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1153 Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1153-1178, out. 2007 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> DA DUALIDADE ASSUMIDA À DUALIDADE NEGADA: O DISCURSO DA FLEXIBILIZAÇÃO JUSTIFICA A INCLUSÃO EXCLUDENTE ACACIA ZENEIDA KUENZER * RESUMO: Este artigo, com base nas pesquisas que a autora vem de- senvolvendo, propõe-se a demonstrar que a relação entre trabalho e educação no regime de acumulação flexível se expressa através de uma diferente forma de materialização da dualidade estrutural. Nes- te regime de acumulação, ao contrário do que afirma o discurso pe- dagógico, a dualidade se aprofunda a partir da relação que se estabe- lece entre o mercado, que exclui a força de trabalho formal para in- cluí-la de novo através de diferentes formas de uso precário ao longo das cadeias produtivas, e um sistema de educação e formação profis- sional, que inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expul- são ou pela precarização dos programas pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada. A partir do princípio da integra- ção produtiva que caracteriza este regime de acumulação, são apon- tadas, como proposta inicial para ser aprofunda, as categorias que constituem o que a autora chama de dualidade negada na acumu- lação flexível. Palavras-chave: Dualidade estrutural. Educação básica e profissional. Educação na acumulação flexível. FROM ASSUMED DUALITY TO DENIED DUALITY: FLEXIBILITY DISCOURSE JUSTIFIES SUBORDINATE INCLUSION ABSTRACT: Based on research undertaken by the author, this pa- per seeks to demonstrate that the relation between work and educa- tion in a regime of flexible accumulation is expressed through a dif- ferent form of materialization of structural duality. Contrary to what is stated in the pedagogical discourse, in this regime of accumulation, * Doutora em Educação e professora titular aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

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1153Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1153-1178, out. 2007

Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

Acacia Zeneida Kuenzer

DA DUALIDADE ASSUMIDA À DUALIDADE NEGADA:O DISCURSO DA FLEXIBILIZAÇÃO JUSTIFICA

A INCLUSÃO EXCLUDENTE

ACACIA ZENEIDA KUENZER*

RESUMO: Este artigo, com base nas pesquisas que a autora vem de-senvolvendo, propõe-se a demonstrar que a relação entre trabalho eeducação no regime de acumulação flexível se expressa através deuma diferente forma de materialização da dualidade estrutural. Nes-te regime de acumulação, ao contrário do que afirma o discurso pe-dagógico, a dualidade se aprofunda a partir da relação que se estabe-lece entre o mercado, que exclui a força de trabalho formal para in-cluí-la de novo através de diferentes formas de uso precário ao longodas cadeias produtivas, e um sistema de educação e formação profis-sional, que inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expul-são ou pela precarização dos programas pedagógicos que conduzema uma certificação desqualificada. A partir do princípio da integra-ção produtiva que caracteriza este regime de acumulação, são apon-tadas, como proposta inicial para ser aprofunda, as categorias queconstituem o que a autora chama de dualidade negada na acumu-lação flexível.

Palavras-chave: Dualidade estrutural. Educação básica e profissional.Educação na acumulação flexível.

FROM ASSUMED DUALITY TO DENIED DUALITY:FLEXIBILITY DISCOURSE JUSTIFIES SUBORDINATE INCLUSION

ABSTRACT: Based on research undertaken by the author, this pa-per seeks to demonstrate that the relation between work and educa-tion in a regime of flexible accumulation is expressed through a dif-ferent form of materialization of structural duality. Contrary to whatis stated in the pedagogical discourse, in this regime of accumulation,

* Doutora em Educação e professora titular aposentada da Universidade Federal do Paraná(UFPR). E-mail: [email protected]

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duality is intensified by the relation between the market, which ex-cludes the formal workforce to include it again through differentforms of precarious use in productive chains, and a system for edu-cation and professional qualifications that includes in order to ex-clude during the process, be it through expulsion or through theprecarious nature of pedagogical processes that lead to unqualifiedcertification. From the principle of productive integration that char-acterizes this regime of accumulation, the categories that constitutewhat the author terms as denied duality in flexible accumulation aregiven as an initial proposal to be expanded.

Key words: Structural duality. Basic and professional education. Edu-cation in flexible accumulation.

O discurso e as práticas na acumulação rígida: a dualidade assumida

s partir das pesquisas que temos realizado,1 é possível identifi-car as formas que a dualidade assume no regime de acumulaçãoflexível. A hipótese que tem orientado estas pesquisas é de que

o regime de acumulação, que tem sido chamado de flexível,2 aoaprofundar as diferenças de classe, aprofunda a dualidade estrutural,como expressão cada vez mais contemporânea, da polarização das com-petências. Em decorrência, o Estado tem exercido suas funções relati-vas ao financiamento da educação, a partir da concepção de “públiconão-estatal”, que supõe o repasse de parte das funções do Estado e, por-tanto, de recursos públicos para a sociedade civil, alegando sua maiorcompetência para realizá-las.

O ponto de partida para a sistematização levada a efeito nesteartigo é a afirmação de Gramsci (1978) de que a hegemonia ultrapassao campo exclusivamente superestrutural, uma vez que as práticas ideo-lógicas aparecem desde o aparelho de produção econômica. Em decor-rência, afirma o autor, não há dicotomia, e sim organicidade, entre areprodução e a constituição das classes sociais.

Do mesmo modo, Harvey (1992, p. 118) afirma que a condi-ção de existência de um regime de acumulação é a correspondência en-tre a transformação das condições de produção e de reprodução dos as-salariados, de modo a fazer com que os comportamentos de todos ostipos de agentes político-econômicos mantenham o sistema funcionan-do; ou seja, a correspondência entre as formas de disciplinamento e as

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necessidades do sistema produtivo, relativas à formação de trabalhado-res e dirigentes.

Portanto, a partir destes autores, há que compreender as relaçõesque se estabelecem entre a base material e as superestruturas, repre-sentadas neste estudo pelos processos ampla e especificamente pedagó-gicos, que têm por objetivo o disciplinamento da força de trabalho,tendo em vista o processo de acumulação (Kuenzer, 1985).

Assim é que Gramsci (1978), ao analisar o americanismo e ofordismo, demonstra sua eficiência no tocante ao processo de valoriza-ção do capital por meio dos processos pedagógicos, à medida que, apartir das relações de produção e das novas formas de organização dotrabalho, são concebidos e veiculados novos modos de vida, comporta-mentos, atitudes, valores.

O novo tipo de produção racionalizada demandava um novo tipode homem, capaz de ajustar-se aos novos métodos da produção, paracuja educação eram insuficientes os mecanismos de coerção social; tra-tava-se de articular novas competências a novos modos de viver, pensare sentir, adequados aos novos métodos de trabalho caracterizados pelaautomação, ou seja, pela ausência de mobilização de energias intelec-tuais e criativas no desempenho do trabalho. A ciência e o desenvolvi-mento social por ela gerado, pertencendo ao capital e aumentando asua força produtiva, ao se colocarem em oposição objetiva ao trabalha-dor, justificavam a distribuição desigual dos conhecimentos científicose práticos, contribuindo para manter a alienação, tanto da produção edo consumo, quanto da cultura e do poder.

O novo tipo de trabalho exigia, portanto, uma nova concepçãode mundo que fornecesse ao trabalhador uma justificativa para a suaalienação e, ao mesmo tempo, suprisse as necessidades do capital comum homem cujos comportamentos e atitudes respondessem às suas de-mandas de valorização. “É neste sentido que a hegemonia, além de ex-pressar uma reforma econômica, assume as feições de uma reforma in-telectual e moral” (Kuenzer, 1985, p. 52).

A partir dos fundamentos deste novo tipo de trabalho – a frag-mentação, a separação entre trabalho instrumental e intelectual, a or-ganização em linha e o foco na ocupação –, a dualidade estrutural, talcomo foi sistematizada pelos clássicos do crítico-reprodutivismo,3 ex-pressou-se por meio da oferta de escolas que se diferenciavam segundo

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a classe social que se propunham a formar: trabalhadores ou burgue-ses. Sobre a contribuição destes autores, assim se expressa Snyders(1977, p. 26-27), referindo-se a Baudelot e Estlabet:

(...) tiveram a coragem e lucidez de desvendar a ilusão ideológica da uni-dade da escola, ilusão de que existiria um tipo único de escolaridade e queos diferentes troços só diferem entre si em extensão e duração; resumin-do, o grande mito da escola única e unificadora. Ilusão de que as criançasseriam “desigualmente instruídas numa só e mesma escola”, que seria sim-plesmente abandonada por alguns, na realidade a maioria, no meio do ca-minho – e levada até o fim pelos restantes (...). Trata-se de repartir “os in-divíduos por postos antagonistas na divisão social do trabalho, quer doslados dos explorados, quer do lado da exploração”.

No Brasil, esta diferenciação correspondeu à oferta de escolas deformação profissional e escolas acadêmicas, que atendiam populaçõescom diferentes origens de classe, expressando-se a dualidade de formamais significativa no nível médio, restrito, na versão propedêutica, porlongo período, aos que detinham condições materiais para cursar estu-dos em nível superior. A delimitação precisa das funções operacionais,técnicas, de gestão e de desenvolvimento de ciência e tecnologia, típi-cas das formas tayloristas/fordistas de organizar o trabalho, viabilizavaa clara definição de trajetórias educativas diferenciadas que atendessemàs necessidades de disciplinamento dos trabalhadores e dirigentes.

Ao longo do século XX, no Brasil, a par da escola de formaçãogeral, foi se desenvolvendo extensa e diversificada oferta de educaçãoprofissional, com o intuito de atender às demandas decorrentes da ex-pansão dos setores industrial, comercial e de serviços, que se intensifi-cou a partir dos anos de 1940. Esta expansão, determinada pelo movi-mento do mercado para atender a necessidades definidas de formaçãoprofissional especializada, se deu de forma caótica, sem responder auma política especificamente formulada para a educação profissional.

Em texto de 1994, Kuenzer (1988, p. 29) afirmava que este des-dobramento entre escolas propedêuticas e profissionais, cuja equivalên-cia só foi ocorrer, de modo pleno, em 1961,4 respondia à racionalidadeda divisão social e técnica do trabalho nos termos da organizaçãotaylorista/fordista, de natureza rígida. Para atender às necessidades deum processo produtivo que se caracterizava pela fragmentação, pela es-tabilidade e pela transparência das tecnologias, predominantemente de

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base eletromecânica, bastava uma educação profissional especializada,parcial, com foco na ocupação e voltada para o rigoroso cumprimentode procedimentos a serem repetidos por meio de processos pedagógi-cos que privilegiavam a memorização; não havia, portanto, no trabalhode natureza operacional, necessidade de escolarização ampliada, umavez que não havia necessidades significativas de trabalho intelectual nes-te nível.

Como o trabalho real não correspondia ao prescrito, os traba-lhadores iam desenvolvendo, ao longo da prática laboral, com ou semeducação profissional, um conjunto de saberes assistemáticos, sem sus-tentação teórica, subjetivos e não passíveis de transferência, que lhespermitiam resolver, à sua maneira, os problemas que iam aparecendo,“naprática”. Daí a primazia do saber tácito sobre o conhecimento científico,da prática sobre a teoria, da parte sobre a totalidade, que caracterizarama educação profissional de caráter operacional, na acumulação rígida.

Nitidamente separados o trabalho intelectual e a atividade prá-tica no trabalho, não havia razão para a integração entre educação ge-ral e educação profissional; estava, pois, justificada a diferenciação daoferta, a partir da dualidade estrutural no modo de produção capita-lista. Para compreender esta diferenciação, a afirmação de Gramsci(1978), quando se refere ao caráter antidemocrático da escola tradicio-nal, que, ao fazer corresponder a cada classe social um tipo de escola,perpetua o privilégio do exercício de funções intelectuais e diretivas,caracteriza bem a relação entre trabalho e educação no regime de acu-mulação rígida.

A expansão da oferta de escolas profissionais, portanto, não re-sulta em democratização, mas sim em aprofundamento das diferençasde classe. Contudo, este aprofundamento nem sempre foi claramentepercebido, em face da relativa mobilidade social que a qualificação pro-fissional propiciava no regime de acumulação rígida; esta mobilidade,no entanto, era limitada pelas dificuldades de acesso ao nível superior,obviamente imputadas à relação inadequada que a “vítima” estabeleciacom o conhecimento.

Em que pese, contudo, esta relativa mobilidade que conferia araparentemente democrático à oferta dual, os discursos sobre a educa-ção e as práticas de exclusão não deixavam pairar dúvidas sobre o fatode que a continuidade dos estudos, de modo a promover o acesso à

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ciência, à tecnologia, à sócio-história e às artes e ao aprendizado do tra-balho intelectual, era para poucos; tratava-se, portanto, de uma duali-dade claramente assumida.

Como são vários os estudos de intelectuais brasileiros que, desdea década de 1970, tratavam desta temática, entre os quais se destacamCunha (1977), Frigotto (1984), Machado (1982, 1989) e Kuenzer(1985, 1988, 1997), optou-se por apenas resgatar o debate, como sub-sídio à discussão proposta neste artigo.

O discurso e as práticas flexíveis: a dualidade negada

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho a partir da subs-tituição da base rígida pela base flexível, por meio da mediação damicroeletrônica, trouxeram um novo discurso sobre a dualidade, ori-entado para a sua superação. Este discurso se justifica apontando ossinais de esgotamento do fordismo e do keinesianismo na contençãodas contradições inerentes ao capitalismo, resultantes da rigidez nos in-vestimentos, nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho, nasposições dos sindicatos, nas relações entre Estado, capital e trabalhoexpressas nas políticas públicas, nas formas de organizar e gerir o pro-cesso de trabalho, nas tecnologias de base física, e assim por diante.

O enfrentamento dos impactos negativos das formas de rigidezsobre as taxas de lucro passou a exigir a racionalização, reestruturação eintensificação do controle sobre o trabalho, o investimento em novastecnologias, a automação, a busca de novas linhas de produto e de ni-chos de mercado que permitissem rapidamente adequar a produção,qualitativa e quantitativamente, às demandas dos clientes. O toyotismoapresentou novas experiências na organização industrial e na vida social,que vão dar forma, na análise de Harvey, a um novo regime de acumula-ção, chamado por ele de flexível, que irá levar a novas relações entre aeconomia e o Estado, com profundos impactos sobre os trabalhadores esuas formas de organização.

Entendida a acumulação flexível como o regime que, confron-tando-se com a rigidez do fordismo, se apóia na flexibilidade dos pro-cessos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de con-sumo, tendo em vista assegurar a acumulação, tornam-se necessáriasnovas formas de disciplinamento da força de trabalho, sobre a qual

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recaem os resultados do acelerado processo de destruição e reconstru-ção de habilidades, os níveis crescentes de desemprego estrutural, a re-dução dos salários e a desmobilização sindical (Harvey, 1992, p. 141).

Estas novas formas de disciplinamento vão contemplar o desen-volvimento de subjetividades que atendam às exigências da produção eda vida social, mas também se submetam aos processos flexíveis carac-terizados pela intensificação e pela precarização, a configurar o consu-mo cada vez mais predatório e desumano da força de trabalho.

Para atender a estas demandas, o discurso da acumulação flexívelsobre a educação aponta para a necessidade da formação de profissio-nais flexíveis, que acompanhem as mudanças tecnológicas decorrentesda dinamicidade da produção científico-tecnológica contemporânea, aoinvés de profissionais rígidos, que repetem procedimentos memoriza-dos ou recriados por meio da experiência. Para que esta formação flexí-vel seja possível, torna-se necessário substituir a formação especializa-da, adquirida em cursos profissionalizantes focados em ocupaçõesparciais e, geralmente, de curta duração, complementados pela forma-ção no trabalho, pela formação geral adquirida por meio de escolarizaçãoampliada, que abranja no mínimo a educação básica, a ser disponibi-lizada para todos os trabalhadores. A partir desta sólida formação ge-ral, dar-se-á a formação profissional, de caráter mais abrangente do queespecializado, a ser complementada ao longo das práticas laborais.Como a proposta é substituir a estabilidade, a rigidez, pela dinami-cidade, pelo movimento, à educação cabe assegurar o domínio dos co-nhecimentos que fundamentam as práticas sociais e a capacidade detrabalhar com eles, por meio do desenvolvimento de competências quepermitam aprender ao longo da vida, categoria central na pedagogiada acumulação flexível. Se o trabalhador transitará, ao longo de sua tra-jetória laboral, por inúmeras ocupações e oportunidades de educaçãoprofissional, não há razão para investir em formação profissional espe-cializada; a integração entre as trajetórias de escolaridade e laboral re-sultará na articulação entre teoria e prática, resgatando-se, desta for-ma, a unidade rompida pela clássica forma de divisão técnica dotrabalho, que atribuía a uns o trabalho operacional, simplificado, e aoutros o trabalho intelectual, complexo.

Estão postas, portanto, pela materialidade da acumulação flexí-vel, as bases para a proposta de superação da dualidade estrutural, por

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meio de superestruturas que integrem teoria e prática, dentre as quaisse destaca o sistema escolar, cuja organização deverá ofertar um únicopercurso, de natureza geral, a ser assegurado para todos, até o final daeducação básica, dos 6 aos 17 anos.

O que há de novo nesta concepção é que a produção e o consu-mo na acumulação flexível passam a demandar uma relação com o co-nhecimento sistematizado, ou seja, de natureza teórica, mediada pelodomínio de competências cognitivas complexas, com destaque para ascompetências comunicativas e para o domínio da lógica formal, que nãoera demandada pelo taylorismo/fordismo, cuja concepção de conheci-mento fundava-se na dimensão tácita: resolver situações pouco com-plexas por meio de ações aprendidas através da experiência.

Como a nova base técnica demanda solução de problemas gera-dos por sistemas tecnológicos complexos, em tese, a educação, ao arti-cular educação geral e tecnológica, deveria qualificar todos os profissio-nais com este perfil. Ao mesmo tempo, prepararia os consumidores pararealizar a mercadoria em uma sociedade em que a volatilidade, o pre-sentismo e o hedonismo são dimensões importantes para assegurar aacumulação. Assim, a superação da dualidade viabilizaria a progressivademocratização do acesso ao conhecimento.

Resta analisar se esta concepção configura-se como possibilidadehistoricamente possível, dadas as formas de organização e gestão da pro-dução e da sociedade no regime de acumulação flexível. O ponto departida para esta discussão, portanto, é a concepção de trabalho nesteregime de acumulação, tendo em vista verificar se as novas formas desua organização e gestão permitem recompor a unitariedade rompidapelas formas rígidas, tal como propõe o toyotismo, por meio da ofertade estratégias e metodologias de organização e gestão do trabalho parasuperar a fragmentação taylorista/fordista.

O primeiro ponto a considerar neste debate é que a separaçãoentre teoria e prática tem origem na separação entre propriedade dosmeios de produção e força de trabalho. Desse modo, não são as formasde organização e gestão do trabalho, que respondem a diferentes regi-mes de acumulação, as responsáveis pela dualidade estrutural, senão aprópria natureza do capitalismo. Assim, não é o taylorismo/fordismoque cria a divisão técnica do trabalho, tão pouco o toyotismo será ca-paz de superá-la; estas propostas apenas respondem, no plano teórico/

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prático, às necessidades da produção em diferentes momentos históri-cos do desenvolvimento das forças produtivas; também não superamas formas anteriores de organização e gestão, mas, sendo hegemônicaspor períodos estáveis de acumulação, incorporam as formas anteriores,e de modo peculiar. Assim é que a acumulação flexível, embora carac-terizada por utilizar tecnologias de alta complexidade, incorpora o tra-balho domiciliar, quando e do modo que lhe interessa para asseguraros ganhos do capital.

É Marx, no Capítulo VI Inédito, que fornece os fundamentos paraesta análise, quando afirma que os meios de produção, por serem pro-priedade do capitalista, ao serem utilizados pelo trabalhador, comele se defrontam, em que pese a força de trabalho ser a própria mani-festação vital do trabalhador. É esta força de trabalho que, explorada,vai permitir a valorização do capital. No processo de trabalho, o traba-lhador consome os meios de produção ao transformá-los em produto,que atende a uma finalidade. Do ponto de vista da valorização, contu-do, o processo ocorre de outro modo:

(...) não é o operário quem utiliza os meios de produção; são os meios deprodução que utilizam o operário. Não é o trabalho vivo que se realiza notrabalho objetivo (...); é o trabalho objetivo que se conserva e aumentapela absorção do trabalho vivo, graças ao qual se converte em um valor quese valoriza, em capital, e como tal funciona. (Marx, 1978, p. 18-19)

É desta dupla face do trabalho, através da qual o trabalho hu-mano é, ao mesmo tempo, modo de existência humana e processo deprodução de valorização do capital, a este se incorporando, que se ori-gina a necessidade de organizar e gerir o trabalho diferentemente nosdistintos regimes de acumulação, ou seja, por meio de diferentes mo-dalidades de divisão técnica, mais ou menos fragmentadas, tal comoocorre na manufatura, na fábrica taylorizada ou, mais recentemente,na fábrica reestruturada aos moldes do toyotismo.

As distintas formas de fragmentação, portanto, surgem em decor-rência da necessidade de valorização do capital, e como uma estratégiaoriginal, que se diferencia de todas as formas anteriores de distribuiçãode tarefas, ofícios ou especialidades da produção.5 Em decorrência, há,necessariamente, que desenvolver processos educativos, nas relações so-ciais e nas escolas, que disciplinem os trabalhadores operacionais e in-telectuais para se submeterem a estas novas formas de trabalho.

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A origem da fragmentação do trabalho, portanto, não é a divisãotécnica, mas sim a necessidade de valorização do capital, a partir dapropriedade privada dos meios de produção; ou seja, a divisão técnica,que separa teoria e prática, é conseqüência do processo de valorizaçãodo capital. O que vale dizer que, se a divisão entre teoria e prática ex-pressa a divisão entre trabalho intelectual e manual como estratégia dedominação, tendo em vista a valorização do capital, esta ruptura só seráefetivamente superada em outro modo de produção.

Em conseqüência, a superação da dualidade não é uma questãoa ser resolvida através da educação, mediante novas formas de articula-ção entre o geral e o específico, entre teoria e prática, entre discipli-naridade e transdisciplinaridade; ou mediante uma nova concepção decompetência que tenha impacto nas políticas e programas de formaçãode professores. A dualidade só será superada se superada for a contradi-ção entre a propriedade dos meios de produção e da força de trabalho.

Embora, como em todo processo contraditório, haja espaço paraprocessos emancipatórios, é preciso reafirmar que o estatuto da escolaburguesa se constrói, historicamente, à luz das demandas de valoriza-ção do capital, para o que os processos de capacitação ou disciplina-mento da força de trabalho são vitais.

Dados estes pressupostos, há que considerar como a categoriatrabalho se concretiza no regime de acumulação flexível, de modo apropor o resgate da unidade entre teoria e prática, indicando a possi-bilidade de superar a dualidade através da educação, ou segundo odiscurso corrente, através do conhecimento.

Os estudos de Zarifian são um bom ponto de partida para de-monstrar como a proposta de resgate da dualidade estrutural é apre-sentada como possibilidade pela acumulação flexível. Para este autor,as mudanças ocorridas no mundo trabalho, principalmente a partir dabase microeletrônica, mesmo que absorvidas de forma desigual nos sis-temas industriais no mundo, reposicionam a atividade humana.

O trabalho, nesta perspectiva, deixa de se constituir em modosde fazer para significar o enfrentamento de eventos, compreendidoscomo as ocorrências imprevistas, inesperadas, parcial ou totalmente,que perturbam o desenvolvimento regular da produção e não podemser resolvidas pelas próprias máquinas, por meio de sistemas de auto-controle. Estes eventos dizem respeito a todas as dimensões da produção,

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desde as panes e falta de peças até as encomendas repentinas, e deman-dam capacidade de saber “inventar respostas que satisfaçam a um am-biente social complexo e instável” (Zarifian, 2001, p. 41-46).

É o trabalho compreendido como “enfrentar eventos” que justi-fica a emergência de um novo modelo de competências com foco nasolução de problemas, para o qual se passa a exigir mais conhecimen-tos teóricos e mais habilidades cognitivas complexas, ou seja, a capaci-dade de trabalhar intelectualmente, em oposição à competência com-preendida como conhecimento tácito, tal como ocorria no taylorismo/fordismo. A competência com foco na solução de problemas, contudo,não é apenas fruto da inteligência, pois para enfrentar eventos é preci-so estar em expectativa, pressenti-los, sendo fundamental a dimensãoda corporeidade, ou psicofísica, posto que a percepção passa pelo refi-namento da relação entre os sentidos e o campo de trabalho; são ruí-dos dissonantes, cheiros, trepidações, cores, sabores que, repentinamen-te, para o trabalhador experiente, sinalizam a emergência de um evento(Dejours, 1993, p. 286). Da mesma forma, argumenta Llory quandoafirma que um evento, ou acidente, não ocorre repentinamente, masvai sendo gestado ao longo do tempo e apresentando sinalizações per-ceptíveis ao trabalhador experiente (Llory, 2001, p. 21-36).

Visto dessa forma, o trabalho compreendido como enfrenta-mento de eventos, até porque implica ações que resultam da articula-ção entre percepções, conhecimentos teóricos e tácitos, resgataria a uni-dade corpo/intelecto, trabalho intelectual e manual, teoria e prática(Kuenzer, 2003b; Herold, 2007). Ou seja, permitiria a superação dadualidade estrutural! Se pudéssemos compreender o trabalho apenascomo expressão da prática individual, seria até possível sustentar estaargumentação, posto que a nova concepção de competência para en-frentar eventos implica a capacidade de trabalhar intelectualmente e,portanto, em valorização da educação escolar, contrariamente ao queocorria no taylorismo/fordismo, em que não se valorizava a educaçãoescolar para a execução do trabalho.

Ocorre que a concepção de trabalho, em sua dimensão ontológica,é eminentemente social, o que leva à necessidade de compreensão decomo homens e mulheres se relacionam entre si e com a natureza paraexistirem. E, nesse sentido, a acumulação flexível expressa a forma histó-rica contemporânea de existência do modo de produção capitalista, cuja

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essência continua sendo a contradição entre a propriedade privada dosmeios de produção e a venda da força de trabalho, embora assuma múl-tiplas e variadas formas de materialização.

Basta analisar de que modo se organiza o mercado de trabalho nesteregime de acumulação, ao passar por profunda reestruturação para res-ponder à volatilidade, ao estreitamento da margem de lucro e à acirradacompetição. Como mostra Harvey (1998, p. 143), o princípio que regeesta reestruração é “a redução do emprego regular a favor do crescenteuso do emprego em tempo parcial, temporário ou subcontratado”.

As empresas, para enfrentarem a competição, assegurando razoá-vel margem de lucro, mantêm um núcleo duro de trabalhadores está-veis, com boas condições de trabalho, política generosa de benefícios eoportunidades de qualificação permanente, para assegurar capacidadede adaptação a novas exigências do trabalho, inclusive mobilidade geo-gráfica. Estes profissionais são submetidos permanentemente a pro-cessos de formação científico-tecnológica e de gestão, uma vez que odomínio do conhecimento de ponta se configura como vantagem com-petitiva: “o próprio saber se torna uma mercadoria-chave, a ser produ-zida e vendida a quem pagar mais” (Harvey, op. cit., p. 151). Pode-seafirmar que a relação permanente com o conhecimento, aliada à opor-tunidade de enfrentamento de situações complexas, ou eventos, lhesconfere flexibilidade para dar conta da dinamicidade dos processosde trabalho intra-firma e, ao mesmo tempo, lhes assegura as condi-ções necessárias à mobilidade, quando não for mais possível ou inte-ressante retê-los.

Para além deste núcleo central, temos os grupos periféricos, com-postos por trabalhadores cujas competências são facilmente encontra-das no mercado e por toda a sorte de trabalhadores temporários esubcontratados, que apresentam baixa qualificação e alta rotatividade,uma vez que são incluídos/excluídos de ocupações precarizadas e in-tensificadas ao sabor das necessidades do mercado. Neste caso, a flexi-bilidade resulta da permanente movimentação de uma força de trabalhodesqualificada, ocupada em tipos diversificados de trabalho precarizado,consumida predatoriamente ao longo das cadeias produtivas, onde epelo tempo que se fizer necessária.

Se, no caso dos trabalhadores do núcleo duro, a flexibilização re-sulta da qualificação, no caso dos trabalhadores periféricos ela resulta

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da desqualificação. Para a formação/disciplinamento destes dois grupos,a educação básica atua de modo diferenciado: para os primeiros, assu-me caráter propedêutico, a ser complementada com formação científi-co-tecnológica e sócio-histórica avançada. Para os demais, assume o ca-ráter de preparação geral que viabiliza treinamentos aligeirados, comfoco nas diferentes ocupações em que serão inseridos ao longo das tra-jetórias laborais, em diferentes pontos de distintas cadeias produtivas;de todo modo, nestes casos, a educação básica, completa ou, na maio-ria das vezes, incompleta, resulta em formação final e contribui para aflexibilidade por meio da desqualificação.

É o que temos chamado, em outros textos, de exclusão includentena ponta do mercado, que exclui para incluir em trabalhos precarizadosao longo das cadeias produtivas, dialeticamente complementada pelainclusão excludente na ponta da escola, que, ao incluir em propostasdesiguais e diferenciadas, contribui para a produção e para a justifica-ção da exclusão. Ou seja, a dualidade estrutural, embora negada na acu-mulação flexível, não se supera, mantendo-se e fortalecendo-se, a par-tir de uma outra lógica.

Da mesma forma, embora a ciência, no capitalismo, sempre es-tivesse a serviço do capital, na acumulação flexível ela assume um novopapel, em face de sua crescente e dinâmica incorporação ao processoprodutivo: à medida que este se complexifica, passa a demandar o do-mínio do trabalho intelectual para os trabalhadores operacionais que,no taylorismo/fordismo, tinham sua competência definida pelo conhe-cimento tácito.

As categorias que configuram a dualidade estrutural na acumulaçãoflexível: uma síntese provisória

A síntese realizada nos itens anteriores, integrada aos dadoscoletados nas pesquisas que vimos desenvolvendo, permite indicar, paramaior desdobramento por meio de estudos posteriores, algumas cate-gorias que constituem a dualidade estrutural na acumulação flexível,do ponto de vista das relações entre trabalho e educação.

Não é demasiado reafirmar que partimos do pressuposto de quesão os trabalhadores que produzem os ganhos de produtividade, pormeio dos processos de intensificação e precarização que resultam em

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consumo predatório da força de trabalho, mediante a combinação deprocessos de extração de mais-valia relativa (uso intensivo de tecnologia)e absoluta (extensão da jornada de trabalho). Isso significa afirmar quea flexibilização do trabalho, categoria central no regime de acumula-ção flexível, longe de avançar no processo civilizatório do próprio ca-pital, representa o seu esgotamento, destruindo os poucos direitos quea classe trabalhadora conquistou ao longo de suas lutas (Frigotto,2005, p. 69).

Esta combinação, princípio basilar do toyotismo, é a essênciada flexilibização. Assim é que, para assegurar a competitividade, e por-tando a margem de acumulação, as firmas buscam, ao longo das ca-deias produtivas, a combinação ótima (nunca máxima, pois esta com-promete o custo final do produto) entre investimento em ciência etecnologia e consumo de trabalho humano. A estratégia, portanto, éo aumento de produtividade por meio da integração dos sistemas deprodução e não da mera implantação da automação; esta, quandoadotada, é definida a partir das necessidades da integração. Na ca-deia coureiro-calçadista pesquisada, esta estratégia é clara; não háautomação que supere o baixo custo do trabalho, que combina os ate-liês (oficinas), o trabalho domiciliar feito pelas costureiras e a redede trabalhadores manuais desqualificados que fazem os acabamentos,os trançados de couro, os bordados, a colocação das fivelas, enfim, oconjunto de atividades conhecidas como “enfiadinhos”.

A integração dos sistemas de produção permite, por meio dasubcontratação organizada, que sistemas mais antigos, como o traba-lho domiciliar, familiar, artesanal e paternalista, deixem de ser margi-nais e assumam um novo papel, passando a ser orgânicos e, portanto,fundamentais ao processo de acumulação. Na cadeia estudada, verifi-ca-se, por exemplo, uma relação “paternal” entre o intermediário e ostrabalhadores domiciliares, os quais, sem o seu apoio, não teriam comoconseguir trabalho de forma tão continuada quanto permitem as osci-lações de uma demanda marcada pela exportação.6 Ou seja, relações detrabalho que se supunham superadas por meio do processo civilizatóriodo capital retornam como estratégias essenciais ao processo de acumula-ção, combinadas com relações mais contemporâneas mediadas pela ciên-cia e pela tecnologia, por meio da flexibilização.

A compreensão, portanto, das categorias que regem a dualidadeestrutural na acumulação flexível só pode se dar por meio da apreensão

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das combinações que se dão através da integração dos sistemas produ-tivos, o que exige uma análise mais ampliada que capte as relações aolongo das cadeias.

Estas categorias não se revelam completamente por meio de aná-lises parciais que recortem partes do fenômeno; há que superar as opo-sições formais ou polarizações para apreender as categorias na totalida-de em movimento, em processo de constituição.

Arranjos flexíveis de competências diferenciadas

Diferentemente do que ocorria no taylorismo/fordismo, onde ascompetências eram desenvolvidas com foco em ocupações previamentedefinidas e relativamente estáveis, a integração produtiva se alimentado consumo flexível de competências diferenciadas, que se articulamao longo das cadeias produtivas. Estas combinações não seguem mo-delos pré-estabelecidos, sendo definidas e redefinidas segundo as estra-tégias de contratação e subcontratação que são mobilizadas, tendo emvista atender, de forma competitiva, às necessidades do mercado e, as-sim, assegurar as maiores margens de lucro possíveis, que, no processode internacionalização, tendem a ser estreitadas. Em decorrência, só po-dem ser apreendidas por meio de análise da dinâmica da integraçãoprodutiva como totalidade complexa em permanente processo de cons-trução e reconstrução, a partir da lógica da acumulação flexível.

Consequentemente, os arranjos flexíveis, em substituição à pola-rização de competências, não podem ser compreendidos como meraoposição, rígida e formal, entre os que têm formação científico-tecnológica avançada, e por isso se incluem, e a grande massa de traba-lhadores precariamente escolarizados, cuja força de trabalho éconsumida predatoriamente em trabalhos desqualificados, ou é excluí-da. São combinações que ora incluem, ora excluem trabalhadores comdiferentes qualificações, de modo a constituir corpos coletivos de tra-balho dinâmicos, por meio de uma rede que integra diferentes formasde subcontratação e trabalho temporário, e que, ao combinar diferen-tes estratégias de extração de mais-valia, asseguram a realização da ló-gica mercantil.

Se há combinação entre trabalhos desiguais e diferenciados aolongo das cadeias produtivas, há demandas diferenciadas, e desiguais,

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de qualificação dos trabalhadores; contudo, os arranjos são definidospelo consumo da força de trabalho necessário e não a partir da qualifi-cação. O foco não é a qualificação em si, mas como ela se situa em dadacadeia produtiva, com o que ela se relativiza; a priori, não há como afir-mar que certo trabalhador é ou não qualificado, uma vez que isso sedefine a partir de sua inclusão na cadeia; ou seja, a dimensão de rela-ção social da qualificação se superlativiza na acumulação flexível, queavança na centralização do trabalho abstrato.

Dessa forma, trabalhadores qualificados que estão incluídos emum determinado arranjo poderão não estar em outros, ou os que sãoqualificados para certos elos da cadeia não o serão necessariamente paraoutros; estar incluído a partir de uma dada qualificação não asseguraque não esteja excluído em outros momentos e vice-versa, dependendodas necessidades do sistema produtivo. O que determina a inclusão nacadeia, portanto, não é a presença ou a ausência de qualificação, masas demandas do processo produtivo que combinam diferentes necessi-dades de ocupação da força de trabalho, a partir da tarefa necessária àrealização da mercadoria.

Daí o caráter “flexível” da força de trabalho; importa menos aqualificação prévia do que a adaptabilidade, que inclui tanto as com-petências anteriormente desenvolvidas, cognitivas, práticas ou compor-tamentais, quanto a competência para aprender e para submeter-se aonovo, o que supõe subjetividades disciplinadas que lidem adequada-mente com a dinamicidade, com a instabilidade, com a fluidez.

A afirmação, portanto, da necessidade de elevação dos níveis deconhecimento e da capacidade de trabalhar intelectualmente, professadano discurso sobre a educação na acumulação flexível, mostra seu caráterconcreto: a necessidade de ter disponível para consumo, nas cadeias pro-dutivas, força de trabalho com qualificações desiguais e diferenciadas que,combinadas em células, equipes, ou mesmo linhas, atendendo a diferen-tes formas de contratação, subcontratação e outros acordos precários, as-segurem os níveis desejados de produtividade, por meio de processos deextração de mais-valia que combinam as dimensões relativa e absoluta.

Ao contrário do discurso da negação da dualidade, a análise das for-mas de consumo do trabalho nas cadeias produtivas evidencia o aprofun-damento da distribuição desigual, onde, para alguns, dependendo de ondee por quanto tempo estejam integrados nas cadeias produtivas, se reserva o

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direito de exercer, e sempre provisoriamente, o trabalho intelectual in-tegrado às atividades práticas, a partir de extensa e qualificada trajetó-ria de escolarização; o mesmo não ocorre com a maioria dos trabalha-dores, que desenvolvem conhecimentos tácitos pouco sofisticados, ematividades laborais de natureza simples e desqualificada.

Educação geral para a formação do “trabalhador multitarefa”

A formação de subjetividades flexíveis, tanto do ponto de vistacognitivo quanto ético, se dá, predominantemente, pela mediação daeducação geral, como já se afirmou anteriormente; é por meio dela,disponibilizada de forma diferenciada por origem de classe, que os quevivem do trabalho adquirem conhecimentos genéricos que lhes permi-tirão exercer, e aceitar, múltiplas tarefas no mercado flexibilizado. Sermultitarefa, neste caso, implica exercer trabalhos simplificados, repe-titivos, fragmentados, para os quais seja suficiente um rápido treina-mento, de natureza psicofísica, a partir de algum domínio de educa-ção geral, o que não implica necessariamente o acesso à educação básicacompleta.

Neste sentido, a educação geral, assegurada pelos níveis que com-põem a educação básica, tem como finalidade dar acesso aos conheci-mentos fundamentais e às competências cognitivas mais simples, quepermitam a integração à vida social e produtiva em uma organizaçãosocial com forte perfil científico-tecnológico, um dos pilares a susten-tar o capitalismo tardio, na perspectiva do disciplinamento do produ-tor/consumidor; e, por isso, a burguesia não só a disponibiliza, mas adefende para os que vivem do trabalho.

Ser flexível, para estes trabalhadores, significa adaptar-se ao mo-vimento de um mercado que inclui/exclui, segundo as necessidades doregime de acumulação. A competência, nos pontos desqualificados dascadeias produtivas, resume-se ao conhecimento tácito, demandado pelotrabalho concreto. Não há, para estes trabalhadores que atuam nos se-tores precarizados, demandas relativas ao desenvolvimento da compe-tência de trabalhar intelectualmente em atividades de natureza cientí-fico-tecnológica, em virtude do que não se justifica formação avançada.

É interessante observar, como mostrou a pesquisa no setor coureiro-calçadista, que mesmo os gestores de pequenos empreendimentos, cujo

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processo de trabalho é pouco complexo, têm clareza que, para a amplia-ção da extração de mais-valia, o conhecimento da tecnologia usada noprocesso de trabalho é estratégico; e exatamente por isso não o democra-tizam. Neste sentido, as políticas de educação, ao negar aos que vivemdo trabalho a possibilidade de acesso à formação tecnológica, em nomede uma educação genérica, respondem às demandas da acumulação.

Para os que exercerão atividades complexas na ponta qualificadadas cadeias produtivas, a educação básica é rito de passagem para a edu-cação científico-tecnológica e sócio-histórica de alto nível. Nestes ca-sos, a flexibilidade, atributo geralmente exercitado internamente às fir-mas, advém da capacidade de trabalhar intelectualmente e atuarpraticamente, para usar a expressão gramsciana (Gramsci, 1978), esta-belecendo-se uma maior integração entre concepção e atuação. Ou,como afirma Antunes (2005, p. 42-43), a nova fase do capitalretransfere o saber fazer para o trabalho, apropriando-se de sua dimen-são intelectual, procurando envolver mais intensamente a subjetivida-de operária. Ao mesmo tempo, transfere parte do saber intelectual paraas máquinas informatizadas, que se tornam mais inteligentes, reprodu-zindo parte das atividades a elas transferidas pelo saber intelectual.

Ser multitarefa, neste caso, significa a capacidade de adaptar-sea múltiplas situações complexas e diferenciadas, que demandam o de-senvolvimento de competências cognitivas mais sofisticadas que permi-tam a solução de problemas com rapidez, originalidade e confiabilidade.Para tanto, há que assegurar formação avançada, que articule as dimen-sões geral e específica.

A segunda categoria, portanto, que configura a dualidade na acu-mulação flexível é a distribuição desigual e diferenciada de educação que,ao contrário do que ocorria no taylorismo/fordismo, valoriza a educaçãobásica para os que vivem do trabalho, como condição para a formaçãoflexível; e educação específica, de natureza científico-tecnológica e sócio-histórica, para os que vão exercer o trabalho intelectual, de modo a asse-gurar que a posse do que é estratégico, nesse caso o conhecimento quepermite inovação, permaneça com o capital.

A estratégia por meio da qual o conhecimento é disponibilizado/negado, segundo as necessidades desiguais e diferenciadas dos processos detrabalho integrados, é o que temos chamado de inclusão excludente naponta da escola. Ao invés da explícita negação das oportunidades de acessoà educação continuada e de qualidade, há uma aparente disponibilização

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das oportunidades educacionais, por meio de múltiplas modalidades e di-ferentes naturezas, que se caracterizam por seu caráter desigual e, na maio-ria das vezes, meramente certificatório, que não asseguram domínio de co-nhecimentos necessários ao desenvolvimento de competências cognitivascomplexas vinculadas à autonomia intelectual, ética e estética.

Neste raciocínio também se inclui o ensino superior, que passoua assumir natureza genérica, não-especializada, e de duração reduzida,sempre que possível, a partir das novas diretrizes curriculares que subs-tituíram os currículos mínimos. Na nova concepção, expandida atravésdo setor privado, o ensino de graduação passa a se constituir em ter-ceira etapa da educação básica, ficando postergada para a pós-gradua-ção e, portanto, mais elitizada, para a formação avançada em ciência etecnologia e sócio-história.

Conclui-se, desta rápida exposição, que a relativização da quali-ficação com foco na ocupação permite a formação de um maior con-tingente de trabalhadores com mais educação, se possível básica com-pleta e até superior, o que viabilizará maior flexibilidade em seu usocombinado ao longo das cadeias produtivas. Desta forma, caracteriza-se menor dependência do capital em relação ao trabalho qualificado,que, pelo uso flexível, fica mais vulnerável.

Já o conhecimento científico tecnológico, integrado à cultura eao trabalho, por seu caráter estratégico para a competitividade por meioda inovação, tem sua distribuição mais controlada e, embora tambémseja disponibilizado de forma diferenciada para atender aos arranjos fle-xíveis, tem caráter mais elitizado.

Enfim, a relativização da qualificação pela banalização das com-petências,7 ao tempo que liberta o capital das competências específi-cas, permite-lhe maior liberalidade quanto à oferta de educação maisampliada, o que, inclusive, passa a defender... desde, é claro, que man-tenha privada a propriedade do conhecimento estratégico à acumula-ção, qual seja, o conhecimento científico-tecnológico e sócio-históricode ponta, reservado aos intelectuais que trabalham como seus prepostos.

A relação entre conhecimento tácito e conhecimento científico: aintelectualização das competências

Já se afirmou, com base em pesquisas realizadas nos últimos 12anos, que no taylorismo/fordismo a competência, predominantemente

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psicofísica e fragmentada, advinda antes da experiência do que da rela-ção com o conhecimento sistematizado, tinha natureza predominante-mente tácita, para a maioria das ocupações. Este conhecimento se in-sere no âmbito das dimensões subjetivas do trabalho, constituindo-sede formas inconscientes, não-sistematizadas, não-transferíveis e geral-mente não-reconhecidas, por meio das quais os trabalhadores, mesmodesqualificados, resolvem os problemas derivados das prescrições de tra-balho, a partir do que têm amplo poder de intervenção (Jones & Wood,1984).

Os resultados destas pesquisas, tais como as realizadas por auto-res anteriormente citados, mostraram que o conhecimento tácito nãodesaparece com a implantação de novas tecnologias, em particular comas de base microeletrônica, mas muda de qualidade, passando a exigirmaior aporte de conhecimentos científicos que não podem ser obtidossomente por meio da prática, senão por meio de cursos sistematizados.

Por um lado, os estudos mostram que a implantação de novastecnologias de base microeletrônica não prescinde do conhecimentotácito dos operadores mais antigos; ao contrário, os mais experientes,repositórios de conhecimentos tácitos relevantes, assumem papel pri-mordial na implantação de novos sistemas, processos ou equipamen-tos. Por outro lado, a apropriação de conhecimentos científico-tecnoló-gicos necessários para a implantação de novas tecnologias de basemicroeletrônica demanda relação permanente e sistematizada com oconhecimento teórico, através do domínio das categorias do trabalhointelectual, o que leva à necessidade de formação sistematizada.

Esta conclusão, ao mesmo tempo em que valoriza o conhecimen-to tácito, contraditoriamente põe os trabalhadores em maior dependên-cia de conhecimentos científicos a serem obtidos por meio de proces-sos formativos escolares e não-escolares, o que é indicador de umcenário de aprofundamento da dualidade. Os trabalhadores com difi-culdades de requalificação intelectualizada, em decorrência da preca-rização cultural derivada da origem de classe, tendem ou à exclusão ouà inclusão nos setores mais precarizados nos arranjos flexíveis de forçade trabalho.

Vista desta forma, a relação entre conhecimento tácito e conhe-cimento científico na base microeletrônica não é de oposição, mas simde articulação dialética, posto que são categorias que se integram aos

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processos de trabalho flexibilizados, nos quais a prevalência do tácitoou do científico responde à especificidade do trabalho a ser realizadopor uma força de trabalho de qualificações diferenciadas, que se articu-lam para atender às necessidades das cadeias produtivas. Ou, como afir-ma Antunes (2005, p. 41), “ontologicamente prisioneiros do solo ma-terial estruturado pelo capital, o saber científico e o saber laborativomesclam-se mais diretamente no mundo contemporâneo”. Contudo, atransferência das capacidades intelectuais para a maquinaria, como afir-ma o autor, acentua a transformação do trabalho vivo em trabalho mor-to, mas não pode eliminá-lo.

Llory (2001, p. 21-26) reforça este argumento com dados depesquisa sobre os acidentes industriais, concluindo que é no e pelo tra-balho cotidiano e graças à atividade e ao savoir-faire dos trabalhadoresem todos os níveis que a maioria dos acidentes latentes não se tornamacidentes ativos. Quando os controles automatizados falham, ou quan-do o planejador do sistema de controle não previu proteções para umdado evento, o controle dos acidentes depende do conhecimento dostrabalhadores, ou seja, do trabalho vivo. Esta conclusão é no mínimocontraditória com os estudos referentes aos equipamentos técnicos e àsegurança das instalações, do ponto de vista da confiabilidade que re-presenta o trabalho morto, resultante da transferência de capacidadesintelectuais para máquinas informatizadas. Esta estratégia decorre dasuposição da fragilidade do trabalho vivo, que deverá, sempre que pos-sível, ser substituído por dispositivos técnicos de segurança.

Decorre desta afirmação uma importante questão: Se, quando ossistemas não funcionam, a confiabilidade depende da subjetividade dostrabalhadores que lhes permite inventar soluções que tragam o sistemapara a condição segura, evitando acidentes, como desenvolver este co-nhecimento tácito, se as experiências cotidianas, que se constituem nofundamento das aprendizagens e das suas transferências para novas si-tuações, são cada vez mais inviabilizadas pela automação? E, na ausên-cia do conhecimento tácito, será suficiente o conhecimento científico,sem a base anterior da experiência de campo? (Kuenzer, 2003b).

A base microeletrônica, portanto, na medida em que traz à dis-cussão a concepção de competência enquanto práxis, apontando para arelação dialética que se estabelece entre conhecimento tácito e conhe-cimento científico, e valorizando o trabalho vivo, aponta a necessidade

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de uma “formação mais complexa da força de trabalho, maismultifuncional, que será explorada de modo mais intenso e sofistica-do” (Antunes, 2005, p. 41). É importante lembrar, contudo, que estademanda de formação mais intelectualizada não se distribui por toda acadeia, estando presente apenas nos setores tecnologicamente mais de-senvolvidos. Para os trabalhadores que estão presos a tarefasdesqualificadas ou pouco complexas tecnologicamente, o conhecimen-to tácito permanece fundamental.

De qualquer modo, estas conclusões trazem ao debate o carátermediador da ação educativa, mediante a qual se articulam teoria e prá-tica, no plano do pensamento e por meio do trabalho intelectual, demodo a permitir a compreensão e sistematização do conhecimento tá-cito e sua transformação em conhecimento científico. Justifica-se, des-te modo, o resgate das ações educativas sistematizadas, escolares e não-escolares, pelo regime de acumulação flexível.

Políticas e financiamento: a educação pública não-estatal e aprecarização da formação dos que vivem do trabalho

Finalmente, há que considerar que a acumulação flexível implicanovo arranjo nas relações entre Estado, capital e trabalho, no tocanteao estabelecimento de novos padrões de regulação. Do ponto de vistada educação, estes novos padrões de regulação apontam duas direçõesque se integram: a crescente privatização mediante a concepção da edu-cação como função pública não-estatal e a fragmentação de ações pormeio de programas fragmentados em substituição à formulação de po-líticas públicas, o que justifica e ao mesmo tempo cria os mecanismospara o repasse de recursos públicos para instituições privadas, em par-ticular para as comunitárias e para as organizações não-governamentais.

A partir da alegação da “impossibilidade” do Estado em cumprircom suas funções, pretensamente melhor desempenhadas por organi-zações privadas mais ágeis, que asseguram mais eficácia e maior ampli-ação da capacidade de atendimento, as relações entre Estado e socieda-de civil passam a se dar por meio das parcerias entre o setor público eo setor privado.

Estas relações supõem o repasse de parte das funções do Estadopara a sociedade civil, acompanhado do repasse de recursos financeiros,

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que, realizados sob o ordenamento jurídico privado, fogem aos contro-les públicos da União.

Para conferir operacionalidade a estas parcerias, a formulação depolíticas públicas passa a ser substituída pela proposição de programasque, além de fragmentarem as ações, duplicam financiamentos e es-truturas para as mesmas finalidades, sem que haja controle de suaefetividade social. Ou seja, guardando coerência com as categorias an-teriormente citadas, a flexibilização também atinge a esfera do financia-mento, que passa a contemplar ações fragmentadas, desarticuladas eduplicadas que contemplam intervenções pontuais, as quais, obedecen-do à lógica do presentismo, abandonam os projetos de longo prazo ori-entados pelas utopias.8

A intelectualização do trabalho e suas contradições: amplia-se oespaço político de intervenção da escola

A acumulação flexível, ao demandar o estreitamento das relaçõesentre trabalho intelectual e operacional, aproximando ciência, culturae trabalho a partir da crescente intelectualização das atividades laborais,ao mesmo tempo que aprofunda e sofistica as estratégias de explora-ção, produz o seu contrário.

Ao reconhecer que o novo disciplinamento para o trabalho flexí-vel em uma sociedade atravessada pela microeletrônica exige a capaci-dade de trabalhar intelectualmente, reconhece a importância de am-pliação da escolaridade para os que vivem do trabalho, reposicionandoo papel da escola. Mesmo com todos os limites impostos pela sua con-dição burguesa, são os processos educativos os responsáveis pela eleva-ção da prática ao nível do pensamento, ou, dito de outro modo, são osprocessos educativos que fazem a mediação entre a teoria e a prática.

Assim, oferecer possibilidades de acesso em níveis cada vez maisampliados a um número cada vez maior de trabalhadores tem conse-qüências, uma vez que não há como controlar a energia liberada atra-vés da produção e circulação do conhecimento e da capacidade de aná-lise crítica que este gera.

Concordando com Gounet (1999, p. 11), quando afirma quetodas as condições objetivas para a ruína do capitalismo estejam pre-sentes com o aguçamento das contradições, embora o mesmo não se

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dê com as condições subjetivas que têm estado cada vez mais ausentes,há que reconhecer que é exatamente esta realidade, mediante aestimulação do avanço na construção de práticas educativas, que formasubjetividades comprometidas com a transformação das relações sociais.

Ou seja, a nova síntese entre corporeidade e intelectualidade, pre-sente na concepção de competência como práxis, embora se realize a partirda lógica da acumulação flexível na perspectiva da unilateralidade, porcontradição, permite recuperar a concepção de omnilateralidade comoum dos fundamentos dos processos de formação humana.

Recebido em junho de 2007 e aprovado em julho de 2007.

Notas

1. Pesquisas que vêm sendo realizadas por Kuenzer a partir de 1996, com financiamento doCNPq, em plantas produtivas na Região Metropolitana de Curitiba, cujos resultados estãodisponíveis em Kuenzer (2002, 2003a, 2003b, 2005 e 2006).

2. Harvey (1992, p. 140) conceitua acumulação flexível como o regime de acumulação que,confrontando-se com a rigidez do fordismo, apóia-se na flexibilidade dos processos de tra-balho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo. Esta flexibilização deman-da novas formas de disciplinamento dos agentes econômicos e políticos.

3. Referência a Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet. Para compreender o pa-pel que estes autores tiveram no pensamento e na organização dos intelectuais que fizeramoposição ao regime militar, ver Saviani (1997, p. 79).

4. Apenas em 1961, com a Lei n. 4.024/61, que promulgou as Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional, estabeleceu-se a articulação plena entre os ramos secundário de 2° ciclo eprofissional, para fins de acesso ao ensino superior.

5. Para aprofundamento desta análise, ver Braverman (1977).

6. Para aprofundar a análise, consultar Harvey (1998, Parte II, p. 115 -184).

7. Expressão usada por Gorz (1988, p. 102) para caracterizar a simplificação do trabalho apartir da base microeletrônica, de modo que, com alguma formação, quase todos podemfazer quase tudo.

8. Este tema foi tratado de forma mais ampliada por Kuenzer (2006, p. 887-906).

Referências bibliográficas

ANTUNES, R. Trabalho e superfluidade. In: SAVIANI, D.; SANFELICE,J.L.; LOMBARDI, J.C. (Org.). Capitalismo, trabalho e educação. 3. ed.Campinas: Autores Associados, 2005. p. 35-44.

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Acacia Zeneida Kuenzer

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