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MARGEM, SÃO PAULO, N o 16, P. 183-221, DEZ. 2002 Da culturanÆlise à política cultural 1 EDGAR MORIN O Sistema cultural A palavra armadilha Cultura: falsa evidŒncia, palavra que parece œnica, estÆvel, resistente, mas que Ø uma palavra armadilha, va- zia, hipnótica, frÆgil, hipócrita, infiel. Palavra mito que pretende ser instru- mento de salvaçªo: verdade, sabedoria, bem-viver, liberdade, criatividade... Poder-se-ia dizer, no entanto, que a cultura Ø uma palavra científica. Nªo existe uma antropologia cultural? Nªo se fala de uma sociologia da cultura? SerÆ que nªo conseguiríamos medir o desenvolvimento cultural dentro de um laboratório? Na verdade, a noçªo de cultura nªo Ø menos obscura, incerta e mœltipla nas ciŒncias do homem do que no vocabu- lÆrio corrente: a) HÆ um sentido antropológico no qual a cultura se opıe à natureza e que engloba tudo o que nªo per- tence ao comportamento inato. Co- mo Ø característica própria do ho- mem possuir instintos fracamente programados, a cultura, isto Ø, tudo o que decorre da organizaçªo, da estruturaçªo, da programaçªo so- cial, confunde-se finalmente com tudo que Ø propriamente humano. b) Uma outra definiçªo antropológi- ca consideraria dependente da cul- tura tudo o que fosse dotado de sentido, a começar pela linguagem. Tªo amplamente quanto na primei- ra definiçªo, a cultura envolve to- das as atividades humanas mas sa- 1. Traduçªo de Edgard de Assis Carvalho (e-mail: [email protected]) do origi- nal: Communications. 14, Paris 1969. École Prati- que des Hautes Études/Centre dÉtudes des Communications de Masse/Seuil, Ødition du Seuil.

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Da culturanálise àpolítica cultural1

EDGAR MORIN

O Sistema cultural

A palavra armadilha

Cultura: falsa evidência, palavraque parece única, estável, resistente,mas que é uma palavra armadilha, va-zia, hipnótica, frágil, hipócrita, infiel.Palavra mito que pretende ser instru-mento de salvação: verdade, sabedoria,bem-viver, liberdade, criatividade...

Poder-se-ia dizer, no entanto, quea cultura é uma palavra científica. Nãoexiste uma antropologia cultural? Nãose fala de uma sociologia da cultura?Será que não conseguiríamos medir odesenvolvimento cultural dentro deum laboratório?

Na verdade, a noção de cultura nãoé menos obscura, incerta e múltipla nasciências do homem do que no vocabu-lário corrente:

a) Há um sentido antropológico noqual a cultura se opõe à natureza eque engloba tudo o que não per-tence ao comportamento inato. Co-mo é característica própria do ho-mem possuir instintos fracamenteprogramados, a cultura, isto é, tudoo que decorre da organização, daestruturação, da programação so-cial, confunde-se finalmente comtudo que é propriamente humano.

b) Uma outra definição antropológi-ca consideraria dependente da cul-tura tudo o que fosse dotado desentido, a começar pela linguagem.Tão amplamente quanto na primei-ra definição, a cultura envolve to-das as atividades humanas mas sa-

1. Tradução de Edgard de Assis Carvalho(e-mail: [email protected]) do origi-nal: Communications. 14, Paris 1969. École Prati-que des Hautes Études/Centre d�Études desCommunications de Masse/Seuil, édition du Seuil.

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lienta seu aspecto semântico e inte-lectual.

c) Existe um sentido etnográfico emque o cultural, em oposição aotecnológico, reagruparia crenças,atos, normas, valores, modelos decomportamentos (termos heteró-clitos tirados de diversos vocabu-lários, estocados no bazar cultural,por falta de um lugar melhor).

d) O sentido sociológico da palavracultura ainda é mais residual: ao re-cuperar os restos não assimiláveispelas disciplinas econômicas, de-mográficas, sociológicas, ele envol-ve o domínio psicoafetivo, a per-sonalidade, a �sensibilidade�, esuas aderências sociais, reduzindo-se, às vezes, ao que aqui denomi-naremos cultura erudita, ou seja:

e) A concepção que centra a culturanas humanidades clássicas e no gos-to artístico-literário. Essa concep-ção, diferentemente das anteriores,é extremamente valorizada: o eru-dito se opõe, de forma ética e eli-tista, ao inculto.

A palavra cultura oscila, de umlado, entre um sentido total e residu-al, e, de outro, entre um sentidoantropo-sócio-etnográfico e um senti-do ético�estético.

Na verdade, tanto na conversaçãoquanto no debate, passa-se, sem per-ceber, do sentido amplo ao restrito, doneutro ao valorizado.

Quando se passa do termo culturade massa para o termo cultura erudita,sem fazer uma adaptação do sentidoda palavra, uma passa a se opor à ou-

tra, permitindo, por exemplo, colocarfrente a frente Sylvie Vartan e Sócrates,Fernandel e Paul Valéry, os segundos,com freqüência, em detrimento dosprimeiros. O que se verifica aqui é umconfronto entre uma cultura de massade natureza etno-sociológica, e umacultura erudita, normativa-aristo-cratizante; não é possível conceber-seuma política cultural sem que, desde oinício, leve-se em conta que essas duasnoções são pertencentes a níveis dife-rentes.

Uma questão se coloca a partir daí:apesar de suas heterogeneidades eequívocos, a noção de cultura tem per-tinência? De forma mais ampla, há al-gum sentido na palavra cultura capazde unificar esses significados tão dife-rentes? Existe um sentido de culturaque escapa da definição totalizante eda definição residual entre as quais elaoscila, e que seria capaz unificá-los?

Duas démarches, dois métodos, duasfilosofias que podem, simultaneamen-te, dar conta do caráter global (ou ge-ral) da cultura. Como já percebemos, aprimeira conduz o cultural para o se-mântico, e vai procurar o código e aestrutura dos sistemas culturais, toman-do como inspiração os modelos da lin-güística estrutural.

Segundo a outra démarche, são osaspectos existenciais que se encontramno cerne da cultura. De forma notável,essa abordagem foi renovada porMichel de Certeau.2 A cultura não deveser considerada nem como conceito,

2. CERTEAU, Michel de, (1968), La prise de la parole.Paris, Desclée de Bicouver.

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nem como princípio indicativo, mascomo a forma pela qual um problemaglobal é vivido. Nesse nível há umacoincidência com a interpretação vigo-rosa que Jacques Berque extraiu a pro-pósito da «revolução �cultural� demaio»: o que chamamos de cultura hojenada mais é do que a totalização deprocessos, de diferentes estágios, di-ferentes categorias, diferentes níveisque, cada vez mais, assumem um sen-tido subjetivo, estético e mesmo ima-ginário.3 Michel de Certeau vai maislonge nesse sentido: a cultura seria olimite e o nome genérico de que ne-nhuma pesquisa conseguiria dar con-ta; essa noção envolveria, em suma, amais rica de todas as realidades, que«nosso pobre saber ocidental»(Certeau) seria incapaz de compreender.

Observa-se, assim, as duas grandescorrentes de pensamento contemporâ-

neas, uma limitando a cultura a estru-turas organizadoras, a outra reduzin-do-a a um plasma existencial. Cada umadelas, no entanto, dá ênfase a uma di-mensão essencial, mas sua oposição ex-cludente desloca a problemática da cul-tura. Se é preciso encontrar um senti-do para a noção de cultura, esse certa-mente ligaria a obscuridade existencialà forma estruturante.

O sistema cultural

É necessário, então, considerar acultura como um sistema dialético queviabiliza a comunicação entre uma ex-periência existencial e um saber cons-tituído.

Tratar-se-ia de um sistema indis-sociável, em que o saber, estoque cultu-ral, seria registrado e codificado, as-similável somente pelos detentores docódigo, pelos membros de uma cultu-ra dada (linguagem e sistema de sig-3. L�Homme et la Societé, no. 8, avril-juin 1968, p. 31.

Existência

Código

Saber

Padrões-ModeloZONA OBSCURA

ANTROPOCOSMOLÓGICA

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nos e símbolos extralingüísticos); o sa-ber estaria simultanea e constitutiva-mente ligado a padrões e modelos(patterns) que permitem organizar e ca-nalizar as relações existenciais, práti-cas e/ou imaginárias. A relação com aexperiência é bivetorial: de um lado, osistema cultural extrai da existência aexperiência que permite assimilar eeventualmente acumular, de outro, for-nece à existência os quadros e estrutu-ras que assegurarão, dissociando oumesclando, a prática e o imaginário, ouseja, a conduta operacional e a partici-pação, assim como o gozo e o êxtase.

Essa concepção permite conceber arelação homem-sociedade-mundo quesustenta e define uma cultura atravésde relés polarizadores e transformado-res, assim como o código e o padrãoconstitutivos de cada um dos comple-xos subsistemas no interior do sistema(subsistemas que as teorias parcelaresinterpretam como sistema total).

Além do mais, essa concepção per-mite englobar de forma coerente o queexistia de residual e catalogado de for-ma desordenada, nas concepções etno-sociológicas da cultura: a personalida-de (de base ou não), a sensibilidade,os mitos e as idéias-força, os tabus e osmandamentos.

Uma concepção como essa tem agrande vantagem de poder ser aplica-da a todas as noções de cultura, desdea mais global (cultura em oposição ànatureza), até a mais estrita (culturaerudita). Uma cultura, mesmo estrita elimitada, envolve, em seu campo par-ticular, uma parte da relação homem-sociedade-mundo.

O que distingue as noções de cul-tura umas das outras é a amplitudedo sistema, a extensão do saber, docampo de experiência existencial, dasnormas e modelos que o olhar antro-pológico, etnográfico, sociológico oucultural destaca. A cultura da antro-pologia cultural engloba, assim, todoo saber, o campo da experiência, oscódigos e as normas-modelo existen-tes em um sistema global oposto aosistema instintivo ou natural. Emcontrapartida, a cultura erudita con-tém apenas o saber das humanidades,letras e artes, um código refinado, umsistema de normas-modelo que desá-gua tanto no imaginário como nosaber-viver. As culturas diferenciam-se não apenas pela amplitude do cam-po, mas pelo código, pela infinita di-versidade de modelos e, mais inten-samente, pelos modos de distribuiçãoe de comunicação entre o real e o ima-ginário, o mítico e o prático.

Acrescentemos aqui duas observa-ções essenciais:

a) Concebemos a cultura como um sis-tema metabolizante, isto é, que as-segura as trocas (variáveis e dife-renciadas segundo as culturas) en-tre os indivíduos, entre o indivíduoe a sociedade, entre a sociedade eo cosmo.

b) Esse sistema deve ser articulado àtotalidade do sistema social. Pode-se conceber o sistema social globalcomo sistema cultural que se opõeao sistema natural; pode-se igual-mente conceber a cultura como rea-lidade econômica, social, ideológi-

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ca e articulá-la às outras dimensõessociais. Por isso mesmo, constata-se que a cultura não é nem supe-restrutura, nem infra-estrutura,mas sim o circuito metabólico queune o infra-estrutural ao hiperes-trutural.

Munidos dessa concepção da cul-tura poderemos tentar empreender aculturanálise rudimentar e preliminarde nossa sociedade. Diferentementedas sociedades arcaicas, em que magia-religião estabelecem uma unidade cul-tural sincrética de saberes e experiên-cias, da qual se pode, talvez, extrairuma personalidade de base, as socie-dades históricas, e de maneira singu-lar a nossa, assistem à justaposição eao cruzamento dos sistemas culturais,inclusive no mesmo indivíduo. Nossasociedade é policultural. Há a culturadas humanidades, matriz da culturaerudita, a cultura nacional, que cultivae exalta a identificação com a nação, asculturas religiosas, as culturas políticas,a cultura de massa. Além do mais, cadauma delas é atravessada por correntesantagônicas. Lenin afirmou com razão:�Há duas culturas em cada cultura na-cional�. Veremos que há um dualismoprofundo, tanto na cultura erudita,como na cultura de massa... A culturana nossa sociedade é constituída porum sistema simbiótico-antagônico demúltiplas culturas, em que não existehomogeneidade.

A cultura erudita

Enfrentemos agora os dois dragõesculturais que nos impedem de encararos problemas: a cultura erudita e a cul-tura de massa.

Na história de nossa sociedade, acultura erudita é sempre consideradasimultaneamente como secundária eessencial. Secundária em termos dahierarquia cultural, que a situa depoisda cultura religiosa ou nacional, secun-dária no sentido de ser uma cultura vi-vida no plano estético e que não é por-tador de verdades imperiosas como asda fé ou da ciência. Na verdade, a cul-tura erudita parece ser o ornamento, oantídoto e a máscara da sociedade aris-tocrática, burguesa, empreendedora,técnica e guerreira. No entanto, ela éessencial: é a cultura que se transmitianos colégios às crianças das elites do-minantes, e que se quer, agora, difun-dir como portadora de alguma funçãosecreta e maravilhosa no plano maisíntimo da personalidade.

A cultura erudita constitui um sis-tema do qual tentaremos destacar ostraços distintivos.

O saber que a constitui é o saberdas humanidades, de raízes greco-la-tinas e de caráter artístico-literário.Esse saber é profano-laico: pode tantocompletar o saber religioso com conhe-cimentos profanos, como tornar-se baseda laicidade, substituindo a teologiapelas humanidades. Na verdade, essashumanidades constituem um saberhumanístico que se interessa sobretu-do pelo destino do homem no mundo,

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terreno fértil dos diversos humanis-mos. Se o saber greco-latino cai, pro-gressivamente, em desuso, ele é subs-tituído por um saber ensaísta, simulta-neamente parafilosófico e paracien-tífico, mas não especializado, e issoporque sua proposta é idêntica à dasantigas humanidades, ou seja, fazercom que o �homem comum� tenha aces-so à cultura geral.

O código constitutivo desse saberé de natureza simultaneamente cogni-tiva e estética. Possuir essas humani-dades não é somente conhecer o quedizem Montaigne, Pascal, La Roche-foucauld sobre a natureza humana, masé também apreciar sua arte de dizer epoder exprimir-se segundo o status deuma língua literária sutilmente idênti-ca e diferente da língua normal. A pos-se do código estético-cognitivo pro-porciona um fundamento duplo e sutilao elitismo (esoterismo e aristocratis-mo), mais ou menos amplo, mais oumenos refinado, mais ou menos confi-nado, característico da cultura erudi-ta. A posse do caráter estético do có-digo permite ligá-lo ao gosto e à quali-dade pessoal de seu detentor. Seu usomonopolista aparece aos seus bene-ficiários, ou seja, à intelligentsia ou àsclasses superiores, como um dom pes-soal e não como um privilégio socioló-gico (Bourdieu-Passerron).

Os padrões-modelos dessa culturase conjugam para formar a imagem ide-al do homem erudito, que passa docontexto aristocrático para o contextodo individualismo burguês. Trata-senão apenas de esquemas estéticos degosto e de esquemas cognitivos

humanísticos, mas de padrões culturais,no sentido pleno do termo, que de-terminam e orientam a formação, aestruturação e a expressão das percep-ções, dos sentimentos, sobretudo doamor e, mais amplamente, da sensibi-lidade e da personalidade. Essa cul-tura erudita assegura e organiza umaampla e profunda estetização da vida;ela torna acessíveis os prazeres daanálise, o bem-estar na relação vividacom o outro e com o mundo; afirmaque a relação com o Belo é uma ver-dade profunda da existência, que aobra de arte, mesmo que sob formaembrionária e residual, é depositáriadaquilo que na religião se exprimecomo sendo o sagrado.

A cultura erudita é uma cultura nosentido pleno da palavra porque elaopera uma dialética comunicante, es-truturadora e orientadora, entre o sa-ber e a participação no mundo; mas étambém restrita, tanto pela extensão deseu campo social limitado a uma elite,quanto pelo papel parcial que desem-penha junto a ela, e isso porque seusmembros obedecem a outros estímu-los culturais ou pulsionais, quando setrata de seus interesses e de suas pai-xões. Na mais ínfima disputa com umcrítico ou com sua mulher, o escritorrefinado comporta-se como um car-roceiro ou um motorista de caminhão.

A cultura erudita aparece comouma espécie de quintessência da sobre-cultura, o néctar mais sutil que a socie-dade pode produzir. Mesmo diantedas crises recentes, ela permanece comoportadora de uma extrema valorizaçãoaos olhos de seus detentores, assim

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como daqueles que são desprovidosdela. Na verdade, a cultura erudita pa-rece conter uma universalidade essen-cial (uma verdade superior e geral so-bre o homem no mundo),4 um refina-mento essencial (por sua natureza ar-tístico-literária) e, por isso mesmo, umaespiritualidade que representa o dis-farce, a falta, o ornamento, a necessi-dade de uma civilização baseada naforça, no poder e na riqueza.

Essa extrema valorização é causa econseqüência do extremo elitismo dacultura erudita. É preciso um aprendi-zado mais ou menos longo, qualidadesmais ou menos sutis para se apropriardo seu código, cujos últimos arcanosestão reservados apenas aos cultíssimosmandarins ou aos gênios da expressão.Observamos claramente: (1) uma dis-tinção global e brutal que opõe os eru-ditos aos bárbaros (beócios, plouks*,filisteus, B.O.F. **, zeladores, etc.), aosquais se proíbe o acesso ao olimpo cul-tural; (2) uma hierarquização contínuano cerne da cultura, desde os baixosescalões até os mais altos, que mantêmsua margem de superioridade pela re-novação constante da zona esotérica docódigo (com a vanguarda, a arte viva,a cultura viva). Guardadas as devidas

proporções, esses mesmos processosocorrem com a moda. Através da reno-vação das formas, a elite sempre man-tém um avanço de alguns meses emrelação aos grupos que só as assimila-rão mais tarde, no momento em queela já tiver adotado outras. Além domais, o culto à originalidade e ao que éúnico ocorre de modo hipertrofiado,principalmente no domínio da pintu-ra, no qual, entre dois quadros idênti-cos, o original vale uma fortuna e a có-pia o preço de um objeto manufatura-do. Isso permite a uma elite restritaapropriar-se de objetos originais e fre-qüentar os ateliês dos artistas.

Na verdade há dois elitismos que se dis-putam e que partilham a cultura erudita: oda intelligentsia criativa-crítica, que criavalores e hierarquias, e o das classes pri-vilegiadas, que se apropriam da riquezacultural.

A relação entre os dois elitismos éextremamente ambivalente. Através dacultura, o elitismo burguês se aproprianão apenas da espiritualidade, mas tam-bém do aristocratismo, pois, ao colo-nizá-la através do mecenato, assume amesma função dos príncipes e dos se-nhores. Reciprocamente, a burguesiafornece à cultura não somente o fun-damento individualista que permitiráa admiração dos talentos originais e acultura do gênio, mas também o fun-damento econômico que identifica va-lor e raridade.

O elitismo burguês coloniza a ins-tituição cultural e já não é mais neces-sário efetuar pesquisas gigantescas emconcertos, museus, galerias, para per-ceber que as classes populares se en-

4. Para�o homem comum�, no seu humanismocongregador e sintetizador de todo o saber, elaconstitui uma verdadeira cultura antropo-cosmo-lógica, portadora das verdades ontológicas e nor-mativas sobre a natureza humana e das interro-gações necessárias e suficientes sobre a naturezado mundo.* Plouk: camponeses (N.T.).** B.O.F.: Comerciante que enriqueceu através do

mercado negro. Novo rico (N.T.)

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contram ausentes deles. A colonizaçãocultural evidencia-se pela assimilaçãodo código, cuja apropriação torna-seum teste e um perigo social: uma vezque ser erudito implica pertencer a umaelite, as classes superiores atormenta-das pelas camadas ascendentes, paraas quais a cultura é signo de ascensãosocial, resguardam seu elitismo atémesmo nas últimas trincheiras do es-nobismo e da moda.

Dito isto, até mesmo a cultura eru-dita não pode ser reduzida à apropria-ção elitista de um código. No núcleoda cultura erudita encontra-se aintelligentsia que reivindica a proprie-dade cultural porque ela assegura suacriatividade.

A intelligentsia

A própria noção de �intelligentsia�é muito teorizada, é uma zona socioló-gica de areias movediças. Ela é umacategoria social particularmente ambí-gua. Aqueles que a caracterizam pelaorigem social de seus membros despo-jam-na de qualquer determinação quepossa advir de sua própria experiênciae se esquecem de que o trânsfugo sedefine tanto pela ruptura que o sepa-ra, quanto pelos laços que o unem àsua classe original.

Por suas raízes, a �intelligentsia� éligada às classes burguesas, mas umafração da �inteligência� pode se oporfortemente à classe original, por vezescombatê-la e buscar um novo enraiza-mento baseado no princípio de uma no-va sociedade sem classes, a que ela ser-viria, na medida em que essa socieda-

de a liberasse para isso. Pode-se com-preender melhor o problema do desen-raizamento-enraizamento da intelli-gentsia considerando-se suas experiên-cias, sua práxis e suas produções pró-prias: ela é a classe que, nas socieda-des modernas, produz, mantém e re-nova não apenas a cultura erudita, mastambém as ideologias religiosas, nacio-nais, sociais, ou seja, uma parte impor-tante das outras culturas. Nesse senti-do, ela é, ao mesmo tempo, alienada,autônoma e incerta em relação às ou-tras classes sociais. A cultura eruditaque, para as classes superiores, é or-namento, luxo e lazer, para a intelli-gentsia representa sua substância, assimcomo sua experiência ontológica funda-mental. Ela é fonte de obstinação, com-promisso, mal-entendido ou conflito.Veremos que, quando eclode o confli-to, a intelligentsia vai buscar no povo,nos revoltados e na revolução a novaArca da Aliança que emancipará a cultu-ra e fará desabrochar sua universalida-de. A intelligentsia é uma classe que seconcebe como intelectualmente supe-rior e economicamente dependente.Dependente do mecenato, na épocaaristocrático-monárquica, nos dias dehoje ela depende cada vez mais do sis-tema de produção capitalista e tecno-burocrático. Há simbiose e conflito en-tre a criação, que decorre dos artistas,autores, e a produção propriamentedita (edição, jornal, sociedades cinema-tográficas, emissoras de rádio e de te-levisão). A intelligentsia não é proprie-tária de seus meios de produção. Exis-te nela, portanto, uma dupla virtuali-dade de revolta contra as classes do-

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minantes e contra os proprietários dosmeios de produção e difusão culturalque, ao lisonjeá-la, acabam por domes-ticá-la totalmente assimilando suasobras, mas rejeitando-lhe as enzimas.

Tarefa da própria intelligentsia, amanifestação da cultura não se limita àcriação de obras de arte e à elaboraçãoideológica; ou, melhor, através dasobras de arte e dos ensaios ideológi-cos, a intelligentsia desempenha seu pa-pel original, herdado dos feiticeiros edos grandes sacerdotes, nascido da crí-tica ao sacerdócio e à cultura religiosa.Ela torna a cultura manifesta lançando,de um lado, os fermentos religiosos ouneo-religiosos que unem o homem à so-ciedade e ao mundo e, do outro, osfermentos críticos, racionalistas, céti-cos, até mesmo niilistas, que corroemos sistemas religiosos, a ordem estabe-lecida, incluindo a pseudo-ordem domundo: essa espécie de Jano é uma clas-se dilacerada, como testemunham osantagonismos banais entre intelectuaisde direita e de esquerda, intelectuaiscatólicos ou comunistas, artistas purosengajados. A unidade, nas suas divi-sões e rupturas, é a pesquisa ontológicaexistencial, que aparece ora como pes-quisa da beleza, ora como pesquisa daverdade. Muito mais do que um meroatributo de alguns objetos privilegia-dos, a beleza é a pesquisa de um segre-do ontológico de harmonia e de verda-de. A intelligentsia, através de sua mis-são sociológica e clerical, encontra-seprofundamente engajada em sua bus-ca antropológica. Nessa busca das �pro-fundidades�, que traduz a necessida-de religiosa ou infra-religiosa de uma

sociedade laicizada, o artista e, cadavez mais, o pensador e, sobretudo, opoeta são levados a reencontrar umfundamento arcaico e assumir as mes-mas funções dos feiticeiros, feiticeiras,médiuns e dos sacerdotes de Apolo.

Se a cultura possui um aspecto mui-to sofisticado, ligado a seu elitismo(virtuosidade no uso do código ou for-malismo), possui, também, um aspectomuito arcaico, relacionado à procura docontato existencial com verdades an-tropocósmicas profundas.

A dialética cultural

Quanto ao campo da �cultura eru-dita� propriamente dito, ou seja, da li-teratura e das artes, é no núcleo daintelligentsia que a criação se encontraassegurada. Desde o fim da Idade Clás-sica, a cultura engajou-se definitiva-mente no caminho da criação perma-nente. A criação não se resume apenasà liberdade e à arte da variação em tor-no da norma (norma formal da lingua-gem, norma dos arquétipos ou estereó-tipos), e nem à singularidade de umapalavra em relação a uma língua. Ela éuma relação desestruturante�reestru-turante. Palavra�Língua. A criação sig-nifica que a Palavra desestrutura o có-digo para reestruturá-lo de maneirainovadora, que a retórica não é mais aregra à qual se subordinam as obras�geniais�, mas a regra que mata e res-suscita e que renova sem cessar a su-cessão de obras geniais. A noção degenialidade é aqui muito reveladora,não apenas pela referência à magia eàs forças obscuras, mas por seu senti-

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do sobrenatural e divinamente criador.Reconhecido como quase necessário,daí decorre o estranho destino dasobras geniais: elas são, antes de tudo,malditas, porque incompreensíveis:certamente as últimas obras de Tumer,os últimos Quartetos de Beethoven, asprimeiras Iluminações de Rimbaud sãomensagens que um código preexistentenão permite decifrar; palavras com agigantesca amplitude da língua; graçasaos pacientes comentários e mediaçõesdos críticos, é muito lentamente que sereconstitui o contato com o código, coma língua. A obra-prima não é apenasintegrada, ela modifica o código, e setorna, por sua vez, princípio e gênese.Essa é a razão pela qual as obras-pri-mas que revolucionaram a arte apare-cem, aos olhos dos contemporâneos es-candalizados, primeiramente como an-tiarte para depois transformarem-se emmatrizes canônicas da própria arte. Nolimite, poderíamos dizer que toda obrade arte é antiarte, e isso porque, poralgum aspecto inusitado, ela escapa àjurisdição do código.

Percebe-se bem o papel essencial, enão apenas mitológico (como sempreo mito recobre uma realidade), da cria-ção na cultura erudita: ela a faz evoluirpela sucessão de �obras imortais� quea mantêm dentro de uma aparente eter-nidade. A criação permite assegurar demodo glorioso a adaptação da histó-ria, ou seja, a aculturação de novas ex-periências. O mito da criação permite,enfim, conciliar o duplo elitismo daintelligentsia, que deseja coroar seusgênios criadores como semideuses eheróis fabulosos, e o das classes supe-

riores que se justificam, se enobreceme se espiritualizam através do mecenatoe da apropriação das obras originais.

Como destacou Abraham Moles, anecessidade da originalidade, ou seja,da criação em todos os níveis, desde apequena inovação da forma até o apa-recimento das novas artes, longe de fi-car estagnada, cresceu no mundo tec-noburocrático moderno. A cultura temcada vez mais por função segregar aoriginalidade de que esse mundo con-formista, que tende a cair mecanica-mente na repetição burocrática, neces-sita cada vez mais (o culto ingênuo donovo transformou-se, ele mesmo, numnovo conformismo).

A cultura erudita constitui um sis-tema como foi acima esboçado. É umsistema que se submete a dois princí-pios equilibradores-desequilibradores,que tendem, por sua própria natureza(incluindo sua relação específica com asociedade moderna), a perdurar e serenovar. O sistema deve ser concebidosegundo uma analogia biológica: eletem necessidade de semi-enzimas parase renovar, e é a �criação� que inter-preta esse papel enzimático. A enzimaé inerente e indispensável ao sistemamas, ao mesmo tempo, ameaça-o. Naverdade, e mais claramente a partir doséculo XVIII, a enzima (a criação, a ori-ginalidade, o novo) é originária dasfronteiras anômicas ou marginais daordem social e, no próprio cerne dacultura, a criatividade apresenta primei-ramente um caráter de negatividade nosentido hegeliano do termo e, depois,no sentido literal. A partir de Rousseaue do Romantismo, surge a relação en-

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tre a poesia (poiesis = criação) e odesequilíbrio, a loucura; Rousseau eHölderlin são seus grandes símbolos:a contribuição revolucionária da ado-lescência, essa terra de ninguém queainda não se cristalizou e nem se en-dureceu, porque não atingiu a idadeadulta, explode com Novalis, Shelley,Rimbaud. Como criadores culturais, osautodidatas irrompem com Rousseaue bem mais tarde com os escritoresamericanos.

A cultura é apenas Código, ela éPalavra e Existência, ou melhor, é ocódigo que permite à Palavra comuni-car-se com a existência. Pode-se conce-ber o sistema cultural sob o ângulo deuma dualidade ou de contradição fun-damental que repercute em todos osníveis. Essa dualidade repousa sob adupla natureza do código que pode serapropriada e tornar-se um instrumen-to de prestígio, mas que também é,quase que tecnicamente, o mediador darelação existencial, da participação, eaté mesmo do êxtase. O código detémo segredo das fórmulas encantatóriasque precisamente acionam o estadocultural, ou seja, o gozo estético�cog-nitivo�antropológico.

A dualidade parte igualmente dacoexistência complementar�antagonis-ta do próprio código, que se estabele-ce entre os criadores�críticos�reprodutores conservadores do Tesou-ro (autores, críticos), os usuários�me-cenas�consumidores privilegiados e osprodutores capitalistas ou estatais. Daídecorre que o antagonismo especifica-mente cultural entre marginalidade eoficialidade (o �artista� e o �burguês�,

a vanguarda e o pretensioso) nada maisé do que o antagonismo entre a enzima(indivíduo isolado, pequeno grupoou escola artístico-literária, inicia-dor) , a insti tuição e a estruturasociocultural.

Pode-se polarizar, de um lado, umfenômeno minoritário enzimático, evo-lucionário-revolucionário, que é o fe-nômeno da relação existencial, dabusca da verdade, do ser, do êxtase,mas também o da negatividade e dacriatividade (duas faces do mesmo fe-nômeno); de outro, pode-se polarizarum fenômeno majoritário, estatístico,institucional no qual intervêm as apro-priações, o uso social do código (pres-tígio, status, aristocratismo).

O sistema cultural é, precisamente,a relação dialética entre esses dois pó-los. Ela não opõe os criadores e os con-sumidores, muito pelo contrário: háuma relação entre os criadores e osconsumidores �verdadeiros� de suasobras, os que desfrutam intensamentedelas, e que recompensam seus criado-res com amor e admiração. Essa rela-ção influencia internamente o consumoe a criação. No cerne do consumo exis-te uma heterogeneidade, para não di-zer oposição, entre aqueles que acre-ditam que a cultura é uma experiênciae os que acham que ela é um ornamen-to; entre a mulher bovarista, que gos-taria e que tenta viver como nos ro-mances, e o colecionador de peças ori-ginais; entre o adolescente, transtor-nado pela descoberta das obras, queconstituem uma revelação para ele pró-prio, e o adulto que desfruta de umaleitura sem, no entanto, sentir-se trans-

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formado, a não ser em sua imaginação.Existe dualidade também entre os ar-tistas, não apenas entre os acadêmicose os marginais, mas também entre osvirtuoses que exercem sua arte utilizan-do-se do código com a mais extremasutileza e os vulcânicos que desestru-turam as regras e, no limite, se concen-tram fora da arte.

Essas oposições e contradiçõesconstituem a dialética viva (que um diaserá mortal) da cultura erudita, da di-nâmica da marginalidade e da oficiali-dade, da desintegração e da integra-ção; elas também formatam a verda-deira dinâmica sociocultural: nela aantiarte torna-se arte e a arte torna-senão-arte; o novo transforma-se em Mo-delo provisoriamente eterno que oscríticos vão avaliar, e a Palavra, suapérola mais preciosa, que os críticosirão depositar no tesouro. No decor-rer dessa dinâmica, processos de de-sestruturação são, também, processosde reestruturação e a desestruturação-reestruturação lança-se de maneiraambígua sobre a revolução e a recupe-ração. Assim, o cinema e o desenho emquadrinhos, antiartes em suas origens,revolucionam as artes no preciso mo-mento em que, recuperadas, transfor-mam-se respectivamente na sétima e nanona artes.

De modo mais amplo, a negativi-dade cultural (anomia, loucura, autodi-datismo, crítica radical) transforma-seem positividade. O conformismo temnecessidade de integrar o não confor-mismo; observa-se, até mesmo, que acrítica pode tornar-se um jogo esnobe,inofensivo, no qual o sofrimento vivi-

do por Van Gogh, Rimbaud e Artaudtorna-se algo meramente ornamental.Na verdade, a recuperação pela pre-venção, escamoteação ou integraçãoconstitui um processo vital do sistemacultural. Podemos mesmo dizer: des-de o momento em que um sistema exis-te, existe também a recuperação. Foi oque se sentiu, em maio de 1968, de for-ma exaltada e histérica, mas inteiramen-te superlúcida. A recuperação, proces-so vital do sistema, não esgota, porém,a natureza do processo, nem anula acontradição fundamental do sistema:em seu núcleo habita uma radioativi-dade criadora, negadora, existencial,uma contradição entre a potencialidadeda cultura e o privilégio elitista que elaconstitui e realiza. Há uma luta de clas-ses latente, por vezes virulenta entre aintelligentsia e seus opressores/admira-dores, com os quais ela mantém rela-ções muito hipócritas. A tendênciaelitista de segregar e consolidar a hie-rarquia social, própria à cultura, acabapor contradizer o ideal de toda umasociedade, voltado à criação�pesquisae ao exercício pleno da cultura. Se esseideal fosse realizado, a intelligentsiaperderia seu isolamento ontológico, suaculpabilidade, sua deplorável servidãoe se transformaria em cultura do povo.

Existe, igualmente, uma contradi-ção entre �Iluminismo� e �Obscuran-tismo�, �Razão� e �Arkhè� que, numdado momento, aparece como bipola-rização cultural. De um lado, a cultu-ra torna-se o tesouro dos grandes ideaishumanistas�racionalistas que experi-mentaram seu primeiro grande desen-volvimento no século das Luzes. Por

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outro lado, ela mantém um contatosemi ou pós-mágico com o mundo,abastece-se nas fontes arcaicas do so-nho, da imaginação, da infância, bus-ca uma verdade ontológica encravadaou camuflada sob o tecido artificial domundo moderno e transforma-se, simul-taneamente, em cabeça pensante do pro-gresso, do retorno e do regresso à Arkhè.

As características funcional e dis-funcional do sistema da cultura erudi-ta são, até certo ponto, dialéticas e in-separáveis: a cultura busca suas fontesde satisfação estética e filosófica nasfontes de insatisfação da sociedade,nos guetos, entre os anômicos e os de-sequilibrados.

A cultura erudita oscila entre doispólos e dois princípios: um integrador,que se apropria da atual sociologiaestatística e economística, outro �de-sintegrador� ou criador, enzimático,do qual apenas o gênio e os mitos arespeito da arte se dão conta. Só sepode julgar a importância de um emrelação ao outro, segundo a visão, otempo e o lugar. Queremos apenas in-dicar aqui que, juntos, constituem oprincípio dialético de constituição etambém de evolução da cultura eru-dita. Podemos, assim, descobrir o queignoram os políticos culturais eufóri-cos: que a dinâmica sociocultural tendepara a crise cultural.

A crise da cultura erudita

Sob a aparência de unidade con-sumada, a cultura clássica do século deLuís XIV já continha em si mesma adualidade própria da cultura erudita

moderna. Sob o plano da arte, a arqui-tetura das unidades e das regras já anun-ciava um mundo ordenado e teatralcomo Versalhes, mas já estava claro queessa ordem continha em si ounderground delirante e caótico das pai-xões. A intelligentsia se encontrava do-mesticada e protegida pelo rei mecenas,e esse mesmo estatuto escravizava etambém liberava a palavra de Molière.Os elementos de integração eram ma-nifestos, mas os elementos de desinte-gração são latentes e vão começar a semanifestar no século XVIII.

A partir de então aconteceu umaexplosão. Emerge o caos no turbilhão doromantismo e as paixões jorram na arte.A intelligentsia parte para a conquistade sua reivindicação social primordial,a soberania da Palavra. A crítica radi-cal de Voltaire�Diderot, assim como onovo contrato social de Rousseau, nas-cem dessa palavra libertada, liberta-dora. A irrupção ativa da enzima mar-ginal, periférica, adolescente e deliranteocorre no próprio cerne da criatividadecultural. A partir desse momento, e portodo o século XIX, constitui-se o siste-ma dinâmico de formação de uma van-guarda que luta contra o academicismo,que desintegra o antigo academicismopara constituir um novo. Num primei-ro momento, e freqüentemente até asua morte, os gênios�enzimas são con-siderados �malditos�. Dessa imola-ção, desse verdadeiro sacrifício hu-mano pe-ricrístico, a cultura extraium efeito redentor, renovador, e oimolado torna-se um gênio�deus, emdireção a quem, doravante, o cultose dirige.

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Todavia, desde o fim do século XIXe na primeira metade do XX, assisti-mos ao aparecimento de elementos decrise no próprio núcleo da rotaçãodialética do sistema.

A crise do �belo� começa com oromantismo; ela estimula o sistema detal forma que o �belo� é eliminado porum �feio� que se transforma num novo�belo�, mas a crise o atinge e o lesa, apartir do momento em que o modelodo �belo� é substituído por outros mo-delos como o da autenticidade que aca-ba por atingir até mesmo a �pesquisa�.Ao propor esses neomodelos, o siste-ma é testemunha de sua vitalidade. Damesma forma, a crítica anteriormenteespecializada e sacerdotal é enfraque-cida pela perda do belo, cuja expertise eperitagem eram asseguradas por ela.Mesmo assim, ela se fortalece ao se tor-nar pitônica, acabando por produzir seusoráculos a partir de revelações inaces-síveis ao mundo profano. A crise sócomeça verdadeiramente quando nãoexiste mais modelo de substituição, ouseja, quando a primeira voga se desen-cadeia, não trazendo consigo um con-tramodelo, como ocorreu com a vogadadaísta. A crise da arte começa comRimbaud e o surrealismo. A arte supe-rior à vida, a arte, reino encantado emágico, paraíso da cultura erudita, apa-rece como um universo artificial e vão.A estética e a própria vida passam à fren-te da arte até mesmo onde a vanguar-da negadora e a contracorrente da cul-tura atuam. O maravilhamento vai serprocurado no acaso (surrealismo), noquotidiano, anteriormente considera-do sórdido, no subproduto da cultura

de massa (arte pop). Com certeza, aítambém entram em jogo processos derecuperação que se utilizam da crisepara novamente fertilizar o sistema: ocinema torna-se a sétima arte, a noçãode arte se amplia, o antiobjeto torna-se objeto assim como a antiliteraturatorna-se literatura.

As agressividades que se dirigemcontra o belo e contra a própria artenão criticam somente o academicismointegrado; algumas delas criticam, atébem explicitamente, não apenas o sis-tema cultural, mas o sistema social como qual ele vive em simbiose Vê-se emer-gir a crise da intelligentsia na sua rela-ção sociológica e antropológica: aintelligentsia ou melhor, sua ala descon-tente�avançada, ressente-se profunda-mente de sua frustração em relação àsociedade: enquanto segrega sua ideo-logia, ela se frustra diante de suas res-ponsabilidades e é cada vez mais sub-jugada.

No decorrer do século XX, aintelligentsia ainda permaneceu depen-dente da relação de mecenato eengajou-se numa nova dependência: aeconomia da produção, com o desen-volvimento da indústria cultural, colo-ca-a sob pressão do produtor capita-lista ou burocrata; a economia de con-sumo a submete à cultura de massa; háum conflito entre as aspiraçõesdemocratizantes, através das quais aintelligentsia da esquerda gostaria deabrir a cultura para todos, e a caricatu-ra que ela mesma faz da cultura demassa; o que ocorre é um conflito en-tre tendências elitistas�aristocratizantese a própria massificação. O artista se

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sente ameaçado pelo uso burguês dacultura, pela produção capitalista, pelademocratização cultural e pelaburocratização cultural. Mais intensa-mente ainda, o artista ou o intelectualse ressentem das carências das socie-dades modernas, do movimento sísmi-co de um mundo que se dirige ao caos.A vontade de ruptura se afirma, nãomais apenas nos redutos, onde vivia aboêmia ou onde agora vivem asmicrosociedades refugiadas ou dissi-dentes, mas na espera ou na busca deum outro sistema global, de uma anticul-tura radical que seja a verdadeira cultura.

Paralela e correlativamente, os fun-damentos aparentemente universais dacultura erudita são questionados. Marxfoi o primeiro a discernir a ambivalênciada cultura erudita que, sendo uma cul-tura de classe, traz consigo uma uni-versalidade potencial. Com muita ra-zão, ele também se interrogava sobrea irradiação universal da cultura gregae entendia que Balzac, monarquista eclerical, podia ser considerado superiorao progressista Eugène Sue. Marx eraculturalmente otimista: ele considera-va que uma sociedade de classes, mes-mo que fundada sob a bárbara explo-ração do homem pelo homem, podiafazer procriar uma cultura de valoruniversal. Walter Benjamim retomaessa ambivalência de forma pessimis-ta: o que ele observava era a barbárieoculta que se encontrava presente sobas formas universais, delicadas ecomoventes da cultura: �Não existe umtestemunho de cultura que não seja, aomesmo tempo, um testemunho debarbárie�. O �patrimônio cultural� é o

verdadeiro espólio, butim dos vito-riosos: ele deve sua existência, não ape-nas ao esforço dos grandes gênios queo moldaram, mas à servidão anônimade seus contemporâneos. O stalinismovitorioso anexa o �patrimônio cultural�do passado, mas rejeita a ambivalênciacultural do presente. Lukács oferece àcultura clássica seu passaporte de �re-alismo� e entrega ao monstro dostalinismo a literatura de crise e a lite-ratura moderna que traduzem demodo preciso a crise da cultura.

Desde então, todas essas crises seampliam e convergem, a dualidade dosistema cultural se agrava. Constituium pólo, meio off, meio in, no qual oprefixo anti (antiliteratura, antiroman-ce, antimemórias) exprime muito bemuma agressividade antagonista. Os clé-rigos efetivam uma dupla traição, nãode tipo verdadeiramente benigno, co-mo foi denunciada pelo bom JulienBenda, mas tentam apunhalar de for-ma lorenzaciana a cultura erudita utili-zando-se de técnicas.

De um lado, procura-se na políticarevolucionária, ou o que se consideracomo tal, a fonte e o guia da verdadei-ra cultura, que somente a revoluçãoconseguirá. Por outro lado, mergulha-se no universo primordial, caótico eincontrolado das pulsões, do sonho,das improvisações e até mesmo da cul-tura de massa (arte pop).

Trata-se de uma ofensiva contra acultura erudita! E o mais assustador:ela parte de seu próprio interior. Ocombate contra a barbárie da culturase mescla ao combate em favor da cul-tura da barbárie, ou seja, forças ele-

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mentares expulsas das estufas aque-cidas da cultura refinada. A irrupçãode forças existenciais questiona o hu-manismo, fundamento das humanida-des, fundamento dos fundamentos. Sa-de, o revolver surrealista e Artaud as-sumem a ofensiva, ao mesmo tempoque os revolucionários. Combate con-tra a propriedade e a apropriação bur-guesa, contra o erro ontológico de umacultura separada da realidade e da ver-dadeira vida. O autor dessas linhas vivepermanentemente nessa conjunção en-tre o ódio pela cultura como �a inver-são da vida� e o amor pela cultura, nãoapenas no sentido de quintessência econcentração da vida, mas no sentidoque apenas o imaginário nela contidotem a força de mudar a própria vida.O estudo de A. Willener permite en-tender tudo o que a contra-sociedade,formada por pequenos grupos margi-nais, situacionistas, free-jazz e outros,possuía de explosivo. Em maio de 68,conjugaram-se efetivamente todas asofensivas culturais�anticulturais, aagressividade estética contra a arte e aagressividade ética contra a cultura.Essa revolta envolve um aspecto ideo-lógico bem conhecido, e um aspectoexistencial de revolução cultural:

� o aspecto ideológico, superficial edogmático se fixa e se desvia parao populismo jdanovista da arte dopartido que se pretende a serviçodo povo e se expressa através dasfórmulas ativistas da arte militante;

� o aspecto existencial, no qual a artedesaparece como essência distinta.Nele, a cultura desaparece como

sistema distinto da sociedade e doindivíduo, no qual um estado de gra-ça extraordinário desabrocha, a li-beração da repressão interna se com-bina com uma harmonia anárquicaque vai além da ordem e da desor-dem no espaço encantado das uni-versidades ocupadas e que cons-titui precisamente o espaço da re-volução cultural. Emerge, então, omito de uma cultura antropológica,em que o código será universal, ime-diatamente comunicável a todos,em que o saber será descomparti-mentado (não mais fonte de técni-cas, e sim de verdades existenciais),desmistificado (não mais burguês,mas universal), em que os modelosseriam de desenvolvimento indivi-dualista�comunitário, e a cultura as-seguraria uma comunicação intensae extática com a existência.

A contestação da cultura, nascidada própria crise da cultura, e que, porsua vez, coloca-a em crise, amplia-se,chegando logicamente à visão de umacultura antropológica mais superficial-mente limitada à arte, porém con-cernente às profundezas da existênciae da relação homem�homem e homem�mundo, e que dever-se-ia tornar a cul-tura de todos. O que se almeja é umasociedade antropocultural em que anti-cultura e cultura seriam simultânea emutuamente negadas e estaticamentereconciliadas. A destruição da culturaerudita é realizada para, porém, recons-truir uma antropo�sócio�cultura a partirde seu néctar e de suas enzimas... Trata-se, de fato, de uma revolução cultural.

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A recuperação se efetiva em fun-ção da natureza cíclica, virulenta e la-tente, e da ação enzimática no cerneda cultura. Ela se realiza igualmente apartir do caráter doravante institucio-nal da integração do novo na culturaerudita: neste sentido, a integração donão-conformismo torna-se uma neces-sidade vital do neoconformismo. Poroutro lado, a cultura erudita aceita aproblemática de crise que se torna umde seus signos de originalidade e supe-rioridade; ela pode recuperar a revol-ta e a contestação como expressões ar-tísticas; a natureza estético�lúdica dacultura erudita que, em princípio, per-mite recuperar tudo constitui um aspec-to cada vez mais central em detrimen-to do humanismo das �humanidades�.

A cultura erudita se dissocia da úl-tima ilha conservadora, fechada numacidadela de academicismos tradicionaise que resiste mesmo diante de graçolas

e piadas. Ela se dirige às terras ex-bár-baras da cultura de massa, coloniza-ase cultiva-as: o cinema de arte torna-seuma instituição cultural com sua críticae suas salas especializadas. O �terceirosetor� se instala no rádio e tende a seimplantar também na televisão.

Por outro lado, novos ardis permi-tem à inteligência e aos eruditos resis-tirem à democratização cultural que seopera através da extensão da escolari-dade secundária e da difusão midiáticamassiva. Com efeito, a ascensão ao es-tatuto burguês, que é um dos aspectosdo processo atual, efetua-se com a aqui-sição de rudimentos da cultura erudi-ta. A elite só pode diferenciar-se acen-tuando seu refinamento, quer dizer, in-do procurar seus signos de requintenessa cultura rústico�plebéia que o vul-gar acaba de rejeitar para ter acesso àcultura urbana�burguesa. A culturaerudita segue uma de suas tendências

Existência(intensidade/êxtase)

Código(universal)

Modelo(desenvolvimento)

Saberdescompartimentado,

desmistificado

Antropos(cosmos)

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profundas, que é a de buscar a arkhèatravés das artes �primitivas�, simples,pós-primitivas e pós-inocentes, assimcomo através dos objetos neoarcaicosde estilo greenwich village�saint germain�saint tropez. Há um equivalente artísti-co dos blue-jeans, das velhas sandálias,dos veludos, das velhas babuchas, pe-los quais a elite se diferencia da massa,ao mesmo tempo que vai beber nas fon-tes da arkhè. As altas esferas da culturaerudita continuam a se orgulhar de seuesoterismo neo-refinado e neo-arcaicoenquanto as baixas zonas dessa cultu-ra começam a ser invadidas. O esno-bismo, o gozo ostentatório de um có-digo esotérico e a moda, que assegu-ram simultaneamente a aristocratizaçãoe a democratização, oferecem à elite,mesmo que por alguns meses, o mono-pólio do que será democratizado se-gundo um processo hierarquizado. Oprivilégio cultural encontra-sedoravante ligado não apenas à possede um código esotérico, mas à posseesotérica de um código que evolui ra-pidamente.

Reconstitui-se, assim, um novo sis-tema da cultura erudita, análogo e di-ferente do antigo. O antigo sistemamantinha uma segregação muito forteentre a cultura erudita e o universo ex-terior considerado como bárbaro oubeócio, mantendo sempre uma hierar-quia competitiva que se expressava naluta entre vanguarda e academia, nojogo dos esnobismos e das modas. Onovo sistema encontra-se em osmosecom o meio exterior, estendendo suascategorias para além das artes tradicio-nais e aceitando ou submetendo a ir-

rupção do bárbaro; mas ele estabeleceuma hierarquia multiestratificada naqual esnobismos e modas desempe-nham um papel importante de diferen-ciação. No antigo sistema, o códigoesotérico era relativamente estável,havia o culto do único�original, e a cul-tura conferia a seus usuários umaespiritualidade que, felizmente, enco-bria o materialismo burguês. Nos no-vos sistemas, o código não é mais está-vel, mas tende a se tornar esotérico denovo, mais pelo mistério que envolvesua instabilidade do que pela necessi-dade de uma longa aprendizagem; oculto do original encontra-se ligado nãoapenas ao único mas ao novo; a espiri-tualidade assenta-se na autenticidade.

A cultura erudita não aparece maiscomo um sistema complexo, contradi-tório, evolutivo. Historicamente, elaoscila entre estes dois pólos: de um ladorepresenta o acabamento de uma civi-lização, de outro sua contestação. Emnossa época, é a ambivalência dessesdois pólos que apavora tanto o pensa-mento quanto a ação.

A pauperização teórica

Dado que as abordagens dessa cul-tura são pobres e unilaterais, elas serevelam incapazes de conceber a com-plexidade e as ambivalências do siste-ma. As concepções antigas baseavam-se na ação e na obra dos grandes gênioscriadores, e enfatizavam as caracterís-ticas excepcionais e sagradas da cultu-ra. Endossavam, em suma, as caracte-rísticas mágicas da cultura, mas semcompreendê-las, percebiam fortemen-

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te que não se pode compreender a cul-tura negligenciando suas característi-cas enigmáticas, embora as mitificassemem vez de compreendê-las.

As tendências das sociologias resi-dem em cometer o erro inverso e redu-zir a cultura às suas dimensões sociaisou apenas a uma delas. Algumas anu-lam ou ignoram a enzima e, por vezes,ignoram mesmo a existência e a auto-nomia relativa do sistema cultural, ven-do nas obras da cultura apenas o refle-xo das �visões de mundo� próprias dasclasses sociais. Outras vêem na culturaapenas o código e os problemas liga-dos à sua apropriação.

É necessário perceber a rigidez dosistema, assim como sua mobilidade econtradição, sua bipolaridade antagô-nica e dinâmica sociocultural. Não sedeve ignorar a intelligentsia, categoriaque produz a cultura, nem seu papelhistórico social específico, relativamen-te autônomo, ambivalente e dependen-te. Não se deve ignorar o aspecto enzi-mático presente na criação e na aqui-sição culturais. Não se deve negligen-ciar o fato, estatisticamente negli-genciável embora teoricamente crucial,de que se pode acessar o código pelaemoção e pelo gozo como, aliás, fazem-no os autodidatas culturais.

Aqui se situa o problema duplamen-te mitológico da �dádiva�. A �dádiva�é apenas a atitude adquirida num cír-culo familiar erudito, que se camufla-ria em graça pessoal. Há, também, algoque se encontra em ruptura com o meiofamiliar, seja pela �degradação� dadádiva, seja pela aquisição autodidata.Daí decorre o duplo problema: a) por

que a família de Bach é excepcional, seos �talentos� artísticos, literários oufilosóficos são tão pouco transmissí-veis? Por que existem os Jean-JacquesRousseau, os Whitman e, mais ampla-mente, as vocações que fazem com quedeterminadas crianças de classes poucoletradas tenham acesso à intelligentsia?

As propensões apaixonadas para asidéias, para a literatura e para as artesnão decorreriam de uma superexcitaçãopsicoafetiva, que nasceria de situaçõesconflituais experimentadas de manei-ra precoce ou precocemente sublima-das no quadro familiar ou social? Nãose deveria interrogar, psicanalítica esociologicamente a família na socieda-de contemporânea, na qual as relaçõesfilho�pai tornaram-se, cada vez menosfortemente, uma relação de identifica-ção, e em que relações crianças�pais,cada vez mais ambivalentes? Por isso,elas acabam por afastar da cultura eru-dita as crianças criadas nesse meio ouorientam para ele crianças de pais nãoletrados.

Tomemos o exemplo de três auto-didatas, dois operários, um jovem emi-grado sefaradim, um feirante. Fora daescola, todos tiveram acesso à culturapor suas próprias experiências, adqui-riram uma maneira de manejar a lín-gua e foram transformados em escri-tores. Essas exceções à regra, esses ca-sos aberrantes possuem uma importân-cia teórica capital, pois, ao demonstra-rem que a possibilidade de acessar ocódigo pode-se realizar fora da apren-dizagem familiar ou escolar, evidenciam,cada um a seu modo, a dualidade pro-funda e consubstancial dos usos do

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código e da dualidade da cultura.Essa mesma dualidade, que é en-

tendida como valor de prestígio nosaltos círculos sociais, é concebida e vi-vida como valor existencial nas zonasmarginais da intelligentsia, ela mesmauma classe marginal para a qual vãoconfluir os anônimos, os fora-do-eixo,os incertos e os atormentados, oriun-dos das camadas superiores e médiasda sociedade. O privilégio do jovem�burguês� é que ele pode trair suaclasse pela cultura, enquanto a anomiado jovem camponês, não tendo nenhu-ma perspectiva cultural, só encontrasaída na militância política, religiosa,ou na neurose e na infelicidade semsublimação.

Os casos minoritários pelos quaispode-se acessar a existência do códigopossibilitam que a experiência margi-nal se transforme em fonte de ativida-de ou participação cultural, embora es-capem às estatísticas do tipo rolo com-pressor que ignoram tudo aquilo queconstitui o fermento da sociedade, em-bora revelem o aspecto enzimático davida cultural. A pergunta que se podefazer é se não existiria uma �dádiva�universal que seria capaz de asfixiar nãoapenas as circunstâncias econômicas mastambém a vida burguesa e o uso burguês dacultura, que sempre a esvazia de qual-quer virulência enzimática.

Somente sobreviverão os artistasque, criados no conflito e na injúria,encontraram o meio de se exprimir oude sublimar seu problema na cultura.Compreender-se-ia, assim, a ligaçãoque existe entre o aspecto enzimáticoda cultura e as múltiplas formas de

marginalidade ou anomia (órfãos, fi-lhos de pais separados ou em confli-tos, bastardos socioculturais, filhos deemigrados, filhos de judeus cujas fa-mílias transplantadas dos guetos falamapenas francês, homossexuais ou per-turbados sexuais). Aqui aparece a fun-ção de recuperação de escola, análoga,ainda que em plano diferente, à da re-cuperação cultural. A escola recuperauma parte dos elementos enzimáticosque se formam nas camadas marginaise populares a fim de educá-las para ascarreiras da intelligentsia ou da admi-nistração. O sistema é suficientementeflexível para selecionar tanto o traba-lhador braçal, quanto o indivíduo bri-lhante, embora permaneça ainda mui-to disciplinar, ritualizado, formal de-mais para constituir o verdadeiro cal-do de cultura de todas as enzimas.Quando não é rejeitada ou escanteada,uma boa parte daqueles que não po-dem custear o sistema escolar educa-se pela via autodidata marginal, pelasleituras e experiência pessoais.

Seria errôneo confundir o �dotado�marginal, o irregular e, mais amplamen-te, o intelectual, com o �herdeiro� quese beneficia do privilégio, das relaçõesdos pais e que herda o uso e a proprie-dade dos bens culturais. Correr-se-iaaqui o risco de fulminar de forma im-prudente � e mesmo astuciosa � o fer-mento crítico da sociedade moderna enão o seu alicerce burguês. Correr-se-ia o risco, igualmente, de desenvolvero aspecto tecnoburocrático da socieda-de, mas não pela democratização e peloigualitarismo.

Do ponto de vista de uma política

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cultural, correríamos o risco de nosdefrontarmos com dois erros contra-ditórios:

1. A cultura erudita identifica-se comsua função burguesa e não detémnenhum valor intrínseco, devendoser rejeitada do mesmo modo quea sociedade burguesa. Essa posiçãoé errônea porque, como vimos, acultura é dupla em sua unidade; aomesmo tempo que expressa a cul-tura burguesa, ela a desintegra e aanticultura é dela resultante.

2. A cultura erudita constitui um bemsoberano. A burguesia apoderou-se dele indevidamente e deve res-tituí-lo integralmente a todo o po-vo. O erro reside não apenas emunidimensionalizar a cultura, mastambém em não questioná-la.

Sobre a cultura de massa e odesenvolvimento cultural

É suficiente dizer que a cultura demassa é pobre? De saída, o diagnósti-co da pobreza em si mesmo é pobre. Oque a cultura de massa tem de ambí-guo é que ela oscila entre a cultura eru-dita, da qual seria uma variante mise-rável, vulgarizada, comercializada, e acultura no sentido etno-sociológico.

Ela compartilha com a cultura eru-dita uma característica comum: a rela-ção estético-espectatorial. A cultura demassa, tanto quanto a cultura erudita,comporta uma parte mitológico-oníricaque se apresenta sob a forma de fic-ção, espetáculos, divertimentos e não

de crença religiosa ou fé patriótica.Esse aspecto comum permite, efe-

tivamente, que trocas se efetivem: umaparte da cultura erudita espalha-se, demodo vulgarizado ou não, na culturade massas, enquanto os meios de ex-pressão desenvolvidos pela cultura demassa (filmes, desenhos em quadri-nhos) são recuperados como artes pelacultura erudita.

O gosto, porém, não é hierarqui-zado e policiado na cultura de massa.Ela não se define pela relação com umaelite privilegiada, mas com o conjuntoda sociedade, englobando igualmenteessa mesma elite: trata-se da cultura doindivíduo privado na sociedade burguesa-tecno-industrial moderna. Já indiquei emum outro livro5 que a cultura de massaoriginou-se, simultaneamente, da eco-nomia de mercado, do desenvolvimen-to tecnológico e da comunicação mul-tiplicada a distância e constituiu-se como desenvolvimento de uma quase-in-dústria cultural.

O sistema cultural assim constituí-do apresenta características originaiscom relação à cultura erudita.

O saber sobre o qual se funda acultura de massa é, segundo a fórmulade Abraham Moles, um mosaico cons-tituído por um agregado de informa-ções não religadas entre si, diferente-mente da cultura erudita da Idade Clás-sica, que era constituída por um saberpouco abundante, cujos elementoseram fortemente religados. Olhandoesse saber um pouco mais de perto,constata-se que ele é subestrutural-

5. L�espirit du temps. Paris. Grasset, 1961.

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mente organizado de modo mitológi-co (a sucessão infinita de fatos corri-queiros ordena-se em função dos gran-des tabus e dos grandes tropismos ima-ginários), o código é pobre, porque oque é importante para a indústria cul-tural é comunicar-se com um público omais amplo possível. Os padrões�mo-delos formulam os ideais de vida pri-vada individual, orientam e expulsampara o imaginário as pulsões agressi-vas�aventureiras proibidas na vidareal. A relação existencial constrói-sesob o signo da felicidade, do amor, doconforto, do prazer, dos padrões esta-belecidos.

Nesse sentido, a cultura de massapode ser concebida com um aspectocapital da extensão ou da democrati-zação da cultura urbana burguesa quese desenvolveu na e pela destruiçãodas culturas rústicas e plebéias.

A cultura de massa é extremamen-te evolutiva em decorrência de sua li-

gação com os desenvolvimentos tecno-lógicos e as grandes mudanças sociaise psicológicas do século. Podemos hojevislumbrar três grandes períodos:

O primeiro (1900-30) é o períodopopular urbano, caracterizado princi-palmente pelo divertimento e pela eva-são onírica;

O segundo (1930-55), marcado peloapogeu do cinema falado, propõe mi-tos diretivos de fidelidade que vãoguiar o novo individualismo burguêse os mitos evasivos da agressão e daaventura.

O terceiro se inicia no transcorrerdo decênio 50-60 e caracteriza-se porser um período de desenvolvimento ecrise. Nele ocorre o deslocamento damitologia eufórica e a emergência deuma problematização da vida privada(problemas de casais, de amor, de so-lidão e de equilíbrio). A cultura de mas-sa, que tende ao policentrismo, lança-se igualmente para o imaginário com

Existência -Imaginário

Código(pobre) Padrões-Modelo

(via privada – mitos –modelos de conduta)

Saber

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um onirismo ampliado e com um rea-lismo também ampliado para o real. Ospadrões�modelos multiplicam-se e di-ferenciam-se (não apenas incitações pu-blicitárias estimuladas pelos magazines,mas conselhos os mais variados, do-mésticos, privados e outros). A cul-tura de massa adapta-se muito rapida-mente ao novo sistema de vida priva-da centrado na célula doméstica (casa,apartamento) com uma janela para ocosmo (televisão) e um barco sobrerodas (automóvel). Ela se instala numacivilização de alternância ternária (tra-balho/casa/férias), projeta e desenvol-ve a nova indústria do lazer que setransforma no novo pólo de desenvol-vimento da cultura de massa (fim-de-semana, turismo, férias).

Populismo cultural edesenvolvimento cultural

Essa visão panorâmica é suficientepara esclarecer um problema prelimi-nar: a política cultural consiste na trans-formação da cultura de massa em cul-tura popular, levando-se em conta aampliação de primeira e a difusão dasegunda? Seria essa a tarefa da políticacultural?

Essa orientação será por nós deno-minada populismo cultural. Pode-seidentificar aqui o grande e simpáticoesforço de Dumazedier, organizaçõescomo Povo e Cultura e, em outro pla-no, a política cultural de AndréMalraux. Essa política deve, entretan-to, desvencilhar-se dos mitos da sal-vação cultural e do desenvolvimentocultural do modelo econocrático.

O mito latente do populismo cultu-ral faz da cultura erudita um bem so-berano: ela é universal, positiva, abrea possibilidade de uma vida cultural.Tomando, entretanto, como base os ti-pos avançados da cultura erudita, nemo leitor da editora Gallimard, nem aburguesia do 16º distrito constituemmodelos humanos que ultrapassaram,de modo decisivo, os problemas fun-damentais do desenvolvimento huma-no. A sociedade das pessoas instruí-das oferece um espetáculo muitas ve-zes mais lamentável que a dos incul-tos. Quanto às enzimas e aos vetoresexistenciais da cultura, ambos veiculama experiência do dilaceramento e da in-felicidade, a mensagem da infância oudelírio, talvez um segredo certamenteterrível.

Digamos claramente: a integraçãoda beleza artística na vida cotidiana(como ocorre no caso dos equipamen-tos produzidos nos países escandi-navos), a substituição de Sylvie Vartanpor Montaigne, de Fernandel por Só-crates não trazem em si mesmas nenhu-ma salvação. Abrem apenas o caminhode uma experiência política da vida, enão a de um bem�viver como haviasido visualizado por Malraux.

Se se afasta o mito da salvação cul-tural, a exigência de uma igualdadecultural deve prolongar o movimentohistórico originado da Revolução Fran-cesa, que hoje se apresenta tão desi-gual e mesmo agressivo. O processo deextensão da cultura burguesa que faztriunfar a cultura de massa e ampliar adifusão da cultura erudita não realizaessa exigência. Traz consigo uma certa

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democratização, um tronco culturalcomum, mas suscitou novas hierarqui-zações e estratificações. Ele não atingeo monopólio cultural das classes favo-recidas, nem aborda a questão da de-mocratização da criatividade.

Debruçamo-nos aqui sobre o pro-blema do desenvolvimento cultural. Seesse desenvolvimento visa estenderquantitativamente o setor de influên-cia da cultura erudita, esse fato restringesingularmente a política e o desenvolvi-mento culturais, implicando uma ativi-dade de censura, uma espécie de�jdanovismo� humanista frágil queeufemiza a fórmula do �liberalismo qua-litativo� e que mantém o dogma da sal-vação cultural, mesmo que ele estejamuito arruinado e atacado em seu pró-prio interior.

Sobre um outro plano, entretanto,é que se torna necessário criticar o temado desenvolvimento cultural antes deadotá-lo. Com uma injeção do popu-lismo típico do pensamento deDumazedier no novo sistema burocrá-tico-estatal, a cultura tornou-se umaprodução que progride graças aos cré-ditos, aos equipamentos e às edifi-cações, do mesmo modo que as pro-duções tecno-econômicas o fazem. Aexistência ampliada das casas de cultu-ra e de equipamentos culturais é provadisso. Essas são as novas panacéias queobstaculizam a que se proceda a qual-quer exame em profundidade de umproblema extremamente grave que,por sua vez, revela-se em toda sua obscu-ridade e ambivalência.

Certamente, a cultura não pode es-capar inteiramente das determinações

tecnoburocráticas e nem parcialmentedas determinações de sua época. Domesmo modo que, culturalmente falan-do, o aspecto antieconômico da cultu-ra é mais importante do que seu aspec-to econômico, a cultura se define maiscomo antídoto do que como produtonatural da civilização tecnoburocrática.O que ocorre hoje é uma simbiose pa-rasitária�antagonista entre a cultura eseu inimigo protetor�sufocador que afaz viver, ao mesmo tempo que a asfi-xia: o Estado-providência e os grandesgrupos que o constituem.

Nos dias correntes, o Estado-pro-vidência e suas camadas dirigentes têmque encarar em seus programas de de-senvolvimento material o desenvolvi-mento perfumado de espiritualidadeconstituído pela cultura. Mas seria pos-sível conceber uma taxa de crescimentocultural, mesmo que se tivesse investi-mentos adequados? A amplitude dessaestupidez nos abre enormes problemasfundamentais: o que é um desenvolvi-mento cultural, se ainda não se explicitouo que é a cultura e, muito menos se exa-minaram todos os problemas que atra-vessamos e que atingem a todos, e quesão decorrentes da contradição e da cri-se da cultura erudita? O que é um de-senvolvimento artístico, literário, filo-sófico? Os sucessos de Kant, Marx,Rimbaud, Chaplin são superiores a ele?Sem maiores concessões, descobre-seque a evolução cultural não implica umaprogressão contínua no domínio da�qualidade� artística ou intelectual, masum devir espinhoso que envolve limi-tes, rupturas, regressões. Existe umadialética progressiva�regressiva entre

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os grandes criadores e os epígonos queos sucedem. Ao assimilarem sua obra,o que fazem é reduzi-la, simplificá-la eunidimensioná-la. O desenvolvimentocultural encontra-se ligado ao surgimen-to, atividade, expansão ou retração dasenzimas e não apenas ao desenvolvimen-to de uma infra-estrutura institucional.

De novo, defrontamo-nos aqui como equívoco da palavra cultura, com osproblemas colocados pela cultura eru-dita e pela cultura de massa e, maisque isso, com a necessidade de conce-ber de modo adequado o significadodo termo desenvolvimento cultural, dese examinar se alguma significaçãopode existir fora de um desenvolvi-mento multidimensional do ser huma-no, fato esse que constitui o problemamais geral de toda filosofia e de todapolítica.

Problemas deculturanálise

Não é suficiente tentar elucidar asnoções de cultura, cultura erudita e cul-tura de massa para se estar em condi-ções de equacionar os princípios de umapolítica cultural. É necessário procedera uma culturanálise, que implicadiagnosticar a situação cultural em nos-sa sociedade, conceber o modo defuncionamento sociológico de todo osistema cultural. O diagnóstico que sefará aqui será extremamente sumário.Não será também panorâmico, mascentrado em alguns problemas impor-tantes.

A crise das humanidades

Já se observou que a crise das hu-manidades comanda qualquer políticacultural. Essa crise situa-se primeira-mente no plano do saber: a predomi-nância da informação sobre o conheci-mento, do conhecimento sobre o pen-samento desintegraram o saber; as ciên-cias contribuíram enormemente paraessa desintegração, especializando ecompartimentalizando extremamente osaber. A ciência não soube construir umsaber sobre as ruínas do antigo saberhumanista�ensaístico�literário, masapenas um agregado de conhecimen-tos operacionais. Simultaneamente, osprogressos do saber científico foramdesontologizados: desintegraram o serdo mundo e o ser do homem sobre oqual fundaram-se as verdades. A ciên-cia, em nome de suas característicasrelacionante e relativo�relativista, mi-nou, em profundidade, as próprias ba-ses das humanidades. A ciência, ao de-senvolver a objetividade, desenvolveu,de fato, uma dualidade permanente en-tre o subjetivo (o homem sujeito quevive, age e pensa) e o objetivo (o mun-do observado e manipulado). Ao mes-mo tempo que isola e desintegra o ho-mem, a ciência, por meio de um efeitocontrário, obriga-o a buscar recursosmágicos ou religiosos para continuar aacreditar ou viver de outro modo quenão seja o da notoriedade ou o do há-bito. Desse modo, se as ciências efeti-vamente desintegraram as antigas hu-manidades e o humanismo implícito ouexplícito que as fundava, falharam to-talmente em construir novas humani-

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dades. O apelo ao saber pluridisciplinaré apenas um paliativo muito fraco paraa crise de educação e das humanidades.O problema fundamental de toda políticada cultura reside na constituição de novashumanidades. Compreende-se que todosfujam desse problema gigantesco, pre-ferindo falar de outra coisa.

Pelo menos chegamos a esse pon-to: não se pode fugir da crise das hu-manidades. As premissas de uma polí-tica cultural devem afrontar essa crisee não apenas em pensamento. Essa cri-se dilacera a cultura erudita, desinte-gra a arte, ataca a própria noção decultura; já aflora também na cultura demassa e atravessa profunda e totalmen-te nossa humanidade.

O apelo neo-arcaico

Por toda parte, o tema de um re-torno à natureza, que havia aparecidocom Rousseau como reação de uma so-ciedade urbano-artificial, encontra-serelançado como contracorrente pro-vocada não apenas pela corrente ur-bano-burguesa e tecnoburocrática. Umgigantesco movimento de pesquisa daarkhé se amplia, baseado em princípiosfundamentais autênticos que englo-bam múltiplas variações de retornossimbólicos�reais à natureza, tais comoférias, fins-de-semana, produtos na-turais, vida rústica, objetos artesanais.Essa corrente mistura-se à corrente dodesenvolvimento técnico contradizen-do-o e infletindo-o, provocando, semsombra de dúvida, uma onda de cho-que, um bang cultural que sacode todaa nossa civilização.

Alternância cultural

A separação entre techné e arkhédetermina uma espécie de dualidadena qual se inscreve o novo desenvolvi-mento da vida burguesa; trata-se daoposição entre a vida de trabalho, sub-metida à techné e à determinação urba-na, e a vida de sossego�lazer�férias,colocada sob o signo da arkhé, que per-mite o desabrochamento individual ecomunitário. Na realidade, trata-se deuma alternância ternária que se desen-volve e é fundada sobre três pólos devida: o primeiro é o trabalho, submeti-do em sua maior parte à hiperparcela-rização, à racionalização, à tecnobu-rocratização, à disciplina autoritária,mesmo para aqueles, como gerentesoutros, que se beneficiam das vanta-gens do comando, e da estafa física ouintelectual; o segundo pólo é o aparta-mento ou o condomínio, querência�re-fúgio do indivíduo privado, do casal,fechado à agressão do mundo exteri-or, onde se calafeta e se instala o con-forto, escancarado ao mundo pela te-levisão, cuja tela membrana neutrali-za as guerras e os horrores do mundo,transformando-os em espetáculo; paraaqueles que têm a possibilidade de umasegunda residência, o terceiro pólo é odos fins-de-semana e das férias em que,provisoriamente, instaura-se o reino deuma utopia concreta: nos fins-de-sema-na, com sua vida pretensamente rústi-ca�arcaica, nas fazendas com vigas apa-rentes, com churrasqueira e banheiros,nessa vida pretensamente comunitáriacom amigos, o que ocorre é o desabro-char da vida pessoal. São sobretudo as

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férias que assumem o aspecto de umautopia concreta realizada por uma so-ciedade provisória, que resgata valo-res de liberdade e de comunidade su-focados na vida cotidiana, como ocor-re com as colônias de férias do clubeMediterranée.

O ressurgimento comunista

Com o clube Mediterranée emergeuma espécie de comunismo cultural(apagamento da individualidade nacomunidade numa sociedade sem hie-rarquia de classe, fraterno�igualitáriaque escape à tirania do dinheiro), decaráter neocapitalista, que se alternacom a vida inteiramente submetida àsdeterminações tecnoburguesas. Se con-frontarmos esse indicador de ressur-gimento de uma necessidade comunis-ta a outros provenientes de contra-so-ciedades que já floresceram no conti-nente norte-americano, como as aglo-merações hippies ou beatniks, GreenwichVillage, San Francisco. Se examinarmoso mito cada vez mais virulento do co-munismo existente na intelligentsia deesquerda no Ocidente, identificadopelo exemplo de Cuba que pretendetransformá-la numa ilha da utopia con-creta, ou ainda o isolamento intelectu-al�revolucionário das ilhas do ClubeMediterranée, o que se pode constataré que o comunismo, quer sob a formade uma alternância de férias, quer soba forma de uma exigência revolucioná-ria alternativa, aparece como uma exi-gência deste século, alimentado pelascarências da civilização�cultura bur-guesa e, sem dúvida, por uma crise

cultural generalizada. Com sentidossemelhantes, o desenvolvimento acen-tuado das correntes comunista e neo-arcaica permite visualizar um grande�bang cultural� que questionará demodo muito profundo os fundamen-tos de nossa vida social.

Cultura da políticae política da cultura

Tudo isso nos coloca em confrontoimediato com a seguinte questão: apolítica da cultura é decorrente de umacultura da política? Mais que isso, es-taria ela subordinada a uma políticaglobal e total capaz de modificar a so-ciedade e também a cultura? Essa foi aquestão colocada insistentemente pelomarxo-stalinismo, principalmente naépoca de Jdanos. Eliminemos imedia-tamente o que aqui há de equívoco como termo comunismo. Contrariamenteà opinião difundida em grande parteda intelligentsia do Oeste (mas tambémdo Leste), o comunismo não é o regi-me dos países dominados pelo partidocomunista (a opinião ocidental fazigualmente do catolicismo a expressãodo cristianismo, embora ele seja umaaudaciosa deformação da visão cristã).Reiteramos aqui que o comunismo doLeste é uma máscara ideológica querecobre a dominação de uma classe di-rigente e de um aparelho ditatorial eque, portanto, os marxismos stalinistasnão se encontram habilitados a ser osporta-vozes do comunismo. Torna-senecessário colocar o problema no níveldo marxismo. O marxismo é uma filo-sofia-ciência e uma política da totali-

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dade que visa realizar a cultura no sen-tido antropológico do termo, pela su-pressão da sociedade de classes e daexploração do homem pelo homem. Otermo cultura é empregado aqui nosentido muito claro, existente nos Ma-nuscritos econômico-filosóficos, e se refe-re às realizações do homem �genéri-co� ou, dito de outro modo, à realiza-ção da hominização, fato esseindevidamente rejeitado pelas exegesesalthusserianas. Daí decorre a tendên-cia de subordinar a cultura à política (acultura dita engajada), assim como atendência a englobar o problema cul-tural no problema político. Todas es-sas tendências, que assumiram um as-pecto grotesco e terrificante na épocastalinista, reaparecem sob formas di-versas e isso porque o problema de fatonão foi solucionado.

Veremos que a política cultural co-loca um problema antropossociológicoradical e, por isso, um problema políti-co também radical. O marxismo podeapenas introduzir sua resposta na pro-cura de uma resposta global e multidi-mensional que ele não tem possibilida-de de unificar.

Com efeito, o marxismo sofre deuma carência no plano cultural-existen-cial da pessoa, do imaginário, do pa-pel social, do gozar e do viver, e issosem levar em conta a facilidade comque ele assumiu um caráter unidimen-sional desde que se tornou totalitário(e reciprocamente).

Desse modo, mesmo que uma teo-ria multidimensional que reconheçaplanos e patamares culturais não tenhasido concebida, devemos hoje respeitá-

los empírica e eticamente e conceber acultura como policultura. Marx nos in-troduz ao problema de fundo das liga-ções antropo�político�culturais, quedevem dominar qualquer política cul-tural, do mesmo modo que nos intro-duz ao comunismo (aqui é necessáriolevar em consideração Fourier), queaparece como uma exigência antropo-cultural nascida do desenvolvimento,das contradições e das carências dassociedades ocidentais.

O regime cultural

Um último obstáculo � e longe deser o menor deles � antes de ousardefinir alguns princípios: é necessáriocolocar a questão do regime cultural,crucial para qualquer culturanálise.Como qualquer regime alimentar, cadacultura reduz certas carências, favore-ce outras, estabelece equilíbrio e/oudesequilíbrio, instaura regulações eprovoca repressões. De modo mais oumenos forte, uma cultura regula o dé-bito de agressividade, descarregando-o sobre um setor do real ou do imagi-nário. Duas vias abrem-se aqui parareflexão:

� procurar reduzir as carências cul-turais mais graves constituiria a viareformista;

� conceber e realizar o melhor regi-me cultural possível constituiria avia revolucionária.

Tanto numa quanto noutra, coloca-se a necessidade de elucidar o que ain-da é terrivelmente obscuro do ponto

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de vista das ciências humanas: qual se-ria o mínimo vital necessário de agres-sividade? Quais seriam as derivaçõespreferenciais da agressividade? Jogos?Esportes? Imaginário? Quais as pertur-bações trazidas pela repressão, aí in-cluída a regulação, que também é re-pressão? Há um optimum que possa serconcebido na relação indivíduo�socie-dade�espécie? Em que momento a de-cadência de uma cultura não trazconsigo uma regressão bárbara inevi-tável? Esse foi o problema colocado porFreud em O mal-estar da civilização. Umaprogressão cultural não determina sem-pre o desenvolvimento de uma regres-são cultural?

A cultura de massa e a cultura eru-dita sempre colocam problemas espe-cíficos de culturanálise e da relação es-tético�espectatorial que lhes é própria.Na relação espectatorial, o real é, dealgum modo, imaginário e o imaginá-rio real. Quando se trata de ficção, ro-mance, teatro, filme, a comunicaçãocultural se efetiva segundo uma mimesede caráter histeróide, simulação since-ra, consciência dupla, na qual o espec-tador�leitor se projeta no imaginário,principalmente o dos heróis, identifi-cando-se com eles. Torna-se necessá-rio conhecer esses processos de proje-ção�identificação�tranferência sobre osquais sabemos muito pouco e que co-mandam o essencial da experiência vi-vida da cultura erudita e da cultura demassa. Em outro texto, tentamos ex-plorar o tema da mimese e da histeria(simulação).6 Espetáculo, imaginário,

literatura, mitos são certamentedesencadeadores e amplificadores damimese. A relação espetacularizadapermite, virtualmente, um distancia-mento em relação ao eu e uma subjeti-vação do outro. A mimese simpáticapermite uma compreensão extraordi-nária do espetáculo e, durante a dura-ção de um filme, o branco, o rei, o bur-guês e o banqueiro podem, respectiva-mente, amar o negro, o presidiário, orevoltado e o vagabundo. Colocamosaqui uma questão que ainda não pos-sui resposta: como extrair essa compre-ensão do espetáculo e enraizá-la parafora dele? Como utilizar o distancia-mento de si permitido pelo espetáculopara provocar no espectador uma per-manente objetivação de si? Comotransferir para a vida prática a expe-riência do imaginário e para o imagi-nário a experiência da vida prática?Damo-nos conta de que nossa cultura,que experiencia e vive um certo tipode relação e de oposição entre real eimaginário, é ainda incapaz de conce-ber adequadamente a estrutura dessarelação, mesmo que ela seja problemá-tica, quando se trata de colocar emquestão a realidade de sua realidadeou reconhecer a realidade de seu ima-ginário. Encontramo-nos num caos te-órico. Como então propor princípios deeficácia? Suponhamos, entretanto, queuma energia extraordinária seja gera-da na relação mimético�estética�espectatorial assim como na relaçãoreal�imaginário e que todos os proces-sos psicoafetivos em estado nascente�criador sejam postos em movimento.Sem dúvida, o controle e o comando6. Le vif du sujet. Paris, Seuil, 1969.

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desses processos constituiriam a armaabsoluta, a arma psíquica, a bomba Hcultural.

Princípios para umapolítica cultural

Princípios básicos

a) Estamos em uma sociedade poli-cultural, o que implica uma políticapolicêntrica.

b) As culturas em nossa sociedade sãoatravessadas por crises que ques-tionam o homem em sua relaçãoconsigo mesmo, com a sociedade,com o mundo, o que equivale a di-zer que cada uma dessas culturascoloca, de certo modo, um proble-ma de antropologia cultural.

c) Seguiremos dois eixos que conside-ramos complementares e não comoalternativos: o de uma política dacultura e o da revolução cultural(necessidade de uma cultura dasculturas, de uma cultura fundamen-tal que modifique a relação ho-mem/homem � sociedade/mundo).

d) A política da cultura que delinea-remos parte das grandes correntes,das instituições atuais existentes,isto é, de uma análise empírica;mais do que receitas ou pequenasreformas, cuja acumulação nãoconstitui jamais uma política, essapolítica tem como objetivo estabe-lecer normas gerais, mesmo se suaaplicação ou generalização pareçamprovisoriamente impossíveis.

Política de criatividade

De um lado, trata-se de desenvol-ver a criatividade nos sistemas cultu-rais e, de outro, estimular ou fazeremergir a criatividade de cada indiví-duo, isto é, despertar, em cada um, o�dom� ou a enzima que dorme. A de-mocracia cultural não poderá ser outracoisa senão uma �enzimatização� ge-neralizada.

a) Desenvolver a criatividadedo sistema

Implica intervir nas relações inti-tuição�energia, produção�criação, nosentido da circulacão de energia e dacriação. Como reconhecer a criati-vidade? A criatividade não se exerce,apenas ou necessariamente, quando olado individual se opõe ao industrial eao oficial: não é suficiente pretender-se artista e vanguarda. Grosso modo, éevidente que se trata de favorecer aautonomia e a ação individuais contraa racionalização industrial e o confor-mismo oficial.

A criatividade não se reconheceapenas ou necessariamente pela novi-dade: há uma pseudocriatividade, quenão é outra coisa senão a mudança ar-bitrária da moda; trata-se, todavia, dedesencravar, por todo lado, ou ondeseja possível, os canais nos quais a ino-vação poderá efetivar-se.

Uma política de criatividade se tor-na aleatória na medida em que não sepode conceber um sistema regido ape-nas pela criatividade; o sistema com-porta sempre uma parte mecânica,

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inerte, conformista e sufocante em ter-mos culturais. É necessário, então, nãoapenas sonhar com uma cultura ideal,em permanente criação, mas fixar pos-tos estratégicos de combate na dialéticageral dos sistemas e lutar até a mortecontra as forças de sufocação da criati-vidade. Essas forças se exprimem sem-pre através da censura e dos mecanis-mos de direção, mas é necessário reco-nhecer também que, entre esses doislimites, pelo desafio e pela resistênciaque promovem, é possível estimular acriatividade.

É forçoso reconhecer na criativi-dade cultural uma dificuldade especí-fica, que é a mesma que existe entre ospróprios críticos quando, no fluxo deobras, detectam a genialidade e o ta-lento. É preciso se convencer de quenão existe um areópago detentor daverdade estética, intelectual e da in-venção autêntica. Se fizerem grandeesforço para dominar seus caprichos,os acadêmicos mais antigos, os profes-sores mais ilustres são capazes, quan-do reunidos, de detectar talentos, masincapazes de avaliar o gênio, que co-meça a ser reconhecido, muitas vezes,post mortem. Quais são, então, os orga-nismos habilitados a reconhecer acriatividade, para ajudá-la e encorajá-la? As assembléias de burocratas, defuncionários, de políticos, e, até mes-mo, de sindicalistas, parecem poucoaptas a constituir órgãos de decisão deuma política de criatividade em seusvários domínios.

E as assembléias de artistas ou dospróprios criadores? Com certeza, sabe-se que eles estão divididos em clãs,

atravessados por rancores e por favo-res... o que equivale a dizer que, emcada caso, tratar-se-á de escolhas alea-tórias, escolhas de membros de comis-sões competentes ou nas escolhas pro-venientes dessas comissões.

De qualquer modo, só se pode teruma política ambivalente ante os trêsgrandes amigos�inimigos ambíguos daenzima cultural: o Estado, o elitismo eo democratismo.

O Estado pode ser Mecenas ou ti-rano; freqüentemente, ele é um e ou-tro na maioria das vezes. O mecenatoconsiste em oferecer os meios materiaispara uma criação livre. Convém de-senvolver ao máximo as funções de me-cenato do Estado e fazer com que osconselhos de decisão sejam ocupadospor membros da intelectualidade, quesejam independentes, abertos e ínte-gros, se esses termos não dessem mar-gem às interpretações as mais contra-ditórias, inclusive, sobretudo, no seioda própria intelectualidade. É conve-niente lutar contra o Estado tirano, istoé, lutar pelo Estado liberal. Trata-se deuma atitude ambivalente, tendo emvista a política tecnocrática da cultura,que se desenvolve no interior dos Es-tados modernos. Os tecnocratas se res-sentem da necessidade de uma justifi-cativa espiritualista, que eles tendem acolocar no �desenvolvimento� cultural.É preciso tirar proveito, mas tambémlutar contra a redução tecnocrática dosproblemas culturais.

O elitismo, por sua vez, conduz aoaristocratismo e ao privilégio de clas-se, aí compreendido o da intelectuali-dade, mas permite o refinamento, o re-

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quinte, assim como uma parcela da ela-boração enzimática. Se os elitismos deaparência e de aparato, com os quaisse adornam as classes superiores, sãorejeitados sem discussão, não é sufi-ciente repelir o elitismo como prin-cípio; é necessário suscitar as condi-ções de �enzimatismo� que o tornariamcaduco.

Uma verdadeira democracia cultu-ral faz com que cada um desabrocheseu próprio dom e suas próprias for-ças de criatividade; por outro lado, odemocratismo coloca em risco e podeaté mesmo vir a sufocar a enzima sem-pre minoritária, sob o peso do confor-mismo ou da carga da maioria estatís-tica. A raiva do marginal, do trans-gressor, do artista poderia mesmo sercamuflada sob um populismo que de-nuncia o �dotado� como um aristocra-ta. Quanto ao verdadeiro democra-tismo, se ele implica, igualmente, umaação cujo objetivo é despertar ou esti-mular a criatividade de cada um e acriatividade coletiva, e se, com efeito,existe uma criatividade prodigiosa, in-tensa, embora efêmera das �massas�nos grandes momentos revolucionários,isto é, no momento em que os sistemasse alteram por explosões bruscas, tudoisso acarreta igualmente o liberalismocultural, ou seja, uma ação protetoradesencadeada em favor da minoria.

Seja no plano do Estado ou da de-mocracia, o liberalismo cultural repou-sa sobre uma regra de ouro; o libera-lismo não significa aqui a tolerânciapaterna, mas a intervenção ativa, per-manente e múltipla, para proteger eestimular a ação �enzimática�. No nos-

so entender, só pode ser esse o senti-do do termo �liberalismo qualitativo�,se é que existe algum.

b) A necessária e impossível estimula-ção da criatividade individual

Se examinarmos agora o problemageral da democracia cultural, conce-bida como uma generalização dacriatividade, é preciso considerar osobstáculos que poderão obstaculizarprogressos decisivos na ciência do ho-mem e mudanças decisivas na socie-dade. As condições de uma vida cultu-ral autêntica (enzimática) estão liga-das ao autodidatismo, isto é, a umapesquisa e a uma experiência pessoais,em oposição à apropriação e ao usosocial do código.

Isso suporia que cada um experi-mentasse conflitos e contradições davida que, por definição, são sempremarginais. Até o presente, tais expe-riências têm propiciado tanto o riscode loucura quanto a oportunidade degenialidade, ambas condições de eclo-são da criatividade. Por outro lado,nossas psicanálises são ainda muitogrosseiras para poderem determinar nolouco emaranhado de complexos, trau-mas, transferências, sublimações e naefervescente singularidade que ofere-ce cada personalidade individual quaisserão as condições de eclosão de criati-vidade.7 Digamos de outra forma: co-mo transformar aquilo que é minori-tário, isto é, que se funda em oposição

7. Até o presente, um poeta curado pela psicanáliseperde sua genialidade quando ganha a sanidade.

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à maioria, em fundamento para a maio-ria? Como institucionalizar, oficializaraquilo que implica luta permanente con-tra a instituição, contra a oficialidade?Para melhor examinar tais problemas,teoricamente insolúveis, temos queadmitir que problemas teóricos inso-lúveis possam finalmente vislumbrarsaídas práticas. É preciso consideraressa pesquisa obscura, semiconsciente,embora teimosa, de uma vida cultural-mente vivida, que se manifesta na cons-tituição das sociedades hippies. Isso in-dica, também, que a saída remete parauma outra vida, situada além da vidaburguesa...

Uma terceira cultura?

Talvez se possa agrupar sob o no-me de uma terceira cultura o esforçodo qual acabamos de estabelecer as ba-lizas. A terceira cultura se diferencia-ria da cultura erudita e da cultura demassa, das quais é, ao mesmo tempo,herdeira e negadora. Lutará contra osdois kitschs, o segundo deles sendo acrítica do kitsch, de acordo com a fór-mula profunda de Harold Rosenberg.Ela luta contra o modo ornamental, pri-vilegiado, elitista da cultura erudita econtra o modo consumista da culturade massa. Herdeira de uma correnteescura da cultura erudita, ela rompecom os fetichismos, explora camposvirgens; não constitui uma cultura desegunda mão, que hoje se instala nosprogramas de rádio de qualidade du-vidosa, mas uma cultura que tende aadquirir e difundir a virtude enzimá-tica permanente.

Em estado ainda nascente, essa cul-tura colocaria em cena problemas fun-damentais e constituiria uma pesquisaativa que difundir-se-ia pelas casas decultura.

Casas de cultura?

As casas de cultura foram conce-bidas realmente como centros de difu-são da cultura erudita, fora dos meiosde difusão de massa (mass media). Sobo nosso ponto de vista, as casas de cul-tura devem ser os fundamentos dacriatividade. Devem ser constituídaspor ateliês de criatividade em todos osdomínios e serem dotadas, cada umadelas, de meios de difusão: imprensa,equipamento de filmagem cinemato-gráfico e magnetoscópico, canal emis-sor de rádio e televisão, o que não ex-cluiria as atividades artísticas tradicio-nais, como pintura, música e outras. Ascasas de cultura não devem ser maiscentros de difusão e sim de criação, demudanças, de irradiação da palavra ede uma outra vida. Deparamo-nos aquicom a contradição entre a oficialidade,dado que as casas de cultura são insti-tuições estatais, e a marginalidade�criatividade, mas esse fato constitui acontradição mais evidente da culturamoderna.

Escola?

De qualquer modo, o problema deuma política cultural exercida atravésda escola é ainda mais difícil e dramá-tico. Não se trata apenas do paradoxocom o qual já nos defrontamos no de-

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curso da argumentação: como ensinaro autodidatismo? Como fabricar auto-didatas em série, dado que o autodi-datismo é a grande chave não apenasda criatividade, como também do de-senvolvimento humano? Trata-se deconstatar que o ensino se encontraatualmente em crise em todos os grause que a crise vem de um lugar bem maisprofundo do que o crescimento demo-gráfico juvenil, a falta de créditos, avelhice dos lugares ou mesmo a criseda juventude. Ela é bem mais do quede uma obsolescência generalizada: acrise do ensino é a crise das humani-dades, a crise da cultura. É inútil que-rer introduzir uma política cultural noensino. Todo o sistema escolar deveser revolucionado, mas não antes deserem elaboradas as novas humanida-des, isto é, um novo saber e novos mo-delos. Reencontramos esses �proble-mas-chave�:

� constituir um saber descomparti-mentado e religado, multidimen-sionalizado e estruturado em umaantropocosmologia, o que supõe aconstituição de um novo �Orga-non�, radicalmente diferente dosprecedentes e em conexão com oterceiro cérebro do organizador,que deteria o estoque de informa-ções, assimilaria as informações no-vas, participaria ativamente de to-das as pesquisas;

� constituir um modelo ou, melhor,um plurimodelo de homem, dife-rente daquele do clássico homem-de-bem, implica em auto-educação,autocrítica e autoconsciência perma-

nentes, de modo que a cultura setorne, como pretendia Hegel, umaconquista da universalidade no lon-go esforço pessoal, no �penoso tra-balho contra a subjetividade sim-ples da conduta, contra a vaidadesubjetiva do sentimento e arbitrá-ria do bom prazer...�. Tudo issonos conduz a territórios mais pro-fundos e longínquos. Remeto o lei-tor a alguns esboços.8 De qualquermodo, somos levados a conceber ametamorfose da cultura erudita pa-ra fazer brotar e desabrochar a cul-tura antropológica que ela segrega-va, mantinha, sufocava e negava emsi mesma...

Política das comunicações

Identificamos sempre os meios decomunicação de massa (mass media),quer sejam eles veículos da cultura demassa ou meios virtuais de difusão dacultura erudita. Sempre do ponto devista das obras, eles são sempre obje-tos de consumo do espectador no pri-meiro caso e obras de arte no segun-do. Trata-se de conceber a própria co-municação não somente como meio,mas como fim cultural,9 isto é, de defi-nir uma política de comunicação quedisponha dos meios fabulosos da mo-derna telecomunicação.

8. Le vif du sujet. Paris, Seuil, 1969, pp. 295-303.9 A grande transformação operada pelo pensa-mento de MacLuhan foi identificar o fim ( a men-sagem ) naquilo que era o meio, o medium, masMacLuhan, ao insistir no termo medium, esqueceuo termo comunicação.

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Uma política de comunicação visa-ria extrair e realizar as virtualidades jáesboçadas ou caricaturizadas no siste-ma atual dos meios de comunicação demassa (mass media), ou seja:

� utilizar a telecomunicação planetá-ria, cada vez mais ampla e imedia-ta, como fundamento de uma cons-ciência antropológica planetária;

� utilizar a privatização dos massmedia � meios de comunicação demassa � (jornal, rádio, televisão,discagem domiciliar e aparelhosportáteis) para desenvolver a comu-nicação pessoal.

a) A comunicação planetária faria comque ficássemos preocupados com osdestinos particulares no planeta ecom o destino global do planeta. Elanos ajudaria a transformar em cons-ciência e conhecimento o bombar-deio cotidiano de informações quecada um deve doravante sofrer.

Aqui se coloca a questão da infor-mação. A informação constitui a novi-dade, o que não estava previsto nosnossos sistemas de pensamento, o quearrisca abalar e até mesmo desintegrarnossas estruturações e racionalizaçõesmentais. A informação é, simultanea-mente, o acontecimento, o choque, oestresse, aquilo que desarruma a or-dem aparente do mundo. O mundo empermanente informação não é outra coi-sa senão a história de Shakespeare so-bre o idiota, que, cheio de brutalidadee fúria, não significa nada. Em reaçãoà desordem e ao absurdo da informa-

ção, os grandes sistemas políticos eideológicos se mobilizam, rechaçandoou explorando a informação pela cen-sura, deformando-a para tornar o novosemelhante ao velho ou ao previsívele, finalmente, aniquilando-a em provei-to da racionalização. Oscilamos entreinformação e racionalização e aqui re-side o difícil e perigoso nascimento denossa consciência �telecomunicante�,de nossa consciência planetária. Demaneira mágico-mitológica, assimila-mos inconscientemente a informação,o fato corriqueiro, identificando nosacidentes e nas catástrofes ocorridoscom os outros, em outros lugares, umtipo de oferenda sacrificial a cada umadas três deusas que cortavam o fio davida e que, ao fim e ao cabo, ajuda-nosa sobreviver. De forma semelhante, nosgrandes crimes e atos monstruosos queviolam os tabus identificamos a reali-zação arquetípica de nossos desejos in-conscientes, a cristalização estética denossos fantasmas ou de nossos medos.O problema se constitui a partir daí econsiste em ultrapassar sem aniquilara mitologia latente que nos alimentadiante do tele-espetáculo do mundo,em aceitar o estresse, a desordem dainformação, que coloca sempre em xe-que a ordem e o conforto de nossospensamentos, de nossas idéias, de nos-sas ideologias; em procurar constituirincessantemente o sistema de modomais compreensivo e flexível, submetê-lo ao feed-back da informação, sem quea informação seja desintegrada ou ani-quilada.

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b) É no domínio da comunicação pes-soal�existencial que a cultura demassa põe em cena os embriões eas caricaturas mais acusadas: o ani-mador do jogo-animador-disc-jo-ckey-locutor se apresenta como umamigo que mantém conosco pseu-doconversações. O esboço de diá-logo armado pelo animador com oteleouvinte ou telespectador pros-segue na entrevista, mas sob for-mas rituais, superficiais. Todos es-ses diálogos assemelham-se a pseu-do-esboços de autogestão, ao tocaros discos pedidos, ao solicitar odesejo e o prazer do receptor. Umagrande necessidade de comunica-ção íntima se dirige às vedetes ouaos jogos olímpicos, sobre os quaisse recolhem mexericos e confidên-cias, e que inspiram sonhos-fantas-mas de confiança e de amor; elaocorre também na reportagem queexplora a vida pessoal de outrosanônimos desconhecidos, idênticosou diferentes de nós mesmos. Umapolítica da comunicação deveriaestar voltada para um desabrocha-mento que permitisse �dar voz� e�dar palavra� ao espectador; no pri-meiro caso, o espectador se trans-forma em descobridor e, no segun-do, o objeto da entrevista se trans-forma em sujeito. Se pensarmos,como Certeau, que o centro vivo dacultura se situa no lugar em que aPalavra se produz, podemos ima-ginar que tudo aquilo que diz res-peito ao poder da palavra diz res-peito ao próprio cerne do proble-ma cultural.

Para além da palavra, uma políticada comunicação tem como finalidadeestabelecer o diálogo; não apenas odiálogo entre o receptor e o emissor,que já se pratica sob as formas atro-fiadas que designamos, mas o diálogodo eu com o outro que, além de troca,interrogação, confiança mútuas, permi-tiria a manifestação da própria virtudeda comunicação, em que o estrangeiro setransforma em meu duplo ou alter ego, emque eu me torno estrangeiro para mim mes-mo, que o longínquo se aproxima e se dis-tancia do muito próximo, que aquilo que épercebido de modo muito objetivo, como osoutros e o mundo exterior, torna-se subjeti-vamente sentido e que tudo que é subjetiva-mente percebido, como o próprio eu, o uni-verso egocêntrico, etnocêntrico, torna-seobjetivamente perceptível.

Trata-se de aspirar a um novo �so-cratismo�: esforço familiar e cotidianopara que cada um, em cada experiência,dê à luz a verdade por mais que ela este-ja em gestação. A nova maiêutica, cujastécnicas não diretivas de intervençãoconstituem antecipação, ainda que umpouco diaforesca e escolástica, represen-ta precisamente a única tentativa conce-bível de associar o pedagogismo e o au-todidatismo, assim como de procriar edesenvolver a cultura da comunicação,que é o desejo mais íntimo, reprimido eprofundo do indivíduo moderno.

Esse �neo-socratismo�, essa novamaiêutica têm um alcance mais geral: ahumanidade cotidiana carrega consigouma filosofia selvagem. Como diziaErnst Jünger, o homem da rua é a Pítiade Delfos, seus discursos são oráculose ele não sabe disso.

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A noção estatística e amorfa depúblico, a noção passiva de espetácu-lo devem ser transformadas, ultrapas-sadas, para que o espectador comuni-cador torne-se cada vez mais preocu-pado, implicado, parceiro, permane-cendo, não obstante, como espectador,isto é, preservando os benefícios dadupla consciência estética. Tudo issodemanda um novo estado de coisas,situado no prolongamento do jogo, doespetáculo, da cerimônia teatral, dosonho coletivizado ou do cinema, en-tre a arte e a vida, que, ao associá-losde forma dialética, deságua numanova grande ágora televisionária doplaneta.

A convergência e a revolução cultural

A política da criatividade e a polí-tica da comunicação, o movimento deuma terceira cultura e o movimento emdireção à democracia cultural, a ten-são em direção a uma cultura planetá-ria que se construa sem o massacre dasculturas particulares em proveito dacultura melhor armada (massacre aná-logo ao que se continua a fazer hojecom as populações nativas desarmadasda Amazônia), a tensão em direção auma cultura pessoalmente vivida etransformadora, tudo isso convergepara uma cultura antropológica, cujaexigência exige efetivamente uma re-volução cultural.

A revolução cultural, noção dema-siado existencial e obscura, não senormatiza ou se modeliza a partir dosepisódios �telespontâneos� da China;verdadeiramente, não podemos defi-

ni-la, mas apenas apreender seu senti-do: trata-se da transmutação de umacultura particularizada, formalizada,erudita ou socioetnográfica, numa cul-tura antropológica, e isso implica rees-truturação do conjunto das relaçõeshumanas. Trata-se, em certo sentido,de incluir no sistema cultural os enor-mes planos da vida que dele escapam,tais como o trabalho, a economia, opoder, o Estado. Na verdade, esse é osignificado profundo, totalizante, tal-vez vão e inacessível, da palavra Re-volução.

A revolução cultural é a exigênciae a experiência da corrente enzimáticapositiva-negativa da cultura erudita: éo momento em que os fermentos des-sa cultura se esforçam por transmutá-la, para extrair e realizar sua universa-lidade virtual de antropocultura. A re-volução cultural é o resultado de umareflexão problemático-crítica sobre acultura de massa. É o que se esboça ese experiencia de modo simultanea-mente enriquecedor e insuficiente nascontra-sociedades hippies. A revoluçãocultural implica a invocação de umacultura das culturas, que não anula asdiferentes culturas, mas que funda arelação do homem com a natureza, aícompreendida a sua própria natureza.

Desembocamos na seguinte ques-tão: pode-se, deve-se mudar o homem?Deparamo-nos com a possibilidade e aimpossibilidade de uma antropolítica.Certamente é muito tarde e muito cedopara conceber tais revoluções, e issoporque processos gigantescos de desin-tegração estão irreversivelmente emcurso, os novos fundamentos não se

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encontram ainda assegurados, as no-vas forças ainda não se desprenderamde suas placentas para conceber as pre-tendidas revoluções.

Conclusão

a) O �cultural�, em seu sentido viru-lento e de crise, constitui hoje o sig-nificado da antropologia. No sen-tido corriqueiro do termo é o setorque se situa ao lado do econômico,do social, do político. É no primei-ro sentido que concebemos políti-ca e revolução culturais. Não se tra-ta de elevar o nível cultural daspopulações, mas sim o nível da pa-lavra cultura.

b) A cultura é um sistema que relacio-na o saber e a existência, atravésda acumulação codificada do sabere da constituição de normas pa-drões-modelos. Esse sistema é umainfra-estrutura em nome da produ-ção do saber e de sua ligação com atécnica, dado seu enraizamento nacadeia inconsciente da linguagem;é uma superestrutura em nome damitologia e do imaginário que se-grega. É, realmente, um sistemarotativo que se encontra em cone-xão com os outros sistemas, queconstituem uma sociedade que osengloba a todos, dado o aspectointelectual-cognitivo-estético decada um que, eventualmente, cons-titui um microssistema relativamen-te autônomo.

c) O primeiro esforço é de elucidaçãoteórica. A elucidação da própriacultura, da cultura de massa, dacultura erudita é mais urgente doque sua aprovação ou condenação.

d) Trata-se de lutar contra o enclausu-ramento teórico e prático, que fazda cultura um setor apartado dosoutros, e contra as concepções uni-dimensionais da cultura, que nãofazem mais do que transcrever amitologia segregada pela culturaerudita, que aplicam o rolo com-pressor do questionário onde serianecessário o microscópio para des-vendar a enzima e o vírus. A cultu-ra como um todo e particularmen-te toda a cultura erudita devem serconcebidas como totalidades com-plexas, isto é, como sistema e insti-tuição, como trabalho, dinamismoe dialética.

e) No lugar do �programatismo�, quenão põe jamais em xeque os funda-mentos e os princípios, trata-se depensar na contracorrente: na con-tracorrente da cultura erudita, dasociologia oficial, das políticas cul-turais.

f) O �programatismo� eufórico-pa-ternalista-culturalista mascara oproblema de fundo. A tarefa preli-minar de toda política cultural é deextirpá-lo: a crise das humanidades,a necessidade prévia, inelutável, decriar humanidades novas. Estamosem agonia e antes da origem dequalquer coisa, com todas as chan-ces de risco que isso comporta �como sempre, morte e nascimentoapresentam-se como gêmeos siame-

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ses. Todo o resto é escolástico, me-dieval, tecnocrático, enfático, pe-queno-burguês, stalinista.

g) É preciso engajar-se na longa re-criação das humanidades; é preci-so, de modo mais imediato, traba-lhar, em toda parte, no núcleo dascriatividades, inclusive no pontodialético no qual a política da cria-tividade deve se tornar criatividadepolítica.

h) Fecha-se, assim, o circuito cultural:o renascimento de uma antropolo-gia cultural normativa se efetiva si-multaneamente mediante a decom-posição da noção mais estreita e daacepção mais universal que o con-ceito de cultura pode apresentar.

Edgar Morin, diretor de pesquisa do CNRS, dire-tor do Centro de Estudos Transdisciplinares daEHESS e presidente da Associação para o Pensa-mento Complexo.