d ambrosio sociedade cultura matematica ensino

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    Educao e Pesquisa, So Paulo, v. 31, n. 1, p. 99-120, jan./abr. 2005100

    Society, culture, mathematics and its teaching

    Ubiratan DAmbrsioPontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Contact:

    Ubiratan DAmbrsio

    Rua Peixoto Gomide, 1772 ap. 83

    01409-002 So Paulo SP

    e-mail:[email protected]

    Abstract

    One of the effects of the globalized world is a strong tendency to

    eliminate differences, promoting a planetary culture. Education

    systems are particularly affected, undergoing strong pressure

    from international studies and evaluations, inevitably

    comparative, and sadly competitive. As a result, one observes the

    gradual elimination of cultural components in the definition ofeducation systems. The constitution of new social imaginaries

    becomes clear; imaginaries empty of historical, geographical and

    temporal referents, characterized by a strong presence of the

    culture of the image. The criteria of classification establish an

    inappropriate reference that has as its consequence the definition

    of practices and even of education systems.

    On the other hand, resistance mechanisms, often unconscious, are

    activated seeking to safeguard and recover the identifying features

    of a culture, such as its traditions, cuisine, languages, artistic

    manifestations in general, and, in doing so, to contribute to cultural

    diversity, an essential factor to encourage creativity. In this article, the

    sociocultural basis of mathematics and of its teaching are examined,

    and also the consequences of globalization and its effects on

    multicultural education. The concept of culture is discussed, as well

    as issues related to culture dynamics, resulting in the proposition of

    a theory of transdisciplinar and transcultural knowledge. Upon such

    basis the Ethnomathematics Program is presented.

    A critique is also made of the curriculum presently used, which is

    in its conception and detailing, obsolete, uninteresting and of

    little use. A different concept of curriculum is proposed, based on

    the communicative (literacy), analytical (matheracy), and material

    (technoracy) instruments.

    Keywords

    Ethnomathematics Multiculturalism Globalization Curriculum.

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    Preliminares

    A sociedade est passando por grandestransformaes, com profundos reflexos na edu-cao. Hoje falamos em educao bilnge, emmedicinas alternativas, no dilogo interreligioso.Inmeras outras formas de multiculturalismo sonotadas nos sistemas educacionais e na sociedadeem geral. Isso parece contraditrio quando se vque o mundo passa por um intenso processo demundializao, que afeta os aspectos econmicose financeiros, e se manifesta fortemente nas no-

    vas tecnologias da informao e comunicao,

    que socializam e difundem novos paradigmas,sistemas de pensamento, valores e modelos decomportamento. O termo mundializao est as-sociado, portanto, construo coletiva e alter-nativa de uma nova ordem social mundial,1cujastransformaes nos sistemas de transporte, decomunicao, de informatizao, de produo ede emprego, resultam numa acelerao desseprocesso e, conseqentemente, do origem globalizao.

    Na sociedade globalizada h uma for-te tendncia para eliminar diferenas, promo-

    vendo uma cultura planetria. Os sistemas edu-cacionais so particularmente afetados, pois sopressionados pelos estudos e pelas avaliaesinternacionais, inevitavelmente comparativas e,lamentavelmente, competitivas. Como resultado,nota-se a paulatina eliminao de componen-tes culturais na definio dos sistemas educa-cionais. Fica evidente a formao de novosimaginrios sociais, desprovidos de referenteshistricos, geogrficos e temporais, caracteriza-dos por uma forte presena da cultura da ima-gem. Os critrios classificatrios estabelecem

    um referencial inidneo, que tem como conse-qncia definir prticas e mesmo sistemas edu-car os traos identificadores de uma cultura,tais como as tradies, a culinria, os idiomas,manifestaes artsticas em geral, e, dessemodo, contribuir para a diversidade cultural,fator essencial para estimular a criatividade.

    Os sistemas educacionais tm reagidoa essa situao contraditria de ter que acer-

    tar o passo com os parmetros internacionaise ao mesmo tempo satisfazer as demandas decontextos culturais que buscam identidade, re-conhecimento e recuperao. Os resultadostm sido, o que de se esperar, mal interpre-tados e tm causado reao e um reforo demedidas punitivas para que se acerte o pas-so. O multiculturalismo na educao tem sidoa grande vtima dessa reao. Neste trabalhofocalizarei essa situao.

    Uma proposta multicultural

    Um resultado esperado dos sistemaseducacionais a aquisio e produo de co-nhecimento. Isto se d fundamentalmente apartir da maneira como um indivduo percebe arealidade nas suas vrias manifestaes: umarealidade individual, nas dimenses sensorial,intuitiva, emocional, racional; uma realidadesocial, que o reconhecimento da essencialidadedo outro; uma realidade planetria, o que mos-tra sua dependncia do patrimnio natural ecultural e sua responsabilidade na sua preserva-o; uma realidade csmica, levando-o a trans-

    cender espao e tempo e a prpria existncia,buscando explicaes e historicidade.

    As prticas ad hocpara lidar com situa-es problemticas surgidas da realidade so oresultado da ao de conhecer. Isto , o conhe-cimento deflagrado a partir da realidade. Co-nhecer saber e fazer.

    A gerao e acmulo de conhecimentoem uma cultura obedece a uma forma de coe-rncia. No Harmonia mundi (1618), Johannes

    Kepler sugere uma comunalidade de aes naqual se manifesta o Zeitgeist, que viria a ser

    fundamental na proposta historiogrfica deHegel (1770-1831). Essa comunalidade de aescaracteriza uma cultura.

    Uma cultura identificada pelos seussistemas de explicaes, filosofias, teorias, eaes e pelos comportamentos cotidianos. Tudo

    1.Nesse aspecto interessante uma visita ao site www.unesco.org/moste ver o projeto MOST (Management of social transformations) da Unesco.

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    isso se apia em processos de comunicao, derepresentaes, de classificao, de compara-o, de quantificao, de contagem, de medi-o, de inferncias. Esses processos se do demaneiras diferentes nas diversas culturas e setransformam ao longo do tempo. Eles semprerevelam as influncias do meio e se organizamcom uma lgica interna, se codificam e se for-malizam. Assim nasce o conhecimento.

    Procuramos entender o conhecimento eo comportamento humanos nas vrias regiesdo planeta ao longo da evoluo da humanida-de, naturalmente reconhecendo que o conhe-

    cimento se d de maneira diferente em cultu-ras diferentes e em pocas diferentes.Em meados da dcada de 1970 come-

    a a tomar corpo um programa educacional de-nominado Programa Etnomatemtica. Emboraeste nome sugira nfase na matemtica, ele um estudo da evoluo cultural da humanida-de no seu sentido amplo, a partir da dinmicacultural que se nota nas manifestaes matem-ticas. Mas que no se confunda com a matem-tica no sentido acadmico, estruturada comouma disciplina. Sem dvida, essa matemtica

    importante, mas, de acordo com o eminentematemtico Roger Penrose, ela representa umarea muito pequena da atividade conscienteque praticada por uma pequena minoria deseres conscientes para uma frao muito limi-tada de sua vida consciente. O mesmo pode-sedizer sobre a cincia acadmica em geral.

    Em essncia, o Programa Etnomate-mtica uma proposta de teoria do conheci-mento, cujo nome foi escolhido por razes quesero explicadas mais adiante. Na verdade,poderia igualmente ser denominado Programa

    Etnocincia. Recorrendo etimologia, cinciavem do latim scio, que significa saber, conhe-cer, e matemtica vem do grego mtema, quesignifica ensinamento, e podemos, portanto,concluir que os Programas Etnomatemtica e

    Etnocincia se complementam. Na verdade, naacepo que proponho, eles se confundem.Isso discutido amplamente em DAmbrosio(1990 e 2001).

    A idia do Programa Etnomatemticasurgiu da anlise de prticas matemticas emdiversos ambientes culturais e foi ampliada paraanalisar diversas formas de conhecimento, noapenas as teorias e prticas matemticas. E umestudo da evoluo cultural da humanidade noseu sentido amplo, a partir da dinmica culturalque se nota nas manifestaes matemticas.

    O ponto de partida o exame da hist-ria das cincias, das artes, das religies em v-rias culturas. Adotamos um enfoque externalista,o que significa procurar as relaes entre odesenvolvimento das disciplinas cientficas ou

    das escolas artsticas ou das doutrinas religiosase o contexto sociocultural em que tal desenvol-vimento se deu. O programa vai alm desseexternalismo, pois aborda tambm as relaesntimas entre cognio e cultura.

    O Programa Etnomatemtica se apre-senta como um programa de pesquisa sobrehistria e filosofia da matemtica, com impor-tantes reflexos na educao, conforme expli-citado em DAmbrosio (1992).

    Neste momento importante esclarecerque entendo matemtica como uma estratgia

    desenvolvida pela espcie humana ao longo desua histria para explicar, para entender, paramanejar e conviver com a realidade sensvel,perceptvel, e com o seu imaginrio, natural-mente dentro de um contexto natural e cultu-ral. Isso se d tambm com as tcnicas, as ar-tes, as religies e as cincias em geral. Trata-seessencialmente da construo de corpos deconhecimento em total simbiose, dentro de ummesmo contexto temporal e espacial, que ob-

    viamente tem variado de acordo com a geogra-fia e a histria dos indivduos e dos vrios

    grupos culturais a que eles pertencem fam-lias, tribos, sociedades, civilizaes. A finalida-de maior desses corpos de conhecimento temsido a vontade, que efetivamente uma neces-sidade, desses grupos culturais de sobreviver noseu ambiente e de transcender, espacial e tem-poralmente, esse ambiente.

    Vejo a educao como uma estratgiade estmulo ao desenvolvimento individual e

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    coletivo gerada por esses mesmos grupos cul-turais, com a finalidade de se manterem comogrupo e de avanarem na satisfao das neces-sidades de sobrevivncia e de transcendncia.

    Conseqentemente, Matemtica e Edu-cao so estratgias contextualizadas e inter-dependentes. Procuro entender a evoluo deambas e analisar as tendncias como as vejo noestado atual da civilizao. E da fazer algumaspropostas. Essa a essncia deste trabalho,dentro das limitaes prprias.

    Ao reconhecer que o momento socialest na origem do conhecimento, o programa,

    que de natureza holstica, procura compatibilizarcognio, histria e sociologia do conhecimentoe epistemologia social, num enfoque multicultural.

    Sobre a questo do

    conhecimento e a noo de

    cultura

    O enfoque holstico histria do conhe-cimento consiste essencialmente de uma anli-se crtica da gerao e produo de conheci-mento, da sua organizao intelectual e social,

    e da sua difuso. No enfoque disciplinar, essasanlises se fazem desvinculadas, subordinadas areas de conhecimento muitas vezes estanques:cincias da cognio, epistemologia, cincias eartes, histria, poltica, educao, comunicaes.

    Considerando que a percepo de fatos influenciada pelo conhecimento, ao se falarem histria do conhecimento estamos falandoda prpria histria do homem e do seu habitatno sentido amplo, isto , da Terra e mesmo doCosmos. A cincia moderna, ao propor teoriasfinais, isto , explicaes que se pretendem

    definitivas sobre a origem e a evoluo dascoisas naturais, esbarra numa postura de arro-gncia, que tem como conseqncia inevitvelcomportamentos incontestveis. Como questio-nar o comportamento de quem est convencidode saber?

    Ao contrrio desta postura, a transdis-ciplinaridade um enfoque holstico ao conhe-cimento, baseado no reconhecimento da im-

    possibilidade de se chegar ao conhecimentototal e final e, portanto, permanentementebuscando novas explicaes e novo conheci-mento e, conseqentemente, modificando com-portamentos. Ela substitui a arrogncia men-cionada acima, pela humildade da busca inces-sante, cujas conseqncias so respeito, solida-riedade e cooperao. Portanto, deve se apoiar,necessariamente, na recuperao das vrias di-menses do ser humano.

    As disciplinas do origem a mtodosespecficos para conhecer objetos de estudo bemdefinidos. Os mtodos e os resultados assim

    obtidos, que se referem a questionamentos cla-ramente identificados, constituem um corponomeado de conhecimento.

    Desde os primeiros tempos de identifi-cao de corpos de conhecimento como disci-plinas, variantes dessa organizao tm sidopropostas. A multidisciplinaridade procura reu-nir resultados obtidos mediante o enfoque dis-ciplinar, como se pratica nos programas de umcurso escolar. A interdisciplinaridade, muitoprocurada e praticada hoje em dia, sobretudonas escolas, transfere mtodos de algumas dis-

    ciplinas para outras, identificando assim novosobjetos de estudo.

    Ambas as extenses do conceito dedisciplina j haviam sido antecipadas em 1699por De Fontenelle, ento secretrio da Acadmiade Cincias de Paris, ao dizer:

    At agora a Academia considera a naturezas por parcelas... Talvez chegar o momentoem que todos esses membros dispersos (asdisciplinas) se uniro em um corpo regular;e se so como se deseja, juntar-se-o por si

    mesmas de certa forma. (1699, p. XIX)

    Assim, a transdisciplinaridade vai almdas limitaes impostas pelos mtodos e obje-tos de estudos das disciplinas e das interdis-ciplinas. O processo psico-emocional de gera-o de conhecimentos, que a essncia dacriatividade, pode ser considerado em si umprograma de pesquisa, categorizado atravs

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    que o enfoque interdisciplinar se tornou insu-ficiente. H uma contradio evidente entre ansia por uma cultura planetria, de conheci-mento mais amplo e profundo, e o necessrioideal de respeito, solidariedade e cooperaoentre todos os indivduos e todas as naes, ea preservao de culturas tradicionais. Essa amaior dificuldade que temos para lidar com amundializao, e no creio que as prticasinterdisciplinares sejam adequadas para superaressa dificuldade.

    No negamos que o conhecimento dis-ciplinar, conseqentemente o multidisciplinar e

    o interdisciplinar, sejam teis e importantes, econtinuaro a ser ampliados e cultivados, massomente podero conduzir a uma viso plenada realidade se forem subordinados ao conhe-cimento transdisciplinar. E, como se mostra em

    DAmbrosio (1999), a educao est caminhan-do, rapidamente, em direo a uma educaotransdisciplinar.

    A conseqncia mais notada para essatendncia ser discutida no curso deste traba-lho, retomando e detalhando aspectos da rela-o entre sociedade, cultura, matemtica e seu

    ensino.

    Sobre educao, paz e

    educao matemtica

    A educao em geral depende de va-riveis que se aglomeram em direes muitoamplas: a) o aluno que est no processo edu-cativo, como um indivduo procurando realizarsuas aspiraes e responder s suas inquieta-es; b) sua insero na sociedade e as expec-tativas da sociedade com relao a ele; c) as

    estratgias dessa sociedade para realizar essasexpectativas; d) os agentes e os instrumentospara executar essas estratgias; e) o contedoque parte dessa estratgia.

    Lamentavelmente, na organizao dosnossos cursos de formao de professores, eigualmente na ps-graduao, tem havido n-fase reducionista para lidar com essas variveis.

    E cria-se a figura do especialista, com suas

    reas de competncia. Aos psiclogos compe-te se preocuparem com a, aos filsofos comb, aos pedagogos com c e d, e aos ma-temticos com e. Como se fosse possvel se-parar essas reas.

    Propomos uma abordagem holstica daeducao, em particular da Educao Matem-tica. Falar em uma abordagem holstica semprecausa alguns arrepios no leitor ou no ouvinte.Assim como falar em transdisciplinaridade, emetnomatemtica, em enfoque sistmico, emglobalizao e em multiculturalismo. Salvonuances, todas essas denominaes refletem o

    mesmo e amplo esforo de contextualizar nos-sas aes, como indivduos e como sociedade,na concretizao dos ideais de paz e de umahumanidade feliz. Reconheo que essa minhautopia. E como educador procuro orientar mi-nhas aes nessa direo. Como ser educadorsem uma utopia?

    Quando se fala em uma Educao paraa Paz, a maioria vem com o questionamento:Mas o que tem isso a ver com a Educao

    Matemtica?. E eu respondo Tem tudo a ver.Poderia sintetizar meu posicionamento

    dizendo que s se justifica insistirmos em edu-cao para todos se for possvel conseguir, atra-

    vs dela, melhor qualidade de vida e maior dig-nidade da humanidade como um todo. A digni-dade de cada indivduo se manifesta no encon-tro de cada indivduo com outros. Portanto,atingir o estado de paz interior uma prio-ridade. Mas isso difcil, sobretudo devido aosinmeros problemas que enfrentamos no dia-a-dia, particularmente no relacionamento com ooutro. No deveramos deixar de fazer um es-foro para perceber se o outro tambm estar

    tendo dificuldades em atingir o estado de pazinterior. Muitas vezes vemos que o outro esttendo problemas que resultam de dificuldadesmateriais, como falta de segurana, falta deemprego, falta de salrio, muitas vezes atmesmo falta de casa e de comida. A solidarie-dade com o prximo a primeira manifestaode nos sentirmos parte de uma sociedade. A

    Paz Social ser um estado em que essas situa-

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    es no ocorrero. E sem dvida algum sol-taria a clssica pergunta: Mas o que tem a

    Matemtica a ver com isso?. No me cabeoutra resposta seno a de sugerir que se pen-se e entenda um pouco da histria da humani-dade para perceber que tem tudo a ver.

    Tambm poucos entendem como a pazambiental pode ter relaes com a matemtica,que sempre pensada como aplicada ao de-senvolvimento e ao progresso. Lembro que acincia moderna, que repousa em grande par-te na matemtica, nos fornece instrumentosnotveis para um bom relacionamento com a

    natureza, mas tambm poderosos instrumentosde destruio dessa mesma natureza.As dimenses mltiplas da paz, isto ,

    paz interior, paz social, paz ambiental e paz mi-litar, que devem ser os objetivos primeiros dequalquer sistema educacional, a nica justifica-tiva de qualquer esforo para o avano cientfi-co e tecnolgico, e deveria ser o substrato detodo discurso poltico. A Matemtica tem gran-de responsabilidade nos esforos para se atin-gir o ideal de uma educao para a paz, emtodas as suas dimenses.

    Esse deve ser o sonho do ser humano.Essa a essncia de ser humano. o ser hu-mano (substantivo) procurando ser humano(verbo). Repito o que disseram dois eminentesmatemticos, Albert Einstein e Bertrand Russell,no Manifesto Pugwash de 1955: Esqueam-sede tudo e lembrem-se da humanidade. Procu-ro, nas minhas propostas de Educao Mate-mtica, seguir os ensinamentos desses doisgrandes mestres, dos quais aprendi muito dematemtica, mas, sobretudo de humanidade.

    Minha proposta fazer uma Educao para a

    Paz e, em particular, uma Educao Matemti-ca para a Paz.

    Muitos continuaram intrigados: Mascomo relacionar trinmio de 2 grau com Paz?.

    provvel que esses mesmos indivduos tenhamo hbito de ensinar trinmio de 2 grau dandocomo exemplo a trajetria de um projtil de ca-nho. Mas estou quase certo que no dizem,nem sequer sugerem, que aquele belssimo instru-

    mental matemtico, que o trinmio de 2 grau, o que d a certos indivduos artilheiros pro-fissionais, que foram, provavelmente, os melhoresalunos de matemtica da sua turma a capaci-dade de dispararem uma bomba mortfera de umcanho para atingir uma populao de sereshumanos, de carne e osso, de emoes e dese-

    jos, e mat-los, destruir suas casas e templos,destruindo rvores e animais que estejam porperto, poluindo lagoas ou rios prximos. E ao vol-tar da misso, receber com tranqilidade elogiose condecoraes. A mensagem implcita acabasendo: aprenda bem o trinmio do 2 grau e

    voc ter a oportunidade de fazer tudo isso, poissomente quem for bem em Matemtica ter su-ficiente base terica para apontar canhes sobrepopulaes.

    Claro, meus opositores diro, como jdisseram: Mas isso um discurso demaggi-co. Essa destruio horrvel s se far quandonecessrio. E importante que nossos jovensestejam preparados para o necessrio. E outrosdiro: necessrio conhecer bem os instru-mentais do inimigo para poder derrot-los.

    Milhes foram nessa conversa durante toda a

    histria da humanidade e em particular duran-te a Guerra Fria, com perdas materiais e moraispara ambas as partes em conflito. Notemos queos interessados nesse estado de coisas dizemser isso necessrio porque o alvo da nossabomba destruidora um indivduo que noprofessa o nosso credo religioso, que no donosso partido poltico, que no segue nossomodelo econmico de propriedade e produo,que no tem nossa cor de pele ou nossa ln-gua, enfim, o alvo de nossa bomba destruido-ra um indivduo que diferente.

    O trinmio de 2grau serviu como exem-plo para argumentar. A importncia to feia quedestacamos de uma coisa to linda como otrinmio do 2 grau interessante ser comenta-da. No se prope eliminar o trinmio de 2 graudos programas, mas sim que se utilize algumtempo para mostrar, criticamente, as coisas feiasque se faz com ele mas tambm destacar as coisaslindas que se pode fazer com ele.

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    H efetivamente uma moralidade asso-ciada ao conhecimento e, em particular, aoconhecimento matemtico. Por que insistirmosem educao e Educao Matemtica e noprprio fazer matemtico se no percebermoscomo nossa prtica pode ajudar a construiruma humanidade ancorada em respeito, solida-riedade e cooperao?

    A paz total depende essencialmente decada indivduo se conhecer e se integrar na suasociedade, na humanidade, na natureza e nocosmos. Ao longo da existncia de cada um dens pode-se aprender matemtica, mas no se

    pode perder o conhecimento de si prprio ecriar barreiras entre indivduos e os outros, en-tre indivduos e a sociedade, e gerar hbitos dedesconfiana do outro, de descrena na socie-dade, de desrespeito e de ignorncia pela huma-nidade que uma s, pela natureza que co-mum a todos e pelo universo como um todo.

    Como um Educador Matemtico, vejo-me um educador que tem a matemtica comosua rea de competncia e como seu instrumen-to de ao, mas no como um matemtico queutiliza a educao para a divulgao de suas ha-

    bilidades e competncias, fazendo proselitismo dasua disciplina. Minha cincia e meu conhecimentoesto subordinados ao meu humanismo. Como

    Educador Matemtico procuro utilizar aquilo queaprendi como matemtico para realizar minhamisso de educador. Divulgar essa mensagem omeu propsito como formador de formadores.

    Em termos muito claros e diretos: oaluno mais importante que programas e con-tedos. A educao a estratgia mais impor-tante para levar o indivduo a estar em pazconsigo mesmo e com o seu entorno social,

    cultural e natural e a se localizar numa realida-de csmica. Se no lograrmos isso, ser umaeducao fracassada.

    Retomando a questo do

    conhecimento

    A gerao, organizao intelectual esocial e a difuso do conhecimento do o qua-

    dro geral no qual procuro desenvolver minhaspropostas especficas para a Educao Matem-tica. Minhas idias muitas vezes parecem umtanto vagas, imprecisas e exploratrias. Isto re-flete o que se poderia chamar o estado da artena teoria do conhecimento. Sabemos muitopouco sobre como pensamos. As contribuiesrecentes da ciberntica e da inteligncia artificiale, mais recentemente, de neurologistas, tornam,pelo menos obsoleto, o que normalmente seestuda nas disciplinas de psicologia, de apren-dizagem e correlatas. Da a apresentao bemgeral e o tom, algumas vezes impreciso e vago,

    desta parte, na qual proponho um modelo quepretende enquadrar praticamente todos osenfoques modernos ao conhecimento. A mate-mtica uma rea crtica nesses estudos, comose aprende de Butterworth (1999).

    Ao longo da histria se reconhecemesforos de indivduos e de todas as sociedadespara encontrar explicaes, formas de lidar econviver com a realidade natural e sociocultural.Isto deu origem aos modos de comunicao e slnguas, s religies e s artes, assim como scincias e s matemticas, enfim a tudo o que

    chamamos conhecimento. Indivduos, e isso sepassa com a espcie como um todo, se destacamentre seus pares e atingem seu potencial decriatividade porque conhecem. Todo conheci-mento resultado de um longo processo cumu-lativo, no qual se identificam estgios, natural-mente no dicotmicos entre si, quando se d agerao, a organizao intelectual, a organiza-o social e a difuso do conhecimento. Essesestgios so, normalmente, o objeto de estudodas teorias de cognio, das epistemologias, dahistria e sociologia, e da educao e poltica. O

    processo como um todo extremamente din-mico e jamais finalizado, e est obviamentesujeito a condies muito especficas de estmu-lo e de subordinao ao contexto natural, cul-tural e social. Assim o ciclo de aquisio indi-

    vidual e social de conhecimento.Minhas re fl exe s sobre educao

    multicultural levaram-me a ver o ato de criaocomo o elemento mais importante em todo esse

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    processo, como uma manifestao do presen-te na transio entre passado e futuro. Isto ,a aquisio e elaborao do conhecimento sed no presente, como resultado de todo umpassado, individual e cultural, com vistas sestratgias de ao no presente e projetando-se no futuro, desde o futuro imediato at o demais longo prazo, modificando assim a realida-de e incorporando a ela novos fatos, isto ,artefatos e mentefatos. Esse comportamen-to intrnseco ao ser humano, e resultam deimpulsos naturais para sobreviver e transcender.

    Embora se possa reconhecer a um processo de

    construo de conhecimento, minha proposta mais ampla que o construtivismo, que se tor-nou efetivamente uma proposta pedaggica, eque privilegia o racional. O enfoque holsticoque proponho incorpora ao racional o senso-rial, o intuitivo e o emocional, atravs da von-tade individual de sobreviver e de transcender.

    Sobrevivncia e transcendncia constituema essncia de ser humano (verbo). O ser humano(substantivo), como todas as espcies vivas, pro-cura apenas sua sobrevivncia. A vontade de trans-cender o trao mais distintivo da nossa espcie.

    No se sabe de onde provm a vontadede sobreviver como indivduo e como espcie,mas sem dvida est incorporada ao mecanismogentico a partir da origem da vida. Simples-mente constata-se que essa fora a essnciade todas as espcies vivas. Nenhuma espcie, eportanto nenhum indivduo, se orienta para asua extino. Cada momento um exerccio desobrevivncia do indivduo e da espcie.

    Igualmente, no sabemos como a esp-cie humana adquire a vontade de transcender, quetambm parece estar embutida no nosso cdigo

    gentico. Essa tem sido a questo filosfica maiorem toda a histria da humanidade e em todasculturas. Na forma de alma, de vontade, de livrearbtrio, o pulso de transcender o momento desobrevivncia reconhecido em vrias manifesta-es do ser humano e todas as culturas tem umaproposta para explica-lo.

    As reflexes sobre o presente como re-alizao de nossa vontade de sobreviver e de

    transcender devem ser, necessariamente, de na-tureza transdisciplinar e holstica. Nessa viso, opresente, que se apresenta como a interface entrepassado e futuro, est associado ao e prtica. O presente uma questo filosfica damesma natureza que o irracional, que dominoua filosofia desde a Antigidade grega. No scu-lo XIX, quando Richard Dedekind colocou emtermos precisos o conceito de irracional, deu-sesignificado ao instante.

    O foco de nosso estudo o homem,como indivduo integrado, imerso, numa realida-de natural e social, o que significa em perma-

    nente interao com seu meio ambiente, natu-ral e sociocultural. O presente quando se ma-nifesta a (inter)ao do indivduo com seu meioambiente, natural e sociocultural, que chamocomportamento. O comportamento, que tambmpode ser chamado prtica, fazer, ou ao, estidentificado com o presente, e provoca a buscade explicaes organizadas, isto , de teori-zao, como resultado de uma reflexo sobre ofazer. A teorizao e elaborao de um sistemade explicaes o que geralmente chamamossaber ou simplesmente conhecimento. Na verda-

    de, conhecimento o substrato do comporta-mento. Vida ao, e comportamento e conhe-cimento so a essncia de se estar vivo.

    Esta idia de ciclo de vida tomou corponos anos 1970 e j comparece em DAmbrosio(1986). O ciclo vida : (...) a REALIDADE infor-ma o INDIVDUO, que processa a informao edefine estratgias de AO que insere novos fa-tos na REALIDADE, que informa o INDIVDUO,que processa (...), e assim continua, enquanto oindivduo estiver vivo.

    Esse o ciclo permanente e em evolu-

    o que permite a todo ser humano interagircom seu meio ambiente, isto , com a realida-de considerada na sua totalidade como umcomplexo de fatos naturais e artificiais. Essa aose d mediante o processamento de informaescaptadas da realidade por um processador queconstitui um verdadeiro complexo ciberntico,com uma multiplicidade de sensores nodicotmicos, por alguns identificados como ins-

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    tinto, memria, reflexos, emoes, fantasia, intui-o, e outros elementos que ainda mal podemosimaginar. Como observa Oliver Sacks, referindo-se em especial percepo visual, mas que seaplica a todos os sentidos,

    Atingimos a constncia perceptiva a cor-relao de todas as diferentes aparncias,as modificaes dos objetos muito cedo,nos primeiros meses de vida. Trata-se deuma enorme tarefa de aprendizado, masque alcanada to suavemente, to in-conscientemente que sua imensa complexi-

    dade mal percebida (embora seja umaconquista a que nem mesmo os maioressupercomputadores conseguem comear afazer face). (1995, p. 141)

    Ir alm da sobrevivncia

    O processamento da informao (input)tem como resultado (output) estratgias para ao.

    H evidncia que essas aes so produtos inte-ligentes. Em outros termos, o homem executaseu ciclo vital no apenas pela motivao animal

    de sobrevivncia, mas subordina a sobrevivnciaa objetivos maiores, atravs da conscincia dofazer/saber, isto , faz porque est sabendo esabe por estar fazendo. Este argumento seme-lhante ao de Paulo Freire quando este diz que oser humano o nico (ser vivo) que tem cons-cincia da sua inconcluso (1997, p. 8). Isto ,transcende a pulso de sobreviver. As aes paratranscendncia, que sempre acompanham asaes para sobrevivncia, tm seu efeito na rea-lidade, criando novas interpretaes e utilizaesda realidade natural e artificial, modificando-a

    pela introduo de novos fatos, artefatos ementefatos. Prefiro a nomenclatura artefato/mentefato a concreto/abstrato, pois vejo nestaltima uma incoerncia, pelo fato de repousaremno modo de captar esses fatos, enquanto aosfalarmos em artefato/mentefato estamos pondonfase na gerao dos fatos.

    O conhecimento o gerador do saber,que vai ser decisivo para a ao. Por conse-

    guinte, no comportamento, na prtica, nofazer que se avalia, redefine e reconstri oconhecimento. A conscincia o impulsionadorda ao do homem em direo ao saber/fazen-do e fazer/sabendo, isto , sobrevivncia e transcendncia. O processo de aquisio doconhecimento , portanto, essa relao dialticasaber/fazer, impulsionado pela conscincia, quese realiza em vrias dimenses.

    Das vrias dimenses na aquisio doconhecimento destacamos quatro, que so asmais reconhecidas e interpretadas nas teorias doconhecimento, isto , a sensorial, a intuitiva, a

    emocional e a racional. Numa concesso a clas-sificaes disciplinares, diramos que o conheci-mento religioso favorecido pelas dimensesintuitiva e emocional, enquanto o conhecimen-to cientfico favorecido pelo racional, e oemocional prevalece nas artes. Naturalmente,essas dimenses no podem ser dicotomizadasnem hierarquizadas, mas so complementares.

    Desse modo, no h interrupo, no h dicotomia,entre o saber e o fazer, no h priorizao entreum e outro, nem h prevalncia nas vrias dimen-ses do processo. Tudo se complementa num

    todo, que o comportamento, e que tem comoresultado o conhecimento. Consequentemente, asdicotomias corpo/mente, matria/esprito, manu-al/intelectual e outras tantas que se impregnaramno mundo moderno, so meramente artificiais.

    Ningum expressa to bem essa complemen-taridade como o eminente matemtico norue-gus Sophus Lie, citado por Arid Stubhaug:

    (...) sem fantasia ningum pode se tornar ummatemtico, e o que me deu um lugar entreos matemticos dos nossos dias, apesar de

    minha falta de conhecimento e forma, foi aaudcia de meu pensamento. (2002, p. 409)

    Do individual ao coletivo

    O presente, como interface entre passa-do e futuro, se manifesta pela ao. O presen-te est assim identificado com comportamento,tem a mesma dinmica do comportamento, isto

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    , se alimenta do passado, resultado da his-tria do indivduo e da coletividade, de conhe-cimentos anteriores, individuais e coletivos,condicionados pela projeo do indivduo nofuturo. Tudo a partir de informao propor-cionada pela realidade, portanto pelo presente.

    Na realidade esto armazenados todos os fatospassados, que informam o indivduo.

    As informaes so processadas peloindivduo e resultam em estratgias de ao que

    vo dar origem a novos fatos (artefatos oumentefatos) que so incorporados realidade,obviamente modificando-a, armazenando-se na

    coleo de fatos e eventos que a constituem. Arealidade est, portanto, em incessante modifi-cao. O passado se projeta assim, pela inter-mediao de indivduos, no futuro. Mais uma

    vez, a dicotomia passado e futuro se v comoartificialidade, pois o instante que vem do pas-sado e se projeta no futuro adquire assim oque seria uma transdimensionalidade que pode-ramos pensar como uma dobra (um pli, nosentido das catstrofes de Ren Thom). Esserepensar a dimensionalidade do instante d

    vida, incluindo os instantes do nascimento e

    da morte, um carter de continuidade, de fusodo passado e do futuro em cada instante. Dareconhecermos que no pode haver um pre-sente congelado, como no h uma ao est-tica, como no h comportamento sem umaretroalimentao instantnea (avaliao) queresulta de seu efeito. Assim podemos ver com-portamento como o elo entre a realidade, queinforma, e a ao, que a modifica.

    A ao gera conhecimento, isto , a ca-pacidade de explicar, de lidar, de manejar, deentender a realidade, gera o mtema. Essa capa-

    cidade se transmite e se acumula horizontalmen-te, no convvio com outros, contemporneos,atravs de comunicaes; e verticalmente, decada indivduo para si mesmo (memria) e decada gerao para as prximas geraes (memriahistrica). Note-se que o que chamamos mem-ria da mesma natureza que os mecanismos deinformao associados aos sentidos, informaogentica e aos mecanismos emocionais, e recupe-

    ram as experincias vividas por um indivduo nopassado. Portanto, todas se incorporam realida-de e informam esse indivduo da mesma manei-ra que os demais fatos da realidade.

    O indivduo no s. H bilhes deoutros indivduos da mesma espcie Homosapiens sapiens com o mesmo ciclo vital, ebilhes de indivduos de outras espcies, rea-lizando um ciclo vital, com especificidadesprprias a cada espcie, mas basicamente o

    mesmo que o mostrado na figura acima. O pro-cesso de gerar conhecimento como ao enriquecido pelo intercmbio com outrosimersos no mesmo processo, atravs do quechamamos comunicao. A descoberta do ou-tro e de outros, presentes ou distantes, contem-porneos ou do passado, essencial para ofenmeno vida.

    Todos esto, incessantemente, contri-buindo com uma parcela para modificar a re-alidade. Todo indivduo est inserido numa re-alidade csmica, como um elo entre toda uma

    histria, desde o incio dos tempos e das coi-sas, isto , um big-bang ou equivalente, at omomento, o agora e aqui. Todas as experin-cias do passado, reconhecidas e identificadasou no, constituem a realidade na sua totalida-de e determinam o comportamento de cadaindivduo. Sua ao resulta do processamentode informaes recuperadas. Essas incluem asexperincias de cada indivduo e aquelas vivi-

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    das por outros, na sua totalidade. A recupera-o dessas experincias (memria individual,memria cultural, memria gentica) constitu-em um dos desafios da psicanlise, da histriae de inmeras outras cincias. Constituem, in-clusive, o fundamento de certos modos decomportamento (valores) e de conhecimento(particularmente, artes e religies).

    Numa dualidade temporal, esses mes-mos aspectos de comportamento se manifestamnas estratgias de ao que resultaro em no-

    vos fatos artefatos e mentefatos que sedaro no futuro, e que, uma vez executados,

    sero incorporados realidade. As estratgiasde ao so motivadas pela projeo do indi-vduo no futuro (suas vontades, suas ambies,suas motivaes, e tantos outros fatores), tan-to no futuro imediato quanto no futuro longn-quo. Esse o sentido da transcendncia, a queme referi acima.

    Embora os mecanismos de captar infor-mao e de process-la, definindo estratgiasde ao, sejam absolutamente individuais e semantenham como tal, eles so enriquecidospelo intercmbio e pela comunicao, que ,

    efetivamente, um pacto (contrato) entre indiv-duos. O estabelecimento desse pacto um fe-nmeno essencial para a vida. Na espcie hu-mana, esse pacto permite definir estratgiaspara ao comum. Isso no pressupe a elimi-nao da capacidade de ao prpria de cadaindivduo, inerente sua vontade (livre arbtrio),mas pode inibir certas aes, isto , a aocomum que resulta da comunicao pode serinterpretada como uma in-ao resultante dopacto. Assim, atravs da comunicao podem seoriginar aes desejveis a ambos e tambm

    podem se inibir aes, isto , gerar in-aes,no desejveis para uma ou para ambas aspartes. Insisto no fato que esses mecanismos deinibio no transformam os mecanismos, pr-prios a cada indivduo, de captar e de proces-sar informaes. Cada indivduo tem essesmecanismos e isso que mantm a individua-lidade e a identidade de cada ser, embora equi-librem aes e in-aes, que tornam possvel o

    que identificamos com o conviver. Isso foimuito bem ilustrado por Anthony Burgess noseu clssico Laranja mecnica (1962), que em1971 deu origem a uma pelcula de granderepercusso dirigida por Stanley Kubrick. Re-centemente, uma reforma penitenciria foiapresentada ao Parlamento da Gr-Bretanha,muito semelhante ao quadro ficcional deAnthony Burgess.

    Essas noes facilmente se generalizampara o grupo, para a comunidade e para umpovo, atravs da comunicao social e de umpacto social, que, insisto, leva em conta a ca-

    pacidade de cada indivduo e no elimina avontade prpria de cada indivduo, isto , seulivre arbtrio. O conhecimento gerado pelainterao comum, resultante da comunicaosocial, ser um complexo de cdigos e de sm-bolos que so organizados, intelectual e so-cialmente, constituindo aquilo que se chamacultura. Cultura o substrato dos conhecimen-tos, dos saberes/fazeres, e do comportamentoresultante, compartilhados por um grupo, co-munidade ou povo. Cultura o que vai permi-tir a vida em sociedade.

    Quando sociedades e, portanto, siste-mas culturais, se encontram e se expemmutualmente, elas esto sujeitas a uma dinmi-ca de interao que produz um comportamentointercultural que se manifesta em grupos deindivduos, em comunidades, em tribos e nassociedades como um todo. A interculturalidade

    vem se intensificando ao longo da histria dahumanidade.

    O programa etnomatemtica

    A exposio acima sintetiza a funda-mentao terica que serve de base a um pro-grama de pesquisa sobre gerao, organizaointelectual, organizao social e difuso doconhecimento. Na linguagem acadmica, po-der-se-ia dizer um programa interdisciplinarabarcando o que constitui o domnio das cha-madas cincias da cognio, da epistemologia,da histria, da sociologia e da difuso.

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    maneiras, tcnicas, habilidades (ticas) de expli-car, de entender, de lidar e de conviver com(matema) distintos contextos naturais esocioeconmicos da realidade (etnos).

    A disciplina denominada matemtica ,na verdade, uma Etnomatemtica que se origi-nou e se desenvolveu na Europa mediterrnea,tendo recebido algumas contribuies das civi-lizaes indiana e islmica, e que chegou forma atual nos sculos XVI e XVII, sendo, apartir de ento, levada e imposta a todo omundo. Hoje, essa matemtica adquire um ca-rter de universalidade, sobretudo devido ao

    predomnio da cincia e tecnologia modernas,que foram desenvolvidas a partir do sculo XVIIna Europa.

    Essa universalizao um exemplo doprocesso de globalizao que estamos testemu-nhando em todas as atividades e reas de co-nhecimento. Falava-se muito das multinacionais.

    Hoje as multinacionais so empresas globais,cuja nao ou grupo nacional dominante no possvel identificar.

    Essa idia de globalizao j comea ase revelar no incio do cristianismo e do

    islamismo. Diferentemente do judasmo, do qualessas religies se originaram, bem como deinmeras outras crenas nas quais h um povoeleito, o cristianismo e o islamismo so, essen-cialmente, religies de converso de toda hu-manidade mesma f, de todo o planeta subor-dinado mesma Igreja. Isso fica evidente noprocesso de expanso do Imprio Romanocristianizado e do Isl.

    O processo de globalizao da f cris-t aproxima-se do seu ideal com as grandesnavegaes. O catecismo, elemento fundamental

    da converso, levado a todo o mundo. Assimcomo o cristianismo um produto do Imprio

    Romano levado a um carter de universalidadecom o colonialismo, tambm o so a matem-tica, a cincia e a tecnologia.

    No processo de expanso, o cristianis-mo foi se modificando, absorvendo elementosda cultura subordinada e produzindo variantesnotveis do cristianismo original do coloniza-

    dor. Esperar-se-ia que, igualmente, as formas deexplicar, conhecer, lidar, conviver com a reali-dade sociocultural e natural, obviamente distin-tas de regio para regio, e que so as razesde ser da matemtica, das cincias e datecnologia, tambm passassem por esse proces-so de aclimatao, resultado de uma dinmicacultural. No entanto, isso no se deu, e no sed, e esses ramos do conhecimento adquiriramum carter de absoluto universal. No admitem

    variaes ou qualquer tipo de relativismo. Issose incorporou at no dito popular to certoquanto dois mais dois so quatro. No se dis-

    cute o fato, mas sua contextualizao na for-ma de uma construo simblica que anco-rada em todo um passado cultural.

    A matemtica tem sido conceituadacomo a cincia dos nmeros e das formas, dasrelaes e das medidas, das inferncias, e assuas caractersticas apontam para preciso, ri-gor, exatido. Os grandes heris da matemti-ca, isto , aqueles indivduos historicamenteapontados como responsveis pelo avano econsolidao dessa cincia, so identificados naAntigidade grega e posteriormente, na Idade

    Moderna, nos pases centrais da Europa, sobre-tudo Inglaterra, Frana, Itlia, Alemanha. Osnomes mais lembrados so Tales, Pitgoras,

    Euclides, Descartes, Galileu, Newton, Leibniz,Hilbert, Einstein, Hawkings. So idias e homensoriginrios do Norte do Mediterrneo.

    Portanto, falar dessa matemtica emambientes culturais diversificados, sobretudoem se tratando de indgenas ou afro-america-nos ou outros no-europeus, de trabalhadoresoprimidos e de classes marginalizadas, alm detrazer a lembrana do conquistador, do

    escravista, enfim do dominador, tambm serefere a uma forma de conhecimento que foiconstrudo pelo dominador, e da qual ele seserviu e se serve para exercer seu domnio.

    Muitos dizem que isso tambm se pas-sa com calas jeans, que agora comeam asubstituir todas as vestes tradicionais, ou com aCoca-Cola, que est por desbancar o Guaran,com o rap, que est se popularizando tanto

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    quanto o samba. Mas nenhum deles tem, comoa matemtica, a conotao de infalibilidade, derigor, de preciso e de ser um instrumento essen-cial e poderoso no mundo moderno. Isso a tornauma presena exclusiva de outras formas depensamento. Na verdade, ser racional identifi-cado com dominar a matemtica. A matemticase apresenta como a linguagem de um deusmais sbio, mais milagroso e mais poderoso queas divindades das outras tradies culturais.

    Se isso pudesse ser identificado apenascomo parte de um processo perverso deaculturao, atravs do qual se elimina a

    criatividade essencial ao ser humano (verbo), eudiria que essa escolarizao uma farsa. Mas pior, pois na farsa, uma vez terminado o espe-tculo, tudo volta ao que era. Enquanto naeducao, o real substitudo por uma situaoque idealizada para satisfazer os objetivos dodominador. Nada volta ao real ao terminar aexperincia educacional. O aluno tem suas razesculturais, parte de sua identidade, eliminadas noprocesso. Essa eliminao produz o excludo.

    Isto evidenciado, de maneira trgica,na Educao Indgena. O ndio passa pelo pro-

    cesso educacional e no mais ndio... mastampouco branco. provvel que a elevadaocorrncia de suicdios em algumas populaesindgenas esteja associada a isso.

    Uma pergunta natural pode ocorrerdepois dessas observaes: seria ento melhorno ensinar matemtica aos nativos e aos mar-ginalizados?

    Essa pergunta se aplica a todas as ca-tegorias de saber/fazer prprios da cultura dodominador, com relao a todos os povos quemostram uma identidade cultural. Poder-se-ia

    reformular a questo: seria melhor desestimularou mesmo impedir que as classes populares

    vistam jeans ou tomem Coca-Cola ou pra-tiquem o rap? Naturalmente so questes fal-sas e falso e demaggico seria responder comum simples sim ou com um no. Essas ques-tes s podem ser formuladas e respondidasdentro de um contexto histrico, procurandoentender a e(in?)voluo irreversvel dos siste-

    mas culturais na histria da humanidade. Acontextualizao essencial para qualquer pro-grama de educao de populaes nativas emarginais, mas no menos necessria para aspopulaes dos setores dominantes, se quiser-mos atingir uma sociedade com eqidade e

    justia social.Contextualizar a matemtica essencial

    para todos. Afinal, como deixar de relacionar osElementos de Euclides com o panorama cultu-ral da Grcia antiga? Ou a aquisio da nume-rao indo-arbica com o florescimento domercantilismo europeu nos sculos XIV e XV? E

    no se pode entender Newton descontex-tualizado. Lembro o trabalho fundamental deBoris Hessen (1995). Sem dvida, ser possvelrepetir alguns teoremas, memorizar tabuadas emecanizar a efetuao de operaes, e mesmoefetuar algumas derivadas e integrais, que notm relao alguma com qualquer coisa nas ci-dades, nos campos ou nas florestas. Algunsdiro que vale como a manifestao mais no-bre do pensamento e da inteligncia humana.

    Continuamos a insistir com a falsaassuno que inteligncia e racionalidade so

    sinnimos de matemtica. Acredita-se que esseconstructo do pensamento mediterrneo, levado sua forma mais pura, a essncia do serracional. E, assim, justifica-se o fato que indi-

    vduos, racionais porque dominam a matemti-ca, tenham tratado, e continuem tratando, anatureza como celeiro inesgotvel para seusdesejos e ambies.

    Naturalmente, h um importante com-ponente poltico nessas reflexes. Apesar demuitos dizerem que isso jargo ultrapassadode esquerda, claro que continuam a existir as

    classes dominantes e dominadas, tanto nos pa-ses centrais quanto nos perifricos.

    Faz sentido, portanto, falarmos de umamatemtica dominante, que um instrumentodesenvolvido nos pases centrais e, muitas ve-zes, utilizado como instrumento de dominao.

    Essa matemtica e os que a dominam se apre-sentam com postura de superioridade, com opoder de deslocar, e mesmo eliminar, a mate-

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    versos de cultura, de nao e de soberania, queimpem essa necessidade. O que se questiona a agresso dignidade e identidade culturaldaqueles subordinados a essa estrutura.

    A responsabilidade maior dos tericos daeducao alertar para os danos irreversveis quese podem causar a uma cultura, a um povo e aum indivduo se o processo for conduzido levia-namente, muitas vezes at com boa inteno, efazer propostas para minimizar esses danos.

    Muitos educadores no se do conta disso. Asconseqncias da ingenuidade e da perversida-de podem ser, essencialmente, as mesmas.

    Ainda me referindo educao indge-na, os conflitos conceituais que resultam daintroduo da matemtica do branco na edu-cao indgena, que se manifestam sobretudona formulao e resoluo de problemas aritm-ticos simples, so muito bem ilustrados nocontexto cultural dos xavantes, dos suys, doskayabis e dos jurunas (Ferreira, 2002). Exem-plos variados como transporte em barcos, ma-nejo de contas bancrias e outros mostram queos indgenas dominam o que essencial parasuas prticas e para as elaboradas argumenta-

    es com o branco sobre aquilo que lhes inte-ressa, normalmente focalizado em transporte,comrcio e uso da terra. Assim, a matemtica secontextualiza como mais um recurso para so-lucionar problemas novos que, tendo se origi-nado da outra cultura, chegam exigindo osinstrumentos intelectuais dessa nova cultura. Aetnomatematica do indgena serve, eficientee adequada para muitas coisas de fato mui-to importantes e no h por que substitu-la.A etnomatemtica do branco serve para outrascoisas, igualmente muito importantes, e no h

    como ignor-la. Pretender que uma seja maiseficiente, mais rigorosa, enfim, melhor que aoutra , se removida do contexto, uma questofalsa e falsificadora.

    O domnio de duas etnomatemticas, epossivelmente de outras, obviamente oferecemaiores possibilidades de explicaes, de en-tendimentos, de manejo de situaes novas, deresoluo de problemas. Mas exatamente

    assim que se faz pesquisa matemtica e naverdade pesquisa em qualquer outro campo doconhecimento. O acesso a um maior nmero deinstrumentos e de tcnicas intelectuais do,quando devidamente contextualizados, muitomaior capacidade de enfrentar situaes e deresolver problemas novos, de modelar adequa-damente uma situao real para, com essesinstrumentos, chegar a uma possvel soluo oucurso de ao.

    Isto aprendizagem por excelncia,isto , a capacidade de explicar, de apreendere compreender, de enfrentar, criticamente, situ-

    aes novas. Aprender no o mero domniode tcnicas, habilidades e nem a memorizaode algumas explicaes e teorias.

    A educao formal baseada na meratransmisso de explicaes e teorias (ensinoterico e aulas expositivas), no adestramentoem tcnicas e habilidades (ensino prtico comexerccios repetitivos). Do ponto de vista dosavanos mais recentes de nosso entendimentodos processos cognitivos, ambas so totalmenteequivocadas. No se podem avaliar habilidadescognitivas fora do contexto cultural. Obviamen-

    te, a capacidade cognitiva prpria de cadaindivduo. H estilos cognitivos que devem serreconhecidos entre culturas distintas, no con-texto intercultural e, tambm, na mesma cultu-ra, num contexto intracultural.

    Naturalmente, cada indivduo organizaseu processo intelectual ao longo de sua hist-ria de vida, captando e processando informa-es, como foi discutido acima. A metacognionos oferece um bom instrumental terico paraentender esse processo. O risco das prticaseducativas mais comuns que ao tentar

    compatibilizar as organizaes intelectuais deindivduos para, dessa forma, criar um esquemasocialmente aceitvel, a autenticidade e a indi-

    vidualidade de cada um dos participantes des-se processo estejam ameaadas. A fragilidadedesse estruturalismo pedaggico, ancorado noque chamamos de mitos da educao atual, evidente se atentarmos para a queda vertigino-sa dos resultados de educao ancorada nesses

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    mitos, e isso em todo o mundo. O grande desafioque se encontra na educao , justamente,sermos capazes de interpretar as capacidades ea prpria ao cognitiva no da forma linear,estvel e contnua que caracteriza as prticaseducacionais mais correntes.

    A alternativa reconhecer que o indi-vduo um todo integral e integrado, e quesuas prticas cognitivas e organizativas no sodesvinculadas do contexto histrico no qual oprocesso se d, contexto esse em permanenteevoluo. Isto evidente na dinmica que pre-

    valece na educao para todos e na educao

    multicultural.A adoo de uma nova postura educa-cional , na verdade, a busca de um novoparadigma de educao que substitua o jdesgastado ensino-aprendizagem, que baseadonuma relao obsoleta de causa-efeito. Procura-se uma educao que estimule o desenvolvimentode criatividade desinibida, conduzindo a novasformas de relaes interculturais. Essas relaescaracterizam a educao de massa e proporcio-nam o espao adequado para preservar a diver-sidade e eliminar a desigualdade, dando origem

    a uma nova organizao da sociedade.

    Uma proposta de currculo:

    literacia, materacia e

    tecnoracia

    Utilizo uma definio muito abrangentede currculo: a estratgia da ao educativa. Aolongo da histria, o currculo reflete uma con-cepo de educao e de sua importncia nasociedade, o que muito diferente da impor-tncia acadmica de cada disciplina. Estamos

    falando de sistemas educacionais como umtodo e de currculo como estratgia de educa-o (DAmbrosio, 1983).

    Os romanos nos legaram um modeloinstitucional que at hoje prevalece, em parti-cular na educao. O que corresponderia a um1ograu, a educao fundamental, era organiza-do no mundo romano como o trivium(gram-tica, retrica e dialtica), e o grande motivador

    desse currculo era a consolidao do ImprioRomano. Com a expanso do cristianismo naIdade Mdia, criaram-se outras necessidadeseducacionais, que se refletem no que seria um2ograu, de estudos superiores, organizadoscomo o quadrivium(aritmtica, msica, geome-tria, astronomia). Em ambos os casos, eviden-te que a organizao curricular encontra suarazo de ser no momento sociocultural e eco-nmico de cada poca.

    Os grandes avanos nos estilos de ex-plicao dos fatos naturais e na economia, quecaracterizaram o pensamento europeu a partir

    do sculo XVI, criaram a demanda de novasmetas para a educao. A principal meta eracriar uma escola acessvel a todos e responden-do a uma nova ordem social e econmica. Jem 1656, Comenius disse:

    Se, portanto, queremos Igrejas e Estadosbem ordenados e florescentes e boas admi-nistraes, primeiro que tudo ordenemos asescolas e faamo-las florescer, a fim de quesejam verdadeiras e vivas oficinas de ho-mens e viveiros eclesisticos, polticos e

    econmicos. (1996, p. 71)

    Pode-se dizer que essa a origem daDidtica Moderna.

    As grandes transformaes polticas eeconmicas que resultaram das revoluesamericana e francesa causaram profundas mu-danas nos sistemas educacionais. Como emoutros tempos, os interesses dos imprios fo-ram determinantes. Particularmente notveis soas mudanas na Frana de Napoleo e na Ale-manha de Bismarck. Mas, sem dvida, o modelo

    que se imps foi aquele adotada pelos EstadosUnidos para fazer face a uma situao nova,que a fixao de uma populao de imigran-tes nos territrios conquistados dos indgenasdurante a grande expanso para o Oeste. Omodelo americano visa uma escola igual paratodos e o currculo bsico ficou conhecidocomo os trs erres (threee Rs): Reading,wRiting and aRithmetics. Essa maneira de se

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    Recebido em 20.01.05

    Aprovado em 03.03.05

    Ubiratan DAmbrsio professor emrito da UNICAMP, professor do Programa de Ps-graduao em Educao Matemtica

    e Histria da Cincia na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Professor credenciado pela Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo e professor voluntrio no Programa de Ps-graduao em Educao Matemtica, IGCE/UNESP,Rio Claro.