da poesia concreta a galÁxias: os procedimentos … · discurso crítico da poesia concreta se...
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LVIA FERNANDA MORALES
DA POESIA CONCRETA A GALXIAS: OS PROCEDIMENTOS DA COMPOSIO CONSTELAR NA POESIA DE HAROLDO DE
CAMPOS
Monografia apresentada disciplina Orientao monogrfica II como requisito parcial concluso do Curso de Letras, bacharelado em estudos literrios, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paran
Orientador: Prof. Dr. dison Jos da Costa
CURITIBA
2008
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Agradecimentos
Primeiro ao meu querido orientador, Professor Dr. dison Jos Costa, pela pacincia, apoio e liberdade, mas, mais que nada, por me segurar no cho nesta viagem pelo livro galctico.
A professora Sandra M. Stroparo, que alm de aceitar ser banca, com sua leitura atenta contibuiu enormente ao olhar ao tema.
Aos meus pais, de longe o melhor rgo de fomento, e por ltimo, mas nunca menos, meus amigos Miran, Simone, Juliana, Claudio e James pela ajuda incalculvel.
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Todo poema autntico uma aventura uma aventura planificada. Um poema no quer dizer isto nem aquilo, mas diz-se a si prprio, idntico a si mesmo e dissemelhana do
autor, no sentido do mito conhecimento dos mortais que foram amados por deusas imortais e por isso sacrificados. Em cada poema ingressa-se e expulso do paraso. Um poema
feito de palavras e silncios. Um poema difcil. Ado. Ssifo. Orfeu.
(...)
Agora, o poeta, um turista exilado, que atirou ao mar o seu Baedeker.
Algo assim como Salve-se Quem Puder.
Como foi sempre.
Dcio Pignatari, Depoimento, 1950.
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RESUMO
Este estudo monogrfico tem por objetivo verificar se do ponto de vista da composio potica possvel entender a Poesia Concreta e a obra Galxias como prximas. Com base nos textos que compe a Teoria da Poesia Concreta e o poema, definiremos quais so as unidades mnimas a partir das quais se organiza esteticamente o material lingstico e como isso acontece nos dois momentos da obra de Haroldo de Campos. Nossa hiptese se justifica do ponto de vista cronolgico, j que Galxias comea a ser produzido somente trs anos aps trmino oficial da Poesia Concreta como ao coletiva, que teria, portanto, ecos na obra de Campos.
Palavras-chave: Haroldo de Campos; Poesia Concreta; Galxias; composio potica.
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RESUMEN
Este estudio monogrfico tiene el objetivo de verificar si del punto de vista de la composicin potico es posible entender el movimiento de vanguardia brasilea de Poesa Concreta y la obra Galxias como aproximables. Con base en los textos que componen la Teora de la Poesa Concreta y el poema definiremos cuales son las unidades mnimas de significacin, a partir de las cuales se organiza estticamente el material lingstico y como esto ocurre en los dos momentos de la obra de Haroldo de Campos. Nuestra hiptesis se justica del punto de vista cronolgico, pues, Galxias empieza a ser escrito solamente tres aos despus del trmino oficial de la Poesa Concreta como accin colectiva, e tendra ecos en la obra posterior de Campos.
Palabras-llave: Haroldo de Campos; Poesa Concreta; Galxias; composicin potica
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Lista de Abreviaturas
PC - Poesia Concreta
Autores:
AC - Augusto de Campos
HC - Haroldo de Campos
Obras:
TPC - Teoria da Poesia Concreta
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SUMRIO
1. INTRODUO..................................................................................................1
2. POESIA CONCRETA
2.1 A palavra unidade mnima da composio ideogrmica.................................9
2.2 A organizao espao-temporal do poema concreto......................................15
2.3 guisa de concluso: o plano-piloto da Poesia Concreta...............................22 3. GALXIAS
3.1 Descrio do texto: a forma e a epifania.....................................................24
3.2 Anlise dos fragmentos de Galxias
3.2.1 Primeiro e ltimo fragmentos: a sobreposio do paradigma ao
sintagma e a linearidade aparente; a auto-referencialidade.........................30
3.2.2 Fragmento 8: a articulao dos nveis espao-temporais ............................36
3.2.3 Fragmento 43: mistura de lnguas, a organicidade do processo
de composio. .............................................................................................41
3.3 Composio por montagem: a sintaxe da teoria de
Eisenstein em Galxias.................................................................................46
4 CONCLUSO.....................................................................................................53
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................................57
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1 Introduo
O objetivo deste estudo monogrfico examinar os processos de composio
potica em Galxias, de Haroldo de Campos, a fim de verificar se possvel
estabelecer uma conexo entre a base terica desenvolvida pelo Grupo Noigandres
em seu projeto de Poesia Concreta e o poema Galxias de Haroldo de Campos1,
texto publicado em partes a partir de 1963, at 1976, e posteriormente reunido em
forma de livro no ano de 1984. Ou seja, o objetivo central indagar em que medida
Galxias se afasta ou no dos contedos programticos da vanguarda concreta.
Assim sendo, nosso recorte levar em considerao dois momentos: a
produo terica e potica de 1955 1960, correspondente Poesia Concreta, e os
anos de elaborao do poema Galxias. O corpus desse primeiro quadro so
essencialmente os textos reunidos na Teoria da Poesia Concreta e o poema mais e
menos, este como exemplo dos procedimentos a serem analisados, tendo sido
publicado na revista do grupo Noigandres 4. No segundo momento nos propomos a
analisar 4 textos extrados de Galxias considerados interessantes para o
esclarecimento da hiptese.
Segundo Horcio Costa (2006, p. 39), que contextualiza a obra de Campos na
histria da poesia brasileira do sculo XX, a vasta obra do autor caracteriza-se pelo
vetor crtico que, sendo seu valor central e tico, rel a tradio no sentido de
recusar qualquer esquema analtico cabal ou verocntrico, o que confere obra uma
natureza dinmica e transformadora.
No seu trabalho intelectual, Campos adotou o que poderia reduzir-se a dois
momentos: o vanguardista e o ps-vanguarda, ou, nas palavras no autor, fase
utpica e fase ps-utpica. Sua postura representa um movimento de conciliao no
que diz respeito ao fazer potico e ao discurso crtico que o envolve, entre sua
gerao e os autores da Semana de Arte Moderna e a segunda gerao de poetas
como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.
O movimento de dilogo se caracteriza nesta segunda gerao pela
afirmao e superao de algumas posturas do primeiro modernismo no
enfrentamento da cultura oficial, assim como, contrapondo-se afirmao positiva
do nacionalismo eufrico da primeira gerao, ao mesmo tempo um contraste em
favor do dilogo perdido na gerao potica neo-parnasiana dos anos 30. 1 So Paulo, SP, 1929 - 2003
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Nesta esteira, a importncia do movimento de Poesia Concreta, tanto se
pensarmos na contribuio no processo da poesia nacional como na emergncia de
produo da obra, obvia quando se tenta determinar o ambiente em que surgiu.
Fala-se necessariamente dela em contraponto poesia da chamada Gerao de
45 e ao mesmo tempo como um movimento de retomada das vanguardas
brasileiras dos anos 20.
Nesse sentido, Costa prope que o lugar da obra de Campos o de ponte: o
movimento de poesia concreta se formaliza dez anos depois da gerao de 45
representando uma terceira afirmao do movimento modernista e sua segunda
reciclagem no panorama da poesia brasileira. Os poetas concretos dos anos 50
aceitam a herana modernista na forma de estreitamento e afastamento do dilogo
atualizador da poesia brasileira em relao ao movimento de vanguarda
internacional, pois, o movimento concreto se d no sentido da criao e exportao
de contedos e de uma linguagem prpria e, por essncia, afastado da ideologia
nacionalista em prol de um projeto nacional aberto. (COSTA, 2006, p. 47).
No contexto da guerra fria, a Poesia Concreta leva pratica a poesia de
exportao numa resposta banalizao do legado modernista pela poesia de 45,
encarando com austeridade os postulados de 22. Ainda segundo Costa (idem, p.48),
foram trs os maiores resultados da Poesia Concreta na literatura brasileira: a
restaurao do esprito de vanguarda dos anos 20, a reviso da noo ontolgica de
nacionalismo literrio, e a responsabilidade da garantia do trnsito entre a
restaurao crtica da vanguarda e o momento subseqente da poesia brasileira de
hoje.
No por acaso que poetas como Arnaldo Antunes, para citar um, em pleno
sculo XXI continuem investindo nos desafios abertos pela Poesia Concreta e que
de uma maneira ou outra ainda alastrem, claro que no no mesmo vis de manifesto
dos anos 50, o projeto concreto. Mas tambm os prprios poetas de Noigandres
foram alm da poesia concreta ortodoxa, e se auto-superaram por caminhos
diferentes, sem que nenhum deles deixasse de lado nem o esprito crtico nem o
impulso criador que marcou os anos 50, o que permite na opinio de Costa que a
cultura de poesia brasileira chegue maturidade plena. Nesse sentido,
A resistncia de boa parte da crtica de poesia no Brasil em considerar, no seu julgamento sobre o significado da vanguarda brasileira em nossa vida intelectual, a capacidade transformadora dessa corrente, s interpretativos
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pr-determinados, ou com o deturpador critrio sociolgico ou pelo puro preconceito antivanguardista.(COSTA. 2006, p. 49)
O papel de Haroldo de Campos como articulador foi fundamental nesse
quadro evolutivo. O carter logo-descentralizador da obra de Campos, apontado
por Costa, est ligado a contra restar uma noo esttica ou redutora da Poesia
Concreta. Pois, os autores do grupo Noigandres reconhecem a concretude potica
em escritores distantes como Goethe e Dante e resgatam autores como
Sousndrade e Pedro Kilkerry numa operao de abertura da idia esttica de
poesia e da histria literria, que transformam antes num movimento inclusivo que
estabiliza a ruptura pela eleio de certa tradio.
Ao mesmo tempo em que Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Dcio
Pignatari so reconhecidos como autores de uma obra importante na literatura
brasileira, pois no se consegue descartar esses autores como interlocutores
vlidos, embora a Poesia Concreta seja acusada de no possuir nenhuma obra de
importncia. Em 1950 Antonio Cndido anotava que:
[...] estamos assistindo o fim da literatura onvora, infiltrada como critrio de valor nas vrias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da literatice tradicional... Em conseqncia, precisamos tambm a formao de padres literrios mais puros, mais exigentes e voltados para a considerao dos problemas estticos, no mais sociais e histricos. (...) Literatura e Cultura de 1900 a 1945, in: Literatura e sociedade, 1975, p 193.
A necessidade de uma leitura mais crtica sobre o que se escrevia no Brasil
o contexto em que surge a Poesia Concreta. E mais, a autonomia da literatura
proposta por Cndido tambm se refere modificao do pblico. Se por um lado o
discurso crtico da Poesia Concreta se sobrepe produo potica, argumento da
crtica em face da supremacia da teoria sobre a poesia; por outro, a difuso dessa
teoria se deu em meios de veiculao de informao massivas como o Jornal do
Brasil, Correio Paulistano, Dirio de So Paulo e Correio da Manh, abrindo espao
para questionar a relao entre uma alta cultura letrada e aquela divulgada ao
grande pblico.
Na teoria da Poesia Concreta so expostos os autores que fazem parte de
seu paideuma2, formado em grande parte por autores estrangeiros, mas tambm por
2 Pound utiliza o termo paideuma para definir uma escolha sincrnica das melhores obras de todos os tempos, o legado cultural a ser deixado para a humanidade. Esta escolha pode deixar de lado autores consagrados de obra mediana para incorporar autores considerados menores, mas que
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Oswald de Andrade, o modernismo de 22 e Joo Cabral de Melo Neto, por exemplo.
O procedimento de seleo ou a leitura que os concretistas fazem da tradio no
se d num sentido diacrnico, mas sim estabelecendo um dilogo que tem como
objetivo constituir uma tradio prpria. Os procedimentos poticos so pinados
para que atravs da pesquisa esttica e do estudo sistemtico do passado literrio
se chegue a uma nova forma de fazer poesia.
nesse sentido que parece-nos possvel a hiptese de que haveria alguma
conexo entre os modos de operao esttica do material lingstico nesses dois
momentos da obra de Campos. No primeiro, o projeto de Poesia Concreta
proposto como uma ao manifesta e radical, quase panfletria, de dilogo de
tradies, renovao potica e relaborao da histria literria. O segundo momento
para Haroldo de Campos o de reconsiderao e reviso no interior da sua obra
dos procedimentos poticos. Falando do poema Ciropdia ou a Educao do
Prncipe, diz:
Nessa prosa-poema, semeado de palavras-montagem, estruturado em segmentos rtmico-prosico, encontra-se, por assim dizer, a pr-histria barroca da minha poesia. Em certo sentido, retomei-o e radicalizei-o na escritura galtica que elaborei posteriormente. Para passar s Galxias, no entanto, foram decisivos, por um lado, a idia de concreo, de blocos semnticos associados por sbito curto-circuito de significantes; por outro, o exerccio do controle do acaso. (CAMPOS, 1992, p. 270)
Neste brevssimo panorama de sua obra, temos a descrio, por um lado, da
reduo minimalista da linguagem e da explorao de recursos grficos nos poemas
concretos, e por outro, Galxias, que parece caminhar numa direo esteticamente
contrria a essa. Porm, a abolio dos limites entre prosa e poesia em que
aparecem ecos de traos barroquizantes dos poemas anteriores ao concretismo, se
soma s tcnicas de composio caractersticas da Poesia Concreta como a
paronomsia, permutaes e proliferaes fnicas.
Galxias, pertence fase dita ps-utpica, vertente menos conhecida da
poesia de Campos que se inicia nos anos 60 no momento em que o movimento de
Poesia Concreta comea a se exaurir oficialmente enquanto ao coletiva, mas que,
possuem alguns textos onde conseguiram avanar na linguagem, indo alm do seu tempo. Esta seleo no se pautar pela sucesso temporal das obras como as classificaes diacrnicas tradicionais, mas pelo lampejo criativo que independe da poca da obra. Uma obra do sculo X em dilogo com uma do sculo XX, apresentando similaridades.
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no entanto, continua presente na produo individual dos trs fundadores do grupo
Noigandres como conscincia crtica em prol de uma concepo de poesia que se
guia pelas operaes materiais da linguagem.
Composto por cinqenta fragmentos em que somente o inicial e o final so
fixos e os outros podem ser lidos de alternada j que cada um um universo
narrativo autnomo, eles se unem tematicamente pela idia do livro como viagem.
Neste poema h uma multiplicidade de vozes e linguagens que se entrelaam em
um tecido complexo constitudo de expresses orais, slogans, ditados populares,
frases de pra-choque, dilogos coloquiais entrecortados por reflexes sobre
linguagem, literatura e cultura, bem como elipses, atravessamentos de palavras ou
frases em lngua estrangeira, dentre outros artifcios que desestabilizam uma
narrativa linear e as referncias fixas de sujeito ou de mundo.
Poderia dizer-se que existe, como outro projeto, uma certa flexibilidade em
relao austeridade da Poesia Concreta, num sentido quantitativo de informao
que vinculada na poesia, mas que no entendida como um afrouxamento do
rigor ou perda da qualidade da linguagem potica, pois Campos no abre mo da
meticulosidade com que efetua as operaes materiais com a linguagem e seu
modo de criar e pluralizar sentidos a partir da organizao formal do texto e de sua
microestrutura.
Os jogos de linguagem, nos quais a materialidade do signo lingstico
destacada para produzir efeitos sonoros, rompem com uma possvel linearidade de
seqncia lgica na formao de significados. Se na Poesia Concreta era
necessrio procurar atravs da sintaxe espacial um processo de construo de
significados onde o poema capaz s de comunicar seu prprio contedo,
desconsiderando referncias exteriores, podemos achar em Galxias algumas
destas caractersticas que poderiam aproximar o da PC.
Diante desse panorama a questo se essa mesma preocupao com a
organizao da linguagem, na qual necessrio que o leitor construa os significados
a partir de conotaes obtidas num nvel profundo de lngua, e construa ele mesmo
enunciados sintticos possveis, aproveitada no poema Galxias. Entender em que
medida o conceito do que poesia para Haroldo de Campos na Poesia Concreta
mantida na produo posterior de Galxias.
Desta forma, considerando a sintaxe como um elemento de organizao
potica, nossa hiptese que Galxias seria construdo de forma coerente com o
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projeto intelectual do autor. Por procedimentos de composio entendemos a
mecnica da linguagem baseada na formao de enunciados, e estes como funo
de estabelecer relaes entre estes e/ou o falante e/ou o ouvinte. Em Galxias, no
existem signos de pontuao, por isso quem l deve projetar os significados dos
enunciados. Na Poesia Concreta, por sua vez, esta organizao est colocada pela
espacializao do material lingstico no espao grfico do papel.
A partir da Teoria da Poesia Concreta a reflexo sobre o uso da palavra como
unidade mnima de significao potica e sua sintaxe de organizao. Assim, no
somente porque se trata no primeiro caso de poesia - versificada ou no - e no
segundo de prosa-potica - ou proesia nas palavras de Caetano Veloso3 -
presume-se, pois, a partir do dato da proximidade cronolgica dessas produes,
que possa existir uma possvel continuidade, ruptura ou evoluo dos mecanismos
poticos.
importante pontuar que no se trata de um trabalho que tenha como
interesse ver em que medida a teoria corresponde prtica potica, num sentido
necessariamente cotejador, pois isto admitiria que as possveis divergncias internas
no fazem parte da construo do projeto potico do modo em que ele se colocou.
Em 1955 a Poesia Concreta comea a ser definida como poesia que deixa de
lado as pretenses figurativas da expresso (Poesia Concreta de Augusto de
Campos, p 34). Ferreira Gullar em Vanguarda e subdesenvolvimento (1969) em
dilogo direto com a Poesia Concreta depois de desvincular-se dela, afirma que: O
concretismo foi assim uma resposta inadequada ao problema que se propunha. Mas
essa resposta no foi gratuita nem casual: foi fundamentada em problemas estticos
[...] cujas fontes esto no iderio da arte-pela-arte do fim do sculo XIX (p. 35).
Tendo em vista que no livro citado as observaes de Gullar se do no sentido de
descrever um movimento de vanguarda num pas subdesenvolvido, a contraposio
de Franchetti fundamental para afirmar a contribuio durante 53 anos da Poesia
Concreta no trajeto da poesia brasileira [...] pode-se pensar que uma das obras mais importantes da Poesia
Concreta seja justamente o fato de ela se propor como literatura de vanguarda num pas subdesenvolvido, agitar aqui questes que diziam respeito s relaes da literatura brasileira com a literatura europia ou
3 Neologismo que Veloso usou para descrever a o trabalho de Campos em Galxias Estou falando de vera. Vera. Eu quero a proesia. Eu quero as galxias do poeta heraldo de los campos. Quem no comunica d a dica. Eu quero a proesia, 1970
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americana, da literatura como a sociedade industrial, da cultura de massas com a cultura erudita, etc. (FRANCHETTI, 1984, p. 25)
Dentro da crtica dedicada anlise da obra de Haroldo de Campos no se
encontrou nenhum trabalho que se preocupe de forma sistemtica com a relao
terica do tratamento do signo lingstico nos diferentes momentos da obra do autor.
A questo tem fundamental importncia, pois, o signo lingstico, e, em
conseqncia a forma como a linguagem se organiza poeticamente uma questo
permanente na obra critica e potica de Campos.
Usaremos como base terica para a seo sobre Poesia Concreta o trabalho
de Paulo Franchetti Alguns aspectos daTeoria da Poesia concreta (1986), que revisa
criticamente as fases tericas do grupo Noigandres. E o dossi dedicado aos 50
anos da Poesia Concreta da revista O eixo e a Roda da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais. Para falar sobre Galxias utilizaremos uma
resenha de Flora Sssekind publicada no Jornal do Brasil, entrevistas com Haroldo
de Campos e o ttulo Metalinguagem e outras metas no qual o autor desenvolve
assuntos pertinentes para esta pesquisa.
O desenvolvimento deste estudo, como j adiantamos, levar em
considerao as seguintes etapas: No primeiro captulo buscaremos na Teoria da
Poesia Concreta a noo de palavra, estrutura e forma de organizao do poema a
partir da leitura que os poetas concretos fazem do paideuma4 e baseando-nos quase
exclusivamente nessa leitura, j que ela se configura como um recorte da tradio
que tem um direcionamento especifico na Poesia Concreto. Para ilustrar a forma em
que se articulam estas instncias analisaremos o poema concreto mais e menos
de 1957.
No segundo captulo, depois de consideraes gerais sobre a obra Galxias,
pensaremos atravs da anlise de alguns fragmentos quais observaremos a
referencialidade e linearidade dos fragmentos, a articulao dos nveis espao-
temporais, a paronomsia ou mistura de lnguas levando-nos a pensar a
organicidade dos processos de composio do texto e finalmente a compresso
4 Acreditamos ser mais produtivo desprender a definio da palavra e dos processos de composio da Poesia Concreta da teoria, pois, para efeitos deste estudo, admitimos que h uma correspondncia entre o proposto teoricamente e a prtica potica, tambm porque na teoria esses dados aparecem de forma explcita.
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geral dos processos de composio atravs de sua aproximao teoria de
montagem flmica do russo Sergei Eisenstein.
No terceiro captulo, finalmente, tentaremos conectar os pontos de anlise a
partir das observaes realizadas nos captulos anteriores, a fim de verificar se
possvel reconhecer como prximos os momentos da Poesia Concreta e Galxias,
considerados os processos de composio potica.
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2 POESIA CONCRETA
Trataremos aqui dos procedimentos poticos de estruturao do material
lingstico da Poesia Concreta, buscando nos textos que compe a Teoria da Poesia
Concreta, pelo filtro da leitura que os concretos realizam da tradio, a lgica de
organizao do material lingstico, a definio da palavra como unidade de
composio e sua forma de organizao no poema.
Para isto, partiremos das sinalizaes que os poetas fazem do paideuma
potico em seus artigos, entendendo que no estabelecimento de sua leitura da
tradio, eles recortam pedaos interessantes do procedimento potico de cada um
dos autores e correntes estticas para a construo de sua teoria potica.
Essa leitura da tradio alija do seu caminho tudo aquilo que perturba a sua
trajetria. Os poetas concretos passam rapidamente de um autor ao outro, de uma
teoria a outra, sem uma argumentao que explicite ao leitor as razes de seus
julgamentos ou a possibilidade de tomar a obra desses autores como uma
continuidade ou um conjunto passvel de sntese.
Tentaremos, dessa forma, elencar e organizar o material contido nesses
artigos para entender o aproveitamento do paideuma no que diz respeito a dois
pontos: A fixao da palavra como unidade mnima e a organizao dessas
unidades. Como eles s citam as teorias, foi necessrio aprofund-las por outros
meios com o objetivo de resgatar os procedimentos referidos, sempre com base no
recorte que os poetas concretos estabelecem para cada autor e referncia.
2.1 A palavra unidade mnima da composio ideogrmica.
A explicao e definio da palavra como unidade principal da Poesia
Concreta tem trs referentes dentro da TPC: o Futurismo italiano e o Dadasmo, que
buscam a palavra em liberdade; Apollinaire e Cummings, que trabalham com a
palavra como signo autnomo; e Ezra Pound, que baseia sua teoria da palavra na
utilizao potica nos estudos do ideograma chins de Ernest Fenollosa.
Comearemos pelo Futurismo, vanguarda histrica do comeo do sculo XX.
Foi um dos movimentos que mais influenciou a procura por uma nova arte. No
desejo pela renovao da arte italiana, Marinetti e seus seguidores sintetizam no
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Manifesto tcnico da literatura futurista (1912) uma contestao explcita cultura
tradicional que se ope velocidade do mundo moderno.
Propondo uma arte de ao violenta, o Futurismo traduz o choque e tenso
da era industrial na pesquisa das formas estticas, num esforo por adequ-las ao
novo homem. No plano lingstico prega a abolio do tempo e espao analgicos
atravs da sintaxe desestabilizadora. Assim, pretendem condicionar uma criao
literria que valorize o substantivo o objeto, e priorize os verbos em infinitivo, alm
de abolir os advrbios e todos os elementos de conexo, produzindo, por exemplo,
compostos lingsticos dinamicamente sintticos como homem-torpedeiro e
multido-ressaca (Castro, 1979, p. 37).
Marinetti tambm prope eliminar a pontuao, substituindo- a por sinais
matemticos ou musicais, que no conjunto de reformulao lingstica-potica chega
sntese da teoria da palavra em liberdade e a uma forma afim de escrita,
importantes para outras vanguardas como o Cubismo, o Surrealismo e o
Modernismo Brasileiro (Castro, idem, p. 40), e, tambm, tanto quanto podemos notar
nos artigos que estamos analisando, para a Poesia Concreta.
A velocidade da comunicao potica aparece como um dado essencial do
Futurismo, especialmente pelo vis de poesia materialista, alimentada por
sensaes brutas e calcadas nas coisas. A dinmica da velocidade, ritmada por ela
em feixes de energias que se desdobram no centro do mundo urbano, permeiam o
desejo dos futuristas de adaptar-se a um universo em que o poder do homem sobre
a matria e da matria sobre o homem aumenta rapidamente.
Os dadastas avanaram o entendimento da palavra dos futuristas num
sentido negativo. Partem da palavra em liberdade da vanguarda italiana
radicalizando-a: para eles toda obra uma falsificao porque sua matria prima, a
linguagem, um sistema de convenes que exige do homem o uso de frmulas e
associaes verbais que lhe so externas e artificiais. Segundo eles, isso fere o ser
humano porque uma imposio do coletivo e portanto um abuso de poder
(Raymond, 1997, p. 235), da a valorizar a palavra em liberdade como uma
manifestao na poesia da espontaneidade da palavra. Essa postura tem vrios
desdobramentos extremos no movimento como o de negar sua prpria produo
artstica.
De qualquer forma, o Modernismo Brasileiro resgata, pelo menos na sua fase
herica, a contestao endereada ao ambiente comunitrio e a conjuntura da
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produo artstica no Brasil, muito ligada aos valores do parnasianismo e do
realismo/naturalista. Aps isso, tnica do movimento a idia de Antropofagia, ou
seja, de assimilao crtica dos dados estrangeiros para a produo de uma
literatura autnoma e independente. Os desdobramentos dessa primeira vanguarda
potica e da Semana de Arte Moderna de 22 permitiram a configurao de uma
plataforma para a expanso de uma arte de vanguarda nacional que teve impacto
palpvel na gerao seguinte Drummond e Mendes e numa terceira gerao, a
Poesia Concreta.
Quase trinta anos depois, a Poesia Concreta retoma na esteira desse impulso
a questo da pesquisa de formas estticas, e dos movimentos vanguardistas
europeus a questo da palavra em liberdade, enquanto as vanguardas europias e
o modernismo brasileiro reanimam a utilizao material e espacial da folha em
branco que Mallarm tinha anunciado no final do XIX. A relao dessas vanguardas
com a teoria da Poesia Concreta est muitas vezes no plano ideolgico enquanto
movimentos de vanguardas com razes comuns e interessando a ambientes scio-
culturais muito semelhantes.
Aps a definio da palavra em liberdade, entra em jogo a noo da palavra
como coisa, que a base para os Calligrammes de Guillaume Apollinaire. H
neles, todavia, segundo AC uma estrutura evidentemente imposta ao poema,
exterior s palavras (TPC, p. 22), imposta ao poema no sentido em que o contedo
e a forma s se relacionam externamente, o que aproxima a poesia de Apollinaire ao
desenho, mais do que de uma funcionalidade material da linguagem.
O critrio de avaliao do paiudema concreto parece ser o da funcionalidade.
Apollinaire teria errado por condenar o ideograma potico mera representao
figurativa do tema (TPC, p. 21), ou seja, a ideografia, representao grfica e
pictrica de um contedo que condiciona o poema a uma referencialidade externa,
no para os poetas concretos interessante.
Por outro lado, a poesia de Cummings entra no paideuma concreto como o
resultado mais organizado dos princpios propostos pelos dadastas e futuristas. A
utilizao minimalista da palavra consegue, assim, radicalizar sua dinamizao
espao-temporal, apesar dos riscos de ultra conciso em que o poeta termina, na
opinio de HC, cado.
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Para Cummings a palavra fssil. O poema cummingsiano tem como elemento fundamental a letra; a slaba j , para seus propsitos, um material complexo [...] Interessado na palavra a partir do fonema, orienta-se para uma forma aberta, embora a risco de esgotar-se no poema-minuto, frente aos percalos duma sintaxe ainda experimental (TPC, HC, p. 30)
Na srie de avanos e recuos que a histria da poesia moderna para os
Concretos, o impasse de Apollinaire do desenvolvimento do processo de
composio e do recorte de Cummings, definido como estrutural, resolvido por
Pound:
Seria preciso que outro poeta surgisse, mais enrgico, mais culto, mais ampla e universalmente dotado e informado, para, partindo de fontes seguras estabelecer definitivamente a noo de mtodo ideogrmico aplicado poesia. Referimo-nos a Ezra Pound. (op. cit.)
Pound o pice da linha evolutiva que comeou em Mallarm, os dois vo
se encontrar no campo da estrutura (TPC, p.22). A noo de estrutura graduada
primeiro pela tipografia funcional e depois pelo ideograma definido por Ernest
Fenollosa como um processo de composio em que (...) duas coisas reunidas no
produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relao fundamental entre elas
(Fenollosa, apud AC, TPC, p. 34).
A importncia histrica de Pound como organizador do trabalho sobre o
ideograma chins de Fenollosa The Chinese written characters e do mtodo de
composio ideogrmico preconizado pelo poeta nos seus Cantos e em outros
escritores, entre eles James Joyce, a de um dos articuladores na poesia da teoria
de Jakobson da funo potica (Campos, TPC, p. 14).
Mas, ao contrrio da ideografia, que condena o poema sua representao
pictrica, o sistema ideogrmico chins se baseia num fundamento de construo da
linguagem que se preocupe com os elementos internos e os processos mentais.
Assim, o princpio do mtodo ideogrmico de Fenollosa aplicado sintaxe espacial,
isto , a estruturao da linguagem potica, instrumentalizou a tcnica de
composio que viria depois, atravs da anlise intrnseca dos caracteres
ideogrmicos do chins e o japons. Mesmo sendo uma escrita e uma lgica
distantes dos padres ocidentais, e talvez por isso mesmo, o autor se props a
estudar os elementos universais da forma que constituem uma potica e os
modos como tais elementos operam nessa poesia. (HC, 1977, p. 32).
-
20
A linguagem potica nessa arte se diferencia da linguagem referencial pelo
carter plstico. E apesar do destaque ao aspecto pictrico do ideograma em
relao sua natureza exterior, o mtodo leva em considerao aspectos de
estruturao lingstica que podem e foram aplicados s lnguas fonticas por
Pound, de um lado, na prtica potica e por Jakobson, por outro, no aspecto
estruturalista da linguagem na sua forma potica.
A leitura de Pound da teoria do ideograma de Fenollosa se desdobra na PC
como a possibilidade de um ideograma concreto que seleciona e organiza os
aspectos visuais e ou sonoros dos textos, tendendo a criar uma forma ou estrutura
que ser percebida ou construda alm da similaridade entre o significante e o objeto
denotado pela semntica, pela priorizao da estrutura da unidade-palavra na
disposio e inter-relao delas no poema.
No limite, o propsito da auto-referencialidade da palavra que a transforma
na unidade mnima de significao. Sua organizao material livre nos textos
exerce sua liberdade no sentido de dinamismo. Para isto a palavra tem que ser
objeto:
uma arte no q apresente mas que presentifique
o OBJETO
uma arte inobjetiva? no
: OBJETAL
qdo o OBJETO mentado no o OBJETO expresso, a expres-
so tem uma crie
LOGO:
falidos os meios tradicionais de ataque ao OBJETO (lngua de uso cotidiano ou de conveno literria)
um(a) novo(a) meio(lngua) de ataque direto
medula desse
OBJETO
POESIA CONCRETA: atualizao verbivocovisual
do
OBJETO virtual
(TPC, p.46)
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21
Vale a pena reproduzir o texto desta forma pela maneira como apresentado,
pois, nele, o vis de contemporaneidade associado velocidade de comunicao
e a incorporao de uma linguagem de meios de comunicao de massa na sua
apresentao grfica. A palavra como objeto, portanto, um organismo completo
(TPC, p.44) que a Poesia Concreta pretende atualizar e presentificar, ou seja, fazer
presente na medida em que ela no depender da obrigatoriedade do contexto, e
possa ser autorefencial.
Dessa forma, prope-se que haja similaridade do significante mentado e o
objeto comunicado em contraposio poesia tradicional, na que o alto grau de
subjetividade do poeta ao manipular o material lingstico e do leitor que nessa
abertura dos significantes pode, dependendo do poeta e do poema, abrir uma
brecha de ampla de possibilidades de leitura no seu compromisso da apropriao
intelectual dos objetos externos.
Portanto, o mtodo concreto seria o de atuao no liame da estrutura de
objeto potico virtual, existente apenas em potncia ou como faculdade possa ser
coisa material, percebida pelos sentidos atravs de sua atualizao na poesia. A
percepo do objeto se faz, assim, pelo ressalte ora dos traos fonticos, ora
morfolgicos, ora semnticos, ou todos ao mesmo tempo, se realizando num plano
real e por mecanismos objetivos da estrutura na pgina.
nessa linha de raciocnio que compreendemos que a Poesia Concreta
forma uma mensagem esttica, o que implica que a palavra como objeto seja
capaz de fazer-se presente como forma comunicvel, fazendo do poema um
territrio de jogo isomrfico, entre fundo e forma.
Portanto, adotando o mtodo ideogrmico, no qual existe uma dupla
motivao de ordem lexical e sinttica que encontra nas lnguas ocidentais um
paralelo diagramtico (ou seja, na visualidade), opera nas palavras no nvel material,
num jogo fontico-semntico de similaridades com a noo de relaes que ecoam
na gramtica da sintaxe.
Assim, a disposio sinttico-espacial das palavras atravs do modelo
ideogrmico descrito por Fenollosa e desenvolvido por Pound, subjaz no princpio da
associao por justaposio - sem mediaes conectivas - dessas unidades lexicais
no sintagma do poema chins clssico, ou seja uma sintaxe relacional, paralelstica
e parattica ou assindtica (Campos, TPC, p. 75).
-
22
Nesse momento poderamos considerar que estrutura para a Poesia
Concreta tem dois significados interligados: um no plano da palavra em si e outro na
composio macro do poema. Trata-se primeiro da organizao e disposio dos
elementos essenciais que compem a palavra-objeto, que vem acompanhado de um
modo de construo e formao daquilo que d sustentao ao poema em sua
totalidade. A armao, arcabouo tecido ou formao constitudos de partes
diversas, porm afins, define redes de associaes que se constroem a partir de
correlaes e oposies entre os elementos lingsticos.
J definida a palavra como o objeto fundamental para a PC, cabe agora
pensar na estruturao do poema como um todo complexo e na leitura que os
poetas concretos realizam da tradio para chegar a essa noo.
2.2 A organizao espao-temporal do poema concreto.
Para chegar forma de organizao espao-temporal do poema concreto,
propomos a seleo na TPC das bases tericas extradas do paideuma. Para isto, a
partir da leitura dos concretos, recortamos duas referncias: a teoria da Psicologia
da Gestalt e Um lance de Dados (1897) de Mallarm. Atravs dos artigos nos quais
so elencados os mecanismos de estruturao do poema concreto, buscaremos a
contribuio de ambos considerando que o paideuma uma amostra de autores e
teorias representativas da modernidade e que tem em comum a idia de uma nova
ordem potica.
Por isso, no artigo Pontos-Periferia-Poesia Concreta, AC tenta demonstrar
que com Um lance de Dados surge um processo de composio potica que
encontra correlatos ou desenvolvimentos nas obras de Ezra Pound, James Joyce
(1882-1941) e E.E. Cummings (1894-1962). AC define este processo pela palavra
estrutura embasando-se na teoria da montagem de Eisenstein e no princpio serial
do msico Pierre Boulez e a mxima da Psicologia da Gestalt.
Esta ltima, funciona na PC como um tipo de filosofia da composio
atuante num nvel profundo e essencial do movimento, pois diz respeito lgica que
rege a utilizao da palavra e suas formas de interao. Assim sendo, Gestalt5
uma palavra alem de difcil traduo que significaria aproximadamente 5 Psicologia da gestalt. In: Wertheimer, M. Pequena Histria da Psicologia. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
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configurao, padro ou estrutura. A escola de Gestaltqualitt comeou na
universidade austraca de Graz sendo seu principal terico Chistian Von Ehrenfels
(1856-1932) e se desenvolveu de fato a partir de 1910. Esta teoria considera que a
qualidade da forma um elemento acima dos elementos que compe um conjunto.
Se numa dada composio de qualquer natureza so alteradas as relaes
entre os elementos, o todo se modificar. Subseqentemente, um dos princpios
essenciais que as propriedades das partes dependem da relao entre as partes e
o todo, em outras palavras, as qualidades das partes dependem do lugar, papel e
funo que tm no todo. Ou seja, o todo no simplesmente a soma das partes.
Alguns princpios desta teoria podem ser importantes para compreender o
que rege a composio da PC apesar de que os autores no aprofundem em
nenhum momento a teoria, s a citem. Os gestaltistas afirmam que a associao das
formas um processo dinmico de acontecimentos em que a natureza das coisas
conexas , pelo menos em parte, afetada pela prpria conexo.
Os processos psquicos de associao no so mera aglutinao de
informao sem sentido se no que afetam os sentidos externos sugerindo que a
natureza das partes determinada pelo todo, no ao contrrio. Desta forma, a
mecnica da relao das partes contra-resta s teorias estruturalistas que se
baseiam na relao inversa6.
Um lance de Dados o poema fundacional da TPC porque, para AC, sua
experimentao est na sua estrutura. Na leitura dos concretos, podemos notar que
a relao da Gestalt e o poema de Mallarm est na explicitao neste ltimo da
idia gestaltiana de estrutura, atravs da diferenciao da disposio tipogrfica e o
modo pelo qual se articulam imagens de maneira funcional.
Mallarm o ideal de composio espao-temporal moderna para os poetas
concretos. Seu poema uma obra de arte aberta, pois, a estrutura capilarizada
definida por sua forma de organizao que por ser constelar, capaz de multiplicar
sentidos envolvidos pelo vis de sua organizao formal. O poema de Mallarm
subverte conscientemente os conceitos poticos de tempo e espao, e ao faz-lo
valoriza graficamente a pgina e a liberta da sua condio esttica de superfcie
temporalizada pelo ritmo descontinuo do poema. 6 A grosso modo, o estruturalismo se prope a analisar prioritariamente os elementos mnimos de significao da linguagem para poder, desta forma chegar ao todo. Para aprofundar essa noo ver: Bonnici, Thomas. Teorias Estruturalistas. pp 109-121. In: Teoria Literria, abordagens histricas e tendncias contemporneas. Maring: Eduem, 2003.
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24
Destacamos dos comentrios7 de AC sobre o texto de Mallarm os seguintes
dados: a utilizao espacial da pgina, o emprego de tipos diferenciados, o
espao grfico e o uso especial da folha que tm a funo de hierarquizar
contedos, organizar o material no marco da pgina, mas no somente. Eles so os
modos de operao concretos que guardam em si um conceito revolucionrio do
espao e do tempo do poema. A sintaxe estrutural de fundamental importncia,
ele explica: A concepo de estrutura pluridivida ou capilarizada que caracteriza o poema-constelao mallarmeano, liquidando a noo de desenvolvimento linear seccionado em princpio-meio-fim em prol de uma organizao circular da matria potica, torna perempta toda relojaria rtmica que se apie sobre a rule of thumb do hbito metrificante. (TPC, HC, p.30)
Assim, o espao passou a significar tanto como as palavras. As pausas, os
grandes brancos, as dobras de papel, as experimentaes tipogrficas e a posio
assimtrica das linhas so signos que constroem uma poesia que olha para si
mesma. A potencialidade que os poetas concretos valorizam no Lance de dados ,
dessa forma, a polissemia das imagens, mas, sobretudo a mobilidade espacial do
poema.
Nele, o tempo ocorre num ir e vir sincrnicos num espao que, longe de
comportar passivamente os signos poticos, se configura ele mesmo como
estrutura, j que aos brancos, s variaes tipogrficas e ao formato da pgina
tambm conferida a condio de signo.
Essa nova organizao do material tem como produto uma nova forma de
compreenso da linguagem, cometa AC (TPC, p. 21) Revoluo: porque preciso
que nossa inteligncia se habitue a compreender sinttico-ideogramicamente em
lugar de analtico-discursivamente. Assim, a organizao do material e a nova
ordem implicam nos dois movimentos existentes no jogo do poema concreto: a
leitura e a composio. O poeta ao fazer o poema optar por uma estrutura a priori,
e a partir dela
A Poesia Concreta caminha para a rejeio da estrutura orgnica em prol de uma estrutura matemtica (ou quase-matemtica). I. : em vez do poema de tipo palavra-puxa-palavra, onde a estrutura resulta da interao das palavras ou fragmentos de palavras produzidos no campo espacial, implicando, cada palavra nova, uma como que opo da estrutura
7EmPontos-Periferia-Poesia Concreta, p.18.
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(interveno mais acentuada do acaso e da disponibilidade intuicional), uma estrutura matemtica, planejada anteriormente palavra. [...] (TPC, HC, p. 93)
A estrutura orgnica a estrutura linear, que em poesia se realiza em versos.
Ou seja, a organizao sinttica que encadeia cada elemento na fala/escrita e se
apia na extenso, por Saussure chamada de sintagma, em que, um termo s
adquire significado em relao ao que est imediatamente associado. esse o tipo
de composio palavra-puxa-palavra, expresso aludida acima por HC, referindo-
se a esse mecanismo sintagmtico, que utilizada na poesia tradicional que faz
uma aparente escolha estrutural, mas que na verdade se baseia em escolhas
estticas, ao invs da almejada opo dinmico-estrutural, ainda quando elas
possam ser sustadas num campo espacial.
Ou seja, isto pode significar que a composio diferente do estgio da
leitura real do poema e, por isso, teriam lgicas diferentes. Mas de qualquer forma, a
prioridade uma nova relao do todo em detrimento das partes. Desta forma,
voltando ao conceito de Gestalt, se o todo no a soma das partes, o todo
priorizado em relao s partes, e nesse novo vetor a disposio de leitura deve ser
outra: [...] claro que essa distino implica uma diferena radical de atitude perante a composio do poema, mais do que, propriamente, uma praxstica de trabalho potico excludente. A viso integral da estrutura a ser projetada no papel algo que qualifica de antemo a tarefa criativa, podendo orient-la mesmo num caso em que, na prtica, a viso da estrutura resulte de (ou seja provocada por) um jogo inicial de palavra-puxa-palavra. [Grifo nosso] (TPC, pp.93-94)
A proposio do poema concreto como um poema que se sustente por si
mesmo, ou seja, que pede uma leitura sem referentes externos, passa pelo
planejamento dogmatizado, no no sentido da dispensabilidade de um contexto que
o sustente. Isso seria de fato impossvel, pois entraria em choque com o prprio
estatuto da linguagem, mas, ao aproximar o fazer potico de uma cincia exata
como a matemtica, os concretos colocam seus votos numa poesia rigorosamente
construda, tal qual a de Joo Cabral de Melo Neto.
No caso da Poesia Concreta e da tradio vinda de Mallarm, ou seja, uma
escrita que paralisa e cria profundidade no discurso potico, a combinao no-
linear de elementos lingsticos privilegia as figuras de linguagem como aliteraes,
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assonncias e repetio de palavras, pois, estabelecem uma relao qualitativa na
superfcie da lngua entre as palavras, e ao invs de uma relao de analogia8, uma
relao mecnica que permite a dinamizao.
Para a PC preciso que o poema se liberte de sua extenso lgica e linear e
nisso podemos notar que o liame relacional da estrutura lingstica permite essa
concentrao. Nos artigos, porm, no se deixa claro por que a distribuio espacial
permitiria a libertao da lgica lingstica, ao final uma lgica estrutural continua
sendo lgica. Em Pontos... a tipografia funcional aparecia como a condio para a
passagem do linear ao estrutural. Talvez o objetivo seja a sugesto de outra lgica
possvel dentro da lgica da linguagem.
Nesse novo dado do nvel verbivocovisual antes s apresentado por HC em
A Obra de Arte relaciona-se esta nova lgica para a qual necessrio uma
reformulao da sintaxe :
PROGRAMA:
o POEMA CONCRETO aspira a ser: composio de elementos bsicos da linguagem organizados tico-acusticamente no espao grfico por fatores de proximidade a semelhana. Como uma espcie de ideograma para uma dada emoo, visando apresentao direta presentificao do objeto (TPC, p. 48)
O que fica claro deste fragmento que o que regeria a organizao sinttica
desse material, onde os nveis superficiais (isto , fonticos e morfolgicos) da
palavra so destacados, a relao de proximidade e semelhana. Se as relaes
sintagmticas da fala ou da poesia que utiliza versos dependem das relaes
morfolgicas - paradigmticas - entre os termos da frase (marcas de gnero e
nmero, por exemplo) e dos conectores entre esses termos para a construo de
sentidos, a proposta dos concretos , por outro lado, atravs da espacialidade e a
dinamizao das palavras autnomas, estabelecer as relaes de forma no-
analgica.
Saussure, no Curso de lingstica geral (2004, p. 84), prope como terceiro
princpio da linguagem o carter linear do significante, para o qual o tempo uma 8 Para aprofundar essa discusso ver: CAMPOS, Haroldo de; PAZ, Octavio. Transblanco. 2 edio. So Paulo: Siciliano, 1994. E MEYER-MINNEMANN, Klaus. Octavio Paz Haroldo de Campos: Transblanco. Um entrecruzamento de escritas lricas da modernidade. In: MACIEL, Maria Esther. A palavra inquieta. Belo Horizonte: Autntica, 1999.
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extenso mensurvel numa s direo. A dupla articulao da lngua permite a
negociao deste princpio no sentido que todos os mecanismos estruturais
dependam dele. Os significantes acsticos, em oposio a qualquer outro
significante visual (a prpria tipologia grfica) so inegavelmente condicionados
linha temporal, pois, para existirem dependem de uma cadeia de elementos
elencados um aps o outro.
Vale dizer, no pela pura contigidade linear, se no que ao subverter a
ordem cronolgica/linear do sintagma, dar funo de similaridade e, portanto, de
integradores e conectores aos elementos do eixo paradigmtico, a Poesia Concreta
prope que as relaes feitas no eixo paradigmtico permitam o multidirecionamento
da organizao do sintagma.
Com o objetivo de exemplificar estas constataes sobre a forma de
manipulao estrutural da linguagem, devamos pensar essa questo num poema
concreto. Escolhemos o poema de Haroldo de Campos mais e menos de 1957:
mais mais
menos mais e menos
mais ou menos sem mais
nem menos nem mais
nem menos menos
Noigandres 4. apud Clver, 2006 , p. 32.
O poema se compe de dois advrbios e conjunes e preposies (e, ou,
sem, nem) que funcionam como conectores. Eles esto dispostos em numa
organizao espacial que relativiza a linearidade da sentena e permite que haja
outras formas de organizao da mesma.
Neste texto a tarefa do leitor construir a sintaxe e o significado do poema, e
a questo visual cumpre a funo de encaminhar um desenvolvimento semntico
gradual. Vai-se do mais at o menos numa gradao que se d numa espcie de
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28
contraveno de um tipo de desenvolvimento silogstico, portanto um
desenvolvimento linear.
No h nada mais para desenvolver seno a estrutura textual. Poderia ser
tanto mais ou menos como plus and less, pois isso no mudaria em grande
medida o carter abstrato do texto que compara apenas comparativos. O poema
desenvolve de mais a menos variando as combinaes dos dois termos chaves,
primeiro expandindo e ento contraindo-se atravs de conjunes e preposies
geralmente encontradas em conexes com eles: mais ou menos, sem mais nem
menos, nem mais nem menos .
As mudanas sutis envolvem apenas uma vogal ou consoante,
constantemente jogando contra a aliterao do monosslabo mais e do disslabo
trocaico menos, que tm as mesmas consoantes abertas e fechadas. um jogo de
adeso e subtrao, de construo e desconstruo de blocos de frases paralelas:
mais mais paralela a mais menos constituindo o primeiro bloco, visualmente
indicado pelo alinhamento das letras iniciais e finais. A linha 2 estendida para
menos mais e menos (ou menos mais mais menos -e se torna sinnimo de
mais), e mais e menos numa reduo da segunda linha chama por mais ou
menos formando o segundo bloco.
A linha 2 do segundo bloco estendida para dar menos sem mais o que
sem o menos se transforma na primeira linha de um novo bloco: sem mais ,
conseqentemente a linha do terceiro bloco tem que ser nem menos e somado ao
nem menos h uma frase reversvel e essa inverso forma o quarto bloco. nem
mais nem menos leva a nem menos menos a frase negativa termina na nica
combinao dos termos-chaves que ainda estava faltando: menos menos, o
prximo passo leva de volta circularmente a mais mais .
Baseando-se na totalidade semntica, no som e na disposio do material
verbal que tem como funo tornar o material vivel, o leitor deve considerar que os
conectores podem ser tambm sinnimos dos termos-chave, ou seja, e equivale a
mais no sentido de adeso e sem, nem e ou funcionam como oposto de e.
Na questo da estrutura visual, que no sendo idntica forma do poema configura
uma estrutura puramente funcional para a interao e constituio do material em
varias direes de leituras possveis, tornando o texto constelar.
Constatamos que para a Poesia Concreta que se coloca como projeto, com
todas as implicaes que isto tem, necessrio um planejamento completo e
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complexo do poema. No poema mais e menos uma leitura tradicional, da esquerda
para direita, possvel, assim como uma leitura dos blocos, da direita para a
esquerda ou de baixo para cima. J que o poema no guarda narratividade e no
tem exatamente um contedo especfico a comunicar. Ele se comunica na medida
em que o leitor aceite entrar no jogo de tentar reformular a direo em que os
elementos se associam.
Tanto mais menos menos mais e menos como menos e mais menos menos
mais so possveis pois a estrutura e a sintaxe organizacional o permitem. Do
ponto de vista da composio, essa sintaxe est prevista de forma matemtica. O
leitor, de certa forma, tem como nica escolha no o significados, mas o jogo
lingstico em si.
A falta de contedo de referencial externo do poema produz o destaque na
interao das palavras como um todo independente, como um objeto que pode ser
percebido pelos sentidos e que converge num pensamento ou idia. A profundidade
ou constelatizao prevista na composio esto presentes no sentido da
liberdade que a no atrelao linearidade permite, j que a dispensabilidade de
uma possvel narratividade possibilita, sobre tudo, fazer uma leitura na base da
dialtica de formas. Podemos afirmar a partir disto que o tempo em si tem uma
funo de estagnao e provoca que em conjunto e em relao ao espao, a
durao relativa das coisas que criaria a idia de presente, passado e futuro, seja
subvertida para alcanar a tentativa de um perodo contnuo e indefinido no qual os
eventos da linguagem se sucedem.
2.3 guisa de concluso: o plano-piloto da Poesia Concreta
O Plano-piloto para a Poesia Concreta uma colagem de todos os referencias
tericos dos artigos publicados de 1956 at 1960 e uma sntese em que se
explicitam alguns conceitos programticos para o entendimento da proposta
concretista: 1) com a abolio do verso, na criao de uma modalidade lingstica
especfica: verbivocovisual; b) o espao grfico funcional, um componente mais da
estruturao do poema; c) com a nova estrutura espao-temporal, as palavras so
apresentadas numa estrutura dinmica de mltiplos movimentos simultneos.
Segundo Franchetti, a Poesia Concreta busca sempre a consecuo de obras
inspirada na tradio erudita, que lhes permite ter os subsdios tericos para a
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30
construo de uma obra atuante no mbito da cultura erudita, mas que utilizasse
procedimentos ou recursos tpicos da mass mdia: no se trataria de uma tentativa
de massificar a produo erudita, mas sim de eruditizar a comunicao de
massas. (FRANCHETTI, 1989, p.72).
Mallarm deu o primeiro salto nos elementos de composio, na diviso
prismtica da idia, ou seja, a possibilidade de dinamizar a composio e a leitura
de poesia pelo uso espacial da folha. A referncia ao poeta francs sintomtica,
numa anlise feita pelos poetas concretos, uma vez que o movimento concretista,
como explicado acima, incorpora programaticamente as propostas de Mallarm e
procura fazer com que a configurao ideogrmica contribua para romper com a
diacronia da estrutura do verso, impondo-lhe um parmetro sincrnico.
Pound e seu mtodo ideogrmico em que (...) duas coisas reunidas no
produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relao fundamental entre elas
coincide com a teoria gestaltiana de estrutura: o todo no simplesmente a soma
das partes. Cummings e Apollinaire na atomizao da linguagem e por conjugar o
espao do poema com a expresso verbal dinmica estrutural da palavra: palavra-
coisa no espao-tempo a comunicao verbal e no-verbal como fenmeno de
metacomunicao desenvolvida pela Poesia Concreta como um mnimo mltiplo
comum da linguagem pela sintaxe mecnica.
Duas referncias da poesia brasileira que, por conta do recorte do trabalho
no pensamos aqui e merecem comentrio, so: Oswald de Andrade e Joo Cabral
de Melo Neto. O Oswald dos poemas-minutos e Joo Cabral da Antiode, no balano
final da TPC entram no paideuma pelo vis da atualizao na poesia brasileira das
questes da nova linguagem das vanguardas europias e pela renovao da
pesquisa esttica no pas.
Tentamos neste captulo recortar a teoria de composio da Poesia Concreta
da palavra como unidade e a lgica de composio sinttica do mtodo ideogrmico
como estabelecedor da relao de elementos materiais das palavras. A interao
dinmica das palavras produz uma associao de idias que agem por imagens
propriamente ditas, e pode ser chamada de metfora estrutural.
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31
3 GALXIAS
3.1 Descrio do texto: a forma e a epifania.
A preocupao de Haroldo de Campos com a estruturao dinmica do
poema longo atravessa sua obra com exemplos anteriores Poesia Concreta
Thlassa Thlassa (1951) e Ciropdia ou A educao do prncipe (1952) e
posteriores como os poemas Finismundo: A ltima viagem (1980-1990) e a Mquina
do mundo repensada (2000). Em 1963, colado cronologicamente na experincia
concreta, o poeta comea a escrever Galxias, que estruturado hbridamente,
dinamita os limites entre a poesia e a prosa.
Composto de cinqenta fragmentos, o texto coloca em discusso questes
lingsticas, metapoticas e a transgresso de gneros, atravs de uma estrutura
circular, possibilitando uma leitura a partir de qualquer de suas pginas, sem
prejuzo compreenso da totalidade da obra, uma vez que em cada um dos
fragmentos est contida a sua chave reveladora.
Em palavras do autor, o texto apresenta como vrtebra semntica o livro
como viagem ou a viagem como livro, podendo cada leitor traar seu prprio
percurso de leitura, de modo que, em cada fragmento lhe esto reservadas as
combinaes de palavras aparentemente inconciliveis, do dialogismo das lnguas e
das linguagens, do dinamismo e da sonoridade verbal.
Por tal fisionomia, Galxias , em amplo sentido, uma celebrao s
linguagens, da verbal no verbal, em que a proesia, abre suas portas para
infinitas formas de significado. Esto todas nele, seja sob o traje da referncia ou
citao, seja na prpria materialidade da escrita.
Como se v, Galxias, desde seu esboamento, j possui um carter
experimental, afeito a mutabilidades formais, constituindo-se, por excelncia, em um
livro de ensaios, onde a linguagem atua viva, dinmica, pulsante. E isso significa
estabelecer para a poesia um campo de viso mais amplo que o da auto-
referencialidade, nunca a deixando de lado.
Somente quatro anos depois de concludo oficialmente o projeto de Poesia
Concreta, publica os primeiros 13 fragmentos na revista Inveno (So Paulo,
nmero 4, dezembro de 1964). No nmero 5 da mesma revista, mais 12 fragmentos
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32
e ainda trechos avulsos aparecem em vrios suplementos literrios dos anos 70
como Flor do Mal, Navilouca, Polem, Cdigo e Quorpo estranho9.
Os 50 fragmentos esto todos dispostos na pgina direita do livro, deixando a
esquerda vazia, sem numerao de pginas, pontuao ou qualquer marca de
organizao alm da prpria linearidade inerente ao livro. Forma assim, num
primeiro olhar ao texto, vrios blocos de texto corrido, muito diferentes de qualquer
poema concreto e, alis, parecendo de fato algo contrrio esttica concreta.
O nmero de linhas/versos de cada fragmento varia entre 43 e 46, totalizando
aproximadamente 2000, o que se condensou do projeto inicial10 de 100 pginas,
metade. Alm de ter sido pensado como um texto no encadernado, no qual s a
primeira e a ltima pginas fossem fixas, o projeto foi reelaborado pela sua
dificuldade de edio, mas tambm por incentivo de Guimares Rosa. Lembra
Campos o comentrio do autor de Grande Serto: Veredas: Voc no sabe o que
tem nas mos. Isto o demo. Esta sua prosa o demo. (...) Mas veja: no publique
em folhas soltas, faa um livro comum, costurado... no dificulte o difcil... (Rosa
apud Campos, 1922, p. 273).
Em entrevista revista literria hispano-americana Vuelta em 1978 , intitulada
La poesa concreta segn Haroldo de Campos, quando Galxias ainda no estava
concludo, o poeta descreveu-o, em relao ao projeto de Poesia Concreta, nos
seguintes termos:
La otra lnea est en mis Galaxias, largo texto empezado en el 63 y que todava sigo escribiendo; un texto donde las fronteras entre poesa y prosa son abolidas, y que recupera sincrnicamente, por as decir, la prehistoria barroca de mi poesa concreta (en dicho sentido, las Galaxias dialogan con Ciropedia o la educacin del prncipe, otro texto mo del 52 en el cual trabajo, por primera vez, con la palabra-montaje joyceana, aunada a un control minucioso del ritmo o pulsacin material de las frases, ms bien de los bloques sincopados de frases en el marco de la pgina). En esta segunda lnea, la expansin semntica, la exfoliacin de los vocablos, la conglutinacin fnica son los dispositivos activados.
Assim, Galxias pensado pelo prprio autor como outra linha potica,
prxima poesia anterior ao projeto concreto, situando o texto num dilogo esttico
9 Caberia a outro estudo pensar a importncia destas publicaes desde os anos 50 na vinculao da teoria literria e da poesia propriamente dita. 10 Projeto explicitado num texto publicado junto os primeiros fragmentos de Galxias, intitulado Dois dedos de prosa sobre uma nova prosa.
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33
com o Barroco, ou o Neobarroco11. A ligao com a poesia anterior Poesia
Concreta posta pelo autor no procedimento de palavra-montagem da prosa de
James Joyce (como em Finnigans Wake de 1939). No depoimento h dois
comentrios essenciais: procedimento de composio da poesia anterior (controle
minucioso do ritmo ou pulsao material das frases, ou blocos de frases
sincopados, expanso semntica, esfoliao ou capilarizao de vocbulos e
aglutinao) e o delineamento de um possvel movimento na sua potica que v em
direo de retornar ao verso ou de no elimin-lo, ao mesmo tempo contanto com
toda a carga terica e esttica da Poesia Concreta.
Nesses comentrios podemos notar que considerada como outra linha
potica, nossa hiptese de que h uma ligao no sentido de modos de composio
entre a Poesia Concreta e Galxias, na qual o movimento de retorno a uma esttica
anterior, isto ao verso, est impregnada pela busca da concretude da expresso e
no abdica necessariamente do princpio mais fundamental da PC: a negao da
forma retrica discursiva para a poesia.
nesse sentido que neste captulo tentaremos, atravs da anlise de alguns
fragmentos, entender como se d o mecanismo de composio de Galxias, para no
capitulo seguinte tentar estabelecer as possveis relaes do texto com os
procedimentos da PC.
Com o objetivo de apresentar um quadro geral do livro, aproveitaremos o
trabalho de K. David Jackson12que oferece o seguinte quadro panormico, pensado
sob o critrio de contedo e espao geogrfico da viagem de cada um dos
fragmentos, alm das referncias e ncleos temticos estticos dominantes em cada
um deles: Fragmento rea/ Espao Referncias literrias e
estticas/ ncleo temtico
1. e comeo aqui Fbula Divina Comdia
2. reza calla y trabaja Granada Lorca, Antonio Machado
3. multitudinous seas Mar Pound, Borges, MacBeth
4. no jornalrio Jornal Dante, Paradiso
11 Um estudo sobre este tema a dissertao de mestrado defendida no programa de ps-graduao da Universidade Federal Fluminense, intitulada Galxias neobarrocas: poesia e visualidade em Haroldo de Campos de Antonio Francisco de Andrade Junior em 2006, no qual o autor relaciona o racionalismo formal da Poesia Concreta experincia visual neobrarroca na obra de Campos. 12Traveling in Haroldo de Campos's Galxias: A Guide and Notes for the Reader
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34
5. mire usted Crdoba Arabista
6. augenblick Stuttgat Galeria de arte
7. sazamegoto Praga Haikai, Bash, Buson (1716-
84)
8. isto no um livro Gnova Conto de Cortzar
9. aafro Roma Carto postal
10. ach lass sie quatschen Alemanha Sinagoga
11. amorini Itlia Pompia
12. um avo de estria Espanha San Sebastin, mosaico
romano em Colona
13. esta uma lealenda Paris Artaud
14. ma non dove Ravvisano, Itlia Textos de Carducci;
Sousndrade
15. circulad de fulo Brasil Arte popular nordestina13
16. um depois um Alemanha Bbados numa estao de
Colnia
17. uma volta inteira Karlsbcke, Praga Baudelaire
18. cheiro velho Roma Frias de AC; Cassiano
Ricardo
19. como quem escreve Litunia Bad faith
20. no tiravam o chapu Madrid Tourada; telejornal
21. e brancusi Stuttgart Ovo de Brancusi
22. hier liegt Colnia Exposio de Lorca
23. neckarstrasse Tbingen Schiller, Goethe, Sfocles,
Hlderlin, Bloch
24. a liberdade Manhattan Safo, Mondrian, Lorca,
Vozniessienski, Sousndrade
25. aquele como se chamava N. York/ Mxico D.F. Estradas mexicanas
26. apsara Boston Pintura de Kenholz
27. sob o chapu San Francisco William Carlos Williams,
Ferlinghetti
28. ou uma borboleta Nova York Tchuang-se
29. poeta sem lira Los Angeles Ode de Pndaro, Hlderlin,
Novalis, Henry Miller, Arthur
Miller, Marilyn Monroe, Bash
30. pulverulenda Argentina Tangos de Buenos Aires,
Orson Wells
13 As informaes sublinhadas estavam incompletas no quadro original e foram adicionadas por ns.
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31. o que mais vejo aqui Fbula
32.Na coroa de arestas Andaluca Trptico
33. mrmore strio Venecia, Rapolla Pound
34. calas cor abbora Washington D.C. Movimento negro
35. principiava a encadear-se Washington D.C. Galds, Goya
36. eu sei que este papel Nova York Barbarella
37. cheiro de urina Salvador, Bahia Nordeste
38. o palavra Mariana, Minas Gerais Nossa Senhora do
39. circulado de violeta Frana Monet em Paris
40. como quem est num
navio
Cluny Mulher num caf, Rafael
41. tudo isto tem que ver Escrever Joyce
42. a criatura de outro Fbula Snscrito
43. vista dallinterno Itlia
44. cadavrescrito Fbula Rabelais
45. mais uma vez Mar Joyce, Polifo
46. esta mulher-livro Papel Galatia
47.passatempo e matatempos Fbula Macunama, Propp
48. nudez Nova York Circo em Nova York, Rilke
49. a dream that hath no
botton
Blumenau, Desterro, Santa
Catarina
Dr. Fritz Mller, Darwin,
Agassiz, Pound, Oswald de
Andrade, Volpi, Fauto, Don
Juan
50. fecho encerro Fbula Pssargada, rios de Sobolos,
Dante, Snow White.
Neste panorama se evidencia a ampla gama de temticas e referncias que
envolvem o texto. Tanto nas referncias de lugares como nas estticas
apresentadas no quadro, podemos notar que Galxias um conjunto de textos que
amarra as diversas instncias reportadas pela idia do livro como viagem,
reiteradamente colocada num sentido meta-literrio e possuindo um espao e tempo
de partida que o do prprio ato de escrita.
Os fragmentos selecionados com o objetivo de tentar desvendar o processo
de composio so: o primeiro e ltimo, em que observaremos a linearidade e a
referencialidade; o fragmento oitavo, em que pensaremos a articulao dos nveis
espao-temporais e finalmente o fragmento 43, em que discorreremos sobre o processo de composio por montagem e a organicidade da construo lingstica.
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Enumerados desta forma por ns, considerando a seqncia em que
aparecem em Galxias, eles so uma amostra dos processos de composio da
obra. A partir destas observaes, acreditamos poder conceber os procedimentos de
composio e organizao do material potico da obra sem perder de vista a relao
da dinmica de forma e contedo.
No que diz respeito referencialidade, consideramos pertinente ressaltar de
sada que o ponto de vista do eu que se articula poeticamente no texto, apesar de
sua existncia como tal, no confessional, pois se multiplica e redefine na medida
em que os painis so apresentados, j que, como dissemos, sua presena est
ligada ao ato de escrita. Tem-se no conjunto de Galxias, desta forma, a
independncia narrativa ou de desenvolvimento de contedo dos diferentes painis
que Rodrigo Guimares (2006, p. 19) descreve como
(...) um poema longo, com uma linguagem hbrida (mistura de prosa e poesia), permitindo a presena de um eu lrico (no confessional) numa escritura que comporta alguma discursividade e momentos epifnicos.
A epifania entendida como uma apreenso ou percepo da natureza ou do
significado essencial de alguma coisa do mundo, ou seja, como uma apreenso
intuitiva do eu que fala de algo inesperado, resulta simbolicamente reveladora j que
resulta na conexo que vislumbramos com a poesia anterior concreta. Mas
tambm h no livro uma dimenso pica, vinda da tradio oral de poesia, que
exaltava episdios da tradio herica de uma comunidade em que as vozes
coletivas e individuais as picas e epifnicas - se misturam numa narrativa
fragmentada, que tende, como tentaremos constatar, unificao do signo atravs
do planejamento minucioso da sua apresentao.
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3.2 Anlise dos fragmentos de Galxias.
3.2.1 Primeiro e ltimo fragmentos: a sobreposio do paradigma ao sintagma
e a linearidade aparente; a auto-referencialidade.
Iniciaremos o trabalho pelos fragmentos 1 e 50, primeiro e ltimo
respectivamente, que segundo HC deveriam ser os nicos fixos do texto. Como
anota o poeta (1992, p.270) eles so inversos simtricos um do outro, uma espcie
de palimpsesto. Um sobre outro, eles declaram o comeo e fim de Galxias: e
comeo aqui e meo aqui este comeo (...) e fecho encerro reverbero aqui me fino
aqui (...). Ambos marcam um eu que escreve e um lugar potico de onde se fazem
a escrita. Uma escrita que, pelas caractersticas que observaremos na anlise, tem
traos de fala, ou meio-termo de ambos.
No primeiro painel, a simultaneidade da escrita e da leitura se constri num
espao-tempo marcado pela presena de eu que apresenta o ato da escrita como
o de reconstruir uma realidade especfica, que o da escrita. Trata-se em alguma
medida, de um auto-retrato do escrever, o qual, marcado por signos positivos e
negativos, se configura como espelho do eu que escreve e de quem se dirige o
texto, j que a marca do eu implica discursivamente sempre a presena do tu para
o qual se fala em contraposio e para declarar um lugar enunciativo. 1. e
comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e arremesso
2. e
aqui me meo quando se vive sob a espcie da viagem o que importa 3. no a viagem mas o comeo da por isso meo por isso comeo escrever 4. mil pgina escrever milumapginas para acabar com a escritura para 5. comear com a escritura para acabarcomear com a escritura por isso 6. recomeo por isso arremeo por isso teo escrever sobre escrever 7. futuro do escrever sobrescrevo sobreescravo em milumanoites miluma- 8. pginas ou uma pgina em uma noite que o mesmo noites e pginas 9. mesmam ensimesmam onde o fim o como onde escrever sobre o escrever 10. no escrever sobre no escrever e por isso comeo descomeo pelo 11. descomo desconheo e me teo um livro onde tudo seja fortuito e 12.foroso um livro onde tudo seja no esteja seja um umbigodomundolivro 13. um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro 14. ser do livro a viagem por isso comeo (pois) a viagem o como 15. e
volto e revolto (pois) na volta recomeo reconheo remeo um livro
16. o contedo do livro e cada pgina de um livro o contedo do livro 17. e
cada linha de uma pgina e
cada palavra de uma linha o contedo
18. da palavra da linha da pgina do livro um livro ensaia o livro 19. todo livro um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim- 20. como comea e
fina recomea e
refina se afina o fim no funil do
21. como afunila o como no fuzil do fim no fim do fim recomea o 22. recomo refina o refino do fim e
onde fina comea e
se apressa e
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23. regressa e retece h milumestrias na mnima unha de estria por 24. isso no conto por isso no canto por isso a noestria mes desconta 25. ou me descanta o avesso da estria que pode ser escria que pode 26. ser crie que pode ser estria tudo depende da hora tudo depende 27. da glria tudo depende de embora e
nada e nris e
reles e
nemnada
28. de nada e nures de nris de reles de ralo de raro e
nacos de necas
29. e
najas de nillus e nures de nenhures e
nesgas de nulla res e
30. nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total 31. tudosomado todo somassuma de tudo suma somatria do assomo do assombro 32. e aqui me meo e comeo e me projeto eco do como eco do eco de um 33. como em eco no soco de um como em eco no oco eco de um soco 34. no osso e
aqui ou alm ou aqum ou lacol ou em toda parte ou em
35. nenhuma parte ou mais alm ou menos aqum ou mais adiante ou menos atrs 36. ou avante ou paravante ou r ou a raso ou a rs comeo re comeo 37. rs comeo raso comeo que a unha-de-fome da estria no me come 38. no me consome no me doma no me redoma (pois) no osso do como s 39. conheo o osso o ossso buco do como a bossa do como onde viagem 40. onde a viagem maravilha de tornaviagem tornassol viagem de maravilha 41. onde a migalha a maravalha a apara maravilha vanilla viglia 42. cintila de centelha favila de fbula lumnula de nada e
descanto
43. a fbula e desconto as fadas e
conto as favas (pois) comeo a fala
Os versos apresentam de 18 a 24 slabas, com o que poderamos afirmar que
existe uma certa regularidade na sua extenso. Mas, os impulsos semnticos se
organizam de forma a amarrar uma linha/verso com outra, por exemplo, na
passagem da primeira segunda linha: (...) recomeo e remeo e arremesso / e aqui me meo (...) de forma que um impulso fnico-semntico no coincide
necessariamente com uma linha, seno que se fragmenta para concluir-se na linha
seguinte.
Como pode-se notar no destaque que fizemos na reproduo do texto, a
partcula e responsvel pela coeso de um e outro impulso semntico. Porm, h
no texto outros mecanismos de coeso que induzem continuidade sinttica: nas
linhas 16 e 17 temos cada pgina de um livro o contedo do livro e cada linha de
uma pgina(...), que por vezes foram uma ordem de apresentao do contedo
que resulta no-natural, pois faz uso de recursos formais da lngua falada como a
constante reiterao de estruturas frasais, que termina criando um paralelismo que
reafirma idia especficas e prolifera outras novas.
Nesse sentido, as partculas que constroem a tessitura por reiterao tais
como a conjuno aditiva e e elemento anafrico por isso tm como resultado
a coeso interna, entendo-a como um conceito semntico, realizado atravs do
sistema lxico-gramatical. Genericamente, os mecanismos de coerncia mais
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produtivos no texto so os de referncia (pessoal e demonstrativa, eu, neste e
aqui) e os de conjuno (aditiva e adversativa e, por isso e pois).
O ritmo se d pela composio por justaposio das unidades frasais, que se
tecem pelos mecanismos de coeso j citados. Temos, ento, nas primeiras trs
linhas os fragmentos de sentenas:
(1) [e comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e
arremesso/ e aqui me meo (...)] (linhas 1-2) (2) [(...)quando se vive sob a espcie da viagem o que importa/ no a
viagem mas o comeo da14(...)] (linhas 2-3)
(3) [escrever mil pgina escrever milumapginas para acabar com a
escritura para (...)] (linhas 3-4)
Em portugus, a estrutura bsica da frase simples se compe de sujeito,
verbo e objeto, por isso, consideramos que a partir da juno de unidades
complexas (que tm mais de um verbo e a concatenao de vrias frases simples,
como no caso acima exemplificado), a frase se sustenta como a unidade mnima de
significao do texto. ela que contm os significados articulveis um ao outro,
completando semanticamente seu significado com os demais fragmentos de frase.
Assim, no esquema que propusemos, a unidade 1 e 3 esto intercaladas pela
unidade 2, j que a unio semntica da primeira com a terceira se faz pelo elemento
anafrico por isso . Esta mecnica de composio tem a funo de induzir a
ateno do leitor ao sentido do que est sendo construdo no texto atravs da
organizao do material frasal.
Haroldo de Campos comenta no anexo da edio da 34 que o fragmento tem
uma escanso de versculos bblicos : Gnese (bereshith) do livro (2004, p 119). A caracterstica da poesia hebraica, no a rima e nem a mtrica, e sim o
paralelismo. Esse recurso literrio consiste na equivalncia no pensamento ou da
linguagem entre as unidades de cada clusula. Nos fragmentos em questo, existe
uma grande variedade desses paralelismos com a repetio de uma idia em outras
palavras, como por exemplo, na bblia temos: "Israel entrou no Egito, e Jac
peregrinou na terra de Cam" (Salmo, 105.23), onde se verifica o mesmo contedo 14 Uma das poucas elipses do texto, pouco orgnica em termos de lngua no-literria, interessante porque passa a impresso de circularidade e retorno caracterstica do conjunto de Galxias: quando se vive sobre a espcie da viagem o que importa / no a viagem mas o comeo da (viagem)
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dito de outra forma. Assim, no que diz respeito proximidade de Galxias com este
tipo de expresso, os paralelismos de estruturas que se repetem ou circulam a
mesma idia.
Apesar de que os impulsos semnticos do texto serem longos, aproximando-
se aos versculos bblicos, no do impresso ao leitor incontinncia verbal, pois a
repetio avana planejadamente na explanao do contedo.
O paralelismo das estruturas que verificamos se relaciona desta forma, ao
mecanismo de paralisao, ou de no renovao da informao, no sentido de um
desenvolvimento narrativo possvel. Antes, esta mecnica permite que assim
organizadas as unidades, o contedo seja regido pelos mecanismos de reiterao e
proliferao, que terminam por atualizar o contedo reiteradamente.
A reiterao de temas, que uma vez retomados, tm a capacidade de
proliferar e avanar gradualmente os significados, at entrelaar os temas, que
tentaremos esquematizar da seguinte maneira: tendo em vista que a idia inicial a
de comear (tema 1) a segunda a de escrever (tema 3), que se intercala, como
vimos, pela idia de viagem (tema 2), h um impulso semntico que comea no
final da quinta linha e retoma o primeiro tema - (...)por isso / recomeo por isso
arremeo por isso teo(...) indo at a dcima linha, na que h a reiterao dos temas
1 e 3 mais o tema espao-temporal 4 tempo-pgina.
As retomadas dos temas sempre aparecem somadas s proliferaes de
significados, sendo nesta mecnica que o texto logra sua multiplicidade de sentidos,
j que as marcas de paralelismo esto tanto nas estruturas sintticas, como e
principalmente nos itens lexicais, que dialogam entre si fontica e morfologicamente,
vale dizer, no eixo paradigmtico da seleo.
A reiterao dos mesmos itens lexicais e a contigidade de termos
pertencentes a um mesmo campo semntico atua como mecanismo vlido de
coeso. Os elementos que acabamos de apontar so algumas possibilidades, o que
no significa que no seja possvel fazer o apontamento de outros: o grau de
racionalidade da construo do texto, somado complexidade de sua atuao em
mltiplos nveis lingsticos, permite que os resultados de leitura sejam especficos e
dependam da ateno e da profundidade do leitor.
Outro exemplo dessa mecnica encontra-se nas linhas 27 a 30, nas quais a
redundncia cerca a noo de nada no nvel sonoro: (...)e nada e nris e
reles e
nemnada / de nada e nures de nris de reles de ralo de raro e
nacos de necas / e
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najas de nillus e nures de nenhures e
nesgas de nulla res e
/ nenhumzinho de
nemnada nunca(...) no qual verificamos, somado a partcula e como um dispositivo
prprio da oralidade, est a repetio de sons, dar-se- o ritmo do texto. Desta
forma, a paronomsia funciona como integradora dos elementos sonoros no sentido
se ora articular a progresso semntica, mas tambm como elemento integrador e
de coeso
Fechando esta leitura, o quinto tema destacvel do livro (5). O sexto tema
linhas 13 a 18 que a soma do 1, 2, 4 e 5 no que h uma lgica sincrnica de
significados, j que no continua por dar-se como superposio de fragmentos. No
sexto tema o acrscimo da relao comeo-fim, compe o stimo tema linha 19 a
23. O oitavo a adeso ao anterior do tema nada ou tudo, no que se relativiza o
espao e o tempo do prprio texto falando de si (pode ser tudo pode ser todo, linha
30). Da em diante se d nfase ao tema 2 (viagem) para encerrar com a declarao
que retorna prolificadamente ao primeiro: pois comeo a fala.
No fragmento 50, (de 1973) por sua parte, a referencialidade marcada pelo
aqui assim como no fragmento primeiro, no que o lugar o mesmo o
mecanismo mais forte de delimitao espao temporal do lugar de escrita. tambm
uma reflexo da escrita do livro como objeto (desencadernei meu caderno/ livro
meu meu livrespelho linhas 14-15) encerrando-se a viagem, o tu agora se explicita
como o prprio livro ou o leitor.
1. fecho encerro reverbero aqui me fino aqui me zero no canto no conto 2. no quero anoiteo desprimavero me libro enfim neste livro neste vo 3. me revo mosca e aranha mina e minrio corda acorde psaltrio musa 4. nomaisno mais que destempero joguei limpo joguei a srio nesta sde 5. me desaltero me descomeo me encerro no fim do mundo o livro fina o 6. fundo o fim o livro a sina no fica trao nem seqela jogo de dama ou 7. de amarela cabracega jogo da velha o livro acaba o mundo fina o amor 8. despluma e tremulina a mo se move a mesa vira verdade o mesmo que 9. mentira fio fiao tesoura e lira que a mente toda ensafira e 10. madriperla e desatina cantando o pssaro por dentro por onde o canto 11. dele afina sua lmina lngua enquanto lngua enquanto a lngua mais lamina 12. aqui me largo foz e voz ponto sem n contrapelo onde cantei j no 13. canto onde vero fao inverno viagem tornaviagem passandalm 14. reverbo no conto no canto no quero desencadernei meu caderno 15. livro meu meu livrespelho dizei do livro que escrevo no fim do 16. livro primeiro e se no fim deste um um outro j mansageiro do 17. novo no derradeiro que j no primo se ultima escribescravo tinteiro 18. mostro gaio velho contador de lriaslendas aqui acabadas aqui 19. desabas aqui abracadabrascabas ou abres ssamoteabres a setesetrelas 20. cada uma das setechaves sigilando tua beira beira-ti beira- 21. nada vocvoz tutresvariantes tua gaia sabena velhorrevelho contador 22. de palavras de patranhas parmias paralendas rebarbas falsrio de 23. rebates finrio de remates useiro de vezos e vezeiros de usos
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24. tuteticomigo conoscovosco contigens est quod potest esse est 25. non esse tudo vai nessa foz do livro nessa voz e nesse vs do livro 26. que saltimboca e desemboca e pororoca nesse fim de rota de onde no 27. se volta porque no ir volta porque no ir revolta a reviagem que 28. se faz da maragem de aragem de paragem de miragem de pluma de 29. aniagem de tssil tecelagem mostrogaio boquirroto emborcando o 30. teu solo mais grrulo colapsas aqui neste fim-de-livro onde a fala 31. coalha a mo treme a nave encalha mestre garo velhorrevelho 32. mastigador de palavras malgastas malagaxas laxas acabas aquiacaba 33. tresabas sabiscndito sabedor de nrias com tua gaia sabena teus 34. rebus e rebojos tuas charadas de sonesgas sonesgador de fbulas 35. contraversor de fadas loqilouco snobishomem arrotador de vantagem 36. infusor de cincias abstrator de demncia mas tua alma est salva 37. tua alma se lava nesse livro que se alva como a estrela mais dalva 38. e enquanto somes ele te consome enquanto o fechas a chave ele se 39. multiabre o finas ele se translumina essa linguamorta essa 40. moura torta esse umbilifio que te prega porta pois o livro teu 41. porto velho faustinfausto mabuse da linguagem persecutado por teus 42. credores mafistofamlico e assim o fizeste assim o teceste assim 43. o deste e avr quase lombra della vera constellazione enquanto a 44. mente quase-ris se emparadisa neste multilivro e della doppia danza
Neste fragmento se encerra o espao e o tempo disposto para a encenao
das narraes e vozes. H nele a nomeao de uma realidade que somente existe
como tal na prpria linguagem. A referncia, desta forma, une o mundo real e o
mundo imaginrio pela linguagem. O leitor, ou a quem se dirige o texto, tem a
misso de compreender, ou pelo menos empreender, a viagem da linguagem
potica na qual o tempo e espao, como realidade nomeada, alterado e limita o
texto permitindo sua existncia.
A frase final avr quase lombra della vera constellazione enquanto a
mente quase-ris se emparadisa neste multilivro e della doppia danza uma
chave de leitura para a compreenso de Galxias, pois sua leitura como uma dana
dupla, de duplos significados, duplas leituras, precisa de dois: o autor que compe a
obra e o leitor que a faz existir no momento da leitura.
O eu que se articula no texto, concordamos com Guimares,