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“DO AZUL AO BRANCO”: MALLARMÉ E AS
CONSTELAÇÕES DA CRISE
por
Liana Carreira Martins
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras
Neolatinas.
(Estudos Literários – Literaturas de
Língua Francesa).
Orientador: Prof. Doutor Marcelo
Jacques de Moraes
Rio de Janeiro
Agosto de 2011
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
“Do Azul ao Branco”: Mallarmé a as constelações da crise Liana Carreira Martins
Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como quesito para a obtenção do título de Mestre em
Letras Neolatinas (Estudos Literários – Literaturas de Língua
Francesa).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes
_________________________________________________
Profa. Doutora Paula Glenadel Leal – UFF
_________________________________________________
Profa. Doutora Izabela Guimarães Guerra Leal – UFPA
_________________________________________________
Prof. Doutor Edson Rosa da Silva – LEN – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor João Camillo Penna – LEL - UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2011
Para Marcelo Jacques de Moraes. Minhas palavras se perderiam
diante de tanta admiração e gratidão. Apenas tento esboçar um muito
obrigado por tudo. Por acreditar, e por me fazer acreditar, que isso
daria certo.
Agradecimentos
À Marcia, Gilberto e Naor pelo bem mais precioso da vida: a fé e a
perseverança de que um dia tudo vai dar certo.
À Luisa Ruas pela presença, mesmo que ausente.
A Caio Meira pelas primeiras observações, pela confiança e incentivo dès
2005/2.
A Leonardo Gandolfi pelas primeiras viagens Rio-Portugal-França-Rio. E
pela amizade que vale por uma vida.
A Rafael Viegas por fazer da Mediateca da Maison de France um lugar além
dos livros e fichas catalográficas. E, claro, pelas quintas de tempero carioca.
À Estela, Olívia, Paula, Irene, João e Élvio pela presença irrestrita e
constante. Mesmo por entre corredores mofados, cadeiras despencando,
salas com casas de marimbondo, infiltrações e “485” tínhamos a certeza – e
continuamos tendo – de que tudo é possível.
À Paula Glenadel e Izabela Leal pela generosidade, consideração e
paciência de lerem essas folhas até o fim.
À CAPES pelo auxílio financeiro durante esses dois anos, o que me
permitiu viver como uma estudante latino americana.
Resumo
O presente trabalho busca revisitar temas emblemáticos da obra de
Mallarmé, contextualizando-os criticamente no discurso da Modernidade.
Tendo por método a análise de alguns de seus poemas e de algumas cartas,
essa imersão crítica visa a questionar certos paradigmas estabelecidos pela
recepção dessa obra no contexto histórico de final do século XIX. Nesse
intuito, procura-se mostrar como a constituição do pensamento poético de
Mallarmé é sempre permeada por uma crise, que explicita, ao menos, um
momento fundamental em sua obra, simbolizada na passagem metafórica do
“Azul ao Branco”. Ou seja, a transformação de um estado angustiante de
impotência em criação de uma forma possível de encenação, ou ainda, de
ajuste, que garante uma dramatização da poesia na história.
Palavras chaves: Poesia francesa, Mallarmé, Modernidade, crise.
Resumé
Cette étude se propose de revisiter des thèmes emblématiques de
l'œuvre de Mallarmé, en les contextualisant dans le discours critique de la
modernité. Ayant pour méthode l'analyse de certains de ses poèmes et de
quelques lettres, cette immersion critique vise à interroger certains
paradigmes établis par la réception de ce travail dans le contexte historique
de la fin du XIXe siècle. En ce sens, on cherche à montrer comment la
constitution de la pensée poétique de Mallarmé est toujours imprégnée par
une crise, qui explicite au moins un moment clé de son travail, le passage de
l’"Azur au Blanc." Autrement dit, celui d'un état affligeant d'impuissance
qui devient une possibilité de création d’une forme possible de mise-en-
scène, ou même, d’un ajustement qui assure une dramatisation de la poésie
dans l'histoire.
Mots-clés: Poésie française, Mallarmé, Modernité, la crise.
Abstract
The purpose of this study is to revisit emblematic themes of the work
of Mallarmé, critically contextualizing them into Modernism. It consists in
the analysis of some of his poems and letters, this critical immersion, aims
to question certain paradigms established by the reception of this work in
the historical context by the end of the 19th century. Thus, it seeks to show
how the constitution of the poetic thought of Mallarmé is always permeated
by a crisis, which explicit, at least, one fundamental moment in his work,
the transition of “Blue to White”. In other words, the rupture of a
melancholic state of powerlessness to the creation a possible way of acting,
or even, of adjustment, that guarantees a dramatization of poetry in history.
Keywords: French poetry, Mallarmé, Modernism, crisis.
Prólogo
Nous sommes allés dans la campagne. Le poète “artificiel” cueillait
les fleurs les plus naives. Bleuets et coquelicots chargeaient nos bras. L’air
était feu; la splendeur absolue; le silence plein de vertiges et d’échanges; la
mort impossible ou indifférente; tout formidablement beau, brûlant et
dormant; et les images du sol tremblaient.
Au soleil, dans l’immense forme du ciel pur, je rêvais d’une enceinte
incandescente où rien de distinct ne subsiste, où rien ne dure, mais où rien
ne cesse; comme si la destruction elle-même se détruisît à peine accomplie.
Je perdais le sentiment de la différence de l’être et du non-être. La musique
parfois nous impose cette impression, qui est au-delà de toutes les autres.
La poésie, pensais-je, n’est-elle point aussi le jeu suprême de la
transmutation des idées?
Mallarmé me montra la plaine que le précoce été commençait de
dorer: “Voyez, dit-il, c’est le premier coup de cymbale de l’automme sur la
terre.”
Quand vint l’automme, il n’était plus.
(VALÉRY, Paul. “Dernière visite à Mallarmé” in Varieté I et II. Paris:
Gallimard, 1998, p. 275.)
Introdução ao desmallarmento
13
Primeira Constelação
A crise e o verso
19
Segunda Constelação: O Azul
“L’Azur! L’Azur! L’Azur! L’Azur!”
38
Terceira Constelação: O Branco
“Nada, essa espuma, virgem verso”
60
Um relance de dados (ou a conclusão) 81
Anexos 91
Bibliografia
109
Anexos
Lettre à Henri Cazalis [7 janvier 1864]
92
Carta a Henri Cazalis [7 de janeiro de 1864]
95
Lettre à Henri Cazalis [14 mai 1867]
98
Carta a Henri Cazalis [14 de maio de 1867]
102
Sonnet en Yx [duas versões] 106
L’Azur 107
Renouveau
108
Nota:
Todas as traduções presentes nesse trabalho, tanto das cartas de Mallarmé quanto das
citações de todos os autores, cujo texto original encontra-se em francês, foram feitas por
mim, salvo aquelas em que explicito o tradutor.
INTRODUÇÃO
13
Estatuto do desmallarmento
minha senhora, tem um mallarmé em casa?
você sabe quantas pessoas morrem por ano
em acidentes com o mallarmé?
estamos organizando uma consulta popular
para banir de vez o mallarmé dos nossos lares
as seleções do reader’s digest fornecerão
contêineres onde embarcaremos os exemplares,
no porto de santos, de volta para a frança.
seja patriota, entregue seu mallarmé. olê1
No poema de Angélica Freitas, a associação lúdica entre a imagem
construída de Mallarmé e o contexto do desarmamento não se faz por acaso.
O poema ilustra uma “destituição” de Mallarmé, que é explicada nas
seguintes linhas:
O estatuto do desmallarmento vem questionar certo uso do poeta,
aquele associado ao porte ilegal de seus poemas, textos em prosa, e, até
mesmo, cartas descontextualizadas da crise instaurada na sociedade do
século XIX. Acidentes circunstanciais culminaram no estopim da crise que
se tornou iminente. Todos os envolvidos culpam o verso, pois ele, outrora
escravo do Alexandrino, mesmo diante da inquietude e do caos, proclama
sua libertação. Supõe-se que essa libertação esteja ligada à morte de Victor
Hugo. Apesar de tudo isso, Mallarmé mantém-se como seu fiel e
incontestável defensor. Teria ele alguma culpa nisso? Ou através dele quem
fala é quem eles chamam de Linguagem? A confissão do verso surge
tardiamente e se intitula “Crise de vers”. Mas desconfia-se que essa crise 1 FREITAS, Angélica. Rilke Shake. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 53.
14
já tenha se anunciado antes, em uma rápida aparição discreta já em 1656.
O estatuto nasce então como uma tentativa de entendimento dessa crise,
que não diz respeito somente ao verso. Há estudos que comprovam que ela
se espalhou por diversas esferas sociais. Mas esses estudos não são
exatamente certeiros. Eles se autointitulam ficção. Por isso,
acompanharemos nas próximas páginas a análise das evidências
encontradas na correspondência de Stéphane.
Juntam-se a Mallarmé, os suspeitos Henri Cazalis, Eugéne Léfèbure,
Théodore Aubanel, Catule Méndes. Até mesmo nomes mais conhecidos,
como Villiers de l’Isle-Adam e Paul Valéry não ficam imunes. Trabalha-se
com a possibilidade de existência de uma conspiração que se reúne toda
terça-feira em uma casa na rue de Rome. Lá eles discutem em código, falam
em outra língua, que eles chamam de poética, e que ninguém entende.
Mallarmé é o líder do grupo. Tudo o que ele fala é difícil de entender, em
momento algum faz sentido. Ele diz que o sentido está implícito nas
próprias palavras, e quem não o vê é porque não está realmente interessado
em ver. Acredita-se que eles inventaram essa língua apenas para proteger o
verso de ataques caluniosos.
Essa brincadeira narrativa encena o objetivo do presente trabalho.
Esse “desmallarmento” se traduz por uma revisitação de parte da sua obra,
para inseri-la no discurso crítico da Modernidade. E essa crítica não se
limita ao poético, pois não está afastada do contexto histórico e social de um
“estado de crise” geral (crise da linguagem, crise dos costumes, crise da
razão, entre outras) que ganha certa notoriedade na segunda metade do
século XIX. Essa contextualização nos permite também procurar entender a
dificuldade de recepção que a poesia de Mallarmé encontra nesse século e
que se estende ao longo do século XX. Essa dificuldade vai gerar definições
duvidosas atribuídas a ele, desde poeta ícone do Simbolismo, até “caricatura
ou caso limite da nova escola [parnasiana]”2. Sem dúvida, a figura do poeta
hermético e parnasiano destoa completamente de qualquer discurso crítico,
2 MARCHAL, Bertrand (org.). “Préface” in Mallarmé. Mémoire de la critique. Paris:
Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1998, p. 7.
15
e por isso ela também merece ser questionada. Para tal tarefa, o método
utilizado encontra-se na análise de certas cartas de Mallarmé, presentes na
sua vasta correspondência, algumas delas reunidas sob o título de
Correspondance. Lettres sur la póesie.
O foco do estudo recai principalmente nas cartas em que fica
explícita uma “passagem” ao poético, ou seja, quando elas deixam de ser
apenas registros autobiográficos para se tornarem também esboços críticos.
Essa crítica abrange o próprio processo de criação literária, visando à
aquisição de um método. Isso é comprovado, especificamente, em duas
cartas endereçadas a Henri Cazalis - não por acaso - um de seus maiores
“confidentes”: uma sobre a concepção de um poema, intitulado “L’Azur”; e
outra que relata o momento de aparição de uma Obra descrita por Mallarmé
como a “explicação órfica da terra”. Essas duas cartas tornam-se
emblemáticas por definirem uma mudança, em que se opera uma ruptura,
um “antes e depois” no pensamento de Mallarmé em relação à criação de
sua poesia. Elas viriam então coroar dois momentos pontuais constituintes
da estética mallarmaica.
O primeiro momento é percebido na carta de 1864, em que Mallarmé
explica o método por ele utilizado na criação do poema “L’Azur”3. A
Impotência figura aqui como o principal empecilho na obtenção do
resultado almejado no poema. E ela aparece materializada pelo Azul: “O
Azul tortura o impotente em geral”4, confessa Mallarmé. Além disso, esse
Azul passa a representar um ideal de totalidade impossível de ser traduzido
na escrita. E essa impossibilidade, que torna o poeta um impotente, faz com
que ele só possa se lamentar e cantar sua desgraça. Sendo assim, o poema
condensaria toda a angústia do poeta, simbolizando seu estado melancólico
diante daquilo que ele não pode compor.
No segundo momento, diante dessa consciência da impossibilidade
de acesso a uma escrita ideal, que expressasse uma totalidade “perfeita”
3 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].
4 Cf. Idem, ibidem.
16
(como o Azul), resta ao poeta jogar com a possibilidade de criação poética.
Essa aposta se traduz na carta de 18675, após a visão de uma Obra perfeita.
Depois dessa “revelação”, Mallarmé encena a morte de seu pensamento
anterior (simbolizado na primeira carta), para que dessa eliminação possa
imergir, posteriormente, uma “poética muito nova”, cujo lema seria pintar
não a coisa em si, mas o efeito que ela produz ao mostrar inteiramente em
sua “nudez ideal”6. Esse efeito nasceria então da ausência do objeto, da
“coisa”, que no momento de seu apagamento, nos deixaria seu rastro. Esse
rastro seria contornado pelo Branco: vazio passível de preenchimento pelo
surgimento de uma ideia que assumiria o lugar do objeto perdido. Portanto,
o Branco representaria simbolicamente, nessa “poética de efeitos”, um
espaço possível onde poderia emergir qualquer ideia obtida mediante uma
aposta no pensamento.
Em suma, essa passagem do “Azul ao Branco” marca uma passagem
de um estado angustiante de impotência à criação de uma forma possível de
dramatização, ou ainda, de ajuste, a partir do qual, segundo Marcos Siscar,
“a poesia pode pensar sua relação com a crise não apenas como contexto,
mas como discurso (como projeto e como retórica) da época moderna”7.
Essa crise enquanto contexto, vai sempre permear o processo criativo de
Mallarmé, seja sob a forma de uma depressão, ou pelo medo do “abismo da
morte”; e enquanto discurso se materializa em dois textos cruciais: “Crise
de vers” e “Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard”. Nesses textos,
apesar de suas diferenças estruturais, vemos a condensação, pela própria
linguagem, do discurso de uma crise que se encontra internamente e
externamente a ela. Sendo assim, esse discurso dá ao verso, à linguagem, o
direito de reivindicar uma voz própria, ou antes, uma participação crítica,
visando sua “regulamentação” na Modernidade.
5 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [14 de maio de 1867].
6 Cf. MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in
Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,
pp. 380-381. 7 Idem, ibidem, p. 112.
17
Como o poema de Angélica Freitas mostra, a discussão sobre essa
“regulamentação” se estende para além da Modernidade. Mas digamos que,
se ela não começa com Mallarmé, é ele que passa a ser, de fato, seu
principal defensor. É o que o “estatuto” vem ironicamente constatar. Todo o
poder que o poeta atribui à linguagem merece ser reconhecido e repensado
de uma forma crítica, pois só assim podemos estabelecer um lugar a sua
poesia no nosso tempo. E isso significa dar à linguagem toda autonomia
para que ela seja destituída de seu papel “servil”, para que não possa mais
figurar como simples “moeda de troca”. Quando esse reconhecimento for
instituído, Mallarmé começaria então a ser repensado. Com esse intuito,
“estatuto do desmallarmento” entra em vigor a partir de agora.
PRIMEIRA CONSTELAÇÃO
19
“Nous avons tous, encore et toujours,
conscience de la Crise et nous sommes tous
persuadés qu’il faut <intervenir>”
Philippe Lacoue-Labarthe
A importância de Mallarmé na cena artística da época em que viveu
foi, sem dúvida, reconhecida já aos olhos dos seus contemporâneos. A prova
de que era visto como uma figura relevante é o fato de ele inspirar, ainda em
vida, dezenas de outros importantes artistas, como os escritores simbolistas
franceses e os compositores da escola impressionista. Em 1894, Mallarmé já
havia se tornado uma personalidade bastante presente no meio parisiense.
Conhecido por sua elegância e gentileza, pelo seu talento de “causeur
rafinné”, ele se punha no centro de um círculo social em que todos o
admiravam. Seus encontros, suas famosas “Terças-feiras na rue de Rome”,
eram sempre frequentados por seus ilustres amigos pintores, poetas,
músicos, como Manet, Degas, Vuillard, Chavannes e Debussy, entre outros.
Entretanto, o efeito produzido pela obra de Mallarmé na construção da
subjetividade que hoje chamamos moderna ainda não havia sido percebido
naquela época. Essa percepção foi se fortalecendo e sendo desenvolvida
com o passar dos anos. Sem dúvida, falar sobre Mallarmé envolve a análise
de alguns mitos criados ao longo dos anos pela proporção que sua obra
tomou no que podemos nomear como “discurso da Modernidade”; e esse
discurso não cessou de crescer.
Por exemplo, uma interpretação simbolista da obra de Mallarmé nos
levaria ao uso sistemático de adjetivos que até hoje permanecem ligados a
ele, como hermético, misterioso, obscuro. No entanto, há muitos
“Mallarmés” a serem considerados. Pode-se falar do jovem que em 1862
publica, anônimo, seu primeiro livro; ou do aluno do liceu de Sens,
profundo admirador e possível tradutor de Edgar Allan Poe1, cujo método
de trabalho inspira a feitura de seus poemas, mas que também os escreve
pensando em Hugo e Musset. Há também o Mallarmé spleenético,
1 Mallarmé tentava desde 1860 traduzir a obra de Poe.
20
profundamente marcado pela melancolica e pela poesia de Charles
Baudelaire, que em 1866 publica dez poemas no Parnasse Contemporain.
Assim como temos o professor de inglês, entediado com uma vida no Liceu;
ou ainda, o marido devoto, o pai marcado pela dor da morte prematura do
filho, o anfitrião dos “mardis à la Rue de Rome”, o poeta obcecado pelo
trabalho do verso.
Porém, em contraste com todos os mitos e possíveis definições que
lhe possam ser atribuídos, o que vemos em sua correspondência,
principalmente no período em que morou na province francesa (em
Tournon, em Besançon e em Avignon), é o esboço de um homem simples,
Stéphane2. Em suma, um pai de família, profundamente angustiado com sua
condição, e forçado a levar uma vida como professor de inglês “unicamente
porque a vida de homem das letras não assegurava a existência de [sua]
mulher e de [uma] adorável menininha”3. O ar provinciano das cidades onde
morou antes de se estabelecer em Paris o perturbava pela sua incapacidade
de produzir “boa conversa”, assim como a situação em que viviam os poetas
da época, e a própria forma como era tratada a poesia. Mallarmé punha em
questão o lugar da poesia em seu tempo, e principalmente, o lugar, ou
melhor, a falta de lugar do poeta na sociedade moderna. O que o leva a
2 Stéphane Mallarmé nasce, na verdade, Étienne Mallarmé no dia 18 de março de 1842 em
Paris. Filho de Numa Florent Joseph Mallarmé e de Elisabeth Felice Desmolins, perde a
mãe muito cedo (1847), o que o leva aos cuidados de seus avós. Dez anos após a morte da
mãe, perde a irmã mais nova Maria nascida em 1844. Na juventude, leva uma vida em
pensionatos, primeiro em Passy (1852) e depois em Sens (1856), onde conhece o professor
e, posteriormente, amigo Emmanuel des Essarts. Em 1862 conhece a governanta alemã
Maria Gerhard, que seria sua esposa durante toda a vida. Nesse mesmo ano, parte para
Londres para viver ao lado dela; seis meses depois seu pai morre. Em 1863 é nomeado
professor de inglês, função que exercerá em Tournon, depois em Avignon e, por fim, em
Besançon. Em 1864, começa a escrever seu poema Hérodiade, pouco antes de sua filha
Geneviève nascer. No ano seguinte, compõe L’Après-Midi d’un faune, na mesma época em
que conhece o poeta Leconte de Lisle. No mesmo ano em que volta a morar em Paris, 1871,
realizando um antigo desejo seu, nasce seu filho Anatole, que morrerá de forma trágica aos
oito anos de idade. A dor da perda do filho irá acompanhar Mallarmé no resto de sua vida,
até sua inesperada morte no dia 9 de setembro de 1898. 3 “Entré dans un lycée, grâce à quelques mots d’anglais appris à Londres, uniquement parce
que la vie d’homme de lettres n’assurait pas l’existence de ma femme et d’une charmante
petite enfant”. (MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Victor Pavie” [Fevereiro de 1866] in
Correspondance. Lettres sur la poésie, MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard,1995,
p. 283.)
21
afirmar: “O caso do poeta, nesta sociedade que não lhe permite viver, é o
caso do homem que se isola para esculpir seu próprio túmulo”4.
Mas seguindo os passos de Baudelaire e Poe, Mallarmé enxergava
no espaço poético – seu próprio “túmulo” – a possibilidade de criação que
lhe tiraria de um ostracismo existencial. No longo período em que viveu na
cidade de Tournon, tendo enfrentado uma crise existencial que culminou em
um período de depressão, Mallarmé agarrou-se ao verso como à
possibilidade de “cura” de sua existência cotidiana. É por isso que, nas
cartas endereçadas a seus amigos também poetas, notamos uma
preocupação do autor em dar forma e preponderância a uma busca em meio
ao processo artístico. As constantes referências em sua obra à Beleza e à
Perfeição podem ser traduzidas como parte de um projeto de busca da
“grande Obra”, a Obra perfeita, que daria sentido a sua vida. Entretanto,
ironicamente, esse projeto já nasce fadado ao fracasso, pois Mallarmé sabia
da impossibilidade dessa Obra enquanto forma finita, acabada: “Eu a sonho
tão perfeita que não sei se ela existirá um dia”5. Assim, o que se passa no
percurso dessa busca é desde sempre mais interessante do que seu próprio
resultado. A própria busca em si, que, segundo o escritor francês Maurice
Blanchot, constitui-se em uma experiência de risco, em uma arriscada
“busca obscura, atormentada”6.
Essa busca corroboraria o próprio processo de aquisição do que hoje
nomeamos “moderno” em poesia. Processo esse que não se completa, pois
está em constante renovação. Não é à toa que Henri Meschonnic afirma que
a “Modernidade é um combate”7, onde diferentes subjetividades sempre se
encontram em um estado nascente, indefinidamente nascente, de sua história
e de seu sentido. Sendo assim, ao admitirmos a Modernidade como um
4 “La vocation póetique est le cas d’un homme qui s’isole pour sculpter son propre
tombeau”. (MALLARMÉ, S. in ABASTADO, Claude. Expérience et théorie de la création
poétique chez Mallarmé. Paris: Lettres modernes, 1970, p.17. 5 “(...) Je la rêve si parfaite que je ne sais seulement si elle existera jamais”. (MALLARMÉ,
S. “Carta a Catulle Mendès” [24 de abril de 1866], op. cit., p. 295.) 6 Cf. BLANCHOT, Maurice. « O Desaparecimento da literatura » in O livro por vir. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. 7 Cf. MESCHONNIC, Henri. Modernité Modernité. Paris: Verdier, 1988, p. 9.
22
dispositivo que nos permite criar inúmeras possibilidades do sujeito, de sua
história e de seu sentido, não resta à poesia - que se quer moderna – nenhum
tema, nenhum sentido, nenhuma história previamente conhecidos. O que a
põe em contato com seu próprio “desconhecimento de si”. Pelas palavras do
escritor alemão Herman Hesse, a poesia não teria hoje nenhum outro valor
senão o “de exprimir sob forma de confissão, e com [a] maior sinceridade
possível, seu próprio desamparo e o desamparo de nosso tempo”8.
Essas palavras – mesmo tendo sido pronunciadas em 1925 –
poderiam muito bem ilustrar essa busca “obscura e atormentada” referida
por Blanchot. Ou ainda explicar o valor da poesia “moderna” na sociedade
moderna que seria “confessar o seu desamparo”, traduzir a sua própria
insustentabilidade, o seu próprio fracasso frente a sua época. Da mesma
forma, o artista também se encontra no mais completo desamparo, pois, de
acordo com Blanchot, ser artista é nunca saber que já existe uma arte, nem
que já existe um mundo, sua solidão é seu risco, o risco inerente da escrita9.
Por isso, é necessário para o artista moderno sempre arriscar-se, a fim de
buscar uma linguagem, um mundo. Escrever para tentar suprir uma falta –
da escrita e do mundo: esse é o seu risco constante, o risco da escrita. E essa
busca da forma estética capaz de exprimir a “falta inerente” a cada artista
esbarra, na Modernidade, em uma crise da representação, uma “crise da
linguagem”. Essa crise ganha forma e relevância no texto de Mallarmé
intitulado Crise de Vers, onde ele anuncia: “A literatura aqui sofre de
refinada crise, fundamental”10
. A partir daí, a linguagem encenaria e
cantaria sua própria crise.
Convém dizer que a historicidade, o “aqui” da afirmação de
Mallarmé, remete à França da segunda metade do século XIX, onde o
fracasso da Segunda República e das revoluções sociais (inclusive a maior
8 HESSE, Herman in BLANCHOT, M. Op. cit., pp. 246-247.
9 Cf. BLANCHOT, Maurice. “La solitude essentielle” in L’espace littéraire. Gallimard,
1988. 10
MALLARMÉ, Stéphane. “Crise de verso”. Tradução de Ana Alencar. Inimigo Rumor.
Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008, p.150.
23
delas, a Revolução de 1848) levou o país de volta ao Império11
. Durante o
reinado de Napoleão III, Paris viveu a estabilidade e o apogeu de seus “anos
burgueses”12
, o que a transformou na capital européia – senão mundial - por
excelência13
. É nesse cenário de falsa estabilidade e progresso que o artista –
ou a chamada geração de 1850 - toma consciência de sua alienação frente
aos valores dominantes da cultura burguesa, surge então uma escrita
visionária, consciente e crítica14
. Essa escrita se enuncia e se inscreve em
um contexto filosófico maior, segundo Leyla Perrone-Moisés, não só de
“crise da linguagem”, mas também de “crise do sujeito, crise da
representação, crise da razão, crise da metafísica, crise dos valores, crise do
humanismo, enfim crise de tudo aquilo em que se esteavam a instituição
literária e o exercício da crítica”15
.
Porém, no plano da linguagem das artes essa transformação já se
anunciava antes, mas de forma “contida”. Como notou Michel Foucault16
,
mesmo no Classicismo, em que se almejava um discurso claro, pleno e
objetivo (que fundamentava o pensamento clássico), nota-se “uma luz um
pouco confusa”: “Nem é de obscuridade que se deveria ainda falar, mas de
uma luz um pouco confusa, falsamente evidente e que oculta mais do que
manifesta”17
. A própria imagem que ilustra a capa do livro As palavras e as
coisas, de Foucault, é um exemplo dessa luz, e constitui um prelúdio dessa
“crise da representação”. No quadro “As meninas”18
, de Velásquez, a meia-
11
Com o golpe de Louis Napoleon Bonaparte (Napoleão III), instaura-se o Segundo
Império (1852 a 1870). 12
É, de fato, no Segundo Império que ocorre a consagração da alta burguesia industrial. 13
Foi no conturbado século XIX que a França passou por profundas transformações
políticas e sociais, dentre elas a reformulação da cidade de Paris. Pelas mãos do barão de
Haussmann, a cidade passou por uma modernização que, em parte, consistiu na demolição
das ruas estreitas, assim como dos pequenos comércios e moradias da capital para
enquadrá-la à arquitetura dos grandes bulevares. O fator político também influenciou a
mudança arquitetônica da cidade, pois com o alargamento das ruas procurava-se também o
cessar das barricadas - muito recorrentes na época e tão presentes na Revolução de 1848. 14
Cf. OEHLER, Dolf. Terrenos Vulcânicos. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p.25. 15
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Que fim levou a crítica literária?” in Folha de S. Paulo,
Caderno Mais!. São Paulo, 25 ago. 1996, p. 9. 16
Cf. FOUCAULT, Michel. « O Homem e seus duplos » in As palavras e as coisas. Uma
arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 17
Idem, ibidem, p. 325. 18
Esse quadro, cujo verdadeiro nome é “A família de Filipe IV”, foi pintado pelo pintor
espanhol Diego Velásquez em 1656.
24
luz que emana do fundo da tela ilumina o tema central da pintura (nesse
caso, o retrato da infanta Margarida de Espanha), mas a presença dos
espelhos no quarto onde a cena acontece nos revela diversos personagens
que agem sobre a tela, o que proporciona à cena um movimento contínuo.
Esse quadro se impõe até hoje como um enigma, pois explicita a tensão das
diversas influências externas e internas que um objeto sofre ao ser
representado. O aparecimento de diferentes perspectivas e presenças (no
quadro, são elas: a infanta, as “meninas”, o casal real, o próprio pintor, e o
homem que movimenta a cortina ao fundo) torna sua recepção confusa, o
que nos suscita constantemente a pergunta: o que, de fato, Velázquez pinta,
representa?
Esse questionamento vem ilustrar o grande “problema” da arte
enquanto forma representativa, mimética. No quadro, o que ganha
notoriedade em sentido amplo, mais do que os personagens representados, é
a dúvida de como representar, e o que é plausível de ser representado. A
insustentabilidade - ou a quebra - de um discurso único, totalizante, pleno,
que marcaria o limiar do Classicismo para a Modernidade, possibilita à
linguagem das artes ser considerada como uma alteridade, ou, de acordo
com Foucault, como “um ser próprio” dotado de uma “espessura
inquietante”. Torna-se então inevitável a consideração da subjetividade e da
historicidade no seu processo de produção. A Modernidade não vem
inaugurar essa nova concepção, ela apenas destitui-se da pretensão a um
discurso que fosse dotado de uma unidade de sentido. A partir daí, as
palavras não mais representariam as coisas, elas iriam ao encontro de sua
outra face, mais obscura, e se colidiriam no abismo deixado pela linguagem.
Essa dúvida em relação ao objeto e à forma por meio da qual ele é
representado – na pintura e na literatura - se estende ao questionamento da
própria representação em si, ou ainda, da própria possibilidade de se
representar algo ou alguém, e atinge diversas esferas da linguagem artística
e subjetiva. Na poesia, isso vai se traduzir - grosso modo- em inúmeras
tentativas de se pensar a subjetividade, não só expressa pelo
“desaparecimento elocutório do poeta” (“A obra pura implica no
25
desaparecimento elocutório do poeta, cedendo iniciativa às palavras”19
), mas
também subentendida na “crise” que atingirá o verso, dando ao poema - ao
verso, tout court - certa autonomia perante a linguagem representativa (“No
tratamento, interessantíssimo, dispensado à versificação, entre repouso e
interregno, jaz, menos que em nossas circunstâncias mentais virgens, a
crise”20
). Sendo assim, a crença no poder de criar palavras perfeitamente
idênticas às “coisas” é definitivamente abalada.
Essa “discórdia” entre representação e linguagem vai gerar –
segundo Octávio Paz – uma “dispersão da imagem do mundo”, que se
converte “no tema central, muitas vezes secreto, [da] poesia”21
. Ou seja,
quando a relação entre as palavras e as coisas se esfuma, e elas cessam de se
entrecruzar, a linguagem perde então sua capacidade de nomear. E nessa
“crise da representação”, a literatura conquista sua autonomia, “o poético, o
artístico e o belo convertem-se em valores próprios e sem referência a
outros valores”22
. Dessa cisão problemática e paradoxal entre linguagem,
realidade e pensamento nasceria o projeto estético da Modernidade. A partir
do momento em que a “grande rede das representações” se desfaz,
rompendo com a estrutura clássica, tradicional, que fundamentava um
pensamento totalizador, inaugura-se um novo “modelo” a ser seguido: um
novo tempo que sempre se renova, uma “escrita do presente”, “um presente
fixo e interminável e, não obstante, em contínuo movimento”23
. Um tempo
presente “mais pleno de subjetividade”, segundo Meschonnic, “em que se
faz, isto é, se desfaz e se refaz, incessantemente, o sentido”24
.
Porém, esse modelo feito de rupturas e carente de referências já
nasceria dúbio, sendo, ao mesmo tempo, crítica e criação. “Uma espécie de
19
MALLARMÉ, S. “Crise do verso”, op. cit., p. 158. 20
(grifo meu) idem, ibidem, p. 156. 21
PAZ, Otávio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, p. 11. 22
Idem, ibidem, p. 52. 23
PAZ, Otávio. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Perspectiva, 1996, p. 121. 24
MESCHONNIC, H. Op. cit., p. 69.
26
autodestruição criadora”25
, em meio à qual “escrever um poema é construir
uma realidade à parte e auto-suficiente”26
. Essa união entre criação e crítica
- ou melhor, a literatura enquanto teoria, e vice-versa27
- já figurava no
cenário literário anterior à Modernidade. Ela se consolida no rastro do
Romantismo alemão, tendo como principal mote a crítica do racionalismo
francês, da submissão ao método que levava a conclusões reducionistas.
Pois como relatam Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em seu livro
L’Absolu Littéraire, os românticos não pretendiam reduzir nada à “tabula
rasa”, como faziam os franceses (les esprits savants), e muito menos
falavam em ruptura ou “instauração do novo”, como defendiam os
modernos. Eles se apoiavam, quase exclusivamente, na afirmação da poesia
enquanto possibilidade crítica, o que hoje definimos como uma primeira
reivindicação do pensamento poético. Como sintetiza Marcos Siscar, em
Poesia e Crise:
Tal capacidade [crítica da poesia] está ligada à
possibilidade, atribuída ou recusada ao poema, mas antes
de mais nada reivindicada por ele, de constituir-se como
um discurso sobre a verdade, de constituir-se como uma
teoria, uma história, ou uma crítica de si mesmo. Existiria
um pensamento poético? Trata-se de uma questão que
fervilha dentro do campo literário, desde pelo menos o
Romantismo alemão, e que se aproxima muito
freqüentemente, [...], na sua versão mais radical, não
apenas da autonomia da poesia, mas da própria
possibilidade da poesia28
.
Essa reivindicação está próxima também do que Michel Collot
chama de engajamento da poesia moderna. Em La Poésie Moderne et la
Structure d’Horizon, ele salienta o caráter ativo e engajado da poesia em
buscar uma referência, um horizonte possível, em construir uma linguagem,
25
PAZ, O. Os Filhos do Barro, p. 19. 26
Idem, ibidem, p. 52. 27
“(...) le romantisme théorique d’Iéna se caractérise comme la question critique de la
littérature dans tout l’ampleur de la surdétermination historique et conceptuelle qui vient
d’être évoquée – ou peut-être même comme la formulation la plus proprement critique
(dans toutes les valeurs et limites du terme) de la crise de l’histoire moderne ”. LACOUE-
LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. L’Absolu Littéraire. Théorie de la Littérature
du Romantisme Allemand. Paris: Seuil, 1978, p. 14. 28
SISCAR, Marcos. “Poesia Cou Coupé” in Poesia e Crise. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010, p. 68.
27
um “discurso sobre a verdade”. Isso se torna explícito pela escolha do verbo
engager que nos transmite a idéia de ação, de movimento, ou, para falar
com Henri Meshonic, de combate: “Todo poema engajando um assunto, um
mundo e uma linguagem”29
. Ou seja, a poesia que surge como um
cruzamento desses três elementos, busca sua “verdade”, seu “horizonte” de
forma engajada, empenhada e comprometida na própria linguagem. Esse
aspecto engajado da poesia vai nos apontar para uma possível e visível
distinção interior da linguagem, questão bastante explorada por Mallarmé:
“Um desejo inegável de meu tempo é o de separar, como por atribuições
diferentes, o duplo estado da fala, bruto ou imediato, aqui, lá essencial”30
.
Se, por um lado, ela seria pragmática, servil, “comunicativa” - a “universal
reportagem”, segundo a formulação célebre de Crise do Verso -, por outro
lado, ela aparece como possibilidade de autenticidade, na medida em que as
palavras, longe da “servidão a um sentido” mais ou menos estável, podem
figurar como protagonistas de seu próprio discurso, encenando-se ora como
ausência, ora como expressão de sua mais completa irredutibilidade ao
sentido.
Dessa forma, a poesia produziria essa nova experiência, em que a
própria busca e reflexão sobre a sua possibilidade de existência seriam o
fundamento necessário ao seu processo de criação, constituindo a
característica sine qua non de seu discurso. Não é à toa que “o Foucault dos
anos 1960, [...] vê em Mallarmé o marco inicial da “literatura propriamente
dita”31
, reconhecendo nele o empenho de “encerrar todo discurso possível
na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a
tinta sobre o papel”32
. “Encerrar todo o discurso na frágil espessura da
palavra” significa abrir o verso a uma generalização, transformá-lo em um
lugar onde esse contexto de crise em sentido lato (crise da representação,
29
(grifo meu) “Tout poème engageant un sujet, un monde et un langage”. (COLLOT,
Michel. La Poésie Moderne et la Structure d’Horizon. Paris : Presses Universitaires de
France, 1989, p.7). 30
MALLARMÉ, S. “Crise de verso”, op. cit., p. 159. 31
SCHEIBE, Fernando. “Sobre Divagações” in Divagações. Stéphane Mallarmé. Tradução
e apresentação Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010, p. 9. 32
FOUCAULT, M. Op. cit., p. 419.
28
mas também, crise das instituições, crise política, crise moral, e etc.) vai
resumir-se na sua “frágil espessura”. Talvez isso explique a escolha do título
“Crise de vers” e não “Crise du vers”, a preferência do autor pela preposição
de e não pelo du, expressa um “estado de verso”, ou seja, como diz Siscar:
A crise de verso não designa [apenas] uma interrupção ou
um colapso histórico do verso; antes, uma irritação do
verso, dentro do verso, e a propósito dele. [...] É a situação
na qual ele se manifesta irritado, enervado, em estado
crítico33
.
Por isso, logo no início de “Crise de Verso”, Mallarmé afirma que
lhe apraz “seguir os clarões da tormenta”, antes de aludir à morte de Victor
Hugo como um acontecimento histórico:
Algum leitor francês, com os hábitos interrompidos pela
morte de Victor Hugo, não pode senão se desconcertar.
Hugo, em sua tarefa misteriosa, carregou toda a prosa,
filosofia, eloqüência, história, para o verso, e, como ele era
o verso em pessoa, quase acabou por confiscar, de quem
pensasse, discorresse ou narrasse, o direito de se
enunciar. Monumento neste deserto, com o silêncio longe;
em uma cripta, a divindade, e com ela, a majestática idéia
inconsciente de que a forma chamada verso é
simplesmente a própria literatura, de que há verso tão logo
acentuada a dicção, ritmo tão logo estilo34
.
A morte de Hugo, “o verso em pessoa” e que havia “confiscado” de
qualquer outro poeta “o direito de se enunciar”, abre a perspectiva para a
poesia dos “deliciosos quases”, ao invés dos “orgíacos excessos” expressos
pela altivez do alexandrino. Porém, isso não significa dizer que junto com a
morte de Hugo, opera-se a morte do verso. Muito pelo contrário, nesse
acontecimento decisivo para a poesia (a morte do maître), vemos ela se
libertar do mètre, da métrica. Essa libertação é relatada por Mallarmé: “O
verso, acredito, esperou com deferência que o gigante que o identificava à
sua mão tenaz e sempre mais firme de ferreiro, desertasse, para, então ele
33
SISCAR, M. Op. cit., pp. 107-108. 34
(grifo meu) MALLARMÉ, S. “Crise do Verso”, op. cit., p.151.
29
mesmo, romper-se”35
. Na verdade, o que Mallarmé apontava – assim como
o fez, anteriormente, Baudelaire - era a incompatibilidade de continuar a se
fazer poesia em dissonância com a realidade da vida “moderna” e que
carregasse toda a tradição solene e imponente da rima e da métrica. E por
isso, mesmo sabendo que a poesia de Victor Hugo também foi fundamental
ao embasamento da crise, sobretudo por sua tendência à prosa (expressa
pelo uso sistemático do enjambement), isso não o destituía da imagem
autoritária para seus contemporâneos.
A “refinada crise” ganha contornos na própria insustentabilidade do
verso frente às antigas regras formais de composição poética. Após sua
“libertação”, a tradição solene da rima e da métrica passaria a ser vista como
uma herança, que apareceria então como um modo de atualização do verso
em relação ao tempo presente, ou seja, como crítica. Uma crítica que não só
diz respeito à opressora necessidade de clareza imposta pelas regras
parnasianas e neoclássicas (expressa pelo alexandrino e também pelo
pensamento iluminista francês que pregava, acima de tudo, a lucidez da
razão contra as trevas da ignorância), mas também questiona os valores
burgueses de uma classe em notável ascensão. E, por causa desse desacordo
do verso com os valores tradicionais e burgueses, o espaço poético
funcionaria não apenas como resistência à tradição, mas antes e, sobretudo,
como possibilidade de discussão, de crítica a essa tradição, dando respaldo à
experimentação e à criação de novas formas poéticas. Por isso, essa crise
também passa a ser “fundamental”, pois na medida em que questiona a
tradição ancorada no alexandrino, “abre” o verso a novas formas de rima e
de métrica, e, até mesmo, à ausência delas, como o poema em prosa e o
verso livre. É o que nos relata Shoshana Felman:
A revolução poética consiste basicamente na introdução do
verso livre na poesia francesa, uma mudança de forma ou
um afrouxamento das regras poéticas que envolve uma
destituição ou desintegração do alexandrino clássico, o
verso oficial francês, com as tradicionais 12 sílabas e cujas
35
Idem, Ibidem, p. 151.
30
rimas e ritmos simétricos tinham se imposto durante
séculos como a única forma possível – e como a única
marca formal – da escrita poética francesa36
.
O verso livre surge para gerar um profundo abalo nas estruturas
hierárquicas da escrita. A quebra da estrutura linear e previsível da poesia
francesa (expressa pelo alexandrino) gerou uma ruptura, um choque que
eliminaria a divisão tradicional entre poesia e prosa, e que seria um prelúdio
para a experimentação visual proposta, por exemplo, pelo poema Um lance
de dados. Pois a partir desse momento, enquanto houvesse escrita, o verso
passaria a ser tudo (Le vers est tout37
), ou “simplesmente a própria literatura
(...) [pois] há verso tão logo acentuada a dicção, ritmo tão logo estilo”38
. E
nesse “interregno” entre tradição e ruptura, continuidade e corte, reiteração e
cesura, surgiria um novo primado do verso. Testemunha de uma crise
inadiável, ele viria para “remunerar o defeito das línguas”39
.
Essa idéia de verso – como já foi aqui frisado – não se limitaria à
frágil espessura da palavra disposta em sequência numa linha. Esse campo
semântico se abriria para o contexto social, cultural, e, até mesmo, para uma
crítica ao papel da linguagem frente à sociedade burguesa do século XIX.
Por isso se torna tão importante a distinção que Mallarmé faz do “duplo
estado da fala”. Da reivindicação da poesia como um discurso que rejeita a
“servidão” ao utilitário, ao imediatismo, ou ainda, que não cede ao apelo
comercial da sociedade de consumo; e também onde o questionamento e a
experimentação da forma poética – entre tradição e ruptura – seriam
possíveis. Utilizando a palavra interregno, Mallarmé atribuiria à poesia um
lugar inerente de crise, entre dois reinados, onde jaz – “entre repouso e
interregno” - uma potencialidade crítica, que longe de um esteticismo
radical - que apartaria o seu discurso do “sentimento de realidade” -
36
FELMAN, Shoshana. “Educação e Crise ou as vicissitudes do ensinar” in Catástrofe e
Representação, São Paulo: Escuta, 2000, p. 31. 37
MALLARMÉ, Stéphane. “Autobiographie” in Oeuvres complètes. Paris: Gallimard,
Pléiade, 1945, p. 664. 38
MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, p. 151. 39
Cf.“Seulement, sachons n’existerait pas le vers: lui, philosophiquement rémunère le
défaut des langues, complement supérieur.” (MALLARMÉ, S. “Crise de vers” in Oeuvres
complètes p. 364.)
31
“pretende elaborar um lugar para a poesia que se define - pelo menos, é o
caso de Mallarmé - como avaliação e como resposta ao contemporâneo”40
.
É por isso que situar a obra poética de Mallarmé nesse contexto de
crise significaria entendê-la não apenas como uma “mera passagem”, “uma
superação, na transposição de um além da crise: trata-se, em vez disso, de
“uma passagem para a crise, para uma situação em grande parte dilemática,
ou seja, uma situação propriamente de crise, na qual a poesia será entendida
como realização crítica"41
. E isso recai diretamente no tratamento – dado
por ele – ao verso, e, mais especificamente, ao poder sugestivo, encantatório
da literatura frente às outras linguagens: “Falar só não trai a realidade das
coisas quando comercial: na literatura, contenta-se em fazer-lhe alusão ou
em distrair-lhe uma qualidade sua que alguma idéia virá incorporar...”42
A
traição operada nesse processo de “fala poética” é o que vai abrir espaço
para a atualização da idéia da “coisa” representada. Um curioso exemplo
disso é a palavra ptyx, presente no “Soneto em Yx”43
, de Mallarmé. A
palavra, nascida de um estudo sobre a fala (“Extraio esse soneto, com o qual
eu havia uma vez sonhado neste verão, de um estudo projetado sobre a
Fala”44
), destituída de qualquer sentido preestabelecido, figura no soneto
como uma “qualidade” que alguma idéia, dependendo das circunstâncias,
virá incorporar. É o que ele escreve a Eugène Lefébure45
:
[...] faria um soneto e só tenho três rimas em ix, organize-
se para me enviar o sentido real da palavra ptyx, ou me
confirmar que ela não existe em nenhuma língua, o que eu
40
SISCAR, M. Op. cit., p. 74. 41
Idem, ibidem, pp. 74-75. 42
MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, op. cit., p. 157. 43
Cf. Anexos: “Sonnet en Yx”. 44
“J’extrais ce sonnet, auquel j’avais une fois songé cet été, d’une étude projetée sur la
Parole” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [18 de julho de 1868], op. cit., p. 392.) 45
Eugène Lefébure (1838-1908) foi um egiptólogo francês. Mesmo tendo estudado no
Liceu de Sens, assim como Mallarmé, os dois só se conheceram e tornaram-se amigos anos
mais tarde, em 1862. A correspondência entre os dois foi conservada pelo filho de
Lefébure.
32
preferiria por me proporcionar o encanto de criá-la pela
magia da rima46
.
O fato de Mallarmé criar o ptyx pelo poder da rima nos leva a crer
que a forma adquirida pela palavra se fundamenta na sua sonoridade, na
“musicalidade” de um estudo sobre a fala. Não há busca, ou “legitimação”
do ptyx em nenhum sentido exterior à sonoridade. A proposta de Mallarmé
seria até mesmo um esvaziamento de um possível sentido desconhecido da
palavra. Esse desejo de esvaziamento se faz presente também pela célebre
flor em “Crise de Verso”: não uma simples flor presente nos jardins e nos
buquês, antes uma ideia de flor, que “musicalmente se ergue, idéia em si
mesma e suave, a ausente de qualquer buquê.”
Sem dúvida, o “Soneto em Yx” figura entre os poemas de Mallarmé
taxados como os mais difíceis. As tentativas de esclarecimento do seu
sentido – o que inclui a própria palavra ptyx – sempre foram falhas. O ptyx
surge como um impasse, um “travamento” que não deixa a leitura do poema
fluir, e que ainda impede o desenvolvimento de sua significação como um
todo. Sendo assim, Mallarmé nos explica que o sentido da palavra só seria
garantido momentaneamente, por uma “miragem” que duraria o tempo de
leitura do poema: “Quero dizer que o sentido, se nele existe um, [...] é
evocado por uma miragem interna das próprias palavras”47
. Ou seja,
Mallarmé admite a “falta de sentido” do ptyx, e ainda “cria” ironicamente
uma situação para o entendimento do soneto, como vemos na carta a Henri
Cazalis:
- Por exemplo, uma janela noturna aberta, as duas
persianas amarradas; um quarto sem ninguém dentro,
apesar do ar estável que as persianas amarradas
apresentam, e em uma noite feita de ausência e
interrogação (esquecimento), sem móveis, a não ser o
esboço plausível de vagos consoles, uma moldura,
46
“[...] Je fisse un sonnet, et que je n’ai que trois rimes em ix, concertez-vous pour
m’envoyer le sens réel du mot ptyx, ou m’assurer qu’il n’existe dans aucune langue, ce que
je préférais de beaucoup afin de me donner le charme de le créer par la magie de la rime”.
(MALLARMÉ, S. “Carta a Eugène Lefébure” [3 de maio de 1868], op. cit., p. 386). 47
“[...] je veux dire que le sens, s’il en a um (...) est evoque par un mirage interne des mots
mêmes”. (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [18 de julho de 1868], op.cit., p. 392).
33
monstruosa e agonizante, de um espelho suspenso ao
fundo, com sua reflexão, estelar e incompreensível, da
grande Ursa (Ourse), que religa (relie) apenas ao céu essa
morada abandonada do mundo48
.
A referência “fechada” do ptyx, “alegórica de si mesma”49
nos
lembra o comôdo onde é pintado o quadro de Velásquez, e também o
ambiente descrito no início de “Crise de Verso”: “Diversas obras, sob o
vidrilho da cortina, virão alinhar sua própria cintilação: apraz-me como
neste céu maduro, no reflexo da vidraça, seguir os clarões da tormenta”50
. A
linguagem que se refletiria nela mesma, ou as palavras expostas em sua
própria cintilância e que “se acendem pelos reflexos recíprocos”,
enfatizariam a materialidade da linguagem, assim como o problema de sua
referência. Isso se torna mais evidente no segundo terceto do poema, quando
aparece a figura do espelho, o mesmo espelho visto no quadro do pintor
espanhol, que remete igualmente ao efeito de espelhamento percebido na
atmosfera descrita no início de “Crise de Verso”, e no ambiente proposto
por Mallarmé para o entendimento do soneto.
O efeito de “espelhamento” do soneto é acentuado em sua versão
final – que data de 1887 – se a compararmos com a primeira versão de
1868. A mudança do título (de “Sonnet allégorique de lui-même” para
“Sonnet en yx”), e, principalmente do segundo verso, da segunda estrofe (de
“insolite vaisseau d’inanité sonore”, ele se transforma em “Aboli bibelot
d’inanité sonore”), confirmariam esse efeito: abOLI bIbeLOt d’inanité
sonore. Isso nos leva a considerar que o sentido do poema e da palavra ptyx
– se é que existe um, como diz Mallarmé – só pode ser percebido na própria
48
“- Par exemple, une fenêtre nocturne ouverte, les deux volets attachés, et dans une
nuitfaite d’absence et d’interrogation, sans meubles, sinon l’ébauche plausible de vagues
consoles, un cadre, belliqueux et agonissant, de miroir appendu au fond, avec sa réflexion,
stellaire et incompréhensible, de la grande Ourse, qui relie au ciel Seul ce logis abandonée
du monde” (Idem, ibidem). 49
Inicialmente, o “Soneto em Yx” se chamava “Sonnet allégorique de lui-même”. 50
MALLARMÉ, S. “Crise de Verso”, op. cit., p. 151.
34
“miragem interna das palavras”, e é criado pela própria forma, pois “a
palavra precede a coisa, a forma cria o sentido”51
.
Mas pela análise da metáfora da grande Ursa que religa esse
ambiente (essa morada) ao céu, percebe-se um novo adendo no
entendimento do sentido e da referência desse soneto. Se considerarmos
essa morada abandonada do mundo como a própria poesia, acentua-se seu
caráter solitário e hermético, tendo como única fonte de referência ela
mesma. No entanto, através do espelho, mais especificamente, do reflexo
que vai trazer para o “quarto” a constelação da grande Ursa, ela pode
encontrar uma ligação com o céu. Sendo a Ursa maior uma das mais
facilmente identificáveis constelações, ela traria à poesia uma maior
visibilidade, ao mesmo tempo em que a afasta da solidão e do “hermetismo”
do quarto. Essa ligação entre a constelação e a poesia gera uma espécie de
comunidade entre elas, onde a poesia se reconhece no espaço delimitado do
céu, e a constelação ganha um “espaço” no cômodo fechado, afastado do
mundo. A poesia então, mesmo gozando de sua auto-referência, mantém um
vínculo que a religa ao mundo – ao céu, às constelações – e que traz esse
mundo a ela.
Essa questão da referência expõe o problema da impossibilidade de
uma recepção “quase” pragmática do soneto. Mas esse impasse, ao invés de
tornar a recepção desse poema – e seu próprio entendimento - ininteligível,
impossível, acentua a possibilidade que a poesia tem de apostar em um dos
muitos sentidos possíveis de lhe serem atribuídos. Essa possibilidade de um
“quase-sentido” é que vai caracterizar – grosso modo - a poesia dos
deliciosos “quases”.
Se a linguagem passa, no século XIX, de um discurso pleno e
totalizador para um discurso de crise, onde se opera uma ruptura,
fragmentação de sua totalidade, a singularidade de seu sentido e de sua
referência unívoca fica prejudicada. O que também implicaria na sua
51
“[...] le mot precede la chose, le forme crée le sens”. (MALLARMÉ, S. “Carta a Eugène
Lefébure” [3 de maio de 1868], op. cit., p. 386).
35
recepção “confusa” por parte do público. O questionamento da forma
poética, expresso não só na quebra da estrutura do verso (subentendida no
aparecimento do verso livre em detrimento do alexandrino), mas na
impossibilidade de se estabelecer acabamento e finitude à própria forma em
geral, aparece como um imperativo nessa “nova” concepção da arte. Nesse
sentido, a palavra ptyx surge como um emblema do “fracasso” da unidade
formal, ou como um contratempo que dificulta a assimilação do poema. Isso
porque sua forma é um reflexo de uma crise interna e externa ao verso. Pois
o poema – a forma verso, ou a própria literatura - não carrega apenas um
“estilo de escrita” de determinado autor, ou de determinada época; de
maneira que pelo desaparecimento elocutório do poeta, e pela iniciativa
concedida às palavras, no interregno da forma, elas (as palavras) seriam seu
próprio paradoxo.
O caráter revolucionário e engajado da poesia enquanto forma se
pronunciaria por meio dessa ambigüidade. Como explica Hugo Friedrich,
Mallarmé “não quer somente que a palavra seja o grau mais elevado, o mais
solene da língua inteligível, mas ainda que ele seja a dissonância absoluta,
irredutível a toda normalidade”52
. Talvez essa seja sua diferença em relação
a Victor Hugo. Enquanto Hugo via e defendia um certo uso da poesia – e do
alexandrino – ancorado “na tradição solene da rima e da métrica, que
combinaria com brindes em recepções elegantes e com o aparato de festas
cívicas”53
, Mallarmé propõe outro tipo de brinde, aquele que celebraria a
própria alteridade da poesia, ou a tornaria mais próxima de uma comunidade
poética. Onde, em uma constelação (“Sonnet em Yx”), ou mesmo na
iminência de um naufrágio (“Salut”, “Um Lance de Dados”), ela pudesse se
reconhecer como parte integrante na busca – ou no engajamento – de um
sujeito (tema), de uma linguagem, de um mundo. Mallarmé não
desqualificava a tradição, muito menos a negava. Ele reconhecia seu lugar
52
“Il ne veut pas seulement que le mot soit le degré le plus élevé, le plus solennel de la
langue intelligible, mais encore qu’il soit la dissonance absolue, irréductible à toute
normalité”. (FRIEDRICH, Hugo. Structure de la poésie moderne. Paris: Librairie Générale
Française, 1999, p. 163). 53
SISCAR, M. Op. cit., p. 108.
36
“raro e excepcional”, mas ao defender a “dissonância da normalidade” ele
estimularia a “busca obscura e atormentada” da forma, do sentido, e da
referência dentro do espaço literário. Uma busca pelo que essa linguagem
teria de “moderno”, no sentido que Meschonnic atribui ao termo: não uma
procura vil pelo “novo” em si, mas antes “a abolição da oposição entre o
antigo e o novo”54
.
Mas essa experiência “da crise” começa a ganhar forma e contexto
em Mallarmé junto de uma crise pessoal, a chamada “crise de Tournon”55
.
Por essa crise, notamos uma virada em sua obra, que, segundo Marcos
Siscar, passaria de “uma poesia de juventude mais próxima de elementos
idealistas, ou seja, do desejo escapista do mergulho no azur, para uma fase
que inclui tanto a preocupação com o efeito [...] quanto a obsessão pelo
tema da impotência”56
. Essa ruptura é influenciada também pelo início da
escrita de seu poema Herodíade. Assim, pode-se dizer que cooexistem na
obra de Mallarmé (e também em sua correspondência) um verdadeiro
paradoxo, ou, dois momentos, duas fases cruciais marcantes. Uma
representa a consciência de que não há uma linguagem capaz de materializar
aquilo que o poeta sonha em escrever (o que apontaria para certa
“Impotência”, e “ausência da linguagem”); e outra aponta o caminho que, a
partir dessa constatação, transformaria essa Impotência em trabalho, em
“apego” total ao que o verso poderia criar, ao efeito e à capacidade que ele
tem de construir um lugar possível de inscrição do poético, capaz de encenar
uma existência representativa, e, ao mesmo tempo, crítica. Um lugar onde se
desenrolaria e se encenaria a crise. E é isso que tentarei mostrar nos dois
capítulos subseqüentes.
54
MESCHONNIC, H. Op. cit., p. 76. 55
Essa “crise” data de 1863 a 1866, época em que Mallarmé morava na cidade de Tournon,
no interior da França, onde ele teria enfrentado uma forte depressão. 56
SISCAR, M. Op. cit., p.74.
SEGUNDA CONSTELAÇÃO
O Azul
38
“As coisas não querem mais ser vistas por
pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de
azul”
Manoel de Barros
Na manhã do dia sete de janeiro, aos vinte e um anos de idade,
Mallarmé envia a seu amigo Henri Cazalis1 uma carta sobre um poema
intitulado L’Azur:
Enfim envio-lhe este poema sobre o Azul, que você parecia
tão desejoso de possuir. Trabalhei nele, nestes últimos dias,
e não esconderei que ele me causou um desconforto
infinito – além do fato de que antes de pegar a pena era
preciso, para conquistar um momento de perfeita lucidez,
demolir minha desoladora Impotência.*
A carta explica o método de composição utilizado por Mallarmé para
chegar a tal poema. Junto com a carta está o próprio poema que Cazalis
“parecia tão desejoso de possuir”. Ao descrever seu processo de criação, o
jovem Mallarmé relata um desconforto infinito que culmina em uma terrível
agonia, sofrida em seu pensamento: “Juro a você que não há uma palavra
que não me tenha custado várias horas de pesquisa”. Isso ocorre antes de ele
encontrar uma forma que pudesse traduzir perfeitamente aquilo que ele se
dispunha a dizer, pois era necessário primeiramente acabar, silenciar, sua
“desoladora Impotência”. Essa Impotência, o principal assunto a ser
desenvolvido no poema, e que causa o “desconforto infinito” no poeta,
aparece aqui – na carta e no poema – materializada e representada pela
simbologia atribuída ao “Azul”, que remeteria a um Ideal inacessível e que
por isso “tortura [e oprime] o impotente em geral”2.
1 Henri Cazalis (1840-1909) foi um médico e poeta francês muito próximo de Mallarmé. A
inúmera correspondência entre os dois mostra o grau de amizade, de consideração que
Mallarmé nutria por Cazalis. Ele vai figurar como seu principal mentor, opinando
decisivamente em diversos poemas de Mallarmé.
* A versão integral e original da carta sobre o poema “L’Azur” encontra-se nos “Anexos”,
junto do próprio poema, e de uma versão da carta traduzida por mim. 2 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].
39
Para entender essa afirmação, é preciso contextualizá-la no universo
em que vivia Mallarmé naquela época. A carta foi escrita em 1864, ano em
que ele foi morar no interior da França – na cidade de Tournon – com a
missão de ensinar inglês em uma escola da região, situação que não lhe
agradava em nada. Ele se via obrigado a aceitar essa vida de funcionário
público para sustentar sua esposa Marie Gerhard, sua “alemãzinha”. Os
relatos que temos desse tempo mostram um jovem extremamente
angustiado, e essa “terrível agonia”, relatada na carta, fazia parte de um
longo processo de angústia que o acometia desde os tempos do Liceu de
Sens3, e que imperava tanto sobre sua vida profissional (o trabalho como
professor de inglês no Lycée era demasiado desgastante) quanto sobre sua
vida pessoal (ele se declarava infeliz por não ter o tempo necessário para se
dedicar à poesia). Em relação à escrita, as cartas anteriores ao ano de 1864
mostram um sentimento de impotência, no sentido mais amplo:
impossibilidade de se consagrar integralmente à poesia, mas, sobretudo,
impossibilidade de criar em poesia algo autoral, digno de ser considerado
“novo”. Porém, seria justamente essa necessidade de inovação – em sua
vida e em sua poesia – que o tiraria de um estado inicial de estagnação.
Como se a aquisição de um Ideal – por mais que sua realização lhe
parecesse longínqua - lhe garantisse uma renovação espiritual e poética.
Esse ideal parece se configurar em 1862, quando ele comenta pela
primeira vez seu soneto “Vere Novo”4. Após um período de “impotência”
(que se reflete em certa escassez literária), ele finalmente consegue terminar
o soneto motivado pela necessidade de inovar. Esse soneto – uma primeira
versão de “Renouveau”5 - já nos prepara, posteriormente, para o poema “O
Azul”. Aqui, a impotência já aparece estendida “em um longo bocejo”
3 Dos 17 aos 20 anos, Mallarmé estudou no Liceu de Sens, onde conhece o então professor
que se tornaria seu amigo Emmanuel des Essarts. Antes de se estabelecer em Tournon,
Mallarmé passa uma temporada em Londres (1862/1863). Nessa época ele começa a
traduzir alguns poemas de Edgar Allan Poe. O tempo vivido na Inglaterra o capacita a dar
aulas de inglês na França. 4 Cf. MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Henri Cazalis” [4 de junho de 1862]
Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,
p. 55. 5 Cf. Anexos: “Renouveau”.
40
(“L'impuissance s'étire en un long bâillement”6), e cabe ao poeta apenas
esperar o tédio7 (“J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève...”) e o
“riso” do azul (“Cependant l'azur rit sur la haie et l'éveil”). Segundo
Mallarmé, o novo gênero de poesia que o poema postulava - em que “os
efeitos materiais, do sangue, dos nervos são analisados e mesclados aos
efeitos morais, do espírito, da alma” - seria uma “combinação [...] bem
harmonizada, [...] nem tão física, nem tão espiritual”, e que poderia enfim
“representar alguma coisa”8. Ou seja, esse estado mental (de “impotência”,
de “tédio”, de “angústia”) que parece ter se apropriado de Mallarmé durante
a primavera, mesclando-se ao trabalho da escrita, do verso, lhe daria a
autoridade de tentar defini-lo pela escrita, de “dizê-lo”, ou melhor, de
maldizê-lo (“Após três meses de impotência, estou finalmente livre, e meu
primeiro soneto é consagrado a descrevê-la, ou melhor, maldizê-la”9) E por
isso – em uma clara referência a Baudelaire – o soneto poderia se chamar
Spleen Printanier.
A influência de Baudelaire no poema não se restringe apenas ao
nome. Se lermos “Vere Novo” / “Renouveau” à luz do soneto
“Correspondances”10
, encontraremos muitas semelhanças entre os dois, ao
6 Vale lembrar também o poema de abertura de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, “Au
lecteur”: “Il ferait volontiers de la terre un débris / Et dans un bâillement avalerait le
monde; / C’est l’Ennui!” (BAUDELAIRE, Charles. “Au lecteur” in Les Fleurs du Mal.
Paris: Librarie Générale Française, 1972, p. 7). 7 Na primeira versão (1862) do soneto, ao invés de esperar o tédio (ennui), o poeta espera o
Nada: “J’attends, en m’abîmant, que Le Néant se lève...”. 8 “C’est un genre assez nouveau que cette poésie, où les effets matériels, du sang, des nerfs
sont analysés et mêles aux effets moraux, de l’esprit, de l’âme. [...]Quand la combinaison
est bien harmonisée et que l’oeuvre n’est ni trop physique ni trop spirituelle, elle peut
représenter quelque chose” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [4 de junho de 1862]
in op. cit., p. 54-55). 9 “Après trois mois d’impuissance, j’en suis enfin débarrasé, et mon premier sonnet est
consacré à la décrire, c’est-à-dire à la maudire”. (Idem, ibidem). 10
“La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.
Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.
41
ponto de pensarmos em uma possível correspondência entre eles. Se
Mallarmé diz que os efeitos materiais associados aos efeitos morais
produziriam “alguma coisa”, mesmo um estado de espírito (impotência)
materializado no poema pelo “longo bocejo do tédio”, Baudelaire faz
transparecer essa “coisa” ao recriar uma imagem da natureza, onde
“confusas palavras”* só seriam inteligíveis quando os sons, as cores e os
perfumes se respondessem. Seria quando os elementos do universo se
encontrassem em perfeita harmonia que essa natureza descrita no poema
ganharia forma, através, precisamente, do jogo das correspondências. Essa
possibilidade de recriar a natureza ideal, mesmo inacessível, inalcançável,
como o “Azul”, passaria pelo crivo da escrita, pois somente na linguagem
ela existiria. A impotência se justificaria e, ao mesmo, tempo se anularia
nesse ponto.
Ela seria justificada primeiramente pela própria impossibilidade de
se atingir – por parte do poeta - o equilíbrio inerente à natureza, na qual
existiria um estado de perfeição, expresso no poema de Baudelaire pela
harmonia dos “sons, [d]as cores e [d]os perfumes”, e em Mallarmé pela
serenidade do azul. Essa impossibilidade de harmonia é expressa em
“Renouveau” de forma revoltante, pois são os “perfumes das árvores” que
fazem com que o poeta furioso (énervé) e cansado (las) tombe diante dessa
perfeição. O grito final do poema L’Azur também traduz a “revolta pérfida e
impotente do poeta”11
com esse estado de perfeição, ou, segundo
Baudelaire, com o “estudo do belo”, que origina “o duelo em que todo
Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,
Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.”
(BAUDELAIRE, C. “Correspondances” in op. cit., p. 16).
* Todas as traduções dos versos dos dois poemas (“Renouveau” e “Correspondance”) para
o português são feitas por mim. Meu objetivo é valorizar a tradução literal de alguns versos
para minha leitura dos poemas, sem me preocupar com a questão da forma. 11
Os versos do poema “L’Azur” citados em português por mim correspondem à tradução
de Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,
2002, pp. 40-43.
42
artista se envolve e no qual antes de ser vencido, solta um grito de terror”12
.
Esse grito mostra então a desolação, a angústia do “poeta incapaz que
maldiz a poesia”, diante daquilo que não pode compor. Porém, a natureza
descrita nos poemas – assim como o “Azul” – seria uma tradução, ou uma
transmutação, de um ideal de natureza perfeita, que só poderia ser criada
através da analogia entre o meio natural e o homem que a atravessa. Esse
templo, descrito em “Correspondências”, é composto por uma “floresta de
símbolos” (symboles), ou um conjunto de signos que esperam sua
profanação feita pelas confusas palavras (paroles), e pelo homem que nela
reconhece “olhares familiares”, e, ao mesmo tempo, é observado por eles.
Assim seria por meio desse reconhecimento que ressurgiriam as
reincidências reconhecíveis aos olhos do poeta, o que possibilitaria a
correspondência entre o tempo presente e o passado. Essa rememoração o
levaria a um outro tempo, um tempo reincidente, análogo, “místico”, no
qual existiria a união entre a poesia e a vida.
Nas palavras de Octavio Paz, Baudelaire via “o universo como uma
linguagem. Não uma linguagem quieta, mas em contínuo movimento"13
,
reincidente, no ritmo das analogias. E se “a analogia concebe o mundo
como ritmo”14
, esse ritmo (ou equilíbrio) estaria presente na própria
natureza, no mundo. Mas se para o Romantismo, o equilíbrio dessa
linguagem traria uma promessa de uma estabilização do mundo em uma
unidade perfeita, na Modernidade, a consciência de que não há mais
unidade, nem perfeição, tornaria esse ritmo e essa linguagem fragmentada.
A partir dessa “quebra”, só poderíamos pensar na analogia enquanto
alegoria, ou seja, como atualização e crítica desse tempo anterior, mas que
se expõe apenas de forma fragmentada no tempo presente. Nesse ponto
então, a impotência se anularia. Pois longe de ser uma doença que aflige o
12
Cf. “L'étude du beau est un duel où l'artiste crie de frayeur avant d'être vaincu.”
(BAUDELAIRE, Charles. “Le Confiteor de l’artiste”. Tradução de Ernst Raynaud in
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 68). 13
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984. p. 97. 14
Idem, Ibidem, p. 88.
43
poeta, ela seria apenas o reconhecimento, operado pelas reincidências entre
passado e presente, do desejo inalcançável de se criar uma linguagem que
“dissesse” o mundo – ou a natureza – em seu “todo”. Essa consciência
origina uma visão da obra de arte entendida agora como forma marcada pela
temporalidade, e não mais fundamentada em um pensamento divino. Isso
aparece sutilmente em “Renouveau” pela interessante metáfora que
Mallarmé faz das estações, onde mesmo a natureza não estaria imune de
uma referência histórico-temporal: a primavera doentia (representando o
tempo presente), que caça, expulsa o inverno, tempo da arte serena, plena
(tempo analógico), dá ao poeta a consciência do tempo “perdido” em que
teria sido ainda possível uma unidade plena, serena, mas que agora se impõe
inalcançável.
Essa idéia da correspondência universal é provavelmente tão antiga
quanto a sociedade humana. “A analogia torna o mundo habitável”15
, nos
diz novamente Paz. Mas a tradução dessa analogia chega a nós, na
Modernidade, pelo viés da alegoria. Por ela, traduziríamos as reincidências,
o ritmo do mundo, as correspondências entre vida e arte. “Tornar o mundo
habitável”, do ponto de vista alegórico, seria paradoxalmente expor a
própria incapacidade de se criar um mundo perfeito, e até mesmo habitável.
Por meio da alegoria, a linguagem não se transportaria a um primeiro
momento da criação poética, onde ela se encontraria próxima de um ideal de
plenitude, de serenidade. Não se trata de atribuir ao poeta, e à poesia, “a
função estéril de imitar a natureza”16
, como critica Baudelaire, mas de
conceber a criação literária, nesse sentido, como uma tradução crítica dessa
natureza, cujo verdadeiro autor seria a linguagem. No entanto, na visão
alegórica e profanadora, destituída de sua singularidade e divindade, essa
tradução se multiplicaria em uma “pluralidade de textos”, oriundos das
diversas interpretações, profanações feitas “do mundo”. Essa ausência de
unidade que pudesse traduzir o mundo em uma só forma, de acordo com
15
Idem, ibidem, p. 93. 16
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.
44
Paz, “subentende que não há um texto original”17
, e remete novamente à
impotência não só do poeta, como também da poesia. É nesse ponto que a
ironia presente em Mallarmé começa a ser percebida, revelando
inexoravelmente o desejo e, ao mesmo tempo, a incapacidade da linguagem
em recriar uma experiência de totalidade.
Esse “vazio” explorado por Baudelaire, por exemplo, no poema
“L'Héautontimorouménos”, onde o homem seria ironicamente o “falso
acorde” de si próprio, ou o que destoa de uma sinfonia que deveria ser
divina18
, é, posteriormente, desenvolvido, correspondido por Mallarmé em
“Renouveau” (“não é Baudelaire, mas Mallarmé, quem se atreverá a
contemplar esse buraco e a transformar essa contemplação do vazio na
matéria de sua poesia”19
). No fim de “Renouveau” e de
“L'Héautontimorouménos”, respectivamente vemos o poeta condenado ao
riso “eterno” do “azul”, e impossibilitado de ter seu próprio “riso”20
. O
paradoxo estabelecido pela sentença faz parte dessa nova consciência do
mundo como um lugar onde o poeta só poderia encenar uma “totalidade
perdida”. A ironia dessa constatação residiria justamente nesse ponto, no
fato de que essa experiência só pode ser fingida, dramatizada, pois mais do
que pela historicidade, somos marcados, na Modernidade, pela consciência
de nossa finitude. É o que Mallarmé realiza no poema “L’Azur”, e explica
na carta a Cazalis: perseguido pelo “Azul”, ele recorre à matéria (“munido
de admirável certeza, imploro à Matéria”), a escrita, as palavras, lhe servem
como “névoa” (“Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono”), que
“disfarçam” temporariamente sua impotência: “O céu está morto!/ (...) Eis
aí a alegria do Impotente.” Mas a suposta vitória sobre o Céu é, para o
infeliz poeta, apenas uma fuga continuada. No fim, ele constata que o céu
17
PAZ, O. Op. cit., p. 98. 18
Cf. BAUDELAIRE, C. “L'Héautontimorouménos” in op. cit., p.79. 19
PAZ,O. Op. cit., p. 98. 20
Cf. “Je suis de mon coeur le vampire,
— Un de ces grands abandonnés
Au rire éternel condamnés
Et qui ne peuvent plus sourire!”
(BAUDELAIRE, C. “L'Héautontimorouménos” in op. cit., p. 79).
45
morto reaparece (“Em vão. O Azul triunfa e canta em glória”21
), o que
culmina no grito final: “O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!”.
Reparem que esse grito é materializado em Mallarmé com uma certa
dose de ironia, pois, como diz Paul Bénichou, “como comentarista, [ele]
torna ridículo esse grito de triunfo que, como poeta, ele empresta a seu
herói, ou seja, a si mesmo: ‘Exclamação grotesca de colegial liberto’". A
própria palavra Azul, substantivo que em francês – Azur – remete ao azul do
céu na pintura e na literatura, e não ao azul “ordinário”, comum (bleu), já
denota um sentido totalizador e, ao mesmo tempo, irônico: uma totalidade
estética expressa por uma única forma, em uma única palavra, que põe o
escritor em contato com sua impotência de criar algo tão perfeito e acabado.
Segundo Bénichou, "o Azul, com sua maiúscula, não é somente o azul do
céu que vemos; ele é esse ideal longínquo que obceca os homens”22
.
Em Baudelaire, esse ideal longínquo figura aos olhos do poeta
moderno pela natureza, descrita em “Correspondências” como uma tentativa
de recriação, rememoração da plenitude de um “templo” cuja unidade não
seria mais acessível ao nosso tempo. A origem dessa incapacidade é
inseparável da consciência do mundo – e da linguagem - enquanto
experiência fragmentada para o homem do século XIX. É na tensão
verificada, na obra poética de Baudelaire, entre o ideal (experiência poética
representada pela ordenação do pensamento transfigurador) e o spleen
(experiência transfiguradora do homem moderno calcada no tédio e na
melancolia), que se verifica um estado de crise na experiência plena do
mundo. Sua poética seria emblemática, na medida em que, segundo Paz,
esses “dois extremos [ideal e spleen] que dilaceram a consciência do poeta
moderno aparecem [nela] com a mesma lucidez – com a mesma
ferocidade”23
.
22
BÉNICHOU, Paul. Selon Mallarmé. Paris: Gallimard, 1995, p. 99. 23
PAZ, O. Op. cit., p. 100.
46
Em seu texto “Experiência e pobreza”24
, Walter Benjamin trata da
“perda da aura” na sociedade moderna. Em meio ao declínio das
experiências coletivas (Erfahrung) – que remeteria a uma volta às origens,
ao nosso passado “mítico” – surge a vivência individual (Erlebnis) da arte e
dos homens. A parábola do velho moribundo (presente no texto de
Benjamin) que transmite a seus filhos uma experiência vem mostrar como
esse conhecimento transmitido de pai para filho, passado de uma geração a
outra, está fadado ao fracasso, por não caber mais no mundo moderno. Isso
se justifica principalmente pelo declínio da vida em comunidade (e sua
conseqüente substituição pela vida urbana) e pela impossibilidade de contar
essa experiência através da linguagem, após a “perda da aura”. Segundo
Jeanne Marie Gagnebin, a “experiência se inscreve numa temporalidade
comum a várias gerações”25
, e numa continuidade da palavra. Por isso ela
não é mais possível no mundo moderno, no qual a relação entre o homem e
o mundo é marcada por um “imediatismo” que dificulta a assimilação das
experiências individuais. De acordo com Guy Debord, essas experiências no
mundo moderno são sempre mediadas por imagens recortadas impostas pela
ocasião, em que a percepção da mensagem passada chega a nós apenas
como um “resumo simplificado do mundo sensível”26
. A esse fenômeno,
Debord chama de “dominação espetacular”, que guiaria a apreensão do
sentido dessa experiência pelo homem moderno.
Nesse sentido, a palavra não possuiria mais uma continuidade nesse
mundo, já que as experiências apareceriam apenas como fragmento, resumo,
oriundas da experiência do choque, e incompatíveis com a vivência de uma
experiência plena27
. Essa descontinuidade da palavra no mundo moderno
remeteria à exacerbação da experiência da solidão e da morte. Solidão
porque não há mais a quem contar, e conseqüente morte, pois a palavra não
24
Cf. BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:
Brasiliense, 1985. 25
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Não contar mais?” in História e Narração em Walter
Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 57. 26
Cf. DEBORD, G. Commentaires sur la société du spectacle. Paris, Ed. Gérard Lebovici,
1988. 27
Cf. ROSA, Edson. “Da impossibilidade de contar e cantar: um olhar benjaminiano sobre
a literatura” in http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/10Sem_09.html
47
encontra mais um circuito reprodutivo. A expressão privilegiada da
experiência tradicional era então veiculada pela palavra do moribundo (a
palavra profética), que ganhava força na morte, pois nesse limiar – entre a
morte e a vida – ela apresentava um mundo novo, e, ao mesmo tempo, a
transmissão de um mundo comum a todos. E por isso, ela seria tão
perseguida pelos poetas modernos28
. No instante de sua “morte”, ela traria o
momento da redenção, transformando-se na própria alegoria da experiência
do eterno retorno às origens da palavra sagrada.
O conceito de alegoria, presente em Benjamin, refere-se a um
pensamento estético que estabelece uma relação complexa com o tempo
presente, que busca em um tempo anterior, através da correspondência dos
sentidos, de forma crítica, um antídoto contra a reificação no tempo
presente. É isso que Baudelaire tenta fazer em “Correspondências”. No
soneto, a visão da natureza é alegórica, pois sua comparação a um templo
traz a remissão ao passado não só da memória individual do poeta, mas
também deixa transparecer a memória coletiva da humanidade, conseguida
através das sensações (e da harmonia) proporcionadas pelo entrelaçamento
de sons, perfumes e odores. A visão alegórica do poeta seria expressa pelos
“olhos familiares” que o observam. O fato de ele reconhecer que é “olhado”
pela natureza, não garante a sua própria visão, nem o “entendimento” – que,
na Modernidade se mostra já “digerido” – de sua experiência com a
natureza, pois, como nos afirma Benjamin, seus olhos “haviam (...) perdido
a capacidade de olhar”29
. Essa “perda” se traduz no poema “L’Azur” pela
fuga de olhos fechados empreendida pelo poeta que tenta se libertar do
“infinito azul”, ao mesmo tempo em que esse azul o espreita (“Em fuga,
olhos fechados, sinto-o que espreita/ (...) A minha alma vazia”).
Benjamin, ao analisar “Correspondências”, percebe essa conjunção
entre tempo passado (memória coletiva) e tempo presente (memória
individual) e a disjunção da rememoração plena no presente:
28
Cf. “Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?/ Au fond de l’Inconnu pour
trouver du noveau” (BAUDELAIRE, C. “Le voyage” in op. cit., p.177). 29
BENJAMIN, W. Obras escolhidas, III. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.141.
48
Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram
em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado
individual com outros do passado coletivo. Os cultos, com
seus cerimoniais, suas festas, (...) produziam
reiteradamente a fusão desses dois elementos na memória.
Provocavam a rememoração em determinados momentos e
davam-lhe pretexto de se reproduzir durante toda a vida30
.
Assim, a concepção do mundo moderno como lugar do spleen só é
possível pelo esforço da tentativa de rememoração de um ideal perdido. A
verdadeira experiência de rememoração de uma coletividade só se
completaria na fusão entre o passado e o presente, e só seria possível através
da escrita de forma alegórica. Nesse sentido, os dois termos (o spleen e o
ideal) são inseparáveis, da mesma forma que os dois poemas (“Renouveau”
e “Correspondências”) se completam. Não é à toa que Mallarmé diz que o
soneto poderia se chamar “Spleen printanier”, pois o estado de angústia,
tédio, melancolia vivido pelo poeta, e que vai culminar no riso irônico do
azul, não seria possível (nem irônico) sem o reconhecimento do desejo do
ideal da plenitude representado no soneto “Correspondências”. Mallarmé
reconhece esse ideal através da ironia, pois ela torna ridículo o exercício
daquilo que deveria ser a “função do poeta”: transformar em arte esse
mundo spleenético, desencantado e prostituído31
. Ou seja, a ironia do poema
de Mallarmé é reconhecida através da analogia com o soneto de Baudelaire.
Outra possível correspondência/ analogia entre Mallarmé e Baudelaire pode
ser feita à luz da aproximação de “L’Azur” com o poema em prosa “Le
Confiteor de l’Artiste”, onde, em três frases, o azul de Baudelaire aparece
como um prelúdio ao poema de Mallarmé: “Solidão, silêncio, incomparável
castidade do azul!/ E agora a profundeza do céu me consterna; sua limpidez
me exaspera./ Ah! É preciso eternamente sofrer, ou fugir eternamente ao
30
BENJAMIN, Walter. “Paris, Capitale du XIXe. Siècle” in Paris, Capitale du XIXe.
Siècle. Le Livre des Passages. Paris: Les Éditions du Cerf, 3ª edição, 2002, p.611. 31
Baudelaire também compara o escritor à prostituta, pois os dois “vendem sua alma” em
busca de alguns trocados: “Para ter sapatos, ela vendeu sua alma;/ Mas o bom Deus riria se,
perto dessa infame,/ Eu bancasse o Tartufo e fingisse altivez,/ Eu, que vendo meu
pensamento e quero ser autor.” (Cf. BAUDELAIRE, C. in BENJAMIN, W. “A Boêmia”.
Obras escolhidas III, p.30).
49
belo?”32
. Como vimos, essa fuga do belo, do “azul”, encontra resposta
afirmativa em Mallarmé. A questão agora é: para onde fugir? “Onde
fugir?”33
.
A ironia e a analogia constituem então elementos centrais tanto na
poética baudelairiana quanto na mallarmeana: “Baudelaire fez da analogia o
centro de sua poética. Um centro em perpétua oscilação, sacudido sempre
pela ironia, a consciência da morte e a noção do pecado”34
. Para Mallarmé, a
analogia evocaria a ironia que, por sua vez, suscitaria angústia e melancolia,
idéias essencialmente românticas. E por isso, nessa época (entre 1862 e
1864), Baudelaire figura ainda como principal mentor de Mallarmé. As
inúmeras referências a Baudelaire aparecem claramente não apenas em
“L’Azur” e “Renouveau”, mas também em “Le sonneur” (“J'ai beau tirer le
câble à sonner l'Idéal/De froids péchés s'ébat un plumage féal”), “Don du
poème” (“La solitude bleue et stérile a frémi”), “Brise Marine” (“O nuits!
Ni la clarté déserte de ma lampe/ Sur le vide papier que la blancheur
défend”). A alusão ao tédio (Cher Ennui) (na carta sobre, e no próprio
poema “L’Azur”) e à Matéria como a “alegria do impotente” só reforça a
fase “baudelairiana” de Mallarmé, pois, segundo ele próprio, sua poesia
seria um “misto de elementos dramáticos (hostis à idéia de poesia pura e
subjetiva) com a serenidade e a calma das linhas necessárias à Beleza”35
.
Essa mistura de elementos dramáticos e temas clássicos, junto com a
necessidade de inovação na linguagem do poema, dariam o tom da poesia
do jovem Mallarmé. Como define Paul Bénichou:
Desde os primeiros anos 1860, (...) [ele] retoma os temas
negativos do segundo romantismo agravando-os: o real e a
humanidade odiosamente baixa, o ideal inacessível e
32
“Solitude, silence, incomparable chasteté de l'azur!/ Et maintenant la profondeur du ciel
me consterne; sa limpidité m'exaspère./ Ah! faut-il éternellement souffrir, ou fuir
éternellement le beau?”. (BAUDELAIRE, C. “Le confiteor de l’artiste” in Les petits
poemes em prose. Paris: Librio, 2002, p. 45). 33
MALLARMÉ, S. “O Azul” in Mallarmé, p. 41. 34
PAZ, O. Op. cit., p. 96. 35
Cf. Anexos: MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864].
50
inimigo, a consciência suspensa na solidão e na
desesperança36
.
O tema da solidão viria da postura crítica assumida por Mallarmé
perante a sociedade que desprezava o artista. No entanto, sintetiza
Bénichou, "a miséria de um poeta só é miséria porque ele se acreditava feito
para desempenhar um papel glorioso"37
. Nesse sentido, podemos lembrar o
poema “O Albatroz”, de Baudelaire, onde a figura bizarra do albatroz,
tentando se locomover com suas asas demasiadamente grandes, de forma
tortuosa, seria uma alusão crítica à imagem do poeta frente ao lugar por ele
ocupado na sociedade do século XIX. Ela também apontaria para uma
alegoria da “perda da aura” que desmistifica a imagem do poeta. O “pobre
rei destronado”, outrora gozando de sua majestade na imensidão do céu
azul, vê-se obrigado – depois de sua queda – a caminhar desprezado por
entre a multidão, como um simples mortal. Como repara Marcos Siscar, “ao
solitário príncipe das nuvens, cabe o reinado do convés”38
.
Essa solidão compartilhada com o leitor (como afirma ainda Siscar:
“a solidão do poeta solicita, também, a solidão do leitor, de modo que a
recusa da solidão significa, freqüentemente, uma recusa da literatura”39
), de
modo algum, assemelha-se à do romântico caminhante solitário que, desde
Jean-Jacques Rousseau, pretende encontrar sua paz no exílio da natureza,
longe dos homens40
. Essa solidão, tanto em Baudelaire quanto em
Mallarmé, “está longe do retiro paradisíaco, ao modo conhecido como
romântico, e mais próxima da reivindicação bem definida do desejado
inferno da solidão”41
. E esse inferno moderno é legitimado primeiramente,
como já vimos, pela perda da comunhão do poeta com a natureza
(comunhão essa que impera na obra de Rousseau); e também pela
experiência urbana e pelo surgimento de um público burguês ávido de
36
BÉNICHOU, P. Op.cit., p.32-33. 37
Idem, ibidem, p. 15. 38
SISCAR, Marcos. Poesia e Crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da
modernidade. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 56. 39
Idem, ibidem, pg. 57. 40
Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Les Revêries du promeneur solitaire. Paris: Gallimard,
1965. 41
SISCAR, M. Op. cit., p.58.
51
consumir obras de arte como mercadoria42
. O que põe o poeta novamente
em um estado de dupla impotência: “uma experiência comum do sujeito que
não se reduz nem à afirmação dos desejos nem ao esquecimento de si”43
.
Em Rousseau, a miséria do poeta estaria no seu afastamento da sociedade,
fato que o condena a uma vida de “caminhante solitário” incompreendido,
mas que encontra refúgio e cumplicidade na natureza. Em Mallarmé e em
Baudelaire, essa miséria está justamente na consciência irônica da falta de
um lugar privilegiado que lhe pudesse garantir a plenitude interior
reivindicada por Rousseau.
Dessa forma, Mallarmé retoma vários temas românticos, como a
solidão do poeta, a aquisição de um ideal, a impotência da poesia, a angústia
do tempo presente, porém criticando-os através da ironia. Essa crítica
irônica aparece para desautorizar o discurso da analogia. Se a analogia torna
o mundo habitável, a ironia, junto com o pensamento alegórico, “desaloja”
esse mundo. Ela insere no discurso análogo o paradoxo, a falta de
correspondências, a incomunicabilidade. Se para Octávio Paz, a analogia vê
o mundo como uma escrita, a ironia prova o contrário:
A ironia mostra que (...) cada tradução dessa escrita é
diferente, e que o concerto das correspondências é um
galimatias babélico. (...) O universo, diz a ironia, não é
uma escrita; se fosse, seus signos seriam incompreensíveis
para o homem porque nela não figura a palavra morte, e o
homem é mortal44
.
É por isso que tanto o discurso alegórico, quanto o irônico tomam
proporções essenciais para se explicar o pensamento moderno. Esse
discurso surge na Modernidade como a consciência da historicidade dos
homens e da linguagem produzida por eles. É por isso que, em
“Correspondências”, ao atravessar “essa floresta de símbolos” tentando
desvendá-la, o homem só encontra pelo caminho confusas palavras, que lhe
impedem o entendimento da real significação do mundo. Pois seria preciso
42
Vale lembrar as críticas de Baudelaire aos salões de arte do século XIX. 43
SISCAR, M. Op.cit., p. 57. 44
PAZ, O. Op. cit., p. 101.
52
que o homem adquirisse a eternidade e a imortalidade para entender e
assimilar essa significação em sua completude. É por isso também que
Mallarmé, em “O Demônio da analogia”, descreve essa errância do poeta
em um labirinto de símbolos que perderam seu sentido, uma vez que se
perderam também seus referentes externos: “Palavras desconhecidas
cantaram sobre seus lábios, farrapos malditos de uma frase absurda?”45
.
Essa situação impossível mostra que, entre o Real ignóbil e o Ideal
inacessível, a distância que separa o Azul do poeta não é suscetível de
tradução. Como vimos, esse “silêncio” só poderia ser traduzível em partes
pela suspensão dessa consciência baseada na temporalidade do presente, na
constatação de nossa própria temporalidade ou, ironicamente, no fato de que
“somos mortais”. O grito bizarro e grotesco no fim do poema “O Azul” é,
segundo Octavio Paz, uma forma de reconhecer a mortalidade do poeta, e de
também provar que “o mundo da alteridade e da ironia não é afinal senão a
manifestação do nada. (...) A poesia como máscara do nada”46
.
É cavando o verso que Mallarmé vai encontrar esse “nada”. O que
nos relata em 1866:
Infelizmente, cavando o verso a [tal] ponto, encontrei dois
abismos que me desesperam. Um é o Nada, ao qual
cheguei sem conhecer o Budismo, e me encontro ainda
muito desolado para poder crer até mesmo em minha
própria poesia e voltar ao trabalho que esse pensamento
esmagador me fez abandonar. Sim, eu sei, não passamos de
formas inúteis da matéria – porém sublimes por termos
inventado Deus e nossa alma. Tão sublimes, meu amigo!
Que quero me proporcionar este espetáculo da matéria,
tendo consciência dela, e, entretanto, me lançando
furiosamente ao Sonho que ela sabe não ser, cantando a
Alma e todas as divinas impressões semelhantes que se
acumularam em nós desde as primeiras eras, e
proclamando diante do Nada que é a verdade essas
gloriosas mentiras! Tal é o plano do meu volume Lírico, e
45
MALLARMÉ, S. “O Demônio da Analogia” in Divagações. Tradução e apresentação de
Fernando Scheibe. Florianópolis : Ed. da UFSC, 2010, p. 23. 46
PAZ, O. Op. cit., p. 103.
53
tal poderá ser seu título, A Glória da Mentira (La Gloire du
Mensonge), ou a Gloriosa Mentira (Glorieux Mensonge)47
.
A interessante metáfora do “cavar o verso” desperta um outro viés da
ambigüidade do trabalho empreendido por Mallarmé. O próprio ato de
cavar supõe um esvaziamento, mas também pode gerar um conseqüente
preenchimento desse conteúdo “perdido”. Sendo assim, esse “nada”, outrora
esvaziado, poderá ser novamente completado. Em se tratando
especificamente do verso, Mallarmé afirma ter encontrado primeiro o Nada
– expresso aqui pelo substantivo Néant, que supõe uma altivez filosófica
perseguida e desenvolvida posteriormente por Mallarmé – e logo após, ter
constatado a “horrível visão de uma obra pura”48
. Nesse sentido, ter “cavado
o verso” significaria para Mallarmé tê-lo aprofundado até o ponto de ele
significar “alguma coisa”, que poderia ser tanto “a verdade” quanto o Nada,
Rien (“le Rien qui est la vérité”) que apareceria aqui como o pronome
indefinido substantivado, designando talvez menos substancialmente o
mesmo sentido. Mas essa coisa agora - ao contrário da carta explicando o
soneto “Vere Novo” – não apontaria mais para uma impossibilidade, um
estado de espírito paralisante, e sim para a possibilidade de criação de algo
realmente “novo”, mesmo que nascido, surgido pela mediação negativa de
um Nada.
Por esse viés então, o “cavar o verso” de Mallarmé se aproximaria da
palavra do moribundo, de Benjamin, que no limiar da morte, do
esvaziamento, nos põe diante de algo desconhecido, mas que se mostra
47
“Malheureusement, em creusant le vers à ce point, j’ai rencontré deux abîmes, qui me
désespèrent. L’un est le Néant, auquel je suis arrivé sans connaître le Boudhisme, et je suis
encore trop désolé pour pouvoir croire même à ma poésie et me remettre au travail, que
cette pensée écrasante m’a fait abandonner. Oui, je le sais, nous ne sommes que de vaines
formes de la matière, - mais bien sublimes pour avoir inventé Dieu et notre âme. Si
sublimes, mon ami! Que je veux me donner ce spectacle de la matière, ayant conscience
d’elle, et, cependant, m’élançant forcément dans la Rêve qu’elle sait n’être pas, chantant
l’Ame et toutes les divines impressions pareilles qui se sont amassées en nous depuis les
premiers âges, et proclamant, devant le Rien qui est la vérité, ces glorieux mensonges! Tel
est le plan de mon volume Lyrique, et tel sera peut-être son titre, La Gloire du Mensonge,
ou le Glorieux Mensonge.” MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [28 de abril de 1866]
in op. cit., p. 297/298. 48
“(...) Arrivé à la vision horrible d’une Oeuvre pure, j’ai presque perdu la raison et le sens
des paroles le plus familières.” (Idem, “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in
op. cit., p. 380).
54
estranhamente familiar49
. Estranha “coisa” na medida em que, mesmo se
abrindo ao “novo”, permanece com os resquícios de um ideal familiar que
estava “enterrado”, “perdido”. A partir daí, então, essa “escavação”
materializada por Mallarmé seria a própria alegoria da passagem, segundo
os termos de Benjamin, da Erfahurg à Erlebniss. Ou seja, da experiência de
um ideal de plenitude à vivência individual de uma negatividade, expressa
pelo Nada, constituinte de “alguma coisa”, que seria agora a “verdade”.
Mallarmé retoma o discurso analógico até certo ponto, e o faz pela
via alegórica. Se Baudelaire traduzia, pela experiência moderna do spleen, a
impossibilidade de vivência de um ideal totalizador, Mallarmé vai descobrir
– ao cavar o verso – que esse ideal se revela vazio. Ele retoma esse ideal,
mas o faz por intermédio de um esvaziamento e de uma negatividade. A
partir daí, a vivência dessa, digamos, “transcendência vazia” vai marcar sua
escrita. Não é por acaso que após essa “escavação”, Mallarmé vai se dedicar
a escrever seus famosos tombeaux e versos de circunstâncias50
. Outro
poema que também evoca o trabalho de cavar é “Las de l’amer repos”,
publicado pela primeira vez, em 1866, na revista Le Parnasse
Contemporain, em que Mallarmé compara o trabalho do verso com o do
coveiro (fossoyeur): “De creuser par veillée une fosse nouvelle / Dans le
terrain avare et froid de ma cervelle, / Fossoyeur sans pitié pour la stérilité.
(...)”
Fato curioso também é que, após a descoberta do Nada e a visão de
uma Obra que se mostra como um “Sonho em sua nudez ideal”51
, ele afirma
a Henri Cazalis: “A primeira fase da minha vida terminou. A consciência
excedida pelas sombras desperta lentamente formando um homem novo, e
deve reencontrar meu Sonho após a criação desse último”52
. Essa afirmação
já mostra o ideal de destruição / reconstrução que marcaria uma “nova fase”
49
Cf. FREUD, Sigmund. “L’inquiétante étrangeté” in L’inquiétante étrangeté et autres
essays. Tradução de Bertrand Féron. Paris: Gallimard, 1985. 50
Cf. MALLARMÉ, S. Poésies et autres textes, p.34 51
Cf. Idem. “Carta a François Coppée” [20 de abril de 1868] in Correspondance, p. 380. 52
“La première phase de ma vie a été finie. La conscience, excedée d’ombres, se réveille,
lentement formant um homme nouveaux, et doit, retrouver mon Rêve après la création de
ce dernier”. Idem. “Carta a Henri Cazalis” [18/19 de fevereiro de 1869] in op. cit., p.425.
55
da vida do poeta. No entanto, essa declaração não deixa também de ser
irônica, e é por esse viés da ironia que poderíamos situar a força da poesia
de Mallarmé sobre o “Nada”. Seus famosos Rondels e seus poemas sobre
“ovos de Páscoa” começam a ser escritos depois dessa época. Essa
“descontração” traz à poesia de Mallarmé uma leveza, próxima do jogo, do
lúdico, que contrasta com a seriedade da fase vivida em 1864, em que o
poeta realmente enfrentou uma crise pessoal, que culmina no sentimento de
impotência generalizada (e que vai desaguar num longo período de
depressão). Essa declaração de “morte” feita em 1869 não aponta
efetivamente para uma verdadeira morte, do poeta e da linguagem. Ela
apenas encena a iminência da morte de um ideal de transcendência (da
mesma forma que encena um “abandono” de sua poesia na carta de 1866),
assim como o seu renascimento diante dessa ruptura. E marca também o
começo de uma “nova vida”, uma ruptura e, ao mesmo tempo, abertura de
uma nova fase marcada pela eterna busca de uma obra que pudesse
apreender esse Nada pelo verso. A partir daí, como nos situa Hugo
Friedrich, “Mallarmé substitui em seus poemas as palavras rien e néant
onde antes eram postas palavras como azur, rêve ou idéal”53
.
Nos poemas entregues para serem publicados no Parnasse
Contemporain, é bastante nítida a preocupação com a disposição das folhas
e a tipografia das letras, como se, pela exploração dos “brancos da página”,
Mallarmé buscasse a significação do branco, onde antes era visto o azul.
Mallarmé explica - de forma exaustiva, e até mesmo, exagerada - a Catule
Mendès - a maneira como vislumbra a disposição desses poemas na revista
(“Em todo caso, eu gostaria, também, de um grande branco após cada um,
em repouso”54
). Depois dessa significativa mudança de ideal - da angústia e
melancolia representadas pelo azul para a “transcendência vazia”
materializada pelo branco, - sua obra55
passa então a figurar como estudo
53
FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 174. 54
“En tous cas, je voudrais, aussi, um grand blanc après chacun, en repos.” (MALLARMÉ,
S. “Carta a Catulle Mendès” [24 de abril de 1866] in op. cit., p. 294). 55
É nessa época que Mallarmé começa a escrever os textos em prosa que seriam reunidos
sob o título de Divagações. Assim como vemos aparecer uma infinidade de poemas
56
sobre determinados temas56
. Ele nunca admite seus poemas e textos em
prosa como acabados, enquanto formas são apenas esboços57
(ébauches),
pois a forma acabada está sempre por vir, nunca se concretiza. E através
desses estudos, Mallarmé começa a vislumbrar a possibilidade de criação de
um livro. Não um livro qualquer, mas um Livro que resumiria o mistério
“órfico da Terra”, como ele explica em 1885, na conhecida carta a Paul
Verlaine, intitulada “Autobiografia”:
Um livro, simplesmente, em vários tomos, um livro que
seja um livro, arquitetônico e premeditado, e não uma
coletânea de inspirações casuais por maravilhosas que
fossem... Irei mais longe, e direi: o Livro (...) A explicação
órfica da terra, que é o único dever do poeta e o jogo
literário por excelência: pois o próprio ritmo do livro então
impessoal e vivo, até na sua paginação, justapõe-se às
equações do sonho, ou da ode58
.
Através de seus estudos sobre o verso, e de sua experimentação,
contra o acaso e a circunstância, Mallarmé pretendia solucionar em um livro
todo o impasse entre analogia e ironia. E por um paradoxo em relação ao
pensamento moderno que ele próprio desenvolve, esse livro seria único,
ideal, como ele mesmo descreve, “expressão total da letra”59
, auge da forma
poética. Mas único e ideal porque nele estariam todas as possíveis traduções
e combinações do Universo, de forma que, quando essas traduções
atingissem seu máximo de combinações, a explicação órfica da Terra estaria
resolvida, o mistério se dissolveria, assim como a noção de temporalidade.
Segundo Jean-Pierre Richard:
Quando, após alguns anos de leitura, todas as permutações
possíveis tiverem sido realizadas, a linha do poema se
“lúdicos”, por exemplo, os “quatrains-adresses”, as “recréations postales”, as “dédicaces”,
etc. 56
Por exemplo: “Beaucoup de ces poèmes, ou études en vue de mieux, comme on essaye
les becs de plume avant de se mettre à l’oeuvre” (MALLARMÉ, S. Oeuvres complètes,
p.77). 57
“Je te parlerai de tout cela, et te montrerai quelques spécimens d’ébauches”
(MALLARMÉ, S. “Carta a Théodore Aubanel” [28 de julho de 1866] in Correspondance,
p. 314). 58
FONTES, Joaquim Brasil. Os anos de exílio do jovem Mallarmé. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2007, p. 33. 59
MALLARMÉ, S. Divagações, p. 182.
57
fechará sobre si própria, e com ela o tempo se acabaria, se
anularia. Mesmo linear, o livro permanece então túmulo
fechado, acesso à eternidade60
.
Túmulo fechado, cuja escavação reconduziria a escrita à sua origem
primeira, ao tempo de uma unidade que se impõe como onipresente, onde
não há mais lugar para a ruptura, e para o acaso. O Nada que o mundo é –
“que é a verdade”, segundo Mallarmé – se permutaria em um acesso à
eternidade. E por isso essa obra se mostra terrível a Mallarmé, pois sua
existência implica em sua própria morte como autor, e também na morte de
seu pensamento, assim como de sua linguagem. Mesmo produzindo uma
obra impessoal – onde a língua se torna protagonista, e, ao mesmo tempo,
autora – Mallarmé se preocupava com a ordenação das folhas desse Livro
(da mesma forma que se preocupava com os brancos da página), “pois o vôo
das folhas marca uma abertura do livro-túmulo, e assim uma ressurreição
do sentido. (...) De uma sessão a outra o Livro irá então, ele também, se
transformar fisicamente em si...”61
.
Essa transformação do Livro “em si” ocorreria no momento de sua
anulação. Quando o livro-túmulo se abrisse, ao mesmo tempo, cessaria a
comunicação universal, posto que haveria “uma reabsorção integral de todos
os discursos numa única palavra, de todos os livros numa página, de todo o
mundo num livro”. A língua se fecharia nela mesma, tornando-se um
receptáculo da eternidade. Talvez seja por isso que esse Livro nunca tenha
sido finalizado por Mallarmé. Apesar dos inúmeros esboços, dos papéis com
anotações, fragmentos, reflexões e dúvidas, ele de fato não poderia existir,
porque “no entanto, tudo isso é obra da língua. O que se produz na língua
não pode se produzir em nenhum mundo real”62
. O azul da impotência e da
60
RICHARD, Jean-Pierre. “Le Livre” in L’Univers Imaginaire de Mallarmé. Paris: Seuil,
1961, p. 566. 61
“car l’envol des feuillets marque une ouverture du livre-tombeau, et donc une
résurrection du sens. (...) D’une séance à l’autre le Livre va donc lui aussi se transformer
physiquement en soi...” (Idem, ibidem, p. 568). 62
Cf. FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 182-183.
58
angústia cede lugar à transparência significativa do Nada, ao branco. “A
analogia termina em silêncio”63
; ou não?
63
PAZ, O. Op. cit., p. 103.
TERCEIRA CONSTELAÇÃO
O Branco
60
“O livro, expansão total da letra, deve dela
tirar, diretamente, uma mobilidade e,
espaçoso, por correspondências, instituir um
jogo, não se sabe, que confirme a ficção.”
Stéphane Mallarmé
Em 1867, após passar “um ano pavoroso” na cidade de Tournon,
Mallarmé escreve duas cartas bastante intrigantes - endereçadas a seus
amigos Henri Cazalis e Eugène Lefébure – e que possuem declarações
decisivas e fundamentais para que se possa perceber o amadurecimento
posterior do seu pensamento. Elas também expressam uma latente ruptura
com um “estado poético” anterior e a necessidade de criar uma Obra sua,
mas que, ironicamente, emergiria de uma impessoalidade. A primeira
intuição de Mallarmé relativamente a sua Obra surgiria então no instante de
uma “perda”, que, segundo ele, naquele momento, lhe traria também a
imagem do encontro do Universo com seu “eu impessoal”. Essa imagem
seria então o impulso para Mallarmé pensar nessa Obra como um “Livro
total”, que, de acordo com Paul Bénichou, lhe daria aparentemente um
entendimento, “uma representação escrita da necessidade universal”1.
Mas para chegar a essa concepção, Mallarmé relata antes uma longa
agonia que seu pensamento teria sofrido. Na primeira carta, para Henri
Cazalis, ele afirma: “Acabo de passar um ano pavoroso: meu Pensamento se
pensou, e chegou a uma Concepção Pura”.* O fato de seu pensamento ter
“pensado” a si mesmo já indica um questionamento, seguido de um
esgotamento que culminaria na seguinte afirmação: “Estou perfeitamente
morto (...) [e] agora sou impessoal, e não mais o Stéphane que você
conheceu”. Na segunda carta, que pode ser considerada um complemento à
primeira, escrita para Eugène Lefébure, Mallarmé também descreve um
estado de agonia: “Meu pensamento está ainda tão nu e tão horrivelmente
1 BENICHOU, Paul. Selon Mallamé. Paris: Gallimard, 1995, p. 60.
* A versão integral e original dessa carta encontra-se nos “Anexos”, junto de uma versão
traduzida por mim.
61
sensível – que tenho medo de tocá-lo”2. Ao final das duas cartas,
percebemos que a “morte” de seu pensamento, resultante de um longo
processo de sofrimento, é reflexo de sua mais importante constatação
anterior, a descoberta do Nada.
Após essa descoberta (relatada a Henri Cazalis, no ano de 1866, e
discutida no capítulo anterior), Mallarmé se encontrava em um abismo.
Logo após cavar o verso e encontrar a “transcendência vazia”3 do Nada, ele
tem a visão de uma Obra que, naquele momento, ainda não estava bem
definida. Essa revelação, ainda que obscura, deflagra uma verdadeira
revolução em seu pensamento. Como ele relata nas duas cartas de 1867,
todo o seu sofrimento, a “horrível sensibilidade” que ele afirma ter
adquirido durante o processo de descoberta, culminam na “morte de seu eu
pessoal”. Os danos sentidos e os triunfos dessa mudança lhe servem como
uma preparação para seu “desaparecimento subjetivo”, ou para o ponto em
que ele se torna impessoal. Em outros termos, para que essa obra - a Obra,
segundo ele próprio – pudesse ser efetivamente realizada, ele deveria elevar-
se a uma categoria universal que ele chamaria de absoluto, e que Hugo
Friedrich tenta associar à categoria do Nada: “O absoluto conserva esse
nome, entretanto, porque deve ser cortado das categorias do tempo, do
lugar, e da coisa, mas, uma vez realizado esse desligamento, ele toma o
nome de nada”.4
Esse esvaziamento da temporalidade, do espaço e da significação, já
anteriormente discutido, nos aponta – na obra de Mallarmé - para um desejo
de vivência de um ideal literário. Pois, além de uma simples descoberta,
esse absoluto literário encontraria um desenvolvimento, uma encenação
possível no espaço do verso. E isso se refletiria na necessidade, expressa nas
2 “(…) ma pensée est si nue encore et si horriblement sensible – que j’ai peur d’y toucher.”
(MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Eugène Lefébure” [27 de maio de 1867] in
Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand (éd). Paris: Gallimard, 1995,
p. 348). 3 Cf. FRIEDRICH, Hugo. Structure de la poésie moderne. Paris: Librairie Générale
Française, 1999. 4 “L’absolu conserve cependant ce nom parce qu’il doit être coupé des catégories du temps,
du lieu, de la chose, mais, une fois ce détachement accompli, il prend le nom de néant”.
(Idem, ibidem, p. 175).
62
cartas, de se criar uma “Obra” que fosse radicalmente inédita, embora
reveladora desse absoluto, ou “a genericidade da literatura, apreendendo-se
e produzindo-se a si própria em uma Obra inédita, infinitamente inédita. O
absoluto, por conseqüência, da literatura”5.
Essa busca do absoluto selaria um comprometimento radical com a
escrita. Ela viria representar o desaparecimento dos traços pessoais do
escritor enquanto texto, posto que o autor dessa Obra não poderia ser
Mallarmé – “desaparecido” na crise de 1867 – e também nenhum outro
autor. Uma das características inéditas dessa Obra se traduziria pela própria
radicalidade desse processo de abolição da autoria. Anos mais tarde, Roland
Barthes escrevia em seu famoso texto “A Morte do Autor”:
Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a
sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no
lugar daquele que até então se supunha ser o seu
proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que
fala, não é o autor; escrever é, através de uma
impessoalidade prévia [...], atingir aquele ponto em que só
a linguagem atua, «performa», e não «eu»: toda a poética
de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da
escrita6 [...].
O fato de Barthes ter estudado e amplificado posteriormente essa
“morte do autor”, que teve sua primeira aparição em Mallarmé, mostra a
importância dessa “descoberta”. Mas é interessante observar que, para
chegar a isso, Mallarmé relata, na primeira carta de 1867, uma briga com a
imagem primordial e metafórica do Absoluto: Deus, “essa velha e medíocre
plumagem”7. Ele afirma ter se libertado de Deus, e após essa disputa com
ele, encontra-se imerso nas Trevas Absolutas de onde brotaria sua Obra,
nascida do questionamento de toda impressão já conhecida:
5 “La généricité […] de la littérature, se saisissant et se produisant elle-même en une
Oeuvre inédite, infiniment inédite. L’absolu, par conséquent, de la littérature”. (LACOUE-
LABARTHE, Philippe ; NANCY, Jean-Luc. L’Absolu Littéraire. Théorie de la Littérature
du Romantisme Allemand. Paris : Seuil, 1978, p. 21). 6 BARTHES, Roland. “A Morte do Autor” in O Rumor da língua . Trad. Mário Laranjeira.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. 7 Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [14 de maio de 1867].
63
Criei minha Obra somente por eliminação, e toda verdade
adquirida nascia apenas da perda de uma impressão que,
tendo cintilado, se havia consumido e me permitia, graças
às suas trevas liberadas, avançar mais profundamente na
sensação das Trevas Absolutas. A Destruição foi minha
Beatriz8.
Por eleger a Destruição como sua musa, Mallarmé atesta que "o
reconhecimento do Nada e a luta contra o Ser [...], nomeado Deus, são um
único e mesmo momento da [sua] busca"9. Para que a visão dessa Obra
única se mostrasse plausível, era necessário acabar com qualquer impressão
que pudesse lhe atribuir um sentido previamente conhecido, automatizado,
“cintilado”, ou até mesmo divino. E essa eliminação também vale para o “eu
pessoal” do poeta – que agora se encontra “perfeitamente morto”. Por isso,
tanto a “briga” com Deus - e a conseqüente imersão nas Trevas Absolutas -
quanto o reconhecimento do Nada fazem parte de um rompimento com um
estado de pensamento anterior.
A necessidade de formar um método que traduzisse - ou ainda que
mostrasse - essa “perda” explicita um distanciamento em relação ao
Mallarmé anterior: spleenético e, de certa forma, até romanticamente
idealista. Essa visão do poeta demasiadamente sensível contrasta com a
postura que ele assumirá após a descoberta do Nada. Sem dúvida, essa
descoberta se apresenta como um contraponto na maneira de tratar certos
temas recorrentes em sua poesia. Essa mudança transparece no próprio
processo de elaboração de um método próprio que “fingisse” um ideal
literário. Pois esse ideal, longe da aspiração romântica da plenitude,
apontaria antes para uma possível superação da Impotência que tanto
perseguiu Mallarmé, conforme foi mostrado no capítulo anterior. E para
conceber esse método, ele recorre à obra de Edgar Allan Poe, como tentarei
mostrar a seguir.
8 “[…] je n’ai créé mon Oeuvre que par élimination, et toute vérité acquise ne naissait que
de la perte d’une impression qui, ayant étincelé, s’était consumée et me permettait, grâce à
ses ténèbres dégagées, d’avancer plus profondément dans la sensation des Ténèbres
Absolues. La Destruction fut ma Béatrice”, (MALLARMÉ, S. Op cit, p. 349). 9 BENICHOU, P. Op cit, p. 44.
64
De fato, os poemas e escritos de Mallarmé até o ano de 1867
mostravam uma forte influência de Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, o
que ele não se preocupava em esconder. Em diversas cartas, principalmente
no ano de 1864, as alusões ao spleen baudelairiano e à “filosofia da
composição” de Poe são bastante visíveis. Mas o diálogo com Poe e
Baudelaire prevalece mesmo após 1864. Sobretudo se lermos as duas cartas
já mencionadas à luz do método esclarecido por Poe em seu texto “Filosofia
da composição”, e traduzido para o francês por Charles Baudelaire, o que
aumenta a ligação entre os três. Poderíamos dizer que o longo processo de
“perda” do pensamento que Mallarmé descreve e que culmina em uma
síntese final (ou “Concepção Pura”), ou ainda na morte de seu “eu pessoal”,
remeteria ao que Poe/ Baudelaire chama de efeito geral ou efeito a produzir
em uma obra de arte10
, e que deveria ser a primeira de todas as
considerações anteriores ao processo da escrita: “Para mim, a primeira de
todas as considerações é aquela de um efeito a produzir”11
. Escolhido o
efeito, necessita-se de um começo, que, especificamente no caso do poema
“O Corvo”, nasceria nos últimos versos, ou seja, no fim. Também parece ser
o caso de Mallarmé ao vislumbrar e delimitar sua Obra após a morte ter
invadido seu pensamento e seu próprio ser: “Começarei então pelo que
devia ser o fim”12
.
Se considerarmos essas duas cartas por um viés ficcional, diríamos
que o processo de “perda”, do abandono de um pensamento anterior já faria
parte de uma grande encenação do projeto da Obra que justificaria a
intenção ou o efeito pretendido pelo autor. Esse efeito consistiria em dar à
Obra o status de inédita, singular. E encenar esse efeito seria considerar e
dispor cada uma das situações ou momentos da evolução de um enredo.
10
No caso do texto “Filosofia da composição”, Poe toma seu poema intitulado “O corvo”
como exemplo. 11
“Pour moi, la première de toutes les considérations, c’est celle d’un effet à produire.”
(POE, Edgar Allan. Traduzido por Charles Baudelaire. “La Genèse d’un Poème” in
Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade, 2 vol. Paris: Gallimard, 1976, p. 984). 12
Cf. Mallarmé escreve essa frase em carta a Villiers de l’Isle-Adam, em 1 de outubro de
1867, ao mencionar seu projeto de um livro sobre a Beleza, que se chamaria “Esthétique du
Bourgeois” ou “Théorie Universelle de la Laideur”: “Je commencerai donc par ce qui
devait être la fin”. (MALLARMÉ, S. Op. cit., p. 369).
65
Pois, segundo o método de Poe, antes de a pena tocar o papel, seria
necessário um plano capaz de garantir a realização da composição, “fazendo
com que todos os incidentes, e particularmente o tom geral se submetessem
ao desenvolvimento da intenção”13
almejada. Essa tese ganha ainda mais
força se aprofundarmos um pouco mais a leitura do texto de Poe por meio
do processo descrito por Mallarmé nas cartas. Em sua “Filosofia da
Composição”, Poe afirma:
De todos os temas melancólicos, qual é o mais melancólico
segundo a inteligência universal da humanidade? – A
morte, resposta inevitável. – E quando, diga-me, esse tema,
o mais melancólico de todos, é o mais poético? [...]
Quando ele se alia intimamente à Beleza14
.
Em suma, a morte, que viria representar a “perda” de um estado
melancólico do pensamento (que parece dominar a poesia do jovem
Mallarmé até 1866), encaixa-se perfeitamente na afirmação de Poe. Assim,
a longa descida às Trevas permite a Mallarmé reconhecer que a verdadeira
“tese” da poesia e da arte em geral consiste no efeito do Belo, pois “o Belo é
o único domínio legítimo da poesia”15
: “Depois de ter encontrado o Nada,
eu encontrei o Belo”16
, ele nos confessa. E dentro desse domínio, o poeta se
utiliza da singularidade dessa Beleza para desenvolver sua Obra. No
entanto, essa singularidade não passa também de uma impressão (uma
“excitação ou o delicioso arrebatamento [enlèvement] da alma”), não se trata
de uma qualidade inerente ao objeto artístico, mas de um efeito que só na
Poesia teria sua expressão.
Na verdade, a relação de Mallarmé com o “Belo” é bastante
complexa e contraditória, e se insere na discussão proposta por ele ao criar
essa “nova poética de efeitos”. Tendo perdido, na Modernidade, o “véu” que
13
“[...] en faisant que tous les incidents, et particulièrement le ton général, tendent vers le
développement de l’intention ” (POE, E. Op. cit., p. 984). 14
“De tous les sujets mélancoliques, quel est le plus mélancolique selon l’intelligence
universelle de l’humanité? – La Mort, réponse inévitable. – Et quand, me dis-je, ce sujet, le
plus mélancolique de tous, est-il le plus poétique? [...] C’est quand Il s’allie intimement à la
Beauté. ” (POE, E. Op. cit., p. 990). 15
“Le Beau est le seul domaine légitime de la poésie” (POE, E. Op. cit., p. 987). 16
Cf. FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 162.
66
lhe dava o status de divina, a Beleza aparece agora de uma forma profanada
na obra de Mallarmé, ou seja, como um último vestígio, um fragmento, uma
reincidência que nos remete a uma totalidade e a uma perfeição. Por isso seu
caráter contraditório. Na carta, além de eleger a Destruição como sua musa,
Mallarmé afirma ter encontrado a Beleza imersa “nas Trevas Absolutas”.
Essa Beleza, proveniente de um encontro das “trevas”, seria então uma
alegoria de um ideal da Beleza, que se afasta assim, por meio dessa poética
de efeitos, de toda a impressão, de todo sentido já conhecido. Dessa forma,
o Belo também se mostra esvaziado, seu “túmulo” encontra-se profanado
pelo processo de escavação. E a única possibilidade de “recuperá-lo”, de
preenchê-lo, assumiria a forma de um efeito a ser perseguido, conquistado,
pelo poema.
Segundo Marcos Siscar, a “teoria do efeito” tal como concebida por
Mallarmé entraria em conflito “com o deslocamento que [ele] faz da
transcendência do sagrado”17
, e isso seria feito pelo viés da profanação, do
esvaziamento dessa transcendência, o que resultaria então na já referida
“transcendência vazia”. Como vimos, o vazio dessa transcendência se
definiria no espaço deixado pela “perda” das impressões “cintiladas” das
coisas, ou no próprio revestimento “sagrado” atribuído a elas. Essa
mudança, ou deslocamento, da transcendência sagrada para a profana
tornaria então essa teoria um “dispositivo de compreensão da coisa
humana”18
, que possibilitaria assim um “ajuste”, ou ainda, uma forma de
dramatização da poesia na história. E isso se aplica, por exemplo, à estrutura
– ou à própria intenção – do projeto mais audacioso de Mallarmé no ano de
1864: o poema- tragédia “Hérodiade”. A personagem, sendo originária de
uma história bíblica19
, vai sofrer, na obra de Mallarmé, um esvaziamento,
uma destituição dessa “origem”. É o que nos explica Siscar:
17
SISCAR, Marcos. “Poesia Cou Coupée” in Poesia e Crise: ensaios sobre a “crise da
poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p.76 18
Idem, ibidem, p.76. 19
Hérodiade era filha de Salomé, que no Novo Testamento é apontada como a responsável
pela morte de São João Batista.
67
Da figura antiga, Mallarmé retira o conteúdo
representativo, noticioso ou narrativo [...] e destaca o
elemento estruturante da cumplicidade entre a beleza e a
crueldade. Ou seja, tenta preservar o dramático da cena20
.
Mesmo tentando preservar o elemento dramático da cena, o desejo
de Mallarmé não era simplesmente “recontar” a história de Hérodiade, tal
como conhecida através da Bíblia. Ao afirmar insistentemente que gostaria
de concebê-la como a expressão máxima da Beleza (“Em uma palavra, o
tema de minha obra é a Beleza, e o assunto aparente é apenas um pretexto
para ir ao seu encontro”21
), ele a exploraria pela dramatização de sua
cumplicidade com a “crueldade” do próprio processo de escavação e de
perda das impressões que sofre o verso. Sendo a Beleza, segundo Mallarmé,
a própria palavra da Poesia (“Creio eu ser esta a palavra da Poesia”22
), ele
reivindicaria por Hérodiade o direito a essa fala. Assim, o poema apareceria
então:
Como figura que coloca em jogo a invenção daquilo que é
apresentado como uma ‘poética muito nova’, relacionada
com a famosa ‘crise de versos’, ou seja, com um certo
modo de conceber a inserção da poesia na história23
.
Por meio desse poema, que se tornará um verdadeiro fetiche para
Mallarmé, ele sonhava então alcançar a forma perfeita, ideal, que viria
expressa pelo método de Poe, o perfeito “POEma”: “Eu terei enfim feito o
que sonho ser um POEme , - digno de Poe e que os seus não
ultrapassarão”24
. Essa “busca” do perfeito POEma se fundamenta em uma
declaração anterior feita ao mesmo Cazalis, em 30 de outubro de 1864. Para
que isso fosse possível, seria necessário criar uma língua “que deve[sse]
necessariamente jorrar de uma poética original/ nova”: “Pintar, não a coisa,
20
SISCAR, M. Op. cit., p.76. 21
“En un mot, le sujet de mon oeuvre est la beauté, et le sujet apparent n’est qu’un pretexte
pour aller vers Elle.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Villiers de l’Isle-Adam” [31 de dezembro
de 1865] op. cit., p. 279). 22
“C’est, je crois le mot de la Poésie”. (Idem, ibidem, loc cit.) 23
SISCAR, M. Op. cit., p. 71. 24
(grifo meu) “[...] j’aurait enfin fait ce que je rêve être un Poeme, - digne de Poe et que les
siens ne surpasseront pas”. (MALLARMÉ, S., “Carta a Henri Cazalis [28 de abril 1866],
op. cit., p. 297”).
68
mas o efeito que ela produz”25
. Nessa “nova poética”, como nota Marcos
Siscar, “o poeta visa[ria] à produção de um efeito que é chamado
tradicionalmente de estético”. Definido o efeito, Mallarmé teria já o plano
de sua obra e de sua teoria poética:
Tenho o plano da minha obra e sua teoria poética que será
essa: ‘Oferecer as mais estranhas impressões, é claro, mas
sem que o leitor por elas esqueça sequer um minuto o
prazer que lhe proporcionará a beleza do poema26
.
A base dessa nova estética seria percebida então pelas sensações
proporcionadas pela escrita. "Trata-se de sugerir as sensações, e não mais
somente de as suportar"27
. Ou seja, ao invés de apostar em uma arte que
evocaria determinados significados já conhecidos, Mallarmé sugere uma
arte cujo foco não está na apreensão do objeto em si - nem de seu sentido
mais comum, usual – mas nos efeitos – ou intenções – que podemos aplicar
a ele. Mallarmé não narra o objeto, antes o sugere. Pois segundo ele próprio,
“nomear um objeto é suprimir os três quartos do prazer do poema que é
feito de revelar pouco a pouco: sugeri-lo, esse é o sonho”28
. A possibilidade
de evocação permitida nessa poética atribuiria ao objeto um poder
“encantatório”, uma espécie de “feitiçaria evocatória”, como observa
Baudelaire29
. Para “salvar uma língua”, livrá-la de seu aspecto mais usual,
medíocre, seria preciso revesti-la de um efeito “sobrenatural”, alcançado
pela exploração de sua capacidade sugestiva que abrange os campos da
significação e da sensação oculta.
25
“[...] J’ai enfim commencé mon Hérodiade. Avec terreur, car j’invente une langue qui
doit nécessairement jaillir d’une poétique très nouvelle, que je pourrais définir en ces deux
mots: Peindre, nom la chose, mais l’effet qu’elle produit.” (MALLARMÉ, S. “Carta a
Henri Cazalis” [30 de outubro de 1864], op. cit., p. 206). 26
“J’ai le plan de mon oeuvre, et sa théorie poétique qui sera celle-ci: ‘donner les
impressions les plus étranges, certes, mais sans que le lecteur oublie pour elles une minute
la jouissance que lui procurera la beauté du poème’” (Idem. “Carta a Villiers de l’Isle-
Adam” [31 de dezembro de 1865], op. cit., p. 279). 27
BENICHOU, P. Op. cit., p. 41. 28
MALLARMÉ, S. in FRIEDRICH, H. Op. cit., p. 171. 29
Cf. BAUDELAIRE, C. “Salon de 1846” in Oeuvres complètes. Bibliothèque de la
Pléiade, 2 vol. Paris: Gallimard, 1976.
69
O próprio ato de sugerir já desperta no leitor as emoções, ou os
efeitos, previamente escolhidos pelo autor. “A alma do leitor frui
absolutamente como o poeta quis”30
. Além de lhe proporcionar um efeito
requerido, a sugestão de um objeto ou nome faz com que igualmente surja
na alma do leitor uma ideia. Assim, captar o efeito, e não a coisa em si,
significa para Mallarmé a abolição do objeto, e igualmente a aquisição de
uma ideia. Esvaziar o objeto para nele encontrar seu “nada” significa dar a
ele a possibilidade de aquisição de algo “novo”, porém, muitas vezes,
problemático e indecifrável:
A recusa de nomear o objeto, e o conselho de evocar uma
direção pela impressão que ele produz não estão
evidentemente separados da experiência do Nada: o verbo
poético renuncia a acabar com o ser tenebroso e
problemático das coisas; ele as faz aparecer nelas mesmas
na distância e na alusão, condições novas do Belo. Nesse
sentido, a poética da sensação rejunta e acompanha, em um
mesmo espírito de solidão, a técnica do enigma31
.
Mallarmé afirma ainda que se o nome Hérodiade não existisse, ele o
teria inventado, pela magia da sugestão e pelo poder das palavras que fazem
renascer diante dos olhos do pensamento a imagem daquilo que não mais
está – ou que nunca esteve – presente. Nessa obra, segundo ele próprio, a
mais bela página conteria apenas o nome Hérodiade. “Sombria e vermelha
como uma romã [grenade] aberta”32
, tudo começaria a ganhar forma por
essa palavra, clef de voûte, ou centro de sua própria criação33
. Essa
cintilação imanente às palavras34
remete - para Poe – a “uma certa soma de
complexidade, ou mais propriamente de combinação”, por isso, elas
formariam – na obra de Mallarmé – uma estrutura que funcionaria como
30
Cf. Anexos: “Carta a Henri Cazalis” [7 de janeiro de 1864]. 31
“Le refus de nommer l’objet, et le conseil de l’évoquer de biais par l’impression qu’il
produit ne sont évidemment pas séparables de l’expérience du Rien: le verbe poétique
renonce à saisir l’être ténébreux et problématique des choses; Il les fait apparaître en lui-
même dans la distance et l’allusion, conditions nouvelles du Beau. En ce sens la poétique
de la sensation rejoint et accompagne, dans un meme esprit de solitude, la technique de
l’énigme.” (BENICHOU, P. Op. ci.t, p.40). 32
“Ce mot sombre, et rouge comme une grenade ouverte” (MALLARMÉ, S. “Carta a
Eugène Lefébure” [18 de fevereiro de 1865], op. cit., p. 226). 33
Cf. Idem, “Carta a Théodore Aubanel” [28 de julho de 1866], op. cit., p. 315. 34
Cf. Idem. “Carta a François Coppée” [5 de dezembro de 1866], op. cit., p. 328.
70
uma sinfonia e que desencadearia na obra “uma certa quantidade de espírito
sugestivo, algo como uma corrente subterrânea de pensamento, não visível,
indefinida”35
. Pintar esse espírito sugestivo, de maneira “intima e singular”,
como Mallarmé gostaria, seria apreender as impressões mais “estrangeiras”,
mas que se adequariam perfeitamente no “todo”, formando uma composição
íntima e singular. Nessa composição, somente após as palavras terem
adquirido seu “estado de maturação”, ou seja, livres de todas as impressões
“artificiais”, o poema atingiria sua forma independente, “natural”,
adquirindo vida própria, sem se submeter a um sentido já automatizado. É o
que Mallarmé define, a Théodore Aubanel36
, como “lei natural do verso”37
.
Segundo Maurice Blanchot, no livro A Parte do Fogo, a palavra em
Mallarmé só adquiria sentido quando nos livrava do objeto que nomeia38
. O
poema ideal, “natural”, como queria Mallarmé, seria então pura
transposição, não teria compromisso com o sentido das coisas, funcionando
somente enquanto “noção pura”. Como afirma Mallarmé no final de “Crise
de Verso”:
De que serve a maravilha de transpor um estado de fato em
seu quase desaparecimento vibratório segundo o jogo da
palavra, entretanto; senão para que dele emane, isenta do
incômodo de um próximo ou concreto apelo, a noção
pura39
.
Essa abolição do objeto que tenderia ao surgimento de uma idéia,
como já foi discutido, poderia também levar à abolição da materialidade
dessa linguagem. Uma característica dessa linguagem autêntica, essencial,
segundo Mallarmé, seria pintar a ausência produzida pela eliminação do
35
“[...] l’une, une certaine somme de complexité, ou, plus proprement, de combinaison;
l’autre, une certaine quantité d’esprit suggestif, quelque chose comme un courant souterrain
de pensée, non visible, indéfini” (POE, E., op. cit., p. 996). 36
Théodore Aubanel (1829-1886) foi um poeta e tipógrafo francês muito próximo de
Mallarmé, quando ele ainda trabalhava em Tournon. Mesmo depois de sua mudança, os
dois continuaram a se corresponder até a morte de Aubanel. 37
Cf. MALLARMÉ, S. “Carta a Théodore Aubanel” [16 de julho de 1866], op. cit., pp.
311-314. 38
Cf. BLANCHOT, Maurice. “O Mito de Mallarmé” in A parte do Fogo. Tradução Ana
Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. 39
MALLARMÉ, Stéphane. “Crise de verso”. Tradução de Ana Alencar. Inimigo Rumor.
Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008, p. 160.
71
objeto, o que implicaria um risco. Esse risco consiste no emudecimento de
qualquer discurso significativo. Mallarmé, de acordo com Blanchot, “não
teme privilegiar a linguagem em detrimento do pensamento; como poderia
temê-lo?”40
. Por isso, ao evidenciar a linguagem em seu estado bruto, puro,
apostaria também em destruir a realidade material das coisas com seu poder
abstrato e “destruir com o poder de evocação sensível das palavras esse
valor abstrato”41
. Sendo assim, o que restaria a essa linguagem a não ser o
silêncio?
À primeira vista, esse silêncio parece ter dominado a obra de
Mallarmé até 1897, ano de publicação de “Um Lance de Dados Jamais
Abolirá o Acaso”42
. Pois, apesar de seus poemas, textos críticos e traduções
– incluindo “Hérodiade” e uma tradução de “O Corvo”, de Poe – serem
publicados em revistas e jornais esparsos, Mallarmé ainda era um escritor
“sem livro”. Suas “terças-feiras na rue de Rome” já eram famosas e
freqüentadas pela nata da intelectualidade da época, mas ainda lhe faltava
um livro (para ele, o Livro). Mas para Mallarmé, esse silêncio não
significava um fracasso, pois não se colocava numa oposição à escrita desse
Livro. Ao contrário, ele representava antes o continuum da palavra, seu
próprio parti pris; e, sendo assim, aparecia “como a possibilidade derradeira
da palavra, (...) única exigência válida”43
. Ocorreria então um movimento
oposto, Mallarmé tentaria dar forma a esse silêncio, materializar a ausência
oriunda das palavras. Ao fazer isso, ele esperava que o verso seguisse sua
“lei natural”, um estado que seria alcançado quando as palavras atingissem a
maturação necessária para que o poema pudesse se “destacar”. Como se
40
BLANCHOT, M. Op. cit., p. 39. 41
Idem, ibidem, p. 39. 42
O poema é publicado pela primeira vez na revista Cosmópolis, e, segundo Joaquim
Fontes, “deveria aparecer no ano seguinte sob forma de livro, com litografias de Odilon
Redon, projeto jamais levado a bom termo: o pintor se sentia desesperadamente incapaz de
uma interpretação visual do poema; e Mallarmé, antes de rever as provas, recebe a visita da
morte.” (FONTES, Joaquim Brasil. Os anos de Exílio do Jovem Mallarmé. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2007, pp. 63-64.) 43
BLANCHOT, M. Op. cit., p. 42.
72
elas, agora, “longe de nos desviarem das coisas, devessem ser delas o
decalque material”44
.
A tarefa de materializar esse silêncio levaria Mallarmé à exploração
dos “brancos da página”. “Tanto que prefiro, segundo o meu gosto, uma
página em branco”45
, profetiza ele. A página branca, unidade que, na carta
sobre “l’Azur”, despertava o pavor por “demandar os versos por muito
tempo sonhados”, é vista agora como um espaço privilegiado de
significação, um “significativo silêncio”, diria Mallarmé. Tão belo quanto o
verso46
, esse silêncio levaria o poeta à exploração de sua “brancura vazia”,
“envoltório de um nada”. Mas afinal, “tudo isso é linguagem, mas
linguagem que, expressando o vazio, deve finalmente ainda expressar o
vazio da linguagem”47
. Essa expressão aparece então materializada em um
poema: “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”. Através desse poema,
Mallarmé considera a possibilidade de esse silêncio nos dizer alguma coisa.
Ora pelo espaçamento dos “brancos” da página e pela disposição tipográfica
usada, ora pela indeterminação do sentido derivada do ato de “cavar” o
verso, uma das principais constatações que emana do poema é a
impossibilidade de eliminação total do acaso na língua, assim como da
arbitrariedade das palavras.
Sendo assim, essa constatação leva Mallarmé a apostar, em “Um
Lance de Dados”, num espaço possível para a literatura. Onde “lançar os
dados” seria, em uma breve e simplória interpretação do poema, colocar o
acaso da linguagem “em jogo”, ou ainda, dramatizá-lo, mas não para anulá-
lo, e sim para encená-lo, simulá-lo enquanto possibilidade do espaço
poético. Porém, a simulação desse acaso torna o percurso do poema, do
início até seu fim, caótico e duvidoso. Essa dúvida começa já no título (“Um
lance de dados jamais abolirá o acaso”) e, paradoxalmente, termina no seu
44
Idem, ibidem, p.45. 45
MALLARMÉ, S. in BLANCHOT, M. Op. cit., p. 45. 46
Cf. “L’armature intellectuelle du poème se dissimule et tient – a lieu – dans l’espace qui
isole les strophes et parmi le blanc du papier: significatif silence qu’il n’est pas moins beau
de composer, que les vers.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Charles Morice” [27 de outubro de
1892], op. cit., p. 613.) 47
BLANCHOT, M. Op. cit., p. 43.
73
ápice, o verso final (“Todo pensamento emite um Lance de Dados”). Entre
eles existe um hiato, um branco que pode ou não significar alguma coisa. É
interessante perceber que pela inversão do título e do verso final do poema,
poderíamos construir uma pergunta: “Se todo pensamento emite um Lance
de Dados, um lance de dados jamais abolirá o acaso?” A resposta para essa
pergunta não parece encontrar lugar no poema. Como vimos, por mais
estruturado e organizado que seja, todo pensamento, quando aplicado ao
verso, estará sempre à mercê do acaso, pois ele encontra-se presente em
qualquer aposta e/ou escolha de determinada possibilidade do verso. Sendo
assim, essa questão nos remete a uma aporia. E se admitirmos ainda que
“todo pensamento poético é um lance de dados”, e que a palavra hasard
(acaso) deriva do árabe az-zahr, cujo significado designa “um jogo de
dados”, formamos uma tautologia: “Um pensamento emite um pensamento”
e “um lance de dados nunca abolirá o lance de dados”.
Segundo Georges Poulet, em La pensée indéterminée, essa
indeterminação do pensamento presente em Mallarmé se origina na
constatação de uma ruptura entre dois momentos: um que representaria um
passado edênico, onde os conceitos eram completos [comblés], e as formas
iguais e únicas; e outro que representaria a “queda” e o exílio do homem
destituído desse “Paraíso” e forçado a viver em um presente que usurpa seu
lugar48
. Na distância entre esses dois momentos, ou dois pontos - de acordo
com Poulet - o “discurso indeterminado” de Mallarmé começa a se formar.
Em “Um Lance de Dados”, ao invés de tentar novamente juntar esses
pontos, acabar com essa “distância”, ele vai dar forma a esse hiato, cuja
criação vai ser marcada pela consciência da divisão do mundo – outrora
“único e singular” – em mil fragmentos. O reconhecimento dessa
fragmentação seria então encenado no poema, e representaria uma resposta
negativa, um não “extraordinariamente fechado”49
à possibilidade de
48
POULET, Georges. “Mallarmé” in La pensée indéterminée II. Du Romantisme au XX
siècle. Presses Universitaires de France: Paris, 1987. 49
Cf. Idem, Ibidem, p. 188.
74
retorno a um discurso unívoco e singular. Assim, a aporia surgida do
questionamento do sentido do poema simboliza esse “fechamento”.
Mas para se chegar a esse entendimento, é necessário antes
confrontar-se com duas visões, aparentemente inversas e contraditórias que
surgem ao lermos o poema, ou seja, no ato de sua recepção. Uma que
concebe “Um Lance de Dados” como uma vasta unidade indeterminada,
incompreensível, e outra que o enxerga em sua multiplicidade de elementos
distintos e que funcionariam assim, pela sua diferença, como um todo
determinado. Por isso, sua recepção torna-se tão confusa, o que nos leva até
a especular se existe ou não um sentido que lhe possa ser atribuído. Pois, de
acordo com Poulet, “Mallarmé parece jogar perpetuamente com as
experiências que nos faz fazer [...] Tudo se passa como se [...] o próprio
alicerce do real se encontrasse em jogo”50
. E por esse jogo, Mallarmé
experimenta em “Um Lance de Dados” a linguagem de todas as formas. As
palavras, diante da abundância dos espaços em branco, parecem se apagar,
figurando apenas como meros contornos do branco, “desenho espaçado de
vírgulas e de pontos... melodia nua”51
, como diz Mallarmé no prefácio do
poema. Exatamente por colocar esse real “em jogo”, a “promessa” de um
sentido garantido – ou de uma visão preterida - no fim do poema fica então
suspensa. Não há nem mesmo a certeza, para o leitor, se o mestre atirou ou
não os dados, e é essa incerteza que o confronta, mas, ao mesmo tempo,
também lhe garante, frente a esse “vazio”, a possibilidade de apostar em um
sentido, de “jogar” ou não os dados.
Essa aposta do leitor em um “sentido” não se resume apenas a uma
escolha arbitrária. Mallarmé já dizia que o sentido, se ele existisse, seria
criado por uma miragem interna das palavras que compõe o poema. Elas
imediatamente despertariam ao receptor múltiplas sensações, que levariam à
aquisição de uma ideia. Por isso, apostar em um sentido para um poema é
50
“Mallarmé semble jouer perpétuellement avec les expériences qu’il nous fait faire [...]
Tout se passe comme si, [...], l’assise même du réel ele-même se trouvait mise en jeu”
(Idem, ibidem, p. 189). 51
MALLARMÉ, S. in BLANCHOT. M. Op. cit.
75
deixar-se levar pelas impressões que dele se destacariam, pelo efeito
previamente produzido pelo autor. E essa parece ser a recepção almejada
por Mallarmé. Como parece ter sido a sensação de Paul Valéry ao ler pela
primeira vez “Um Lance de Dados”, e nos dar sua confissão em Variété II:
Creio ter sido o primeiro homem que viu essa obra
extraordinária. [...] Mallarmé tendo lido [...] seu Um Lance
de Dados, como simples preparação a uma grande
surpresa, me fez enfim considerar o dispositivo. Lembro-
me de ver a figura de um pensamento, pela primeira vez
posto em nosso espaço. [...] A espera, a dúvida, a
concentração eram coisas visíveis. [...] Eu contemplava
comodamente inapreciáveis instantes: a fração de um
segundo, em que se desponta, brilha e se apaga uma ideia.
[...] O todo me fascinava como se um novo asterismo no
céu fosse proposto, como se uma constelação tivesse
nascido e tivesse enfim significado alguma coisa. [...] Eu
me sentia livre na diversidade de minhas impressões, [...]
procurava uma resposta no meio de milhares de questões
surgidas e que me impediam de perguntar qualquer coisa.
Imerso em um complexo de admiração, resistência,
interesse apaixonado, analogias em estado nascente, diante
dessa invenção intelectual52
.
A “confusão” de sensações de Valéry justifica o efeito geral
pretendido por Mallarmé. Pois, ainda que por uma fração de segundo, ou em
inapreciáveis instantes, vemos surgir diante de nós uma ideia visível, “a
figura de um pensamento” disposta em toda a sua complexidade, como uma
constelação em que pequenos elementos juntos pudessem então “significar
alguma coisa”. É por isso que “Um Lance de Dados” está incrustado na
própria essência do Livro. Haja vista que esse Livro deveria ser a explicação
órfica da Terra, a condensação de todos os discursos em um só, que nele
também residiria a origem, e, ao mesmo tempo, o fim de todo pensamento,
de todo discurso. Esse Livro só poderia aparecer então enquanto fragmento,
disposto em “subdivisões prismáticas da Idéia”53
:
52
Cf. VALÉRY, Paul. “Le coup de dés” in Variété I et II. Paris: Gallimard, 1998, pp 264-
270. 53
MALLARMÉ, S. “Crise de verso” in op. cit., p.151
76
Que mil vezes eu rejeitei, o espírito ferido ou cansado, mas
isso [o Livro] me possui e pode ser que eu consiga, não
fazer essa obra em seu todo (era preciso ser não sei quem
para isso!), mas mostrar um fragmento dela executada
[...] Provar por porções feitas que esse livro existe54
.
A existência desse Livro55
poderia ser comprovada na fração de um
segundo, tempo possível para que uma ideia desponte visivelmente para
nós, e tendo então sido cintilada, se apague, retorne ao Nada. O que sobraria
dessa cintilação que pudesse ser apreendido pela escrita? Apenas o rastro
desse movimento cíclico que permanece “visível”. Como nos explica
novamente Poulet: “Alguma coisa de insubstancial [...] se interpõe, e essa
interposição é a única coisa que subsiste de todo o evento”56
. E esse
“insubstancial” seria a própria “figura de um pensamento, pela primeira vez
posto em nosso espaço”, segundo Valéry.
Essa aposta de Mallarmé no pensamento seria simbolizada pela
apologia da página branca. Considerada agora - em “Um Lance de Dados” -
como uma unidade (destituída da linha que a dividia ao meio), ela se
transforma em uma enorme lacuna, um enorme espaço passível de ser
preenchido por possíveis cintilações de ideias, em constante movimento.
Dessa forma, pelo poema, Mallarmé gostaria de atingir a “expansão total da
letra”, em que “constelações de palavras pingadas em uma folha de papel
branco”57
pudessem expressar, segundo Octávio Paz, um “poema
impessoal”, cuja autoria não se atribuiria a Mallarmé, pois “através do
poeta, que já não é mais que uma transparência, fala a linguagem”58
.
Portanto, esse “poema impessoal” aparece como um fragmento possível da
Obra pura, que se mostra a Mallarmé em 1867. A primazia da linguagem e
do pensamento, conforme visto em “Crise de Verso”, implicaria no
desaparecimento elocutório do poeta, que, consequentemente, cederia
54
(grifo meu) MALLARMÉ in BENICHOU, P. Op. cit., p. 56. 55
Mallarmé oscila em relação à grafia dessa palavra. Ora ele a escreve com maiúscula, ora
com minúscula. 56
“Quelque chose d’insubstantiel [...] s’interpose, et cette interposition est la seule chose
qui subsiste de tout l’événement.” (POULET, G. Op. cit., p. 188.) 57
Cf. FONTES, J. Op. cit., p 19. 58
PAZ, O. Op, cit., p. 103.
77
iniciativa às palavras. Sendo assim, esse Livro existira “sozinho”, aquém e
além de um autor, como o próprio Mallarmé escreve em Divagações: “O
Livro, contanto que dele nos separemos como autor, [...], entre os acessórios
humanos, ele existe sozinho: feito, sendo”59
. Cabe ao poeta que estiver
“interessado em ver” essa Obra a tentativa de transpô-la à escrita apenas
enquanto receptor. A partir de 1866, o desenvolvimento desse Livro passa a
ser então o principal assunto na correspondência, e o principal objetivo na
vida de Mallarmé, posto que essa Obra sempre se impôs como uma
presença real: “Acredito que tudo isso está escrito na natureza, de modo que
só se deixe de olhos fechados os interessados em nada ver. Essa obra existe,
todo mundo tentou fazê-la, sem o saber”60
.
Esse Livro, que se mostra como presença “perfeitamente delimitada”
com uma estrutura cambiante61
, porém definida (como uma tarefa acabada),
viria para coroar o fim “de tudo”. Isso porque seu conteúdo, sua “proposição
sumária” quer que o mundo exista para culminar em seu próprio fim. E esse
fim viria representar também para Mallarmé a “omissão de si”, não só pelo
apagamento de seus traços pessoais enquanto escritor, ou seja, “sua morte
autoral” descrita na carta de 1867 a Cazalis, mas implícita no medo de uma
“outra” morte, um “segundo abismo” como ele definiu na carta onde afirma
ter “cavado o verso”, aparentemente oculto e “esquecido:” “O outro vazio
que encontrei é aquele do meu peito. Tenho respirado verdadeiramente mal,
não consigo fazê-lo nem mesmo na volúpia de querer viver bem. Enfim, não
59
MALLARMÉ, S. “Quanto ao Livro” in Divagações/ Stéphane Mallarmé. Tradução e
apresentação Fernando Scheibe. Florianópolis : Ed. da UFSC, 2010, p 173. 60
MALLARMÉ, S. in BLANCHOT, M. Op. cit., p. 332. 61
Cf. Segundo Blanchot, “esse livro único é feito de vários volumes: cinco volumes, diz ele
em 1866, muitos tomos, afirma ainda em 1885. (...) Em 1867, ele <delimita> o
desenvolvimento da Obra a três poemas em verso e quatro poemas em prosa. Em 1871, mas
aqui o pensamento é um pouco diferente, anuncia um volume de contos, um volume de
poesias, um volume de crítica. No manuscrito póstumo, publicado por Jacques Scherer,
prevê quatro volumes, capazes de diversificarem-se em vinte tomos.” BLANCHOT, M. O
Livro por vir, pp. 327-328. Ainda sobre o Livro, afirma Paul Bénichou: "Quanto à natureza
da Obra, as indicações, nas mesmas cartas, são vagas e cambiantes: a Aubanel, ele fala de
cinco volumes, a serem escritos em vinte anos (...); a Cazalis, de três poemas em verso,
mais quatro em prosa sobre a "concepção espiritual do Nada", a ser feito em dez anos; a
Villiers, ele escrever que lhe resta a fazer dois livros, "um todo absoluto, Belo, outro
pessoal, Alegorias suntuosas do Nada". Nada disso, no entanto, teve sequência"
BÉNICHOU, P. Op. cit., p. 55
78
vamos falar sobre isso”62
. As “dores no peito”, conseqüência de problemas
de respiração, transformam a vida de Mallarmé em um constante alerta ao
“abismo da morte”. Esse medo se expunha em muitas de suas cartas e
alguns de seus poemas. Não é por acaso que “Um lance de dados” termina
em um naufrágio, seguido de um afogamento, ou seja, na impossibilidade de
respiração. A “descoberta” da finitude de seu pensamento (na carta a
Cazalis) e também de seu corpo, marcam para sempre esse processo de
feitura do Livro. Sabendo de sua saúde frágil, ele tenta concluir uma parte
desse projeto, que encontra expressão, por exemplo, em poemas como “Um
Lance de Dados”, “Hérodiade”, e “Igitur”, nos quais ele trabalhará
insistentemente até o fim da vida.
Mallarmé sofria por não ter tempo de traduzir integralmente esse
Livro, mesmo sabendo que ele só poderia existir enquanto fragmento. A
herança mais importante que sua aparição, ainda que encenada - “captada”
no rastro de sua ausência - nos deixa talvez seja a primazia da ideia, ou “o
nascimento de um espaço ainda desconhecido, o próprio espaço da obra”63
.
No fim de sua vida, num instante de saúde, ele percebe um novo espaço que
se abre, desconhecido talvez, mas imposto novamente. Sofrendo da dor no
peito que tanto o perseguiu, ele ainda encontra voz para confessar, em tom
de frustração, esse espaço, que poderia e deveria ter sido “muito belo”: não
um “livro-total”, mas o resumo de sua vida como artista. Em uma última
carta, escrita para a mulher e a filha, no momento de sua morte, ele delimita
o que deverá ser sua Obra:
Mãe, Vève,
O espasmo terrível de sufocação sofrido há pouco
pode se reproduzir durante a noite e triunfar sobre mim.
Então, vocês não se espantarão ao me ver pensar na pilha
semissecular de minhas notas, a qual só se tornará um
grande estorvo para vocês; estejam certas de que nem uma
62
(grifo meu) “Car l’autre vide que j’ai trouvé, est celui de ma poitrine. Je ne vais vraiment
pas bien, et ne puis respirer longuement ni avec la volupté du bien-être. Enfin, ne parlons
pas de cela.” (MALLARMÉ, S. “Carta a Henri Cazalis” [28 de abril de 1866] in op. cit. p.
298) 63
BLANCHOT, M. Op. cit., p. 344.
79
só folha pode ter utilidade. Eu mesmo, o único, poderia
extrair daí o que há... Eu o teria feito se os últimos anos
que faltam não me tivessem traído. Queimem,
consequentemente: não existe aí herança literária, pobres
crianças. Não a submetam sequer à apreciação de alguém:
ou recusem toda ingerência curiosa ou amiga. Digam que
não se decifrava nada, o que é verdade, no fundo, e, vocês,
minhas pobres abatidas, os únicos seres no mundo capazes
a este ponto de respeitar toda uma vida de artista sincero,
creiam que isto deveria ser muito belo.
Assim, não deixo uma só folha inédita, com exceção de
alguns fragmentos impressos que vocês encontrarão depois
de Um Lance de Dados e de Herodíade, terminada se a
sorte quiser64
.
O autor que tanto sonhou com uma Obra que pudesse abarcar a
totalidade do Universo e da escrita, acaba por ser obrigado a manter-se fiel à
realidade da vida ordinária. Vencido pelo “acaso” do tempo (faltaram-lhe os
anos preteridos), na necessidade imposta pela arte, ele se vê mais do que
nunca ligado ao que lhe ensinou Edgar Allan Poe. No final da sua
existência, consciente de sua mortalidade, ele vê surgir novamente sua obra.
Não mais um vislumbre de algo grandioso escrito na natureza - a Obra - que
ele relata em 1867, e sim uma obra que começaria do fim, de seu fim, só
que, dessa vez, nada mais que divagações dispostas ao acaso em
publicações imprevistas65
.
64
Cf. “Carta a Marie e Geneviève Mallarmé” Tradução de Joaquim Brasil Fontes. Op. cit.,
p. 64. 65
Em 1957, a edição póstuma dos manuscritos sobre o Livro é publicada por Jacques
Scherer sob o título Le “Livre” de Mallarmé. Premières recherches sur documents inédits.
Certamente, esse não era o Livro sonhado por Mallarmé.
CONCLUSÃO
(Ou Um Relance de Dados)
81
Como vimos ao longo dos capítulos, a transformação do pensamento
poético de Mallarmé deixa explícito dois momentos que podemos definir
como emblemáticos de sua poética. Segundo George Poulet, é exatamente a
consciência dessa ruptura que forma o pensamento “indeterminado” de
Mallarmé. E essa indeterminação vai possibilitar às próximas gerações
muitas interpretações distintas de sua obra. Caberia aqui ainda um breve
comentário sobre a relação adquirida e construída da recepção da obra de
Mallarmé ao longo do século XX. Sabendo que sua morte ocorre no limiar
dos séculos (1898), seu discurso não deixa de se projetar no novo século que
despertava. A dimensão e a apropriação tomada por esse discurso no cenário
literário europeu, especialmente nas vanguardas artísticas surgidas no início
do século XX, mostra como foi importante a releitura de Mallarmé e a
retomada de seu pensamento crítico. Por algum motivo e de alguma forma a
arte “pós-século XIX” procurava nele uma resposta ou um repúdio aos
caminhos por ela traçados ou impostos.
Se pensarmos no contexto histórico da “crise”, ela agora se
anunciava menos “refinada”, e, digamos, mais “fundamental”. O âmago
dessa questão consistiria principalmente na transformação sofrida no
cenário artístico e cultural europeu, ou, se quisermos mundial, que começa
já na segunda metade do século XIX e se consolida no século XX. Essa
transformação ganha proporções gigantescas e fundamentais com o apogeu
daquilo que denominamos técnica, ou progresso, como diria Baudelaire. O
surgimento de novas modalidades da arte - como a fotografia e o cinema -
fundamentadas na técnica coincide com a crescente difusão e
mercantilização do objeto artístico, possibilitadas agora pela sua
reprodutibilidade quase instantânea.
Essa crise também se deixa apreender por uma historicidade latente.
Ao longo dos capítulos desse trabalho vimos que, paralelamente ao
progresso tecnológico, opera-se um imponente esvaziamento geral dos
conceitos e uma ruptura dos ideais baseados em uma totalidade, em uma
82
unidade perfeita. “Ficamos pobres”, nos denunciava Benjamin1. Nessa
época de pobreza dos homens e das experiências, nessa “nova barbárie” –
para usar as palavras de Benjamin, o que sobra ao mundo, e,
consequentemente, à arte seria um grande vazio. O vazio aludido por
Mallarmé, oriundo do ato de “cavar o verso”, toma outras proporções no
século XX. Com o surgimento da indústria cultural e com a massificação da
arte, a busca por um “preenchimento” periga torná-la um mero instrumento
da indústria cultural, o que possibilitaria posteriormente a sua utilização
como divulgação dos discursos totalitários. A perda da aura, que Baudelaire
associa à perda da imagem sagrada da poesia e do poeta, vai agora ratificar
esse processo de apropriação da arte por quem quer que seja. Pois, segundo
Benjamin, com o desaparecimento da aura, acaba-se também com o
“incômodo da autenticidade”, ou seja, a “aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja”2. Esse distanciamento passa a ser
suprimido pelo apogeu da técnica, pela “tendência a superar o caráter único
de todos os fatos através da sua reprodutibilidade”3. Em suma, trata-se de
fazer as coisas “ficarem mais próximas”. E essa proximidade levaria
também ao pressentimento da proximidade de uma crise, a crise da própria
identidade daquilo que poderia ser classificado como arte no século XX.
Essa crise seria então combatida com a doutrina da “arte pela arte”, que
resultaria em uma “teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura,
que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer
determinação objetiva”4. E na literatura, de acordo com Benjamin, teria sido
Mallarmé o primeiro a alcançar esse estágio.
A análise dessa afirmação de Benjamin sobre a obra de Mallarmé
nos abre a infinitas questões. Principalmente porque ela se apoia quase
exclusivamente naquilo a que é atribuído estatuto político. Um uso muito
corriqueiro nas interpretações de Mallarmé ao longo do século XX é
1 Cf. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza” in Obras escolhidas I. Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. 2 BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” in op. cit., p.
170. 3 Idem, ibidem, p. 170.
4 Cf. Idem, ibidem, p. 171.
83
considerá-lo apenas como um poeta “da forma”, considerando sua obra –
em especial, sua poesia – como uma oposição a uma arte, digamos,
engajada, política. Mesmo os vanguardistas, que consideravam Mallarmé
um poeta “revolucionário”, pelo seu trabalho de exploração do aspecto
visual e imagético do verso, não atribuíam a sua poesia um caráter engajado.
O curioso é que essa interpretação de Benjamin sobre a doutrina da arte pela
arte se basearia em um paradoxo. Ao mesmo tempo em que ele pode
concebê-la como um engajamento positivo, uma “defesa” da arte surgida
pela constatação da crise iminente, ele também lhe atribui uma “alienação”
negativa, uma “recusa” do tempo presente, e, principalmente, do que esse
tempo tem de crítico. Seria então Mallarmé um ícone, e sua obra um espaço
de negação da crise do presente? Ou, pelo contrário, seria sua obra uma
forma de reação atualizada desse tempo que se faz presente?
Sem dúvida essa questão perpassa aquilo que Benjamin chama de
função social da arte. Pois como ele mesmo afirma, na época da técnica, a
arte passa a se fundamentar na política e não mais no sagrado. Ocorreria
então uma estetização da política, que resultaria na mudança da própria
essência da obra de arte. Outrora criada para ser autêntica e única, ela se
emancipa, e com isso - para manter-se enquanto tal - necessitaria ser
reproduzida (vale outra vez lembrar, como exemplo, as duas principais
modalidades de arte surgidas nesse contexto – o cinema e a fotografia – que
correspondem a esse quadro). Essa exposição imposta – e, agora, inerente –
ao objeto artístico clamaria uma aproximação maior entre arte e sociedade,
ou ainda, uma comunicação entre elas. Ou seja, o objeto artístico perigaria
só ter espaço nessa nova sociedade de consumo se servisse a determinado
fim social. Seu valor de culto passaria a ser regido pelo seu valor de
exposição e de troca. Sendo assim, um paradoxo se estabeleceria; a
emancipação da arte seria apenas um subterfúgio para a imposição, nos
“tempos modernos”, do autofinalismo da técnica? A arte passaria a ser então
apenas um instrumento que garantisse a supremacia da técnica perante a
sociedade?
84
No campo literário, Marcos Siscar, na tentativa de responder a essas
perguntas, afirma: “(...) Retomo a hipótese de que a técnica é um problema
para a literatura. Não apenas atinge a literatura, mas é um problema para
ela, para sua constituição como discurso, em especial como discurso
cultural”5. A crise a que Benjamin aludia geraria agora (longe de uma
“teologia negativa”) a possibilidade de um discurso cultural para a poesia,
onde o que estaria em jogo não seria apenas uma resposta emocional às
novas condições de cultura, mas “um pensamento ou um drama da
técnica”6. Ou seja, trata-se novamente de uma encenação - visando a um
entendimento - da técnica no verso, onde ela passa a figurar como elemento
constitutivo de uma poética, fenômeno que Siscar chama de estetização da
crise. Ou a própria inscrição da poesia no contexto histórico da crise no
século XX.
Nesse sentido, a obra de Mallarmé, ao contrário do que afirma
Benjamin, não remeteria a uma negação do real pelo literário sem qualquer
“determinação objetiva”, nem mesmo a um esteticismo “fechado em si”, ou,
a um “esteticismo da torre de marfim”, imagem tão cara à doutrina da arte
pela arte, que supõe um recolhimento, e um afastamento da sociedade. Ela
seria antes um espaço de encenação dessa crise iminente, fosse pela recusa
da linguagem como uma “moeda de troca”, ou pela aparição constante em
seus poemas (por exemplo, “Um Lance de Dados” e “Salut”) da imagem do
“naufrágio”, modo pelo qual se pode expressar esse sentimento de crise7.
Assim, a “defesa” da arte contra a estetização da política e da técnica
passaria – na obra de Mallarmé - por uma dicotomia que se estabeleceria
entre comunicação e comunicabilidade, entre a busca de uma mensagem
comunicativa no espaço do verso e a aceitação da poesia enquanto discurso
crítico que expressa uma comunicabilidade entre versos. Ou, “de certa
forma, conclui Siscar, trata-se de um modo característico que a poesia tem
5 SISCAR, Marcos. “O grande deserto de homens” in Poesia e Crise. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010, p. 63. 6 Idem, ibidem, p. 61.
7 Cf. Idem, ibidem.
85
de criar comunidade”8. De reivindicar o direito à fala – ou à palavra –
inerente ao poema e ao poético, e que o atualize enquanto leitura crítica do
presente. Um esteticismo “repaginado”, pois “aquilo que a história da
literatura chama de esteticismo está longe de ser um discurso apartado do
sentimento de realidade”9.
A relação entre o verso e a era da técnica não deixa, portanto, de ser
conflituosa. Ela se estabelece sempre por uma tensão, onde a poesia ora
encena o papel de vítima, ora assume um pacto com a técnica, “como
tentativa de rejuvenescimento, de atualização, de invenção”10
. Esse pacto
parece ter sido o caso das vanguardas, pela sua já conhecida apropriação e
exploração do aparato tecnológico. Mas, de fato, não é o caso de Mallarmé.
Por mais que a interpretação dos vanguardistas o considere “revolucionário”
pela exploração do quesito formal e experimental do verso em poemas como
“Um Lance de Dados”, por exemplo, não encontramos em sua obra uma
“saída ao verso”, uma derrocada do “ciclo histórico do verso”, ou uma
ruptura de sua “unidade rítmico-formal” (posteriormente descrita por Décio
Pignatari e os irmãos Campos11
). Ele clamava antes por uma ruptura de
determinado uso do verso (que em “crise de verso” se refere
especificamente à forma tradicional conhecida como “alexandrino”), e sua
apropriação por autores tradicionais, como Victor Hugo. O que “Um lance
de dados” conteria de “revolucionário” se encontra no uso dado ao verso,
onde o que “estaria em jogo” seria a própria possibilidade do verso
enquanto discurso metalinguístico. Ele não declama uma “morte ao verso”,
pelo contrário, o verso passa a ser tudo e, ao mesmo tempo, testemunha de
uma crise inadiável. Dessa forma, o “ciclo do verso” continua e o que muda
é a sua concepção histórica.
A apropriação da técnica pela arte poderia chegar ainda a um ponto
desastroso, que dificultaria o estabelecimento de uma separação entre
8 Idem, ibidem, p. 74.
9 Idem, ibidem, p. 74.
10 Idem, ibidem, p. 61.
11 Cf. Augusto de Campos; Décio Pignatari; Haroldo de Campos, Teoria da poesia
concreta. São Paulo: Brasiliense, 1975, 2 ed.
86
ambas. Nesse ponto, elas passariam então a funcionar numa espécie de
simbiose na sua relação com o mundo, onde seus limites se apagariam.
Sendo assim, uma outra doutrina da arte pela arte seria criada, só que dessa
vez, ao invés de se fundamentar na solidão e no isolamento da sociedade,
ela pregaria a própria destruição desta. Ou seja, de acordo com Benjamin, o
elemento chave, a base dessa nova “estética” seria o estabelecimento da
guerra, ou a supremacia da máquina perante o homem. Como exemplo,
bastaria analisar os manifestos futuristas de Marinetti - descrevendo os
espetáculos dos tanques de guerra, metralhadores e fuzis -, e a relação do
cinema produzido na Alemanha e sua apropriação pelo nazismo.
É por isso que a insistência de Mallarmé pelo verso, assim como
a distinção observada em sua obra - entre comunicação e comunicabilidade -
, se tornaria fundamental para entender o espaço do verso enquanto
encenação, dramatização (e não propaganda) dessa violência que lhe foi
imposta. Pois, a “resistência” da poesia a essa violência consistiria em criar
uma comunidade, uma maior proximidade entre homens – e entre versos -
onde a relação com a técnica seria “posta em jogo”, na tentativa de repensar,
ou ainda, apostar em uma existência possível – e pacífica? - entre ambas no
mundo contemporâneo. De acordo com Siscar, uma forma possível de
dramatizar essa “proximidade significativa [da poesia] com o maquinário ou
a indústria da morte”12
seria pela imagem da decapitação, descrita em um
trecho do poema “Hérodiade” de Mallarmé, intitulado “Cantique de Saint-
Jean”. A cena da decapitação, tão comum em certo momento histórico na
França, remete agora a outro momento crítico, atualizando-o. A “perda da
cabeça” da poesia na era da técnica também pode exprimir uma
possibilidade de salvação:
Se a morte por decapitação é o modo histórico pelo qual se
realiza socialmente a queda da aristocracia ou o martírio do
santo, poderíamos dizer que o ideal estético da modernidade
também se funda numa decapitação simbólica pela qual a
poesia é designada como vítima, isto é, como alteridade
necessária à produção do discurso social e cultural
12
SISCAR, Marcos. “Grande deserto de homens” in op. cit.
87
dominante. Desse modo, ela é capaz de reapropriar-se da
violência e de estabelecê-la como sentido de sua relação com
a palavra (...)13
.
Nessa reapropriação da violência aplicada ao sentido das palavras,
se encontraria a possibilidade de salvação da poesia. Isso aparece
explicitado pelo Saint-Jean de Mallarmé, que, ao perder a cabeça, observa-a
alçar vôo no céu e adquirir uma beatificação14
; ou seja, ainda que pela forma
violenta de um sacrifício, é possível inscrever a poesia na História. O fato de
essa violência reger agora o sentido da relação da poesia com a palavra
explicaria também o motivo pelo qual um poeta como Paul Celan (judeu,
romeno, sobrevivente do Holocausto) cita Mallarmé, em 1960, no seu
discurso de entrega do prêmio Büchner:
Podemos partir da arte como algo já dado e um pressuposto
incondicional, devemos, sobretudo, para falar bem
concretamente, digamos, pensar em Mallarmé até as últimas
conseqüências?15
“Partir da arte como algo já dado e um pressuposto incondicional”
seria admiti-la enquanto possibilidade real que busca constituir-se como um
discurso sobre a verdade. Uma verdade crítica, tensionada, pois na medida
em que se constitui de uma crise externa, de um momento histórico crítico
(no caso de Celan, a guerra, o Holocausto), também faz transparecer a crise
interna, a violência de sua relação com a palavra, com o verso. Mallarmé já
denunciava essa violência antes de Celan. Ao discutir sobre os novos
parâmetros da poesia francesa e contemporânea, na Universidade de Oxford,
13
Idem, ibidem, p. 64 14
“Et ma tête surgie
Solitaire vigie
Dans les vols triomphaux
De cette faux
(...)
Mais selon un baptême
Illuminée au même
Principe qui m'élut
Penche un salut »
MALLARMÉ, Stéphane. «Cantique de Saint-Jean » In Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, Pléiade, 1945, p. 49. 15
CELAN, Paul. “Meridiano” in Cristal. Trad. Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,
1999, p. 173.
88
ele dá seu testemunho desse estado de crise: “De fato, trago novidades e das
mais surpreendentes. Um tal caso nunca foi visto antes. / Fizeram violência
ao verso”16
. No entanto, esse tema, naquele momento, ainda se encontrava
confuso, mas ele tentaria formulá-lo no próprio espaço da escrita,
perseguindo o verso, experimentando-o, explorando, rompendo seus limites.
É o que ele relata em “Crise de Verso”:
Assiste-se, como final de um século, e à diferença do último, a
reviravoltas; mas, fora do espaço público, a uma inquietude do véu
no templo com desdobramentos significativos e um pouco seu
rasgo17
.
É apenas por meio desse rasgo que Mallarmé enxergava essa
concepção estética que se formava. É só por um relampejo “num momento
de perigo”18
que o poeta pode perceber o diagnóstico da situação, a
verdade: através de um acidente, onde se opera um rasgo (“Crise de
verso”), ou um naufrágio (“Salut”), ou uma decapitação (“Cantique de
Saint-Jean”). Pois nessa nova realidade que se mostra inapreensível,
emerge também a necessidade de se pensar a situação da poesia, levando
em conta “alguma coisa que é da ordem do impensável”19
. Por isso, a
afirmação “extremista” de Celan: “Pensar Mallarmé até as últimas
consequências” poderia ser uma atualização da atitude “desesperada” do
mestre em “Um lance de dados” - assim como a encenação do impensável
– em que lançar os dados constituiria o último ato possível que lhe restaria
diante daquilo que não se pode prever: o naufrágio, a morte?
“Pensar Mallarmé até as últimas consequências” admitiria também
uma estranha ligação com o ato da decapitação. Onde a poesia deveria ser
pensada e concebida no espaço aberto pelo corte da guilhotina. Essa
decapitação, além de encenar a cisão que estaria sendo operada no verso,
também poderia remeter à questão da subjetividade, ao anterior
16
MALLARMÉ, S. Op. cit., p. 634. 17
MALLARMÉ, S.“Crise do verso” in Inimigo Rumor. Tradução de Ana Alencar. Rio de
Janeiro: Viveiros de Castro Editora. Número 20, 2008. 18
BENJAMIN, W. Op. cit., p. 224. 19
SISCAR, M. “Poesia Cou Coupé” in op. cit., p.75.
89
desaparecimento elocutório do poeta. Por isso, dramatizar a decapitação
não só da poesia, como a do poeta, seria levá-la até “suas” últimas
consequências, em que o ressurgimento atualizado de ambos então
nasceria por uma cicatriz, oriunda da violência da crise, e do corte. No
caso de Celan, essa cicatriz o possibilitaria cavar o verso, na medida em
que esse ato assumisse o significado de uma reconciliação com seu
passado (com o Holocausto) e uma inscrição paradoxal de sua poesia na
história.
Em suma, a poesia cria comunidade. Mesmo que ela se encontre em
um “momento de perigo”, na iminência de um naufrágio, ou de uma
decapitação, ela clama por um brinde (Salut), onde expressa uma forma de
saudação ou de salvação. E essa comunidade não se define apenas pela
questão do literário, numa negação da função social da arte. Nela estaria
contido tudo aquilo que podemos definir como humano, no sentido de
oposição ao mecanicismo, à violência, e à supremacia da técnica. Em uma
escala valorativa, estabelecida nessa sociedade de valores, ela seria algo
que se firma na diferença, na estranheza de uma cicatriz aberta que, como
diz Celan, “goteja resina, não quer cicatrizar”20
. Sendo assim, afirma
Siscar, “o que poderíamos chamar de comunidade poética é constituído
por aqueles que se dão os meios de responder à sua estranheza,
reivindicando ou reinventando a herança da poesia”21
. Por essa herança
entende-se a possibilidade de sua inscrição no tempo histórico, em que a
poesia não seria uma ponte para um futuro “melhor”, nem uma forma de se
impor como discurso superior em um mundo em ruínas. O passado, o
presente e o futuro só valeriam nesse “tempo histórico” enquanto
20
“Não uma
voz – um
tardio rumor, estrangeiro às horas, agradável
a teus pensamentos, aqui, desperto
por fim: um
pistilo, grande como um olho, com uma profunda
ranhura; ele
goteja resina, não quer
cicatrizar”
(CELAN, P. “Voz” in op. cit.) 21
SISCAR, M. “Poesia Cou Coupé” in op. cit., p. 79.
90
dispositivos de atualização dessa herança da poesia, que se encontraria
sempre na iminência de uma desaparição, que nos escapa. Talvez sua
apreensão só seja novamente possível em um (re)lance de dados.
ANEXOS
92
Jeudi matin
[7 janvier 1864]
Mon Henri,
Je t’envoie enfin ce poème de L’Azur que tu semblais si désireux de
posséder. Je l’ai travaillé, ces derniers jours, et je ne te cacherai pas qu’il
m’a donné infiniment de mal, - outre qu’avant de prendre la plume il fallait,
pour conquérir un moment de lucidité parfaite, terrasser ma navrante
Impuissance. Il m’a donné beaucoup de mal, parce que bannissant mille
gracieusetés lyriques et beaux vers qui hantaient incessamment ma cervelle,
j’ai voulu rester implacablement dans mon sujet. Je te jure qu’il n’y a pas un
mot qui ne m’ait coûté plusieurs heures de recherche, et que le premier mot,
qui revêt la première idée, outre qu’il tend par lui-même à l’effet général du
poème, sert encore à préparer le dernier. L’effet produit, sans une
dissonance, sans une fioriture, même adorable, qui distraie, - voilà ce que je
cherche. – Je suis sûr, m’étant lu les vers à moi-même, deux cents fois peut-
être, qu’il est atteint. Reste maintenant l’autre côté à envisager, le côté
esthétique. Est-ce beau, y a-t-il un reflet de la Beauté? Ici, commencerait
mon immodestie si je parlais, et c’est à toi de décider.
Henri, qu’il y a loin de ces théories de composition littéraire à la
façon dont notre glorieux Emmanuel prend une poignée d’étoiles dans la
voie lactée pour les semer sur le papier, et les laisser se former au hasard en
constellations imprévues! Et comme son âme enthousiasme [sic], ivre
d’inspirations, reculerait d’horreur devant ma façon de travailler! Il est le
poète lyrique, dans tout son admirable épanchement. Toutefois, plus j’irais,
plus je serai fidèle à ces sévères idées que m’a léguées mon grand maître
Edgar Poe.
Le poème inoui du Corbeau a été ainsi fait. Et l’âme du lecteur jouit
absolument comme le poète a voulu qu’elle jouît. Elle ne ressent pas une
impression autre que celles sur lesquelles il avait compté. – Ainsi, suis ma
93
pensée dans mon poème, et vois si c’est là ce que tu as senti en me lisant.
Pour débuter d’une façon plus large, et approfondir l’ensemble, je ne parais
pas dans la première strophe. L’azur torture l’impuissant en général. Dans la
seconde, on commence à se douter, par ma fuite devant le ciel possesseur,
que je souffre de cette terrible maladie. Je prépare dans cette strophe encore,
par une forfanterie blasphématoire Et quelle nuit hagarde, l’idée étrange
d’invoquer les brouillards. La prière au Cher Ennui confirme mon
impuissance. Dans la troisième strophe, je suis forcené comme l’homme qui
voit réussir son voeu acharné. La quatrième commence par une exclamation
grotesque, d’écolier délivré. Le ciel est mort! Et, de suite, muni de cette
admirable certitude, j’implore la Matière. Voilà bien la joie de
L’Impuissant. Las du mal qui me ronge, je veux goûter au bonheur commun
de la foule, et attendre patiemment la mort obscure... Je dis: Je veux! Mais
l’ennemi est un spectre, le ciel mort revient, et je l’entends qui chante dans
les cloches bleues. Il passe, indolent et vainqueur, sans se salir à cette brume
et me transperce simplement. A quoi je m’écrie, plein d’orgueil et ne voyant
pas là un juste châtiment de ma lâcheté, que j’ai une immense agonie. Je
veux fuir encore, mais je sens mon tort et avoue que je suis hanté. Il fallait
toute cette poignante révélation pour motiver le cri sincère, et bizarre, de la
fin, l’azur… - Tu le vois, pour ceux qui, comme Emmanuel et comme toi,
cherchent dans un poème autre chose que la musique du vers, il y a là un
vrai drame. Et ç’a été une terrible difficulté de combiner, dans une juste
harmonie, l’élément dramatique, hostile à l’idée de Poésie pure et
subjective, avec la sérénité et le calme de lignes nécessaires à la Beauté.
Mais tu vas me dire que voilà beaucoup d’embarras pour des vers
qui en sont bien peu dignes. Je le sais. Cela, toutefois, m’a amusé de
t’indiquer comment je juge et je conçois um poème. Abstrais de ces lignes
toute allusion à moi, et tout ce qui a rapport à mes vers, et lis ces quatre
pages, froidement, comme l’ébauche, fort mal écrite et informe, d’un article
d’art.
Tuus,
94
Stéphane Mallarmé.
Je ne me relis pas. Et je te plains d’avoir à me lire, povero!
(MALLARMÉ, Stéphane. Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand
(éd). Paris: Gallimard,1995, pp. 160-163)
95
Manhã de quinta-feira
7 de janeiro de 1864
Meu Henri,
Enfim envio-lhe este poema sobre o Azul, que você parecia tão
desejoso de possuir. Trabalhei nele, nestes últimos dias, e não esconderei
que ele me causou um desconforto infinito – além do fato de que antes de
pegar a pena era preciso, para conquistar um momento de perfeita lucidez,
demolir minha desoladora Impotência. Isso me causou muito desconforto,
pois ao banir mil graciosidades líricas e belos versos que assombravam
incessantemente meu cérebro, eu quis permanecer implacavelmente em meu
tema. Juro a você que não há uma palavra que não me tenha custado várias
horas de pesquisa, e que a primeira palavra, que reveste a primeira ideia,
além de tender por si própria ao efeito geral do poema, serve ainda para
preparar a última. O efeito produzido, sem nenhuma dissonância, sem
nenhum floreado, mesmo adorável, que distraia – é isso que procuro. Tendo
lido os versos para mim mesmo, duzentas vezes talvez, estou certo de que
ele foi alcançado. Resta agora o outro lado a considerar, o lado estético. São
belos, há neles um reflexo da Beleza? Aqui começaria minha imodéstia se
eu falasse, e cabe a você decidir.
Henri, como estamos longe daquelas teorias de composição literárias
à maneira das quais nosso glorioso Emmanuel pega um punhado de estrelas
na via Láctea para semeá-las sobre o papel, e deixá-las se formarem ao
acaso em constelações imprevistas! E como sua alma entusiasmo [sic], ébria
de inspiração, recuaria de horror diante de minha maneira de trabalhar! Ele é
o poeta lírico em toda a sua admirável efusão. Todavia, quanto mais eu
avançar, mais serei fiel às severas ideias que me foram legadas por meu
grande mestre Edgar Poe.
O poema inaudito do Corvo foi feito assim. E a alma do leitor goza
absolutamente como o poeta quis que ela gozasse. Ela não sente uma
impressão diferente daquelas com as quais ele havia contado. – Assim, siga
96
meu pensamento em meu poema, e veja se é isso que você sentiu ao me ler.
Para começar de uma maneira mais ampla, e aprofundar o todo, eu não
apareço na primeira estrofe. O azul tortura o impotente em geral. Na
segunda, começa-se a pressentir, por minha fuga diante do céu possuidor,
que sofro dessa terrível doença. Preparo ainda nessa estrofe, por uma
fanfarrice blasfematória Quelle nuit hagarde/ Que noite selvagem, a
estranha ideia de invocar as névoas. A súplica ao Cher Ennui/Caro Tédio
confirma minha impotência. Na terceira estrofe, enfureço-me como o
homem que vê realizado seu desejo mais ardoroso. A quarta começa com
uma exclamação grotesca, de colegial libertado. O céu está morto! Em
seguida, munido de admirável certeza, imploro à Matéria. Eis aí a alegria do
Impotente. Cansado do mal que me corrói, quero provar a simples ventura
da multidão, e esperar pacientemente a morte obscura… Digo: Eu quero!
Mas o inimigo é um espectro, o céu morto reaparece e eu o escuto cantando
nos sinos azuis. Ele passa, indolente e vitorioso, sem sujar-se nessa bruma, e
simplesmente me atravessa. Diante do que eu exclamo, cheio de orgulho e
não vendo aí um justo castigo para minha covardia, que possuo uma imensa
agonia. Quero fugir ainda, mas sinto meu erro e atesto que estou possuído.
Foi preciso toda essa lancinante revelação para motivar o grito sincero, e
bizarro, do fim, o azul… – Veja que, para aqueles que, como você e
Emmanuel, procuram em um poema outra coisa além da música do verso,
existe aí um verdadeiro drama. E foi terrivelmente difícil combinar, em uma
justa harmonia, o elemento dramático, hostil à ideia de Poesia pura e
subjetiva, com a serenidade e a calma de linhas necessárias à Beleza.
Mas você me dirá que são muitos obstáculos para versos que são
bem pouco dignos deles. Bem o sei. Entretanto, divertiu-me indicar-lhe
como julgo e concebo um poema. Abstraia destas linhas qualquer alusão a
mim, qualquer coisa que tenha ligação com meus versos, e leia estas quatro
páginas, friamente, como o esboço, muito mal escrito e informe, de um
artigo de arte.
Tuus,
97
Stéphane Mallarmé.
Não me reli. E lamento-o por você ter que me ler, povero!
98
Besançon, Vendredi
[Mardi] 14 Mai 1867.
Rue de Poithune, 36.
Cher et cher,
Je profite, pour te répondre, de l’émotion charmante, causée en moi
par ta lettre[.]
Tu as raison, que se dire? Autant, si l’on était l’un près de l’autre, on
se laisserait aller, la main dans la main, à d’interminables causeries, dans
une grande allée que terminerait un jet d’eau, autant l’effroi d’une feuille de
papier blanc, qui semble demander les vers si longtemps rêvés, et qui
n’aurait que quelques lignes d’une amitié qui a fini tellement par faire partie
de vous-même qu’on l’a oubliée, comme le reste de soi, vous écarte presque
d’un sacrilège!
Je viens de passer une année effrayante: ma Pensée s’est pensée, et
est arrivée à une Conception Pure. Tout ce que, par contre-coup, mon être a
souffert, pendant cette longue agonie, est inénarrable, mais, heureusement,
je suis parfaitement mort, et la région la plus impure où mon Esprit puisse
s’aventurer est l’Éternité, mon Esprit, ce solitaire habituel de sa propre
Pureté, que n’obscurcit plus même le reflet du Temps.
Malheureusement, j’en suis arrivé là par une horrible sensibilité, et il
est temps que je l’enveloppe d’une indifférence extérieure, qui remplacera
pour moi la force perdue. J’en suis, après une synthèse suprême, à cette
lente acquisition de la force – incapable tu le vois de me distraire. Mais
combien plus je l’étais, il y a plusieurs mois, d’abord dans ma lutte terrible
avec ce vieux et méchant plumage, terrasé, heureusement, Dieu. Mais
comme cette lutte s’était passée sur son aile osseuse, qui, par une agonie
plus vigoureuse que je ne l’eusse soupçonné chez lui, m’avait emporté dans
des Ténèbres, je tombai, victorieux, éperdument et infiniment – jusqu’à ce
qu’enfin je me sois revu un jour devant ma glace de Venise, tel que je
m’étais oublié plusieurs mois auparavant.
99
J’avoue, du reste, mais à toi seul, que j’ai encore besoin, tant ont été
grandes les avaries [sic] de mon triomphe, de me regarder dans cette glace
pour penser, et que si elle n’était pas devant la table où je t’écris cette lettre,
je redeviendrais le Néant. C’est t’apprendre que je suis maintenant
impersonnel, et non plus Stéphane que tu as connu, - mais une aptitude qu’a
l’Univers Spirituel à se voir et à se développer, à travers ce qui fut moi.
Fragile comme est mon apparition terrestre, je ne puis subir que les
développements absolument nécessaires pour que l’Univers retrouve, en ce
moi, son identité. Ainsi je viens, à l’heure de la Synthèse, de délimiter
l’oeuvre qui sera l’image de ce développement. Trois poèmes en vers, dont
Hérodiade est l’Ouverture, mais d’une pureté que l’homme n’a pas atteinte
– et n’atteindra peut-être jamais, car il se pourrait que je ne fusse le jouet
que d’une illusion, et que la machine humaine ne soit pas assez parfaite pour
arriver à de tels résultats. Et quatre poèmes en prose, sur la conception
spirituelle du Néant.
Il me faut dix ans: les aurai-je? Je souffre toujours beaucoup de la
poitrine, non qu’elle soit attaquée, mais elle est d’une horrible délicatesse,
qu’entretien le climat, noir, humide et glacial, de Besançon. Je veux quitter
cette ville pour le Midi, les Pyrénées peut-être, aux vacances, et aller
m’ensevelir, jusqu’à mon Oeuvre fait, dans un Tarbes quelconque, si j’y
trouve de la place. Cela est nécessaire, car je mourrais d’un second hiver à
Bensançon. Malheureusement, je n’aurai pas l’argent d’aller à Paris, vivant
très-misérablement, ici, où tout est fort dispendieux, même les côtelettes. Il
faudrait donc que tu vinsses me voir, ou nous risquons fort de ne jamais
nous réunir. Lefébure va passer un mois près de nous, que ne fais-tu comme
lui? Tes vacances commencent de bonne heure, je crois. Viens donc.
Pour finir avec ce qui me concerne, je te dirai que Marie et
Geneviève grandissent, et sont étonnamment diables, ce qui m’est moins
douloureux qu’autrefois, mon système nerveux s’étant pour ainsi dire
retourné, et une absurdité me faisant le mal que me faisaient les cris de ces
enfants, il y a un an. – Si tu savais comme on te remercie de l’Arithmétique
100
de Mademoiselle Lili! Pardon, Henri, de ne t’avoir plus tôt transmis cette
gratitude.
- Maintenant, de toi. Tes titres et tes projets poetiques me ravissent.
J’ai fait une assez longue descente au Néant pour pouvoir parler avec
certitude. Il n’y a que la Beauté; - et elle n’a qu’une expression parfaite, la
Poesie. Tout le reste, est mensonge – excepté, pour ceux qui vivent du
corps, l’amour, et, cet amour de l’esprit, l’amitié.
J’espère que ta reine de Saba et mon Hérodiade seront deux amies. –
Puisque tu es assez heureux pour pouvoir, outre la Poésie, avoir l’amour,
aime: en toi, l’Être et l’Idée auront trouvé ce paradis, que la pauvre
humanité n’espère qu’en sa mort, par ignorance et par paresse, et, quand tu
songeras au Néant futur, ces deux bonheurs accomplis, tu ne seras pas triste,
et le trouveras même très-naturel. – Pour moi la Poésie me tient lieu de
l’amour, parce qu’elle est éprise d’elle-même et que sa volupté d’elle
retombe délicieusemen[t en] mon âme: mais j’avoue que la Science que j’ai
acquise, ou retrouvée au fond de l’homme que je fus, ne me suffirait pas, et
que ce ne serait pas sans un serrement de coeur réel que j’entrerais dans la
Disparition suprême, si je n’avais pas fini mon oeuvre, qui est l’Oeuvre, le
Grand-Oeuvre, comme disaient les alchimistes, nos ancêtres.
Donc, bien que le Poète ait sa femme dans sa Pensée, et son enfant
dans la Poésie, adore Ettie, que j’aime, moi, comme une rare soeur. N’est-
elle pas liée à toute mon enfance, comme toi, Henri, - car avant mes
premiers vers, qui remontent au temps où je t’ai connu, nous n’étions que
les foetus de nos esprits – foetus assez sabbatiques, te rappelles-tu? Adieu,
nous l’embrassons, Geneviève et moi, et Marie embrasse Ettie.
Ton,
Stéphane
Si tu rencontres mes amis, dis-leur, dans le cas [où] ils m’aimeraient
et où mon silence les peinerait, que je les récompenserai bien [un] jour de
101
cet oubli volontaire, par une Extase-Nouvelle pour eux, comme encore pour
moi.
J’ai lu ces temps-ci le poème de Mistral, que je n’ai pas lu, plus tôt,
mais qui m’a semblé vraiment faible.
Le livre de Dierx est un beau développement de Leconte de Lisle.
S’en séparera-t-il comme moi de Baudelaire?
(MALLARMÉ, Stéphane. Correspondance. Lettres sur la poésie. MARCHAL, Bertrand
(éd). Paris: Gallimard,1995, pp. 341-346)
102
Besançon, Sexta-feira
[Terça-feira] 14 de
Maio1867.
Rua de Poithune, 36.
Querido e querido,
Aproveito, para lhe responder, a encantadora emoção, em mim causada,
por sua carta [.]
Você tem razão, o que pode se dizer? Se estivéssemos próximos um do
outro, nos deixaríamos levar, de mãos dadas, por intermináveis conversas, em
uma grande alameda terminada por um chafariz; contudo, o pavor de uma folha
de papel em branco – que parece solicitar os versos há tanto tempo sonhados, e
que só teria algumas linhas de uma amizade que passou de tal forma a fazer parte
de você que fica esquecida, como o resto de si – nos afasta quase de um
sacrilégio!
Acabo de passar por um ano pavoroso: meu Pensamento pensou a si
mesmo, e chegou a uma Concepção Pura. Tudo o que, a contragolpe, meu ser
sofreu, durante essa longa agonia, é inenarrável, mas, felizmente, estou
perfeitamente morto, e a região mais impura onde meu Espírito pode se aventurar
é a Eternidade, meu Espírito, este habitual solitário de sua própria Pureza, que
nem mesmo o reflexo do Tempo obscurece mais.
Infelizmente, cheguei a esse ponto por uma horrível sensibilidade, e é
hora de cobri-la de uma indiferença exterior, que para mim tomará o lugar da
força perdida. Após uma síntese suprema, estou em meio a essa lenta aquisição
de força – incapaz como você vê, de me distrair. Porém, eu estava muito pior, há
alguns meses, inicialmente em minha terrível luta com Deus, esta velha e
perversa plumagem, felizmente abatida. Mas como essa luta se passara sobre sua
asa ossuda, que, por uma agonia mais vigorosa do que eu teria suspeitado, me
103
havia levado nessas Trevas, eu caí, vitorioso, perdida e infinitamente – até que
enfim, um dia, me revi diante de meu espelho de Veneza, tal como me esquecera,
vários meses antes.
Confesso, de resto, mas somente a você, que tão grandes foram os danos
de meu triunfo, que ainda preciso me olhar nesse espelho para pensar, e se esse
espelho não estivesse diante da mesa onde escrevo esta carta, eu retornaria ao
Nada. Isso é para lhe informar que agora sou impessoal, e não mais o Stéphane
que você conheceu, - mas uma aptidão do Universo Espiritual a se ver e a se
desenvolver, através do que foi eu.
Frágil como é minha aparição terrestre, só posso submeter-me aos
desenvolvimentos absolutamente necessários para que o universo reencontre,
nesse eu, sua identidade. Assim, no momento da Síntese, acabo de delimitar a
obra que será a imagem desse desenvolvimento. Três poemas em verso, dos quais
Hérodiade é a Abertura, mas de uma pureza que o homem não alcançou – e talvez
nunca alcance, pois é possível que eu seja o joguete apenas de uma ilusão, e que a
máquina humana não seja suficientemente perfeita para chegar a tais resultados.
E quatro poemas em prosa, sobre a concepção espiritual do Nada.
Para isso, preciso de dez anos: será que os terei? Ainda sofro muito do
peito, não que ele esteja atacado, mas é de uma terrível delicadeza, que o clima de
Besançon, fechado, úmido e glacial, sustenta. Quero deixar essa cidade e ir para a
região de Midi, talvez, nas férias, para os Pirineus, e me enterrar, até minha Obra
estar feita, em uma Tarbes qualquer, se encontrar lugar. Isso é necessário, pois eu
morreria de um segundo inverno em Besançon. Infelizmente, não terei dinheiro
para ir à Paris, já que vivo aqui em grande miséria, e tudo é muito dispendioso,
até mesmo as costeletas. Seria, então, necessário que você viesse me ver, ou
corremos o risco de jamais nos revermos. Lefébure passará um mês perto de nós,
por que você não faz como ele? Creio que suas férias começam cedo. Pois então,
venha!
Para acabar com o que me diz respeito, direi-lhe que Marie e Geneviève
crescem, e estão maravilhosamente endiabradas, o que para mim é menos
104
doloroso que antes, uma vez que meu sistema nervoso, por assim dizer, virou do
avesso, e um absurdo me faz o mesmo mal que há um ano me faziam os gritos
dessas crianças. – Se você soubesse como lhe agradecemos pela Aritmética da
Senhorita Lili! Perdão, Henri, por não lhe ter antes transmitido essa gratidão.
- Agora, sobre você. Seus títulos e seus projetos poéticos me encantam.
Fiz uma longa descida ao Nada para poder falar com certeza. Só existe a Beleza;
- e ela só tem uma expressão perfeita, a Poesia. Todo o resto é mentira – exceto,
para aqueles que vivem do corpo, o amor, e, este amor do espírito, a amizade.
Espero que sua rainha de Sabá e minha Hérodiade sejam amigas. – Como
você é feliz o bastante de poder ter, além da Poesia, o amor, ame: em você, o Ser
e a Ideia terão encontrado esse paraíso, que a pobre humanidade só espera na
morte, por ignorância e por preguiça, e, quando pensar no Nada futuro, com essas
duas felicidades realizadas, você não ficará triste, e achará mesmo muito natural.
– Para mim, a Poesia ocupa o lugar do amor, pois ela está enamorada de si
mesma e sua volúpia de si recai deliciosamente [em] minha alma: mas confesso
que a Ciência que adquiri, ou reencontrei no fundo do homem que fui, não me
satisfaria, e que não seria sem um aperto no coração real que eu penetraria no
Desaparecimento supremo, se não tivesse terminado minha obra, que é a Obra, a
Grande-Obra, como diziam os alquimistas, nossos ancestrais.
Portanto, ainda que o Poeta tenha sua mulher em seu Pensamento, e seu
filho na Poesia, adore Ettie, que eu amo como uma rara irmã. Ela não está ligada
a toda minha infância, como você Henri, - pois antes de meus primeiros versos,
que remontam ao tempo em que o conheci, éramos somente os embriões de
nossos espíritos – embriões bastante sabáticos, você se lembra? Adeus,
Geneviève e eu lhe mandamos um beijo, e Marie manda um beijo para Ettie.
Seu
Stéphane Mallarmé.
105
Se você reencontrar meus amigos, diga-lhes, no caso de eles me amarem e
de meu silêncio fazê-los sofrer, que eu os recompensarei [um] dia por esse
esquecimento voluntário, com uma Êxtase-Nova para eles, como também para
mim.
Li, ainda há pouco, o poema de Mistral (“Calendau”), que eu não tinha
lido antes, mas que me pareceu verdadeiramente fraco.
O livro de Léon Dierx é uma bela extensão de Leconte de Lisle. Será que
eles se afastarão, como eu de Baudelaire?
106
Sonnet allégorique de lui-même
La Nuit approbatrice allume les
onyx
De ses ongles au pur Crime,
lampadophore,
Du Soir aboli par le vespéral
Phoenix
De qui la cendre n’a de cinéraire
amphore
Sur des consoles, en le noir Salon:
nul ptyx,
Insolite vaisseau d’inanité sonore,
Car le Maître est allé puiser de
l’eau du Styx
Avec tous ses objets don’t le Rêve
s’honore.
Et selon la croisée au Nord
vacante, un or
Néfaste incite pour son beau cadre
une rixe
Faite d’un dieu que croit emporter
une nixe
En l’obscurcissement de la glace,
décor
De l’absence, sinon que sur la
glace encore
De scintillations le septuor se fixe.
(Versão de 1868)
Sonnet en Yx
Ses purs ongles très haut dédiant
leur onyx,
L’Angoisse ce minuit, soutient,
lampadophore,
Maint rêve vespéral brûlé par le
Phénix
Que ne recueille pas de cinéraire
amphore
Sur les crédences, au salon vide:
nul ptyx,
Aboli bibelot d’inanité sonore,
(Car le Maître est allé puiser des
pleurs au Styx
Avec ce seul objet dont le Néant
s’honore.)
Mais proche la croisée au nord
vacante, un or
Agonise selon peut-être le décor
Des licornes ruant du feu contre
une nixe,
Elle, défunte nue en le miroir,
encor
Que, dans l’oubli fermé par le
cadre, se fixe
De scintillations sitôt le septuor.
(Versão de 1887)
(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et
autres textes. LEUWERS, Daniel (éd).
Paris: Librairie Générale Française,
1998, pp. 74/211)
107
L’Azur
De l'éternel azur la sereine ironie
Accable, belle indolemment comme
les fleurs,
Le poète impuissant qui maudit son
génie
À travers un désert stérile de
Douleurs.
Fuyant, les yeux fermés, je le sens
qui regarde
Avec l'intensité d'un remords
atterrant,
Mon âme vide. Où fuir? Et quelle
nuit hagarde
Jeter, lambeaux, jeter sur ce mépris
navrant?
Brouillards, montez! versez vos
cendres monotones
Avec de longs haillons de brume
dans les cieux
Que noiera le marais livide des
automnes
Et bâtissez un grand plafond
silencieux!
Et toi, sors des étangs léthéens et
ramasse
En t'en venant la vase et les pâles
roseaux,
Cher Ennui, pour boucher d'une main
jamais lasse
Les grands trous bleus que font
méchamment les oiseaux.
Encor! que sans répit les tristes
cheminées
Fument, et que de suie une errante
prison
Éteigne dans l'horreur de ses noires
traînées
Le soleil se mourant jaunâtre à
l'horizon!
- Le Ciel est mort. - Vers toi,
j'accours! donne, ô matière,
L'oubli de l'Idéal cruel et du Péché
À ce martyr qui vient partager la
litière
Où le bétail heureux des hommes est
couché,
Car j'y veux, puisque enfin ma
cervelle, vidée
Comme le pot de fard gisant au pied
d'un mur,
N'a plus l'art d'attifer la sanglotante
idée,
Lugubrement bâiller vers un trépas
obscur...
En vain! L'Azur triomphe, et je
l'entends qui chante
Dans les cloches. Mon âme, il se fait
voix pour plus
Nous faire peur avec sa victoire
méchante,
Et du métal vivant sort en bleus
angélus!
Il roule par la brume, ancien et
traverse
Ta native agonie ainsi qu'un glaive
sûr;
Où fuir dans la révolte inutile et
perverse?
Je suis hanté. L'Azur! L'Azur!
L'Azur! I'Azur!
(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et
autres textes. LEUWERS, Daniel (éd).
Paris: Librairie Générale Française,
1998, pp 137-139)
108
Renouveau
Le printemps maladif a chassé tristement
L'hiver, saison de l'art serein, l'hiver lucide,
Et, dans mon être à qui le sang morne préside
L'impuissance s'étire en un long bâillement.
Des crépuscules blancs tiédissent sous mon crâne
Qu'un cercle de fer serre ainsi qu'un vieux tombeau,
Et, triste, j'erre après un rêve vague et beau,
Par les champs où la sève immense se pavane
Puis je tombe énervé de parfums d'arbres, las,
Et creusant de ma face une fosse à mon rêve,
Mordant la terre chaude où poussent les lilas,
J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève...
- Cependant l'Azur rit sur la haie et l'éveil
De tant d'oiseaux en fleur gazouillant au soleil.
(MALLARMÉ, Stéphane. Poésies et autres textes. LEUWERS, Daniel (éd). Paris: Librairie
Générale Française, 1998, p. 127)
109
Bibliografia
ABASTADO, Claude. Expérience et théorie de la création poétique chez
Mallarmé. Paris: Lettres modernes, 1970.
BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.
_______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1998.
BATAILLE, Georges. A Literatura e o mal. Lisboa: Vega, 1998.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna.
São Paulo: Paz e Terra, 1997.
_______. Les Fleurs du Mal. Paris: Librarie Générale Française, 1972.
_______. Oeuvres complètes. Bibliothèque de la Pléiade, 2 vol. Paris:
Gallimard, 1976.
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