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Discurso Sobre a Poesia Dramática Denis niderot

Fragmentos de uma Poética do Fogo Gaston Bachelard

Obras Escolhidas vol. I Ensaios sobre literatura e história da cultura Walter Benjamin

O Rumor da Iingua Roland Banhes

Sade, Foutier, Loyola Roland Banhes

Sobre Poetas e Poesia T. S. Eliot

Teoria da Poesia Concreta Textos críticos e manifestos 1950-1960 A. Campos, H . Campos e D . Pignatari

Coleção Primeiros Passos

O que é Comunicação Poética D . Pignatari

O que é Leitura Maria Helena Martins

O que é Lingüística Eni P . Orlandi

O que é Literatura Marisa Lajolo

O que é Poesia Fernando Paixão

O que é Retórica Tereza Lúcia Halliday

O que é Semiótica Lucia Santaella

Antônio Houaiss

O QUE É LÍNGUA

2~ edição

editora brasiliense

O QUE É UMA LÍNGUA­À PRIMEIRA AUDIÇÃO

É um conjunto de sons e ruídos, combinados, com os I.X quais um ser humano, o falante, transmite a outro ou outros seres humanos, o ouvinte ou os ouvintes, o que está na sua mente - emoções, sentimentos, vontades, ordens, apelos, idéias, raciocínios, argumentos e combinações de tudo isso. (Na prática doméstica, não raro há falantes que fazem isso com animais de sua estima e convívio, obtendo ótimos resultados para o que quer.)

Um enorme número de espécies animais também se intercomunica com sons e ruídos: mas até agora não conse­guimos ver nesse seu sistema de intercomunicação senão alguma coisa remotamente comparável a uma língua. Sabe­mos que certos bichos - os cães, por exemplo, mas não só eles - 'marcam' seu território com o cheiro de sua urina ou corpo; que as abelhas, volteando, transmitem vibrações às semelhantes, dando direção de locais em que há abundância de pólen; que o atrito das antenas das formigas (e insetos afins) constitui uma troca de informações sobre locais e fontes de

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alimentos; que, pelo canto ou pios ou pipilos, um sem-número de aves garantem sua sociabilidade e gregariedade. E não se pára nisso: com certos chimpanzés (que jamais o fazem entre si espontaneamente) pesquisadores devotados já lograram estabelecer 'diálogos' em linguagem de mudos (com cartões, cores, gestos) com um número notável de 'frases'- o mesmo ocorrendo com uma certa gorila, cuja sociabilidade e efusão com seu amestrador e seus visitantes humanos, através de gestos, eram 'absolutamente' humanas ...

Dizem os especialistas nessa matéria que um certo tipo de golfinho, por exemplo, emite cerca de 500 'mensagens' sonoras diferentes entre si, com 500 sons ou ruídos básicos diferentes, com o que se localizam, dizem se estão bem, dizem se há abundância de alimento onde estão, dizem se há perigo, se estão contentes, se súgerem encontro dos dois grupos, dizem onde estão, como se encontrarem, dizem até se estão comendo bem, que tipo de comida, se corrente, se excepcio­nalmente boa, se as águas são limpas, se o local é ideal para romances, quero dizer, para a reprodução. É claramente uma linguagem sonora, às vezes a milhas marítimas de distância, por meio de ultra-sons e ultra-ruídos ...

Se quisermos buscar comparações, poderemos - fora do reino animal - entrar no vegetal e dizer, por exemplo, que as casuarinas· mandam para o 'diabo as outras plantas que tentarem viver à sua sombra, tal como o fazem os eucaliptos, em cujos bosques artificiais plantados pelo homem não vice­jam nem outras plantas, nem pássaros, aves ou animais em geral. Esses dois exemplos (que poderiam ser multiplicados por mil} alargam o conceito de linguagem, que pode ser mais dilatado ainda: os estudiosos de terrenos e rochas e minérios e sedimentos cedo descobriram que a presença"de alguns é a certeza da presença próxima de outros e a certeza da ausência de outros. A razão, o raciocínio humano, estabelece assim vínculos 'intercomunicantes' entre tudo e todos. Isso é funda-

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mento remoto e, ao mesmo tempo, imediato das linguagens e das linguagens humanas.

De fato, os seres humanos usamos de várias linguagens, todas ligadas aos nossos sentidos, aos nossos sensos, todas, por isso, de percepção sensorial - que, em última instância, se unem num sistema geral de percepção que permite - aos carentes de um ou mais ·sentidos - compensar, vicariar (é o termo) , a carência. O tato é talvez a mais forte linguagem erótica entre nós. O olfato é talvez a mais forte linguagem alimentar. A visão é fonte das linguagens gráficas, pictóricas, escultóricas (glípticas) , coreográficas. A audição é fonte da linguagem musical, rítmica, ginástica. Combinadas, as linguagens podem enriquecer-se reciprocamente. No cinema - a mais recente delas - pode-se juntar quase todas, mesmo, se quisermos, todas - é mera questão de audácia criadora.

Mas a audição e a fenação - essa capacidad~ que temos de emitir sons e ruídos voluntariamente por via essencialmente bucal - realizam a linguagem humana por excelência e exclu-

. siva dos seres humanos. É verdade que, embora excelente, não lhe basta, tanto assim que, mesmo usando dela coin o máximo de eficácia e de beleza, não dispensa jamais as outras linguagens, a tal ponto que vive à cata de novas outras .

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O QUE É UMA LÍNGUA

Por contraste com todas as linguagens sonoras animais, o homem crê - e não há muita razão até agora para duvidar disso - que sua língua é diferente de todas as demais. .

Primeiro: ela revela um traço básico extremamente ines­parável: somos seres capazes de emitir sons e ruídos bucais com uma espantosa riqueza de gamas ou variedades de altura, intensidade, timbre, modulação, mora, modo de produção, de articulação, de ressonância. Entretanto, temos - qualquer que seja a língua considerada - uma extrema restrição quantitativa de sons e-ruídos em cada uma de nossas línguas: estas variam entre pouco mais de 20 a pouco mais de 40 (é claro que, consoante forem os critérios de aferição e exame, os números podem variar, mas numa ordem de grandeza sempre peque-níssima em relação à capacidade humana) . ·

Segundo: esse número reduzido de sons e ruídos de cada língua, combinados, pode tornar possível um número extremamente alto de combinações, a primeira das quais é a silaba- um, dois ou mais sons (e/ou ruídos) emitidos num só sopro (oú impulso) . Notar que com dois sons apenas - a e b,

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por hipótese -, pode-se ter, no mínimo, as seguintes snabas: a, ab, ba, bab (e, mais, em certas línguas, abb, bba - mas não posso duplicar o a, pois isso 'gerará' duas snabas, quando estou cogitando de uma só - veja aba ou baa ou mesmo aab) . Se, porém, forem três os sons -a, b e r, por hipótese-, posso ter, no mínimo, a, ab, ba, bab, ar, ra, rar, abr, bar, barb, bra, arb, rab. A fecundidade desse sistema é tal que 'gera' - em qualquer língua - autolimitações: há quase sempre um núme­ro reduzido de sons que podem ser base de sílaba, contra um número maior de sons e ruídos que podem ser acompanhantes da base. Além dessa poderosa limitação, há uma segunda: cada língua 'consagra' - institucionaliza, internaliza, aceita, admite - certas combinações de sons e ruídos na formação de uma sílaba sua, mas não certas outras combinações. O japonês, por exemplo, só 'aceita' sílabas constituídas de uma vogal final : meu saudoso amigo embaixador Araújo Castro tinha o privilégio (em conseqüência dessa regra) de lá ser ­com todas as pompas e circunstâncias - Kasuturu (pois a vogal u é a 'universal de apoio' quando a sílaba, no estrangei­rismo, não a tem própria ... ).

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de mão; mas se eu disser a você a pata quebrou I a- · pa-ta-ke- · brow I ou um palerma me disse I u -pa-àler -ma-mi- ·di-si I , os três pas são, em cadeia falada, distinguidos com recursos tais que você (e eu) possamos saber que num caso I paI é o instrumento, noutro é parte de pata I àpa-ta I , um pé ou perna de animal (ou de 'mesa' ou 'afim') , noutro ainda I paI é parte de palerma I pa- ' ler-maj, um 'bobo', um 'idiota', um 'imbecil '.

Cada língua desenvolve, na parte sonora do seu sistema de cadeia falada, elementos diferenciadores ou caracterizado­res das funções de certas sílabas de maneira tal que os 'senti­dos' não fiquem obscuros - isto é, não entendidos - ou ambíguos- isto é, entendidos de dois (ou mais) modos.

Esses recursos são - como já dito antes - de várias naturezas, de língua para língua, não raro ocorrendo que a existência numa língua de um exclui a de outro ou outros e não raro, também, ocorrendo que a existência de vários faça que a de alguns não tenha valor distintivo ou diferencial. O chamado acento intensivo (esforço dinâmico maior que se põe numa sílaba em relação a outra ou outras anteriores ou posteriores co'm que se possa, assim, distinguir uma série como sábia, sabia e sabiá, ou lápide e lapide, ou válido e valido etc.), o chamado acento tonal (com que certas línguas, na Ásia ou na África, de preferência, distinguem dois, três, n sentidos ·numa só sílaba como mi ou ma ou em dissílabos ou trissílabos etc. , mercê de uma variação tonal numa delas), o chamado acento qualitativo (com que, através de uma variação de timbre de uma mesma vogal de um grupo de sílabas, se distinguem sentidos, algo semelhavável ao que ocorre em português com sopro [ô fechado, substantivo] e sopro [o aberto, flexão verbal]) , o chamado acento quantitativo (com que, num grupo de sílabas semelhante, distingo dois sentidos- e, assim, duas palavras - com fazer mora, demorar, na pronúncia de uma vogal o tempo de sua emissão em relação à simétrica do outro grupo

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comparável) , os chamados acentos demarcatórios com que, por exemplo, caracterizo em certas línguas o início de palavras, noutras, o fim, noutras, o meio, tais acentos, ern suma, são recursos explicitadores de uma forma de relação entre cadeia fonética ou sonora, propriamente dita, e a cadeia de sentidos, que, sendo-lhe como que colateral, não se articula, não se conecta, não se f;lntrosa paralelamente. O estudo das diferen­tes cadeias faladas das línguas do mundo revela que há limites para o uso deles: limites em cada língua, limites no conjunto das línguas, como que ressaltando - de novo - que sua concomitância numa só língua seria exorbitância e afrontaria a 'economia' da língua e a potência internalizadora dos seus usuários.

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... O UNIVERSO VERBAL

A partir do momento em que, adquirindo no trato vivo do meu viver uma língua, internalizo a relação água : 'líquido potá­vel que é bom de beber' (ou qualquer outra de tal tipo) , vou poder ir além, refazendo (porque já feitas por outros, anterior­mente) novas relações, verdadeiras razões combágua : 'líquido potável' :: comida: 'sólido mastigável e digerível':: flor : 'elemen­to de planta que antecipa fruto': : ... A partir do momento em que internalizo hoje: 'neste dia que estou vivendo', abro minhas potencialidades ou virtualidades para amanhã, ontem, anteon­tem, trasanteontem, no dia 4, no futuro, daqui a mil anos, há tempos .. . Apreendo e aprendo a estabelecer contínuos de significações afins ou do mesmo padrão, como aprendo, pa­ralelamente, a grupar significantes, isto é, formas afins formal­mente (é proposital a reiteração), a saber, ou a do tipo can­to/cantas/canta/cantamos/cantais/cantam/cantava/cantavas I cantava/cantávamos/cantáveis/cantavam/cantei/cantaste/cantou/ cantamos/cantastes/cantaram/. .. , ou a do tipo cantor/cantoria/ cantada/cantador/cantadeira/cantatriz/cantável/descante/ encanto/encantar/encantador/encantável/recantar .. . , ou a do

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tipo cofre/caixa/boceta/escrínío/receptáculo/teca/ ... Breve, che­go a um conjunto mais ou menos rico de relações, razões ou associações em que, com uma palavra presente, sou capaz de desencadear uma série de palavras ausentes, mas associadas entre si, não só no meu espírito, senão que também no espírito do ouvinte - pois revertemos nossas situações, de ouvinte a falante, de falante a ouvinte.

Outro tipo de relação é quando - por hipótese- tenho presentes apenas palavras como moça-rapaz-o-a-ama e vejo que, com elas, posso dizer a moça ama o rapaz e, examinando bem a frase, vejo que ela pode significar o mesmo que o rapaz ama a moça: essa ambigüidade, possível, isto é, não obrigató­ria em todos os usuários de nossa língua (ou de língua com­parável} , pode ser desfeita se eu disser a moça ama ao rapaz, à moça ama o rapaz, ao rapaz ama a moça, ama ela a moça o rapaz, ama ela a moça ao rapaz. Vejo, com efeito, que, confor­me for a ordem das palavras, certas palavras estabelecedoras de meras relações e, em certos casos, a mera pausa ou entonação entre as palavras, tudo isso, seja, uma mera asso­ciação de palavras pode mudar de significado ou de sentido ou de função, numa delas ou no conjunto delas. Vemos mais, vemos que certos conjuntos parciais 'comandam' o conjunto mesmo: a moça e o rapaz ama não é possível (pelo menos num certo nível de formalização da língua), mas sim a moça e o rapaz amam. Eis exemplos, dentre outros, antes sugeridos, das regras ou gramáticas de uma língua.

Enquanto as regras da cadeia sonora têm suas limitações - pelo número de sons e ruídos básicos e pelas limitações combinatórias -, enquanto as regras da gramática têm um número limitado, constituindo também um sistema cerrado ou fechado, de tal modo que se admite que a alteração de uma regra tem conseqüências no sistema delas, enquanto isso aí

" ocorre, as palavras não têm número limitado nem limitável: uma

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língua pode ter duas mil, três mil cem mil palavras - e cada falante dessa língua pode contentar-se (ou bastar-se, ou resig­nar-se) com uma parte desse estoque de palavras, segundo for o meio em que viva, o que faça e como o faça. Por isso, costuma-se dizer que o conjunto de palavras - ou o léxico, ou o vocabulário, ou o dicionário etc. - de uma língua é aberto, porque, com o tempo, tanto pode ocorrer que algumas de suas palavras desapareçam (ou deixem de ser usadas) quanto pode ocorrer que algumas palavras nasçam ou sejam criadas ou sejam tomadas de empréstimo de outras línguas.

Se tomo como objeto de observação uma palavra como (por exemplo) azul e a ponho numa cadeia falada, verei que seus limites fónicos são indecisos ou imprecisos: o azul faz-me sonhar I wa-' zul-faj-mi-so- ' qnhar I , este azul é forte I ex-tya­, zu-le- 'for-ti I , dum lápis azul preciso I d u-' la-pi-za- ' zul-pre­, si-zu I, se for azul ou preto I si-fo-ra- ' zu-low-ápre-tu I : noto que no primeiro caso, I wa-' zull , no segundo, I tya-' zu-le I, no terceiro, I za- ' zulj e no quarto, Ira-' zu-low j. os seus limites fónicos são difusos; e noto mais que, em frases como o azul pode-oferecer vários matizes (azul=cor) , o azul me dá vontade de voar (azul=céu). mergulhei naquele azul imaculado (azul = mar) , também o significado, se não é difuso, é pelo menos flutuante, cond icionado, dependente do contexto (das palavras) e da situação (dos interlocutores) . Isso me permite dizer que, tanto na cadeia fónica quanto na cadeía sígnica, os 'limites' da palavra são imprecisos, o que me permite dizer que a 'palavra', como tal, é difusa, imprecisa, indelimitada, havendo até quem diga que ela não existe: o que haveria seria apenas ur:n núcleo fónico e um núcleo sígnico associados. Ademais, há línguas em que sequer há um núcleo fónico compactamente falando, como no árabe, em que, por exemplo, k-1-b : 'cão genérico' é al-kalb 'o cão, um cão', kleb 'cães', kalbeyn 'dois cães' e por aí afora. Num nível mais alto de generalização, o

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homem não tem podido dispensar nem o conceito nem a prática da palavra : 'palavra', graças ao que pode organizar escritas, dicionários, enciclopédias e corporificações em geral de uma língua. Como tudo no universo, as palavras, ao se relacionarem, concedem entre si algo de si mesmas, perdendo cada uma e ganhando - e sendo por isso mais elas mesmas .

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DESDE QUANDO FALAMOS?

Do ponto de vista da aquisição individual, é claro para qualquer observador corrente - qualquer mamãe, ou papai, qualquer irmãzinha, ou irmãozinho, qualquer tia, ou tio, qual­quer babá, ou ... babau - que a criança começa a atentar na voz dos adultos muito cedo, cedo identifica a de quem mais a assiste, quase sempre, até certo grande passado da espécie, a da mãe: Virgílio, o poeta latino, disse: "começa, criancinha, a reconhecer tua mãe pelo riso"-:-- que cedo começa a balbuciar, num blablablá que busca arremedar as falas que ouve.

Se se leva em conta que cedo, já pelos dois anos, a criança domina o arcabouço .fundamental de sua língua, apesar da estupenda complexidade de qualquer língua, não é de estranhar que nos consideremos - em face de todos os outros animais intercomunicantes pelos sons - como inatamente dotados para a fala, para uma língua, para a língua. Há hoje em dia uma escola lingüística e psicolingüística que não vacila em afirmar que temos, com o instinto da linguagem, um aparelho ou órgão da fala ou mesmo língua.

De fato, apesar de os lábios terem funções ligadas à mastigação, de a língua ser fundamental nisso, o mesmo se

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dizendo dos dentes, das gengivas, da úvula, do palato, apesar de os pulmões serem, com a traquéia-artéria, a garganta, a glote, a epiglote (e, mesmo, as chamadas cordas vocais), as fossas nasais, as narinas (e o seu revestimento, o nariz, com a olfação) órgãos da respiração, o fato é que no ser humano são tão cedo postos· a serviço da fonação - que é, de certo modo, prerrequisito da fala como língua -, que fica claro que, se não existem em nós com essa função precípua, cedo passaram a ter também essa função. Mas os requin~es de comandos e recepção e percepção psíquicos concomitantes com essa função são tais que, então, a hipótese de uma aptidão inata se faz quase incontestável.

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A internalização de uma língua é um fato óbvio, regular-1 , mente sem maiores dificuldades aparentes: nas sociedades ' ditas primitivas ou, mais simplesmente, nas sociedades ágra-fas (isto é, sem escrita) ou, mais simplesmente ainda, nos ~, segmentos sociais ágrafos mesmo.das sociedades modernas mais requintadamente gráficas, sem haver escolas, sem haver professores, sem haver alunos, sem haver instrução institucio­nalizada, as crianças, pela mera inserção progressiya na vida do grupo a que pertence, vai dominando sua língua, internali­za-lhe as regras e, cedo, entre 12-13 anos, é adulto na sua língua: pratica todas as regras ou gramáticas que todos prati­cam, sabe todas as palavras que todos sabem e tende a ter uma visão do mundo, um fazer do mundo e um saber do mundo como todos do seu mundo .

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MAS, NO TEMPO, DESDE QUANDO FALAMOS?

Não há razão para que pensemos que falamos apenas de um certo tempo relativamente Ct.Jrto para cá, digamos, do tempo bíblico para cá. Tudo milita em favor da hipótese de que falamos, pelo menos, a partir do Homo sapiens, que existiu entre 120-60 mil anos atrás, se levarmos em conta que o chamado aparelho fonador çjesse homem já estava afeiçoado para emitir quaisquer sons que se emitem nas línguas presen­tes e nas que, do passado, deixaram registres gráficos. Mas os estudos antrópicos- relativos ao homem- e anatómicos não se satisfazem, a tal respeito, com a hipótese do Homo sapiens, admitindo que o chamado Homo habilis, de entre 2.000-800 mil anos atrás, continuado pelo Homo erectus, de 1.200-200 mil anos atrás, antecessor do Homo sapiens, com o chamado homem de Neanderthal, já estivessem aptos, no essencial, a uma fonação riquíssima, se comparada à dos primatas em geral, graças à chamada estação (postura) erecta, tão clara já no Homo habi/is, que, liberando-lhe os braços e mãos das dependências da locomoção, passou a ter um instrumento de

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pesquisa já demandado por seu psiquismo e que iria, reversi­vamente, requintar suas faculdades psíquicas: tudo leva a crer que já estavam atingidos os requisitos da língua - uma forte capacidade relacional da mente e uma rica matização da fena­ção.

Essa hipótese de largo espectro temporal tem que ser pensada com levar em conta 1) que todas as línguas estudadas pelo homem até hoje são desenvolvimento, nõ tempo, de línguas anteriores, e 2) que jamais se pôde admitir que, de certo remoto tempo para cá, tenha havido seres humanos que não falassem. Com dados como tais, retorna sempre a velha ques­tão - sobretudo intensamente especulada no século XVIII -de saber se tivemos, no mais remoto passado linguageiro elo homem, uma só língua, dita adâmica, de que saíram várias línguas, ditas babélicas, ou se não tivemos uma língua adâmica - caso em que a diversidade estrutural das línguas poderia explicar-se por grupos de diferentes origens iniciais. Neste caso, o instinto da língua - a que nos referimos antes -ter-se-ia manifestado em diferentes grupos do genus ou gênero Homo , que teriam criado, em lugares vários e tempos vários, os troncos iniciais das diversas línguas do mundo.

O quadro demográfico do Homo é ponto de referência necessário: o Homo erectus já existiria na Terra, por volta de 1 milhão e 500 mil anos atrás, com uma população de 1 milhão de indivíduos. Entre 10-8 mil anos atrás, apenas, o Homo sapiens teria atingido a ordem de grandeza de 10 milhões de indivíduos, num processo de aumento lentíssimo, como se vê. Daí por diante - com as plenitudes industriais, agrárias e agropastoris do neolítico- o aumento populacional passou a ser progressivamente explosivo: 50 milhões de humanos há 8-7 mil anos, 400-500 milhões de pessoas no ano O (isto é, há menos de 2 mil anos), 1.000 milhões (ou 1 bilhão) por 1810, 5.000 milhões (ou 5 bilhões) em 1987 e 10.000 milhões (ou 10 bilhões) no futuro ano de 2028.

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"/ A expansão do homem sobre a Terra é a expansão das línguas sobre a Terra: num longo primeiro processo, ter-se-á feito por cissiparição, até quando atingimos os 1 O milhões, há 1 o mil anos; num segundo processo (não excludente da con­tinuação do anterior, em vários pontos da Terra) , a expansão ter -se-á feito por difusão (pacífica, ou já quase bélica e preda­tória}, quando, a partir dos 50 milhões, há 8-7 mil anos (seja, 7-5 mil antes de Cristo), a expansão (sem excluir os processos anteriores) se fez dominantemente predatória, homicida, geno­cida, escravizadora e - compensatoriamente - 'civilizatória' -, mercê de sociedades hierarquicamente organizadas, com progressiva exploração do homem pelo homem, transformada, nos tempos mais recentes, em exploração de povos por povos, mas de forma 'civilizada'.

Se algum dia se provar que o tipo de estruturação lingua­geira universal do duplo siste[Tla de articulação é o só possível para uma língua propriamente dita, então ter-se-á que admitir que tenha havido sempre línguas de diferentes genealogias ou linhagens. Caso contrário- que, por enquanto, é o que parece dominante no pensamento dos estudiosos (embora fujam em confessá-lo} -, então, temos que admitir que no início houve uma só língua de uma só horda (clã, tribo, grupo, linhagem)

• humana. Esta, através dos ·tempos, foi - por saturação da capacidade própria de reproduzir-se - objeto de cissiparição - de divisão em dois grupos. Esse processo teria sido o da

1l hominização da Terra por um longo lapso de tempo, como 1' admitimos como primeiro momento do processo geral.

Um grupo, uma língua, cissiparição, dois grupos e, ao cabo de certo tempo, sem intercomunicação entre os dois grupos, duas línguas não intercomunicantes. É que toda língua é história, e história é mudança, e característica da essência da história é a modificação com o tempo. É também característica da internalização de uma língua que, no trato vivo e contínuo com a mesma, não tomemos conhecimento das modificações

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que vai tendo e que são incorporadas imperceptivarT)ente por todos os talantes dela. Na prática, os falantes e os ouvintes não têm consciência de que há, está havendo, sempre, modifica­ções em sua lfngua - maiores ou menores, mais lentas ou mais rápidas.

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A EXPANSÃO DAS LÍNGUAS: UM ESQUEMA IDEAL

A antropologia - o estudo do ser humano em suas características globais, inclusive mesológicas, por oposição ou contraste com os seres vivos não humanos, em sua escala crescente de complexificação - e, em especial, a paleoantro­pologia - o estudo dos seres humanos tais como documen­tados por fósseis de uns quantos milhões de anos para cá na linhagem dos primatas - são especialmente fascinantes por serem trabalho a um tempo de campo e de gabinete, com dados concretos e dados subjetivos cuja comparação só se faz possível e rica de hipóteses e explicações se dentro de um conceito inequívoco de evoluçáo - evolução das espécies, isto é, de que cada uma se pode modificar com o tempo e de que umas emergem de outras, extinguindo-se algumas e crian­do-se outras perpetuamente.

Há razões para admitir que certas espécies desenvolve­ram aptidões não apenas diferentes, mas até próprias ou quase exclusivas. Os primatas- ou pelo menos a sua grande maioria - tenderam para a gregariedade, a via arborícola, a alimenta-

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ção frugívora. Um sem-número 'tentou' traços tendentes à postura erecta, que lhe abriria diferentes habitats (montanha, planície, selva, savana, campina, cerrado) , diferentes ativida­des (coleta, manuseio, afeiçoamento) e, aguçando-lhe a capa­cidade manual exploratória e gregária, lhe aguçaria a capaci­dade de intercomunicação sonora, graças exatamente à postu­ra erecta, que iria capacitar o seu aparelho deglutidor a conti­nuar a ser concomitantemente respiratório e concomitante­mente fonador. O primata que preencheu todos esses traços é que tem o nome Homo na classificação zoológica, isto é, 'homem' em latim (que incluía, como em português, 'homens' stricto sensu e 'mulheres' e seus filhos e ascendentes e des­cendentes).

A Homo a classificação referida agrega - para caracteri­zar certas mudanças e 'estabilizações' nele havidas ao longo de 2 milhões de anos - habi/is, num primeiro momento, erectus,-num segundo, e sapiens, num terceiro, com um sa­piens sapiens, num quarto (e, parece, desnecessário). Na real idade, já antes com Homo habi/is, a liberação das mãos de sua função basicamente locomotora dera a Homo dois instru­mentos finamente sensíveis para pegar, tatear, empunhar, ma­nipular, digitar, dedilhar, introduzir, pinçar, coçar, acariciar, esfregar, polir, limpar e mil coisas mais, sem contar o fato de que, prolongando esses dois instrumentos, pOde usar de ins­trumentos outros por ele achados e logo inventados - paus, ossos, pedras, blocos, varas, massas, maças, alavancas - e imagine - lenta e continuamente - o mais. Essa 'conquista' não parece fazer sentido se só: o ser que a 'buscou' ou o ser em que isso 'ocorreu' devia pertencer a grupo em que certas aptidões sensórias, certas aptidões mentais, certas faculdades de percepção, de comunicação, de vida gregária, certas ne­cessidades alimentares, certa vocação de procura vinham nele sendo mais cultivadas que em seus congêneres. Assim, quan­do o primeiro casal, o primeiro clã daí gerado apareceu na

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paisagem terrestre, alguns traços devem - concomitantemen­te -ter aparecido.

Esse primata revelou - logo - uma capacidade alimen-tar gregária: em lugar de fazer como os outros - adultos ou quase adultos (os infantes deviam ir ao colo, nas costas) que, à medida que achavam algo de comer, o consumiam -, estes inovadores passaram a coleta~, trazendo nos braços ou, já, em 'recipientes' naturais improvisados, os produtos do seu traba-lho, para, gregariamente, a) consumi-lo e, quando excedente das necessidades imediatas, b) elaborá-lo, a fim de, acaso, prevenir-s·e de carências possíveis: o círculo de consumo assim formado usou da língua inaugural - que, obviamente, superava todas as formas anteriores da intercomunicação, pois é quando se atingem os universais da cadeia sonora e da ! •

cadeia mentada. É provável que esse evento - o brotar dessa faculdade de intercomunicação dentro dessa forma de regula-ção - seja único na história da Terra e nunca mais se tenha reiterado -, mas se tenha mantido através da transmissã0 da sociabilidade e das culturas.

Admitir que essa faculdade 'nova', tornada - digamos ­instinto da fala ou da língua ou órgão próprio, é admitir que a) seu repontar tenha, no início, ocorrido em várias emergências, com 'traços' iguais ou com 'traços' diferentes, ou que b) seu repontar tenha, no início, constituído, a certos títulos compara­tivos, tal superioridade de sobrevivência, que assim a 'vitória' biológica de Homo estaria assegurada: gregariedade (esforço concentrado, trabalho colativo, potência factora, potência tau­tora) + língua (matização Identificadora e organizadora do universo físico circundante, retentiva mnemónica dessa mati­zaÇão graças à organização 'económica' da cadeia falada, com seu segundo sistema de sinalização, dobro verbal da sinaliza­ção objetiva das coisas e eventos do real externo) .

É possível que o evento que estamos considerando - a emergência da primeira língua - não tenha sido concomitante

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~

com Homo ; é possível que em lugar de ser com ele, tenha sido nele, alguns muitos {ou poucos) milhares de anos depois: mas, no clã em que isso terá ocorrido- ou nos clãs -, -a supe­rioridade de sobrevivência desses 'mutantes' terá sido tal que, na competição, os 'mudos' terão tendido a desaparecer. O fat é que, a partir de 'então' , não terá havido língua que não tenha provindo de língua preexistente.

. . - ~-·, .. • • ~--=--__./

UM 'TEMPO' DIFERENTE

O pensamento humano se acostumou durante muitos e muitos milênios com duas noções aproximativas - a do nú­mero e a do tempo -, enlaçadas entre si, na prática cotidiana, a partir de não se sabe quando.

Se o leitor se detiver sobre os números - os nomes dos números - em português, verá que são vulgares, populares, vivos, da gente do comum e de desde cedo na língua, na boca, diária, das pessoas que vivem o dia-a-dia do fazer, do dizer, do trocar, do consumir, um/uma, dois/duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze/quatorze, quinze, dezasseis/dezasseis, dezassete/dezassete, dezoi­to/dezóito, dezenove/dezanove, vinte, vinte e um ... trinta, trinta e um ... quarenta, cinqüenta, sessenta, setenta, oitenta, noven­ta, cem, cento e um ... duzentos/as, trezentos/as, quatrocen­tos/as, quinhentos/as, seiscentos/as, setecentos/as, oitocen­tos/as, novecentos/as, mil, dois/duas mil ... cem mil, novecen­tos e noventa e nove mif· novecentos e noventa e nove, um milhão - perdão! um milhão, não - uro conto (=uma conta­gem exaustiva, como que se chegando o último número ... ), como que a insinuar que a partir daí-há que contar outro conto.

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Pois, com efeito, os números a p·artir de um milhão, inclusive, são cultismos introduzidos ou forjados na língua portuguesa (e nas línguas modernas de cultura) a partir do século XIV-XV. Mas, se recuarmos no tempo, na Idade Média e mesmo~ entre o povo sem aprendizado básico, veremos que coletivos quan­tificadores como muito, quantidade, porção, punhado, multi­dão são bem mais freqüentes.

Para a mensuração/quantificação do tempo o mesmo se vem dando: há tempos, há muitos e muitos anos, no tempo da carocha, no tempo da carochinha, outrora, no passado, quan­do os bichos talavam etc. etc., com uma imprecisão quantitati­va que só não espanta, porque não se precisava dela.

No Ocidente, na área do conhécimento e do saber letra­do, a questão calendária e cronológica ficou - explícita ou implicitamente - cifrada à cronologia bíblica. Para Júlio Africa­no, no século III d.C., o mundo (criado em sete-seis dias por Deus) havia sido iniciado 5.500 anos antes de Cristo; o monge egípcio Panodoro, pouco depois, admitia-o em 5.493 antes de Cristo; no século Vil, eruditos constantinopolitanos davam-no de 5.509 a.C.; Scalfgero, no século XVI, dava-o como, apenas, de 3.950 a. C.; mas a mais prestigiosa precisão foi a do arcebis­po de Armagh (Irlanda), J. Usher, que lhe deu 4.400 anos a.C., por 1648. Sobre esta última, o tempo passou e não se lhe levantaram objeções ou contestações. Que, em crescendo,

. começaram a lavrar no curso do século XIX, por várias ciências então emergentes, como a arqueologia, a paleontologia, a geologia, a estratigrafia e, enfim, a teoria da evolução, que -nascentes todas - começaram a ser coonestadas entre si. Cedo, milênio passou a ser uma ordem de grandeza pequena,

· mesmo com relação às coisas humanas, que, naqueles assun­tos, é de notável 'modernidade': admitindo, como aqui admiti­mos, que Homo é realmente o primeiro homem (gregário, trabalhador, falante, inovador), nossa escala temporal vai, hu­mana, a urri máximo de 2 milhões de anos . •• •• ••

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A CISSIPARIÇÃO ANTES DA DIFUSÃO

Se reduzfssimos cada milênio - mil anos! - a um centímetro - um centésimo de um metro! - a idade da Terra seria representada por uma fita de 4 mil e 600 metros. A era geológica mais recente da Terra - em que apareceu Homo ­corresponde aos 3-2 metros finais. A emergência de Homo , aos 2 metros finais. A invenção da escrita ocorreu nos 7-6 centíme­tros finais, da História, dita em sentido estrito, a que se conta a si mesma e nos conta a nós mesmos, graças à escrita; tudo, antes, em termos humanos, chamamos Pré-História, que, co- · mo não tinha escrita, mas tinha - imperecedouros - pedras e ossos documentais e um milagre natural, a fossilização - a transformação quase em mineral de certos objetos orgânicos que normalmente teriam desaparecido - , tem de ser 'lida' através desses documentos: 'lendo-os' , dividimos essa Pré­História em dois momentos (pelo menos), o paleolítico -período da pedra velha ou lascada, mas não polida - e neolítico - período da pedra polida. O primeiro ocupa os

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195-185 centímetros iniciais, o segundo, os 15-1 O centímetros finais.

Há razões para crer- pelo menos até agora- que Homo emergiu na África. austral, 2 milhões-1 milhão e 800 mil anos atrás; já há 1 milhão e 500 mil anos 'chegou' à China, através da Europa. A Oceania e a América foram de hominização recente (mais ou menos depois dos 30 mil anos finais ou atuais) .

Admitimos acima que, por cissiparição- acarretada pelo aumento, precário embOFa, do grupo, de tal arte que a logística da sobrevivência do grupo não pudesse bastar-se, exigindo a divisão 'heróica' do grupo para direções ignoradas -, num ecúmeno (região potencialmente habitável} praticamente ines­gotável, o homem se tenha expandido. Foi, entretanto, uma expansão extremamente lenta e precária, pois o seu 'rendimen­to' (a multiplicação dos homens) foi extremamente lento, como o prova a demografia retrospectiva acima delineada. Isso leva­nos a admitir que um número inestimável, incalculável, de cissíparos tenha desaparecido sem continuidade, já que o homem atingiu uma população da ordem de grandeza de 1 O milhões de pessoas somente há 10-8 mil anos atrás (1 0-8 centímetros finais de nossa escala figurada} .

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O ÔNUS DA HOMINIZAÇÃO

Essas projeções são precárias, porque lineares e abstra­tas, e levariam a absurdos números altos, só no processo de cissiparição. Seja como for, parece assentada a hipótese de 1 O milhões de homens por volta de 10 mil a.p. (antes do presente). Ver-se-á, assim, que para muitos estudiosos a sobrevivência da espécie humana é tida como sua 'vitória biológica'. Nesse então, já em vários pontos da Terra a sedentarização começa a ser um fato, como o é a agricultura, o pastoreio (o cão já está hominizado e é ser integrado com ele em sociedade, nômade ou sedentária), a cerâmica, o aldeamento, a irrigação, as 'artes' visuais da pintura e da escultura, cosmogonias, religiões, rituais de mortos, práticas mágicas, e - quiçá como preâmbulo de um novo uso muito próspero em breve futuro para cada língua -a literatura avant la /ettre, a literatura antes da littera, que por sua vez prenuncia a maior revolução linguageira até hoje reali­zada pelo homem, a escrita. Tratar-se-ia, já então, de um desenvolvimento humano desnivelado, desigual, assimétrico, da história dos homens, como decorrência inelutável do isola­mento dos .grupos humanos ao longo de toda a evolução multimilenar anterior.

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O segundo processo da expansão humana começa en­tão, quando, através da difusão cultural e já não, necessaria­mente, a cissiparição, as 'conquistas' tecnológicas de certos grupos passam a outros, instaurando-se a troca de excedentes entre os grupos, o mercado. Desde o início, essa troca de excedentes foi, concomitantemente, troca de palavras, tão cedo, em cada língua, o enlace do significante com o significa­do com o referente - noutros termos, do vocábulo sonoro com a idéia a ele associado com a coisa ligada a ambos - foi · internalizada como 'natural'.

A partir do momento em que a expansão deixou de ser necessariamente feita por cissiparição, deve ter havido uma relativa 'parada' no estado geral das línguas sobre a Terra. Com 1 O milhões de indivíduos, subdivididos em grupos médios de 1.000 a 500 indivíduos (entre os grandes e os pequenos grupos dessa relativa modernidade, já que para os inícios do primeiro momento do processo temos que admitir grupos de até 40 indivíduos - como os há nos meios vestigiais do paleolítico no mundo moderno, e no Brasil), tínhamos então cerca de 20 mi!" línguas - no provável ápice do processo diferenciador. A difusão não acarretou, necessariamente, a multiplicação nem dos grupos nem das línguas, entre os limites dos 1 o milhões e dos 50 milhões, há 8-7 mil anos. Já nesse então começam a emergir nas áreas mais densas do mundo-povoado os traços distintivos de sociedades novas - os chamados impérios arcaicos. v ·

Tratava-se, com os impérios arcaicos, de processo civí-\ lizatório - predatório, homicida, genocida, escravizador e guerreiro-, o que demandava uma organização social inova­dora, com classes diferentemente usufrutuárias da produção e diferentemente engajadas no processo produtor. A tecnologia então atingida é fonte de um saber acumulado: o saber acu­mulado precisa ser preservado: nasce a literatura dita oral, com recursos mnemOnicos que se consagrarão nas futuras literatu-

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ras escritas - isotopias ou igualdades fonéticas (rimas, alite­rações, cognatismos, reiterações, ritmos, estrofes, versos, ver­sículos etc.) , isossemias ou igualdades de sentido (paralelis­mos, refrães, estribilhos, anexins, sapiências, fórmulas - má­gicas, encantatórias, curativas etc.) . SociEjdades eminente­mente hierárquicas, cedo divinizam a pessoa do chefe e sua famnia, mercê de duas seções eminentes do processo socie­tário - a dos clérigos e a dos guerreiros, os que preservam e transmitem (e não raro fossilizam) o saber e os que expandem a civilização, cobrando o preço sobre os bens rapinados e as benesses disseminadas.

Desde então, num crescendo que é moderníssimo -entre o. século XV e o presente -, o processo civilizatório multiplicou, explosivamente, o homem (matando-o, paralela­mente, em quantidades impensáveis nos quase dois milhões de anos anteriores) ; multiplicando os saberes e fazeres, e liquidando, progressivamente, as línguas - reduzidas, hoje, a entre 4 e 1 O mil línguas, segundo os critéiros de sua caracteri­zação e, assim, de sua contagem e delimitação territorral.

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O CIMENTO HUMANO

Nesse processo complexo, o que talvez mais ressalte é o cimento da identidade, em oposição ao corrosivo da diferen­cialidade, numa correlação estreitíssima com o processo lin­guageiro- e tão estreita que não se encontrará outra que com ela possa competir. A identidade foi a forma física e espiritual

;. por que cada grupo enfrentou o futuro, com três- digamos­princípios básicos: 1) nós somos nós, porque nos falamos e nos entendemos, 2) porque, ad~mais, nos defendjjmos em comum, com nossas práticas, tanto da morte, quanto da fome, da sede, das intempéries, dos animais, dos vegetais, nocivos, e 3) porque, sabemos, nós sabemos defender-nos, pois sabe­mos que o que não é nós nem nosso pode ser, quase sempre nos é nocivo. Num ecúmeno potencial praticamente infinito, sermos nós foi - durante um larguíssimo lapso de tempo- a mera suspeita de que havia os outros, aqueles, eles, os que presuntivamente seriam, eram nocivos. O processo de difusão - milênios e milênios depois-, criando relações exteriores de escambo, foi amenizando esse pânico universal arcaico e enraizado, mas o processo civilizatório não fez senão recrudes-

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cê-lo. Nenhum medo arcaico como esse - fonte de coesões, de solidariedade, de amparo recíproco, de nações e, concomi­tantemente, fonte de nacionalismos, nazismos, fascismos e totalitarismos - superou os valores éticos com que o homem tem buscado unir-se para a esperança da edificação de um bem comum. Não é surpresa que nações bem cimentadas ­mas extensas, e, assim, necessariamente com índices mais ou menos ricos de diferencialidades - tendam a explodir em reivindicações e atritos tópicos, a quaisquer momentos em que as carências, de qualquer natureza, se manifestem mais do que as abundâncias.

Tenhamos presente, para consideração do tópico que a seguir leremos, que as grandes organizações políticas impe­riais, desde a mais remota antiguidade, se cimentaram sobre a difusão de uma língua sobre inúmeras línguas, muitas das quais têm desaparecido exatamente por causa desse fenôme­no. Isso deve ter ocorrido na China, na Índia, com Roma, pom a Inglaterra, com Portugal, com a Espanha, com os Países Baixos mesmos, com a França, com a Rússia, com o Brasil ­cujo processo civil izatório foi acompanhado, sem exceção, de glotocídios, isto é, de matanças de línguas, já cruenta, já incruentamente, já com sangue, já sem sangue .

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QUANTAS LÍNGUAS HÁ HOJE EM DIA?

Não há uma só resposta para a questão. Consoante for o nível de aprofundamento que se dê à questão, poder-se-á ler em duas obras informativamente idôneas que a Índia (como subcontinente) tem 100 ou 1.615 línguas; que Angola tem sete como 63 línguas; que a União Soviética tem 35 como 119, como a China tem 23 como mais de 150 línguas. Não raro, dir-se-á que o Brasil é urt:~a nação unilíngüe - de uma língua só - ou uma nação multilíngüe - com cerca de 150 lfnguas .

. No caso do Brasil, por exemplo, no número maior estarão incluídas as línguas de coiOnias estrangeiras emigrad~s para o Brasil e ainda não assimiladas lingüisticamente - caso que exemplifica um dos aspectos apenas do problema da enume­ração das lfnguas, pois o outro é o da enumeração das línguas apenas brasmcas e o terceiro das línguas amerfndias com presença no Brasil.

O critério mais genericamente seguido para considerar duas variedades linguageiras como duas línguas é o da inter­comunicação. Se os usuários das duas variedades - ainda

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que normalmente afastados - se ~ompreendem reciproca­mente sem grande esforço, a presunção é de que se trate da mesma língua, sendo as variedades tomadas como dialetos da mesma língua. É o que, de certo modo, ocorre com o galego em relação ao português (e reciprocamente, é óbvio) . Mas, no mundo moderno, com a intensificação do processo de cultu­ralização linguageira através do ensino, há um número cres­cente de indivfduo.s que se tornam aptos a ente.nder outras línguas genealogicamente afins, mesmo quando não as te­nham aprendido ou estudado. Desse modo, parte-se do pres­suposto de que aptidões pessoais, variáveis na captação de línguas estrangeiras, não são critérios aceitáveis para a sepa­ração de línguas. De outro lado, na grande maioria dos casos, os fronteiriços de duas lff!guas, mesmo quando não genealo-

. gicamente afins, costumam desenvolver uma espécie de dia-lato ou de crioulo que lhes permita a intercomunicação oral

·praticamente fácil , para enfrentarem os imperativos do convívio intermitente ou freqüente, sem recurso a uma só das duas línguas ou a uma terceira. No universo da oralidade, isto é, das línguas não escritas ou dos indivíduos falantes de línguas escritas mas sem recurso a estas, as situações de contigüidade territorial e física são, assim, em geral resolvidas. Isso quer dizer que, de duas línguas contíguas nas franjas, os usuários dos seus núcleos centrais, quando se defrontam episodicamente, não estão aptos para a intercomunicação.

Vão aqui dois tipos de estimativas, um, maximalista, outro, minimalista, para as línguas do mundo atual : América do Norte- 52/87; América do Sul e Antilhas - 253/320; Europa - 38/67; Ásia- 870/2.450; Oceania - 700/3.200, e África -1.200/3.100 - donde os totais 3.113 (mínimo) e 11 .224 (máxi­mo) .

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UM POUCO DE NOMENCLATURA

Há uns poucos substantivos ligados à noção de 'língua' que convém aqui fixar para as nossas consideraçõ~s a seguir: língua, dialeto, subdialeto, co-dialeto, estrato, substrato, supe­restrato, adstrato, gíria, variante, linguajar, crioulo, tronco, ra­mo, grupo, famma. Essa relação pode ser muito aumentada, mas complicará o nível a que devemos limitar-nos, para nos entendermos.

Embora todos saibamos que linguagem (fr. langage, ing. language, it. linguaggio , esp. lenguaje) seja derivado do lat. lingua (port. língua, fr. langue,- ing. tongue -, it. lingua, esp. língua) , o fato é que com o primeiro designamos algo mais abrangente do que com o segundo: a linguagem é um fenO­mano. geral dos homens, e tão geral que - por equivalerem aos elementos físicos e mentais com que os homens se inter­comunicam - é empregada figuradamente para com quais­quer outros seres vivos que não apenas homens - a lingua­gem das abelhas, dos macacos, dos vacuns, dos cães etc., sem falar de códigos inter-humanos como a linguagem das flores (com que se namorou num passado não remoto) , a

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linguagem dos dedos (com que os operadores de bolsa arris­cam milhões), a linguagem das fumaças, das buzinas, sem falar da semafórica, telegráfica, semiótica médica e que sei eu. Já com lfngua designamos, pelo menos, 1) o órgão que na nossa boca (e, analogicamente, na boca de um sem-número de animais, bichos, bestas, alimárias etc.) nos ajuda a mastigar e deglutir, 2) nos permite, por sua forma, compará-lo a algo, como um trecho de terreno, e dizer que em certa região há 'línguas' de terra que .. . ; 3) nos permite modular ou modelar os sons e ruídos com que falamos (e, supomos que, em outros animais, os ajuda a emitir sons e ruídos com que se comuni­cam) , 4) nos permite distinguir entre homens e povos o fato de que estes, ao usarem da língua3, o façam de forma distintiva, porque com ela cada povo emite, ao falar, os sons admitidos no seu modo próprio de falar: essa lfngua3 +4 é a que, dominan­temente, nos interessa aqui.

Mas o fato é que, a partir de certo momento da história, as línguas puderam, em alguns casos, atingir um número de usuários e numa extensão tão maiores que antes, que, em conseqüência, a 'mesma' lfngua - isto é, preservando-se a intercomunicação entre os seus usuários - a 'mesma' lfngua acusou diferenças de formas e de sentidos de entre os lugares em que era falada. Neste momento vive-se 'esse' transito, cujo início foi num passado remoto: os nossos desgraçadfssimos ianomâmis falam uma só língua, mas, dispersos como povo da floresta em pequenas aldeias de 30 a 60 (ou pouco mais) ianomâmis, acusam diferença de sua mesma lfngua quando de aldeias mais distantes e menos convivE!ntes. A esse processo de diferenciação - horizontal - damos o nome de dialetação, tomando cada grupo e área diferencial entre si como dialeto (nome grego que os gregos, já pelo século IV a.C., usavam para distinguir esse fenômeno dentro do grego comum daque­le então) .

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Mas a evolução humana tem criado grupos profissionais que, para seus fins profissionais, convivem entre si por muitas horas do dia, criando, assim, para mais rápido e específico entendimento do que fazem, certas palavras e seus sentidos e modos de dizê-los que se diferenciam, segundo as profissões. Ora, criam-se assim, também, dialetos: mas como estes po­dem coexistir praticamente no/mesmo espaço (em diferentes andares de um edifício, por exemplo) , essa diferenciação dia­letal é dita vertical.

Em quaisquer desses dois casos, emprega-se por vezes o vocábulo subdialeto para designar matizes diferenciais den­tro de cada dialeto. Já co-dialeto é de emprego mais raro: ocorre, por exemplo, dizer que o galego e o português são co-dialetos, no sentido de que, originalmente desenvolvidos num mesmo pequeno território com iguais características, co­meçaram a expandir-se, passando a ter diferenças dialetais­mas quais diferentes de qual? A resposta - impossível - foi co-dialeto.

O leitor estará notando que sigo palavra a palavra os substantivos propostos de início; assim, continuemos: estrato, substrato, superestrato, adstrato são conceitos ligados ao di­fusionismo linguageiro: quando duas (ou mais) línguas passa­ram a influenciar-se reciprocamente, seus elementos comuns de uma origem só foram (são) considerados estratos; mas, se de origem não comum, são considerados com um prefixo superpositivo ou sotopositivo: rio português, por exemplo, além do estrato latino (ou melhor, românico) , pode-se admitir um superestrato germânico, outro, árabe, outros, das línguas românicas (castelhano, provençal, catalão, francês, italiano) , das línguas coloniais (asiáticas, ameríndias, africanas) , das línguas imperiais (inglês, alemão, russo), das línguas culturais (latim - cfe novo -, grego, o largo e~pectro do chamado latim científico) ; e pode-se admitir um substrato, das línguas existen­tes anteriormente nos lugares em que o latim conquistador veio

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a prevalecer, chamado, por isso, pré-romano (no caso das línguas românicas da península ibérica, substratos ditos pré­romanos, ibéricos e às vezes até bascos/vascos/vasconga­dos/euscades- o que, no fundo, é o mesmo) .

Adstratos são, assim, influências recíprocas de línguas contíguas ou fronteiriças, situação que deve ter principiado -suavissimamente - num passado muito remoto e que se vem intensificando com o passar dos tempos; baste-nos considerar que, até poucas décadas atrás, a 'contigüidade' era um fenô­meno geográfico, que passou a gráfico e hoje é hertziano ...

Se nas formas ágrafas das línguas do passado remoto, de sociedades pouco diferenciadas (sem diferenças de clas­ses, sem divisão do trabalho, sem grande número de usuários, sem grandes extensões físicas entre eles, mas com grande . dependência recíproca para a sobrevivência), não nos é lícito ver variedades notáveis de uso da mesma língua, nas línguas das sociedades complexas, crescentemente complexas, de 1 O mil anos para esta parte, se reconhecem gírias - modos de dizer e de criar ou de empregar palavras para uso de subgru­pos, não raro até marginais ou criminosos Oargões) - ou meramente variantes, isto é, modelizações de uso de uma língua que, não extensivas, se desenvolvem por distanciamen­tos horizontais ou verticais; chega-se, enfim, aos linguajares, formas de dizer correspondentes a diferenças particulares den­tre diferenças dialetais, menos extensas (o linguajar carioca se distingue do dialeto fluminense que se distingue do dialeto do sudeste que se distingue do dialeto sulista brasileiro).

No mundo moderno desenvolveram-se línguas ditas crioulos, que vêm tomando importância crescente no mundo das relações sociais, comerciais, de inserção de comunidades quase-marginais no universo dos intercâmbios int!'lrnacionais: são, em geral, formas dialetais de uma(s) língua(s) de conquis­tadores, assimiladas por povos dependentes ou conquistados que tenham perdido sua língua, tornando-as, assim, 'sua' lín-

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gua entre povos dependentes e de línguas diferentes. Os pidgins (basicamente, business {english]), são exemplos mais adaptados ao comércio entre povos coloniais de línguas ditas étnicas.

No mundo moderno, a partir do momento em que os estudos lingüísticos se desenvolveram no século XIX como gramática comparativa e como gramática histórica e como gramática histórico-comparativa, a classificação genealógica das línguas- baseada na depreensão de equivalências mór­ficas e semânticas e morfossemãnticas entre palavras e grupos de palavras de duas ou mais línguas diferentes, mas graças a isso geneticamente, isto é, genealogicamente, isto é, com origem comum e evolução própria mas exibidora dessa comu­nidade de origem -, a partir de então a classificação genealó­gica das línguas passou a _gozar de um alto estatuto de credi-

. bilidade, de cientificidade. E que tal tipo de classificação, quan­do fundamentadamente estabelecida, superava as controvér­sias que podiam ser geradas por classificações impressionis­tas - como eram, por vezes, as classificações estruturais do tipo de línguas flexionais; línguas monossilábicas, línguas to­nais, línguas aglutinantes, línguas sintéticas, línguas analíticas - classificações essas ainda correntes, mas só válidas quan-

-do acompanhadas de rica matização do sentido em que são tomadas.

Na base, pois, das classificações genealógicas, admite­se que um tronco seja a forma presumidamente mais recuada de línguas que tenham uma só origem tanto quanto possível bem estabelecida com base no passado, seja ele documentá­vel, seja apenas hipoteticamente reconstituído; que r.amos se­jam derivações do tronco, com duas ou mais línguas mais afios historicamente entre si (o indo-europeu é um tronco com vários ramos, um dos quais é o ítalo-céltico, que por sua vez se dicotomizou entre os sub-ramos itálico e céltico; o itálico, por exemplo, se dividiu em várias línguas, como o asco, o úmbrio,

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o latim, que, este, especialmente afortunado, é a fonte da famma românica, em que entram o francês, o espanhol, o italiano, o rético, o romeno, o sarda, o catalão, o provençal, o galego-por­tuguês) .

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UM COTEJO: PASSADO-PRESENTE

Se tomarmos os dois extremos de eixo do homem lingua­geiro, teremos - no presente - dois estados de língua (de base oral) : o primitivo (primitivíssimo) e o presente (muito desigual, tanto, que nos seja permitido levar em consideração, aqui, só - por exemplo- o inglês).

O estado de língua primitivo é normalmente caracterizado por um número restrito de usuários (entre- digamos- 40 a 200) ; é de aquisição societal ou sociétária (aí ou então não se aprende a língua, porque não há escolas, nem professores, nem alunos, ainda inúteis à organização social) ; é língua mini­mamente diferenciada entre os usuários (todos os 'adultos' ­a partir dos 12-13 anos de idade, e não falemos de excepcio­nais, se os há, nem prematuros nem tardios - se identificam na luta pela sobrevivência), tanto nas gramáticas, quanto no léxico; todos os usuários têm, na memória, internalizados todas as regras, todos os fonemas, todas as palavras, todos os saberes do clã ou grupo ou unidade coletiva; essa unidade coletiva é - possivelmente, mais, provavelmente - de forte tendência às mudanças, na diacronia, com intensas modifica-

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ções linguageiras, no sistema de sons, de formas, de sentidos, com criações e perdas de palavras, mas jamais toma conheci-

. menta disso, tanto como indivíduo quanto como grupo - há, nisso, que levar em conta que 'isso' que se chama, psicologi­camente, tempo; hoje em dia, é tão denso e tão intenso que­figurativamente- um ano de hoje em dia valia (só?) dez anos de então - como conjunto de vivências, existências, essên­cias, experiências, inteligências, exigências, fluências e ... ên­cias idas, vividas, vivíveis, vivituras. A quantificação e qualifica­ção desse estado de língua primitivo se deve ter encorpado lentamente, com um tendencial crescente à assimetria de re­cursos linguageiros, no uso pelo menos, de tal modo q·ue muitas unidades grupais se foram mantendo no estado inicial, enquanto outras, poucas, se iam inovando e enriquecendo de formas e conteúdos.

Antes do estado de língua presente exemplificado pelo do inglês, a humanidade experimentou um sem-número de estados de língua intermediários, quase todos dos quais ainda presentes em meio às mais de 1 O mil línguas existentes hoje em dia, todas, relativamente, mais, ou menos, 'modernas' ­no estoque das palavras, no número de usuários, mais, ou menos, capazes de aceder a esse estoque.

O estado presente do inglês mostra-nos que tem como usuários algo como 1.000 milhões (1 bilhão) de indivíduos, 300 milhões dos quais são vernáculos (isto é, nascidos 'dentro' do inglês), 700 milhões que usam do inglês como segunda língua, de 'cultura', para negócios, conhecimento e aprendizado, de ciências e técnicas inacessíveis a eles se por meio das respec­tivas línguas, ágrafas ou de baixo desenvolvimento gráfico; é, o inglês, por isso, de aprendizado institucionalizado universal­mente, mercê de grandes redes de escolas, professores e alunos; é enormemente diferenciado (dentro de espantosa unidade) em dialetos ágrafos ou cultos horizontais e um núme­ro ponderável de dialetos verticais; seus usuários, todos, são

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senhores parciais dessa sua língua, aumentando, mais, ou menos, seu senhorio na dependência do acesso a fontes de referência, leituras, audições e teleaudições; seus usuários, em função do estudo sistemático da língua, têm dela um domínio prático em função também do cabedal teórico aprendido, permanentemente reciclado em grande fração dos usuários; a líng!Ja serve-lhes num espectro largo de usos, práticos, dialo­gais, especulativos, científicos, técnicos, filosóficos, lúdicos, em situações formais, informais, hedonísticas, emocionais, sentimentais, racionais, irracionais, fortemente marcadas, na esteira de sementes quase estéreis disso tudo no estado de língua primitivo.

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CLASSIFICAÇÃO DAS LÍNGUAS: ESTADO ATUAL

A chamada lingüística românica, por exemplo, é objeto hoje em dia de controvérsias de pormenor, relevantes que sejam, mas que se integram num conjunto harmónico de fatos gerais que não se contestam, ainda que possam ser aprofun­dados e consolidados. Não se contesta a validade de seus estudos, pesquisas e conclusões, no que se refere, em conjun­to, ao estabelecimento das origens e evolução das línguas românicas, isto é, as 'nascidas' na Europa em decorrência da evolução oral do latim dos conquistadores romanos, nos con­fins do mundo europeu, onde apareceram, no 'seu' Ocidente, línguas dessa proveniência, ficando uma só isolada nessa compactação, o romeno, que também não é objeto de dúvida quanto à sua romanicidade. Esse modelo, quando estudado, teve grande facilidade de erguer-se graças ao fato de que o latim teve documentação escrita a partir do século III a.C., continuando a ser escrito praticamente até hoje, pelo menos para certos fins, embora tenha deixado de ser falado como latim comum, na România conquistada, já pelo século IV-V

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d.C., a partir de quando se admite a existência do românico, desde os inícios diferenciados dos feudos europeus.

Como a documentação das formas românicas, isto é, já não latinas, se faz cedo (mais ou menos no século VII-VIII d.C.) no latim cartorial , e como as línguas ou dialetos românicos começam a ter estatuto escrito mais ou menos a partir de então (o francês, por exemplo, já no século IX, o português, por exemplo, só no século XIII), a tarefa da lingüística românica foi , assim, graças à documentação escrita, muito mais fácil do que outra genealogia, a do indo-europeu.

Mas ainda assim o indo-europeu se apresenta como forma de conhecimento muito mais documentado, se compa­rado com a de outros troncos. O tronco banto, por exemplo, na África, é exemplo de como a falta de documentação escrita no passado cria dificuldades para a classificação genealógica banta na sua historicidade, embora não pairem dúvidas quanto à sua vinculação comum e afinidades.

Comparado ao românico, o indo-europeu era (e é) mais complexo, pois enquanto no românico a origem (o latim) era ricamente documentada, como o foram, em grande parte, as fases de sua evolução, no caso do indo-europeu chegava-se, pela reconstituição comparativa, a uma língua totalmente hipo­tética, muitas vezes com fases intermediár'ias também hipoté­ticas e sem documentação gráfica. É verdade que, para o latim, se a documentação era inequívoca (quando inequívoca) , mais não recuava senão a pouco mais do século III a.C., enquanto que para o indo-europeu o recuo vai para algo como o Vil-VI milênio a.p.

Hoje em dia, com certo grau de certeza ou de alta proba­bilidade genealógica, podem-se propor os seguintes troncos ou grupos: 1) o indo-europeu, 2) o camito-semítico-cuchítico, mais sinteticamente, o camito-semítico, 3) o dravídico e, mais 4) as línguas aglutinantes, 5) as línguas tonais asiáticas, 6) as línguas da África negra, 7) o malaio-polinésio e o cmer, e 8) as

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línguas da Oceania, a cujo conjunto adjungiremos 9) algo sobre os pidgins e crioulos.

O planisfério esquemático deste livrinho busca dar conta dessa distribuição atual, contemporânea. Mas não leva em conta, por subentendê-la, que o continente americano e o australiano são, hoje em dia, de quatro ou cinco línguas de cultura (o inglês, o espanhol, o português, o francês e o neerlandês), enquanto que a Austrália e a Nova Zelândia são apenas do inglês - fatos esses que se ligam a uma extrema modernidade, os últimos quatro séculos.

O indo-europeu

Ocupa larga extensão, suas línguas são faladas - com seus prolongamentos, na África (inglês, francês, português, neerlandês) e na Oceania (Austrália e Nova Zelândia, com o inglês) e na América- pela metade da humanidade.

No indo-europeu se incluem (sem considerações quanto às intermediações históricas) 1) a família das línguas ditas latinas ou românicas, 2) a das línguas germânicas, 3) a das línguas célticas, 4) a das línguas eslavas, 5) o grego, 6) o albanês, 7) o armênio, 8) o cigano, 9) as línguas bálticas, 1 O) o indo-irânico (subdividido em a) línguas iranianas e b) línguas índicas) e 11) o tocariano, morto sem descendência.

Note-se que, de logo, cobrem povos de forte diferencia­ção étnica ou racial (sem conotação de valor), cujo espectro temporal, relembremos, vai de 7-6 mil anos a.p.

O que as caracteriza são, grosso modb, sistemas flexio­nais, mais ou menos ricos, com declinações (nomes, prono­mes), conjungações (verbo), categorias de número (singular, dual, plural) , um menor conjunto de palavras de forma fixa

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(advérbios, preposições, posposições, conjunções) -sendo as flexões expressas de regra como desinências terminais.

. Das famílias indo-européias, em primeiro ou segundo grau de descendência, já foram referidas acima as latinas ou românicas. As germânicas incluem o inglês, o alemão, o neer­landês, o africanar, o alsaciano, as línguas escandinavas (danês ou dinamarquês, norueguês, sueco, islandês, feroês) e o íidiche (eixado basicamente no alemão) . As línguas célticas, que tiveram no passado uma extensão geográfica muito maior, compreendem o bretão, o irlandês, o galês, o escocês. As línguas eslavas incluem t> russo, o bielorrusso, o ucraniano, o búlgaro, o esloveno, o servo-croata, o tcheco, o eslovaco, o polaco. As línguas bálticas são o letão e o lituano. O albanês é língua sobrevivente, de estatuto genealógico diretamente en­troncado ao indo-europeu, mas falado por pequeno número de usuários, estabelecidos desde alta antiguidade na atual Albâ­nia, com rebentos no território de Kosovo, na Iugoslávia, e emigrantes em países vários do Mediterrâneo e nos EE.UU. da América. ·

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O grego, embora espacialmente limitado à Grécia, hoje em dia - mal grado a expansão que teve, por momentos, com o império de Alexandre Magno e a cultura e civilização helenís­ticas - é uma das línguas mais gloriosas dentre todas, graças · a uma cultura escrita a partir de 3.500 anos a.p. e ao floresci­mento literário, poético (Homero, Safo) , dramatúrgico (Ésquilo, Sófocles, Eurípides) , filosófico (Platão, Aristóteles) , do século Vl .ao III a.C. De certo modo, sua influência sobre o latim foi culturalmente relevante, possibilitando a emergência de um latim científico (em grande parte fundado sobre o léxico grego) , com que grande parte da neologia científica do mundo moder­no vem sendo forjada.

O armênio ou armeniano - cujos nacionais se dizem hay, donde o nome do país, Hayasdan, e da língua, o hayeren -, embora isolado como o albanês ou o grego no universo

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indo-europeu, acusa, entretanto, afinidades com o grego e com o irânico ou persa.

O cigano -língua de uma população nomádica, errante, de cerca de 3 milhões de indivíduos- teria advindo da Índia setentrional, donde teriam emigrado no século V d.C. em dois ramos, o egiptano, pelo Egito, e o da Europa central - os gypsies na Inglaterra, gitanos na Espanha.

As línguas bálticas, a que já nos referimos, são o letão e o lituano, de 3 e 4 milhões, resgectivamente, e tidas como estruturalmente mais próximas do indo-europeu. Até o século XVIII, o velho prussiano, também língua báltica, foi falado (e escrito), tendo desde então entrado no rol das línguas mortas.

O indo-irânico deve ter-se cindido em irânico e índico muito cedo, ficando o irânico entre o índico (Índia adentro), a leste, e os ramos indo-europeus, a oeste. O nome nacional do irânico, como língua, é farsi, do mesmo étimo de parsi, base do nome clássico Pérsia. Os partas da Antiguidade eram da mesma origem, pelo menos lingüística. No Irã presente há importantes minorias de língua turca - azeris (base do Az.er­baidjão), turcomenos (base da Turcomênia, a leste do mar Cáspio), casgai (de perto de Chiraz) : daí, evitar-se o termo

· iraniano, cabível como etnOnimo (nome nacional do povo) extensivo, preferindo-se o glotOnimo farsi/parsi/persa. São desse grupo irânico, além do farsi ou persa atual, o asseta, o curdo, o tadjique, o baluche e o pastu, todos situados no Irã, mas com transbordamentos em todas as fronteiras. Islamiza­dos no século VIII d.C., convertidos a partir de então da religião zende (de Zoroastro), incorporaram ao persa um grande nú­mero de palavras árabes (e o árabe, por sua vez, incorporou um bom número de palavras persas), num trato cultural de duas línguas históricas de grande pujança literária.

O índico - como designação geral das línguas indo-eu­ropéias da í_ndia - ocupa grande parte do subcontinente

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indiano, cuja parte meridional é sobretudo de línguas dravfdi­cas. Do ponto de vista oficial, administrativo, a Índia, a União Indiana, tem treze grandes línguas, com mais cerca de 50, faladas por mais de 100 mil usuários cada uma. Mas a esse número relativamente pequeno,. acrescentam-se, para mino­rias de forte historicidade, algo como entre 1.200 a 1.600 línguas outras, não intercomunicantes. Fora da União Indiana, são línguas relevantes do mesmo tronco índico o urdu - no Paquistão -, o bengali - em Bangladesh -, o nepalí - no Nepal - e o cingalês - no Ceilão, isto é, Sri Lanka -, cada um dos quais têm variantes não raro reputáveis como línguas autOnomas.

A mais antiga língua indo-européia da Índia, por conse­guinte, do índico, parece ser o védico, falado por árias nOma­des pelo 11 milênio a.C. O sânscrito, cujo esplendor literário se. situa entre 1.soo ·e 300 a.C., serviu de fonte documental por excelência para a teoria histórico-comparativa de que emergiu a reconstituição do indo-europeu de base. A partir da decadên­cia do sânscrito, os chamados prácritos começaram a preva­lecer como línguas faladas, de tal modo que o sânscrito só pOde manter o seu estatuto moderno de língua oficial (não a língua oficial) na União Indiana graças ao seu brilhante acervo de tradição cultural escrita e a uma minoria muito cultivada de hindus que o preservam, cultivam e protegem. Como outras línguas indo-européias da Índia, são relevantes o pandjabi, o caximiro, o hindi, o criia, o marati, o gujarati ou gujerati, o sindi. O hindi, computado com o urdu (de alfabeto árabe) O untos, são chamados hindustani), com o pandjabi e o gujàrati, conta cerca de 370 milhões de usários, para mais, caso em que é a terceira ou quarta língua do mundo, em termos de número de usuários (após o chinês, o inglês e, eventualmente, o espanhol) .

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O camito-semítico-cuchítico

Trata-se de um tronco de denominação recente, tirado de Sem e Cam (Cham), filhos de Noé; já Kush, Couch, Kouch (e outras variantes gráficas) seria filho de Cam, teria vivido ao sul do Egito antigo e dado seu nome à Etiópia e regiões circunja­centes pelos captas, os antigos egípcios. Há, assim, aí, agru­pados, três subtroncos ou subgrupos, o semítico, o camítico e o cuchít ico - desde a África do norte até as fronteiras do Irã, tocando, para o sul, a África negra, de que uma das línguas, o hauçá, é em geral relacionada com esta famnia.

O semita primitivo, do VIl-VI milênio a.p., é assim contem­porâneo do indo-europeu primitivo - na hipótese mais aceita entre os lingüistas histórico-comparatistas. De sua cissiparição e difusão e dialetação, na Ásia menor e península arábica, dialetos vários, alguns dos quais se alçaram a línguas históri­cas relevantes, entraram na história, como o árabe, o hebraico, o aramaico - este, que foi a língua de Cristo, é ainda falado por alguns milhares de sírios ao norte de Damasco.

As línguas semíticas apresentam, em geral, um sistema de consoantes muito rico e diferenciado- havendo-as 'puras', 'enfáticas', 'aspiradas', 'guturais' , 'uvulares'. As palavras têm, em geral, uma base dita triliteral, triconsonântica; de tal arte que tanto as flexões como certas derivações se formam 'entre' as três consoantes de base, com elementos prefixados e/ou sufi­xados. Categorias de gênero (masculino e feminino), de núme­ro (singular, dual, plural) , declinações e conjugações permitem presumir certa sistemática estrutural anterior ao semita e ao indo-europeu.

O islamismo fez do árabe - língua semítica da península arábica- uma língua hoje falada por cerca de 160 milhões de usuários, mas com influência, através da religião, sobre cerca de um bilhão de crentes. Língua de alta literatura do século VIII

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ao XV d.C., com séculos subseqüentes ditos obscuros, assis­te, a partir dos fins do século XIX, a um renascer literário e científico, que vai em crescendo.

A expansão do árabe através do lslam ('submissão' a Deus) levou-o a ter uma grande territorialidade, que se acom­panha de dialetação - em dois ramos, os dialetos do oriente (mashreq) e os da África do norte (maghreb 'ocidente'). Os séculos obscuros tenderam a afastar mais e mais os dialetos, o que a modernidade tem buscado superar, com o incremento de um árabe comum escolar calcado sobre o árabe corãnico - do Corão ou Alcorão, livro sagrado do lslam, ditado pelo seu profeta, Maomé, no século VIl d.C. -; tornado cada vez mais eficaz tanto na língua escrita quanto na língua falada e nos meios eletrônicos de comunicação de massa, com audiência e televidência pan-arábica.

Note-se que o maltês é uma língua provinda do árabe: com efeito, expulsos da Sicnia em 1250, instalando-se na ilha de Malta, os árabes tiveram dialetação própria que, no entanto, não o distanciou do árabe da Tunísia, embora tenha absorvido no léxico um bom contingente de italianismos e, mais recente­mente, de anglicismos. O maltês é - fato único na arabofonia - escrito em caracteres latinos.

O hebraico é tipicamente semítico, com um sistema con­sonantal muito comparável ao árabe (tendo, ademais, o /p/ e o /v/, desconhecidos do árabe) , com raízes lexicais basicamente triconsenãnticas, ademais de uma estrutura gramatical compa­rável. Mas sua antiguidade documental é muito anterior à do árabe, por 1.500 a.C., bem como sua releyãncia espiritual, como povo e língua criadores do monoteísmo - de que brotaram o cristianismo e o islamismo, monoteístas. É, entre­tanto, digno de realce o fato de que o hebraico sempre foi a língua de um povo só (muito ao contrário do árabe) , que ao longo da história esteve a ponto de desaparecer, só sobrevi­vendo, parece, graças a ser um/o 'povo do Livro', que lhe foi o

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cimento nacional mesmo quando perdeu território e língua. O hebraico, que chegou a ter quase o estatuto de língua morta, é hoje a língua nacional oficial de Israel (juntamente com o árabe, para a população palestina) - realizando algo sem preceden­tes na história da humanidade, a ressurreição de sua língua (obviamente, mercê de traços modernizadores) .

No semítico incluem-se ainda línguas que foram da Assí­ria, da Babilónia, de Canaã, de Ugarit, da Fenícia, de Cartago, bem como o amárico, língua oficial da Etiópia contemporânea, assim como o tigrenha, também da Etiópia, e o gueze, língua litúrgica da igreja cr-istã etíope, talvez a base semítica de outras línguas etíopes atuais.

O camítico compreende as línguas berberes da atualida­de, assim como o egípcio antigo, o copta. As línguas berberes, que acusam certas analogias gramaticais com o semita, acu­sam também diferenças, sobretudo quando se descartam ca­racterísticas que podem ser atribuídas à forte pressão arabizan­te que sofreu há séculos e a quem vem resistindo. As línguas berberes são o cabila, o chauí, o rifenho ou tamazite e o tamacheque, a língua dos tuaregues ou 'homens azuis' do Saara.

Por fim, dentre as cuchíticas, do chamado Corno da África, há que citar o somali, o atar e o gala ou oromo, pelo menos.

As ·línguas dravídicas

São quatro línguas principais do subcontinente indiano, na sua parte meridional, muito aparentadas estrutural e lexical­mente entre si : o tamul, o teluga, o malaialame e o canada (dito também canara) . Há outras menos importantes, como o cuí, o gonde, cada uma com menos de 5 milhões de usuários em

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declínio. Há uma língua supostamente dravídica, isolada, no norte da Índia, o brauí, em meio a línguas indo-européias. Isso coonesta a hipótese de que as línguas dravídicas existiam na Índia antes das migrações indo-européias. Mas certos elemen­tos estruturais das línguas dravídicas também permitem supor que sejam um sub-ramo precoce da cissiparição ou difusão do indo-europeu.

As línguas aglutinantes

Sem valor necessariamente genealógico, são chamadas línguas aglutinantes as que ajuntam ao radical , sucessivamen­te, certos sufixos ou desinências que desempenham funções categoriais ou derivativas. Sua relativa homogeneidade, po­rém, permite suspeitar-lhes certa origem comum, que em últi­ma análise as incluiria em troncos mais primevos ainda. Como aglutinantes, ressaltemos o turco, o finês ou finlandês, o hún­garo, o basco, o japonês, o coreano, o mongol e, de um modo geral, as línguas ame~índias .

As línguas turcas

Cobrem uma superfície considerável, desde a Europa até a bacia do Lena, no nordeste da Sibéria. As línguas turcas compreendem o turco da Turquia, o azeri, do Azerbaidjão, quatro línguas das repúblicas soviéticas da Ásia central - ·o turcomeno, o usbeque, o quirguise e o cazaque. O turcomeno está também no Irã. No sul d.o mar Arai acha-se uma língua que lhe é muito próxima, o caracalpaque, assim como no Sinkiang chinês há o uigur, que transborda adentro das fronteiras sovié-

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ticas. Enfim, entre o Volga e os Urais há o tchuvache, o tatar, o basquir e nos confins do Lena o iacute. Ademais, numerosos encraves túrcicos há no mar Negro e no Cáucaso, bem como nas montanhas do Altai. Salvo pequenas exceções, tais línguas constituem um conjunto homogêneo comparável, dizem, ao das línguas românicas.

As línguas fino-ugrianas

As línguas fino-ugrianas são o finês e o húngaro, com origens que devem deslocar-se para o oeste dos Urais. Os húngaros só vieram a estabelecer-se nas margens do Danúbio pelo século IX d.C. , enquanto os fineses e os estonianos se dirigiam rumo do noroeste. É provável que os lapões, de físico muito diferente, tenham adquirido uma língua urálica, que con­servam até hoje. Os samoiedas emigraram para a Sibéria, onde perduram algumas dezenas de milhares. Há ainda um número não pequeno de minorias, ao longo do Volga, como os mor­dves, os comis, os maris ou tcheremissos, os udmurtes - que em conjunto são em torno de 3-4 milhões.

O basco

O basco coostitui no Ocidente europeu - provavelmente em concerto com o etrusco, na Itália, morto - um povo de espantosa resistência à assimilação, ante os falares da Espa­nha e os da França. Acusa, como é de esperar, diferenças dialetais. Acusa também estruturas análogas às das línguas fino-ugrianas ou às caucasianas. Rico de caracteres pouco correntes, seu sistema de numeração, por exemplo, é vigesi-

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mal: para dizer 267, por exemplo, dir-se-á 'trezes vezes vinte e sete'.

O japonês

Com mais de 100 milhões de usuários, o japon~s é, nesta altura, língua de um dos povos· mais desenvolvidos do mundo. Língua aglutinante, sua estrutura a aparenta ao turco, finlandês e outras línguas aglutinantes. Com notação gráfica - ideográ­fica - chinesa, já pelo século IX a.C. o Japão desenvolveu sistemas próprios de grafação, de tal modo que o kanji -ideograma chinês e por isso em número mnemonicamente excessivo- se reduziu a 1.850, com cerca de 800 essenciais, seguindo-se-lhe a produção de um silabário - o hiragana -com cerca de 51 signos ou sinais, acompanhado de outro ­o catacana - usado para palavras estrangeiras recentes ou nomes próprios em geral, estrangeiros. As condições de pres­tígio material e cultural podem fazer do japonês uma língua de brilho internacional, embora a divulgação do inglês, para fins de comércio e relações exteriores, esteja tendendo a pôr o japonês, como língua, na posição de necessitada do concurso do inglês.

O mongol

As línguas mongóis são provindas, ao que tudo permite crer, de dialetações do calca, em número de 25, faladas por pouco mais de 3 milhões de usuários, na República Popular da Mongólia e com transbordamentos na China e na U.R.S.S. -nesta, com os buriatas - mais ou menos 300 mil - e o

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calmuco - mais ou menos 200 mil. Como língua altaica, tem ainda clara relação com o turco, guardando também uma rica harominização vocálica (a presença de uma 'qualidade' em certa vogal da palavra- às vezes, da frase~ contamina todas as demais vogais da unidade em causa).

Aglutinante também, o coreano acusa pouca diferença entre o do norte e o do sul - apesar da separação política existente a partir de 1945. No norte, grata-se a língua com o alfabeto hangul desde o século XV, enquanto o sul pratica também os caracteres chineses. É certo o parentesco do coreano com o japonês - mas é notável a separação lexical. ·o coreano apresenta particularismos dignos de realce que tornam o estudo da língua por estrangeiros muito difícil, como é, por exemplo, o fato de que o verbo muda em função do grau de respeitabilidade do que fala, daquele a quem fala e daquele de quem fala.

As línguas amerínd'ias

No século XV deviam ser faladas entre 200-250 línguas na América do Norte, entre 150-200 no México à América Central e entre 1.1 00-1 .300 na América do Sul e Antilhas. A população global seria entre 30-15 milhões. Hoje, nos EE.UU. da América reconhece-se a existência de 800 mil indígenas, 250 mil dos quais continuam falando seus idiomas de origem, sendo mais importantes, porque falados por mais de 1 O mil pessoas, o grupo algonquim (com o cree e o ojíbua), dois grupos siús (o cheroqui e. o daoot;:i), além do navajo e do esquimó. Restam na América Central umas trinta línguas ame­ríndias e no México pelo menos vinte (maia, nauatle etc.), nove das quais faladas por mais de 100 mil pessoas cada uma. Na América do Sul, além do quíchua/quêchua. (7 milhões) e do

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aimara (3 milhões), restam algo ·como 150 línguas faladas por 4 milhões de pessoas, línguas do grupo aruaque/arauaque, do grupo caraíbajcaribe, do grupo tu pi-guarani e do grupo jê (sem considerar as - até agora - isoladas), havendo entre as brasílicas algumas faladas por poucas dezenas de pessoas.

As línguas tonais asiáticas

Quanto ao número de usuários, as línguas tonais da Ásia quase emparelham com o indo-europeu. O predomínio nesse grupo é do chinês, a que se seguem as línguas do grupo tai, o vietnamita e as línguas do grupo tibeto-birmano. Embora ainda não estabelecido sem dúvidas o seu parentesco, marcam-se por uma base monossilábica e um sistema tonal muito carac­terístico.

· Na China, o chamado chinês mandarino, dito, também, peq1,1inês, língua dos hans (a etnia maioritária) ou chinês co­mum, é vernáculo de 300 milhões de indivíduos e falado por mais 700 milhões como segunda língua, havendo um número cada vez mais reduzido de indivíduos que só falam línguas próprias (100 milhões, estimativamente) . Se os caracteres chi­neses de base ideográfica criam certas dificuldades de apren­dizado maiores que os alfabetos fonográficos, oferecem, em contrapartida, a possibilidade de os usuários entenderem as mensagens escritas, porque podem ser 'lidas' nas demais línguas da China - o que muito contribuiu para a relativa unidade política e cultural do país.

O tibetano é falado dos limites do Paquistão à Birmânia. A sua dialetação foi tão forte que, não raro, embora reconhe­cendo-se-lhe origem comum, a intercomunicação nesses_ dia­latos não se dá ou se dá com dificuldades. Falado por 6-7 milhões de pessoas, só pouco mais de 2 milhões vivem no

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Tibé. No Sutão, de população em maioria tibetana, a língua (ou dialeto) nacional é o jonca, falado por 900 mil indivíduos. No Nepal há importante minoria tibetana, mas a língua oficial ar, já referida, é o nepali, indo-européia. Na União Indiana há cerca de 350 mil tibetanos, já aí radicadós há muito, já refugiados políticos em conflito com o governo central da China.

O birmanês ou birmane é falado por cerca de 25 milhões de súditos da Birmânia, cuja população é de cerca de 40 milhões de pessoas. O birmane e o tibetano são de parentesco inequívoco, mas nas montanhas há minorias de línguas várias,

. muitas das quais ágrafas. A União Indiana reconhece alguns estados ou regiões como unidos, com línguas birmanas de origem, mas próprias, como o carém, o chim (em sentido próprio, não no de 'chinês') e o cachim - todos com intensa dialetação.

Na Tailândia - terra dos tais, como pessoas e como línguas -, o tai não só é a mais relevante língua do grupo tai, senão que, admitidamente, a base das outras línguas do grupo: o laosiano, ,de Laos, o tchuang/juang/zuang (falado por 11 milhões nas províncias chinesas de Guankxi e de lunan) .

O vietnamita é, após o chinês, a mais falada das línguas tonais asiáticas - cerca de 60 milhões. O norte faz uso de seis tons, enquanto o sul os reduz a cinco. Escrito em caracteres latinos desde o século XVIII, por ação de missionários católi­cos, tem rica literatura, que espelha bem a resistência de seu povo ante hegemonias históricas como a chinesa, a francesa, a norte-americana.

As línguas da África negra

A África, em especial a África negra, é teatro de dois tristes privilégios: por 1950, Alfred Sauvy, o grande demógrafo, esti-

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mava em 800 milhões o déficit populacional da África, se não tivesse sido saqueada pela escravização; hoje em dia, acusa entre 1.500-3.500 línguas, num mosaico que em grande parte derivou do jogo de poder das potências coloniais, a partir do século XV e em especial no curso dos séculos XIX e XX (até, mais ou menos, 1960) . Essa pulverização lingüística não quer dizer indignificação linguageira - pois não é o número de usuários que define a 'qualidade' de uma língua. Mas, na medida em que nenhuma língua africana póde ser alçada a grande língua de cultura (por motivos essencialmente políti­cos) , na mesma medida a África teve suas línguas, e respecti­vos povos, sotopostos às dos colonizadores: o português, o inglês, o francês, o neerlandês e, num passado anterior, o árabe, sem referência ao espanhol no norte da África, que iria abocanhar terras americanas e mais além, e sem referência ao camítico e ao semítico, que afinal de contas recuam num passado muito remoto.

As línguas bantas são faladas por mais de 120 milhões de indivíduos. Constituem essas línguas cerca de metade das línguas faladas na África, ocupando quase toda a parte meri­dional do continente, salvo parte da República da África do Sul e da Namíbia. As mais importantes dessas línguas são o suaíle (18 milhões), língua oficial da Tanzânia, com fortes diferenças dialetais, como o quiunguja, em Zanzibar, o quinvita, o como­rês; vem a seguir o quirundi, com a variante quiniaruanda (mais de 8 milhões), em Ruanda e no Burundi; o luganda (4 milhões) , uma das línguas principais de Uganda. Mais para o sul são bantas o zulu (mais de 5 milhões) , na República da África do Sul e no Zimbábue. Acrescentem-se o xosa, as línguas ngunis, as línguas hotentotes, o soto, o lesoto, o quimbundo (3 milhões em Angola), o tchiluba, o nianja, o bembe, o lingala, o quicon­go.

O que é Língua .

Já fizemos referência às principais línguas do Corno da África, cuchíticas, como o gala, o somali, o afar, à parte o américa (semítico) .

O peule, falado por cerca de 13 milhões, deve provir do egípcio antigo e ocupa grande parte do Sael, dentre os quais há os tuculeres (adaptação afrancesada do topónimo Tekrur), peules mestiçados com negros. Pulo, fulbê, fulfulbê são nomes dialetais ou de línguas do peule que, apesar de regionalizações tendentes à dialetação, guarda notável uniformidade relativa.

O uolofe se faz modernamente a língua por excelência da intercomunicação dos senegaleses; embora vernácula de dois milhões apenas, é usada por um grande percentual da popu­lação do Senegal.

As línguas mandês gravitam em torno do Mali. As princi­pais são o bambara, o diúla, o sussu/suçu, o mandinga, o saracolê ou soninca - conjunto com cerca de 7 milhões de usuários.

As línguas voltaicas incluem o mossi/moci (3 milhões) e o senufo.

No golfo da Guiné - da Libéria ao delta do Níger - estão mais de 100 línguas de forte uso tonal, entre as quais o cru (1 milhão e 200 mil usuários) , as línguas cuís (só elas, cerca de 40) , na Costa do Marfim e na Nigéria. Para além da Costa do Marfim, direção sul, há o achanti/axanti, o anhi, o baulê. Mais para leste, há as línguas do sul da Nigéria, em que o ioruba sobressai, falado por cerca de 17 milhões, o ibo (9 milhões) . No delta do Níger, há o efique e o ibibio, mais conhecido como calabar (4 milhões) , de intenso uso tonal. O bamileque, enfim, marca a fronteira entre os bantos e as línguas do golfo da Guiné.

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Entre a Nigéria e o Quênia e a Etiópia, do domínio banto, ao sul, ao deserto, ao norte, há um mosaico de línguas tal, que , não se lhe pôde, até hoje, compor um quadro descritivo apro­ximadamente satisfatório. Línguas de pequenos continentes de

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usuários, de baixo v~lor cultural (até agora, pelo menos), nelas se nota o sango, um como que pidgin ou crioulo, que se vem implantando como língua veicular na República Centro-Africa­na e adjacências.

Por fim, cumpre referir o hauçá, falado por mais de 26 milhões de usuários do norte da Nigéria ao Níger, que, como língua veicular sobretudo de comércio, chega à Costa do Marfim e mesmo à África equatorial. Sua irradiação cultural incorpora-lhe cada vez mais usuários, fazendo-a uma das cinco línguas da .África negra mais importantes. São em maioria muçulmanos, mas já abandonaram o alfabeto árabe, que até este século foi usado na sua imprensa cotidiana.

O malaio-polinésio e o cn:a.er

As entre 140-280 línguas do grupo malaio-polinésio co­brem uma superfície considerável do globo, da ilha de Mada­gascar até as ilhas da Polinésia. Incluem línguas nacionais, como a da Indonésia, da Malásia, das Filipinas, de Cingapura, com minorias em Formosa, no Vietname, na ilha chinesa de Hainan, na ilha de Guam. São mais de 220 milhões de falantes, cerca de 150 milhões dos quais na Indonésia, 40 milhões nas Filipinas, 7 milhões em Madagascar, 6 milhões na Malásia e Cingapura. Na Polinésia há, ademais, 580 mil usuários. Em curtos traços, consideram-se a seguir as mais importantes, do ponto de vista quantitativo.

A Indonésia conta, com efeito, com o indonésio (1 00 milhões), ademais de uma dezenas de línguas fortemente aparentadas com ele, como o javanês, o sundanês, o bataque, o minancabau, o mandurês, o balinês. Além de terem prefixos e sufixos, são línguas de infixos.

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O tagaloque é a lín~ua oficiàl das Filipinas, dito também, por isso, pilipino. Ainda do grupo malaio, conta com outras línguas no arquipélago, como o vasaiano (12 milhões), o i loca­no (4 milhões), o cebuano, o bical ou papango.

As línguas polinésias - um conjunto pobre de usuários, como já dito - conta com línguas como o maori, na Nova Zelândia, e o havaiano, que estão extinguindo-se, ao lado de numerosas outras, que preservam, apesar da insularidade, relativa unidade.

O cmer, língua do Cambodja, embora despiste até hoje os lingüistas quanto à sua genealogia, parece ter parentesco com o mon, como grupo mon-cmer, e atinge mais do que 11 milhões de falantes, 7 dos quais do cmer.

As línguas da Oceania

As línguas melanésias, faladas no arquipélago da Mela­nésia (em grego por 'ilhas negras, isto é, povoadas por negros') e na Micronésia (em grego, por 'ilhas pequenas'), registram 1 milhão de falantes, com 1.050-1.500 línguas, o que lhes dá médias de 1.000 a 666 usuários por língua.

Os papuas vivem em maioria na Nova Guiné. Para uma população de cerca de 3 milhões de indivíduos (não computa­dos os integrados à Indonésia, no lrian) , há entre 620 a 970 línguas.

As línguas aborígines australianas são hoje faladas por cerca de 50 mil remanescentes; essas línguas - antes da extinção - vêm sendo estud!'idas com desvelo pelos lingüistas australianos. Subsistem cerca de 230 línguas (cada uma das quais com uma média de 2,2 dialetos), com média de 216 usuários por língua - num estado de coisas presuntivamente muito primitivo.

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Pidgins e crioulos

Têm em comum o fato de se haverem erigido como línguas para a comunicação entre pessoas de origem diversa do ponto de vista linguageiro. Mas o pidgln o é entre pessoas que conservam sua língua original, constituindo, assim, uma 'segunda' língua do usuário, enquanto o crioulo substitui a língua ou línguas de origem das populações que o adotam. Há na África o pidgin particularmente dito, o fanacado e o songa, já antes referido; nas Novas Hébridas, o bichalamar (do portu­guês bicho do mar, nome de uma holotúria ou pepino-do-mar, objeto de intenso comércio com os chineses, no século XVIII , devoradores glutões dessa espécie então abundante nos ma­res da área) se desenvolveu para vincular pescadores que falavam aí mais de 100 línguas diferentes.

Como crioulos, registre-se o de base portuguesa em Malaca, o papiamento, de base espanhola, nas Antilhas neer­landesas; o sango, da República Centro-Africana, corri base em várias línguas africanas, o haitiano (7 milhões) , de base francesa, os crioulos também de base francesa das ilhas da Reunião, Maurício, Seychelles, o crioulo de São Tomé e Prín­cipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau, de base portuguesa .

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EM BUSCA DO PASSADO

A lição do método usado na comparação das línguas românicas e na reconstituição do indo-europeu animou muitos lingüistas, já desde o século passado, a tentarem ampliar as ambições comparatistas e reconstituidoras das línguas do passado. Com o indo-europeu e o semítico admite-se, para cada um, que se tenha recuado a cerca de 8-6 mil a. p. - o que, de qualquer modo, é quas13 atual, se admitirmos - como se nos impõe- há no mínimo 120-100 mil anos ou no máximo 1.800-1.500 mil anos já falamos.

Em princípio, não se busca contestar, para esse fim, o quadro descritivo do planisfério lingüístico do mundo presente, com as genealogias ou afinidades trancais, grupais ou setoriais referidas. Quer-se, ao contrário, comparar elementos caracte­rísticos -em geral, palavras ou itens lexicais, às vezes formas (morfemas), às vezes sentidos (semantemas), às vezes ambos (morfossemantemas) - de cada tronco ou grupo ou famma, com o que possa parecer mais afim ou comparável em outros troncos, grupos ou famnias tidos até o presente como autOno-

. mos, ou, pelo menos, de difícil conexão genealógica.

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Os lingüistas soviéticos vêm sendo, na modernidade, os mais empenhados nessa direção, que já contamina pesquisa­dores de outros países.

Assim, fala-se de um protonostático (prato-, grego, 'pri­meiro' e -nostático, derivado de nostos 'retorno' 'a pátria co­mum'), que seria a matriz do indo-europeu, de um cartevliano, do dravídico, do altaico, do urálico e de um afro-asiático - o que situaria o nosso recuo há algo como 17-15 mil anos. Paralelamente, um nexo entre o protonostático e o caucasiano, de um lado, cortt o proto-austronésio, de outro, recuar-nos-ia há 22-20 mil anos, dando uma origem comum a. línguas da Oceania, do Vietname, do Cambodja e do .Laos, além de outras.

Ademais, nexos se estabelecem entre o tronco tonal asiático, o caucasiano e o protonostático. Enfim, o nosso jê brasnico (de povos que vieram para a América, inaugurais como um todo, entre 30-15 mil anos atrás, na última grande glaciação, que teria permitido a travessia a pé do estreito de Behring) se vincularia ao protonostático, levando-nos a algo eventualmente anterior a 30 mil anos, nas auroras de uma protopátria ou protomundo - refazendo a velha intuição, nou­tra escala temporal, da língua adâmica e das línguas babélicas, estas oriundas daquela.

Já agora, porém, a busca do passado linguageiro -dentro, basicamente; da mesma metodologia - leva-nos a admitir que estejamos chegando à 'língua comum' de Homo sapiens, esse nosso gentil antepassado que, entre 120-100 mil anos, era capaz, anatômica, fisiológica e psicologicamente, de emitir quaisquer sons de quaisquer línguas hoje existentes e­muito mais - revelar por seus rusticíssimos artefatos que o germe dos mais complexos engenhos - físicos e mentais -havia sido atingido. Mas por que não havia sido atingido há 1.800-1.500 mil anos, com o advento de Homo? Esperemos que a resposta - probabilfssima - nos venha a ser dada em

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breve futuro - pois o esforço de conhecer vence barreiras impensáveis.

Levar-se-á, para esse esforço, em muita conta o fato de que, na escalada de Homo, o erectus chegou a ter uma popu­lação de 1 milhão de indivíduos já há 1 milhão e 500 mil anos, população essa que aumentou tão lentamente que só atingiu 10 milhões de indivíduos há 10 mil anos (apenas). Quantos seríamos a 100 mil anos? Cinco-três milhões, 3-2 milhões? Se então inaugural, a 'língua comum' poder-se-ia impor aos 'mu­dos', pela enorme superioridade daqueles sobre estes? Mas não seria o caso de a 'inauguração' ter sido primeva?

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MEMÓRIA E ESCRITA

De 1 O mil anos a. p. para cá, as línguas parece começarem a ser insuficientes para o progresso humano. O imenso esforço material instrumental do homem- condição para poder domi­nar a natureza, para dela tirar os bens materiais com que multiplicar-se e sustentar sua 'vitória biológica' já esboçada demograficamente com uma população que se faz 'visível' na paisagem e, acaso, 'convivível', atingidos que são 10 milhões de seres humanos - passa então a ser um imenso esforço de memória. Deve ter havido um como sentimento ou prática

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social de que o grupo já não se fazia capaz em tudo, por não • poder armazenar e multiplicar, concomitantemente, os bens espirituais ·a imateriais com que se comunicava, criava suas explicações para o meio em que vivia, como nele brotara, donde por ventura viera, que elementos lhe haviam sido favo­ráveis, que outros seres lhe houveram sido benéficos, como fazê-los agir beneficamente, como tornar os alimentos mais nutrientes no corpo e- já então, pelo menos havia algo cómo 50 mil anos antes - a alma ou o espírito ou o duo.

Esse trânsito deve ter atacado duas frentes, concomitan­temente, a frente verbal e a frente icônico-simbólica. A frente

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verbal se concretizou no fato de que, em quase todos os grupos, uns poucos dotados de mais memória retentiva foram sendo chamados para armazenarem os bens espirituais -relatos, autos, anexins, contos, fórmulas, encantamentos, can­tos, quase sempre com recursos mnemotécnicos istotópicos, como rimas, aliterações, repetições, refrães, cognatismos etc. Todo um clero foi-se assim erguendo com o monopólio da grei, a serviço da nova ordem social, que se fazia mais clara, por sua alta rentabilidadggeral : de qoordenadora, paratáctica, dis­tritutiva e igualitária, transitava quase inexoravelmente para uma ordem subordinativa, hipotáctica, acumuladora e libertária para o ápice da pirâmide assim organizada- capaz, por uma inovação técnica prodigiosamente rentável, a guerra (o ferro se faz praticável 3 mil anos a.p., apenas) , de multiplicar, quando ganha, a ~cumulação, fonte por sua vez de inovações criado­ras.

Essa memória assim construída chegou a auges de bens i materiais, pelo que se pode depreender de alguns povos que tiveram o registro desses bens na forma paralela que estava sendo buscada: não poucos povos da Terra começaram a marcar sua imensa produção cerâmica tipicamente neolítica com traços, desenhos, grafemas, símbolos, ícones, esque­mas, que, pouco a pouco, iam mostrando que, se uma linha sinuosa, ondulada, dizia do mar, uma angulada podia dizer das grutas e/ou das montanhas. Daí, poder-sa-ía - e se fez -transitar para 'peixes' 'trazidos do mar' 'para a montanha mátría ou pátria', com pintar idéias, isto é, píctogramas de 'peixes', 'ondas', 'montanhas'. Daí também se pOde transitar para for­mas mais econOmícas de pintar os pictogramas, desenhando apenas o traço relevante do mesmo, reduzindo-o a uma idéia descarnada do mesmo, o ideograma. Deste, mais cedo ou mais tarde, se chegou ao grande achado maior: se se pudera chegar à idéia contida nas palavras, poder-sa-ía - e se fez ­chegar aos sons que encapsulavam a idéia. Chegava-se, as-

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sim, àquela forma mais existencial dos sons das línguas, a sOaba, inventando-se os silabários. Se, pois, chegamos, numa língua que tivesse, como o espanhol, cinco vogais, a cinco sinais, quaisquer, mas entre si cedo conexos, poderia ser apresentada a série pa-pe-pi-po-pu, com cinco outros a série ma-me-mi-mo-mu etc .. Daí o passo - que houve- de simpli­ficar as séries, em duas direções: ou omitindo as vogais, que, poucas, se subentenderiam - solução semftica, até hoje, desde 6 mil anos a.p. - ou desglosando em cada traço silábico uma parte para a vogal e outra para a consoante. O que fizemos, linhas acima; foi esquematizar o processo. Na realida­de histórica, alfabetos inteiros foram passados - com seus vícios, que sempre tiveram - para outros povos os adaptarem, aperfeiçoando-os ou viciando-os a seu modo, até hoje, quando temos um número básico de trinta, se tanto, alfabetos.

Montados nesse engenho gráfico, certas línguas pude­ram eternizar entes anteriores ao engenho, como os poemas sascríticos e védicos, como a Bíblia, como a l/fada e a Odisséia, para nos limitarmos aos casos mais conspícuos, além dos poemas pré-corânicos dos árabes.

Mas aqui o que nos importa - a serviço do alfabeto - é ressaltar que com ele a palavra, volátil, pôde permanecer, com conseqüências estupendas, a escrita e a ordem alfabética. Esse monstrinho - o alfabeto - gerava um novo caos, com a imensidão do material armazenado, mas gerava também a solução do caos, a ordem alfabética.

Ao novo caos já a ele nos referimos. Se pouca influência a escrita terá tido - mas teve - na regulação e estrutura das línguas, teve-a imensa na quantidade e qualidade lexical das línguas que acederam à escrita. A concretização da memória humana tornou acessível, a cada presente, o saber e o fazer anteriores, permitindo que cada futuro acumulasse o passado - abrindo hOrizontes que a memória social puramente fisioló­gica jamais atingiria. É quase certo que, por exemplo, o chinês,

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o japônes, o tibetano, o sânscrito e o hindi e o urdu, o hebraico, o árabe, o grego, o latim - após um milênio de escrita -passaram qas 3 mil palavras da fase ágrafa, para em torno de 15-20 mil da literatura oral institucionalizada, para 50-60 mil da literatura escrita. E, como que confirmando os limites da me­mória nua, os vernáculos finimedievais que emergiram na Europa - românicos ou anglo-saxônicos ou eslavos ou ger­mânicos -, com seus 3 mil vocábulos pré-literários, em menos de meio milênio de escrita, ao influxo da tradição literária latino-grega e greco-bizantina, acedem aos 50 mil vocábulos.

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Essa explosão se fizera no seio das chamadas 'línguas históricas', designação daquelas poucas línguas que haviam conquistado o estatuto escrito e criado uma literatura, por oposição às muitíssimas outras que não chegaram àquele estatuto. Com essas línguas e seus acervos vocabulares tiouve uma fantástica floração do conhecimento e práticas humanos, em si mesmos ciências e técnicas que, entretanto, viveram sua grande parte confinadas nas suas possibilidades, virtualidades e potencialidades, na medida em que o acesso a esses ac.ervos escritos - ditos, no Ocidente, cl~ssicos, para com o grego, o latim, o hebraico e o árabe - e modernos, para com as línguas históricas finimedievais, ficaram confinados a 20./o das respec­tivas populações (quanto à escrita e à leitura, mas não quanto à audição, fonte até então da relativa, relativíssima, 'democra­tização' do saber assim transmitido) .

Ao fim do século XVIII , após a primeira Revolução i ndu~ trial e após a Revolução francesa, a humanidade, que não tinha mais do que seis mil anos sob o signo da palavra escrita, teve duas explosões paralelas: a explosão da literatação, a reboque da explosão da divisão do trabalho físico e mental.

Somos oriundos de duas profissões, se tanto, ab origine: a de viver e a de sobreviver. No fim da chamada Antiguidade clássica, o homem já contava com cirqüenta. Nosso padre Rafael Bluteau registra no seu vócabulário latino-português,

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por 1712, cerca de noventa. Comte, em meados do século passado, chegava a pouco mais de quatrocentas. O relatório que a U.N.E.S.C.O. publicou sobre as profissões e ciências e técnicas existentes no mundo, em 1963, acusava já vinte e quatro mil, que hoje devem ser trinta mil. O grave era que, quase todas, só podem ser exercidas por pessoas que, chegadas aos 15-16 anos, já têm nelas investidas um mínimo de quinze mil horas de estudos institucionalizados. O Brasil está com 9 a 10 milhões de seres, de até 15-16 anos, que não sabem que há escolas e com cerca de 70% até essa faixa etária que têm neles investidos um máximo de mil horas. Que país será este?

O descobrimento, pelos fins do século XV e inícios do século XVI , de que a ordem alfabética - usada pela primeira vez, mais ou menos fantasiosamente, para ordenar os 18 capítulos da Odisséia pelos eruditos alexandrinos - podia ser a salvação da ordem em meio ao caos suscitado pela procria­ção progressiva das palavras, ordenando-as, primeiro, em A, dentro de A, em aa, dentro da seqüência, em a-b-c, foi um passo que permitiu que a civilização escrita não se afogasse em si mesma, retornando a uma fase como que pré-gráfica, que se esgotou, praticamente, no curso deste século XX, de novo saturando a memória humana. O advento da cibernética e da computação, manejando de forma incomparavelmente mais expedita qualquer classificação - desde Aristóteles, len­ta, apesar da ordem alfabética, de dois mil anos depois - abre de novo os horizontes de nossa memória.

Os homens das línguas de cultura avançada, graças a um aprendizado especializado (embora inconsciente e internaliza­do} , 'dominam' os 400 mil para mais vocábulos delas graças a um senhorio que vai, 1) da retentiva mnemónica nua e crua de algo como 3-8 mil palavras, 2} a uma capacidade de entender algo como mais 3-5 mil vocábulos que não pertencem ao seu uso ativo, mas que 'captam' quando ouvidos ou lidos, 3} a um saber consultar obras de referência (sem as quais não há língua

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de cultura de ponta), como dicionários e enciclopédias e léxi­cos e glossários e afins, basicamente alfabéticos, 4) a um saber consultar especialistas de áreas ainda não acessíveis grafica­mente, para, por fim, 5) a um saber que há saberes que não pode saber mais que sabe que há quem os saiba. É aí que os horizontes ciber[léticos se abrem para o homem de já hoje e seguramente amanhã, se soubermos, por ora, pelos próximos dois milhões de anos, sobreviver, superando as nossas crises - que amanhã iremos reputar mazelinhas oriundas da sede de

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poder. . \.. Uma língua, as línguas, as linguagens - embora negati~

vamente cultivadas pelos homens em certas estruturas e con­junturas histórico-sociais - são o instrumento por excelência da humanização do homem pelo homem.

Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1990

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Sobre o autór

ANTONIO HOUAISS foi professor, diplomata e desde sempre . lexicógrafo (com vários dicionários publicados, além de redator-chefe

das duas mais modernas enciclopédias brasileiras, a Delta-Larousse e a Mirador Internacional) . Autor de estudos críticos e lingüísticos, tem também incursões em outras áreas (política, gastronomia, ensaística social) . É membro da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Brasileira de Letras. Desde 1986 elabora, com um grupo de trabalho, um grande dicionário da língua portuguesa para a Academia Brasileira de Letras. Nascido em 1915, em Copacabana, espera não ultrapassar este século, mas sempre trabalhando .. .

Ca ro leitor: As opiniões expressas neste livro são as do autor, podem não ser as suas. Caso você ache que vale a pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema, nós estamos dispostos a estudar sua publicação com o mesmo título como "segunda visão" .

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• 1980/1990- chegando aos 250 títulos • mais de 6 milhões de exemplares vendidos

Quem melhor que Antonio Houaiss para nos apresentar o vasto mundo da linguagem?

Filólogo, tradutor, crítico literário, Houaiss é um homem que faz do estudo e do manejo

das palavras seu ofício cotidiano. Neste livro ele nos fala da origem das línguas, de suas

respectivas ramificações ao longo da. história e das funções e importâncias da invenção

distintiva da raça humana. Com a classe do mestre.

Áreas de interesse: Antropologia, História e Literatura.

iP ISBN: 85-11 -01235