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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA NELSON BAIBICH O VAI E VEM DO VERSO AS RELAÇÕES DA POESIA CONCRETA COM A PUBLICIDADE IMPRESSA Palhoça 2008

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

NELSON BAIBICH

O VAI E VEM DO VERSO

AS RELAÇÕES DA POESIA CONCRETA COM A PUBLICIDADE IMPRESSA

Palhoça

2008

2

NELSON BAIBICH

O VAI E VEM DO VERSO

AS RELAÇÕES DA POESIA CONCRETA COM A PUBLICIDADE IMPRESSA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de

Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Santos

Palhoça

2008

3

NELSON BAIBICH

O VAI E VEM DO VERSO

AS RELAÇÕES DA POESIA CONCRETA COM A PUBLICIDADE IMPRESSA

Essa dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Palhoça, 18 de novembro de 2008.

________________________________________________________

Prof. Dr. Antonio Carlos Santos - Orientador

Universidade do Sul de Santa Catarina

________________________________________________________

Prof. Dr. Jorge Hoffmann Wolff

Universidade do Sul de Santa Catarina

________________________________________________________

Prof. Dr. Marcos Antonio Nicolau

Universidade Federal da Paraíba

4

À mãe Fanny que insistiu nas artes, nos livros bem antes

que eu pudesse pensar nisso. Para a Neca que me

manteve lúcido nos piores momentos e para o Martin que

um dia vai entender por que a porta do escritório ficou

fechada tanto tempo.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Caco (Antônio Carlos) pelo interesse e por acreditar

que eu poderia, ao Joca Wolff por integrar a banca e pelos toques nas horas certas, ao

professor Marcos Nicolau por apreciar o meu trabalho e contribuir muito com o seu livro, ao

Luciano Bitencourt pelas horas cedidas para o estudo, à Karla Grillo pela organização, ao

colega Elizio Eluan pela troca de informações, ao Rettamozo lá atrás, por ter me provocado o

gosto pela poesia concreta e pelos hai-cais que nos divertimos fazendo juntos e também à

Unisul pela confiança e pelo suporte.

6

poetas

chega de poesia

aos deuses ambrosia

a nós 2ª via

só cabe homens-sanduíche

anuncia o que avisam

a vida é kitsch

e eles não bisam

2ª via, Augusto de Campos

7

RESUMO

A proposta desta dissertação é investigar as relações existentes entre a poesia concreta dos anos

50 e 60 no Brasil e a publicidade impressa. Ao mesmo tempo, o trabalho pretende refletir sobre

a impregnação da linguagem poética na publicidade até os dias de hoje e vice-versa.

Utilizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica, com base em textos e manifestos

referentes ao contexto das vanguardas, dos procedimentos técnicos, da teoria da poesia

concreta e do discurso publicitário. Procuramos demonstrar como poemas e anúncios adotam

propostas semelhantes, no que diz respeito à estrutura e à forma e para tanto, utilizamos como

exemplos, poemas concretistas das décadas de 50,60,70 e 80, assim como anúncios

publicitários veiculados na mídia impressa dos últimos anos. Por fim, por meio desse estudo,

concluímos que, embora sejam discursos ideologicamente distintos, poesia concreta e

publicidade acabam se apresentando estruturalmente e visualmente apoiados nos mesmos

procedimentos.

Palavras Chaves: vanguarda, poesia concreta, comunicação de massa, publicidade.

ABSTRACT

8

The purpose of this dissertation is to investigate the existing links between the concrete poetry

of the 1950s and 1960s in Brazil and the printing publicity. The study also pretends to reflect

on the impregnation of poetical language into the publicity through out the years, from then

until nowadays. We used the bibliographical research as the method of data collection, based

on texts and manifestos related to the context of vanguards, technical procedures, theory of the

concrete poetry, and the publicity discourse. We aimed to demonstrate how poems and

advertisements adopt similar proposals concerning to structure and form. As examples we have

utilized concretes’ poems of the 1950s, 1960s, 1970s, and 1980s, as well as the advertisements

published recently in the printing press. Finally, through this study, our conclusion is that the

concrete poetry and the publicity, even though being ideologically distinct discourses, at the

end, they are structurally and visually presented based on the same procedures.

Key words: vanguard, concrete poetry, mass communication, publicity.

9

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 – Poema Forma .....................................................................................................41

Ilustração 2 – Poesia Branco ................................................................................................... 42

Ilustração 3 – Poema da Série Poetamenos ............................................................................ 44

Ilustração 4 – Poesia Tensão ................................................................................................... 54

Ilustração 5 – Poema Velocidade ............................................................................................ 55

Ilustração 6 – Poema Terra e Organismo ................................................................................ 55

Ilustração 7 – Poema Intradução ............................................................................................. 57

Ilustração 8 – Poema Lixo ..................................................................................................... 58

Ilustração 9 – Poema A Plenos Pulmões ................................................................................. 60

Ilustração 10 – Letra da música Geléia Geral ......................................................................... 71

Ilustração 11 – Letra da música Batmacumba ........................................................................ 71

Ilustração 12 – Letra da música Superbacana ......................................................................... 72

Ilustração 13 – Poema Psiu ..................................................................................................... 75

Ilustração 14 – Poema Coca-Cola ........................................................................................... 77

Ilustração 15 – Anúncio IBM ..................................................................................................78

Ilustração 16 – Poema Ovo Novo no Velho ........................................................................... 79

Ilustração 17 – Anúncio A Gazeta ....................................................................................... 81

Ilustração 18 – Poema Póstudo ............................................................................................... 82

Ilustração 19 – Anúncio Rexona ............................................................................................. 83

Ilustração 20 – Poema Intradução............................................................................................84

Ilustração 21 – Anúncio Dia da Árvore .................................................................................. 85

Ilustração 22 – Poema Viva Vaia ............................................................................................ 86

Ilustração 23 – Anúncio Folha de São Paulo .......................................................................... 87

Ilustração 24 – Anúncio O Globo ........................................................................................... 88

Ilustração 25 – Anúncio Hospital de Câncer de Barretos ....................................................... 88

10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................11

2. EM PRIMEIRO LUGAR O QUE DIZ O DISCURSO PUBLICITÁRIO .................15

2.1 DENOTAÇÃO, CONOTAÇÃO........................................................................................16

2.2 RETÓRICA E PERSUASÃO ...........................................................................................16

2.3 A ESTILISTICA ................................................................................................................19

2.4 A REDE SEMANTICA .....................................................................................................21

2.5 PUBLICIDADE X POESIA. RECURSOS SEMELHANTES, DIFERENTES

IDEOLOGIAS .........................................................................................................................23

3 AS VANGUARDAS, SEUS CONCEITOS, SUAS PROPOSTAS..................................27

3.1 INSTITUIÇÃO ARTE, MODERNISMO..........................................................................27

3.2 NÃO CONCILIAÇÃO...................................................................................................... 30

3.3 A NÃO- LINGUAGEM ....................................................................................................32

3.4 O FUTURISMO NÃO CHEGOU LÁ ..............................................................................34

4 A POESIA CONCRETA CHEGA PELOS MUSEUS.....................................................37

4.1 AS CONDIÇÕES PARA O SURGIMENTO DO CONCRETISMO NO BRASIL ........ 37

4.2 O CONCEITO DE UTILIDADE NA POESIA CONCRETA ..........................................44

4.3 O VERSO ENTROU EM CRISE ......................................................................................46

4.4 A POESIA DEPOIS DO VERSO ......................................................................................48

4.5 O IDEOGRAMA FAZENDO PARTE DA LINHA EVOLUTIVA DO CONCRETISMO

...................................................................................................................................................50

4.6 A ESPACIALIDADE, FUNDAMENTAL DO PROGRAMA CONCRETO ...................52

4.7 A TIPOGRAFIA E OS CONCRETOS ..............................................................................55

4.8 POESIA CONCRETA: ENGAJADA, MAS NEM TANTO..............................................58

4.9 DA POESIA MATEMÁTICA AO NEOCONCRETISMO ..............................................65

4.9.1 Primeiro, o Neoconcretismo, depois o espaço do poema-práxis e do poema-processo

...................................................................................................................................................66

4.9.2 O residual do concretismo também desemboca no tropicalismo ..............................69

4.9.3 Nos popcretos, a ortodoxia concreta desaparece e entram as imagens e fotos ainda

mais radicais ..........................................................................................................................73

11

5 A IMPREGNAÇÃO DA PUBLICIDADE NA POESIA DE VANGUARDA E A

IMPREGNAÇÃO DA POESIA DE VANGUARDA NA PUBLICIDADE ATÉ OS DIAS

DE HOJE.................................................................................................................................76

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................90

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................93

12

1 INTRODUÇÃO

Em Nova Poesia: concreta, em 1956, Décio Pignatari comparava a poesia

concreta às artes visuais, incorporando ao seu universo, o espaço e o tempo. Ele preconizava: uma arte geral da linguagem, propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema, uma arte popular. a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até as histórias em quadrinhos. a necessidade do movimento. a estrutura dinâmica. o ideograma como idéia básica. (CAMPOS, 2006, p.78).

Embora os concretos tivessem nos seus expoentes máximos, poetas com formação

acadêmica, suas propostas levavam em consideração o contexto da mass media. Pignatari

chegou a manifestar a necessidade dessa nova poesia se comunicar com o grande público,

situação contraditória, na medida em que o contexto nacional demonstrava o distanciamento

entre o proposto na teoria, que era o de se apropriar do popular e o público, inapto

culturalmente ao consumo dessa nova arte.

A poesia concreta, na verdade, surgiu dentro do ambiente dos museus, e se

apoderou de novos espaços, através de artigos e manifestos veiculados em publicações

específicas da área de arquitetura e design, o que mostra sua intencionalidade em ser contra a

poesia de inspiração, simbolista, subjetiva. No mesmo artigo, Pignatari (CAMPOS, 2006, p.

81) reforça a tese de que a poesia concreta deve se apropriar de caminhos mais populares,

sugerindo que ela utilize procedimentos semelhantes aos usados nos meios de comunicação

de massa: [...] por uma poesia de criação, objetiva, concreta, substantiva. A idéia dos inventores, de Ezra Pound. O livro de ideogramas como um objeto poético, produto industrial de consumação. Feito a máquina. A colaboração das artes visuais, artes gráficas, tipográficas. A série dodecafônica (Anton Webern) e a música eletrônica (Boulez, Stockhausen). O cinema. Pontos de referência.

Diante desses questionamentos e das contradições que possam ser identificadas

nos rumos da poesia concreta, esta pesquisa pretende investigar e identificar as relações da

comunicação de massa na construção do movimento concreto brasileiro e, por conseqüência,

a impregnação desse modelo de discurso na mídia impressa publicitária contemporânea. Uma

via de duas mãos onde as influências do concretismo estão na propaganda e onde a

propaganda se acomoda na poesia de vanguarda em muitos dos seus grandes momentos.

Também como objeto de estudo apresenta-se a questão levantada por Nicolau

(2001, p.16) a respeito da possibilidade de se retirar trechos de textos publicitários e,

descontextualizando-os, fazê-los passar por poemas, ou vice-versa. Diz Nicolau:

13

[...] o que justifica a relação da poesia brasileira com a publicidade impressa é que esta parece ter sempre buscado na poesia, a força retórica de sua expressão persuasiva, pelo que o signo e suas representações podem oferecer de mais funcional para a manutenção de uma ideologia capitalista de consumo inteiramente inversa às propostas do fazer poético.

Assim como o fez Nicolau, será necessário caminhar por três vias para tentarmos

visualizar mais proximamente, as relações das quais falamos antes: a mão dupla entre poemas

e anúncios publicitários, a relação entre poesia e mensagem publicitária, identificada através

de estudos de vários críticos, e a relação estrutural mesmo entre poesia e publicidade. Neste

último estágio, encontraremos em autores como Pound, Carrascoza, Citelli e outros subsídios

em aspectos importantes de ambos os discursos como a estilística, os recursos fônicos ou

fonéticos, sintáticos, morfológicos (morfossintáticos) e semânticos (ou léxico-semânticos) e

por fim, demonstrar que a publicidade retoma recursos encontrados na poesia, que se

compõem da função poética da linguagem, desmembrando pelos aspectos de fanopéia,

melopéia e logopéia, pelos mecanismos de acoplamento, de impertinência e inconsequência,

de isotopia e significância. Também as figuras de linguagem nos servem de lastro para a

compreensão dos procedimentos da publicidade e de quanto têm em comum com a poesia.

Mais do que ninguém, a técnica de redação publicitária atual acumulou recursos lingüísticos

oriundos da Semântica, Semiótica, Estilística e Retórica.

Que a transdiscursividade e a relação entre a poesia e a publicidade existe, já

vários estudos o comprovaram. No entanto, o que pretendemos mostrar é que esse processo

acelerou-se num continuum a partir do surgimento do concretismo e suas preocupações com a

espacialidade e a distribuição dos signos no papel. A partir da constatação de que a Poesia

Concreta exacerbou o discurso para além dos significados das palavras, com os concretos se

aproximando das artes visuais e, com isso, evidenciando a semelhança de artifícios da poesia

visual com a publicidade.

Desta forma, a presente pesquisa bibliográfica foi estruturada metodologicamente

em primeiro lugar para objetivar a identificação dos elementos de construção e as diferentes

vertentes que levaram ao surgimento do movimento de poesia concreta. Para isso, utilizamos

a produção dos poetas do concretistas nos anos 50 e 60 no Brasil, com exemplos também dos

movimentos que dele decorreram. Como parte do “corpus” do trabalho, a pesquisa caminhou

no sentido de demonstrar também como a nova poesia se apoderou dos pressupostos do

design, da arquitetura, da moda, da comunicação de massa. E, por outra via, a fundamentação

teórica escolhida nos forneceu subsídios para demonstrar como também a publicidade bebeu

14

na poética da vanguarda para estruturar suas mensagens ao grande público. As relações entre

a poesia concreta e a publicidade já existiam nos anos 50 e 60. No entanto, optamos por usar

exemplos de anúncios da publicidade contemporânea (dos anos 90 e 2000) para demonstrar

como ela se apóia em procedimentos da poesia para criar suas mensagens e como este

processo seguiu pelas décadas posteriores e como a propaganda ainda mantém em muito da

sua produção, essas características estruturais.

Os exemplos utilizados ao longo deste trabalho não pretendem discutir os

significados no âmbito mercadológico ou mesmo analisar seu sentido criativo, ou mesmo sua

eficiência técnica. As propostas temáticas da poesia concreta nos deram importantes

informações. No entanto, nosso objetivo foi procurar demonstrar as relações estruturais entre

a poesia concreta e a publicidade no que se refere à sua espacialidade, aos elementos

tipográficos, à construção visual e a utilidade nos dois discursos. Não nos preocupa promover

o aprofundamento em suas distintas ideologias e as intenções propostas em seus programas,

embora tenhamos as utilizado ao longo do trabalho, para contextualização e posicionamento

enquanto linguagens.

2 EM PRIMEIRO LUGAR, O QUE DIZ O DISCURSO PUBLICITÁRIO

15

2.1 DENOTAÇÃO, CONOTAÇÃO

Em Aventura Semiológica, mais precisamente no artigo intitulado “A mensagem

publicitária”, Roland Barthes alertava para o fato de que os critérios da linguagem

publicitária são os mesmos da poesia: figuras retóricas, metáforas, jogos de palavras, todos

aqueles signos ancestrais, que são os signos duplos, alargam a linguagem rumo a significantes

latentes e “dão assim ao homem que os recebe o poder mesmo de uma experiência de

totalidade”. (2001, p.202). Ao tratar do assunto denotação-conotação, Barthes argumentava

que toda mensagem tem um plano de expressão, ou seja: a substância fônica ou gráfica das

palavras, e um outro plano, o de conteúdo que é o sentido literal dessas mesmas palavras e

dessas mesmas relações. Existe uma primeira mensagem (denotação) que reúne um conjunto

de significantes, que remete a um corpo não menos suficiente de significados. Já a segunda

mensagem, para Barthes (1963, p.200) não tem o caráter singular do seu significado: esse

significado é único e sempre o mesmo, em todas as mensagens publicitárias: É, numa palavra, a excelência do produto anunciado. Quanto ao significante desta segunda mensagem (cujo significado é a excelência do produto), qual é ele? São primeiro, as marcas de estilo, nascidas da retórica (figuras de estilo, metáforas, cortes de frases, alianças de palavras); mas como essas marcas estão incorporadas à frase literal que já se abstraiu da mensagem total (e por vezes até a impregnaram toda, quando se trata, por exemplo, de uma publicidade rimada ou ritmada).

Para Barthes (2001, p.201), o século XX vive a civilização da conotação. E explica

que este fenômeno estende-se aos meios de comunicação. Mas insiste em que não se trata

apenas de desenvolver argumentos de persuasão, admitindo que a primeira mensagem (a de

denotação) “sirva mais subtilmente para naturalizar a segunda (conotação) retirando-lhe a sua

finalidade interessada”. O mais importante na aventura semiológica de Barthes (2001, p.200)

está na questão de que a segunda mensagem denota a primeira: [...] encontramo-nos, pois, aqui diante de uma verdadeira arquitetura de mensagens (e não de uma simples adição ou sucessão): constituída ela própria por uma reunião de significantes e de significados, a primeira mensagem se torna o mero significante da segunda mensagem, seguindo uma espécie de movimento desgarrado (...)

Para Barthes, esse fenômeno de “desgarramento” ou de conotação é de grande

importância na medida em que reconhece que em nossos dias, dificilmente, recebemos

mensagens que não sejam conotadas, atribuindo à comunicação de massa essa situação.

16

2.2 A RETÓRICA E A PERSUASÃO

O discurso publicitário faz da retórica e da persuasão os seus alicerces. Mas diga-

se, a retórica aristotélica ainda não é a persuasão, mas pode revelar como se faz a persuasão.

No sentido moderno, além daquele pejorativo, no qual a retórica acabou se transformando

num requinte de expressões e enfeites que apenas faziam o texto mais bonito, é preciso que se

restaure um estudo mais aprofundado, aquele que permite a análise das figuras de linguagem e

o das técnicas de argumentação.

Embora Aristóteles tenha diferenciado retórica de persuasão, a retórica tem, para

ele, algo de ciência, ou seja, é um corpus com determinado objeto e um método verificativo

dos passos seguidos para se produzir a persuasão. Assim sendo, caberia à retórica não assumir

uma atitude ética, dado que seu objetivo não é o de saber se algo é ou não verdadeiro, mas sim

uma atitude analítica – cabe a ela verificar quais os mecanismos utilizados para se fazer algo

ganhar a dimensão de verdade.

Citelli (2002, p.11) deduz, a partir de Aristóteles, que “a retórica é uma espécie de

código dos códigos, está acima do compromisso estritamente persuasivo (ela não aplica suas

regras a gênero próprio e determinado), pois abarca todas as formas discursivas”. E mostra

qual a estrutura sugerida por Aristóteles para a elaboração de textos:

a) Exórdio. É o começo do discurso. Pode ser uma indicação do assunto, um

conselho, um elogio, uma censura, conforme o gênero do discurso em causa. Para

o nosso efeito consideremos o exórdio como a introdução. Essa fase é importante

porque visa a assegurar a fidelidade dos ouvintes. Notem como age o padre no

sermão. Normalmente, ele diz: “Caríssimos irmãos, hoje iremos falar sobre...”.

b) Narração. É propriamente o assunto, onde os fatos são arrolados, os eventos

indicados. Segundo Aristóteles: “o que fica bem aqui não é nem a rapidez nem a

concisão, mas a justa medida. Ora, a justa medida consiste em dizer tudo quanto

ilustra o assunto, ou prove que o fato se deu, que constituiu um dano ou uma

injustiça, numa palavra, que ele teve a importância que lhe atribuímos”. É

propriamente a argumentação.

c) Provas. Se o discurso haverá que ser persuasivo, é mister comprovar o que se

está dizendo. Serão os elementos sustentadores da argumentação. Esta fase é

particularmente significativa no discurso judiciário.

17

d) Peroração. É o epílogo, a conclusão. Pelo caráter finalístico, e em se tratando

de um texto persuasivo, está aqui a última oportunidade para se assegurar a

fidelidade do receptor, portanto, mais um importante momento no interior do

texto.

Como já dissemos a retórica segundo Citelli, enveredou por um rumo no final do

século XIX, que se caracterizou pelo simples embelezamento do texto, lançando mão das

figuras de linguagem e dos [...] torneios de estilos que ganharam faixa própria, encobrindo, muitas vezes, as insuficiências das idéias... no Brasil, essa concepção “enfeitista” do discurso, na romaria de lugares comuns, estereótipos, figuras de gosto duvidoso, verdadeiro templo do Kitsch, difundiu-se com uma força capaz de produzir lágrimas nas pasmas platéias. (2002, p.15)

Citelli (2002, p.15) faz uso de uma afirmação de Umberto Eco em A estrutura

ausente (1971) para concluir seu raciocínio a partir do que significava a retórica nesses dias: [...] quase entendida como fraude sutil, está sendo mais e mais vista como uma técnica de raciocínio humano controlado pela dúvida e submetido a todos os condicionamentos históricos, psicológicos, biológicos de qualquer ato humano.

Com o passar do tempo, a retórica teve seus estudos revistos e renovados e

encontrou uma nova visão com sua ligação com a poética. E construindo seu discurso

alicerçado em três gêneros da retórica: o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo, ou

epidítico, a publicidade tratou de sintetizar as fases desse discurso retórico, e às vezes, se

sobrepor, devido ao espaço limitado, ao custo de veiculação dos anúncios e à importância

secundária da propaganda para o leitor que procurava informação predominantemente

jornalística nos veículos de imprensa.

Carrascoza (1999, p.46) nos chama a atenção para outra característica do texto

publicitário: a sua estrutura circular. “A matéria, ou tema, no caso, é dada no exórdio do

discurso, no título e, portanto, deve acabar nele, como na figura da cobra que morde a própria

cauda”.

“O texto, em circuito fechado evita o questionamento e objetiva levar o leitor a

conclusões definitivas”, conforme palavras de Umberto Eco (2001, p.280), ao diferenciar o

discurso aberto do discurso persuasivo, “pois este prescreve-nos o que devemos desejar,

compreender, temer, querer e não querer”.

Ainda seguindo o raciocínio de Carrascoza (1999, p.47), a construção de uma

mensagem persuasiva é fruto de uma cuidadosa pesquisa de palavras, vital na elaboração do

texto de propaganda impressa. “Optar por este ou outro termo não é uma atitude arbitrária,

18

fruto de uma ideologia” (1999, idem), revelando que essa escolha consciente tem sido

empregada também pelo discurso da imprensa.

Destinadas a criar uma “intimidade” com o leitor, segundo Carrascoza (1999,

p.49), “para assim simular um diálogo que em realidade é impossível”, pela própria natureza

física e disposição do emissor (publicidade) e receptor (consumidor), a escolha das palavras é

fundamental para a eficiência mercadológica na elaboração do texto publicitário,

freqüentemente simples e intencionalmente adequadas e pertinentes, e que legitima o

coloquialismo adotado pela publicidade. Outra característica do texto publicitário está

associada às funções da linguagem que uma mensagem pode desempenhar isolada ou

conjuntamente, tal como Jakobson (2003) classificou:

Função Referencial: a mensagem denota coisas reais, deixa de lado o emissor e o

receptor, focalizando o objeto, o contexto (p.ex., “Este é um livro”).

Função Emotiva: o emissor fala de si mesmo, dá vazão aos seus sentimentos, usa

pronome em primeira pessoa (p.ex., “Estou escrevendo agora!”).

Função Conativa ou imperativa: o ato comunicativo, externa forte apelo ao

receptor, representa uma ordem (p.ex., “Continue lendo”).

Função Fática: o enunciado finge despertar emoções, mas em verdade pretende

verificar se o contato com o interlocutor está vivo, se o canal de comunicação está operando

(p.ex., as saudações, os cumprimentos etc...).

Função Metalingüística: a mensagem elege outra mensagem para seu objeto

(p.ex., “A palavra ‘oi’ é um exemplo de função fática”).

Estética ou Poética: a mensagem está estruturada de modo ambíguo e pretende

atrair a atenção do destinatário especialmente para a sua própria forma (p.ex. “Viva a vida!”).

Carrascoza (1999, p.54) alerta para o fato de que numa única mensagem podem

coexistir todas as funções: “na maior parte da linguagem cotidiana, elas estão interligadas ou

encavaladas, embora haja o predomínio de uma”. E completa afirmando que como o texto

publicitário é deliberativo, objetiva aconselhar, “é natural que prevaleça a função conativa,

centrada no interlocutor, alvo do aconselhamento”. (IDEM, p.50). E como já comentamos

anteriormente, na publicidade impressa, tem lugar de destaque a função fática, ou seja: “o que

procura estabelecer o contato com o leitor, dando a ilusão do estabelecimento de um

diálogo”(IBIDEM, p.55).

Importante aqui também é enfatizar que a publicidade glamuriza o produto,

ocultando sua produção serializada, tentando individualizar sua perspectiva.

19

Neste cenário, as figuras de linguagem, segundo Carrascoza, (1999, p.52) [...] próprias do discurso aberto, são usadas para ampliar a expressividade da mensagem e por isso foram levadas tal qual aves migratórias, para o discurso fechado ou persuasivo. Como o texto publicitário é deliberativo, utiliza o aconselhamento como tentativa de persuasão. Mas nem só aí, a linguagem publicitária recorre. Lança mão dos estereótipos, que impedem o questionamento a respeito do que está sendo comunicado, a substituição de nomes, utilizando eufemismos, com eles, atenuando afirmações que poderiam ser agressivas ou demasiadamente sinceras. Também são recursos, o apelo à autoridade – os chamados testemunhais – com depoimentos de “especialistas”, as afirmações e repetições.

Ao estudarmos as figuras de linguagem, tão importantes no discurso publicitário,

é preciso fazer ressalvas quanto às utilizações de termos que, no início do fazer publicitário,

apareciam em grande número, mas já não são tão recorrentes nos dias atuais. Ou seja, a

publicidade tende cada vez menos a impor produtos, preferindo deixar escondido sob diversos

artifícios da própria linguagem, esses produtos a serem vendidos. E cada vez mais, a

linguagem publicitária vai buscar nas figuras de retórica, metáforas, jogos de palavras, todo

tipo de recurso que acaba sendo também o da própria poesia.

Nicolau (2001, p.118) lembra que Jakobson (1988, p.132), estabeleceu uma base

importante para a linguagem poética, que serviu de parâmetro para muitos dos estudos

posteriores sobre poesia e que se atrela também à construção do texto publicitário. Para esse

autor, o estudo lingüístico da função poética deve ultrapassar os limites da poesia e, por outro

lado, o escrutínio linguístico da poesia não se pode limitar à função poética.

Em resumo, a análise do verso é inteiramente da competência da Poética, e esta pode ser definida como aquela parte da lingüística que trata a função poética em sua relação com as demais funções da linguagem. A poética, no sentido mais lato da palavra, se ocupa da função poética não apenas na poesia, onde tal função se sobrepõe às outras funções da linguagem, mas também fora da poesia, quando alguma função se sobreponha à função poética.

2.3 A ESTILÍSTICA

Para que possamos seguir no caminho de identificar ainda semelhanças entre a

estrutura dos textos publicitários e recursos poéticos, devemos nos deter na Estilística, uma

das formas pelas quais, junto com a Gramática, completam-se em um campo vasto

considerado fértil para a concepção da expressividade textual. A publicidade, por sua vez,

utiliza os recursos estilísticos de forma a atrair a atenção do leitor/consumidor, para prolongar

essa atenção e interesse pelo texto, visando convencê-lo ou persuadi-lo de que o produto pode

20

satisfazer suas necessidades subjetivas e objetivas. Em Martins (1997, p.40), encontramos

uma explicação para a utilização desses recursos: [...] o texto publicitário, não obstante seja ‘discurso não literário’... deve ocupar-se das palavras, das frases, como quem faz um poema. É necessário burilá-lo ao máximo quanto aos sons e imagens em busca de harmonia, de ritmo, de clareza e de precisão. Em resumo, o texto publicitário é uma cadeia de palavras que expressam determinado conteúdo, de forma ordenada e elaborada com cuidado.

A Estilística contribui em muito com o texto publicitário e, segundo Nicolau

(2001, p.40), no aspecto fônico ou fonético, os recursos mais utilizados são aqueles que dizem

respeito a sons característicos, a evocação de ruídos e motivação sonora representados por

sibilâncias, aliterações, onomatopéias, encontros vocálicos e consonantais, alternâncias

fônicas, rimas, ritmos, consonâncias:

Os recursos morfológicos e sintáticos, também tratados como morfossintáticos mais freqüentes são os neologismos, os empréstimos, as palavras-montagem, o emprego original dos tempos e modos verbais, mudanças de tratamento, jogos de palavras, trocadilhos, ambigüidade, polissemia, regências, concordâncias, mudanças de ordem de termos, construções inusitadas, elisões. Por fim, os recursos semânticos, ou léxico-semânticos, dizem respeito à criação de termos novos, construção e desconstrução de palavras, em geral, como as metáforas e as metonímias largamente utilizadas, as onomatopéias, as prosopopéias, as perífrases, assim como as figuras de pensamento do tipo: antíteses, hipérboles,ironias, eufemismos e comparações. (IDEM, 2002, p.135).

Também não podemos esquecer no texto publicitário, os recursos de sinestesias,

através do cruzamento de relações sensoriais na percepção de sentidos diferentes, ou seja:

atribuindo-se a uma coisa qualidade que ela, na realidade, não pode ter, pois o sentido que se

percebe é de outra área (ex.doce lembrança), o que nos leva a concluir também que o sentido

literal nem sempre é uma boa “arma” do texto publicitário.

Ezra Pound (1976, p.37) classificou três “espécies de poesia” e em todas elas

observaremos, mais adiante, sua utilização no texto publicitário. Escreve Pound: “Melopéia,

na qual as palavras estão carregadas, acima e além de seu significado comum, de alguma

qualidade musical que dirige o propósito ou tendência desse significado”. “A fanopéia, que é

uma atribuição de imagens à imaginação visual e a Logopéia, ‘a dança do intelecto entre as

palavras’, isto é, o emprego de palavras não apenas por seu significado direto, mas levando

em conta, de maneira especial, os hábitos de uso, do contexto que esperamos encontrar com a

palavra, seus concomitantes habituais, suas aceitações conhecidas e os jogos de ironia.

Encerra o conteúdo estético, domínio peculiar da manifestação verbal, e não tem possibilidade

de conter-se nas artes plásticas ou na música. É a última a aparecer e talvez seja a mais

complicada aquela em que menos pode se confiar”.

21

A melopéia pode ser apreciada pelo estrangeiro de ouvido sensível, ainda que ignorante da língua em que o poema foi escrito. É praticamente impossível transferí-la ou traduzí-la de uma língua para outra, a não ser talvez por algum divino acidente, e meio verso de cada vez. A fanopéia, por outro lado, pode ser traduzida quase toda ou na sua integra. Quando boa o bastante, é praticamente ao tradutor destruí-la, salvo por inépcia realmente crassa e por menosprezo de regras formulativas perfeitamente conhecidas.A logopéia não se traduz; não obstante, a atitude mental por ela expressa pode passar por uma paráfrase. Ou, pode-se dizer, você não a pode traduzir “localmente”, mas tendo determinado o estado de espírito original do autor, você poderá ser ou não capaz de encontrar algum derivado ou equivalente”.

É importante que lembremos o que conclui Pierre Guiraud (1975, p.32), em sua A

Semântica, para podermos mais adiante contextualizarmos a atividade dos signos na

publicidade e na poética: A língua é um sistema de signos que nos serve para a comunicação das idéias, evocando no espírito de outrem as imagens conceituais das coisas que se formam em nosso próprio espírito. A palavra não transmite a coisa, mas a imagem da coisa.

Guiraud nos recorda da necessidade de um estudo especial relativo à estilística e

a dupla função da linguagem, e a questão dos valores expressivos e os valores sócio-

contextuais, tão manipulados pela linguagem publicitária: ...há, por um lado, palavras e construções que exprimem as emoções, os desejos, as intenções e os julgamentos de quem fala (...) por outro lado tal palavra evoca um certo meio, ela não seria empregada por qualquer pessoa, alguns só a empregariam em uma situação determinada; assim é que ela está associada a um grupo e ao contexto social ao qual originariamente pertence; há portanto valores expressivos e valores sociais ou sócio-contextuais.(IDEM, p.36)

2.4 A REDE SEMÂNTICA

Para que se pontue com precisão a questão da linguagem publicitária, é necessário

que raciocinemos em termos de rede semântica. O caráter linear da língua nos leva ao

impedimento de pronunciarmos dois elementos ao mesmo tempo. A língua obedece relações,

segundo Saussure (1977). Essas relações, chamadas de sintagmáticas, apóiam-se na extensão.

Um termo só tem valor porque está num encadeamento, ou seja, alinhado antes ou após outro

na cadeia da fala. Como explicita Carrascoza (1999, p.51): “Fora do discurso, encontram-se

relações que não têm por base a extensão, mas nas quais as palavras que têm algo em comum

se associam na memória”. Esta questão levantada por Carrascoza a partir dos ensinamentos de

Saussure é uma questão que caracteriza a linguagem publicitária mesmo, quando uma palavra

fará surgir na mente de alguém, uma quantidade de outras palavras, ou seja:

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[...] o centro de uma constelação, o ponto para onde convergem outros termos. O elemento comum pode ser o radical (ensinamento, ensinar, ensinemos etc.), o sufixo (ensinamento, armamento, desfiguramento etc.), a imagem acústica (ensinamento, elemento, lento etc.) ou analogia dos significados (ensinamento, educação, aprendizagem, instrução). Em resumo: uma relação sintagmática se estabelece em dois ou mais termos presentes numa série real; já uma associativa une termos numa série mnemônica virtual. (IDEM, 1999, p.51)

Carrascoza ainda se refere a esse tipo de procedimento, na publicidade moderna,

como um “algo mais”. E o popular “palavra-puxa-palavra” acaba por se incorporar como

técnica de redação publicitária, objetivando tornar o texto mais atraente e facilmente

memorizável para o leitor: Essa técnica de elaboração é para o texto o mesmo que a aliteração ou a rima são para uma frase. Portanto, constitui um recurso teórico construtivo, que, na publicidade brasileira contemporânea, vai se somar aos outros fios de Vênus já vistos na busca por persuadir efetivamente o destinatário, levando-o a ter uma percepção positiva do produto/serviço ou da marca. (IBIDEM, p.52)

Entretanto, cabe nesse ponto de nosso trabalho, alertar também para diferenças no

que diz respeito ao comparativo entre a linguagem publicitária e a poesia, como o faz Nicolau

(2001, p.170), constatando que o contexto do poema é muito mais amplo e muito mais

profundo “não se prendendo a pré-conceituações ou imposições a priori, feitas por uma força

externa, senão pela percepção que gera as escolhas pessoais do poeta”. Esse pressuposto nos

leva a refletir sobre o fato de que a publicidade toma emprestados esses procedimentos para

um fim objetivo e pré-concebido, e que com sua finalidade mercadológica, acaba prevendo

expressões, no mais das vezes, que são manipuladas tecnicamente a serviço da persuasão e,

por conseqüência, da venda do produto.

Há que se dizer, apesar de toda preocupação que a publicidade tem de procurar

ineditismo, persuasão e novas alternativas para uma linguagem que por vezes, parece

desgastada e deturpada, a propaganda segue algumas regras que, utilizadas, têm a intenção de

“amarrar” as idéias em torno de um tema ou assunto. É o sentido circular do texto, pelo qual,

não nos afastamos nunca do propósito, apesar de durante o processo abandonarmos o tema,

para depois voltarmos a ele, com mais ênfase no final, costurando um raciocínio e objetivando

a manutenção da atenção do receptor para o que estamos vendendo. Esse “coração” do texto

passa pelas justificativas técnicas, qualidades do produto anunciado, mas sempre termina

retomando, com harmonia, a idéia central. Pois quando o texto segue uma linha conectiva

lógica, é mais fácil ao consumidor aceitá-lo. Para que possamos entender um pouco mais

sobre essas técnicas, recorremos a Figueiredo (2005, p.40): “O texto publicitário conversa,

23

comenta, faz parte do dia-a-dia do consumidor e deve refletir o seu jeito de ser. Penetrar na

mente do consumidor e refleti-la em favor do produto sem soar falso ou pretensioso”.

2.5. PUBLICIDADE X POESIA. RECURSOS SEMELHANTES, DIFERENTES

IDEOLOGIAS

É preciso que, sobre a questão da relação poesia e a publicidade, em que pesem as

similaridades de estilos, recursos de linguagem utilizados, se faça uma reflexão e um

confronto entre ambos os discursos. A publicidade, se sabe, produz textos que em muito se

distanciam das exigências primárias de venda do produto, e utiliza técnicas de persuasão que

acabam transformando algumas de suas expressões em discursos mais próximos da arte sem,

na visão de alguns autores, expressarem uma obra de arte. É o que nos diz Nicolau, analisando

teóricos como o poeta e ensaísta, Otavio Paz e o crítico Alfredo Bosi (BOSI, apud

NICOLAU, 2001, p.129): ambos compartilham a idéia de que a poesia surge com o primeiro

homem e seu poder de nomear as coisas. “É o poema que constrói o povo, que se depara com

os fundamentos do seu ser, pois o poeta remonta à corrente da linguagem, bebendo na fonte

original”. E reproduz a opinião de Bosi, afirmando ainda que à poesia não resta muito a dizer,

senão os resíduos de paisagem, memória e sonho o que a indústria cultural ainda não

manipula para tornar vendável. Ou quererá a poesia, ingênua, concorrer com a indústria & comércio, acabando afinal por vender-lhes as suas graças e gracinhas sonoras e gráficas para que as desfrutem propagandas gratificantes? A arte terá passado de marginal à alcoviteira ou inglória colaboracionista? (IDEM, p.130)

Mais contundente ainda é a crítica de Otávio Paz, identificada por Nicolau: “entre

o propagandista e seu auditório, estabelece-se um duplo equívoco; ele crê que fala a

linguagem do povo; o povo crê que escuta a linguagem da poesia”, referindo-se a ação do

poeta o qual se imagina que seja hoje, um porta-voz dos partidos políticos.

De uma maneira mais ampla baseado na tese de que a propaganda é apenas mais

um instrumento da indústria cultural, encontramos críticas bastante contundentes, como a de

Adorno (2004, p.65) que considera a cultura em um dado momento, como uma mercadoria

paradoxal: [...] é de tal modo sujeita à lei da troca que não é nem mesmo trocável; resolve-se tão cegamente no uso que não é mais possível utilizá-la. Funde-se com isso com a

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propaganda, que se faz tanto mais onipotente quanto mais parece absurda, onde a concorrência é apenas aparente.

Alertando para o fato de que poderíamos todos viver sem a indústria cultural,

pois já é enorme a saciedade e a apatia que ela gera entre os consumidores, já que a

publicidade “é o elixir da vida”, Adorno (2002, p.66) reflete: “Mas já que o seu produto reduz

continuamente o prazer que promete como mercadoria à própria indústria, por ser simples

promessa, finda por coincidir com a propaganda, de que necessita para compensar a sua não

fruibilidade”.

Nesta concepção, Adorno reforça a tese de que historicamente, a propaganda

cumpria a função social de orientar – na sociedade competitiva - o comprador no mercado,

facilitando a escolha e ao mesmo tempo, fazendo a ligação entre produtor e fornecedor,

permitindo que a mercadoria chegasse aos interessados. Mas considera que o livre mercado

chegou ao fim e que a publicidade já não possui mais só essa tarefa. Conclui, então, que

“entrincheira-se na propaganda, o domínio do sistema. Ela reforça o vínculo que liga os

consumidores às grandes firmas” (IDEM, 2002, p.66). Nesse sentido, Adorno é mais

contundente em sua crítica à publicidade, na condição de indústria cultural, independente da

linguagem que ela desenvolve ou a função que exerce.

Para o autor, [...] a publicidade é hoje, um princípio negativo, um aparelho de obstrução, tudo o que não porta o seu selo é economicamente suspeito. A publicidade universal não é absolutamente necessária para dar a conhecer os tipos a que a oferta já está limitada. Só indiretamente ela serve à venda. (IBIDEM, p.67)

Adorno (2004, p.68) repele o que há de ideológico nas mensagens objetivando

apenas “deixar à mostra o poder industrial”. Em sua crítica à indústria cultural, coloca a

propaganda como financiadora de ideologias, que impõe a repetição dos nomes das empresas

apenas para consolidar seu prestígio. Ele admite que, “em virtude de, sob pressão do sistema,

cada produto empregar a técnica publicitária, ela entrou triunfalmente na gíria, no ‘estilo’, da

indústria cultural”. A partir daí, refere-se à propaganda no contexto da época, da seguinte

forma: A publicidade torna-se arte por excelência como Goebels, com seu faro, já soubera identificá-la. “L’art pour l’art”, propaganda de si mesma, pura exposição do poder social (...) técnica e economicamente, propaganda e indústria cultural mostram-se fundidas. Numa e noutra a mesma coisa aparece em lugares inumeráveis, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan da propaganda. Numa e noutra, sob o imperativo da eficiência, a técnica se torna psicotécnica, técnica do manejo dos homens. Numa e noutra valem as formas do surpreendente e, todavia familiar, do leve e, contudo incisivo, do especializado e

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entretanto simples; trata-se sempre de subjugar o cliente, representado como distraído e relutante.

A linguagem da publicidade é imperativa, mas segundo ele esconde suas

intenções. É também aí que Adorno se alicerça para consolidar sua crítica à indústria cultural

e suas formas de expressão: Quanto mais a linguagem se resolve em comunicação, quanto mais as palavras se tornam, de portadoras substanciais de significado, em puros signos privados de qualidade, quanto mais pura e transparente é a transmissão do objeto intencionado, tanto mais se tornam opacos e impenetráveis. A desmistificação da linguagem, como elemento de todo processo iluminista, inverte-se em magia. Reciprocamente distintos e indissolúveis, palavra e conteúdo eram unidos entre si. Conceitos como melancolia, história e, inclusive, “a vida” eram conhecidos nos termos que os representavam e custodiavam. A sua forma os constituía e, ao mesmo tempo, os reproduzia. A nítida separação que declara casual o teor da palavra e arbitrária a coordenação como objeto, liquida a confusão supersticiosa entre palavra e coisa. (IDEM, p.69).

Nessa crítica ao discurso publicitário, efetivada ao longo do tempo, preocupada

em diferenciar a linguagem da propaganda e a da arte, há a posição de Umberto Eco (ECO,

2001, p.281). Questionado quanto à inclusão do discurso retórico como uma manifestação

típica das comunicações de massa, afirma que “não somente destas”, mas lembra que, embora

o discurso publicitário seja de louvor e que leva o ouvinte a concordar, a assentir, a concordar

com aquele que fala, “o discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte com base nas suas

opiniões e convenções”. Para o autor, “não lhe propõe nada de novo, não o provoca, mas o

consola; assim, hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que eu já desejo, mas responde

às minhas tendências secretas (...).“ E confirma sua tese de que o discurso persuasivo por si

só, não é um discurso de domínio, de coerção, uma espécie de engodo: Nem sempre e não necessariamente. Um ditador, um tirano não tem necessidade de discursos para me persuadir. Basta-lhes um bastão ou um chicote... o discurso persuasivo, em si mesmo, não é um mal; só o é quando se torna o único trâmite da cultura, quando prevarica, quando se torna o único discurso possível, quando não é integrado por discursos abertos e criativos. (IDEM, p.281).

Os dois discursos, o da publicidade, e o da literatura, mais própriamente da poesia

de vanguarda, estão aí postos, de uma forma preliminar, ideologicamente. E em suas

trajetórias, já pudemos constatar suas semelhanças, enquanto estrutura lingüística. Resta-nos

agora, caminhar pela poesia de vanguarda, mais precisamente, pela poesia concreta, para

encontrarmos os elos que tentarão confirmar essa transdiscursividade que identificamos em

nossa introdução e que pretendemos demonstrar nos capítulos seguintes. O que podemos

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perceber é que a publicidade utiliza a poesia como recurso técnico para persuadir o receptor e

o poeta concreto toma como ferramenta o que há de gráfico, visual, espacial e sonoro da

publicidade para manifestar a sua poesia.

27

3 AS VANGUARDAS, SEUS CONCEITOS, SUAS PROPOSTAS

3.1 INSTITUIÇÃO ARTE, MODERNISMO

Antes que possamos discorrer sobre a Poesia Concreta, seus critérios, seus atores e

seu repertório, é preciso contextualizar os projetos vanguardistas, recuperar suas intenções,

seus procedimentos e, ainda que de passagem, discutir suas relações com os outros

movimentos contemporâneos.

Peter Bürger(1983) expressa em sua tese, a superação da instituição arte, um

critério único para posicionar os movimentos de vanguarda. A superação da oposição entre

“práxis vital” e “instituição arte” é o traço básico das vanguardas históricas, como o próprio

Bürger as denomina. Em Poesia Concreta Brasileira, o crítico Gonzalo Aguilar (2005, p.29),

ao situar o contexto das vanguardas, discorda em parte da proposta de Bürger, no sentido de

que o autor alemão, com esse critério único e sintético, “leva-o a exclusões injustificadas e a

desconsiderar as relações contingentes sobre as quais se estrutura cada movimento de

vanguarda”.

Aguilar inverte a proposta de Bürger, como ele mesmo diz, e argumenta: “Toda a

vanguarda é relacional e é preciso localizá-la historicamente para compreender suas

características” (IDEM). Se distanciando da posição de Bürger, Aguilar se aproxima da

reflexão de Pierre Bourdieu (BORDIEU apud AGUILAR, 2005, p. 31) que, segundo ele,

oscila entre o posicional e o relacional e que defende o seguinte: Não é preciso dizer que não constituo em essência trans-histórica (...) uma noção que, tal como a noção de vanguarda, é essencialmente relacional (ao mesmo título que a de conservantismo ou de progressismo) e definível apenas na escala de um campo em um momento determinado.

Mas para que se possa compreender mais a fundo quais são as discussões e as

diferentes interpretações do que é a vanguarda, é preciso observar as duas teses de Bürger

(1987, p.58) a respeito desse assunto. Nas duas, prevalece a clara idéia da crítica à própria

instituição arte. Na primeira concepção, ele diz que a vanguarda permite reconhecer

determinadas categorias gerais da obra de arte: “Somente a vanguarda, como temos visto,

permite perceber o meio artístico em sua generalidade, porque já não o elege desde o

princípio estilístico, senão que conta com ele como meio artístico”.

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Sua segunda tese levanta a hipótese de que com os movimentos de vanguarda o

subsistema artístico alcança o estado da autocrítica: O dadaísmo, o mais radical dos movimentos de vanguarda européia, já não critica as tendências artísticas precedentes, senão a instituição arte tal como se formou na sociedade burguesa. Com o conceito de instituição arte me refiro aqui tanto ao aparato de produção e distribuição da arte como as idéias sobre arte que determinaram uma época dada e que determinam essencialmente a recepção das obras. A vanguarda se dirige contra ambos os momentos: contra o aparato de distribuição ao que está submetida a obra de arte e contra o status da arte na sociedade burguesa descrito pelo conceito de autonomia. (BÜRGER, 1983, p.62)

Situando o esteticismo, o autor conclui que o desenvolvimento da instituição

arte atinge seu apogeu quando rompe com a sociedade vigente e cria um subsistema

autônomo caracterizado pelo aspecto individual da produção artística e pela obra de arte que

se transforma no conteúdo da arte. Com isso, o esteticismo torna-se a condição prévia para a

intervenção das vanguardas européias que negam a autonomia da arte burguesa e propõem a

aproximação da arte à práxis vital. Bürger observa, no entanto, que as vanguardas das décadas

de 50 e 60 denominadas neovanguardas, não atingiram o mesmo valor de protesto e efeito de

choque que as vanguardas históricas. Segundo ele, a neovanguarda institucionaliza a

vanguarda como arte e nega assim as genuínas intenções vanguardistas. Arte autônoma no

mais pleno sentido da palavra.

Pensemos, pois, como se produziu o conceito de autonomia da arte. Importante

este recuo cronológico, no sentido de ilustrarmos como surgiu e como se evidenciou essa

nova postura. Segundo Menezes (1991, p.49), [...] a irracionalidade que distingue o romantismo do iluminismo é, assim, a fórmula invertida de um mesmo sistema inalterado, um sistema de valores que se funda em uma estética idealista que conduziria ao conceito de autonomia artística. É no confronto romântico da racionalidade dos fins iluminista e da racionalidade dos meios da revolução industrial que surge fortemente a separação entre intelectualismo e intuicionismo na arte moderna, que explodirá no choque das vanguardas.

A recusa do artista em aceitar a condição de mero produtor de mercadoria cujo

valor deveria estar estabelecido em termos monetários, como um produto industrializado

oferecido no mercado, conduziu a obra de arte em direção à sua afirmação enquanto objeto

autônomo, dotado de leis inerentes à sua estrutura de linguagem fixa e auto-suficiente.

Menezes (1991, p.49) situa esse período: Também é nesse momento que a estética passa a funcionar como normativizadora crítica de valores artísticos, alcançando paulatinamente uma função que se interporia entre o leitor e a obra. Aos poucos os estetas passariam a criar sistemas normativos de análise das obras artísticas, verdadeira ciência auto-suficiente que culminaria na modificação da relação leitor-obra à medida que, idealizando e

29

intelectualizando a fruição da arte, conduziria implicitamente à anulação da dimensão do prazer estético.

Menezes (1991, p.51) reforça sua tese no sentido de que, ao sustentar a existência

de regras organizadas num sistema de valores autônomos que dão à obra de arte a condição de

auto-suficiência, o artista ou o crítico exercita o lado racional de sua personalidade e “mostra

a identidade que possui com a concepção racional-idealista do mundo”. Daí faz com que

aqueles esforços para desenvolver as artes de acordo com a sua lógica interna resultassem, na

metade do século XIX, numa concepção estética de arte que encorajou o artista a produzir

suas obras de acordo com a nítida consciência da arte para o bem da arte” (HABERMAS,

1983, p.10). Menezes tem em Poe seu exemplo mais significante na tentativa de caracterizar a

idéia de “ordenamento racional da arte”: O modo pelo qual o romantismo se passa para a composição cabal da arte autônoma encontra um ponto nodal na obra de Edgar Allan Poe. Pertencente à tradição romântica de língua inglesa, o conjunto da produção do poeta norte-americano se desenvolve antagonizada por pólos onde se reúnem, de um lado, contos e poemas de índole nitidamente gótica e, de outro, contos e poemas que, por inspiração temática ou por desenvolvimento da narrativa, se põem como produtos de natureza acentuadamente racional e intelectualizante apesar da mesma origem na narrativa de suspense. Mas é no seu poema mais famoso e popularizado, O Corvo, e na sua análise desenvolvida no ensaio Filosofia da Composição que se reúnem de maneira particularmente nítida os elementos da narrativa gótica e da afirmação da obra de arte como objeto dotado de leis e valores racionais inerentes à criação.

Retornamos, então, à problemática da autonomia da arte e de que maneira isso

reverteria em conflito entre o modernismo e vanguardas. Diz Menezes, que, se é verdade que

a concepção da autonomia da arte é fenômeno que se instala definitivamente na metade do

século XIX e se alastra predominantemente a partir do simbolismo literário, não resta dúvida

de que a postura romântica de alheamento do mundo é que prepara, com alicerces na filosofia

estética da época, as condições para o advento de tal concepção que, de resto, marcaria um

dos conflitos centrais entre modernismo e vanguardas, conforme demonstra, por exemplo, a

tese de Peter Bürger. (1983)

E é em Bürger que localizamos o aparecimento da arte autônoma sob

condições decisivamente novas, a perda da validade da visão religiosa do mundo, a

fragmentação das atividades humanas e a percepção das conseqüências negativas de um

mercado orientado pelo lucro em rápida expansão.

Mas também é em Benjamin que encontramos a explicação para a “perda da aura”

na arte, ou seja: o casamento da estética com a técnica, conduzindo, como diz Menezes (1991,

p.62), “a redenção da obra artística dos modelos acadêmicos”. Benjamin argumenta em seu

30

famoso ensaio “A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, que mesmo na

reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua

existência única, no lugar onde ela se encontra. E prevê a adoção de outros critérios de

avaliação do valor artístico, agora dependentes da potencialidade da obra de arte em exprimir-

se enquanto mercadoria de consumo e sua capacidade de se projetar como fonte de apreciação

sensorial associada em última instância, à diversão e à ocupação do tempo livre por parte do

consumidor: O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica... Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intato o conteúdo da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. (IDEM).

Benjamin (1986, p.171) considera a doutrina da arte pela arte como uma

teologia da arte. E vê nesta uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura que

não rejeita apenas toda a função social, mas também qualquer determinação objetiva: “(Na

literatura, foi Mallarmé o primeiro a alcançar este estágio)... Com a reprodutibilidade técnica,

a obra de arte se emancipa, pela primeira vez, na história, de sua existência parasitária,

destacando-se do ritual”.

Para alguns autores como Habermas, o modernismo é o conjunto de

transformações operadas a partir da metade do século XIX, quando se institui a instância da

autonomia na arte, divorciando-a da vida social. Movimentos como o surrealismo, por

exemplo, então, programaram aniquilar com a autarquia da arte e forçar a sua reconciliação

com a vida. Uma crise imposta que faz com que as vanguardas desapareçam como nome e

conceito, sendo absorvidas.

3.2 NÃO-CONCILIAÇÃO

Voltemos então a considerar as distâncias e proximidades entre modernismo e

vanguarda. Dissemos aqui, anteriormente, que as vanguardas não devem ser apenas

posicionadas partindo-se da premissa de que elas são relacionais. Pois bem, a par disso, tome-

se por princípio que “as vanguardas têm relações variáveis e não vazias”, como diz Aguilar

(2005, p.32). Imagine-se primeiro a conjunção de profundas transformações tecnológicas, a

31

existência de um campo literário ou artístico investido de uma autoridade intrínseca e um

momento em que a modernidade é um motivo de disputa cultural e política. “Em segundo

lugar, no domínio do artístico, as relações vanguardistas implicam sempre num

questionamento do estatuto da obra, porque é sua legitimidade como forma, que está em

jogo”. (IDEM, p.32).

O ambiente urbano moderno e o progresso tecnológico que acompanham todas

as vanguardas não as explicam, mas são componentes necessários que se inter-relacionam

com seus programas. A tensão entre novidade e não-conciliação encontra no ambiente

urbano-tecnológico a experiência a partir da qual os movimentos de vanguarda se distribuem.

Diz Aguilar: [...] se a novidade é o componente mimético (o mundo-mercadoria e o mundo-máquina), a não-conciliação tenta reconduzi-la a relações liberadas As vanguardas encontram a não-conciliação na forma, ou seja, em como a obra se apresenta fenomenicamente à experiência social, e seus programas podem ser entendidos como a busca de uma legitimidade original (e já não tradicional) da produção artística nesse ambiente que se transforma velozmente. (IDEM, p. 33).

Aguilar acrescenta que a não-conciliação é um aspecto central em todo

movimento de vanguarda, “a não-conciliação com os hábitos do público, com a tradição, com

as formas recebidas, com as instituições, com os museus e com os outros artistas” (IBIDEM,

p.36). E essa mesma não-conciliação age em termos de recepção de duas maneiras: no

choque dos hábitos do receptor e mediante o anúncio de algo que ainda não é, mas que será no

futuro. “... a eficácia de um ato dadaísta ou de algumas performances futuristas está, mais do

que em sua relação com outras obras, em sua inserção violenta no contexto social” (IBIDEM)

Voltemos a Bürger (1983, p.104-105) para entendermos melhor que a categoria

de obra de arte não é destruída pelos vanguardistas, mesmo que a tenham transformado por

completo. Diz ele que o duplo caráter da arte na sociedade burguesa consiste em que sua

distância relativa aos processos sociais de produção e reprodução contém tanto um momento

de liberdade como um momento de falta de compromisso, [...] de falta de conseqüências. Por isso se entende que a intenção dos vanguardistas por reintegrar a arte aos processos de vida, seja em si mesmo uma empresa em grande medida contraditória. A liberdade (relativa) da arte frente à práxis vital é a condição das possibilidades de conhecimento crítico da realidade. Uma arte que já não esteja calcada sobre a práxis vital, senão, separada por completo dela, perde com a distância referente à práxis vital também a capacidade de criticá-la.

Bem entendido, o modo de operação dos vanguardistas em muitos casos,

concentra uma tentativa de fundir arte à vida, mas é sempre o artista o agente privilegiado

para que essa fusão se realize. Na análise de Aguilar,

32

[...] pela distância que estabelecia com os outros campos, é questionado nas vanguardas por meio de diferentes estratégias de extensão. O artista se transforma em engenheiro no construtivismo russo e em designer na poesia concreta. O futurismo se apresenta como uma solução para os problemas nacionais e o surrealismo quer ser simultaneamente um programa vital, político e artístico. (2005, p.37)

É exatamente nesse ponto que podemos começar a refletir sobre o que foi

decisivo na vanguarda onde ela expressou o conceito da antitradição e como ela passou a se

relacionar com a própria tradição. Na verdade, o que se observa é que a vanguarda, através

dos seus movimentos, reuniu objetos tão diversos que, segundo Aguilar, “parece sumamente

estranho que todos possam caber em uma mesma denominação” (IDEM, p.38). Mais

importante do que o que une ou não as vanguardas é o fato de que o seu questionamento

radical seja estabelecido com ou sem planejamento. Diz então Aguilar: Acaso ou planejamento, deixar que o poema venha das regiões do não-consciente ou produzi-lo segundo um mecanismo prévio de relojoaria. As múltiplas linhas que surgem desse problema são uma marca d’água da arte pelo menos desde o final do século XIX. A partir desse ponto de vista, Un Coup de Dés, de Mallarmé, constitui um limiar das poéticas construtivas, e os poemas de Rimbaud e Lautréamont, das poéticas do aleatório. (IBIDEM, p.39).

Em Teoria Estética, Theodor Adorno (1970, p.36) também discute a obra de

vanguarda. No centro de sua teoria, encontra-se a categoria do “novo”. O novo é a renovação

dos temas, dos motivos e processos artísticos estabelecidos pela evolução da arte desde a

modernidade. Essa categoria representa a hostilidade contra a tradição peculiar da sociedade: A violência do novo, para o qual se adoptou o nome de processo experimental, não deve imputar-se ao pensamento subjetivo ou à natureza psicológica do artista. Onde nem as formas nem os conteúdos determinam este ímpeto, os artistas produtivos são objetivamente compelidos à experimentação. No entanto, o conceito de experimentação modificou-se em si, e de maneira exemplar para as categorias do Moderno. Originalmente, ele significava apenas que a vontade consciente de si mesma experimentava processos técnicos desconhecidos ou não sancionados. Tradicionalmente, estava subjacente a crença de que se tornaria público se os resultados se impunham ao que já estava estabelecido e se legitimavam. Esta concepção da experimentação artística tornou-se tão evidente como problemática na sua confiança na continuidade. O gestus experimental, termo que designa os procedimentos artísticos para os quais o Novo é obrigatório, manteve-se, mas hoje designa de muitos modos, com a passagem do interesse estético da subjectividade comunicativa para a consonância do objeto, algo de qualitativamente outro: o facto de que o sujeito artístico pratica métodos cujos resultados não pode prever.

3.3 A NÃO-LINGUAGEM

33

Nos movimentos de vanguarda, a procura de uma linguagem adaptada à expressão

da nova vida moderna faz da inovação estética algo fundamentalmente diverso da inovação

estilística do escritor modernista. Enquanto na linguagem nova das vanguardas, a vida

moderna é enaltecida (como no futurismo) ou ironizada (como no Dadá), mas de qualquer

maneira assimilada como dado fundante da estética, como uma inscrição da realidade no

corpo da obra, no modernismo, as grandes escrituras individuais se põem como negadoras da

adaptação da linguagem à realidade presente, como um instrumento de defesa contra a fusão

da obra com a realidade, por mais que esta permeie tematicamente aquela. Ambas as posturas,

entretanto, têm estreita vinculação com a época, refletindo, cada qual a seu modo,

mentalidades tipicamente modernas, ainda que antagônicas. Refletindo desta maneira, pode-se

deduzir que a linguagem nos modernistas passa a se aproximar da realidade da sociedade

industrial, contendo em seu discurso, elementos capturados da realidade e como se fosse uma

tradução desses elementos utilizando-se as novidades encontradas nessa mesma realidade. Diz

Menezes (1991, p.93): Assim, a simultaneidade das informações no mundo moderno, a técnica da comunicação de massa (jornal, rádio), a velocidade e a eletricidade, os ruídos da nova cidade, são representadas nas obras de autores como Mallarmé, Joyce ou John dos Passos enquanto modificações na estrutura do discurso, portanto, de modo indireto, mediado por criação de novas formas escriturais que mantêm, contudo, assentamentos na tradição narrativa.

A linguagem não é mais o campo de mediação entre a realidade e a invenção do

artista, mas um dado emanado da própria realidade que o artista só faz captar. Nesse nível se

dá em grande parte a utopia da fusão arte-vida no projeto das vanguardas históricas, que se

diferencia, então, do projeto modernista da arte pura. Nesse nível também se explica a utopia dadaísta da anti-linguagem, da anti-arte e da contra-comunicabilidade. A linguagem, no projeto das vanguardas, é um elemento que se põe entre a arte e a vida, entre a expressão da vida e ela própria, que deve ser cancelado – daí que a pesquisa constante e o experimentalismo das vanguardas refletem uma vontade de anulação da própria linguagem, daquilo que ela representa enquanto fator mediador e, portanto atravessador da relação artista-realidade, ou obra-vida. O experimentalismo e a inovação frenética da linguagem querem levá-la ao limite de suas possibilidades e então à anulação de sua própria existência e função. Essa passa a ser uma das contradições fundamentais da arte de vanguarda: avançar a linguagem em direção à sua aniquilação, criar novas formas para abolir a natureza da linguagem – em outras palavras, inventar para destruir. (IDEM)

E antes que investiguemos mais a fundo os manifestos futuristas, as propostas

surrealistas e, de uma forma mais ampla, os conceitos vanguardistas, é preciso que se

identifique outra importante característica desses movimentos de ruptura. A obra de

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vanguarda é uma obra de conjunto, sem particularidades de autoria, quase como um esboço

que atende a fórmulas impessoais de ação criativa. E aí é parte fundamental de uma utopia da

reconciliação da arte com a vida, à medida que retira da inspiração individual o elemento

desencadeador da criação e deposita no gesto vivo do artista a validade inicial do produto

estético. E a vanguarda fatalmente se auto-associou a movimentos políticos. De qualquer

forma, e independente dos seus atos “políticos”, o experimentalismo, o extraordinário, a

violência transgressora, por mais que pareçam expressões contrárias à sociedade capitalista

industrial, por mais que se dirijam contra o estado das coisas, em boa medida não são mais do

que reflexo e retrato do espírito dominante dessa mesma sociedade que querem modificar.

3.4 O FUTURISMO NÃO CHEGOU LÁ

Ainda que um dos seus famosos slogans tenham sido “Abaixo os museus”, o

futurismo pode ser observado com bastante atenção nesses espaços contemporâneos.

Considerado como o primeiro movimento da vanguarda européia, teve amplo

desenvolvimento não se restringindo apenas às artes. No seu apogeu, entre 1909 e 1920, o

futurismo italiano, liderado por Felippo Tomaso Marinetti, enalteceu a vida urbana, a

velocidade dessa mesma vida, e a violência do mundo à sua volta. Entre as propostas

futuristas, a tese desenvolvimentista foi a mais imperante, onde Marinetti e seus

companheiros pregaram primeiro, a rejeição ao passado e a herança italiana,

[..]. uma filosofia de vida altamente politicada e fundamentada na rejeição a uma grande quantidade de forças consideradas hostis ao crescimento e à modernização da Itália. A insistência na destruição da herança italiana fazia parte dessa rejeição. A ação violenta, seja na vida, seja na arte, era encarada como o antídoto à letargia política, cultural e filosófica. (HUMPHREYS, 1999, p.9)

Mas, apesar da retórica de seus manifestos sobre a cidade, os aviões, os telefones

e toda a parafernália da “vida moderna”, os futuristas raramente pintavam ou descreviam o

futuro. Mas o que mais nos interessa aqui do futurismo é a intenção de Marinetti em rumar ao

conceito de “palavras em liberdade”. Aproximando-se de escritores do final do século XIX,

como Stéphane Mallarmé e Jules Laforgue, e de contemporâneos como Apollinaire e

Cendrars, Marinetti, cuja bagagem era eminentemente literária, evoluiu na poesia, na prosa no

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drama nesse caminho. “Dando as costas ao que considerava – apesar de sua inovação técnica

– o defeituoso sentimentalismo romântico dos precursores simbolistas, Marinetti declarou: Às lágrimas da beleza que brotam ternamente sobre os túmulos, nós opomos o nítido e incisivo perfil do piloto, do motorista, do aviador (...) colaboramos com a mecânica na destruição da antiga poesia da distância e das melancolias brutas, da deliciosa nostalgia da separação as quais substituímos pelo trágico lirismo da ubiqüidade e da velocidade onipotente. (HUMPHREYS, p.38)

Datado de 11 de maio de 1912, “O Manifesto técnico da literatura futurista”,

estabelece um programa de “revolução sintática” ditado, como ele afirmava, pela hélice

girante de seu aeroplano ao sobrevoar os telhados e chaminés de Milão: (HELENA, 1993,

p.13). 1. Devemos destruir a sintaxe e espalhar nossos substantivos a esmo, exatamente como eles nascem. 2. Devemos usar o infinitivo porque ele se adapta elasticamente aos substantivos sem subordiná-los ao “eu” do escritor que observou ou imaginou. 3. Devemos abolir o adjetivo a fim de permitir que o substantivo nu preserve sua cor essencial (...)

4. Devemos abolir o advérbio, velha fivela que une as palavras umas às outras. O advérbio conserva a frase numa fastidiosa unidade de tom.

5. Todo substantivo precisa ter o seu dublê; isto é, o substantivo deve ser seguido sem conjunção, pelo substantivo ao qual se relaciona por analogia. Exemplo: homem-torpedo-barco, mulher-golfo, onda-multidão, praça-funil, porta-torneira (...)

As imagens não são flores para escolher e colher com parcimônia, como dizia Voltaire. Elas constituem o sangue mesmo da poesia. A poesia deve ser uma seqüência ininterrupta de imagens novas, sem o que não é outra coisa que anemia e clorose.

Quanto mais as imagens contenham ligações vastas, tanto mais tempo elas conservarão a sua força de estupefação. [...] É preciso, portanto, abolir na língua o que essa contém de imaginações estereotipadas, de metáforas descoloridas, isto é, quase tudo. [...]

Marinetti, segundo Humphreys (1999, p.39) chega a propor entre outros

“gestos iconoclastas”, a abolição da pontuação e sua substituição pela matemática e pelos

símbolos musicais: “Uma de suas idéias mais importantes foi a extensão e o aprofundamento

das analogias, antecipando assim, a concepção surrealista da escrita”.

É importante que se diga que Marinetti, em sua megalomania, propõe ainda a

“destruição do “eu”, ou seja, de toda psicologia (...) a fim de capturar o alento, a sensibilidade

e os instintos dos objetos livres e dos caprichosos motores”. No manifesto “Destruição da

sintaxe – imaginação com cordas – palavras em liberdade”, de 1913, Marinetti afirma que “o

futurismo se fundamenta na renovação completa da sensibilidade humana engendrada pelas

grandes descobertas da ciência. Ele dilata o alcance dos artifícios futuristas a fim de incluir o

“adjetivo semafórico”, a “onomatopéia”, a “revolução tipográfica”, o “lirismo multilinear” e

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a “livre ortografia expressiva”. O efeito desses termos recém-cunhados foi ampliar não só as

possibilidades semânticas da linguagem, como também sua dimensão visual:

As experiências tipográficas do celebrado livro de Marinetti, Zang Tumb Tumb,de 1914 foram, talvez, o mais bem sucedido exercício de ruptura das barreiras entre as palavras e as imagens e, assim, de detonação do edifício das distinções conceituais, sobre o qual ele acreditava basearem-se os efeitos decadentes da tradição e da convenção. Como é característico de Marinetti, o livro se inspira na guerra, descrita por ele como “a única higiene do mundo” (...) Embora nem sempre bem sucedidas e decerto não inteiramente originais, as experiências literárias de Marinetti significaram um desenvolvimento no projeto modernista de reconfigurar a criatividade, a consciência e a forma estética, à luz das mudanças da tecnologia e da ciência, as quais ele identificou como a força motriz da experiência do século XX. (HUMPHREYS, p.40).

Humphreys chama a atenção para o fato de que devemos utilizar o rótulo de

“futurismo russo” com cautela, pois embora os artistas e escritores russos conhecessem o

movimento de Marinetti, muitos recebiam o revolucionário italiano e suas idéias com

ressalvas. No conturbado período de 1909 a 1917 (revolução bolchevista), a vanguarda russa

era altamente criativa e complexa e tinha nitidamente uma característica que valorizava o

primitivo e o “irracional”. Assim, o movimento do futurismo russo trazia uma concepção do

“moderno, do novo, do futuro, enfim, diferente da de Marinetti e seus colegas”

(HUMPHREYS, p.60). Tal qual os vorticistas, muitos artistas russos achavam os italianos

excessivamente preocupados com a publicidade e inclinados a ver a modernidade

simplesmente em termos de características mais óbvias dos avanços tecnológicos. Na Rússia,

o vínculo estreito entre artistas e escritores fica evidente na onda de publicações de baixa

tiragem de poesia em co-autoria, que foi o centro do projeto futurista. A poesia caracterizava-

se por neologismos, ilogismos, o palavreado infantil e os erros intencionais, inclusive

tipográficos.

O que nos interessa aqui no futurismo não é tanto a sua manifestação política,

mas sua tentativa de romper com estruturas da arte e também o que ela provocou de novo em

artistas e escritores, principalmente no período que antecedeu a adesão do movimento ao

fascismo. O que podemos constatar é a sua contribuição no sentido de promover uma nova

linguagem.

37

4. A POESIA CONCRETA CHEGA PELOS MUSEUS

4.1 AS CONDIÇÕES PARA O SURGIMENTO DO CONCRETISMO NO BRASIL

Como bem lembrou Haroldo de Campos na introdução à primeira edição do livro

Teoria da Poesia Concreta (2006, p.9), o movimento de poesia concreta alterou

profundamente o contexto da poesia brasileira. “No plano nacional, retomou o diálogo com

22, interrompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral. No plano internacional

exportou idéias e formas”. Como diz Aguilar (2005, p.59), “se quisermos ver a pré-história do

movimento da poesia concreta não basta que nos dirijamos ao legado das vanguardas

históricas, é preciso também atentar para as formas culturais em que a arte se manifestava no

final dos aos 40, na cidade de São Paulo”.

O que podemos considerar na tentativa de contextualizar o movimento da poesia

concreta é o ambiente e as condições criadas para o seu aparecimento. Pode-se, contudo,

começar pela pergunta formulada por Aguilar: “como explicar o surgimento de um grupo de

vanguarda no próprio cerne de um museu?” (2005, p.55). A pergunta já parece determinar

respostas paradoxais, como: o museu já não é o lugar privilegiado ou único em que a obra de

arte encontra seu destino. o museu havia perdido a exclusividade da mostra das imagens

artísticas com o crescimento da reprodutibilidade técnica; o museu é uma das instituições

mais atacadas pelas vanguardas.

E embora demonstre mesmo contradições, em um contexto muito diferente do

encontrado nas vanguardas históricas, algumas neovanguardas dos anos 1950 e 1960 já não se

posicionaram fora do museu, mas o consideraram um espaço de negociação e enfrentamento

artístico e cultural. Diz Aguilar (2005, p.55):

No caso do Brasil, não é só preciso levar em conta essas transformações, como o papel dinâmico e a função modernizadora que tiveram essas instituições em uma sociedade periférica. Na cidade de São Paulo na década de 1940, o surgimento de novos museus era um signo de distinção para uma cidade orgulhosa de sua modernidade e para uma classe média urbana que podia ter (agora, sim) acesso a um patrimônio artístico de primeira qualidade. Nessa confluência de novos espaços institucionais de exposição e de novas situações paras as vanguardas na época da reprodução, surgiram os poetas concretos.

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Masp e MAM já eram os espaços de uma nova época. E a partir de 1951, os

critérios modernistas se acentuaram na criação das bienais de arte e arquitetura de São Paulo.

Nelas, o espaço evolutivo do museu se reforçava com a temporalidade das exibições

periódicas. As bienais, com suas amplas retrospectivas, nas quais se recuperavam movimentos

como o futurismo italiano ou a Bauhaus, converteram as práticas de vanguarda em arquivo e

as colocaram à disposição dos novos artistas. Segundo Aguilar (2005, p.60), “as Bienais de

São Paulo da década de 1950, foram a melhor escola para o conhecimento das

vanguardas”(2005, p.60), lembrando que a participação de vários países reunia nomes de

importância nas artes plásticas e arquitetura, como Picasso, De Kooning, Pollock, Torres

Garcia, Magritte, André Masson e ainda Le Corbusier, Piet Mondrian, Paul Klee, assim como

os brasileiros Di Cavalcanti e Portinari:

Em primeiro lugar, nas bienais se apresentava, segundo o critério da novidade, próprio das vanguardas, o mais recente da produção artística mundial. Em segundo lugar, seu ritmo periódico gerava a idéia ou a sensação de que a arte moderna estava intimamente ligada ao progresso ou às formas em evolução e de que cada bienal deveria diferenciar-se da anterior, radicalizando os materiais e os procedimentos. Em terceiro lugar, São Paulo se convertia por várias semanas em uma das referências mundiais da arte contemporânea. Em quarto lugar, mediante a idéia de modernidade das obras, chegava-se a um cosmopolitismo mais forte que os regionalismos que então apresentavam outras regiões do Brasil. E, por fim, nestas exposições predominavam a plástica, a escultura e a arquitetura, linguagens que os poetas concretos levaram a suas teorias e seus poemas. (IDEM, p.60)

As bienais, embora tivessem a característica de atualização e concentração de

obras modernistas, também acabaram se transformando em espaços de confronto, no entanto,

valorizando o sentido didático. Os modos de intervenção próprios das vanguardas já não se

faziam presentes da mesma forma:

Os poetas concretos – como fizeram seus antecessores – reuniram-se em grupos, escreveram manifestos, privilegiaram as práticas coletivas e apostaram em um programa de mudança. Entretanto, seus modos de intervenção diferiram drasticamente dos utilizados pelos movimentos de princípios do século XX. A atitude contra a qual os poetas concretos se aproximaram do arquivo não se alimentava das práticas do escândalo, mas de uma crítica sistematizadora que tinha seus antecedentes em Ezra Pound, na escola de vanguarda Bauhaus e nos artistas holandeses Piet Mondrian ou Van Doesburg. (IBIDEM, 2005, p.70)

O movimento concreto tem antecedentes histórico-literários mais remotos. No

entanto eles não definiriam ainda, por si só, com clareza o que aconteceria a partir de 1956,

quando os fundadores do grupo Noigrandes surgiram com os seus primeiros trabalhos. Quem

situa esse marco da literatura brasileira é Alfredo Bosi (1994, p.477).

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O grupo de base já aparece coeso na antologia pré-concreta Noigrandes 1 (1952) em que há poemas, ainda em verso, de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, escritores cujas obras de estréia têm ainda um ou outro ponto de ligação com o formalismo de 45. Preciosismo verbal, amplo uso dos metros tradicionais, imagética frondosa são traços de O Carrossel (São Paulo, 1950), de Décio Pignatari, de Auto do Possesso (1950), de Haroldo de Campos e de O Rei menos o Reino, de Augusto de Campos (1951): em todos, porém, uma desenvoltura auto-irônica e um maior desembaraço no trato de motivos eróticos já diziam das suas diferenças em relação à poética de 45. Diferenças que logo se aprofundaram, na medida em que o grupo se põe a pesquisar numa linha de sintaxe espacial abandonando polemicamente o verso: é o que se vê nas antologias de Noigrandes nº2 (1955), nº3 (1956) e nº4 (1958)

Em dezembro de 56, ao mesmo tempo em que Décio Pignatari retorna de uma

viagem onde manteve contato com o poeta e artista suíço-boliviano Eugen Gomringer – com

isso, tentando uma internacionalização do movimento – acontece a Exposição Nacional de

Arte Concreta. É também o ano em que Augusto e Haroldo de Campos começam a escrever

no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil e com isso, polemizar com outros críticos e

artistas. E então, publicam o terceiro número da Revista Noigrandes, agora com o subtítulo

“Poesia Concreta”. Já desvinculados do Clube da Poesia – que agrupava os nomes

importantes da poesia denominada Geração de 45 – utilizavam a revista praticamente como

única forma de atividade do grupo, embora, como diz Aguilar (2005, p.71), “a revista

Noigrandes não foi uma revista de vanguarda (ainda que os poemas nela publicados possam

sê-lo) e, na verdade, cumpriu a missão de substituir a publicação dos livros de poesia.”

Em abril de 1958, os poetas se afastam do Suplemento Dominical do Jornal do

Brasil e passam a escrever seus artigos no Suplemento Literário do O Estado de S.Paulo, a

esta altura, concentrados em promover traduções de poetas estrangeiros. De qualquer forma,

onde mais os concretos puderam divulgar suas propostas, suas posições, foi através da revista

ad – arquitetura & decoração, o que demonstra a sua ligação com as artes plásticas e o

movimento desenvolvimentista que tomava conta do País naquele momento, a partir da

alavanca política do presidente Juscelino Kubitschek. Com as artes das bienais - pintura, a

escultura e a arquitetura – segundo Aguilar (2005, p.74), os poetas “criaram um espaço de

diálogo e de performance: ao tirar a poesia do seu lugar convencional, exigiram que esta se

definisse em relação às demais artes. “A poesia se apresentava como planejamento,design e

construção, categorias que a aproximavam das artes visuais e da poética de João Cabral de

Melo Neto, mas sobretudo dessa disciplina que no Brasil se havia convertido em emblema de

tradição modernista: a arquitetura”.

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Publicado originalmente na Revista Noigrandes 4 ( São Paulo, 1958) o “plano-

piloto para a poesia concreta” mostra muito claramente como Augusto, Haroldo e Décio, os

fundadores do movimento, consideravam de extrema importância seus precursores e acima de

tudo, a idéia do ideograma, dos caligramas de Apollinaire, no uso múltiplo da linguagem

legitimando-a, da espacialidade, e da sua ligação com as outras formas de manifestação

artística. Numa referência clara ao Plano-Piloto de Brasília, fruto da avalanche

desenvolvimentista que o Brasil passava a vivenciar, o manifesto assinado pelos três reafirma,

de uma forma teórica, a proposta de uma poesia útil e funcional. Nesse manifesto, os poetas

consideram a poesia concreta como um produto de uma evolução crítica de formas, “dando

por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal). Segundo Augusto de

Campos (CAMPOS, 2006, p.215-216), com o poema Un Coup de Dés, Mallarmé tornou-se o

inventor de um processo de composição poética no qual a palavra é entendida como uma

entidade onde o todo é mais do que a soma das partes ou algo qualitativamente diverso de

cada componente. O poema de Mallarmé reside na utilização de caracteres tipográficos

diversos, na disposição particular das linhas da página, na importância que assumem os

“brancos” no espaço gráfico, naquilo que Augusto chama de “tipografia funcional”:

Precursores: mallarmé (un coup de dês,1897): o primeiro salto qualitativo: “sudivisions prismatiques de l’idée”; espaço (blancs) e recursos tipográficos como elementos substantivos da composição. pound (the cantos); método ideogrâmico.joyce (ulysses e finnegans wake) : palavra-ideograma; interpenetração orgânica de tempo e espaço. cummings: atomização de palavras, tipografia fisiogonômica; valorização expressionista do espaço. apollinaire (caligrammes) : como visão, mais do que realização.futurismo, dadaísmo: contribuições para a vida do problema. no Brasil oswald de andrade (1890-1954): “em comprimidos,minutos de poesia”. joão cabral de melo neto (n. 1920 – o engenheiro e a psicologia da composição mais antiode): linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso.

Sua tradição literária continua com a apropriação pelos concretistas de Ezra Pound

que funda em definitivo a teoria do ideograma aplicado à poesia. E embora Augusto de

Campos (2006, p.215-216) admita que haja uma diferença “de perspectiva” e (entre Mallarmé

e Pound, destaca a sua homogeneidade em termos de estrutura:

ideograma: apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt. ritmo : força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área lingüística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra. com o poema

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concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação:coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.

Na esteira da argumentação de Pignatari e dos irmãos Campos a respeito da

poesia concreta, José Lino Grunewald, um dos poetas que participaram ativamente do grupo

dos concretos, argumenta que o poema concreto visa, naturalmente, a forjar um novo tipo de

sensibilidade. Segundo ele, não se trata de desprezar o nível semântico das palavras e apenas

se preocupar com a consumação gráfica, como muitos pensaram. O que a palavra diz é

preservado, mas condicionado primordialmente à situação estrutural dessa mesma palavra,

num jogo de relação no qual também entram, dependendo do poema e da maior ou menor

ascendência, os aspectos óticos e sonoros.

f o r m a r e f o r m a

d i s f o r m a t r a n s f o r m a

c o n f o r m a i n f o r m a f o r m a

Ilustração 1: Poesia Forma, de José Lino Grunewald Fonte: CAMPOS, 2005, p.178

Os poetas concretos desferiram e sofreram muitas críticas. Entre elas, a de que se

apropriaram da tradição literária, nomeando autores importantes do passado, como seus

suportes, na tentativa de unificarem o discurso em torno de uma mesma e radical referência,

como se Joyce, Pound, Mallarmé e Cummings tivessem uma só linha, uma só escrita. De fato,

tanto os manifestos da poesia concreta, como os ensaios publicados pelos poetas a partir da

década de 1950, insistem em teorizar nessa linha. De qualquer forma, não exclui o objetivo de

demonstrar uma nova estrutura, como afirma Grunewald.

Bosi (1994, p.476) lembra que os poetas concretos quiseram levar às últimas

conseqüências certos processos estruturais que marcaram o futurismo (italiano e russo), o

dadaísmo e, em parte, o surrealismo,

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[...] ao menos no que este significa de exaltação do imaginário e do inventivo no fazer poético. São processos que visam a atingir e a explorar as camadas materiais do significante (o som, a letra impressa, a linha, a superfície da página: eventualmente, a cor, a massa) e, por isso, levam a rejeitar toda concepção que esgote nos temas ou na realidade psíquica do emissor o interesse e a valia da obra.

Sobre esse aspecto, o Plano Piloto para Poesia Concreta ainda concentra mais

especificações. Ao conflito fundo-e-forma, na busca de uma identificação, os concretos

chamaram de isomorfismo. Na prática, a poesia concreta adotava na questão estutural uma

composição na qual predominava a forma geométrica e matemática:

o isomorfismo, num primeiro momento da pragmática poética concreta, tende à fisiognomia, a um movimento imitativo do real (motion); predomina a forma orgânica e a fenomenologia da composição. num estágio mais avançado, o isomorfismo tende a resolver-se em puro movimento estrutural (moviment)...(CAMPOS, 2006, p.217).

branco branco branco branco

vermelho

estanco vermelho

espelho vermelho

estanco branco Ilustração 2: Poema Branco, de Haroldo de Campos Fonte: CAMPOS, 2005, p.173

Bosi (1994, p.471) segue o seu raciocínio, embora ainda em termos genéricos,

como ele mesmo ressalva, reiterando a experiência concreta como radical, “a arte como

techné, isto é, como atividade produtora. De onde, primeiro corolário: o poema é identificado

como objeto de linguagem.” Para o autor, os concretos brasileiros reconheciam a promoviam

uma tradição tecnicista como seu imediato ponto de referência histórico e estético:

Na medida em que o material significante assume o primeiro plano, verbal e visual, o poeta concreto inova em vários campos que se podem assim enumerar: a) no campo semântico: ideogramas (“apelo à comunicação não-verbal”, segundo o Plano-Piloto cit.);polissemia, trocadilho, non-sense...;b) no campo sintático : ilhamento ou atomização das partes do discurso; c) no campo léxico :substantivos concretos, neologismos, tecnicismos, estrangeirismos, siglas, termos plurilíngues; d) no campo morfológico : desintegração do sintagma nos seus morfemas; e) no campo fonético : figuras de repetição sonora (aliterações, assonâncias, rimas internas, homoleutons); preferência dadas às consoantes e aos grupos consonantais; jogos sonoros; f) no

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campo topográfico : abolição do verso, não-linearidade; uso construtivo dos espaços brancos, ausência de sinais de pontuação; constelações * ;sintaxe gráfica. Se procurarmos um princípio lingüístico geral subjacente a esses processos compositivos, ressaltará sem dúvida o da substituição da estrutura frásica, peculiar ao verso, por estruturas nominais: estas, por sua vez, relacionam-se espacialmente, tanto na direção horizontal como na vertical. (IDEM, p.478-479).

É importante sempre que se traga à tona, as outras referências importadas pelos

concretistas para a composição de sua teoria. Além de Mallarmé, citado em todos os

momentos como precedente mais significativo na “história” concreta, alguns outros foram

anexados pelo grupo paulista para configurar e “validar” suas propostas. Nesses, se inclui

e.e.cummings, o poeta inventor, que é apreciado pelos concretistas pelo fato de levar o

ideograma e o contraponto à miniatura, libertar a palavra de sua grafia e por via do estudo da

tese de Fenollosa, profundo conhecedor dos caracteres chineses. Também na Teoria da

Poesia Concreta, no artigo pontos-periferia-poesia concreta, Augusto de Campos define

Cummings como o poeta que “libera o vocábulo de sua grafia, põe em evidência seus

elementos formais, visuais e fonéticos para melhor acionar a sua dinâmica.” (CAMPOS,

2005, p.40). Finalmente, Augusto de Campos (2005, p.42) menciona a importância de James

Joyce, particularmente através do seu “romance-poema” Finnegans Wake, no qual o

ideograma é obtido através de superposições de palavras, verdadeiras ‘montagens’ léxicas,

sendo a infra-estrutura geral um desenho circular “onde cada parte é começo, meio e fim”. O

esquema círculo-vicioso é o elo que vai ligar Joyce a Mallarmé, “por um cômodo vicus de

recirculação”. E no mesmo artigo, em tom manifestário, justifica:

As “subdivisões prismáticas da idéia” de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a apresentação “verbivocovisual” joyciana e a mímica verbal de Cummings, convergem para um novo conceito de composição, para uma nova teoria da forma – uma organoforma – onde noções tradicionais como princípío-meio-fim, silogismo, verso tendem a desaparecer e ser superadas por uma organização poético-gestaltiana, poético-ideogrâmica da estrutura: POESIA CONCRETA.

Neste poema de Augusto de Campos, da série Poetamenos, o autor utiliza os

procedimentos de separação das palavras com cores, indicando até mesmo uma forma de

recitá-los a duas pessoas, refugando a noção tradicional do começo-meio-e-fim e reforçando a

idéia de organização gráfica dentro do espaço da página, criando uma estrutura a ser seguida.

eis

os

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amantes sem parentes

senão

os corpos

irmãum gemeoutrem

cimaeu baixela

escoraçambos

d u p l a m p l i n f a n t u n o ( s ) e m p r e

semen(t)emventre

estesse aquelele

inhumenoutro

Ilustração 3: Poema de Augusto de Campos, da série Poetamenos Fonte: CAMPOS, 2005, p.30

4.2 O CONCEITO DE “UTILIDADE” NA POESIA CONCRETA

Para que se compreenda a aproximação dos concretos com as outras artes, é

preciso lembrar a intenção dos poetas de que o poema deixe de ser um discurso que admite

qualquer versão tipográfica ou reprodutiva e passe a ser um objeto que ocupa um lugar no

espaço e que visualize uma série de relações estruturais. Como tal, a noção de design permite

pensar seu processo de composição e sua inserção social. Segundo Aguilar (2005, p.77), os

conceitos de função e utilidade explicam a inserção social e cultural do poema, passando a ser

como disse Haroldo de Campos, “um objeto útil, consumível, como um objeto plástico”.

45

Mesmo assim, essas duas estratégias de função e utilidade são sempre relativas

porque não assumem finalidades determinadas. Essa mesma indeterminação acabou

preservando a poesia concreta de interpretações que a definiam apenas como design. Mas as

ligações com as outras artes sempre estiveram em pauta e em um dos manifestos teóricos do

grupo paulista de poesia concreta, Aguilar (IDEM, p. 79) identifica uma questão importante

no sentido de posicionar a Poesia Concreta e suas relações. Questiona ele:

[...] por que a poesia deveria correr o risco de se acoplar a artes que, embora possam ser consideradas com mais tradição do ponto de vista da cultura visual, são mais problemáticas se consideradas de acordo com seus vínculos com o poder ou em sua capacidade para enunciar dimensões simbólicas?(IBIDEM, p.79)

Para o crítico argentino, o intelectual percebia a si mesmo nesses anos, mais como

um partícipe do que como um “ator crítico do processo de modernização”. Outra

possibilidade, ainda segundo ele, consistiria na análise dos produtos publicitários criados por

poetas como Pignatari – logotipo da Petrobras, por exemplo:

[...] objetos dão como resultado muito mais uma dissolução da poesia do que sua integração à vida cotidiana: mistura de linguagem e design, surgem paralelamente a um novo tipo de profissional (o publicitário), que trabalha com a linguagem em suas potencialidades poéticas mas que as despoja do valor simbólico da poesia. (IBIDEM)

Este abandono do lugar tradicional do poeta e a busca de um novo lugar para si

na sociedade do design e da vida artificial explicam a oscilação ou polifuncionalidade

atribuída à poesia. É o que diz Haroldo de Campos (2005, P.76) no seu manifesto de 1956:

a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea permite a comunicação em seu grau + rápida prefigura para o poema uma reintegração para a vida cotidiana semelhante à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial (jornais, revistas, TV, cinema,etc.), quer como objeto de pura fruição (funcionando na arquitetura, p.ex), com campo de possibilidades análogo ao do objeto plástico substitui o mágico,o místico e o maudit pelo ÚTIL

No final deste manifesto, Haroldo direciona a poesia concreta para o “futuro”.

Mas ela, associada aos mass media, deveria estar lidando com o presente já que isso propõe

uma “aceleração” dos veículos, jornais, cartazes, TV e cinema. Em evolução de formas:

poesia concreta (IDEM, p.77) o poeta repete a idéia de utilidade do objeto, mas não traz de

volta a expressão “veículo de propaganda comercial”. Ele vê agora manchetes, slogans e

cartazes como uma espécie de concorrência e a necessidade de atualizar a poesia com os mass

media:

[...] a poesia concreta responde a um certo tipo de forma mentis contemporânea: aquele que impõe os cartazes, os slogans, as manchetes, as dicções contidas do

46

anedotário popular etc...A figura romântica, persistente no sectarismo surrealista, do poeta ‘inspirado’, é substituída pela do poeta factivo, trabalhando rigorosamente sua obra, como um operário um muro.(IBIDEM,p.81).

A idéia do “poeta operário”, advinda do construtitvismo russo, reaparece e se

associa à proposta da criação publicitária cuja “inspiração” está sempre condicionada ao fator

venda e/ou persuasão.

4.3 O VERSO ENTROU EM CRISE

A “crise do verso” foi o momento mais radical da Poesia Concreta. Foi o momento

em que seus membros tentaram mostrar que a poesia da Geração de 45 já havia esgotado o

verso no sentido formal. Utilizando-se de termos como “o método ideográfico”, “as metáforas

dissonantes”, “a sintaxe subversiva” e o “léxico enigmático”, os concretos tentavam resumir

e definir a sua proposta de uma nova poesia, na questão técnica, radicalizando-a. Diz Aguilar

(2005, p.172) sobre esse momento:

Foi a técnica (e trato de valer-me de toda a ambigüidade que esse conceito possui) que os levou a uma determinada concepção de mudança histórica que os aproxima da vanguarda) e a qual converteram em uma poderosa máquina de leitura e organização do material (do arquivo e do repertório ), tão poderosa que os levou a questionar o sinal de reconhecimento mais evidente do texto lírico: o verso.

Com isso, já não se tratava de simplesmente discutir a validade dos metros ou a

necessidade da rima, era o próprio verso, como unidade rítmico-formal que seria submetido a

um questionamento radical. Haroldo de Campos, na tentativa de mostrar que a idéia de

“conteúdo na obra de arte” e, por extensão, na própria poesia, está ultrapassada, imagina que a

Poesia Concreta não pretende uma comunicação de conteúdos, e sim uma comunicação de

formas, idéia partilhada com Décio Pignatari que propunha uma análise não atrelada apenas à

novidade ou à originalidade, mas a realização de uma poesia construtiva, direta e sem

mistérios, que dispensava interpretações.

Augusto de Campos em seu artigo pontos-periferia-poesia concreta, publicado

originalmente no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro em

11.11.1956, expõe, através das palavras de Mallarmé, “as subdivisões prismáticas da Idéia”,

47

que ele considerava como um original método compositivo. Um método que tenha a

“exigência de uma tipografia funcional, que espelhe com real eficácia as metamorfoses, os

fluxos e refluxos do pensamento”. Dizia Mallarmé:

a) EMPREGO DE TIPOS DIVERSOS: “A diferença de caracteres de impressão entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral...”;

b) POSIÇÃO DAS LINHAS TIPOGRÁFICAS: “... e a situação, ao meio, no alto, embaixo da página, indicará que sobre ou desce a entonação”;

c) ESPAÇO GRÁFICO: “Os ‘brancos’, com efeito, assumem importância, agridem à primeira vista; a versificação o exigiu como silêncio em torno, ordinariamente, no ponto em que um trecho, lírico ou de poucos pés ocupa, no meio, cerca de um terço da página: eu não transgrido essa medida, apenas a disperso. O papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou reaparece, aceitando a sucessão de outras”etc.;

d) USO ESPECIAL DA FOLHA, que passa a compor-se propriamente de duas páginas desdobradas, onde as palavras formam um todo e ao mesmo tempo se separam em dois grupos, à direita e à esquerda da prega central, “como componentes de um mesmo ideograma”, segundo observa Robert Greer Cohn, ou, noutros termos, como se a prega central fosse uma espécie de ponto de apoio para o equilíbrio de dois ramos de palavras-pesos. (CAMPOS apud IDEM, 2005, p.32)

Este é, pois, um resumo da dinâmica que envolve os recursos tipográficos e que,

segundo Campos (2005, p.32), dispensam até mesmo a pontuação, “uma vez que o espaço

gráfico se substantiva e passam a funcionar com maior plasticidade as pausas e intervalos de

dicção (...). Sob certo ângulo, a experiência tem raízes na música:

Acrescentar que desse emprego a nu do pensamento com retiradas, prolongamentos, fugas, ou seu próprio desenho resulta para, quem queira ler em voz alta, uma partitura; (e) Sua reunião (a do verso livre e do poema em prosa) se efetua sob uma influência, eu o sei, estranha, a da Música ouvida em concerto; sendo reconhecíveis nesta diversos meios que me pareceram pertencer às Letras, retorno-os. O gênero, que fica sendo como uma Sinfonia (etc...). (MALLARMÉ apud CAMPOS, 2005, p.33)

Terminada a Segunda Guerra Mundial, uma mudança nas artes implicou no

retorno às formas regulares e clássicas e a rejeição das tentativas vanguardistas anteriores ao

conflito. O retorno ao soneto acabou por considerar a poesia de vanguarda como “prosaica” e

“descuidada”. Autores que tinham diferentes vertentes como T.S. Eliot ou mesmo Neruda,

tinham como proposta o lirismo, e a volta ao mundo idílico e menos bélico, numa rejeição à

experiência modernista. Os poetas da Geração de 45, exibiam segundo Aguilar (2005, p.163),

“uma poesia equilibrada, que jamais rompia as formas regulares e convencionais (...) Para

estes poetas, o retorno às experimentações constituía um abandono da própria poesia”.

48

Contrapondo-se à Semana de 22, ao “irracionalismo” da época, os poetas da

Geração de 45 concentraram-se no grupo Panorama, propondo através de formas tradicionais

e na re-elaboração de ritmos antigos procedendo uma atuação ambivalente, segundo Bosi,

(1994, p.464)

Negativa, enquanto subestimava o que o modernismo trouxera de liberação e de enriquecimento à cultura nacional: positiva, enquanto re-propunha alguns problemas importantes de poesia que nos decênios seguintes iriam receber soluções díspares, mas, de qualquer modo, mais conscientes do que nos tempos agitados do irracionalismo de 22.

Sobre o período, Bosi (1994, p.466) lembra que o que caracterizava as

limitações e o formalismo do grupo de 45 era a redução de todo o universo da linguagem

lírica a algumas cadências intencionalmente estéticas que “pretendem, por força de certas

opções literárias, definir o poético, e, em conseqüência, prosaico ou não-poético”.

Era fatal que a arte desses jovens corresse o risco de amenizar-se na medida em que confinava de maneira apriorística o poético a certos motivos, palavras-chave, sistemas, etc. Renovava-se, assim, trinta anos depois, a maneira parnasiano-simbolista contra a qual reagira masculamente a Semana; mas renovava-se sob a égide da poesia existencial européia entre-guerras, de filiação surrealista, o que lhe conferia um estatuto ambíguo de tradicionalismo e modernidade.

Na verdade, embora a Geração de 45 não tivesse chegado a formar um grupo

orgânico que tivesse em comum um manifesto ou similar ela criticou, de maneira uniforme,

baseada em conceitos de equilibro, acabamento e harmonia, as experiências da Semana de 22.

4.4 A POESIA DEPOIS DO VERSO

Utilizemos a visão de Rudolf Arnheim (1989, p.103) no ensaio Linguagem,

Imagem e Poesia Concreta sobre a poesia concreta e seu confronto com a linearidade da

poesia produzida até antes e diferentemente da poesia concreta. Diz ele que, ao ordenar as

palavras e frases em esquemas não-seqüenciais, a poesia concreta aponta de forma polêmica

para o caráter não-conclusivo do raciocínio. Sugere que não há começo nem fim, e que não há

saída para as contradições. De uma forma positiva, ela manifesta tolerância por uma

multiplicidade de relações e endossa as ambigüidades e contradições “como reservatórios da

experiência a serem incorporados pela mente contemplativa”:

49

A poesia tradicional se distingue por um total envolvimento da mente. Indo além da representação de estados de espírito, há um impressionante tesouro do pensamento implícito num poema de Leopardi, Dickinson ou Yeats. Em compensação, talvez nos sentíssemos tentados a nos queixar da simplicidade do poema concreto típico. Podemos compará-lo à ‘minimal art’ que vimos nos anos recentes na pintura e na escultura e declarar que, embora um retorno aos elementos possa ser salutar em certas situações históricas, devemos nos prevenir de conceder o status de totalidade a tais produtos reduzidos.

Arnheim analisa a Poesia Concreta em território alemão, o que não impede uma

interpretação cujo escopo serve para o que sucedeu no Brasil, nas décadas de 50 em diante. O

autor lembra que os que fazem poesia concreta se juntam aos seus colegas artistas no desejo

de fugir do isolamento social

que tem atormentado as artes desde que se libertaram de suas amarras durante o Renascimento e se tornaram produtos ambulantes, feitos para ninguém em especial, não pertencendo a nenhum lugar, e dispostos a pertencer a qualquer um por certo preço. (IDEM, 1989, p.106)

Arnheim (1989, p.106) vê um poeta que se desencanta com a neutralidade da

página em branco e sonha em ver a sua obra “como um signo, placa ou ícone no movimento

cotidiano do mercado, da peregrinação e da recreação”.

Os poetas concretos adotaram o conceito de evolução acentuando este critério

na tentativa de excluir seus antecessores imediatos, o que acabava por recolocar um outro

conceito importante e tipicamente moderno que é o da técnica. Enquanto a Geração de 45

rejeitava por um lado as experiências de vanguarda e a desumanização da guerra, utilizando-

se de clichês, os concretistas introduziam os procedimentos baseados na evolução das formas

e com isso, convertiam os poetas antecedentes em “regressivos” (AGUILAR, 2005, p.180). A

paisagem tecnológica moderna, em pleno crescimento, repercute nas posturas artísticas da

vanguarda e em sua aposta em inserir-se nessa realidade, resultando na recusa dos concretos

ao neo-classicismo, substituindo-o por uma linguagem do mundo agora tecnificado, “em que

a poesia também quer ter o seu lugar”. Em um dos seus textos mais polêmicos, Haroldo de

Campos (2005, p.45) mostra como era a visão do grupo relativa à experiência do moderno que

levou-os a procurar o verso com outras possibilidades:

O lirismo anônimo e anódino, o amor às formas do vago, que explica, em muitos casos, a “redescoberta” do soneto à guisa de dernier cri, são manifestações sobejamente conhecidas desse preguiçoso anseio em prol do domingo das artes, remanso onde a poesia, perfeitamente codificada em pequeninas regras métricas e ajustada a um sereno bom-tom formal, aparelhada de um patrimônio de metáforas prudentemente controlado em sua abastança pequeno-burguesa por um curioso poder

50

morigerador – o “clima” do poema – pudesse ficar à margem do processo cultural, garantida por um seguro de vida fiduciado à eternidade. Esse novo arcadismo, convencionado à sombra de clichês, sancionado a preguiça e a omissão como atitude frente aos problemas estéticos, autolimitado por um senso autárquico-solipista de métier que excomunga a permeabilidade entre as soluções poéticas, musicais ou das artes visuais (por uma ignorância apriorística e não poucas vezes agressiva!), tem como palavra-senha entre nós o conceito de humano. Como se a bela, a nobre, a fecunda palavra humano, fosse um vocábulo eunuco, destinado a nomear a esterilidade ao invés da criação.

Neste manifesto, Haroldo faz a grande crítica à poesia simbolista, suas

métricas, clichês e metáforas, não absolvendo qualquer destes procedimentos e ao mesmo

tempo projetando a poesia concreta como uma poesia sem limitações e também como uma

poesia de criação não atrelada ao modelo de inspiração e sim ao processo cultural do

momento.

4.5 O IDEOGRAMA FAZENDO PARTE DA LINHA EVOLUTIVA DO CONCRETISMO

A fim de repudiar os “traços lógicos da linguagem”, os poetas concretos

introduziram em seu programa, a idéia do “ideograma”, tentando utilizar seus recursos visuais

e fônicos, substituindo os temas semânticos e os estribilhos. No entanto, o conceito de

ideograma é mais amplo e serve para não só para ser uma oposição ao verso. Nos ensaios e

defesas da poesia concreta, o “ideograma” aparece como um fundamento diversificado

embasado pelos poetas no pilar Pound/Fenollosa (que desenvolveu um trabalho intenso

relativo à escrita chinesa, o qual influenciou em grande parte a obra de Ezra Pound). Em a

moeda concreta da fala, Teoria da Poesia Concreta (2005, p.167) Augusto de Campos se

refere a Pound como o disseminador do ideograma e de suas potencialidades poéticas,

lembrando que o maior poeta moderno de língua inglesa, Ezra Pound, recebeu marcada

influência, em toda a sua obra, da estrutura do poema e do idioma chinês. Para ele, Pound fez

atuante a teoria de Fenollosa, como demonstra mais adiante em seu artigo de 1957,

evidenciando que, em chinês, os verbos estão na raiz de todas as palavras quer sejam elas

adjetivos ou preposições, conjunções ou pronomes, ou mesmo substantivos. “O verbo deve

ser o fato primário na natureza, uma vez que o movimento e transformação é tudo o que

podemos reconhecer nela”. (Ernest Fenollosa e Ezra Pound, “The Chinese Written Character

51

as a Médium for Poetry”, The Little Review Anthology, New York, Hermitage House Inc.,

(CAMPOS, p.199)

Um dos fatos mais interessantes da língua chinesa é o de que nela poderemos ver não apenas as formas das sentenças, mas literalmente as partes da oração crescendo, brotando umas das outras. Como a natureza, as palavras chinesas são vivas e plásticas, porque coisa e ação não estão separadas formalmente. A língua chinesa naturalmente não conhece gramática. Foi só mais tarde que estrangeiros,europeus e japoneses começaram a torturar esse idioma vital para forçá-lo a adequar-se ao gabarito de suas definições. Introduzimos em nossa leitura do chinês toda a debilidade de nossos próprios formalismos. O que é especialmente melancólico em poesia, onde a principal necessidade, mesmo em nossa própria poesia, é manter as palavras tão flexíveis e cheias de seiva da natureza quanto possível. (FENOLLOSA apud CAMPOS, 2006, p.169)

O interesse que a teoria da poesia concreta teve no haicai e na concisão da

poesia japonesa foi evidente assim como a pesquisa na língua chinesa. Em A Arte no

Horizonte do Provável, Haroldo de Campos (1977, p.55) destina dois artigos para tratar de tal

tema, identificando na escrita japonesa, mais elementos de suporte à poesia concreta. No

primeiro artigo, cujo título é Haicai: homenagem à síntese Haroldo primeiro procura afastar o

sentido de empobrecimento que os ocidentais emprestam ao haicai dando-lhe uma aura de

“exotismo gratuito”. Para ele, a linguagem do haicai é altamente vigorosa e concentrada, e

revela “na sua estrutura gráfico-semântica, a existência de processos de compor e técnicas de

expressão (...) que só encontram paralelo em pesquisas das mais avançadas da literatura

ocidental contemporânea”. (IDEM, 1977, p.56). O poeta lembra que Fenollosa observou que a

estrutura do ideograma japonês (kanji) sugere no seu processo de compor, que duas coisas

conjugadas não produzem uma terceira, mas sugerem alguma coisa fundamental entre ambas,

“compreenderemos que um ideograma isolado pode ser em si próprio, pela alta voltagem

obtida com a justaposição direta dos elementos, um verdadeiro poema completo” (IBIDEM,

p.56):

Mas não é somente do ponto de vista da estrutura que nos interessa o haicai. Também em seu léxico, encontraremos, constantemente, exemplos da mais arrojada modernidade. Sendo o idioma japonês eminentemente “aglutinante”, possui maleabilidade extrema para a composição, dentro da normalidade e dos hábitos semânticos, de verdadeiras palavras-montagem, à maneira praticada na literatura ocidental, sobretudo, por um inventor do porte de James Joyce. (CAMPOS, p.58)

Para Haroldo de Campos (1997, p.63-64), o elemento visual na poesia japonesa

é algo que lhe é intrínseco, que participa de sua própria natureza:

[...] não se trata apenas da metáfora visual daquilo que Ezra Pound denominava “fanopéia”,(...) mas de alguma coisa ainda essencial, que radica na própria estrutura do kanji, o ideograma chinês que os japoneses importaram para sua escrita na segunda metade do século III de nossa era”. (p.63) (...) O kanji, que evoluiu de uma fase

52

pictográfica (desenho do objeto) para uma notação extremamente sintética e estilizada, é, em si mesmo, uma verdadeira metáfora gráfica, tanto mais complexa quanto mais “abstratas” as idéias a veicular, pois com este sistema de escrita se podem como é óbvio, representar não apenas as coisas do mundo real, como também emoções, sentimentos, etc. (daí a pertinência do termo ideograma, ou representação gráfica de idéias).

Pelo que se pode perceber, os poetas concretos subsidiaram suas práticas a

partir do “método ideogramático”, o que não significa, em tese, o mesmo que ideograma. No

entanto, essa intenção se justificava a partir da noção de espaço-tempo, o que Aguilar (2005,

p.189) identificou como elemento fundamental na teoria da poesia concreta: diversamente de

Pound, que utilizava o método ideogramático para aplicar, em seus versos, os princípios de

justaposição e montagem, os poetas concretos “quebram a sucessividade discursiva e

desembocam no poema em sua relação com a forma espacial. O ‘método’ de Pound é de

composição, enquanto que para os concretos o ideograma define-se no campo da percepção”

lembrando que esse era um componente da Gestalt1 que originou-se nos pintores concretos e

que “os críticos de artes plásticas utilizavam para atribuir funções e valores estéticos à obra”.

4.6 A ESPACIALIDADE, FUNDAMENTAL NO PROGRAMA CONCRETO

Para que se prossiga na busca do entendimento da questão da não-linearidade

do verso e do uso constante do espaço na página como premissa para a normatização da sua

poesia, é necessário que se analise o que levou os poetas concretos a adotarem a “palavra-

coisa”, a partir da interpretação e fundamentação dos precedentes Pound e Mallarmé. ¹ De acordo com a Gestalt, a arte se funda no princípio da pregnância da forma. Ou seja, na formação de imagens, os fatores de equilíbrio, clareza e harmonia visual constituem para o ser humano uma necessidade e, por isso, considerados indispensáveis – seja numa obra de arte, num produto industrial, numa peça gráfica, num edifício, numa escultura ou em qualquer outro tipo de manifestação visual..Proximidade: elementos ópticos próximos uns dos outros tendem a ser vistos juntos e, por conseguinte, a constituírem um todo ou unidades dentro do todo.Semelhança: A igualdade de forma e de cor desperta também a tendência de se construir unidades, isto é, de estabelecer agrupamentos de partes semelhantes.Encerramento: as linhas que circundam uma superfície são captadas como unidade.Boa continuidade: a boa continuidade, ou boa continuação, é a impressão visual de como as partes se sucedem através da organização perceptiva da forma de modo coerente, sem quebras ou interrupções na sua trajetória ou na sua fluidez visual. Movimento comum: agrupação de elementos que se movem do mesmo modo ou em oposição a outros. Pregnância: a pregnância é a Lei Básica da Percepção Visual da Gestalt e assim definida: “qualquer padrão de estímulo tende a ser visto de tal modo que a estrutura resultante é tão simples quanto o permitam as condições dadas”. “As forças de organização da forma tendem a se dirigir tanto quanto o permitam as condições dadas, no sentido da harmonia e do equilíbrio visual”. Uma boa pregnância pressupõe que a organização formal do objeto, no sentido do psicológico, tenderá a ser sempre a melhor possível do ponto de vista estrutural. Assim, para efeito desse sistema, pode-ser afirmar e estabelecer o seguinte critério de qualificação ou julgamento organizacional da forma: 1- quanto melhor for a organização visual da forma do objeto, em termos de facilidade de compreensão e rapidez de leitura ou interpretação, maior será o seu grau de pregnância. 2- Naturalmente, quanto pior ou mais confusa for a organização visual da forma do objeto menor será o seu grau de pregnância. ( GOMES FILHO, 2004, p.17)

53

Segundo Aguilar, “tratava-se, então, depois da crítica do verso e da formulação conceitual do

ideograma, de definir qual era esse tipo de relações, se já não eram mais as da versificação

tradicional, e nem sequer as da linha.” (AGUILAR, 2005, p.190). E, por isso, é necessário

falar novamente na Gestalt. De acordo com suas leis, a arte se funda no princípio da

pregnância da forma, ou seja: na formação de imagens, os fatores de equilíbrio, clareza e

harmonia visual constituem para o ser humano uma necessidade e, por isso, considerados

indispensáveis – seja numa obra de arte, num produto industrial, numa peça gráfica, num

edifício, numa escultura ou em qualquer outro tipo de manifestação visual. Sobre a

importância dessas leis, diz Aguilar (2005, p.191):

As leis da Gestalt são inatas, e não é necessário que alguém se proponha a cumpri-las para que sejam corroboradas ou descobertas. Qualquer poema é formado de “partes” (versos) que se combinam para formar uma estrutura maior, o “todo”, que é mais que a soma das partes que o compõem. A diferença está em que, nas neovanguardas, a utilização consciente dessas leis permitiu um tratamento mais elaborado ou consciente das relações espaciais. ...Ao não partir de formas dadas de antemão, a poesia concreta pôde encarar com menos amarras essas relações e torná-las visual e espacialmente presentes, como uma gravitação inerente à ocupação de um lugar. As categorias da Gestalt transpostas à poesia outorgam ao material uma espacialidade, uma função relacional e uma instantaneidade que acentua aquela exercida pelo verso (possibilitando, ainda, um jogo visual de que a poesia escrita tradicional não precisa, embora só raramente o destaque.

Se os poetas concretos encontravam na Gestalt e em Mallarmé fundamentos

para a sua teoria, mais ainda souberam retirar dos caligramas de Apollinaire o suporte para

fixar a sua busca pela espacialidade e a forma visual dos seus poemas. Na verdade, eles

procederam combinações e encontros entre eles, que pudessem explicar suas intenções.

Enquanto em Mallarmé as variações dos tamanhos e das posições das palavras geram um

sentido por proximidade e semelhança, em Apollinaire, nos caligramas, as palavras colocam-

se em uma ordem visual, formando, porém, a figura à qual o poema faz referência, adquirindo

uma forma geral, lembrando ou relógios ou uma pomba. Em Mallarmé isso se modifica, já

que não remete a um objeto no contexto geral, gerando o conceito de “constelação”, ou seja:

as variações de tamanhos e posições das palavras geram um sentido por proximidade e

semelhança. Enfim, as aplicações das leis da Gestalt pelos concretos se constituiram numa

operação de ordenamento do espaço da página:

54

com can

som tem

com tem tam tem são bem

tom sem bem som

Ilustração 4: Poema Tensão de Augusto de Campos Fonte: CAMPOS, 2005, p104

Em pontos-periferia-poesia concreta (Teoria da Poesia Concreta), Augusto de

Campos (2005, p.38) faz uma distinção apurando as correlações entre a estrutura proposta por

Mallarmé e Apollinaire. Embora admita que são processos diferentes, Campos sugere que o

encontro entre suas experiências possa resultar no ideograma poético:

Condena, assim, Apollinaire o ideograma poético à mera representação figurativa do tema. Se o poema é sobre chuva (“Il Pleut”), as palavras se dispõem em cinco linhas oblíquas. Composição em forma de coração, relógio, gravata, coroa, se sucedem em Calligrammes (...). No poema de Mallarmé, as miragens gráficas do naufrágio e da constelação se insinuam tênue e naturalmente, com a mesma naturalidade e descrição com que apenas dois traços podem configurar o ideograma chinês da palavra homem. Já em Apollinaire a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras, que tomam a forma do recipiente, mas não são alteradas por ele.

Trazemos aqui, a título de exemplificação, um poema de Ronaldo Azeredo, da fase

“gestáltica” dos concretos, para mostrar a quebra da linearidade do verso, empreitada maior

do grupo Noigrandes. Neste poema, o autor consegue alcançar um dos objetivos da poesia

concreta que é ligar texto e movimento.

55

V V V V V V V V V V

V V V V V V V V V E

V V V V V V V V E L

V V V V V V V E L O

V V V V V V E L O C

V V V V V E L O C I

V V V V E L O C I D

V V V E L O C I D A

V V E L O C I D A D

V E L O C I D A D E

Ilustração 5: Poema Velocidade, de Ronaldo Azeredo Fonte: AGUILAR, 2005, p.133 Poemas como Velocidade de Ronaldo Azeredo conferem a definição de fase

matemática à Poesia Concreta. No mesmo ritmo, pode ser nomeado terra de Décio Pignatari.

r a t e r r a t e r

r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a t e r r a r a t e r r a t e r r a r a t e r r a t e r r a r a t e r r a t e r r a r a t e r r a t e r r a r a t e r r a

Ilustração. 6: Poema Terra e Organismo, de Décio Pignatari. Fonte: AGUILAR, 2005, p.111 4.7 A TIPOGRAFIA E OS CONCRETOS

56

Não há como negligenciar o fato de que para estar em sintonia com o período

desenvolvimentista, a poesia concreta provocou extremos que por um lado foram bastante

desconsiderados pela crítica, mas por outro, confirmou as pretensões de eliminar o modo

artesanal pelo qual a poesia de forma mais ampla discursava, quando o poeta dependia apenas

de sua inspiração e de uma caneta ou lápis e papel. E nesse sentido, os poetas concretos

manifestavam a necessidade e a presença das novas tecnologias, “Já não há escritura em um

sentido manual e a própria forma do poema depende das soluções mecânico-tipográficas”, diz

Aguilar (2005, p.219). Os poemas da fase ortodoxa, aquela em que a ruptura com a poesia

simbolista era radical, mostram que a escolha dos tipos faz parte de seu processo de

composição. Esses procedimentos remontam ainda à questão da autonomia da arte onde as

vanguardas, preocupadas com a experimentação, encontravam na tipografia, um campo vasto.

“Se o poeta pretendia ser absolutamente moderno, não podia ignorar essa presença

tecnológica e sua importância na circulação ou recepção do poema”, diz Aguilar, propondo

quatro princípios de construção para abordar o fenômeno: os princípios de reprodutividade,

contemporaneidade, clarificação e materialidade: O princípio da reprodutibilidade que se funde mimeticamente nas forças tecnológicas da modernidade recebe uma restrição que depende das exigências próprias do objeto artístico e não do mundo técnico. Mas se no barroco essa restrição teve o objetivo de reencantar o mundo da letra escrita, nas vanguardas teve o efeito de modernizar as técnicas de composição e experimentar com as diferentes virtualidades que os avanços tecnológicos ofereciam.

Para exemplificar o segundo princípio, o da contemporaneidade, Aguilar

(2005, p.220) se refere à utilização da tipografia específica como uma operação já realizada

em outras épocas, lembrando que o sentido de modernidade também aí estava implícito,

principalmente quando da revisitação de escritos com outra tipologia expressava o espírito de

uma determinada fase histórica:

Algo similar faz Augusto de Campos em seu poema “Intradução”, que surge da tradução de alguns versos do poeta provençal Bernart de Ventadorn. Ao lado das duas assinaturas, inscrevem-se as duas datas em que os poemas foram compostos (o original, de 1174, e a tradução, de 1974), com diferentes tipografias que corrrespondem ao poeta traduzido e ao poeta tradutor (ilustr. 00). O primeiro é representado por letras góticas, enquanto que o segundo escreve sua assinatura com um tipo Westminster, tradicionalmente associado ao mundo da cibernética e da computação. A tipografia possui a capacidade de conotar, em sua forma, uma fase histórica do desenvolvimento das forças produtivas.

57

Ilustração 7: Poema Intradução,de Augusto de Campos. Fonte: AGUILAR, 2005, p.221

Para adquirir o caráter clarificador, a forma tipográfica segundo esse autor,

alcança um valor programático, ou seja: um tipo leva consigo não só a sua forma artística,

mas também a idéia que o constituiu. Se a tipografia Bauhaus expressava sua filosofia, sua

funcionalidade, sua clareza, esses são atributos “emprestados” a outros campos:

Em A História de Dois Quadrados, de El Lissitzky, de 1922, uma história para crianças, a tipografia se converte em protagonista, em portadora da mensagem estética. Nessa obra – uma espécie de quadrinho abstrato – a escolha tipográfica remete a carcaterísticas da prática artística de vanguarda (síntese, despojo de ornamentos, materialidade da letra). A tipografia entra em uma relação de pressuposição recíproca com os aspectos programáticos de uma obra. Nos poemas concretos, a tipografia futura bold foi convertida no tipo modernista por excelência, sem ornamentos e estritamente funcional. Trata-se de uma letra sem serifa e sem adornos, que privilegia sua economia e sua transparência em relação a outras tipografias. Dispõe de um mínimo para ser entendida, dispõe do básico para funcionar. Assim, a tipografia do poema é parte significativa, existência ativa e não mundo inerte. (AGUILAR, 2005, p.220)

Importante nesse momento em que se configura a importância da tipografia no

processo de elaboração dos poemas é recuperar a intenção de demonstrar - ainda que cedo -

no andamento desse trabalho, a sua significação na propaganda. Mais adiante, pretendemos

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mostrar como os tipos interagem na publicidade assim como o fazem no contexto da poesia.

Aqui está em questão a utilização dos mesmos procedimentos, e que recuperam o quarto

princípio utilizado por Aguilar (2005, p.222) para justificar a persistência da tipografia: o da

materialidade:

Johanna Drucker, por exemplo, em uma das mais sistemáticas tentativas de compreensão dos usos tipográficos em poesia, aponta para a necessidade de construir um “modelo teórico da materialidade”. São os “valores contingentes da materialidade” que produzem significação e devem ser considerados nos experimentos tipográficos. Nos concretos, o processo de tomada de consciência dos materiais (fato que também ocorreu nas artes plásticas e que foi interpretado, nos anos 1950, como uma expressão pura da modernidade) fez com que a tipografia adquirisse uma relativa autonomia. O significante, entendido como tipograma, não é um invólucro de outros significados – ou de seu próprio significado -, mas sim uma tensão com certa margem de especificidade no campo da visibilidade e da legibilidade.

No poema Lixo de Augusto de Campos encontramos a estrutura gráfica

indicando uma mensagem formada por várias outras mensagens como ocorre rotineiramente

na publicidade, ainda obedecendo a organização segundo elementos oriundos da Gestalt e do

uso aglutinado de tipografias diversas.

Ilustração 8: Poema Lixo, de Augusto de Campos Fonte: AGUILAR, 2005, p.226

4.8 POESIA CONCRETA: ENGAJADA, MAS NEM TANTO

59

A “poesia de propaganda”, como bem podemos denominar a poesia russa

(engajada), desperta interesse entre os concretos por volta de 1956. Maiakóvski e seu ativismo

na poesia são utilizados como lastro para aquele momento da Poesia Concreta. No prefácio da

primeira edição de Poesia Russa Moderna, Nova Antologia, Boris Schnaiderman (1985, p.15)

um dos seus tradutores, conjuntamente com Haroldo de Campos e Augusto de Campos,

considera que houve, além da “irrupção do convencionalmente não-poético, como matéria de

poesia - que se manifestava já em Khlébnikov - uma substituição do transcendental, do

místico e do harmonioso dos simbolistas na obra de Maiakóvski:

Em lugar da eufonia, uma orquestração que leva em conta igualmente as dissonâncias. A imagem acompanha passo a passo a radicalização da linguagem. O poeta passa a utilizar largamente a hipérbole. O descomunal e inusitado substitui o cotidiano, o equilibrado, o regular. Mas as imagens hiperbólicas não eliminam a concisão extrema. Maiakovski é, ao mesmo tempo hiperbólico e anti-sentimental, exuberante e contido, entusiasta e satírico.

Os poetas concretos lembram mais de Maiakovski pela configuração de sua

poesia, independente da questão política que acabou referenciando-o como poeta engajado em

um segundo momento. Seus poemas, a partir de 1923, dispõem-se sobre o papel numa forma

funcional, com a indicação das pausas, e ao mesmo tempo utilizam o branco e preto da página

como um objeto visual. Maiakóvski recorre poucas vezes à métrica tradicional, preferindo

elaborar o seu próprio ritmo, “frequentemente áspero e selvagem, e rima entre si, palavras

inteiras, desenvolvendo assim uma das grandes inovações formais de Khlébnikov” (IDEM,

1985, p.15):

Após a Revolução de Outubro, a atividade poética de Maiakovski adquire caráter diverso, embora sua obra mantenha unidade perfeita do início ao fim. Ele se torna o poeta dos grandes auditórios, para os quais lê seus versos. Dedica-se durante algum tempo à arte do cartaz, isto é, escreve quadras e dísticos para cartazes desenhados por ele mesmo e por outros artistas. Freqüentemente, faz versos para jornais sobre assuntos do dia, ou até anúncios de produtos. (IBIDEM, 1985, p.15)

A idéia de uma poesia que fosse o reflexo da vivência do momento e até

mesmo baseada na notícia do dia encantou os poetas concretos. Nem tanto pelo ideário

político, mas pela forma. No lugar do “eterno”, do “inabalável”, a poesia russa de Maiakóvski

insiste nos poemas de consumo imediato, o que interessou aos concretos na proposta de

aproximação com a publicidade moderna e o com o jornalismo. O poema a seguir, “A plenos

pulmões”, nos mostra a “despreocupação” do poeta com a formalidade e sua intenção de

perseguir um ritmo próprio, desvinculado da métrica romântica e estruturado na

espacialidade.

60

Primeira Introdução ao Poema Caros Camaradas futuros ! Revolvendo A merda fóssil de agora, perscrutando estes dias escuros, talvez

perguntareis por mim. Ora, começará vosso homem de ciência, afogando os porquês num banho de sabença, conta-se que outrora um férvido cantor a água sem fervura combateu com fervor. Professor, Jogue fora as lentes-bicicleta! A mim cabe falar de mim de minha era. Eu – incinerador, Eu – sanitarista, a revolução me convoca e me alista. Troco pelo “front” a horticultura airosa da poesia – fêmea e caprichosa. Ela ajardina o jardim virgem vargem sombra alfombra. “É assim o jardim de jasmim, o jardim de jasmim do alfenim”. Este verte versos feito regador, Aquele os baba, boca em babador, - bonifrates encapelados,

descabelados vates – entendê-los, ao diabo!, quem há-de... Quarentena é inútil contra eles – Mandolinam por detrás das paredes: “Ta-ran-tin, ta-ran-tin, ta-ran-ten-n-n… Triste honra,

se de tais rosas

61

minha estátua se erigisse: na praça escarra a tuberculose; putas e rufiões numa ronda de sífilis. Também a mim

a propaganda cansa,

é tão fácil alinhavar romanças, -

Mas eu me dominava entretanto e pisava a garganta do meu canto. Escutai, Camaradas futuros, o agitador o cáustico caudilho, o extintor dos melífluos enxurros: por cima dos opúsculos líricos, Chego a vós, À Comuna distante, não como Iessiênin, guitarriarcaico. Mas através dos séculos em arco sobre os poetas e sobre os governantes. Meu verso chegará, não como a seta lírico-amável, que persegue a caça. nem como a luz das estrelas decrépita. Meu verso

com labor rompe a mole dos na os,

e assoma a olho nu, palpável, bruto, como a nossos dias chega o aqueduto

levantado por escravos romanos. No túmulo dos livros, versos como ossos, se estas estrofes de aço acaso descobrides, vos as respeitareis, como quem vê destroços de um arsenal antigo, mas terrível. Ao ouvido não diz bandícias minha voz;

62

lóbulos de donzelas de cachos e bandos não faço enrubescer com lascivos rondós Desdobro minhas páginas - tropas em parada, e asso em revista o “front” das palavras. Estrofes estacam chumbo-severas, pontas para o triunfo ou para a morte. Poemas-canhões, rgida coorte, apontando as maiúsculas abertas. Ei-la, a cavalaria do sarcasmo, minha arma favorita, alerta para a luta. Rimas em riste, Sofreando o entusiasmo, eriça suas lanças agudas. E todo Esse exército aguerrido, vinte anos de combates, não batido, eu vos dôo, proletários do planeta, cada folha

até a ultima letra. O inimigo

da colossal classe obreira,

é também meu inimigo

figadal. Anos

de servidão e de miséria comandavam nossa bandeira vermelha. Nós abríamos Marx volume após volume, janelas de nossa casa abertas amplamente, mas ainda sem ler

saberíamos o rumo! onde combater,

de que lado, em que frente.

Dialética, não aprendemos com Hegel. Invadiu-nos os versos

ao fragor das batalhas, quando, sob

o nosso projétil, debandava o burguês

que antes nos debandara. Que essa viúva desolada,

63

- glória – se arraste após os gênios,

merencória. Morre, meu verso,

como um soldado anônimo

na lufada do assalto. Cuspo

sobre o bronze pesadíssimo, cuspo sobre o mármore, viscoso. Partilhemos a glória, - entre nós todos, - o comum monumento: o socialismo, forjado na refrega e no fogo. Vindouros, Varejai vossos léxicos: do Letes brotam letras como lixo – “tuberculose”,

“bloqueio”, “meretrício”.

Por vós, eração de saudáves, -

um poeta com a língua dos cartazes,

lambeu os escarros da tísis. A cauda dos anos

faz-me agora um monstro,

fossilcoleante. Camarada vida, vamos, para diante, galopemos pelo qüinqüênio afora. Os versos para mim não deram rublos, nem mobílias

de madeiras caras. Uma camisa lavada e clara, e basta, -

para mim é tudo. Ao

Comitê Central do futuro ofuscante, sobre a malta

dos vates velhacos e falsários, apresento

em lugar do registro partidário

todos os cem tomos dos meus livros militantes.

64

Ilustração 9: Poema A plenos pulmões, de dezembro 1929/janeiro 1930. Traduzido por Haroldo de Campos. Fonte: CAMPOS, 1985, p.210

A poesia russa moderna aguçou nos poetas concretos o sentido nacionalista, e

também a própria conjuntura nacional se mostrou campo rico para o desenvolvimento de

novas expressões artísticas, embora o momento histórico desencadeasse um paradoxo entre os

escritores, o de se manter à frente do processo de criação, um ritmo mais lento e ao mesmo

tempo dar conta das exigências sócio-políticas, demanda mais veloz e imperativa.

A intenção didática do concretismo passa a ser mais evidente a partir do início da década de 60, quando a preocupação da vanguarda com o engajamento político passa a ser explícita e de certa forma “exigida” pelo compromisso com a militância no momento. (HOLLANDA, 1980, p.40)

Heloisa Buarque de Hollanda no livro Impressões de viagem, CPC, vanguarda e

desbunde: 1960/70 faz numa crítica ao “salto participante” que a poesia concreta pretendia

dar:

O poema concreto segue exato, preciso, industrialmente projetado. Um poema reluzente, limpo, objeto industrial de padrão internacional: um produto nacional para exportação. E a idéia de que a poesia brasileira estaria capacitada para ingressar, segundo Haroldo de Campos, “numa fase de exportação é reveladora. Ela se trai quando deixa patente a inadequação ao padrão internacional de seus objetos industriais à realidade da demanda cultural do país. Ou seja: o padrão internacional é guiado pela realidade das economias capitalistas centrais, desenvolvidas, modernas. E aqui o mais grave equívoco do concretismo: a crença no subdesenvolvimento como etapa (que estaria sendo superada) para o desenvolvimento. O cálculo político-econômico da vanguarda concretista não percebe o caráter estrutural do subdesenvolvimento (...). Caía então a vanguarda na armadilha desenvolvimentista: a crença de que o país estaria ultrapassando o subdesenvolvimento para ingressar numa nova era do país desenvolvido. (IDEM, p.41)

Em que pese a tentativa do “salto participante” não tenha provocado resultados

revolucionários na perspectiva do momento histórico nacional, marcado o concretismo pela

utopia desenvolvimentista, o movimento trouxe para o ambiente cultural brasileiro uma rica

contribuição, fazendo chegar até aqui, informações atualizantes, colaborando com o debate e

incluindo autores da importância de Ezra Pound, Cummings, Joyce, Mallarmé e todas as

referências em que a Poesia Concreta encontrou base. O reconhecimento da importância da

discussão que o concretismo desencadeou nem sempre aconteceu de forma a valorizar o

65

movimento. Hollanda reconhece que a crítica considerou as contribuições da vanguarda

“equivocada, alienante, colonizadora, estéril, etc.”, mas preserva sua informação:

É importante lembrar que a valorização dos meios de comunicação de massa, a necessidade de ser moderno, a utilização de elementos nacionais e estrangeiros, que marcam o tropicalismo, já consciente do processo de dependência cultural, retomam o debate a partir do equívoco mesmo do concretismo, mas não desprezam sua informação. (IBIDEM, 1980, p.43)

4.9 DA POESIA MATEMÁTICA AO NEOCONCRETISMO

A época mais dura, disciplinada e fechada do concretismo, o chamado período

ortodoxo, onde os poemas são programados com base em fórmulas ou mecanismos prévios

recebe críticas freqüentes. Recusando esta postura matemática da poesia, os poetas Oliveira

Bastos, Ferreira Gullar e Reinaldo Jardim, todos “cariocas”, rompem com o Grupo

Noigrandes e formam o Neoconcretismo. No manifesto “Ruptura”, manifestam a rejeição ao

cientificismo:

A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-figurativa “geométrica” (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. Trabalhando no campo da pintura, escultura, gravura e literatura, os artistas que participam dessa I Exposição Neoconcreta encontram-se, por força de suas experiências, na contingência de rever as posições teóricas adotadas até aqui em face da arte concreta, uma vez que nenhuma delas “compreende” satisfatoriamente as possibilidades expressivas abertas por estas experiências (...) o neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão, incorporando as novas dimensões “verbais” criadas pela arte não-figurativa construtiva. (...) Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como um quase-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em parte pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanicismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena; supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M.Ponty) que emerge nela pela primeira vez (...) (GULLAR, 2007, http://www.artbr.com.br/casa/neoconcreto/indez.html, acesso em 16/04/2007).

Não se trata aqui de discorrermos sobre o fato histórico da ruptura entre os dois

grupos, mas de tentarmos visualizar por onde a poesia concreta seguiria, já que a dissidência

levaria a desdobramentos nas propostas e em parte, a um outro tipo de linguagem, que é o que

nos interessa para esse trabalho. O fim do concretismo coincide com o final dos anos 60 e

representa o fim de uma experiência inovadora e vanguardista. Seus integrantes passaram

66

então a recuperar e reviver seus programas sem, no entanto, anunciar uma nova fase. O

ambiente repressivo no qual o País se encontrava não propiciava a tentativa de posições mais

radicalizadoras, próprias das vanguardas. Foram as novas condições que levaram os poetas

concretos a voltar ao verso, e para tanto, evitando abandonar suas propostas fundamentais,

utilizaram o recurso das traduções que reuniam autores de linhas distintas, possivelmente

escondendo nelas, o momento de novo retorno ao verso. Assim, como programa coletivo de

vanguarda, a poesia concreta acaba esmorecendo.

A poesia concreta não chegou a constituir um sistema de escrita alternativo. O

programa de vanguarda não tinha mais seu principal suporte teórico, de “evolução”, portanto,

restava aos poetas concretos sustentarem uma proposta por assim dizer, mais distendida, e

para isso, utilizaram argumentos como a provisoriedade para não extinguirem por completo

suas propostas. A poesia concreta, pelo menos no que dizia respeito aos postulados mais

radicais, chegava ao fim. Nesse momento, era necessário encontrar e escolher outros

caminhos para justificá-la como parte integrante da história. Nem que, para isso, admitissem a

volta ao verso como “uma possibilidade imanente e não imposta pela tradição”, como observa

Aguilar (p. 243). Diz Haroldo de Campos (1992, p.264), no livro Metalinguagem e outras

metas, tentando recuperar o movimento e, ao mesmo tempo, ampliar sua importância:

Aprofundando às últimas conseqüências a contradição entre a natureza não-discursiva da poesia e a forma discursiva do verso (...) a poesia concreta criou um “caso” na literatura brasileira (e não só nesta)... Para mim, ao invés de enclausurar, a poesia concreta abriu. Permitiu-me passar de uma reflexão regional (a etapa limite do desenvolvimento possível de uma poética) a uma reflexão mais geral: pensar o concreto na poesia. Para mim, hoje, toda poesia digna desse nome é concreta. De Homero a Dante. De Goethe a Fernando Pessoa. Pois o poeta é um configurador da materialidade da linguagem (lembre-se o teorema de Jakobson). E só enquanto linguagem materialmente configurada, enquanto concreção de signos. “Forma significante”, a poesia é poesia. Nada melhor que a operação tradutora para tornar evidente, como que tangível essa afirmação.

4.9.1 Primeiro, o Neoconcretismo, depois o espaço do poema-práxis e do poema-processo

Além do neo-concretismo, dois outros movimentos de vanguarda participam do

debate que marca o período pós anos 1960, o poema práxis e o poema-processo. Os três

marcam sua inclinação revolucionária. Mas mantêm diferenças quanto aos caminhos que a

67

poesia deve tomar para alcançar sua eficácia. O engajamento é nítido e se estabelece no

poema-práxis já no seu primeiro documento teórico e crítico. Ele prega o fazer histórico que

significa a leitura de uma mesma linguagem entre intelectuais e povo. “Para o escritor-práxis

não há tema”, conclui Hollanda (1980, p. 264), “o poema deve ser trabalhado a partir de áreas,

a partir de setores da realidade, fatos emocionais ou sociais”. (HOLLANDA, 1980, p.44):

Obedecendo a esse processamento, o poema-práxis pretende ser um produto que produz adequado a uma arte vista como “objeto e argumento de uso”, um “instrumento que constrói”, “útil dentro e fora da literatura”. Como projeto de totalização... ele recusa a história da literatura, embora admita que dela faça parte por “uma fatalidade cronológica”. A vanguarda práxis espera que no futuro, com as transformações revolucionárias da sociedade, a literatura-práxis instale-se definitivamente, abolindo a história da literatura escrita e de autores.

Nessa nova perspectiva, o poema-práxis rejeita no concretismo, o que se refere a

sua intervenção que privilegia a área de consumo: “onde o poema – ainda que, procurando

fazê-lo criticamente, acaba reproduzindo-se como objeto industrial ou ‘propaganda’ (IDEM,

p.45):

O poema práxis opta, então – e o que faz enquanto opção política -, por abandonar o trabalho na área de consumo, que considera apenas um efeito, em favor de “áreas de levantamento” ligadas ao modo e às relações de produção, cujas contradições, essas sim, deveriam ser superadas.. É dessa forma que os poemas passam a atuar na área ligada à situação do homem do campo (e, num segundo momento, na área de produção industrial...) (IBIDEM)

No movimento práxis, o poema é como se fosse sua área, que transparece

como tal, sem a intervenção da subjetividade do poeta. Ainda que possam ser fortes as

distinções entre o concretismo e o práxis pode-se notar uma semelhança no sentido de ambos

serem, até certo ponto, didáticos, com “uma intenção de denúncia própria da atitude

engajada” (IBIDEM, p.47). De qualquer forma, o sentimento de impotência relativo à força

da palavra acaba prevalecendo na vanguarda em determinado momento de sua produção.

Nesse contexto, o poeta Ferreira Gullar, o elemento articulador do movimento neoconcreto e

um dos principais nomes da poesia nacional, deixa transparecer na sua obra, a partir do final

dos anos 50, essa crise do discurso, um impasse entre o conceito desenvolvimentista do

concretismo e o engajamento político. E em sua trajetória, Gullar escolhe, como lembra

Hollanda, “a obra e a vida”, mantendo os dois sentidos na sua produção. A reconciliação com

a poesia discursiva, segundo Hollanda, faz-se com a percepção de que a recusa da linguagem

68

conceitual seria a rejeição mesma de pensar o mundo. E mais ainda, no sentido de falência da

concepção de poesia que coloca o poeta na situação anteriormente conceituada. Escolhendo os

dois, Gullar escreve João Boa Morte (1962) e Quem Matou Aparecida?(1962) - “onde o

sentido da vida é identificado diretamente com a participação engajada e com a militância

política” (IBIDEM, p.49). Duas obras de Gullar seguem preocupadas e fazem o

aprofundamento da relação vida e obra na poesia mais subjetiva: Dentro da Noite Veloz

(1975) e Poema Sujo (1976), um poema “extraordinariamente ‘sujo’ pela vida e pela

subjetividade que, à sua maneira, integram alguns traços das propostas mais recentes da nova

poesia dos 70” ( HOLLANDA,1980, p.49).

Já Aguilar analisa a questão da seguinte forma: o deslocamento de Gullar em

relação aos concretos e também até frente ao próprio neoconcretismo consistia em mais do

que a “crença de que a palavra poética desempenharia um papel crucial na formação dessa

nova sociedade, cujo horizonte teleológico era a revolução”. (AGUILAR, 2005, p.88). Gullar,

então, passa a se deslocar criativamente, buscando na literatura de cordel, uma nova

possibilidade de cumprir o papel de compromisso numa poética que se regia por outros

princípios.

Embora o nosso foco sejam as relações do concretismo com a publicidade, não

podemos nos furtar de referenciar o poema-processo porque tal corrente ainda permaneceu

ligada de certa forma aos fundamentos construtivistas dos concretos, mas em sua trajetória

procurou, através da radicalização das sugestões visuais e não discursivas, valorizar a leitura e

a construção visual, atos praticados pela chamada “vanguarda processo”. O seu texto-

manifesto Processo – leitura do projeto – afirma que “só o consumo é a lógica”, “só o

reprodutível atende no momento exato às necessidades da comunicação e informação das

massas.” O poema-processo pretende ser um poema sem poesia: “não há poesia-processo”,

pois há apenas produto. No seu próprio manifesto, há uma intenção bem clara de que era

preciso espantar pela radicalidade.

Apesar de sua menor repercussão em relação a outras manifestações de vanguarda,

como o próprio concretismo, a radicalização da vanguarda-processo atuou com mais impacto

em outras áreas da arte, como aponta Hollanda, numa tática de happening caracterizada pelo

sentido de guerrilha revolucionária, que mobilizavam o público e o atraía a determinados

locais pela radicalização e oposição ao “gabinetismo” das vanguardas até ali constituídas. De

tudo isso, é preciso retirar conclusões não definitivas, mas reflexivas, em função de que,

69

embora articuladas politicamente, as vanguardas vão perdendo força e prestígio. Hollanda vê

esse enfraquecimento a partir de que a idéia desenvolvimentista, sempre presente na Poesia

Concreta e também nos movimentos subseqüentes, já começava a ser questionada, a partir do

entendimento do seu papel e de sua integração ao projeto político-econômico pós-64:

Assim sendo, a descrença na significação e na linguagem desenvolvimentista coloca em debate o problema das relações de dependência, acirrado pelo projeto econômico vigente. E é no aprofundamento dessa questão que se empenha a crítica realizada pelo tropicalismo e seus desdobramentos. (HOLLANDA, 1980, p.52)

4.9.2 O residual do concretismo também desemboca no tropicalismo

Um pouco de história se faz necessário para que possamos penetrar na década

de 70 e esboçar uma reflexão a respeito dos movimentos que possam nos servir para

compreender como o concretismo se desdobrou de modo a confluir com o tropicalismo e

produzir resultados na comunicação de massa do Brasil desse período. Na virada da década de

60 para 70, um grupo de jovens recebe informações da juventude de outros países, dos

movimentos culturais e políticos dos Estados Unidos, da Europa, uma nova música, o modo

hippie de ser e, principalmente, desconfiado do discurso nacionalista e militante, acaba por

desenvolver um papel importante no cenário nacional, a partir da música popular. Nesse

processo, estão presentes traços marcantes do movimento, como a crítica à intelligentzia de

esquerda, “e o namoro com os canais de massa”, como relata Hollanda (1980, p.56):

Cabelos longos, roupas coloridas, atitudes inesperadas, a crítica política dos jovens baianos passa a ter uma dimensão de recusa dos padrões de bom comportamento, seja ele cênico ou existencial. (...) Recusando o discurso populista, desconfiando dos projetos de tomada do poder, valorizando a ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a técnica, o fragmento, o Tropicalismo é a expressão de uma crise. Ao contrário do discurso das esquerdas, para ele “não há proposta, nem promessa, nem proveta, nem procela”. A preocupação com a atualização de uma linguagem “de nosso tempo”, já presente no concretismo, passa, a partir do tropicalismo, a ser aprofundada e relacionada a uma opção existencial (...)

Longe de uma avaliação apenas histórica, utilizamos o Tropicalismo para

compor um quadro no que se refere às relações com um novo modo de participação na

comunicação de massa e no que ele tem de eixo constitutivo com a Poesia Concreta e ao

mesmo tempo com a mídia. Um dos pontos importantes a serem considerados é a

familiaridade de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil com o repertório do alto

modernismo que os colocou em condições de estabelecer passagens e vínculos entre as

70

culturas alta, popular e de massa, o que leva Aguilar (2005, p.125) a concluir que a explosão

dos meios de comunicação de massa, como a denominou McLuhan, fez com que Caetano

pudesse mover-se entre esses repertórios diversos, agora despojados de sua marca de origem:

A aparição pública do grupo tropicalista foi breve, mas sua intensidade fez com que as vanguardas da década anterior se vissem revitalizadas e passassem a fazer parte, com diferentes modulações, do repertório dos jovens que se incorporavam à vida cultural.

O encontro entre o concretismo que havia “esmorecido”, como dissemos

anteriormente, e o tropicalismo ocorreu através de Augusto de Campos, que manifestou seu

apoio em artigos no Jornal do Brasil e também em algumas ações conjuntas entre os artistas e

os poetas em intervenções, palestras e entrevistas. Nesse contexto, podemos imaginar que,

embora os defensores do tropicalismo não tenham especificado os conteúdos programáticos

comuns ao concretismo e suas razões, essa defesa estava fundamentada na continuidade do

seu trabalho. Ou seja: os concretos ressaltam essa continuidade e atenuam as possíveis

diferenças. Hollanda lembra que o debate entre tropicalistas e concretos, em certa medida, foi

em parte interpretado como “oportunismo”, sob a alegação de que a vanguarda, há muito

“sem saída”, estaria se aproveitando do momento. Mas em defesa dos poetas, está o fato de

que o contato foi proveitoso, no sentido de troca de informações e de um “apoio pedagógico”

por parte dos concretistas, “que assim forneceram elementos teóricos, permitindo aos

compositores e poetas pensar sua produção e situá-la frente a outras manifestações e ao

próprio processo cultural brasileiro” (HOLLANDA, 1980, p.67), opinião corroborada por

Aguilar (2005, p.136-137):

Os critérios modernistas que Caetano utiliza para organizar o arquivo são homólogos aos dos poetas paulistas. O músico baiano fala da sua “preocupação pelo novo”, da necessidade de retomar a linha evolutiva, de que esta prática tenha “organicidade”, de que a revisão deve ser “completa, integral” (...) Os músicos do tropicalismo encontraram nas teorizações dos poetas concretos um esclarecimento de seus próprios processos de composição.

Hollanda (1980, p.67) nos fala da cumplicidade entre concretismo-tropicalismo. O

contato entre os concretistas e compositores serviu como uma experiência proveitosa de

formação, exercício ou até mesmo de “adestramento”, onde os músicos puderam utilizar a

palavra como ferramenta para oposição. Na letra de Geléia Geral de Torquato Neto, podemos

observar a mescla entre as críticas ao sistema e a estrutura concretista de um poema.

71

e quem não dança não fala

assiste a tudo e se cala

não vê no meio da sala

as relíquias do Brasil:

doce mulata malvada

um elepê de Sinatra

maracujá mês de abril

santo barroco baiano

superpoder de paisano

formiplac e céu de anil

Ilustração 10: Letra de Geléia Geral, de Torquato Neto Fonte: AGUILAR, 2005, p. 146

A comunicação de massa, então, se abriu para a inclusão da poesia concreta e

vice-versa. No momento em que o tropicalismo consolidou o concretismo como parte do seu

repertório, um outro efeito se efetivou: o da “desintegração” do movimento concreto em

termos de organização. Isso em função de que o Tropicalismo não estava interessado num

programa e sim numa crítica paródica às culturas de elite e populares, sinal de que a cultura

de massa desestabilizava uma e outra. Aguilar utiliza a música “Batmacumba” de Caetano e

Gil para ilustrar essa tensão:

batmacumbaieiê batmacumbaobá batmacumbaieiê batmacumbao batmacumbaieiê batmacumba batmacumbaieiê batmacum batmacumbaieiê batman batmacumbaieiê bat batmacumbaieiê ba batmacumbaieiê batmacumbaie batmacumba batmacum batman bat

72

ba bat batman batmacum batmacumba batmacumbaie batmacumbaieiê batmacumbaieiê ba batmacumbaieiê bat batmacumbaieiê batman batmacumbaieiê batmacum batmacumbaieiê batmacumba batmacumbaieiê batmacumbao batmacumbaieiê batmacumbaobá Ilustração 11: Letra de Batmacumba, de Gilberto Gil Fonte: AGUILAR, 2005, p.152 Diz Aguilar que, se não fosse pela musicalização percussiva popular e pelo

repertório do mass media e religioso a que se refere “Batmacumba”, poderia ser um poema

concreto: Mas não o é: a letra da canção recupera a espacialidade concreta como mais uma

relíquia, em um clima festivo que a desvincula de toda a eficácia programática. (AGUILAR, 2005, p.153).

Outro exemplo que podemos incluir nesse aspecto é Superbacana, de Caetano

Veloso, onde a poesia musicada recebe ares de anúncio publicitário, e também onde o

argumento de superação, com o uso de superlativos e uma “larga adjetivação”, como diz

Carrascoza, consegue produzir o efeito da superioridade:

Toda essa gente se engana

Ou então finge que não vê que eu nasci

Pra ser o superbacana

Eu nasci para ser o superbacana

Superbacana Superbacana

Superbacana Super-Homem

Superflic, Supervinc

Superhist, Superbacana

Estilhaços sobre Copacabana

O mundo em Copacabana

Tudo em Copacabana Copacabana

73

O mundo explode longe, muito longe

O sol responde

O tempo esconde

O vento espalha

E as migalhas caem todas sobre

Copacabana me engana

Esconde o superamendoim

O espinafre, o biotônico

O comando do avião supersônico

Do parque eletrônico

Do poder atômico

Do avanço econômico

A moeda número 1 do Tio Patinhas é minha

Um batalhão de cowboys

Barra a entrada da legião dos super-heróis

E eu superbacana

Vou sonhando até explodir colorido

No sol, nos cinco sentidos

Nada no bolso ou nas mãos

Um instante, maestro

Super-homem Supervinc

Superflit, Superhist

Superviva, Supershell

Superquentão

Ilustração12: Letra de Superbacana, de Caetano Veloso Fonte: (CARRASCOZA, 2004, p.67)

4.9.3 Nos popcretos, a ortodoxia concreta desaparece e entram as imagens e fotos, ainda

mais radicais

74

Os Popcretos são poemas que combinam imagens e ícones que o poeta retira

aleatoriamente de diversas fontes, sejam jornais ou revistas. São collages verbais que os

poetas concretos consideraram “despejos lingüísticos”, um amontoado residual de frases

feitas, como disse Haroldo de Campos (1977, p.16), “locuções dessoradas, ecos memorizados

de anúncios, citações, convenções sentimentais, expressões de etiqueta, lugares comuns

coloquiais, etc...” Mas o que Haroldo de Campos define mesmo é a utilização dos “detritos”

nos popcretos e que, na visão de Aguilar, significa o abandono de outro critério da Poesia

Concreta, a evolução:

Até essa experiência os poetas concretos haviam falado de ideograma, montagem, design e espacialidade, mas esses procedimentos mantiveram-se no terreno do signo verbal. Definitivamente, todos os poemas concretos haviam utilizado só palavras ou letras, sem abandonar o domínio do alfabeto. De fato, os poetas do paideuma definiam-se, sobretudo, por sua atitude frente à linguagem verbal ou, se preferirmos, à dimensão verbivocovisual das palavras (ou seja, a visualidade estava sempre relacionada com o signo lingüístico). Ao incluir as imagens e fotos, a desintegração do vocábulo é suspensa pela inclusão de elementos alheios a ele. O mundo sobre o qual se planeja, e sobre o qual o conceito de evolução tinha sua linha traçada, desestabiliza-se de dentro para fora, com a invenção dos popcretos. (AGUILAR, 2005, p.109).

Augusto de Campos em 1953 falava da “necessidade de

representação gráfica em cores” para a sua obra. Era época de Poetamenos, uma antecipação

ao que se viu nas décadas posteriores com o trabalho de vários artistas, a partir de Waldemar

Cordeiro. Augusto chegou a utilizar “letras-filme” e elementos luminosos em sua obra.

Waldemar Cordeiro, então, definiu seus popcretos como arte concreta semântica, dizendo que

o interesse era passar da esfera da produção para a esfera do consumo, do ícone para a

comunicação, do “estímulo puro para o estímulo associado”. Entre os Popcretos dos anos

1960 e os Expoemas dos 1980, o percurso tipográfico de Augusto de Campos daria um salto

que incluiria dois trabalhos em parceria com o artista gráfico e poeta Júlio Plaza (com quem,

mais tarde, o poeta continuaria a trabalhar, na digitalização de algumas de suas obras): os

poemas-objetos “Poemóbiles” (CAMPOS; PLAZA:1985) e os poemas e poemas-objetos da

“Caixa-Preta” (CAMPOS; PLAZA : 1975) – este último incluindo um compacto simples em

vinil com as gravações de “Pulsar” e “dias dias dias”, por Caetano Veloso. Nos dois

trabalhos, utilizou-se o processo de offset no qual, antes de serem transferidas para um

cilindro revestido de borracha e chegar à folha de papel, as imagens-letras são gravadas em

uma chapa de metal – via sistema fotomecânico.

Mas voltemos ainda um pouco mais para analisar a evolução da poesia matemática

para a do trabalho de sobreposição, aglomeração e intermediação dos mass media. O poema

75

“Psiu”, de Augusto, composto em 1966, por exemplo, envolve um universo quase infinito de

palavras de jornais, indicando – mesmo através de um caos visual – não mais uma tentativa de

geometrizar o verso, como na fase ortodoxa do concretismo, mas sim provocar uma leitura do

todo e, ao mesmo tempo, de conotações políticas, já que a repressão política no Brasil a partir

do golpe de 64 exigia uma nova condição. Neste poema, a funcionalidade das partes está, por

assim dizer, “relaxada”, diz Aguilar (2005, p.110), o que significa que o concretismo passa de

projeto programático a traço diferenciador: “pop – lê-se no catálogo – em parâmetros

concretos: construção, intencionalidade crítica”.

Ilustração 13: Poema Psiu, de Augusto de Campos, da série Popcretos. Fonte: AGUILAR, 2005, p.111

76

5 A IMPREGNAÇÃO DA PUBLICIDADE NA POESIA DE VANGUARDA E A

IMPREGNAÇÃO DA POESIA DE VANGUARDA NA PUBLICIDADE ATÉ OS DIAS

DE HOJE

Nosso objetivo de realizar uma investida pelos caminhos da poesia concreta, seu

programa, suas relações, deslocamentos e aporias, se justificam pela tentativa de encontrar

respostas e suportes para o que pretendemos demonstrar. De todas as correntes discursivas

que estudamos, pudemos constatar que a mais próxima dos mass media. Foi a dos poetas

paulistas de Noigrandes, nos anos 50 até 60. Encontramos subsídios suficientes para

visualizar esta relação e concentramos esforços na busca de materiais que pudessem

exemplificá-las. Mais do que procurar estabelecer diferenças e colocar as vertentes

vanguardistas em confronto ou mesmo em comparativos superficiais, como Poesia Concreta

X Neoconcretismo X Poema-praxis X Poema-Processo, vamos tentar identificar os pontos

onde a publicidade e a poesia concreta se encontraram e se encontram. Se de um lado, o

manifesto do Neoconcretismo dizia: “o não-objeto é a procura de um lugar para a palavra”, de

outro a Poesia Concreta utilizava o conceito de espaço verbicovisual para colocar esta

palavra.

Não se pode atribuir ao acaso o comentário de Carrascoza sobre a participação de

poetas e escritores envolvidos com a publicidade nas últimas décadas. Como já vimos no

tópico referente à fundamentação teórica, esse fato, por demais conhecido, não se esgota na

constatação de que a poesia sempre andou próxima da publicidade. O que importa é poder

perceber que o caminho percorrido foi de mão dupla. Carrascoza (2004) toma como exemplo,

77

o trabalho mais significativo desse período, de Décio Pignatari: Coca-Cola. Nele há uma

nítida posição de crítica e “protesto”, onde o autor ironiza a sociedade de consumo. Ao

mesmo tempo, podemos visualizar, na construção do poema, os procedimentos concretistas,

constando-se, a proximidade dos dois discursos, o poético e o publicitário.

beba coca cola

babe cola

beba coca

babe cola caco

caco

cola

c l o a c a

Ilustração 14: Poema Coca Cola de Décio Pignatari Fonte: CAMPOS, 2006, p.124

E foi mesmo Décio Pignatari que levou o concretismo a um deslocamento ainda

maior na questão de sua “autonomia”. Ainda em 1967, Pignatari publicou Disenfórmio, um

anúncio publicitário que foi incluído em um livro de poesia, Poesia, Pois é Poesia (1950-

1975). Neste anúncio-poema, o autor apresenta a sua mensagem publicitária, “convertendo-a

no processo mesmo de formação do texto”, segundo Haroldo de Campos, em seu artigo

Vanguarda e Kitsch, no livro A Arte no Horizonte do Provável (1977, p.197), o que aproxima

a publicidade da poesia concreta sempre experimental e até mesmo colocando em questão a

sua própria identidade. Entre as muitas críticas à Poesia Concreta, vindas do ambiente

cultural e de poetas então atuantes como Carlos Drummond de Andrade está a de que a sua

procura por legibilidade e clareza nas mensagens, pudesse levá-la a ser “confundida” com a

78

propaganda e, com isso, perder a sua “legitimidade”, se isso pode ser dito de alguma maneira.

Aqui não nos interessa observar se a Poesia Concreta se encontrava na sua maior

encruzilhada, “no momento máximo da experimentação” ou se o seu objetivo era o extremo

da “não-conciliação”. O que podemos concluir é que os discursos não só se encontraram aí,

mas efetivamente se mesclaram.

Em 1957, Décio Pignatari (CAMPOS, 2006, p.154) expressava a premissa em um

de seus textos, não por acaso na revista Ad - Arquitetura e Construção, de que as artes visuais

encontraram na arquitetura e no urbanismo, bem como no desenho industrial, no cinema, na

propaganda, um vasto campo possível de aplicações. E preconizava: “A poesia concreta, por

recente, apenas principia a entrever possibilidades utilitárias na propaganda, nas artes gráficas

e no jornalismo”. Com essa posição Pignatari e o grupo concreto colocavam a poesia de

vanguarda em um projeto que não descartava a utilização e aplicação também de recursos da

linguagem não-verbal e inaugurava um caminho que, sem dúvida, no futuro contribuiria em

muito com a evolução do texto publicitário.

Recorremos aos exemplos compilados por Carrascoza (2004, p.181) para

fundamentar a questão relativa ao ideograma. Para ele, o texto publicitário pode ser

construído também de forma ideográfica, como um poema visual, o que resulta em “mais um

recurso a serviço dos produtores da mensagem, para intensificar a persuasão”. Tomemos

como um primeiro exemplo, o anúncio da empresa IBM produzido com a intenção de

homenagear o tenista brasileiro Gustavo Kuerten pela conquista do campeonato de Roland

Garros, pela terceira vez. Neste anúncio, a disposição das palavras no espaço vazio da página,

“obriga a uma leitura que reproduz o movimento de vai e vem da bolinha de tênis na quadra,

ora no campo do jogador, ora no de seu adversário”.

79

Ilustração 15: Anúncio IBM de homenagem a Gustavo Kuerten Fonte: CARRASCOZA, 2004, p.28

É necessário, então, agora voltarmos a Décio Pignatari ainda em 1960, para

tentarmos demonstrar que a similaridade entre o poema e a publicidade não acontece por

mero acaso e, por assim dizer, caminha no sentido inverso, buscando na Poesia Concreta a

visualização dessa forma de linguagem. Pignatari utiliza o poema Ovo Novo No Velho, de

Augusto de Campos no artigo que leva o mesmo nome (Teoria da Poesia Concreta) para

responder às críticas sofridas pelo concretismo, tão contundentes naquele momento. Valendo-

se do recurso de lembrar a pesquisa de Charles Bouthenhouse que organizou, segundo ele,

“pequena antologia em forma de coisa”, Pignatari (BOUTHENHOUSE apud PIGNATARI,

2005, p.180) argumenta a partir deste autor, “não para efeitos de descoberta, mas para efeitos

críticos”, que poemas em forma de coisa sempre estiveram presentes na literatura, mas que

somente no final do século XIX que o poema figurado retornou: “Nosso atual período vem

testemunhando a criação de uma grande variedade de configurações, em reforço da vitalidade

da forma.

Utilizamos aqui, como exemplificação ao que se refere Décio Pignatari, o poema

Ovo Novo No Velho:

80

o v o n o v e l o n o v o n o v e l h o o f i l h o e m f ol h a s n a j a u l a d o s j o e l h o s i n f a n t e e m f o n t e f e t o f e i t o d e n t r o d o c e n t r o

Ilustração 16: Poema Ovo Novo no Velho, de Augusto de Campos.

Fonte: CAMPOS, 2005, p.185

Podemos observar em Ovo Novo No Velho, de Augusto de Campos, a construção

do poema de forma figurada lembrando a imagem de um ovo, apoiando-se numa configuração

a partir do sentido das palavras confirmando que o poema figurado retornou à vida. Na

publicidade, como na poesia também, tecnicamente significa adotar dois sentidos em um, o

que se diz e o que se mostra.

Podemos arriscar a dizer que durante a primeira metade do século XX, a

publicidade brasileira manteve-se atrelada à poesia, tomando de empréstimo seus recursos

imediatos, - tanto poetas como procedimentos poéticos lingüísticos, na visão de Nicolau

(2001, p.193). “Mas logo a seguir, essa perspectiva semiótica da segunda vanguarda

experimentalista funcionou como um verdadeiro laboratório de observação para o

desenvolvimento de um processo de comunicação muito mais eficaz junto ao público

consumidor, no que concerne à espacialização e ao poderoso uso do signo e suas categorias”.

Assim como o Poema Ovo Novo no Velho, o anúncio publicitário Classificados

de A Gazeta na figura a seguir, nos mostra o uso das palavras aglutinadas formando um

automóvel, processo baseado na Gestalt e na espacialidade concretista.

81

Ilustração 17: Anúncio Classificados A Gazeta Fonte: Reproduzido do site www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=26858, acessado em 15/06/2008

Durante a fase “participante” da poesia concreta, produziu-se uma tendência

propagandística ou de impacto visual. Como já relatamos anteriormente, a tipografia foi

incluída com caráter utilitário. Na publicidade em termos gerais, e mesmo na atual, o impacto

ao consumidor também tem seu foco, como que a instigar o leitor pela sua formação.

Lembramos também os construtivistas russos que ao utilizarem os tipos simples, diretos e sem

maiores dispersões intencionavam motivar o público e também, com isso, uniformizaram os

seus conteúdos. Neste período, pode-se observar que o design e os recursos técnicos da

própria publicidade que proporcionavam a multiplicação de tipos, levaram à utilização de

outras formas e até mesmo de sua combinação interna. O acesso, então, ao maior número de

82

fontes levou os poetas concretos a os utilizarem apenas como elementos decorativos e não no

sentido programático. Na publicidade, porém, em primeira instância, aparece a intenção de

escolher o tipo que acaba fazendo parte de uma idéia ou a complementando, mas, em grande

parte, essa opção também se torna apenas estética. Tomamos aqui dois exemplos, um da

poesia concreta de Augusto de Campos, chamado Póstudo e um anúncio institucional do

desodorante Rexona:

Ilustração 18: Poema Póstudo, de Augusto de Campos Fonte: (AGUILAR, 2005, p.226)

83

Ilustração 19: Anúncio Rexona Fonte: site www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=25706, acessado em 28/08/2008

É bem verdade que tanto na poesia concreta como na publicidade, a tipologia teve

outras funções que não apenas estéticas. Como podemos verificar a seguir, Augusto de

Campos no poema Intradução:Amorse (de um poema de José Asunción Silva) de 1988,

lançou mão do procedimento no qual estabelece mais do que a imagem pictórica no trabalho,

mas uma relação do tipo escolhido com as próprias palavras:

84

Ilustração 20: Poema Intradução:amorse (de um poema de José Asunción Silva), de Augusto de Campos. Fonte: CAMPOS, 2005, p.229

85

Na publicidade mais do que nunca, a utilidade da tipologia extrapola o sentido

estético e, como podemos notar neste anúncio, assume a função de coadjuvante do significado

das palavras ou até mesmo sua principal importância:

Ilustração 21: Anúncio Dia da Árvore Fonte: Reproduzido do site www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=26950, acessado em 20/08/2008.

86

“A contaminação entre imagem e a palavra que os poetas concretos praticaram era

um procedimento poético e, também, um modo de inserção nesse mundo visual de

comunicações rápidas”, diz Aguilar (2005, p. 232), ao analisar o poema Viva Vaia de Augusto

de Campos escrito em 1972 e dedicado a Caetano Veloso. Segundo o autor, o poema “coloca-

nos frente à frente com um tipo de leitura que nos exige o abandono da crença em uma

divisão absoluta entre texto e imagem”:

Ilustração 22: Poema Viva Vaia, de Augusto de Campos. Fonte: AGUILAR, 2005, p.233

A imagem é gramma, o texto é ícone: ambos compartilham uma materialidade que propicia sua existência (a imagem e o texto fazem parte de um mesmo campo experimental, em que são investigadas suas possibilidades materiais). O fato de que “A” seja um triângulo adquire novo sentido quando se observa que o “V” é um triângulo invertido e que a similitude tipográfica constrói o próprio sentido do poema (algo que não seria possível com outra tipografia). A relação que se estabelece

87

mediante essa tipografia em que o “A” é um “V” invertido, é a de isomorfismo ou necessariedade entre forma e conteúdo: a “vaia” exige sua celebração, o “viva” do artista de vanguarda só pode ter um resultado, a “vaia”. (AGUILAR, 2005, p.232)

No processo publicitário, há uma cadeia de idéias que se relacionam entre si e

que interagem, na busca de uma só mensagem aglutinante no resultado final, como ocorre na

poesia concreta, um compartilhamento entre imagem e palavra, embora seja um procedimento

oriundo do discurso persuasivo. Vejamos, então, como ocorre esta similaridade entre poesia

concreta e publicidade nesta questão específica, através dos exemplos que se seguem, quando

as letras tomam forma e dizem e significam mais do que originalmente:

Ilustração 23: Anúncio Folha de S.Paulo Fonte: Reproduzido do site www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=24773, acessado em 10/06/2008.

88

Ilustração 24: Anúncio O Globo Fonte: Reproduzido de www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=24701, acessado em 10/07/2008.

89

Ilustração 25: Anúncio Hospital de Câncer de Barretos Fonte: Reproduzido do site www.ccsp.com.br/novo/pop_pecas.php?id=24707, acessado em 15/07/2008.

O mesmo procedimento adotado nos anúncios anteriores (ilustrações 23 e 24) ocorre

neste exemplo. Há a clara intenção de se utilizar o pulmão formado por letras como acontece

na poesia concreta Ovo Novo no Velho (ilustração 16) de Augusto de Campos. Independente

do tema e assunto a ser abordado, nota-se que as palavras, frases ou mesmo apenas as letras,

nos levam graficamente a uma terceira leitura, o que a publicidade assume como condição

técnica transformando-a em associação de idéias.

90

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução desse trabalho levantamos diversas possibilidades para tentar chegar

a uma conclusão que desse conta da formulação proposta. Proposta essa que envolvia a

relação da poesia concreta com a mídia impressa, ainda viva na publicidade nos dias de hoje.

Pois bem, uma das questões propunha investigar o discurso publicitário e também o dos

poetas concretos durante o período de 1950 a 1960 no Brasil, como se viu, uma década de

cunho desenvolvimentista e que permitiu a introdução de novas tecnologias, nos mass media,

baseada no “crescimento” acelerado do país e nas novas condições de produção. Nosso

objetivo nessa pesquisa, foi procurar comprovar que nos movimentos de vanguarda,

encontravam-se procedimentos que levaram a poesia a escolher caminhos da arte utilitária,

fundamentados na tecnologia e na linguagem corrente. Ao mesmo tempo, este trabalho

também procurou demonstrar como a publicidade encontrou na poesia um vasto campo de

recursos e como os dois discursos mostraram estruturas semelhantes dentro de propostas

ideológicas distintas.

A poesia concreta foi, no mais das vezes, reveladora nesse sentido. O

construtivismo desse gênero sofreu muitas críticas e embora essas manifestações de repúdio

fossem parte do contexto vivido naquele momento e importantes para a percepção do próprio

movimento, tais críticas não objetivaram ser o recorte principal do nosso estudo. Quando

falamos de tecnologias, percebemos o quanto elas foram necessárias para a consolidação de

um novo limiar nas artes e em particular ao que nos interessa: a poesia. Os concretos tiveram

dois momentos importantes. O primeiro, radical, de ruptura e seguidor de tendências mais

variadas, mas todas ancoradas na forma e no espaço em branco das páginas, na sua própria

estrutura, fazendo valer o termo verbivocovisual em todas as suas nuances. Um segundo

momento, de tentativa de engajamento político-social, e o seu último momento, quando a

poesia concreta vislumbrou a volta ao verso. Mas a partir daí, as subdivisões levaram em

consideração as condições históricas e tecnológicas mesmo. Infoarte, infopoesia, videopoesia,

holopoesia, estética fractal, concepções que se alastraram dependentes e decorrentes desse

novo momento. Tomo aqui emprestado de Menezes (1991, p.222) um fragmento de suas

conclusões para tentar um outro olhar na questão arte/tecnologia:

91

[...] a poesia, só pelo fato de se situar pura e simplesmente no interior de um meio tecnológico avançado e novo, tem condições de mudar a sensibilidade artística e consequentemente as linguagens e os modos de pensamento.

E é importante perguntar a essa altura: e a publicidade? Foi produtora ou receptora

dessas novas possibilidades? Em nosso entendimento, esse discurso específico se situou e

peregrinou pelas duas instâncias. A publicidade reproduziu critérios utilizados na poesia

dentro do período de 50 a 60, como vimos, ilustrou de forma acentuada os trabalhos dos

concretos, delineou estruturas e autores. Também foi, juntamente com o design e a

arquitetura, provocadora de propostas nas artes e por conseqüência, na poesia. Muito mais do

que a poesia rimada do início do século, quando os principais poetas faziam uso da sua

própria linguagem nos “reclames”, a publicidade absorveu as figuras de linguagem e as

mesclou com a retórica e a persuasão. Flora Süssekind (1985), autora de Papéis Colados

(2002, p.250), faz um comentário que em parte, mostra a interface entre poesia concreta e a

publicidade. No ensaio que leva o nome de Poesia & Mídia, (p.251) sobre o poema 2ª Via, de

Augusto de Campos, ela pontua:

Foi também em fins dos anos 1950, em pleno otimismo desenvolvimentista, que se iniciou um dos diálogos mais proveitosos entre poesia, tecnologia e espetáculo no Brasil. Porque, sem medo de olhar de frente publicidade, outdoors, televisão, foram os poetas concretos paulistas que, na virada daquela década, redefiniram o livro como objeto, procuraram modificar o olhar do leitor da poesia, agora também um espectador do poema. E trabalharam e recriaram logotipos, objetos industriais, recursos de mídia. Às vezes comercialmente, até. O nome Lubrax, por exemplo, como se sabe, é criação de Décio Pignatari. As marcas “Mobília Contemporânea”, do “Centro de Colecionadores de Arte”, da “Galeria Seta” foram idealizadas por Willys de Castro e Hércules Barsotti.

Na verdade, interessa-nos retomar, a partir dessa crítica, a questão fundamental

que relaciona a poesia concreta e a publicidade e que está no fato de sua semelhança estética e

estrutural. Sabemos que as duas formas de expressão são propostas ideologicamente distintas,

como vimos, reveladas na crítica de pensadores importantes como Adorno e Benjamin a

respeito da indústria cultural. Há neles uma forte contestação à propaganda de uma forma

geral, considerando-a como uma técnica moderna, atrelada ao modo capitalista de exploração

do próprio homem, como diz Nicolau (2001, p. 118) “e que neste contexto, seria uma

antipoesia”.

Durante um longo período da história da publicidade, a utilização das figuras de

estilo, as figuras de retórica e as figuras de linguagem foram sedimentando uma linha de

trabalho que acabou se naturalizando. Foram critérios que acabaram “dando certo” no âmbito

92

da eficiência persuasiva e mercadológica. E que têm se repetido automaticamente por

décadas. Mas é preciso lembrar que a publicidade e por seu lado, também o design,

influenciaram assumidamente a poesia concreta principalmente no período estudado, de 1950

a 1960. Foram posições adotadas pelos poetas concretos e que aconteceram dentro de um

contexto onde autores como os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e os outros integrantes

do grupo Noigrandes, como Décio Pignatari e José Lino Grunewald, admitiram publicamente

essas referências, adotando-as como parte do seu programa de vanguarda, até mesmo

transformando-as em suas principais propostas. A recíproca não é verdadeira quando tratamos

de entender o processo contemporâneo da publicidade. Em algum momento, percebe-se que a

publicidade importa procedimentos da linguagem da poesia de maneira aleatória ou mesmo

intuitiva. Em outros, parece acontecer baseada em critérios e métodos assumidamente

importados da poesia. O verso sempre esteve dentro do contexto publicitário. De J.G. de

Araújo Jorge a Paulo Leminski. Na elaboração dos anúncios, na identificação com propostas,

marcas e produtos. Este, nos parece é o movimento do “vai e vem” do verso. Um movimento

que transita entre a poesia e a publicidade.

O que imaginamos questionar ainda como conseqüência desse trabalho para uma

pesquisa posterior é a possibilidade de identificarmos nos profissionais publicitários, a

consciência ou não da adoção dos recursos da língua portuguesa e da poesia por parte deles no

cotidiano de suas atividades criativas. Um estudo mais aprofundado poderia, talvez, nos

mostrar em algum termo, se a construção da mensagem publicitária contemporânea lança mão

desses recursos conscientemente e/ou criticamente. Esse trabalho permitiria investigar dentro

do universo publicitário, se a propaganda reconhece essa identificação com a poesia como

parte de sua estrutura, ou ela apenas é mais um recurso ao qual se pode lançar mão, mais uma

técnica ou mais um “truque” persuasivo a se reproduzir como qualquer outro, sem nenhuma

outra intenção que não seja a venda de produtos, serviços ou idéias, exclusivamente.

93

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