, como Victor Hugo. O que “Um lance

de dados” conteria de “revolucionário” se encontra no uso dado ao verso,

onde o que “estaria em jogo” seria a própria possibilidade do verso

enquanto discurso metalinguístico. Ele não declama uma “morte ao verso”,

pelo contrário, o verso passa a ser tudo e, ao mesmo tempo, testemunha de

uma crise inadiável. Dessa forma, o “ciclo do verso” continua e o que muda

é a sua concepção histórica.

A apropriação da técnica pela arte poderia chegar ainda a um ponto

desastroso, que dificultaria o estabelecimento de uma separação entre

8 Idem, ibidem, p. 74.

9 Idem, ibidem, p. 74.

10 Idem, ibidem, p. 61.

11 Cf. Augusto de Campos; Décio Pignatari; Haroldo de Campos, Teoria da poesia

concreta. São Paulo: Brasiliense, 1975, 2 ed.

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ambas. Nesse ponto, elas passariam então a funcionar numa espécie de

simbiose na sua relação com o mundo, onde seus limites se apagariam.

Sendo assim, uma outra doutrina da arte pela arte seria criada, só que dessa

vez, ao invés de se fundamentar na solidão e no isolamento da sociedade,

ela pregaria a própria destruição desta. Ou seja, de acordo com Benjamin, o

elemento chave, a base dessa nova “estética” seria o estabelecimento da

guerra, ou a supremacia da máquina perante o homem. Como exemplo,

bastaria analisar os manifestos futuristas de Marinetti - descrevendo os

espetáculos dos tanques de guerra, metralhadores e fuzis -, e a relação do

cinema produzido na Alemanha e sua apropriação pelo nazismo.

É por isso que a insistência de Mallarmé pelo verso, assim como

a distinção observada em sua obra - entre comunicação e comunicabilidade -

, se tornaria fundamental para entender o espaço do verso enquanto

encenação, dramatização (e não propaganda) dessa violência que lhe foi

imposta. Pois, a “resistência” da poesia a essa violência consistiria em criar

uma comunidade, uma maior proximidade entre homens – e entre versos -

onde a relação com a técnica seria “posta em jogo”, na tentativa de repensar,

ou ainda, apostar em uma existência possível – e pacífica? - entre ambas no

mundo contemporâneo. De acordo com Siscar, uma forma possível de

dramatizar essa “proximidade significativa [da poesia] com o maquinário ou

a indústria da morte”12

seria pela imagem da decapitação, descrita em um

trecho do poema “Hérodiade” de Mallarmé, intitulado “Cantique de Saint-

Jean”. A cena da decapitação, tão comum em certo momento histórico na

França, remete agora a outro momento crítico, atualizando-o. A “perda da

cabeça” da poesia na era da técnica também pode exprimir uma

possibilidade de salvação:

Se a morte por decapitação é o modo histórico pelo qual se

realiza socialmente a queda da aristocracia ou o martírio do

santo, poderíamos dizer que o ideal estético da modernidade

também se funda numa decapitação simbólica pela qual a

poesia é designada como vítima, isto é, como alteridade

necessária à produção do discurso social e cultural

12

SISCAR, Marcos. “Grande deserto de homens” in op. cit.

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dominante. Desse modo, ela é capaz de reapropriar-se da

violência e de estabelecê-la como sentido de sua relação com

a palavra (...)13

.

Nessa reapropriação da violência aplicada ao sentido das palavras,

se encontraria a possibilidade de salvação da poesia. Isso aparece

explicitado pelo Saint-Jean de Mallarmé, que, ao perder a cabeça, observa-a

alçar vôo no céu e adquirir uma beatificação14

; ou seja, ainda que pela forma

violenta de um sacrifício, é possível inscrever a poesia na História. O fato de

essa violência reger agora o sentido da relação da poesia com a palavra

explicaria também o motivo pelo qual um poeta como Paul Celan (judeu,

romeno, sobrevivente do Holocausto) cita Mallarmé, em 1960, no seu

discurso de entrega do prêmio Büchner:

Podemos partir da arte como algo já dado e um pressuposto

incondicional, devemos, sobretudo, para falar bem

concretamente, digamos, pensar em Mallarmé até as últimas

conseqüências?15

“Partir da arte como algo já dado e um pressuposto incondicional”

seria admiti-la enquanto possibilidade real que busca constituir-se como um

discurso sobre a verdade. Uma verdade crítica, tensionada, pois na medida

em que se constitui de uma crise externa, de um momento histórico crítico

(no caso de Celan, a guerra, o Holocausto), também faz transparecer a crise

interna, a violência de sua relação com a palavra, com o verso. Mallarmé já

denunciava essa violência antes de Celan. Ao discutir sobre os novos

parâmetros da poesia francesa e contemporânea, na Universidade de Oxford,

13

Idem, ibidem, p. 64 14

“Et ma tête surgie

Solitaire vigie

Dans les vols triomphaux

De cette faux

(...)

Mais selon un baptême

Illuminée au même

Principe qui m'élut

Penche un salut »

MALLARMÉ, Stéphane. «Cantique de Saint-Jean » In Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, Pléiade, 1945, p. 49. 15

CELAN, Paul. “Meridiano” in Cristal. Trad. Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,

1999, p. 173.

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ele dá seu testemunho desse estado de crise: “De fato, trago novidades e das

mais surpreendentes. Um tal caso nunca foi visto antes. / Fizeram violência

ao verso”16

. No entanto, esse tema, naquele momento, ainda se encontrava

confuso, mas ele tentaria formulá-lo no próprio espaço da escrita,

perseguindo o verso, experimentando-o, explorando, rompendo seus limites.

É o que ele relata em “Crise de Verso”:

Assiste-se, como final de um século, e à diferença do último, a

reviravoltas; mas, fora do espaço público, a uma inquietude do véu

no templo com desdobramentos significativos e um pouco seu

rasgo17

.

É apenas por meio desse rasgo que Mallarmé enxergava essa

concepção estética que se formava. É só por um relampejo “num momento

de perigo”18

que o poeta pode perceber o diagnóstico da situação, a

verdade: através de um acidente, onde se opera um rasgo (“Crise de

verso”), ou um naufrágio (“Salut”), ou uma decapitação (“Cantique de

Saint-Jean”). Pois nessa nova realidade que se mostra inapreensível,

emerge também a necessidade de se pensar a situação da poesia, levando

em conta “alguma coisa que é da ordem do impensável”19

. Por isso, a

afirmação “extremista” de Celan: “Pensar Mallarmé até as últimas

consequências” poderia ser uma atualização da atitude “desesperada” do

mestre em “Um lance de dados” - assim como a encenação do impensável

– em que lançar os dados constituiria o último ato possível que lhe restaria

diante daquilo que não se pode prever: o naufrágio, a morte?

“Pensar Mallarmé até as últimas consequências” admitiria também

uma estranha ligação com o ato da decapitação. Onde a poesia deveria ser

pensada e concebida no espaço aberto pelo corte da guilhotina. Essa

decapitação, além de encenar a cisão que estaria sendo operada no verso,

também poderia remeter à questão da subjetividade, ao anterior

16

MALLARMÉ, S. Op. cit., p. 634. 17

MALLARMÉ, S.“Crise do verso” in Inimigo Rumor. Tradução de Ana Alencar. Rio de

Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008. 18

BENJAMIN, W. Op. cit., p. 224. 19

SISCAR, M. “Poesia Cou Coupé” in op. cit., p.75.

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desaparecimento elocutório do poeta. Por isso, dramatizar a decapitação

não só da poesia, como a do poeta, seria levá-la até “suas” últimas

consequências, em que o ressurgimento atualizado de ambos então

nasceria por uma cicatriz, oriunda da violência da crise, e do corte. No

caso de Celan, essa cicatriz o possibilitaria cavar o verso, na medida em

que esse ato assumisse o significado de uma reconciliação com seu

passado (com o Holocausto) e uma inscrição paradoxal de sua poesia na

história.

Em suma, a poesia cria comunidade. Mesmo que ela se encontre em

um “momento de perigo”, na iminência de um naufrágio, ou de uma

decapitação, ela clama por um brinde (Salut), onde expressa uma forma de

saudação ou de salvação. E essa comunidade não se define apenas pela

questão do literário, numa negação da função social da arte. Nela estaria

contido tudo aquilo que podemos definir como humano, no sentido de

oposição ao mecanicismo, à violência, e à supremacia da técnica. Em uma

escala valorativa, estabelecida nessa sociedade de valores, ela seria algo

que se firma na diferença, na estranheza de uma cicatriz aberta que, como

diz Celan, “goteja resina, não quer cicatrizar”20

. Sendo assim, afirma

Siscar, “o que poderíamos chamar de comunidade poética é constituído

por aqueles que se dão os meios de responder à sua estranheza,

reivindicando ou reinventando a herança da poesia”21

. Por essa herança

entende-se a possibilidade de sua inscrição no tempo histórico, em que a

poesia não seria uma ponte para um futuro “melhor”, nem uma forma de se

impor como discurso superior em um mundo em ruínas. O passado, o

presente e o futuro só valeriam nesse “tempo histórico” enquanto

20

“Não uma

voz – um

tardio rumor, estrangeiro às horas, agradável

a teus pensamentos, aqui, desperto

por fim: um

pistilo, grande como um olho, com uma profunda

ranhura; ele

goteja resina, não quer

cicatrizar”

(CELAN, P. “Voz” in op. cit.) 21

SISCAR, M. “Poesia Cou Coupé” in op. cit., p. 79.

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dispositivos de atualização dessa herança da poesia, que se encontraria

sempre na iminência de uma desaparição, que nos escapa. Talvez sua

apreensão só seja novamente possível em um (re)lance de dados.

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ANEXOS

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Jeudi matin

[7 janvier 1864]

Mon Henri,

Je t’envoie enfin ce poème de L’Azur que tu semblais si désireux de

posséder. Je l’ai travaillé, ces derniers jours, et je ne te cacherai pas qu’il

m’a donné infiniment de mal, - outre qu’avant de prendre la plume il fallait,

pour conquérir un moment de lucidité parfaite, terrasser ma navrante

Impuissance. Il m’a donné beaucoup de mal, parce que bannissant mille

gracieusetés lyriques et beaux vers qui hantaient incessamment ma cervelle,

j’ai voulu rester implacablement dans mon sujet. Je te jure qu’il n’y a pas un

mot qui ne m’ait coûté plusieurs heures de recherche, et que le premier mot,

qui revêt la première idée, outre qu’il tend par lui-même à l’effet général du

poème, sert encore à préparer le dernier. L’effet produit, sans une

dissonance, sans une fioriture, même adorable, qui distraie, - voilà ce que je

cherche. – Je suis sûr, m’étant lu les vers à moi-même, deux cents fois peut-

être, qu’il est atteint. Reste maintenant l’autre côté à envisager, le côté

esthétique. Est-ce beau, y a-t-il un reflet de la Beauté? Ici, commencerait

mon immodestie si je parlais, et c’est à toi de décider.

Henri, qu’il y a loin de ces théories de composition littéraire à la

façon dont notre glorieux Emmanuel prend une poignée d’étoiles dans la

voie lactée pour les semer sur le papier, et les laisser se former au hasard en

constellations imprévues! Et comme son âme enthousiasme [sic], ivre

d’inspirations, reculerait d’horreur devant ma façon de travailler! Il est le

poète lyrique, dans tout son admirable épanchement. Toutefois, plus j’irais,

plus je serai fidèle à ces sévères idées que m’a léguées mon grand maître

Edgar Poe.

Le poème inoui du Corbeau a été ainsi fait. Et l’âme du lecteur jouit

absolument comme le poète a voulu qu’elle jouît. Elle ne ressent pas une

impression autre que celles sur lesquelles il avait compté. – Ainsi, suis ma

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pensée dans mon poème, et vois si c’est là ce que tu as senti en me lisant.

Pour débuter d’une façon plus large, et approfondir l’ensemble, je ne parais

pas dans la première strophe. L’azur torture l’impuissant en général. Dans la

seconde, on commence à se douter, par ma fuite devant le ciel possesseur,

que je souffre de cette terrible maladie. Je prépare dans cette strophe encore,

par une forfanterie blasphématoire Et quelle nuit hagarde, l’idée étrange

d’invoquer les brouillards. La prière au Cher Ennui confirme mon

impuissance. Dans la troisième strophe, je suis forcené comme l’homme qui

voit réussir son voeu acharné. La quatrième commence par une exclamation

grotesque, d’écolier délivré. Le ciel est mort! Et, de suite, muni de cette

admirable certitude, j’implore la Matière. Voilà bien la joie de

L’Impuissant. Las du mal qui me ronge, je veux goûter au bonheur commun

de la foule, et attendre patiemment la mort obscure... Je dis: Je veux! Mais

l’ennemi est un spectre, le ciel mort revient, et je l’entends qui chante dans

les cloches bleues. Il passe, indolent et vainqueur, sans se salir à cette brume

et me transperce simplement. A quoi je m’écrie, plein d’orgueil et ne voyant

pas là un juste châtiment de ma lâcheté, que j’ai une immense agonie. Je

veux fuir encore, mais je sens mon tort et avoue que je suis hanté. Il fallait

toute cette poignante révélation pour motiver le cri sincère, et bizarre, de la

fin, l’azur… - Tu le vois, pour ceux qui, comme Emmanuel et comme toi,

cherchent dans un poème autre chose que la musique du vers, il y a là un

vrai drame. Et ç’a été une terrible difficulté de combiner, dans une juste

harmonie, l’élément dramatique, hostile à l’idée de Poésie pure et

subjective, avec la sérénité et le calme de lignes nécessaires à la Beauté.

Mais tu vas me dire que voilà beaucoup d’embarras pour des vers

qui en sont bien peu dignes. Je le sais. Cela, toutefois, m’a amusé de

t’indiquer comment je juge et je conçois um poème. Abstrais de ces lignes

toute allusion à moi, et tout ce qui a rapport à mes vers, et lis ces quatre

pages, froidement, comme l’ébauche, fort mal écrite et informe, d’un article

d’art.

Tuus,

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Stéphane Mallarmé.

Je ne me relis pas. Et je te plains d’avoir à me lire, povero!

(MALLARMÉ, Stéphane. Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand

(éd). Paris: Gallimard,1995, pp. 160-163)

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Manhã de quinta-feira

7 de janeiro de 1864

Meu Henri,

Enfim envio-lhe este poema sobre o Azul, que você parecia tão

desejoso de possuir. Trabalhei nele, nestes últimos dias, e não esconderei

que ele me causou um desconforto infinito – além do fato de que antes de

pegar a pena era preciso, para conquistar um momento de perfeita lucidez,

demolir minha desoladora Impotência. Isso me causou muito desconforto,

pois ao banir mil graciosidades líricas e belos versos que assombravam

incessantemente meu cérebro, eu quis permanecer implacavelmente em meu

tema. Juro a você que não há uma palavra que não me tenha custado várias

horas de pesquisa, e que a primeira palavra, que reveste a primeira ideia,

além de tender por si própria ao efeito geral do poema, serve ainda para

preparar a última. O efeito produzido, sem nenhuma dissonância, sem

nenhum floreado, mesmo adorável, que distraia – é isso que procuro. Tendo

lido os versos para mim mesmo, duzentas vezes talvez, estou certo de que

ele foi alcançado. Resta agora o outro lado a considerar, o lado estético. São

belos, há neles um reflexo da Beleza? Aqui começaria minha imodéstia se

eu falasse, e cabe a você decidir.

Henri, como estamos longe daquelas teorias de composição literárias

à maneira das quais nosso glorioso Emmanuel pega um punhado de estrelas

na via Láctea para semeá-las sobre o papel, e deixá-las se formarem ao

acaso em constelações imprevistas! E como sua alma entusiasmo [sic], ébria

de inspiração, recuaria de horror diante de minha maneira de trabalhar! Ele é

o poeta lírico em toda a sua admirável efusão. Todavia, quanto mais eu

avançar, mais serei fiel às severas ideias que me foram legadas por meu

grande mestre Edgar Poe.

O poema inaudito do Corvo foi feito assim. E a alma do leitor goza

absolutamente como o poeta quis que ela gozasse. Ela não sente uma

impressão diferente daquelas com as quais ele havia contado. – Assim, siga

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meu pensamento em meu poema, e veja se é isso que você sentiu ao me ler.

Para começar de uma maneira mais ampla, e aprofundar o todo, eu não

apareço na primeira estrofe. O azul tortura o impotente em geral. Na

segunda, começa-se a pressentir, por minha fuga diante do céu possuidor,

que sofro dessa terrível doença. Preparo ainda nessa estrofe, por uma

fanfarrice blasfematória Quelle nuit hagarde/ Que noite selvagem, a

estranha ideia de invocar as névoas. A súplica ao Cher Ennui/Caro Tédio

confirma minha impotência. Na terceira estrofe, enfureço-me como o

homem que vê realizado seu desejo mais ardoroso. A quarta começa com

uma exclamação grotesca, de colegial libertado. O céu está morto! Em

seguida, munido de admirável certeza, imploro à Matéria. Eis aí a alegria do

Impotente. Cansado do mal que me corrói, quero provar a simples ventura

da multidão, e esperar pacientemente a morte obscura… Digo: Eu quero!

Mas o inimigo é um espectro, o céu morto reaparece e eu o escuto cantando

nos sinos azuis. Ele passa, indolente e vitorioso, sem sujar-se nessa bruma, e

simplesmente me atravessa. Diante do que eu exclamo, cheio de orgulho e

não vendo aí um justo castigo para minha covardia, que possuo uma imensa

agonia. Quero fugir ainda, mas sinto meu erro e atesto que estou possuído.

Foi preciso toda essa lancinante revelação para motivar o grito sincero, e

bizarro, do fim, o azul… – Veja que, para aqueles que, como você e

Emmanuel, procuram em um poema outra coisa além da música do verso,

existe aí um verdadeiro drama. E foi terrivelmente difícil combinar, em uma

justa harmonia, o elemento dramático, hostil à ideia de Poesia pura e

subjetiva, com a serenidade e a calma de linhas necessárias à Beleza.

Mas você me dirá que são muitos obstáculos para versos que são

bem pouco dignos deles. Bem o sei. Entretanto, divertiu-me indicar-lhe

como julgo e concebo um poema. Abstraia destas linhas qualquer alusão a

mim, qualquer coisa que tenha ligação com meus versos, e leia estas quatro

páginas, friamente, como o esboço, muito mal escrito e informe, de um

artigo de arte.

Tuus,

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Stéphane Mallarmé.

Não me reli. E lamento-o por você ter que me ler, povero!

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Besançon, Vendredi

[Mardi] 14 Mai 1867.

Rue de Poithune, 36.

Cher et cher,

Je profite, pour te répondre, de l’émotion charmante, causée en moi

par ta lettre[.]

Tu as raison, que se dire? Autant, si l’on était l’un près de l’autre, on

se laisserait aller, la main dans la main, à d’interminables causeries, dans

une grande allée que terminerait un jet d’eau, autant l’effroi d’une feuille de

papier blanc, qui semble demander les vers si longtemps rêvés, et qui

n’aurait que quelques lignes d’une amitié qui a fini tellement par faire partie

de vous-même qu’on l’a oubliée, comme le reste de soi, vous écarte presque

d’un sacrilège!

Je viens de passer une année effrayante: ma Pensée s’est pensée, et

est arrivée à une Conception Pure. Tout ce que, par contre-coup, mon être a

souffert, pendant cette longue agonie, est inénarrable, mais, heureusement,

je suis parfaitement mort, et la région la plus impure où mon Esprit puisse

s’aventurer est l’Éternité, mon Esprit, ce solitaire habituel de sa propre

Pureté, que n’obscurcit plus même le reflet du Temps.

Malheureusement, j’en suis arrivé là par une horrible sensibilité, et il

est temps que je l’enveloppe d’une indifférence extérieure, qui remplacera

pour moi la force perdue. J’en suis, après une synthèse suprême, à cette

lente acquisition de la force – incapable tu le vois de me distraire. Mais

combien plus je l’étais, il y a plusieurs mois, d’abord dans ma lutte terrible

avec ce vieux et méchant plumage, terrasé, heureusement, Dieu. Mais

comme cette lutte s’était passée sur son aile osseuse, qui, par une agonie

plus vigoureuse que je ne l’eusse soupçonné chez lui, m’avait emporté dans

des Ténèbres, je tombai, victorieux, éperdument et infiniment – jusqu’à ce

qu’enfin je me sois revu un jour devant ma glace de Venise, tel que je

m’étais oublié plusieurs mois auparavant.

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J’avoue, du reste, mais à toi seul, que j’ai encore besoin, tant ont été

grandes les avaries [sic] de mon triomphe, de me regarder dans cette glace

pour penser, et que si elle n’était pas devant la table où je t’écris cette lettre,

je redeviendrais le Néant. C’est t’apprendre que je suis maintenant

impersonnel, et non plus Stéphane que tu as connu, - mais une aptitude qu’a

l’Univers Spirituel à se voir et à se développer, à travers ce qui fut moi.

Fragile comme est mon apparition terrestre, je ne puis subir que les

développements absolument nécessaires pour que l’Univers retrouve, en ce

moi, son identité. Ainsi je viens, à l’heure de la Synthèse, de délimiter

l’oeuvre qui sera l’image de ce développement. Trois poèmes en vers, dont

Hérodiade est l’Ouverture, mais d’une pureté que l’homme n’a pas atteinte

– et n’atteindra peut-être jamais, car il se pourrait que je ne fusse le jouet

que d’une illusion, et que la machine humaine ne soit pas assez parfaite pour

arriver à de tels résultats. Et quatre poèmes en prose, sur la conception

spirituelle du Néant.

Il me faut dix ans: les aurai-je? Je souffre toujours beaucoup de la

poitrine, non qu’elle soit attaquée, mais elle est d’une horrible délicatesse,

qu’entretien le climat, noir, humide et glacial, de Besançon. Je veux quitter

cette ville pour le Midi, les Pyrénées peut-être, aux vacances, et aller

m’ensevelir, jusqu’à mon Oeuvre fait, dans un Tarbes quelconque, si j’y

trouve de la place. Cela est nécessaire, car je mourrais d’un second hiver à

Bensançon. Malheureusement, je n’aurai pas l’argent d’aller à Paris, vivant

très-misérablement, ici, où tout est fort dispendieux, même les côtelettes. Il

faudrait donc que tu vinsses me voir, ou nous risquons fort de ne jamais

nous réunir. Lefébure va passer un mois près de nous, que ne fais-tu comme

lui? Tes vacances commencent de bonne heure, je crois. Viens donc.

Pour finir avec ce qui me concerne, je te dirai que Marie et

Geneviève grandissent, et sont étonnamment diables, ce qui m’est moins

douloureux qu’autrefois, mon système nerveux s’étant pour ainsi dire

retourné, et une absurdité me faisant le mal que me faisaient les cris de ces

enfants, il y a un an. – Si tu savais comme on te remercie de l’Arithmétique

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de Mademoiselle Lili! Pardon, Henri, de ne t’avoir plus tôt transmis cette

gratitude.

- Maintenant, de toi. Tes titres et tes projets poetiques me ravissent.

J’ai fait une assez longue descente au Néant pour pouvoir parler avec

certitude. Il n’y a que la Beauté; - et elle n’a qu’une expression parfaite, la

Poesie. Tout le reste, est mensonge – excepté, pour ceux qui vivent du

corps, l’amour, et, cet amour de l’esprit, l’amitié.

J’espère que ta reine de Saba et mon Hérodiade seront deux amies. –

Puisque tu es assez heureux pour pouvoir, outre la Poésie, avoir l’amour,

aime: en toi, l’Être et l’Idée auront trouvé ce paradis, que la pauvre

humanité n’espère qu’en sa mort, par ignorance et par paresse, et, quand tu

songeras au Néant futur, ces deux bonheurs accomplis, tu ne seras pas triste,

et le trouveras même très-naturel. – Pour moi la Poésie me tient lieu de

l’amour, parce qu’elle est éprise d’elle-même et que sa volupté d’elle

retombe délicieusemen[t en] mon âme: mais j’avoue que la Science que j’ai

acquise, ou retrouvée au fond de l’homme que je fus, ne me suffirait pas, et

que ce ne serait pas sans un serrement de coeur réel que j’entrerais dans la

Disparition suprême, si je n’avais pas fini mon oeuvre, qui est l’Oeuvre, le

Grand-Oeuvre, comme disaient les alchimistes, nos ancêtres.

Donc, bien que le Poète ait sa femme dans sa Pensée, et son enfant

dans la Poésie, adore Ettie, que j’aime, moi, comme une rare soeur. N’est-

elle pas liée à toute mon enfance, comme toi, Henri, - car avant mes

premiers vers, qui remontent au temps où je t’ai connu, nous n’étions que

les foetus de nos esprits – foetus assez sabbatiques, te rappelles-tu? Adieu,

nous l’embrassons, Geneviève et moi, et Marie embrasse Ettie.

Ton,

Stéphane

Si tu rencontres mes amis, dis-leur, dans le cas [où] ils m’aimeraient

et où mon silence les peinerait, que je les récompenserai bien [un] jour de

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cet oubli volontaire, par une Extase-Nouvelle pour eux, comme encore pour

moi.

J’ai lu ces temps-ci le poème de Mistral, que je n’ai pas lu, plus tôt,

mais qui m’a semblé vraiment faible.

Le livre de Dierx est un beau développement de Leconte de Lisle.

S’en séparera-t-il comme moi de Baudelaire?

(MALLARMÉ, Stéphane. Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand

(éd). Paris: Gallimard,1995, pp. 341-346)

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Besançon, Sexta-feira

[Terça-feira] 14 de

Maio1867.

Rua de Poithune, 36.

Querido e querido,

Aproveito, para lhe responder, a encantadora emoção, em mim causada,

por sua carta [.]

Você tem razão, o que pode se dizer? Se estivéssemos próximos um do

outro, nos deixaríamos levar, de mãos dadas, por intermináveis conversas, em

uma grande alameda terminada por um chafariz; contudo, o pavor de uma folha

de papel em branco – que parece solicitar os versos há tanto tempo sonhados, e

que só teria algumas linhas de uma amizade que passou de tal forma a fazer parte

de você que fica esquecida, como o resto de si – nos afasta quase de um

sacrilégio!

Acabo de passar por um ano pavoroso: meu Pensamento pensou a si

mesmo, e chegou a uma Concepção Pura. Tudo o que, a contragolpe, meu ser

sofreu, durante essa longa agonia, é inenarrável, mas, felizmente, estou

perfeitamente morto, e a região mais impura onde meu Espírito pode se aventurar

é a Eternidade, meu Espírito, este habitual solitário de sua própria Pureza, que

nem mesmo o reflexo do Tempo obscurece mais.

Infelizmente, cheguei a esse ponto por uma horrível sensibilidade, e é

hora de cobri-la de uma indiferença exterior, que para mim tomará o lugar da

força perdida. Após uma síntese suprema, estou em meio a essa lenta aquisição

de força – incapaz como você vê, de me distrair. Porém, eu estava muito pior, há

alguns meses, inicialmente em minha terrível luta com Deus, esta velha e

perversa plumagem, felizmente abatida. Mas como essa luta se passara sobre sua

asa ossuda, que, por uma agonia mais vigorosa do que eu teria suspeitado, me

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havia levado nessas Trevas, eu caí, vitorioso, perdida e infinitamente – até que

enfim, um dia, me revi diante de meu espelho de Veneza, tal como me esquecera,

vários meses antes.

Confesso, de resto, mas somente a você, que tão grandes foram os danos

de meu triunfo, que ainda preciso me olhar nesse espelho para pensar, e se esse

espelho não estivesse diante da mesa onde escrevo esta carta, eu retornaria ao

Nada. Isso é para lhe informar que agora sou impessoal, e não mais o Stéphane

que você conheceu, - mas uma aptidão do Universo Espiritual a se ver e a se

desenvolver, através do que foi eu.

Frágil como é minha aparição terrestre, só posso submeter-me aos

desenvolvimentos absolutamente necessários para que o universo reencontre,

nesse eu, sua identidade. Assim, no momento da Síntese, acabo de delimitar a

obra que será a imagem desse desenvolvimento. Três poemas em verso, dos quais

Hérodiade é a Abertura, mas de uma pureza que o homem não alcançou – e talvez

nunca alcance, pois é possível que eu seja o joguete apenas de uma ilusão, e que a

máquina humana não seja suficientemente perfeita para chegar a tais resultados.

E quatro poemas em prosa, sobre a concepção espiritual do Nada.

Para isso, preciso de dez anos: será que os terei? Ainda sofro muito do

peito, não que ele esteja atacado, mas é de uma terrível delicadeza, que o clima de

Besançon, fechado, úmido e glacial, sustenta. Quero deixar essa cidade e ir para a

região de Midi, talvez, nas férias, para os Pirineus, e me enterrar, até minha Obra

estar feita, em uma Tarbes qualquer, se encontrar lugar. Isso é necessário, pois eu

morreria de um segundo inverno em Besançon. Infelizmente, não terei dinheiro

para ir à Paris, já que vivo aqui em grande miséria, e tudo é muito dispendioso,

até mesmo as costeletas. Seria, então, necessário que você viesse me ver, ou

corremos o risco de jamais nos revermos. Lefébure passará um mês perto de nós,

por que você não faz como ele? Creio que suas férias começam cedo. Pois então,

venha!

Para acabar com o que me diz respeito, direi-lhe que Marie e Geneviève

crescem, e estão maravilhosamente endiabradas, o que para mim é menos

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doloroso que antes, uma vez que meu sistema nervoso, por assim dizer, virou do

avesso, e um absurdo me faz o mesmo mal que há um ano me faziam os gritos

dessas crianças. – Se você soubesse como lhe agradecemos pela Aritmética da

Senhorita Lili! Perdão, Henri, por não lhe ter antes transmitido essa gratidão.

- Agora, sobre você. Seus títulos e seus projetos poéticos me encantam.

Fiz uma longa descida ao Nada para poder falar com certeza. Só existe a Beleza;

- e ela só tem uma expressão perfeita, a Poesia. Todo o resto é mentira – exceto,

para aqueles que vivem do corpo, o amor, e, este amor do espírito, a amizade.

Espero que sua rainha de Sabá e minha Hérodiade sejam amigas. – Como

você é feliz o bastante de poder ter, além da Poesia, o amor, ame: em você, o Ser

e a Ideia terão encontrado esse paraíso, que a pobre humanidade só espera na

morte, por ignorância e por preguiça, e, quando pensar no Nada futuro, com essas

duas felicidades realizadas, você não ficará triste, e achará mesmo muito natural.

– Para mim, a Poesia ocupa o lugar do amor, pois ela está enamorada de si

mesma e sua volúpia de si recai deliciosamente [em] minha alma: mas confesso

que a Ciência que adquiri, ou reencontrei no fundo do homem que fui, não me

satisfaria, e que não seria sem um aperto no coração real que eu penetraria no

Desaparecimento supremo, se não tivesse terminado minha obra, que é a Obra, a

Grande-Obra, como diziam os alquimistas, nossos ancestrais.

Portanto, ainda que o Poeta tenha sua mulher em seu Pensamento, e seu

filho na Poesia, adore Ettie, que eu amo como uma rara irmã. Ela não está ligada

a toda minha infância, como você Henri, - pois antes de meus primeiros versos,

que remontam ao tempo em que o conheci, éramos somente os embriões de

nossos espíritos – embriões bastante sabáticos, você se lembra? Adeus,

Geneviève e eu lhe mandamos um beijo, e Marie manda um beijo para Ettie.

Seu

Stéphane Mallarmé.

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Se você reencontrar meus amigos, diga-lhes, no caso de eles me amarem e

de meu silêncio fazê-los sofrer, que eu os recompensarei [um] dia por esse

esquecimento voluntário, com uma Êxtase-Nova para eles, como também para

mim.

Li, ainda há pouco, o poema de Mistral (“Calendau”), que eu não tinha

lido antes, mas que me pareceu verdadeiramente fraco.

O livro de Léon Dierx é uma bela extensão de Leconte de Lisle. Será que

eles se afastarão, como eu de Baudelaire?

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Sonnet allégorique de lui-même

La Nuit approbatrice allume les

onyx

De ses ongles au pur Crime,

lampadophore,

Du Soir aboli par le vespéral

Phoenix

De qui la cendre n’a de cinéraire

amphore

Sur des consoles, en le noir Salon:

nul ptyx,

Insolite vaisseau d’inanité sonore,

Car le Maître est allé puiser de

l’eau du Styx

Avec tous ses objets don’t le Rêve

s’honore.

Et selon la croisée au Nord

vacante, un or

Néfaste incite pour son beau cadre

une rixe

Faite d’un dieu que croit emporter

une nixe

En l’obscurcissement de la glace,

décor

De l’absence, sinon que sur la

glace encore

De scintillations le septuor se fixe.

(Versão de 1868)

Sonnet en Yx

Ses purs ongles très haut dédiant

leur onyx,

L’Angoisse ce minuit, soutient,

lampadophore,

Maint rêve vespéral brûlé par le

Phénix

Que ne recueille pas de cinéraire

amphore

Sur les crédences, au salon vide:

nul ptyx,

Aboli bibelot d’inanité sonore,

(Car le Maître est allé puiser des

pleurs au Styx

Avec ce seul objet dont le Néant

s’honore.)

Mais proche la croisée au nord

vacante, un or

Agonise selon peut-être le décor

Des licornes ruant du feu contre

une nixe,

Elle, défunte nue en le miroir,

encor

Que, dans l’oubli fermé par le

cadre, se fixe

De scintillations sitôt le septuor.

(Versão de 1887)

(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et

autres textes. LEUWERS, Daniel (éd).

Paris: Librairie Générale Française,

1998, pp. 74/211)

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L’Azur

De l'éternel azur la sereine ironie

Accable, belle indolemment comme

les fleurs,

Le poète impuissant qui maudit son

génie

À travers un désert stérile de

Douleurs.

Fuyant, les yeux fermés, je le sens

qui regarde

Avec l'intensité d'un remords

atterrant,

Mon âme vide. Où fuir? Et quelle

nuit hagarde

Jeter, lambeaux, jeter sur ce mépris

navrant?

Brouillards, montez! versez vos

cendres monotones

Avec de longs haillons de brume

dans les cieux

Que noiera le marais livide des

automnes

Et bâtissez un grand plafond

silencieux!

Et toi, sors des étangs léthéens et

ramasse

En t'en venant la vase et les pâles

roseaux,

Cher Ennui, pour boucher d'une main

jamais lasse

Les grands trous bleus que font

méchamment les oiseaux.

Encor! que sans répit les tristes

cheminées

Fument, et que de suie une errante

prison

Éteigne dans l'horreur de ses noires

traînées

Le soleil se mourant jaunâtre à

l'horizon!

- Le Ciel est mort. - Vers toi,

j'accours! donne, ô matière,

L'oubli de l'Idéal cruel et du Péché

À ce martyr qui vient partager la

litière

Où le bétail heureux des hommes est

couché,

Car j'y veux, puisque enfin ma

cervelle, vidée

Comme le pot de fard gisant au pied

d'un mur,

N'a plus l'art d'attifer la sanglotante

idée,

Lugubrement bâiller vers un trépas

obscur...

En vain! L'Azur triomphe, et je

l'entends qui chante

Dans les cloches. Mon âme, il se fait

voix pour plus

Nous faire peur avec sa victoire

méchante,

Et du métal vivant sort en bleus

angélus!

Il roule par la brume, ancien et

traverse

Ta native agonie ainsi qu'un glaive

sûr;

Où fuir dans la révolte inutile et

perverse?

Je suis hanté. L'Azur! L'Azur!

L'Azur! I'Azur!

(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et

autres textes. LEUWERS, Daniel (éd).

Paris: Librairie Générale Française,

1998, pp 137-139)

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Renouveau

Le printemps maladif a chassé tristement

L'hiver, saison de l'art serein, l'hiver lucide,

Et, dans mon être à qui le sang morne préside

L'impuissance s'étire en un long bâillement.

Des crépuscules blancs tiédissent sous mon crâne

Qu'un cercle de fer serre ainsi qu'un vieux tombeau,

Et, triste, j'erre après un rêve vague et beau,

Par les champs où la sève immense se pavane

Puis je tombe énervé de parfums d'arbres, las,

Et creusant de ma face une fosse à mon rêve,

Mordant la terre chaude où poussent les lilas,

J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève...

- Cependant l'Azur rit sur la haie et l'éveil

De tant d'oiseaux en fleur gazouillant au soleil.

(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et autres textes. LEUWERS, Daniel (éd). Paris: Librairie

Générale Française, 1998, p. 127)

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