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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 1 Da Retórica medieval Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ Resumo: Na pesquisa que desenvolvemos desde 2006, sob os auspícios do ProCiência UERJ e do CNPq (PDS), elegemos os pressupostos metodológicos da Retórica para analisarmos hagiografias e crônicas medievais galego-portuguesas, tendo por corpus o Liber Sancti Jacobi, a Crónica de Santa Maria de Iría, a Crónica de D. João I – Parte Primeira de Fernão Lopes e o Flos Sanctorum. Isto porque tanto as hagiografias quanto as crônicas constituem mensagens que estão abertamente voltadas para a persuasão de seus receptores: as primeiras, propondo-se ao ensino da prática das virtudes cristãs e da fé, com apresentar vidas e outros escritos sobre santos que constituem modelos de comportamento; as segundas, por propagarem as qualidades de sés, episcopados ou casas senhoriais, a serviço dos quais o cronista se encontraria. Acrescente-se a isto o fato de na Idade Média a Retórica ser uma das disciplinas do Trivium (como sabemos, composto por Gramática, Retórica e Lógica) enquanto arte por excelência do discurso, informando preceitos para a composição do mesmo, bem como fornecendo elementos para a sua exegese. Portanto, nada mais conveniente do que examinar o texto medieval a partir dessa arte tão em voga no período. Palavras-chave: Retórica; Hagiografias; Crônicas; Idade Média. Résumé: Dans le cadre des recherches que nous menons depuis 2006, avec une aide financière du programme ProCiência UERJ et du CNPq (PDS), nous avons retenu les présupposés méthodologiques de la Rhétorique pour analyser les hagiographies et les chroniques médiévales galego-portugaises, ayant pour corpus le Líber Sancti Jacobi, la Crónica de Santa Maria de Iría, la Crónica de D. João I Première Partie de Fernão Lopes et le Flos Sanctorum. Nous estimons que tant les hagiographies que les chroniques constituent des messages qui se tournent ouvertement vers la persuasion de leurs récepteurs: les premières proposent l’enseignement des pratiques des vertus chrétiennes et de la foi, présentant la vie et d’autres écrits sur les saints qui sont autant de modèles de comportement; les deuxièmes diffusent les qualités des sièges, épiscopats ou maisons seigneuriales, au service desquels le chroniqueur travaille. En outre, au Moyen Âge, la Rhétorique est une discipline qui intègre le Trivium (à savoir, la Gammaire, la Rhétorique et la Logique), et elle indique les normes pour la composition du discours, aussi bien qu’elle fournit des éléments pour son exegèse. Il semble donc pertinent d’examiner le texte médiéval à partir de cet art si renomé dans la période étudiée. Mots-clès : Rhétorique; Hagiographies; Chroniques; Moyen Âge. A propriedade da Retórica como método para a exegese de textos medievais (mas não só) pode ser comprovada não apenas no fato de ser ela uma das disciplinas do Trivium e portanto diretriz, tanto no que toca à composição, quanto à interpretação dos textos, para os poucos que tinham acesso à leitura e à escrita na Idade Média. Os prólogos de obras várias, obedientes ao que os retores clássicos propõem para os exórdios dos discursos, confirmam este fato, como, por exemplo, os Prólogos do Liber Sancti Jacobi – Codex Calixtinus do século XII (1999) e da Cronica delRei dom Joham de boa

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 1

DDaa RReettóórriiccaa mmeeddiieevvaall

Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Resumo: Na pesquisa que desenvolvemos desde 2006, sob os auspícios do ProCiência UERJ e do CNPq (PDS), elegemos os pressupostos metodológicos da Retórica para analisarmos hagiografias e crônicas medievais galego-portuguesas, tendo por corpus o Liber Sancti Jacobi, a Crónica de Santa Maria de Iría, a Crónica de D. João I – Parte Primeira de Fernão Lopes e o Flos Sanctorum. Isto porque tanto as hagiografias quanto as crônicas constituem mensagens que estão abertamente voltadas para a persuasão de seus receptores: as primeiras, propondo-se ao ensino da prática das virtudes cristãs e da fé, com apresentar vidas e outros escritos sobre santos que constituem modelos de comportamento; as segundas, por propagarem as qualidades de sés, episcopados ou casas senhoriais, a serviço dos quais o cronista se encontraria. Acrescente-se a isto o fato de na Idade Média a Retórica ser uma das disciplinas do Trivium (como sabemos, composto por Gramática, Retórica e Lógica) enquanto arte por excelência do discurso, informando preceitos para a composição do mesmo, bem como fornecendo elementos para a sua exegese. Portanto, nada mais conveniente do que examinar o texto medieval a partir dessa arte tão em voga no período. Palavras-chave: Retórica; Hagiografias; Crônicas; Idade Média. Résumé: Dans le cadre des recherches que nous menons depuis 2006, avec une aide financière du programme ProCiência UERJ et du CNPq (PDS), nous avons retenu les présupposés méthodologiques de la Rhétorique pour analyser les hagiographies et les chroniques médiévales galego-portugaises, ayant pour corpus le Líber Sancti Jacobi, la Crónica de Santa Maria de Iría, la Crónica de D. João I – Première Partie de Fernão Lopes et le Flos Sanctorum. Nous estimons que tant les hagiographies que les chroniques constituent des messages qui se tournent ouvertement vers la persuasion de leurs récepteurs: les premières proposent l’enseignement des pratiques des vertus chrétiennes et de la foi, présentant la vie et d’autres écrits sur les saints qui sont autant de modèles de comportement; les deuxièmes diffusent les qualités des sièges, épiscopats ou maisons seigneuriales, au service desquels le chroniqueur travaille. En outre, au Moyen Âge, la Rhétorique est une discipline qui intègre le Trivium (à savoir, la Gammaire, la Rhétorique et la Logique), et elle indique les normes pour la composition du discours, aussi bien qu’elle fournit des éléments pour son exegèse. Il semble donc pertinent d’examiner le texte médiéval à partir de cet art si renomé dans la période étudiée. Mots-clès : Rhétorique; Hagiographies; Chroniques; Moyen Âge.

A propriedade da Retórica como método para a exegese de textos medievais (mas não

só) pode ser comprovada não apenas no fato de ser ela uma das disciplinas do Trivium –

e portanto diretriz, tanto no que toca à composição, quanto à interpretação dos textos,

para os poucos que tinham acesso à leitura e à escrita na Idade Média. Os prólogos de

obras várias, obedientes ao que os retores clássicos propõem para os exórdios dos

discursos, confirmam este fato, como, por exemplo, os Prólogos do Liber Sancti Jacobi

– Codex Calixtinus do século XII (1999) e da Cronica delRei dom Joham de boa

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 2

memória e dos Reis de Portugal o décimo, escrita no século XV por Fernão Lopes

(1977). Nesta, o cronista argumenta a favor da sua imparcialidade, buscando alcançar a

confiança e a simpatia dos leitores-ouvintes a quem a obra se destina, afirmando-se

como pesquisador incansável de documentos vários e escritor da “simprez verdade”,

avesso à “afremosemtada falssidade” (LOPES, 1977, p. 1-3). Naquele, a carta-prólogo

atribuída ao papa Calisto II, ao que tudo indica falsamente, já a partir dessa atribuição

autoral tenta firmar o princípio de autorictas; e afirma ser a matéria transcrita por ele

testemunhada ou baseada em relatos considerados verazes, escritos ou orais. Tudo

vazado em estilo singelo, para que seja entendida por todos, desde os eruditos aos

simples, como faz questão de observar o autor dessa carta (LIBER, 1999, p. 3). Tal

preocupação retórica não se limita, nessas obras, aos prólogos, mas se desvela no

decorrer das suas páginas, conforme temos demonstrado em diversos estudos,

publicados ou apresentados em congressos vários.

A Retórica na Idade Média

Para uma aproximação à Retórica medieval, começamos por lembrar, com James

Murphy (1986, p. 142), que “... la historia de las artes del discurso en la Edad Media es,

al menos en parte, la historia de la supervivencia de las obras clásicas”. Dentre estas, a

presença marcante no Medievo foi a da Retórica aristotélico-ciceroniana, através da

juvenil obra de Marcos Túlio Cícero, De inventione, e da Rhetorica ad Herenium, que

também a ele se atribuiu por séculos1.

Colocando a ênfase na Política e vinculando-a às leis romanas, a obra de Cícero

disseminou no medievo os princípios da disciplina sistematizada por Aristóteles, que

objetiva as técnicas de persuasão do discurso. Lembremos que, embora circulassem

cópias no medievo da “Arte de bem dizer” aristotélica, esta fora considerada mais um

livro de “Filosofia moral” (MURPHY, 1986, p. 142) do que propriamente um manual

1 Se na Idade Média as lições de Aristóteles (384-322 a. C.) e Cícero (65-27 a. C.) foram as fontes por excelência para o conhecimento da Retórica, no fim do período medieval, estendendo-se pelo Renascimento e depois, Quintiliano (30-100 d. C.), com Instituto oratoire, e o Cícero maduro, autor de De oratore, estiveram em grande voga. Aliás, esta última obra foi claramente seguida por Santo Agostinho (2002), como veremos adiante.

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 3

de Retórica. Aliás, os textos medievais se referem freqüentemente ao Estagirita como o

Filósofo – por exemplo, Fernão Lopes, na Crônica de D. Pedro, o denomina “claro

lumme da fillosophia” (1966, p. 216). Realmente, na sua Retórica, o sábio grego não

deixa de estabelecer reflexões filosóficas – por exemplo, sobre a felicidade, enquanto

fim último a que todos aspiram e que deve ser levada em conta se desejamos persuadir

alguém sobre a utilidade de algo (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 49). E relaciona-a à

Dialética ou Lógica, bem como à Política: “(...) Donde resulta ser a Retórica como que

um rebento da Dialética e da ciência dos costumes que podemos, com justiça,

denominar Política” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 35).

Reportando-nos aos primórdios dessa Arte, lembramos que ela se firmaria no século V

a.C., ligada a práticas democráticas, à defesa de direitos sobre propriedades

reivindicados por seus antigos ou possíveis donos após a queda dos tiranos na Sicília,

notadamente em Siracusa. E tornou-se a Arte de maior prestígio em Atenas, no tempo

de Aristóteles, discípulo dileto de Platão. Este, aliás, também refletira sobre a

eloqüência em seus diálogos, como, por exemplo, em “Fedro”, no qual apresenta

Sócrates criticando veementemente os sofistas (PLATÃO, [s.d.], p. 243 e ss.).

Embora alguns retores já tivessem elaborado tratados parciais sobre a Retórica, como

Córax e Tísias, Aristóteles é quem nos fornecerá, no século IV a.C., a sistematização

mais competente da mesma, definindo-a como o estudo das técnicas de persuasão dos

discursos dirigidos a um auditório, do qual o orador, melhor atuante se homem

exemplar, teria de levar em conta os caracteres e paixões, para melhor conseguir-lhe a

adesão. Na observação abalizada de Paul Ricoeur, o seu grande mérito foi relacionar o

“conceito retórico de persuasão” com o “conceito lógico de verossímil, e o de construir

sobre esta relação o edifício completo de uma retórica filosófica” (RICOEUR, [s.d.], p.

13). Como diria Roland Barthes, trata-se de

uma lógica expressamente rebaixada, adaptada ao nível ‘do público’, isto é, ao senso comum, à opinião corrente. Estendida às produções literárias (o que não era seu campo propriamente original) ela implicaria mais uma estética do público do que uma estética da obra (BARTHES, 1975, p. 157).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 4

Sublinha Barthes ser “realmente tentador colocar essa retórica de massa em relação à

política de Aristóteles”. Esta seria “uma política do justo meio, favorável a uma

democracia equilibrada, centrada nas classes médias e encarregada de reduzir os

antagonismos entre os ricos e os pobres, a maioria e a minoria” (BARTHES, 1975, p.

157).

Recordemos que o tratado aristotélico é constituído por três partes ou livros,

apresentando “uma divisão de tipo informático” (BARTHES, 1975, p. 156). O primeiro

deles focaliza o orador e a busca dos argumentos, as provas técnicas convenientes ao

discurso. O segundo trata principalmente do público receptor da mensagem, de seus

caracteres e paixões, bem como das provas morais, subjetivas e lógicas mais adequadas

à argumentação. E o terceiro trata dos aspectos formais do discurso: da elocução –

figuras, tropos, seleção vocabular... – e da ordenação das partes do discurso, referindo-se

também à sua pronunciação, relacionada ao estilo, que deve se adequar a cada gênero de

discurso e primar sempre pela justa medida. Portanto, leva em conta os três elementos

essenciais da comunicação, modernamente retomados pelos estudos lingüísticos: o

emissor, o receptor e a mensagem.

Os discursos pertencem ao gênero judicial quando objetivam o justo ou o injusto através

da acusação ou da defesa de um réu diante de juízes, baseada principalmente em fatos

passados e tendo o entimema como principal argumento. Já o deliberativo se preocupa

fundamentalmente com o útil ou o prejudicial, por meio do aconselhamento de uma

ação futura à assembléia, tendo por principal recurso o exemplo. E o epidítico

estabelece o elogio ou a censura do nobre ou do vil, fundado principalmente no tempo

presente e tendo a amplificação como recurso maior. Mas já o Filósofo destacava que os

gêneros de discurso podem apresentar variações e imbricações várias:

porque há três gêneros, há três fins distintos. O fim do gênero deliberativo é o útil e o prejudicial, pois, quando se dá um conselho, este é apresentado como vantajoso, e quando se pretende descartá-lo ele é apresentado como funesto. Por vezes, este gênero toma algo dos outros, por exemplo, o justo ou o injusto, o belo ou o feio. O fim para os pleiteantes é o justo ou o injusto, mas acontece que também eles colhem elementos dos outros gêneros. Quando se louva ou se censura, as referências são feitas ao belo ou ao feio; sucede todavia que também aqui se introduzem no assunto elementos estranhos (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 43).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 5

Essa mistura de finalidades facilmente se constata em textos medievais, por exemplo

nas crônicas de Fernão Lopes2 e nos sermões do Codex Calixtinus3. E também a

preocupação com a qualidade do estilo, que, conforme a retórica aristotélica, deve ser

claro, agradável, pictórico, adequado ao assunto, ao gênero de discurso (predominante) e

a seu respectivo auditório, bem como à realização oral ou escrita do mesmo. O

equilíbrio, a justa medida deve nortear-lhe o tom e a escolha do vocabulário e das

figuras e/ou tropos, enfim, dos recursos expressivos, inclusive na pronunciação (tom de

voz e, acrescentamos, gestualística adequados) – arte, que, segundo Aristóteles, não fora

ainda elaborada à sua época (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 206).

Aristóteles defende que as partes do discurso são essencialmente duas: exposição (ou

proposição, ou exposição, ou indicação do assunto ou questão) e demonstração

(argumentação, prova), aceitando-lhe, quando muito, quatro partes: “Assim, pois, de

obrigatório só há a exposição e a prova (...). No máximo, podemos admitir: o exórdio, a

exposição, a prova, o epílogo. A refutação depende das provas, (...) não é mais que uma

amplificação das provas do orador”, é “uma parte das provas” (ARISTÓTELES, [s.d.],

p. 246). Já o De inventione de Cícero ([s.d.], p.31) e a Retórica a Herênio (2005, p. 57)

propõem seis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão,

acentuando a importância da confirmação e da refutação (2005, p. 71).

O exórdio, início ou cabeça do discurso – que corresponde ao prólogo na poesia ou ao

prelúdio na aulética –, tem por finalidade indicar o assunto e conseguir a atenção e a

predisposição do auditório para a aceitação da causa que será proposta ou defendida.

Na narração ou exposição do assunto, deve-se também atentar para a justa medida,

evitando-se a concisão excessiva do mesmo modo que a prolixidade desnecessária. As

provas devem ser demonstrativas e levar em conta os assuntos da contestação. As

interrogações fazem-se oportunas em muitas situações, para confundir ou desequilibrar

2 Cf., a propósito, a nossa Tese de Doutoramento A revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes, defendida na Universidade de São Paulo/USP, em 1982 (TAVARES, 1982). 3 Cf. comunicação de nossa autoria apresentada no I Encontro Regional da Associação Brasileira de Estudos Medievais/ABREM, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, de 7 a 9 de novembro de 2006, intitulada “A Retórica antiga e a prédica medieval. Um exemplo jacobeu” (MALEVAL, 2007); e a conferência “Da Retórica franco-compostelana à Compadecida de Suassuna”,

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 6

o adversário etc. E também a facécia (ironia ou bufoneria) tem o seu lugar em algumas

situações.

Quanto à refutação de uma acusação, arrolam-se vários meios utilizáveis, inclusive os

que ferem à ética. Mas, com relação a estes últimos, assevera o Sábio: “Assim se

comportam os oradores mais hábeis, mas também os mais injustos; servem-se do que é

honroso para prejudicar, e misturam o bem com o mal” (ARISTÓTELES, [s.d.], 255).

A peroração é a última parte do discurso, compondo-se de quatro procedimentos: dispor

o ouvinte (receptor) a favor do orador (emissor), amplificar ou atenuar o exposto,

excitar as paixões no receptor e recapitular a mensagem.

Enfim, embora apresentando inclusive os meios escusos de que podem lançar mão os

oradores para conseguirem a persuasão dos ouvintes, método usado pelos sofistas,

Aristóteles não abandona a ética, asseverando que “De um modo procede o homem

prudente, de outro o homem de bem; a prudência consiste em buscar o útil, a

honestidade o bem” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 258).

Deixaremos por ora de desenvolver maiores comentários sobre as obras De inventione

de Cícero e Rhetorica ad Haerenium, por serem propagadoras de elementos da Retórica

aristotélica sem acrescentar-lhe modificações substanciais. A primeira atém-se aos

ensinamentos dos livros I e II, que tratam da descoberta (inventio) do que é próprio à

argumentação específica do tipo de discurso a ser elaborado; discorre sobre os gêneros

de causas, os meios de alcançar-se a benevolência do auditório no exórdio, as formas de

repreensão, as fontes de indignação e (outros) meios de se alcançar o patético, além de

destacar, inicialmente, as vantagens e os inconvenientes da eloqüência. A segunda

discorre esquematicamente sobre todas as partes que compõem a Arte Retórica

(inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio), os gêneros e partes do discurso,

dando particular relevo ao gênero judicial e arrolando profusamente as figuras e/ou

tropos, elementos da elocução.

apresentada no VII Encontro Internacional de Estudos Medievais, realizado de 3 a 6 de julho de 2007, na Universidade Federal do Ceará/UFC (MALEVAL [No prelo]).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 7

A cristianização da Retórica

Na confluência do legado clássico e do substrato judaico-cristão, tem origem a arte da

predicação (ars praedicandi), que, juntamente com a gramática preceptiva ou retórica da

versificação (ars poetriae) e com a arte epistolar (ars dictaminis), compunha o estudo

do discurso na Idade Média.

Com relação ao substrato judaico-cristão, lembremos, com Murphy (1986), que pregar

foi “o segundo ato de Deus após a criação do homem e durante muitas épocas constituiu

o meio primordial de comunicação entre Deus e o homem” (1986, p. 275-276;

traduzimos). Observa que já Roberto de Basevorn destacara, no século XIV, a primeira

persuasão das Escrituras, encontrada no Gênesis: “Após criar o homem, Deus predicou

(se ampliamos a palavra ‘predicação’) dizendo a Adão (Gên., II, 17): Porque no dia em

que comeres [do fruto proibido], certamente morrerás” (MURPHY, 1986, p. 276). E

toda a Bíblia está permeada de pregadores, por exemplo, os profetas, sendo que Jesus,

instruído na liturgia judaica (com leituras e exegeses do Velho Testamento, sobretudo

dos seus cinco primeiros livros, o Pentateuco), ordenara aos seus apóstolos que

difundissem as suas idéias através da prédica: “e designou doze para que estivessem

com ele e para enviá-los a pregar” (Mateus, XXVIII, 16-20). Nela abundam técnicas

diversas da Retórica, com farto uso de figuras e tropos, reconhecidos desde os primeiros

séculos cristãos e no Medievo por autores como Santo Ambrósio, Santo Agostinho,

Cassiodoro, Beda, Alcuíno, Roberto de Deutz etc.

Como na Retórica antiga, sistematizada por Aristóteles, intentava-se a persuasão através

da prédica. Mas a argumentação se apoiava no que o Filósofo chamara de prova

apodítica – no caso, isto é, na verdade tida por incontestável das Escrituras; e intentava-

se atingir a todos os homens, não apenas a um auditório limitado, como o das

sociedades escravocratas e ‘materialistas’ grega e romana. No entanto, de comum

apresentavam alguns aspectos, como a preocupação com adequar o discurso ao

auditório. Por exemplo, Aristóteles já ensinava que “é em função do auditório que se

desenvolve toda a argumentação” ([s.d.], p. 7) e Marcos (IV, 33-34) testemunhava que

Jesus Cristo “Anunciava-lhes [às multidões] a Palavra por meio de muitas parábolas

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 8

(...), conforme podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A seus

discípulos, porém, explicava tudo em particular”.

Paulo, um dos pregadores mais eficientes da história, levando às últimas conseqüências

a ordem de Jesus, a responsabilidade de converter ao cristianismo os pagãos, e a certeza

na força divina da mensagem, desenvolveria essas declarações sobre a prédica,

estabelecendo o que Murphy considerou uma “teologia da pregação”. Introduziria

vários conceptos que interesarían a los teóricos durante los primeros tiempos cristianos y el Medievo: la relación de la gracia con la predicación, el contraste entre la predicación y la oratória ordinária, la cuestión de quién debe predicar e incluso la relación entre predicación y culto. Ante todo, puso en relieve el mandato de Jesucristo (MURPHY, 1986, p. 286).

Como bem observa Murphy (1986), a esta fase primacial, encabeçada por Jesus Cristo4,

seguiria uma segunda, cuja principal expressão seria A doutrina cristã, obra de Santo

Agostinho, concluída em 426. Outros tratados menores surgiriam – como Cura

pastoralis de São Gregório Magno (591), De institutione clericorum, de Rabano Mauro

(819), Liber quo ordine sermo fieri debeat, de Guiberto de Nogent (cerca de 1084) e De

arte praedicatoria, de Alan de Lille (1199?) –, até que no século XIII firmar-se-ia uma

teorização plenamente desenvolvida sobre a prédica. Da primeira metade deste século

até à Reforma, surgiriam mais de 300 tratados, dos quais destacam-se autores como

Tomás de Salisbury, Ricardo de Thetford e Alexandre de Ashby, que estabeleceram uma

forma de pregação baseada em divisões e amplificações. E em 1322, Roberto de

Basevorn reuniria as contribuições dessa terceira fase da prédica medieval em Forma

praedicandi.

Aceitemos que, entre Jesus Cristo e Paulo e o século XII, apenas um tratado

considerável sobre a prédica surgiria: De doctrina christiana de Santo Agostinho (396-

426). Como explicar esse vazio de séculos no mundo cristão, se o seu fundador, Jesus

4 “Cristo estableció un modelo para los predicadores cristianos de varios modos y, aún más importante, confirmo y reforzó la práctica judía del uso de las Escrituras como prueba; distinguía escrupulosamente entre parábolas y discurso ‘directo’, entre evangelización (anuncio) y enseñanza (exposición de la doctrina), y hacía constantes comparaciones de lo terreno y lo divino, mediante analogías y metáforas. Estos rasgos aparecen en la predicación cristiana hasta el dia de hoy, pero tuvieron especial relevancia en el período medieval” (MURPHY, 1986, p. 282).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 9

Cristo, fora tão enfático quanto à necessidade da prédica? Segundo Murphy (1986, p.

291), as perseguições aos primeiros cristãos e, em seguida, a revolta contra a cultura

pagã seriam explicações possíveis. Após Santo Agostinho, as invasões bárbaras

constituiriam também uma causa plausível; mas discutiam-se temas mais

intrinsecamente relacionados à doutrina e à administração eclesial, como o celibato

sacerdotal, a jurisdição episcopal, a pobreza e divindade de Cristo, a natureza do

pecado, a relação com os judeus etc.: “Ante la evidencia de que la Iglesia sí debatía las

cuestiones más urgentes, solo cabe concluir que la teoría de la predicación no estaba

considerada como problema clave” (MURPHY, 1986, p. 291).

Destaquemos, pois, que, para a aceitação e prestígio da Retórica entre os cristãos,

inclusive compondo as disciplinas do Trivium, foi fundamental a posição de Santo

Agostinho (354-430 d C), que a defendeu veementemente dos seus opositores,

considerando-a, na esteira de Platão (427-347 a C), um eficiente meio de catequese das

almas e canalizando-a para o ensino das virtudes cristãs, para a exegese da Bíblia.

Enfim, assumindo uma posição teológica e ética, propugnou a importância da prédica

clerical, apoiada na fé, na pedagogia do amor, na retidão do pregador, na capacidade de

evocação do ouvinte, nas Escrituras como base do conhecimento e fonte de provas

incontestáveis (diferindo, desse modo, dos romanos céticos, amorais, políticos

defensores de probabilidades).

A sua obra De doctrina christiana5 (cujos três primeiros livros teriam sido concluídos

em 396), mais especificamente o Livro IV (terminado em 426), não apenas divulga os

princípios básicos da Retórica, mas destaca o quão vantajoso é ensinar-se de modo

claro, agradável e persuasivo as verdades cristãs – “o útil unido ao agradável”

(AGOSTINHO, 2002, p. 214). Isto sem deixar de alertar sobre o perigo da Retórica se

5 Também nos breves tratados De magistro (Sobre o mestre), de 389, e De catechizandis rudibus (A catequese dos rústicos), de 399, contribui para a sedimentação da Retórica no mundo cristão, indo mais longe que Cícero na reflexão sobre o conceito de signo, sua essencialidade, sua relação com a graça e a beatitude. Aproximou-se de Quintiliano na recomendação do ensino para os jovens, que mais facilmente aprendem ou imitam. E, como Platão, considerava a capacidade de o indivíduo aprender por si mesmo, “em contraposição à capacidade de outra pessoa alheia, de instruir o ouvinte ou persuadi-lo somente por força dos signos convencionais que emprega para comunicar-se” (MURPHY, 1986, p. 294; traduzimos). Contrapunha-se, pois, à fé que os romanos depositavam na imitatio, investindo na inventio (descoberta) para o processo de aprendizagem e na pedagogia do amor, que está na base inclusive do próprio processo de comunicação, já que o amor nos obriga a comunicarmo-nos com o nosso próximo. Frisa a propósito

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 10

usada ao modo dos sofistas, uma vez que ela é a arte da persuasão tanto do verdadeiro

quanto do falso: “que se diga ao menos com sabedoria o que não se consegue dizer com

eloqüência, de preferência a dizer eloqüentemente coisas tolas” (AGOSTINHO, 2002, p.

274). Portanto, a finalidade primeira da prédica não pode ser o deleite, embora seja este

desejável para melhor transmissão dos ensinamentos. Da mesma forma que Cícero,

elege a sabedoria, já agora de procedência bíblica, como fundamento da oratória.

Também ciceronianas são as funções que dela apresenta: ensinar, deleitar e comover,

recomendando que “assim como é preciso agradar ao auditório para o manter na escuta,

também é preciso convencê-lo para o levar à ação” (2002, p. 234).

A adequação dos tipos de estilo ao discurso, às suas finalidades, é outra lição que

aproxima de Cícero o bispo de Hipona, conforme o seu próprio testemunho:

Pois a esses três objetivos (instruir, agradar e converter) correspondem três tipos de estilo, como parece ter desejado demonstrar aquele mestre de eloqüência romana quando disse de modo análogo: “Ser eloqüente é poder tratar assuntos menores em estilo simples; assuntos médios em estilo temperado e grandes assuntos em estilo sublime” (Cícero, De oratore, 29, 10s) (AGOSTINHO, 2002, p. 241).

E propõe a mistura desses estilos na pregação: o orador deve buscar instruir o ouvinte,

para que ele alcance o entendimento das verdades cristãs, através do estilo simples; e

convertê-lo, tornando-o dócil para a prática dos comportamentos recomendáveis, através

do estilo sublime; isto sem deixar, sempre que possível, de proporcionar-lhe o deleite

através do estilo temperado, que tem por meta o elogio ou a censura. Mas o pregador

deve, antes de tudo, ter perfeito conhecimento do assunto a ser tratado, e adequar o seu

discurso ao auditório. E, fundamentalmente, possuir uma vida exemplar, mais

convincente que qualquer sermão para o ensino das virtudes. Com base em Timóteo

(1,9), recomenda Santo Agostinho: “Sê para os fiéis um modelo na palavra, na conduta,

na caridade, na fé, na pureza” (AGOSTINHO, 2002, p. 272).

Antes de passarmos para outros teóricos da Oratória, registre-se que, para o

desenvolvimento da prédica medieval, foram muito importantes a tradução da Bíblia

Murphy (1986, p. 297) que amor cristão (caritas) implica em um conceito mais elaborado que o ethos de

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 11

para o latim, supervisionada por São Jerônimo no século IV, e as exegeses que sobre a

Vulgata vieram a lume. Bem como o fato de a liturgia cristã contemplar a leitura bíblica

seguida de comentário em cultos regulares, pelo menos dominicais6.

Quase dois séculos após Santo Agostinho ter estabelecido a sua retórica da predicação, o

papa Gregório Magno (540-604) publica, em 591, Cura pastoralis, obra de grande

aceitação nos meios clericais até começos do século XIII, tornada inclusive leitura

obrigatória para os bispos pelos concílios de 813 e 836 (MURPHY, 1986, p. 298).

Nessa obra, destaca a importância da prédica, considerada fundamental já desde o Velho

Testamento, comparando a função do pregador à dos anjos da escada de Jacó7. Dá

ênfase à vida exemplar do pregador e à importância de fazer-se amado pelo público para

melhor recepção da sua mensagem. Bem como à necessidade de adequação do discurso

ao auditório, considerado em suas especificidades e heterogeneidade (dado novo em

relação à Retórica antiga, baseada mais na circunstância do discurso – judicial,

deliberativo, demonstrativo – que na índole dos ouvintes – muito embora já Aristóteles

relevasse as diferenças de caracteres e paixões); sublinha, portanto, as necessidades de

todos e de cada um dos receptores. Nesse sentido, resume alguns enfoques moralizantes

que se podem abordar para 36 pares de tipos de ouvintes, como, por exemplo:

homem/mulher, humilde/arrogante, servo/amo etc. Trata-se de uma lista não

sistemática, que mistura gênero, posição social, caráter, hábitos pessoais, nível de

conhecimento, idade, virtudes e vícios. Considerando o pecado como uma enfermidade,

que deve ser curada com a ajuda do pregador, é muito mais um “tratado sobre patologia

Aristóteles, já que abrange não apenas o orador, mas também o ouvinte. 6 Murphy (1986) adverte que, para o estudo do sermão medieval, há que se levar em conta a diferença então existente entre a sua realização mais formal, baseada em normas, e a informal, a que se dava o nome de homilia. Hoje os termos são sinônimos, mas, no Medievo, a homilia se caracterizava pela sua informalidade, pela conservação do enfoque personalizado procedente dos cultos primitivos, realizados em pequenos recintos, em casas particulares. Conforme observa Murphy (1986, p. 305), o próprio Santo Agostinho se referia às “conversações populares que os gregos chamam de homilia” (traduzimos). Antes dele, Orígenes (falecido em 253) popularizara o termo em grego, e se tornara “famoso por suas interpretações alegóricas da Bíblia, seguindo a tradição alexandrina, derivada, em última instância, da antiga tradição judaica” (MURPHY, 1986, p. 305; traduzimos). Mais que isso, “sua cuidadosa determinação das múltiplas interpretações de um texto – prática que viria a ser um importante instrumento de amplificação para os pregadores medievais – consistia em uma escrupulosa análise oral das Escrituras diante do público. Por este método, em realidade era o texto o organizador do discurso. Seguindo desse modo a Bíblia, o pregador ficava também isento de quase todos os problemas de memória e disposição, e a homilia podia ser, dessa forma, uma espécie de ‘glosa falada’ ou ‘comentário falado’ do texto bíblico” (MURPHY, 1986, p. 305; traduzimos).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 12

moral” (MURPHY, 1986, p. 303) que de Retórica, interessando-se sobretudo por temas,

não pela forma do discurso. Não se reporta aos autores clássicos, antes retira da Bíblia,

notadamente de Paulo, as bases das suas proposições.

Posteriormente, Santo Isidoro de Sevilha (560-636), com a obra Etimologias, também

contribuiria de forma decisiva para o desenvolvimento da prédica8. Valoriza

aristotelicamente o papel da Gramática para a Oratória: “com a gramática nos

instruímos na ciência de falar corretamente; com a retórica aprendemos de que modo

devem expor-se os conhecimentos adquiridos” (ISIDORO, 2004, p. 353; traduzimos).

Da mesma forma que Santo Agostinho e São Gregório, mas também que Cícero e

Quintiliano, destaca a concepção (catoniana) de que o orador deve ser, antes de tudo, um

homem reto em sua natureza, em seu costumes, em suas qualidades. Aliás, já Aristóteles

relevava a importância da retidão do orador, colocando-a entre as provas persuasórias do

discurso:

Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies: umas residem no caráter moral do orador [que deve se mostrar digno de confiança]; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 34).

A diferença é que o sábio Estagirita trabalha com a categoria do verossímil, com o que

se apresenta como possível, com o que parece verdadeiro; e não com verdades absolutas

e dogmas.

Analogamente a Aristóteles, Isidoro reduz a quatro as partes do discurso: exórdio,

narração, argumentação e conclusão, afastando-se de outros teorizadores do Medievo,

que, na esteira dos romanos, estabelecem seis partes: exórdio, narração, divisão,

confirmação, refutação e conclusão. E se debruça sobre muitos outros aspectos e

técnicas do discurso, que não cabe neste momento desenvolver.

7 “Hinc Iacob domino desuper innitente, et uncto deorsum lapide, ascendestes ac descendentes angelos uidet; quia scol. Praedicatores recti non solum sursum sanctum caput ecclesiae, uidelicet dominum, contemplando appetunt, sed dorsum quoque ad membra illius miserando descendunt”. (P.L., t. 75, col. 33) 8 Estranhamente Murphy não se refere a ele, em seu clássico estudo sobre a retórica medieval (1986).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 13

Mas as suas reflexões sobre o saber antigo não se restringem à Retórica, abarcando de

um modo geral, enciclopédico, as instituições e os seres, a partir das palavras que os

denominam. As Etimologias constituem “uma espécie de explicação por procedimentos

lingüísticos de tudo quanto existe, proporcionando um modo de conhecer e compreender

melhor o universo” e uma melhor e mais aprofundada exegese dos textos antigos, como

já observara Diaz y Diaz (apud ISIDORO, 2004, p. 163; traduzimos). Esta, a sua

principal contribuição para o sermonário medievo, fartamente explorada na técnica da

amplificatio.

Passando por Rabano Mauro, escritor germânico que em 819 produzira o manual

destinado aos sacerdotes, De institutione clericorum, no qual cita e/ou transcreve muito

das obras citadas de Santo Agostinho e São Gregório, chegamos aos séculos XI-XII. O

então jovem beneditino Guiberto de Nogent (1053-1124) elabora um pequeno tratado

sobre como se compõe um sermão, anteposto à sua interpretação do Gênesis, intitulado

Liber quo ordine sermo fieri debeat, que concluiria em 1084.

Muito geral no que respeita à prédica, essa obra é valiosa por destacar a polissemia das

Escrituras, as quatro maneiras de proceder-lhe à exegese, levando-se em conta 1) a

história; 2) a alegoria; 3) a tropologia ou edificação moral; 4) a anagoge, que leva à

iluminação espiritual. Mesmo não sendo o inventor do conceito de interpretação

múltipla da Bíblia, estabelece, segundo Murphy, “uma primeira explicação medieval de

como devem ser utilizados os ‘quatro sentidos’ da interpretação bíblica para a

descoberta da matéria da prédica” (1986, p. 309; traduzimos):

Há quatro maneiras de interpretar as Escrituras; sobre elas, como se fossem rolos múltiplos, gira cada página sagrada. A primeira é a história, que fala dos sucessos reais tal como ocorreram; a segunda é a alegoria, em que uma coisa representa outra distinta; a terceira é a tropologia ou edificação moral, que trata da ordenação e disposição da vida de cada um; e a última é a anagoge ou iluminação espiritual, pela qual nós, que estamos em condições de tratar de assuntos celestiais e sublimes, somos levados a um modo superior de vida. Por exemplo, a palavra ‘Jerusalém’: historicamente representa uma determinada cidade; alegoricamente, representa a santa Igreja; tropológica ou moralmente é a alma de todo homem de fé que anela pela visão da paz eterna; e anagogicamente refere-se à vida dos cidadãos celestiais que já contemplam o Deus dos deuses, revelado em toda sua glória em Sião. Embora admitindo que estes quatro métodos de interpretação são válidos e podem utilizar-se, juntos ou separados, o enfoque moral parece o mais adequado e prudente nas

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 14

matérias que concernem às vidas dos homens (NOGENT, apud MURPHY, 1986, p. 308-309; traduzimos)9.

Reitera também Guiberto que, sendo a finalidade da prédica dar aos ouvintes um

ensinamento moral e religioso, a retidão do pregador é atributo imprescindível. Nesse

sentido, fornece sábios conselhos aos pregadores, relativos às qualidades a serem

seguidas e aos defeitos a serem evitados, combatendo duramente certas faltas correntes,

como o orgulho, a tristeza, a inveja (DAVY, 1931, p. 31).

No século seguinte, o monge cisterciense Alan de Lille (falecido em 1202), autor

destacado de tratados de Lógica, Literatura e Teologia, elaboraria, cerca de 1199, um

tratado mais significativo, mais empenhado em estabelecer uma retórica da predicação

para o combate do pecado, unindo fontes clássicas e eclesiásticas10: De arte

praedicatoria.

A definição e finalidade do sermão é por ele estabelecida claramente: “um ensino

público e coletivo dos costumes e da fé, apoiado na razão e fundamentado na

autoridade, tendo em vista a instrução dos homens”11 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 3;

traduzimos). Bem como suas partes (4) e gêneros (3)12, adaptados dos clássicos.

Na esteira dos antigos, que recomendavam em relação ao exórdio ser este o momento do

discurso em que o orador deve conseguir a simpatia do ouvinte, Alain de Lille

estabelece: “O pregador deve captar a benevolência de seu auditório para com sua

própria pessoa através da humildade. Deve também prometer que apenas dirá coisas

9 Lembremos que Isidoro de Sevilha distingue, sobretudo, os três primeiros sentidos. Da mesma forma Hugo de São Vitor, que compara os sentidos da Escritura Sagrada a um edifício, em que a história seria o fundamento, a alegoria os muros, a tropologia a ornamentação. 10 Como São Gregório, aproxima os pregadores dos anjos da escada de Jacó: “Vidit scalam Jacob a terra usque ad caelum attingentem, per quam ascendebant angeli (,,,). Septimum gradum sdcrndit, quando in manifesto praedicat quae ex scriptura didicit” (P. L., t. 210, col. 111). 11 “Praedicatio est, manifesta et publica instructio morum et fidei, informationi hominum deserviens, ex rationum semita, et auctoritatum fonte proveniens” (P. L., t. 210, col. 111). 12 “Tres species praedicationis: uma quae est in verbo (...) alia est in scripto (...) alia est in facto” (P. L., t. 210, col. 111).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 15

úteis e pouco numerosas; que não desejará tomar a palavra senão que por dedicação a

seus ouvintes”13 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Em seguida, “deve empreender a exposição do texto proposto, fazendo-o servir

inteiramente à instrução dos que o escutam”, recorrendo aos ensinamentos não apenas

bíblicos e patrísticos, mas até pagãos, “da mesma forma que o apóstolo Paulo inscrevia,

nas suas epístolas, as palavras dos filósofos”14 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32).

Recomendava, também, que o sermão não fosse exagerado, teatral. Nele não deveria

haver “nem bufoneria, nem puerilidades, nem melodias cadenciadas ou versos bem

torneados, que servem mais para encantar aos ouvidos que para formar os espíritos”15

(LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Sobre a arte da prédica é obra preceptiva no prefácio e na primeira parte. As 47 seções

restantes focalizam os temas a serem utilizados na pregação sobre determinadas virtudes

ou vícios e a matéria adequada a diferentes ouvintes (considera 9 tipos: advogados ou

oratores, doutores, outros prelados, príncipes, soldados, enclausurados, casados, viúvos

e virgens). Porque diversos podem ser os assunto tratados no sermão, desde que

direcionados para o ensino da religião e da moral. E o tema deveria ser interpretado de

forma adequada às circunstâncias e ao auditório (DAVY, 1931, p. 33).

Murphy sintetiza da seguinte forma essa obra Alan de Lille:

Define a pregação, esclarece a sua relação com as Escrituras, declara que seus temas [fundamentais] são a fé e a moral, distingue-a de outros tipos de discurso e faz breves observações sobre o uso adequado das ‘autoridades’. Embora sinteticamente – o prefácio e o cap. I juntos não passam de 1.400 palavras latinas – apresenta pela primeira vez, depois de Santo Agostinho, um ponderado intento de estabelecer uma retórica da predicação (MURPHY, 1986, p. 312; traduzimos).

13 “Debet captare benevolentiam auditorium a propria persona per humilitatem... debet etiam promittere se pauca dicturum et utilia; nec se trahi ad hoc nisi amore auditorum, neque etiam se loqui, quod majoris sit scientiae aut prudentiae vel melioris vitae...”. 14 “...debet accedere ad auctoritates propositse expositionem, et totam inflectere ad auditorum instructionem; nec auctoritatem nimis obscuram vel difficilem proponat, ne auditores eam fastidiant, et ita minus attende audiant... poteri etiam ex ocasione interserere dicta gentilium, sicut et Paulus apostolus aliquando in epistolis suis philosophorum auctoritates interserit” (P. L,. t. 210, col. 113-114). 15“Non debet habere verba scurrilia, vel puerilia vel rhythmorum melodias et consonantias, metrorum, quae potius fiunt ad aures demulcendas quam ad animum instruendum, quae praedicatio theatralis est est mímica, et ideo omnifarie contemnda...” (P. L., t. 210, col. 112)

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 16

Mas acrescenta em seu ajuizamento tratar-se de uma obra que se preocupa muito mais

com o pregador, com sua técnica, do que com estabelecer uma arte geral da prédica,

“coincidindo perfeitamente com o espírito de sua época” (MURPHY, 1986, p. 315).

Omite completamente dados sobre como organizar um sermão (a dispositio), sobre o

estilo (a elocutio), e pouco se refere à pronuntiatio e à memoria. Destaca que as

Escrituras fornecem idéias e provas apodíticas, sendo, pois, dupla fonte da inventio.

Emprega analogias e outras comparações mais que formas silogísticas – enfim, baseia-

se muito mais na experiência que na retórica clássica. Mas a técnica da autorictas, bem

como da divisio (tríptica) e da correspondentia, típicas da prédica posterior, já se

encontravam na metodologia de Alan de Lille.

Em 1220, a prédica já se encontra bem estabelecida e, em meados desse século XIII,

plenamente desenvolvida, apresentando um “vocabulário técnico completo e uma pauta

estabilizada de organização” (MURPHY, 1986, p. 317). Os autores ou teóricos mais

destacados, de 1220 a 1250, foram Alexandre de Ashby, Tomás Chabham, Ricardo de

Thetford, João de la Rochelle e Guilherme de Auvernia, sem esquecermo-nos de

Jacques de Vitry (falecido em 1240)16. Após 1250, podem ser citados Arnoldo de Pódio,

João de Galles, Gualtério de Paris – ao todo, o século XIV contara com mais de 30

teóricos, fora os anônimos, e o século XV com não menos de 20 (MURPHY, 1986, p.

317).

A universidade teria desempenhado importante papel nessa evolução, ou pelo menos na

fixação e/ou aprimoramento da tradição já existente fora dos seus muros, já que “a

estrutura do sermão e os artifícios amplificatórios do que se converteu em um gênero

independente, estavam muito claros já antes de 1200” (MURPHY, 1986, p. 318). Um

exemplo dessa tradição é o já mencionado Liber Sancti Jacobi, que serve de corpus à

nossa pesquisa, apresentando uma importantíssima recolha de sermões e/ou homilias

feita no século XII. Quanto ao sermão universitário, a mais antiga coleção de sermões

procederia da Universidade de Paris, ano acadêmico de 1230-1231, que conhecemos

pela edição de M. M. Davy (1931). Dirigidos a um público erudito, certamente

obedeceriam ao magistério das artes praedicandi do período, como as de Alexandre,

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 17

prior do convento agostiniano de Ashby (Northamptonshire) de 1205 a 1215, do mestre

Tomás de Salisbury (ou Chabham) e de Ricardo de Thetford.

De modo praedicandi, da autoria de Alexandre de Ashby, possivelmente do ano de

1200, começa por relevar, na esteira dos seus antecessores, como Cícero, que “em todo

escrito e em todo discurso, o homem sábio procura que seus leitores ou ouvintes estejam

dóceis, bem dispostos e atentos”17 (ASHBY, apud MURPHY, 1986, p. 319). Esta deve

ser a preocupação de filósofos, poetas e teóricos das artes. E estipula que “O modo de

predicar consiste na divisão (nas partes) do sermão e em sua pronunciação. Há quatro

partes num sermão, a saber: prólogo, divisão, prova e conclusão. Toda a matéria do

sermão é a proposição e a autoridade”18. Segue, pois, a Aristóteles, ao observar quatro

partes no discurso, e não cinco ou seis como os romanos (embora estas se reduzam

essencialmente àquelas). Afasta-se de Cícero também ao propor a imediata

comprovação das partes, não vendo as provas como algo independente.

O prólogo, da mesma forma que o exórdio clássico, se destina a captar a atenção e

benevolência dos ouvintes; a divisão (da matéria) estabelece o plano do sermão (propõe,

no máximo, três divisões, para não cansar o ouvinte comum); as provas (respaldadas em

autoridades, arrazoados, alegorias, exemplos), adequadas ao auditório, devem

acompanhar cada divisão ou subdivisão, ratificando-as de imediato; a conclusão deve

conter uma breve recapitulação, a exortação ao medo do castigo e a oração emotiva,

incentivando à devoção constante.

O pregador teria uma tríplice tarefa: ensinar a doutrina, exortar à boa conduta e dar bom

exemplo. Quanto à pronunciação, embora de forma concisa, estabelece que deveria ser

clara e modesta, agradável e adequada ao plano do sermão e à índole do tema.

Relaciona-a, pois, ao estilo, preconizando cuidados com a voz e os gestos19.

16 Como Santo Isidoro, também estranhamente deixado de lado por Murphy (1986). 17 “In omni scriptura et sermone primum satagit sapientis intencio ut lectores sive auditores [redaat] dociles, benivoles et attentos” (P. L., T. 210, col. 111). 18 “Modus vero consistit in partibus sermonis et pronunciacione. Quartorum autem est partes sermonis, scilicet prologus, divisio, confirmacio, conclusio. Propositio atque auctoritas que sit sermonis tocius matéria” (P. L., T. 210, col. 111). 19 “In omnibus hiis observandum est ut pronunciacio non sit tubida non superba nom amara nom inconcinna, sed modesta et humilis, dulcis et scematibus condita et materie conformis. Nec solum oportet

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 18

Diferentemente de Alan de Lille, interessa-se pelo modo de pregar. E dá como certa a

existência de um modo estável, e presumivelmente admitido, de regras a serem seguidas

(como as da ars dictaminis, estabelecidas um século antes pelos italianos).

Sublinha Murphy (1986, p. 324) que, das obras que nos chegaram, esta seria a primeira

a estabelecer “a atitude fundamental e os princípios retóricos concretos que só alguns

anos depois seriam amplamente conhecidos como a forma ‘moderna’ da prédica, como a

ars praedicandi”.

A Summa de arte praedicandi de Tomás de Salisbury (ou Chabham), que fora aluno e

professor em Paris, escrita provavelmente entre 1210 e 1215, vai mais além, tornando-

se, na apreciação de Murphy (1986, p. 324), “o tratado mais significativo do século XIII

sobre a matéria”, nem por isso devidamente estudado pelos especialistas do século XX.

Explica a nova terminologia (thema, antethema, divisio); compara as tarefas do pregador

com as dos oradores antigos (destacando, como Santo Agostinho, a necessidade da

Retórica para o pregador); relaciona a prédica às seis partes da oração propostas pelos

romanos (exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e peroração) e às cinco da

Retórica (invenção, disposição, estilo, memória e pronunciação); trata da persuasão, da

dissuasão e da memória do público; relaciona Retórica, poesia, Teologia e prédica –

enfim, “reflete os interesses do ‘Renascimento’ de fins do século XII: a relação entre as

diversas artes, e entre a cultura antiga e a moderna” (MURPHY. 1986, p. 324;

traduzimos).

Refletindo sobre os significados em sua relação com as disciplinas, estabelece que “dos

quatro tipos de significados, o sentido literal ou histórico corresponde em particular à

filosofia e à teologia, enquanto que os outros três – tropológico, alegórico e anagógico –

pertencem ao estudo das sagradas Escrituras. O sentido literal retira o significado de

uma coisa (res), ao passo que os três restantes o derivam de uma locução (vocum)” –

como fábulas, argumentos etc. (MURPHY, 1986, p. 327; traduzimos).

vocem, sed etiam vultum materie conformari ut leta ultu leto, tristia tristi pronunncientur” (P. L., t. 210, col. 111).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 19

Acentua que a pregação tem por finalidades a evangelização (anúncio) e a instrução

sobre a fé e os costumes, as virtudes e os vícios. E a Retórica é encarecida como fonte

de conhecimento para o pregador.

O paradigma do ‘sermão artístico’, por ele proposto, reconhecia os seguintes elementos:

1) prece inicial, evocativa da ajuda divina; 2) protema ou apresentação do tema

(antetema); 3) tema ou citação e uma passagem bíblica; 4) divisão ou enunciado das

partes do tema; 5) desenvolvimento (prosecutio) dos membros mencionados na divisão;

6) conclusão (considerada parte não integrante do sermão) (MURPHY, 1986, p. 332).

É importante salientar, com Murphy, que, contrariando a tese da origem universitária da

arte da prédica, tanto Alexandre como Tomás “demonstram que todos os elementos do

novo gênero estavam em circulação perto do ano 1200 e pouco depois. Seu testemunho

nos leva a inferir que a teoria básica da ars praedicandi já era conhecida em 1190 e

talvez em 1180 ou antes” (MURPHY, 1986, p. 333; traduzimos).

A famosa Ars dilatandi sermones, de Ricardo de Thetford, escrita certamente antes de

1268, indica oito modos concretos da amplificação que segue à divisão e à subdivisão

do tema, a saber: 1) utilização de uma locução no lugar de um nome, ao definir,

descrever, interpretar etc.; 2) dividir; 3) raciocinar, valendo-se do silogismo, da indução,

do exemplo e do entimema; 4) recorrer a autoridades concordantes; 5) basear-se nas

raízes do conhecido; 6) propor metáforas, mostrando serem adequadas à instrução; 7)

expor o tema de diversos modos, a saber, nos sentidos literal, alegórico, tropológico e

anagógico; 8) assinalar a causa e o efeito (MURPHY, 1986, p. 334).

Outros tratados existiram dedicados à arte da amplificação, como, por exemplo, a

primeira parte de uma Ars concionandi, de datação duvidosa e anônima, embora

atribuída a S. Boaventura, iniciada pelas palavras Omnio tractatio, como por vezes é

chamada.

Citem-se, ainda, dentre outras, a Ars conficiendi sermones, do franciscano João de la

Rochelle (falecido em 1245), e De arte praedicandi, de Guilherme de Auvernia (bispo

de Paris em 1228-1249). Da segunda metade do século XIII, Forma praedicandi,

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 20

atribuída ao franciscano João de Gales, aluno em Oxford, mestre em Paris (cerca de

1270) e falecido em 1302. Prova que o novo gênero está plenamente assimilado,

apresentando uma tipologia de sermões e definindo a prédica, levando em conta o

formato aceito (tema, divisão, amplificação...), sublinhando que as provas de cada

subdivisão devem ser retiradas das autoridades bíblicas; omite a conclusão.

O tratado mais completo da nova retórica da predicação seria Forma praedicandi de

Roberto de Basevorn, escrito em 1322. Nela reúne todos os elementos que encontramos

no desenvolvimento da nova arte de pregar.

No prólogo, exalta a necessidade de os pregadores conhecerem o sistema e método da

prédica artística, encarada como ciência. No primeiro dos 50 capítulos, define a prédica:

persuadir um público em um moderado espaço de tempo, para que se comporte

dignamente (MURPHY, 1986, p. 351). Determina, após estipular obrigação e requisitos,

aqueles que podem pregar: o Papa, os bispos, os cardeais e os pregadores de ofício.

Ao tratar da questão do método, destaca o papel da imitação; os métodos francês e

inglês como os de uso mais geral; o método de Jesus Cristo, que lançaria mão de

promessas, ameaças, exemplos, razões, de forma velada ou clara, segundo o auditório; o

de Paulo, que unia a razão à autoridade do Evangelho, da Lei, dos profetas; o de São

Gregório, que recorria a figuras bíblicas, autoridades, exemplos, significados dos nomes,

etc.; o estilo próprio de São Bernardo, que lançara mão de toda ‘cor’ retórica.

Arrola os ornamentos presentes nos sermões mais trabalhados, mais elegantes: invenção

do tema; conquista do público; prece; introdução; divisão, declaração das partes; prova

das partes; amplificação; digressão ou “transição”; correspondência; acordo de

correspondência; desenvolvimento em circuito; convolução; unificação; conclusão;

coloração; modulação da voz; gestos apropriados; humor (que deveria ser usado com

adequação e parcimônia); alusão; impressão firme; ponderação sobre a matéria

(MURPHY, 1986, p. 354).

Quanto ao tema, estipula que uma boa escolha requer: conveniência à celebração;

clareza; respaldo em texto bíblico fidedigno (não alterado nem corrompido); limitação

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 21

(ao máximo de três declarações ou uma só que possa se converter em três);

concordâncias destas três idéias (MURPHY, 1986, p. 355).

No que concerne à conquista do público, para escutar e reter a lição impetrada

recomenda que se apresente algo sutil e interessante, prodigioso; alguma causa

desconhecida; algum exemplo assustador; exemplo ou anedota sobre a intenção do

demônio de impedir que se escute a palavra de Deus; a palavra de Deus como um

grande signo de predestinação ao Bem; a intenção do pregador: converter, não pedir

esmola (MURPHY, 1986, p. 355).

Referenda a posição de Santo Agostinho, de que antes de pregador há que ser-se homem

de oração etc.; e estabelece os ornamentos do tema20. Termina por lembrar a existência

de outros dois métodos: o primeiro (parisiense-gregoriano), adaptado ao idioma vulgar

dos incultos, que seleciona três materiais adequados aos ouvintes, sendo o tema

desenvolvido em três partes – através de prova tomada da natureza ou das artes, de

prova da Escritura, ou relato de autoridade; o segundo, dirigido exclusivamente a um

público mais erudito ou inteligente, abstém-se de citação de autoridades, dissimula o

artifício. E conclui com os métodos extrínsecos ao sermão: coloração (Cícero);

modulação da voz (Santo Agostinho); ademanes apropriados (Hugo de São Vitor);

humor oportuno (Cícero) para, sobretudo, espantar o sono dos ouvintes; alusão não

literal às Escrituras; impressão firme através de alusões constantes; reflexão sobre a

matéria (quem, a quem, de que e quando se deve falar). E termina, dizendo que aos 50

capítulos acrescenta um de silêncio.

20 Introdução, resumo e localização (livro e capítulo de onde foi retirado) – antetema –; repetição do tema; introdução (autoridade – algo original, um filósofo, um poeta, alguém de prestígio – e/ou argumento – por indução, por um exemplo, por um silogismo, por um entimema). Os exemplos podem ser da natureza, das artes, da história; os entimemas podem ser irrefutáveis (definidos por Aristóteles) ou prováveis (definidos por Boécio). A divisão se apresenta como o quinto ornamento do tema, podendo ser feita de acordo com o fato ou com a ordem de construção, ou com a ordem de apresentação do sermão. Em seguida, a declaração, que pode mostrar as partes de um todo virtual, as partes de um todo universal, ou outra maneira – principalmente através de substantivos. Depois, as provas e a amplificação com suas oito espécies (definição ou seu contrário, de um nome; divisão; raciocínio ou argumentação – resolução de contrários, entimema que exige do ouvinte uma conclusão, exemplos –; concordâncias – de autoridades; exposição – coisas coincidentes na essência, mas divergentes nos acidentes –; invenção de metáforas; exposição do tema – histórica, alegórica, moral, anagógica –; causas e efeitos; digressão ou transição; correspondência ou concordância entre as partes; desenvolvimento em circuito, considerado mais decorativo que útil; convolução; unificação; conclusão (prece), recomendando-se que “quanto mais o fim se pareça com o princípiuo, tanto mais elegante será a culminação” (MURPHY, 1986, p. 360).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 22

Depois de Baservorn, o tratadista mais importante do século XIV seria o dominicano

Tomás de Gales, mestre de teologia em Oxford na década de 40, autor de De modo

componendi sermones cum documentis. Na esteira da tradição já firmada, prescreve a

seguinte fórmula: “a predicação consiste, após uma invocação da ajuda de Deus, na

exposição de um tema escolhido e sua divisão em várias partes convenientemente

concordantes entre si, com a finalidade de dar um ensinamento religioso, intelectivo, e

de inflamar de caridade os corações” (BASERVORN, apud DAVY, 1931, p. 31;

traduzimos)21. Discorre, nos nove capítulos da obra, sobre os quatro elementos básicos

do sermão: identificação, apresentação, divisão e ampliação do tema; preconiza o ensaio

da pronuntiatio (voz e gestos), por considerar o modo de dizer tão importante quanto o

que se diz. De forma inteligente e em estilo pessoal sintetiza a doutrina corrente; assim,

no capítulo final, enumera e exemplifica 15 modos de relacionar o tema e as

autoridades, podendo o nexo ser intrínseco, mediato, por exposição, por definição, por

descrição, por causalidade, por especificação, por modificação, por confirmação, por

totalidade ou parcialidade, por substituição, por circunstância (entre autoridades), por

contrariedade, por exceção, ou de forma extrínseca (MURPHY, 1986, p. 341).

Outros autores e tratados destacáveis: Ars componendi sermones, do beneditino inglês

Ranulfo Higden, falecido em 1364, e João de Chalons, que em seu tratado subdividiria,

na tentativa de torná-lo mais lógico, o quadro temático usual:

A) Tema 1. Declaração do tema 2. Admissão do postulado do tema 3. Assunção do tema, afirmando sua aplicação 4. Formação do termo principal da proposição 5. Prova do termo principal por probabilidade 6. Amplificação do termo principal [por correspondência] 7. Subscrição do termo menor 8. Amplificação ou prolongação da matéria 9. Digressão sobre moral 10. Proposição sobre o postulado, se procedente 11. Autoridade bíblica introduzida como concordância ou circunlocução 12. Conclusão do tema

B) Divisão

21 Citado por E. Gilson em “Michel Menot et la technique du sermon medieval” (Révue d’Histoire

Franciscaine, t. II, 1925, p. 304): “Viso que sunt predicationis genera, restat videre quid sit predicatiodillinitive, de qua intendimus quantum ad primum gepus. Potest ergo sic describi: predicatio est, invocato Dei auxilio, propositi thematis dividendo et concordando, congrue data et devota expositio, ad intellectus catholicam illustrationem et affectus caritativam inflammationem”.

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 23

13. Divisão do tema quando necessário para o desenvolvimento (amplificação) C) Conclusão 14. Apresentação conveniente do todo como uma conclusão (MURPHY, 1986, p. 343; traduzimos).

Conclui Murphy que “como quase todos os escritores medievais da matéria, João

termina gastando a maior parte de seu tempo nos meios de amplificação” (1986, p. 344).

Já o anônimo Modus sermocinandi do século XIV, muito menos pretensioso, restringe a

três partes a estrutura do sermão: assunção do tema, divisão do tema e desenvolvimento

ou exposição das divisões. E o italiano Tomás da Todi, também do século XIV (final),

notabilizara-se particularmente pela distinção sistemática entre “prova” (baseada em

autoridade, figuras e simbolismo metafórico, razões e causas, exemplos, e testemunho

da história) e “amplificação” (acumulação de autoridades, subdivisões detalhadas,

análises de figuras, análises para elogiar ou maldizer, ritmo complicado, refutação, e

exemplos), bem como pelo uso do ritmo na prédica (“para o prazer auditivo do

público”).

Não termina por aí o rol dos tratadistas. Por ora, interessa-nos lembrar, com Murphy

(1986), que

o sistema retórico de que dispunha o pregador medieval tinha cinco elementos: 1) As próprias escrituras (com suas glosas), que forneciam tanto a proposição como sua prova apodítica. 2) Coleções de exempla e outros dados sobre o homem, os animais e o mundo. 3) Concordâncias, listas alfabéticas, quadros de tópicos e outras ajudas bibliográficas para buscar materiais. 4) Coleções de sermões, com esquemas de como deviam ser compostos e sermões já feitos, para determinadas circunstâncias. 5) A própria ars, que correspondia ao tipo de tratados retóricos preceptivos escritos por Aristóteles ou Cícero.

O pregador medieval possuía, pois, “amplos meios para cumprir a tarefa ordenada”

(MURPHY, 1986, p. 350).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 24

Considerações finais

Vimos que, da união dos preceitos retóricos aristotélico-ciceronianos com a tradição da

prédica e da exegese judaico-cristã, com o contributo da patrística, firma-se nos fins do

século XII-inícios do XIII a nova arte da Oratória, materializada nos sermões.

A dispositio que preceitua para os sermões compõe-se basicamente de um protema ou

antetema, seguido ou constituído de uma oração; em seguida, apresenta-se a declaração

do tema (citação bíblica) e seu desenvolvimento, com divisões, subdivisões e

amplificações através de diversos modos (inclusive de razões contrárias – herança da

dialética aristotélica –, digressões etc.); podendo conter ou não uma conclusão.

O sermão, endereçado mais à sensibilidade que à razão, objetivaria fundamentalmente

comover os corações dos ouvintes, levando-os à contrição e a uma conduta edificante,

para o que concorreria o exemplo de vida do orador.

Além do imprescindível respaldo bíblico, para a argumentação, os exemplos (historietas

e fábulas) eram geralmente recomendáveis, desde que adequados, podendo servir de

provas às teorias apresentadas no decorrer da exposição. Não apenas pelo que possam

conter de ensinamento moral ou religioso, mas também para “estimular o fervor dos

fiéis, prender-lhes a atenção, e até mesmo combater-lhes a sonolência” (DAVY, 1931, p.

35).

Os tratados estabeleceriam regras bastante rígidas para a prédica, modelos de sermões

apropriados a determinadas circunstâncias e auditórios, recolha de exemplos adequados

à seriedade do culto. Os pregadores escolhiam e adaptavam essas fórmulas ao interesse

do momento, às idéias em voga, fornecendo, dessa forma, uma representação da vida e

dos costumes da sociedade sua contemporânea.

O sermão teria por principais objetivos, tal como propostos nas artes praedicandi:

instruir e comover. Instruir, através da exegese das Escrituras principalmente; e comover

para o exercício de uma vida edificante com vistas à recompensa celestial. Por

aconselhar a utilidade da prática das virtudes e a nocividade dos vícios, a prédica se

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 25

apresentaria como um discurso do gênero deliberativo, muito embora mesclado ao

epidítico no elogio do santo e da santidade; e, mesmo, ao judicial, uma vez que justa se

mostra a recompensa divina através das provas apresentadas para o seu alcance.

Com o surgimento das ordens mendicantes, certas particularidades do sermão seriam

precisadas ou destacadas. Por exemplo, os franciscanos insistiam em que “as palavras

do sermão devem ser discretas, puras e breves”; para com maior eficácia “pregar sobre

as virtudes e os vícios, a expiação e a recompensa gloriosa”, etc. (DAVY, 1931, p. 33).

Matéria ensinada na Faculdade de Teologia, aí se exercitava uma tríplice função: ler

(legere, lectio), discutir (disputare) e pregar (praedicare) (DAVY, 1931, p. 23). M. M.

Davy observa, em seu cuidadoso estudo e antologia de sermões universitários

parisienses do século XIII, que estes, dirigidos a um auditório formado por clérigos, e,

por isso, compostos em latim, se apresentam “carregados de divisões e subdivisões,

plenos de textos escriturais e patrísticos, semeados de alegorias e de exemplos

simbólicos” (1931, p. 75). Neles eram seguidos os preceitos de Guibert de Nogent, de

Allain de Lille, de Jacques de Vitry: “Quer se trate de recorrer à Bíblia, aos pais da

Igreja, às autoridades profanas, ou ainda de interpretar palavras gregas e hebréias,

recontar anedotas ou considerar as propriedades dos animais e das pedras preciosas, a

técnica é sempre a mesma” (DAVY, 1931, p. 75). Evidentemente que essa técnica

poderia variar de acordo com o gosto pessoal dos pregadores e as circunstâncias do

tempo e do lugar em que pregam, avisa Davy (1931, p. 76), ressaltando na conclusão

que a prédica universitária do período estudado caracteriza-se por um caráter

eminentemente simbólico (1931, p. 75).

Mas os sermões obviamente, já o vimos, não se limitavam às universidades, “tinham

lugar também nas igrejas” e freqüentemente, o que nos interessa mais de perto, “entre os

cultores de São Tiago” (DAVY, 1931, p. 28). Assim é que numerosos sermões

destinados aos ofícios em torno desse Apóstolo, cujo sepulcro acredita-se estar na

basílica de Santiago de Compostela, são documentados no Livro I do Liber Sancti

Jacobi compostelano, o precioso Códice Calistino do século XII, que nos serve de

corpus. Alguns já foram por nós analisados (MALEVAL, 2007).

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Série Estudos Medievais 1: Metodologias 26

Para terminar, acentuaríamos que a reflexão sobre a prédica medieval é importante não

só por permitir um maior detalhamento desse sub-gênero literário, em que são tão

abundantes as figuras de retórica e os símbolos – como costuma acontecer nos discursos

ficcionais. Principalmente através da sua feição tropológica, possibilita o conhecimento

dos costumes condenáveis e reprováveis de uma época – por exemplo, a importância de

Tiago Maior e sua cidade arcebispal no contexto da cristandade, o interesse pelos nomes

e números, para além dos ensinamentos bíblicos esperados.

Unida ou veiculadora dos preceitos da Retórica clássica, penetrou nos vários gêneros da

literatura medieval – por exemplo, nas crônicas clericais e laicas, como as de Fernão

Lopes, o primeiro cronista-mor e o primeiro grande prosador de Portugal. Impossível

fazer uma boa exegese dos seus textos (mas não só) sem levar em conta a tradição

parenética medieval.

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LOPES, Fernão. Crônica del rei dom João I da boa memória e dos reis de Portugal o

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