roland barthes - o império dos signos

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NAQUELE LUGAR Se eu qui ser im ag in a u m povo fictício, posso dar- lhe um nome inve~itado, ratá-lo declarativamente como um objeto romanesco, f un da r. uma nov a Garab agne* , d e modo a náo compro meter nen hum país re al em minha fantasia mas en o es sa mesma fantasia que compro- meto nos signos da literarura). Posso também sem pre- tender nada representar, ou analisar realidade alguma sáo estes os maiores gestos do discurso ocidental), le- vantar em alguma parte d o mundo naquele lugar) um certo número de traços palavra gr áfica e lingüíst ica), e com esses rraços formar deliberadamente um sistema. É es se sistema que chamarei de Japáo. Na ohra Voygc n Graridc Gtarabape pi~blicada m 1936 peta Henri Midiatu 1889- 1984 Ma de países imaginários Nu . T.1

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  • NAQUELE LUGAR

    Se eu quiser imagina um povo fictcio, posso dar- lhe um nome inve~itado, trat-lo declarativamente como um objeto romanesco, fundar.uma nova Garabagne*, de modo a no comprometer nenhum pas real em minha fantasia (mas ento essa mesma fantasia que compro- meto nos signos da literarura). Posso tambm, sem pre- tender nada representar, ou analisar realidade alguma (so estes os maiores gestos do discurso ocidental), le- vantar em alguma parte do mundo (naquele lugar) um certo nmero de traos (palavra grfica e lingstica), e com esses rraos formar deliberadamente um sistema. esse sistema que chamarei de: Japo.

    * Na ohra Voygc en Graridc Gtarabape, pi~blicada em 1936, o p e t a Henri Midiatu: (1889- 1984) Ma de pases imaginrios. Nu'. da T.1

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  • A GUA E O FLOCO

    A bandeja de refeio parece um dos mais delicados: uma moldura que contm, sobre um fndo escuro, objetos variados (tigelas, caixas, pires, palitos, montinhos midos de alimentos, um pouco de gengibre cin.za, alguns fiapos de legumes alaranjados, iim fundo de molho marrom), e como esses recipientes e esses pe- daps de alimento so exguos e tnues, mas numerosos, diramos que essas bandejas realizam a defini* da pin-

  • a sopa japonesa (a palavra supd indevidamente es- pessa, e caldo lembra penso familiar) dispe, no jogo alimentar, um toque de claridade. Na Franp, uma sopa clara uma sopa rala; mas aqui a leveza do caldo, nuido como gua, a poeira de soja ou de feijes que nele se desloca, a raridade dos dois ou trs slidos ( d o de erva, filamento de legume, parcela de peixe) que dividem, flutuando, essa pequena quantidade de gua, d0 a idia de uma densidade clara, de uma nutritividade sem gor- dura, de um eiixir reconfortante pela pureza: algo de aqutico (mais do que aquoso), de delicadamente ma- rinho, traz urn pensamenro de fonte, de vitalidade pro- funda. Assim, a comida japonesa se estabelece num sis- tema reduzido da matria (do claro ao divisvel), num tremor do significame: so estes os caracteres elemen- tares da escritura, estabelecida sobre uma espcie de vacilago da linguagem, e assim se apresenta a comida japonesa: uma comida escrita, tributria dos gestos de diviso e de retirada que inscrevem o alimento, no so- bre a bandeja da refeio (nada a ver com a comida foto- grafada, as composies coloridas das revistas femininas), mas num espao profundo que dispe, em patamares, o homem, a mesa e o universo. Pois a ;bscrimra preci- samente aquele ato que une, no mesmo trabalho, o que no poderia ser captado junto no nico espao plana da representao.

  • No Mercado Flutuante de Bangkok, cada vende- dor se mantm sobre uma pequena piroga imvel; e1.e vende mnimas quantidades de alimento: gros, dguns OVOS, bananas, cocos, mangas, pimentes (sem fdar do Inominvel). Dele ar a mercadoria, passando por seu

    .. L

    1--- - esquife , \ tub9e4~en\0 - L..-" .. ----L alimento ocidental, acumu- lado, dignificado, inchado at o majestoso, ligado a al- guma operao de prestgio, tende sempre ao grosso, ao grande, ao abundante, ao planturoso; o oriental se- gue o movimento inverso, ex ande-se em direo ao in- P *& % ' finitesimal: o Futuro do pepino no o amontoado ou o espessamento, mas a diviso, o tnue espdhamento, como dito neste haicai:

  • no uso da alimentqo no uma ordem mas uma fan- ~

    . . - . - . -.,. --.~- . . . .

    tasia e como que uma preguia:)em todo caso, uma ope- , . ~ .~

    -

    , ,

    rao - inreligenre e no mais mecnica. --- Outra h n g o dos palitos, a de pinar o fragmento de comida (e no mais de espetar, como fazem nossos garfos); pingar* alis uma palavra demasiadamente forte, agressiva (beliscar -A---. o que -- fazem as meninas ----e--.-- sonsas, -- pin

  • guias), reencontrando assim as fissuras naturais da ma- rria (nisso bem mais prximos do dedo primitivo do que da faca). Enfim, e talvez sua h n e o mais bela, os palitos trasladam o alimento, quer quando, cruzados como duas mos, suporte e no mais pina, se insinuam sob o floco de arroz e o estendem, o levantam at a boca do comensal, quer quando (por um gesto milenar de todo o Oriente) fazem deslizar a neve alimentar da ti- - gela aos lbios, como uma p. Em todos esses usos, em

    - " .

    podos -- . . . os ~ gestos ~ ~ . ~ . ~ . que . nplicm, . .- ~ ~- os - palitos ~. ~ ~. .. .- se opem ~. nos- . 1 I ... sa . . faca (e . a seu substituto .. pedador, ~. o ~ prfo): eles so os 1 instrumentos alimentares que se recusam a cortar, a es- l I petar, a mutilar, a furar (gestos muito limitados, recha- ados no preparo da comida: o peixeiro que esfola dian- te de ns a enguia viva exorciza, uma vez por todas, num sacrificio preliminar, o assassinato da comida); pelos pa- liros, a comida no mais uma presa que violentamos (carnes sobre . as - quais nos encarniamos), mas uma

  • substncia harmoniosamente transferida; eles transfor- mam a matria previamente dividida em alimento de pssaro, e o arroz em onda de leite; maternais, condu- zem incansavelmente o gesto da bicada, deixando a rios- sos hbitos alimentares, armados de lanas e de facas, o

    - -- - .- ___

    da predaqo. - ,

  • A COMIDA DESCENTRADA

    O sukiydki um guisado cujos elementos conhece- mos e reconhecemos, pois feito diante de ns, sobre a prpria mesa, sem parar, enquanto o comemos. Os produtos crus (mas descascados, lavados, j revestidos de uma nudez esctica, brilhante, colorida, harmoniosa como uma roupa primaveril: 2 cor, afinem, o toque, o efeito, LZ harmonia, O tempero, tudo ai se encontra', diria Diderot) so reunidos e trazidos numa bandeja; a pr- pria essncia da feira que chega at ns, seu frescor, sua naturalidade, sua diversidade e at a classificao que faz da simples matria a promessa de um acontecimento: recrudescncia de apetite ligada a esse objeto misto que o produto de feira, ao mesmo tempo natureza e mer-

  • cadoria, natureza mercantil, acessvel posse popular: folhas comestveis, legumes, cabelos de anjo, quadra- dos cremosos de pasta de soja, gema crua do ovo, carne vermelha e acar branco (aliana infinitamente mais extica, mais fascinante ou mais enjoativa, porque vi- sual, do que o simples doce-salgado da comida chinesa, que S cozida e na qual o acar no visvel seno no brilho carameli7ado de certos pratos "laqueados"), todos esses alimentos crus, prirneiramence aliados, compos- ros como num quadro holands do qual conservariam o contorno do trao, a firmeza elstica do pincel. e o ver- niz colorido (ignoramos - -- se - este se deve - - - matria - - das - -

    coisas, luz da cena, ao ungento - que recobre _ - o I-- qua- - - dro ou iluminao do --- museu), - pouco a pouco trans-

    -portados para a grande casarola em que so cozidos sob nossos olhos, ali perdem suas cores, suas formas e seu descontnuo, ali amolecem, se desnaturali-am, adqui- rem aquele tom ruo que a cor essencial do molho; medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos, alguns fragmentos desse guisado recm-cozido, outros alimentos crus vm substitu-10s. Uma assisrente preside a esse vai-e-vem; postada um pouco distncia atrs de ns, armada com palitos longos, elaalimenta alrernatit vamente a panela e a conversa: toda uma pequena odissia da comida que vivemos pelo olhar: assistimos ao Crepsculo da Crueza.

  • I O imprio dos sipos I

    h s a Crueza, como se sabe, a divindade tutelar da comida japonesa: tudo ihe dedicado, e, se a cozinha japonesa se faz sempre diante de quem a vai comer (mar- ca fundamental dessa cozinha), que talvez seja imp*

    rante consagar, pelo espetculo, a morte ------ daquilo -- que se honra. O que honrado na crueza (crzlda't: termo- que o francs emprega de maneira bizarra no singular para denotar a sexualidade da linguagem, e no plural, crudits, para nomear a parte exterior, anormal e um pouco tabu de nossos cardpios) no , parece, como

  • elitre ns, uma essncia interior do alimento, a pletora sangunea (sendo o sangue smboIo da fora e da mor- te), cuja energia vital recoIhemos por transmigrao (entre ns, a crueza um estado forte da comida, como o mostra metonimicamente o intenso tempero que im- pomos ao steak tartare). --- A cruezajaponesa ~...

    ~- .~ ~ essencial= --- mente visual; ela denota I _ _ _ _ _ _ _ _ - _ . _ . _ . . _ . _ . . _ certo estado - .. . . _ . colorido . .. da ~. . .~. carne . .~

    - _ _ -

    ou -.....- do vegetal . . . ~. - .. , (entendendo-se que a cor nunca esgo- tada por um catlogo de tintas, mas remete a toda uma tatilidade da matria; assim, o sdrhimi exibe menos co- res do que resistncias: as que variam na carne dos peixes crus, fazendo-a passar, ao longo da bandeja, pelas esta- es do flcido, do fibroso, do elstico, do compacto, do spero, do escorregadio). Inteiramenre - visual . ~ ~ ~ . .. . (pen- sada, arrumada, manejada pela viso e at mesmo por uma viso de pintor, de grafista), a comida ___ diz, ____. assim, .~~ que ela no profunda: a..substncia comestvel des- . ~ ~.~ - -

    - . ,. ___ __- . . . ...-A. -- .~ ~ -. ~ - . . .- ~ .--.. ,.< .- -- ~.. ... ..*. . .

    provida de mago precioso, de fora oculta, --. de - - segredo . -- .. - - vital: nenhum prato japons provido de umTrPn+n-

    - -

    tro alimentar implicado entre ns pelo rito que consis- te em ordenar a refeio, em cercar ou cobrir de molho as iguarias); tudo ali ornamento de outro ornamento: primeiro porque sobre a mesa, sobre a bandeja, a co- mida nunca mais do que uma col%o de fragmentos; dos quais nenhum privilegiado por uma ordem de ingesro: comer no respeitar um cardpio (um itine- rrio de praros), mas colher, com um toque ligeiro dos

  • O cozinheiro (que no cozinha nada) pega uma en- guia viva, enfia uma longa ponta em sua cabea e a ras- pa, a esfola. Essa cena rpida, mida (mais do que san- grenta), de pequena crueldade, vai terminar em rendu. A enguia (ou o fragmento de legume, de crustceo), cristalizado na fritura, como o ramo de Salzburgo, re- duz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma c o l e ~ o de buracos; o alimento chega, assim, ao sonho de W a -

    --- a-- -- --

    radoxo: o de um objetoeuramente interscicial, ainda I ___C" --- i-- -L - - _ _ _ _ _ _ _ _ I _ _ - _ _ --

    mais provocanoporqumse vazio fabricado par;?que ---. - -.-- /

    .A- e- -- ~- .-., . -- .- -

    nos alimentemos - dele ~ . . . (s vezes, o alimento construdo Q &

    em bola, como uma bolha de ar). A tmpura liberada do sentido que ligamos tradicio-

    nalmente fritura, e que o peso. A farinha reencontra

  • I O imprio dos signos I

    nela sua essncia de flor espalhada, diIuda to levemen- te que forma um leite, e no uma pasta; tomado pelo leo, esse leite dourado to fi-gil que recobre imper- feitamente o fragmento de comida, deixa aparecer um rosa de camaro, um verde de pimento, um marrom de berinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que - feito nosso bolinho, e-que a p g a , o invlucro, a com- -

    pacidade. O leo (mas ser mesmo leo, ser de fato a substncia me do oleoso?), logo enxuto pelo guardana- po de papel sobre o qual nos apresentam a tempara, numa cestinha de vime, o leo seco, sem mais nenhu- ma relao com o lubrificante que, no Mediterrneo e no Oriente, cobrem a cozinha e a dovia ; ele perde uma contrad3o que marca nossos alimentos cozidos-no _ _ _ _ -_ -- - I I - -- -.-

    leo ou na banha e que consiste emqueimar sem -- es- quentar; essa queimadura fria do corpo gorduroso 'substituda, aqui, por uma qualidade que parece recu- sada a toda fritura: o frescor. O frescor que circula na tempura, atravs da renda de fknha, montando os mais vivazes e mais frgeis dos alimentos, o peixe e o vege- tal, esse frescor que , ao mesmo rempo, o do intacto e do refrescante, exatamente o do leo: os restaurantes de tempura so classificados a partir do grau de desgaste do leo que empregam: os mais cotados empregam o leo novo que, usado, revendido a outro restaurante mais medocre, e assim por diante; no o alimento que com-

  • pramos, nem mesmo seu Frescor (e ainda menos a ca- tegoria do loca1 ou do servio), a virgindade de seu cozimenro.

    AS vezes, a pea de zmpura se apresenta em pata- mares: a fritura contorna (melhor do que: envolve) um pimento, ele mesmo recheado de mexilhes. O que importa que o alimento seja constitudo de pedaos, de fragmentos (estado fundamental da cozinha japone- sa, na qual a cobertura - de molho, de creme, de crosta - desconhecida), no apenas pela preparasao, mas tam- bm e sobretudo por sua imerso numa substncia fluida como a gua, coesiva como a gordura, de onde sai um pedao acabado, separado, nomeado e contudo cri- vado; nias o cerne to leve que se torna abstrato: o ali- mento no tem mais por invlucro seno o tempo (alis muito tnue) que o solidificou. Diz-se que - atempura -.~--.--- uma iguaria de origem crist (portuguesa): o alimento da quaresma (te~npam); mas, afinado pelas tcnicas ja- ponesas de anulao e de iseno, o alimento de ou- tro tempo: 1150 o de um rito de jejum e de expiao, mas de .- I---.- u m a ~ c i e .------..-_____----- de meditao, to - esp~tacular - - quanto -.- - alimentar (j que a mpum preparada sob nossos olhos), . 11- d P i5 L

    em torno desse algo que determinarnos,'na falta de me- lhor termo (e talvez em hxio de nossos limites temti- COS), do lado do leve, do areo, do instantneo, do frgil, do transparenre, do fresco, do nada, mas cujo verdadeiro

  • nome seria .-~_ o interstcio _ _ . sem ~ - bordas ~. ., plenas, . . , . . . ou ainda: - ..- o 's;gii~G,IJ

    preciso, de fato, voltar ao jovem artista que faz renda com peixes e pimentes. Se ele prepara nossa co- mida diante de nns, conduzindo, de gesto em gesto, de lugar a lugar, a enguia, do viveiro ao papel branco que, para terminar, a receber toda crivada, no (somen- te) para nos tornar testemunhas da alta preciso e da pureza de sua cozinha; porque sua atividade literal- mente grfica: ele inscreve o alimento na matria; sua bancada distribuda como a mesa de um dgrafo; ele toca as substncias como um grafista (sobretudo se ele japons) que alterna os potinhos, os pincis, a pedra de tinta, a gua, o papel; ele cumpre assim, na agitao do restaurante e no cruzamento dos pedidos, um esca- lonamenro, no do tempo, mas dos tempos (os de uma gramtica da tempura), torna visvel a gama das prticas, recita o alimento no como uma mercadoria acabada, da qual s a perfeigo teria algum valor (o que o caso de nossas iguarias), mas como um produto cujo sentido iio final mas progressivo, esgotado, por assim dizer, qriando sua produo terminada: - - - voc que come, - mas foi ele que jogou, eScrevgiu,jraduziu. - - - . - - .-.- ---.--.. --