curso de especialização em serviço social: direitos ... · fig. 1- charge erasmo/2006 ......
TRANSCRIPT
1
Curso de Especialização em Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais
CARRUAGEM ENTRE O SONHO E A REALIDADE:
AVANÇOS E RETROCESSOS DA LUTA PELA TERRA NO BRASIL
VANIA MARIA CARVALHAIS MARQUES
Brasília
2010
2
Universidade de Brasília - UnB
Instituto de Ciências Humanas - IH
Departamento de Serviço Social - SER
Conselho Federal de Serviço Social - CFESS
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS
CARRUAGEM ENTRE O SONHO E A REALIDADE:
AVANÇOS E RETROCESSOS DA LUTA PELA TERRA NO BRASIL
VANIA MARIA CARVALHAIS MARQUES
Trabalho monográfico apresentado ao Departamento de
Serviço Social – SER/IH da Universidade de Brasília,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do
título de Especialista em Serviço Social.
Orientadora: Drª Maria Conceição Sarmento Padial
Machado
Brasília, novembro de 2010.
3
Banca Examinadora
________________________________________
Professora Doutora Maria Conceição Sarmento Padial
Machado
______________________________________
Professora Doutora Patrícia Basílio Estabile
4
Marques, Vania Maria Carvalhais
Carruagem Entre o Sonho e a Realidade: avanços e
retrocessos da luta pela terra no Brasil. Brasília:
CEAD/UNB/CFESS, 2010.
Monografia –Pós Graduação –Serviço Social – Direitos
Sociais e Competências Profissionais– 1. Questão Agrária
e Acumulação Capitalista - 2. Política Agrária e Reforma
Agrária– 3. Luta pela Terra e Projeto de Assentamento.
5
DE POUCOS PARA POUCOS
Por João Pedro Stédile
A sociedade brasileira é uma das mais injustas e desiguais do planeta. [...]. Somos um povo trabalhador. Produzimos muitas riquezas. No período de 1930-1980, fomos a economia que mais cresceu, em média. Vivemos num território que, provavelmente, seja o mais pródigo em riquezas naturais do mundo. Temos todos os climas e biomas. [...]. Não há sociedade similar que tenha se constituído com tamanha diversidade. Como diz a piada sobre a criação do universo, até os anjos reclamaram dos privilégios que teríamos recebido. Aos quais, Deus teria justificado que, em troca teríamos os piores governos do planeta. E parece que os desígnios divinos se realizaram, porque nesses mais de 500 anos de Brasil foram raros os períodos de democracia e de governos comprometidos com os interesses da população. E com tantas riquezas naturais e um povo tão batalhador nossa sociedade ainda sofre muitas mazelas inaceitáveis.
Nada justifica a elevada concentração da riqueza, da propriedade dos bens e da renda, que beneficiam apenas os 10% mais ricos. [...]. Nossa economia é cada vez mais dependente do exterior e do capital financeiro. [...]. O capital estrangeiro vem aqui nos explorar e reenviar seus lucros livremente. [...]. O capital internacional controla até nossas riquezas naturais. [...]. Nossa burguesia, como advertira o saudoso Florestan Fernandes, abandonou há tempos a proposta de um projeto de desenvolvimento nacional, mesmo capitalista. É uma lúmpen-burguesia, que se contenta em superexplorar seu povo para repartir as taxas do lucro com o capital internacional. Agora cada vez mais controlado pelo capital financeiro e pelas grandes corporações globalizadas.
Os índices de concentração da propriedade da terra, um bem da natureza que deveria estar a serviço de todos, nunca estiveram tão concentrados. O último Censo Agropecuário do IBGE revelou que a concentração fundiária em 2006 é maior do que em 1920, quando havíamos recém-saído da escravidão e que se praticava quase um monopólio da propriedade da terra. A produção agrícola está cada vez mais baseada na monocultura, no uso intensivo de venenos e na expulsão da mão de obra do campo. Transformamo-nos no maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que destroem a natureza, desequilibram o meio ambiente e contaminam os alimentos que todos comemos.
As grandes cidades se transformaram em conglomerados humanos, onde os problemas só aumentam. [...]. Sabe-se que as raízes de todos esses problemas são estruturais e do modelo econômico adotado. Primeiro, foi o modelo agroexportador no período colonial. Depois, ao longo do século XX, implantamos uma industrialização dependente do capital estrangeiro. E agora somos reféns do capital financeiro internacional. [...]. Segundo, tivemos quase sempre governos servis, subalternos aos interesses econômicos estrangeiros. Mesmo o governo Lula conseguiu apenas em parte frear as políticas neoliberais e ajudou a distribuir o bojo entre os mais pobres. Mas, por sua composição de classe e partidos, não teve força suficiente para enfrentar os problemas estruturais da sociedade brasileira.
Esses problemas são graves e tendem a se agravar mais ainda. Nos movimentos sociais, acreditamos que eles serão resolvidos somente quando tivermos em nosso país uma conjugação de forças populares, que se mobilizem em aliança com um governo popular. E assim se façam as mudanças legislativas no poder público e, sobretudo, a mudança do modelo econômico, para construir de fato um projeto popular, ou seja, a serviço do povo no Brasil. Como sonhara Paulo Freire. E, apesar da apatia e pasmaceira social nesse período de nossa história, não se iludam, o povo voltará a se mobilizar e a se organizar por mudanças estruturais.
(Publicado na edição número 600 da revista Carta Capital, de junho de 2010).
s
6
Fig. 1- Charge Erasmo/2006
A fonte principal de toda a estupidez de nossos municipalistas reside precisamente em que
não compreendem a base econômica da transformação agrária burguesa [...] nas duas
variedades possíveis dessa transformação: a latifundiária-burguesa e a camponesa-
burguesa. Sem "limpar" o regime e as relações agrárias medievais, em parte feudais e em
parte asiáticas, não pode sobreviver à transformação burguesa da agricultura, pois o
capital deve - no sentido da necessidade econômica — criar para si um novo regime
agrário adaptado às novas condições da agricultura mercantil livre. Essa "limpeza" dos
restos medievais no terreno das relações agrárias em geral e do velho regime de posse da
terra, em primeiro lugar, deve afetar principalmente as terras dos latifundiários e as terras
comunitárias dos camponeses, pois que tanto uma como a outra dessas formas de
propriedade da terra estão, no presente, adaptadas ao pagamento em trabalho, à herança
da corvéia, e não à economia livre que se desenvolve à maneira capitalista.
Lênin
7
Para Antonio e Olga (in memoriam),
meus queridos pais e doutores maiores de minha vida,
por terem me ensinado a compreender o mundo
para além da exploração capitalista.
Meu esposo e minha filha,
que acompanham e incentivam minha caminhada.
Para os sem terra e assentados em projetos de assentamentos rurais,
por sua luta incessante e busca inabalável
por direitos, respeito e dignidade,
que nesse árduo peregrinar à luz do sonho
de uma Reforma Agrária massiva e de qualidade,
ousaram ser os artífices de seus próprios destinos.
Para todos aqueles que direta ou indiretamente participam dessa luta.
8
AGRADECIMENTOS
Ao fim desse trabalho foram muitos os caminhos percorridos, muitas idas e vindas e,
sobretudo encontro com muitas pessoas que legaram prestimosas contribuições, aprendizados
e lições.
Agradeço inicialmente a esta força estranha que move a vida e que nos põe diante de
outras pessoas, de desafios, decepções, alegrias, tristezas, risos, lágrimas e conquistas, dando-
nos a exata dimensão de nossa humanidade.
Entretanto, o presente trabalho não teria se concretizado sem a inestimável ajuda de
estudiosos da temática, professores, trabalhadores assentados em projetos de assentamento de
reforma agrária, trabalhadores sem terra, lideranças de movimentos sociais, mediadores,
colegas de trabalho, familiares e amigos.
Agradeço especialmente à professora doutora Maria Conceição Sarmento Padial
Machado, minha orientadora e amiga, que, nos momentos mais difíceis desse curso de
especialização, perdoou as falhas e ausências nos debates, prorrogou prazos e motivou a
turma. Com liberdade, paciência, e muita responsabilidade acadêmica, usou seu profundo
conhecimento sobre o tema para corrigir rumos e apontar direções. Se algum mérito existe
nesta monografia, a participação da orientadora foi determinante.
Agradeço também à professora doutora Patrícia Basílio Estabile, examinadora,
integrante da Banca de Defesa, por ter dedicado parte do seu precioso tempo na leitura deste
trabalho e aporte para alargar a minha compreensão sobre o debate teórico da luta pela terra
no Brasil, fortalecendo o meu compromisso profissional de contribuir com a construção de
uma sociedade mais justa, a partir do espaço sócio-cupacional de trabalho.
Agradeço ainda aos colegas de trabalho, Marcelo e Najomary, cujas oportunas e
relevantes observações foram fundamentais para clarear o objeto da pesquisa e melhorar o
raciocínio que vinha sendo construído.
Não posso deixar de agradecer aos que lutam e caminham muito, os trabalhadores sem
terra, trabalhadores assentados e lideranças dos movimentos sociais do sul e sudeste do Pará,
que um dia irão chegar, mas que, na convivência diária, me ensinaram a compreender um
pouco mais a complexidade da luta pela terra frente os desafios da questão agrária brasileira e
a perseguir um outro mundo, onde possamos viver com dignidade.
9
Aos amigos e amigas que são muito mais do que isto, verdadeiros irmãos/irmãs
companheiros/companheiras, que sempre estiveram comigo, mesmo na distância, e foram
fundamentais para a concretização deste trabalho.
A todos aqueles que, nos diferentes lugares, até mesmo nos corredores e esquinas,
apresentaram opiniões sobre o tema, meu sincero agradecimento. Fiquem certos de que as
várias observações feitas, sem maiores pretensões, foram incorporadas ao texto final.
Agradeço carinhosamente aos meus familiares, pelo incondicional apoio, força e
estímulo nos momentos de maior dificuldade nessa caminhada, pedindo desculpas por ter
suprimido um pouco de nossa convivência para que pudesse concluir este estudo
Enfim, por tudo e para todos quero dizer obrigado. Algo indispensável para se viver na
certeza que nenhuma produção acadêmica é construída absolutamente solitária. Nesse longo
peregrinar, citar alguns a serem agradecidos não significa esquecer outros. Assim como sorver
o perfume de uma (ou mais) rosa(s) não significa dizer que as demais foram ignoradas ou não
reconhecidas em sua exuberante beleza e colorido.
10
LISTA DE SIGLAS
ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária
ATES - Programa de Assistência Técnica Social e Ambiental à Reforma Agrária
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina
CF – Constituição Federal
CNA – Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT – Comissão Pastoral da Terra
ETR – Estatuto do Trabalhador Rural
FAA – Frente Ampla da Agricultura
FHC – Fernando Henrique Cardoso
GEBAM – Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas
GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins
GERA – Grupo Interministerial de Trabalho Sobre Reforma Agrária
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INDA – Instituto de Desenvolvimento Agrário
ITERPA - Instituto de Terras do Pará
MASTER – Movimentos dos Agricultores Sem Terra
MDA – Ministério de Desenvolvimento Agrário
MIRAD - Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
MP – Medida Provisória
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSTR – Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais
ONU – Organização das Nações Unidas
PA – Projeto de Assentamento
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PFE – Procuradoria Federal Especializada
PGF – Procuradoria Geral Federal
PIN – Produto Interno Bruto
PIN – Programa de Integração Nacional
11
PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária
PROCERA – Programa de Crédito Agricultura Familiar
PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e
Nordeste
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PT – Partido dos Trabalhadores
SNA – Sociedade Nacional de Agricultura
SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia
SRB – Sociedade Rural Brasileira
SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
SUPRA – Superintendência de Política Agrária
STF – Supremo Tribunal Federal
TDA – Títulos da Dívida Agrária
UDR – União Democrática Ruralista
ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
12
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS
RESUMO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
CAPÍTULO I – QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL: UM PROCESSO HISTÓRICO
DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA.................................................................................21
1.1 A configuração agrária colonial: do regime de sesmarias à lei de terras...........................22
1.2 A configuração agrária na modernização conservadora.....................................................35
1.3 A configuração agrária atual...............................................................................................51
CAPÍTULO II – POLÍTICA AGRÁRIA E REFORMA AGRÁRIA FACE
A PROPRIEDADE PRIVADA E FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA.................................64
2.1 Propriedade privada e sistema capitalista ..........................................................................64
2.2 Propriedade privada e função social da terra .....................................................................78
2.3 Política agrária e reforma agrária: realidade, bandeira de luta ou utopia ...........................91
CAPÍTULO III – A LUTA PELA TERRA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO
NA REFORMA AGRÁRIA................................................................................................112
3.1 A luta pela terra como uma reação contra-hegemônica...................................................112
3.2 Os projetos de assentamentos na reforma agrária............................................................125
CONSIDERAÇÕES..............................................................................................................134
REFERÊNCIAS...................................................................................................................138
13
RESUMO
Trata-se de uma monografia de especialização que analisa avanços e retrocessos da luta pela
terra no Brasil, cujo percurso metodológico comporta diferentes momentos históricos, em
que, ao mesmo tempo em que o direito é reconhecido, as leis do capital transformam esse
direito em sonho. É nesse vai-e-vem entre o trabalho e a precarização das condições de vida
que está inscrita a história do trabalhador campesino brasileiro. Assim, o objeto de estudo é a
trajetória da posse e expropriação da terra vivenciada pela sociedade civil e o papel
contraditório do Estado neste processo, que, ao mesmo tempo em que legitima o direito
restrito à propriedade privada, ainda tem que garantir as condições de sobrevivência para o
trabalhador campesino com a implementação de política agrária. Para isso recorreu-se a uma
pesquisa qualitativa, tendo como referencial teórico metodológico os pressupostos de uma
concepção crítico-dialético com raízes no materialismo histórico e dialético do real e do
concreto. A luta pela terra será então abordada como parte de uma totalidade social posta
pelas contradições da sociabilidade capitalista, enquanto práxis contra-hegemônica.
Palavras - Chave: questão agrária, luta pela terra, reforma agrária, política agrária.
14
ABSTRACT
This is a monograph of specialization that examines advances and setbacks in the struggle for
land in Brazil, whose methodological approach includes various historical moments in which,
while the right is recognized, the laws of capital to transform this dream right . It is in this
back-and-forth between work and precarious living conditions, which is inscribed the history
of Brazilian peasant worker. Thus, the object of study is the trajectory of possession and
dispossession of land experienced by civil society and the contradictory role of the state in
this process, at the same time legitimate law restricted to private property, must still ensure
the survival conditions for the peasant worker with the implementation of agrarian policy. For
this we used a qualitative research as theoretic methodological assumptions of a critical-
dialectical conception rooted in historical and dialectical materialism of the real and concrete.
The struggle for land will be addressed as part of a social totality called the contradictions of
capitalist sociabildade as counter-hegemonic praxis.
Key - words: agrarian question, the struggle for land, agrarian reform, agrarian policy.
15
INTRODUÇÃO
Ser grande é compartilhar o choro largo do mundo.
(Mário de Andrade)
A formação da sociedade brasileira tem como característica ontológica a exploração
do trabalho, a expropriação do produto desse trabalho e, sobretudo, a concentração da
propriedade da terra, sob a forma de latifúndio. Em Pleno século XXI o quadro agrário
brasileiro tem apresentado um panorama complexo e contraditório onde a ordem tem sido a
luta e os conflitos por terra. No entanto, esse panorama vem se perpetuando ao longo do
tempo.
O título principal deste trabalho “carruagem entre o sonho e a realidade” expressa o
movimento da luta pela terra que se confunde com a própria luta pelo direito ao trabalho, à
sobrevivência e à vida. O sonho, aqui, é compreendido como uma expectativa inerente ao
trabalhador brasileiro que se depara com a realidade da privatização de um bem natural que se
transformou em mercadoria de acesso restrito, a terra.
O subtítulo “avanços e retrocessos da luta pela terra”, comporta os diferentes
momentos históricos, em que, ao mesmo tempo em que o direito é reconhecido, as leis do
capital, transformam esse direito em sonho. É nesse vai-e-vem entre o trabalho e a
precarização das condições de vida que está inscrita a história do trabalhador campesino
brasileiro.
Assim, o objeto de estudo aqui exposto, é a trajetória da posse e expropriação da terra
vivenciada pela sociedade civil e o papel contraditório do Estado neste processo, que, ao
mesmo tempo em que legitima o direito restrito à propriedade privada, ainda tem que garantir
as condições de sobrevivência para o trabalhador campesino com a implementação de política
agrária.
O fato de um bem da natureza, que deveria ser utilizado por todos, ser monopolizado
por uma parcela minoritária da população, que se coloca enquanto classe hegemônica - num
país de dimensões continentais – agrava o quadro de mazelas sociais, pois nega condições de
existência e dignidade a ampla parcela da população. À injusta concentração de terras soma-
se uma longa história de dominação, espoliação, desigualdades sociais, econômicas, políticas
e culturais, exploração dos trabalhadores rurais, marginalização, exclusão e expulsão de
16
mulheres e homens do campo. Essas desigualdades inviabilizam o próprio desenvolvimento
do país.
Para Sauer (2000), o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão
das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Entretanto, reconhece que crescimento do PIB,
aumento da renda per capita, industrialização e avanço tecnológico são importantes à
expansão das liberdades, mas insuficientes. Essas liberdades são essencialmente determinadas
pela fruição do direito ao trabalho, à terra, saúde, educação e direitos civis. No caso em tela,
desenvolvimento deve ser compreendido como crescimento econômico, justiça social e
extensão da cidadania democrática também à população do campo.
A democratização do acesso à terra é um dos caminhos para que o Brasil possa ser um
país desenvolvido. A concentração é a grande geradora do êxodo rural, do inchaço das
grandes cidades e, acima de tudo, do alto grau de miséria e pobreza em que se encontram
milhões de trabalhadores brasileiros. Representa, pois, um dos principais obstáculos à
construção da democracia brasileira.
A terra torna-se sinônimo de poder e prestígio, bem como capital sujeito à
especulação. A concentração fundiária e a imensa pobreza dela decorrente, associada ao
elevado padrão de violência contra os trabalhadores rurais, estão no cerne da “questão agrária
brasileira”.
Os contornos atuais da estrutura agrária estão intimamente ligados ao processo
histórico de colonização do país, iniciando com o regime de sesmarias, adotado no período
colonial. No afã de ocupar o território brasileiro, eram concedidas vastas extensões de terras
aos “amigos do rei”, que mais tarde converteram-se em latifúndios.
Além disso, a Lei de Terras, de 1850, pôs termo ao regime de posses e de sesmarias e
organizou a propriedade privada no Brasil. Ao reconhecer a validade dos títulos sesmariais e
eleger a compra e venda como único meio de aquisição das terras devolutas, impedindo o
acesso à propriedade aos negros, indígenas e camponeses pobres, confirmou a estrutura
fundiária concentradora e excludente. A partir dessa legislação se estruturam as bases para o
Estado legitimar a propriedade privada da terra e viabilizar a separação entre as esferas de
poder público e privado, minando a oportunidade ímpar de se fazer a reforma agrária.
A modernização conservadora, a que a agricultura brasileira foi submetida, a partir dos
anos 1960, engendrou significativo aumento da concentração fundiária e da pobreza no meio
rural. A mobilização dos trabalhadores rurais em sua luta por uma efetiva política agrária
17
logrou êxito em aprovar o Estatuto da Terra (1964), considerado um marco jurídico na luta
pela reforma agrária no Brasil.
Todavia, não garantiu que fosse aplicado ao ponto de alterar a estrutura agrária do
país. O Estatuto foi completamente esvaziado pela classe dominante agrária. A política
agrária no período ditatorial era revestida de um projeto de colonização do território,
sobretudo da Amazônia, cujo lema era “Colonizar para não Reformar” (OLIVEIRA, 2009, P.
171).
O resultado desse longo e contraditório processo histórico, agravado pelo modelo
agrícola inaugurado pela modernização conservadora, e que agora se apresenta como
agronegócio, é uma estrutura fundiária concentradora e excludente: quase metade do território
brasileiro é controlada por 1,6% dos proprietários (MARTINS, 2003) ao passo que milhões de
famílias de trabalhadores rurais esperam pela prometida e sempre abarbada reforma agrária.
Na história constitucional brasileira, a propriedade privada sempre foi sacralizada
como direito individual, exclusivo e absoluto do proprietário. Para superar as mazelas do
campo, a Constituição de 1988 elevou a reforma agrária à dignidade constitucional e conferiu
à propriedade rural uma função social. A Constituição deixou claro seu compromisso com a
mudança no padrão de distribuição e posse da terra no país. Em outras palavras, os modelos
de Estado e de sociedade fundados pela Magna Carta de 1988 assentam-se sobre a
democratização da propriedade da terra. Daí porque o Brasil precisa realizar a reforma
agrária.
Entretanto, o cumprimento integral da função social é ignorado no país. Na prática, os
elementos: ambiental e social da função social são considerados apenas para efeitos de
desapropriação, quando a propriedade descumpre também o elemento econômico, ou seja,
não atinge os índices de produtividade. Mesmo nos governos civis, apesar da elaboração dos
Planos Nacionais de Reforma Agrária I e II, não há registros de avanços consideráveis com
relação à reforma agrária.
Mas, se de um lado, há opressão, de outro, surge a resistência por parte daqueles que
não aceitam o presente quadro e cobram mudanças. A luta coletiva engendrada pelas classes
populares direciona-se contra uma situação de patente injustiça social.
A oposição à estrutura posta gera, portanto, o seu contrário, na forma de movimentos
que vão lutar pela democratização do acesso à terra e que adquiriram grande destaque nos
anos de 1990, sendo um dos grandes atores políticos da atualidade, com destaque para o
18
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Eles cobram uma dívida social vencida há
tempos: terra, trabalho, moradia, dignidade, melhores condições de existência e justiça social.
E o meio escolhido para externar suas reivindicações foi o da ação direta, mediante diversas
modalidades de pressão e protesto social: ocupações de terras e prédios públicos, caminhadas,
marchas, acampamentos e outros atos, na perspectiva de efetivação de direitos.
O método utilizado para desenvolver tal compreensão é o materialismo histórico
dialético, fundamentado nas relações de antagonismo entre as classes sociais. Trata-se de um
método abrangente por ocupar-se de das contradições expressas à sociedade, por consistir em
entender a realidade concreta; o concreto com a idéia, a forma com o conteúdo, a aparência
com a essência, o fenômeno com o ser. Segundo Ianni (1988, p. 131), permite assim, o estudo
das contradições das relações sociais, o conflito e a luta entre as classes. A abordagem crítico-
dialética se assenta nas relações de antagonismo em que o princípio da contradição governa o
modo de pensar e o modo de ser. Esta é a razão pela qual é possível aplicá-la no estudo
presente.
A luta pela terra será então abordada como parte de uma totalidade social posta pelas
contradições da sociabilidade capitalista. A dialética assume a qualidade dos fatos e das
relações sociais como propriedades inerentes, considerando quantidade e qualidade como
categorias inseparáveis e interdependentes, ensejando-se assim a dissolução das dicotomias
quantitativo/qualitativo, macro/micro, interioridade e exterioridade com que se debatem as
diversas correntes sociológicas.
A metodologia utilizada é ancorada em constatações reais da luta pela terra mediante
trabalhos de campo, visitas e reuniões em acampamentos e assentamentos; de análise de
dados do sistema de informações do INCRA (SIPRA); de leituras teóricas (pesquisa
bibliográfica) de livros, dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos e outros meios
de informação em periódicos e páginas eletrônicas; de observações participativas e
sistemáticas em seminários, oficinas de direito agrário e audiências públicas; e
acompanhamento de colóquios com o professor orientador, lideranças do MST, FETAGRI,
FETRAF e coordenadores da CPT.
Em coro com Lima (2006) ao afirmar que o modo de analisar a temática depende da
concepção que se tenha dela, bem como da própria concepção de mundo do pesquisador,
optou-se por uma abordagem de caráter plural, interdisciplinar, inserida na realidade social
brasileira.
19
Assim, os principais referenciais teóricos que balizam essa monografia estão
ancorados nos pensamentos de: Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançamo
Fernandes, Carlos Frederico Marés, José de Souza Martins, João Pedro Stédile e Sérgio
Sauer.
O cenário encontrado é a realidade brasileira, altamente complexa e contraditória,
pautada pelo modo de produção hegemônico, o capitalismo, com os contornos conferidos pela
estrutura agrária e luta pela terra no decorrer da história. Uma sociedade prenhe de injustiças e
desigualdades sociais, que atingem duramente as camadas populares, principalmente as do
campo. Não obstante este cenário, a existência das lutas sociais contra-hegemônicas, travadas
pelos que não se sentem representados pelo atual estado de coisas, merece ser pesquisada.
O interesse por esse estudo foi consubstanciado inicialmente pela trajetória acadêmica
da pesquisadora, vez que se confunde com sua militância política em defesa dos direitos da
classe trabalhadora e que desde muito cedo acompanha a luta pela terra. Sua vivência, e
posteriormente seus estudos acadêmicos, permitiram que compreendesse a dimensão política
dessa luta que tem como princípio imediato a luta pela sobrevivência.
Assim como Gramsci (1999) diz que não se faz política sem paixão, percebi que
também não se faz ciência sem paixão e sem acúmulo de experiência e saberes. Portanto, ao
fazer referência à carruagem – e não carroça, que é o veículo que os agricultores conhecem –
estou me referindo também ao movimento devir de uma realidade pautada pelo sofrimento e
pela perseverança. Esse devir não é duro como uma carroça, mas complexo como uma
carruagem que carrega uma história rica de conflitos e contradições.
A história do Brasil foi contada pelos vencedores, mas foi junto aos vencidos que pude
conhecer a verdadeira história, onde o mundo real é construído com muita luta que tem como
alicerce o sonho – ancorado na subjetividade – pois as circunstâncias objetivas pouco têm a
oferecer. Assim, a inquietação em relação à temática vem à baila após a minha inserção
profissional no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) - autarquia
responsável pela política de reforma agrária. Recentemente, como integrante da equipe de
ouvidoria Agrária do INCRA – Superintendência Regional do Sul e Sudeste do Estado do
Pará, o tema ganha ênfase ao vivenciar o cotidiano de lutas e resistências dos trabalhadores
sem terras e assentados, pela democratização do acesso à terra e garantia de políticas públicas
voltadas para os acampamentos e assentamentos rurais.
20
Não se trata apenas de um tema adequado à qualificação da pesquisadora, ou de
interesse individual, é uma questão de interesse social, com grande lacuna no campo do
conhecimento.
Esse estudo ganha destaque também no campo profissional, considerando que nas
últimas décadas o Serviço Social vem se destacando nas ciências sociais, como campo de
pesquisa e de produção de conhecimento científico. Portanto, pela sua dimensão investigativa
e interventiva, no sentido de fornecer subsídios para além da análise de um fenômeno social e,
ainda, para reforçar os valores e princípios norteadores do Projeto Ético-Político Profissional
do Serviço Social. Volta e meia somos surpreendidos com apelos de profissionais e estudiosos
no sentido de colocar a luta pela terra no cerne dos debates acadêmicos.
Em face do estudo proposto, desdobrou-se organicamente em três capítulos, sendo o
primeiro e o segundo com três tópicos e último com dois tópicos. São os capítulos: a questão
agrária no Brasil: um processo histórico da acumulação capitalista; política agrária e reforma
agrária face a propriedade privada e função social da terra; e a luta pela terra e os projetos de
assentamentos na reforma agrária.
No primeiro capítulo propõe-se a retratar a estrutura fundiária brasileira,
demonstrando as raízes históricas da questão agrária, a elevada concentração da terra, os
problemas decorrentes dessa concentração e a necessidade de sua democratização, destacando
a configuração agrária no período colonial - com o regime de sesmarias e a Lei de Terras; a
configuração agrária no processo de modernização conservadora e seus desdobramentos; e a
estrutura agrária na atualidade - destacando a luta pela terra e a política agrária nos governos
civis. Não se descuida, portanto, da abordagem do agronegócio, vendido como modelo de
desenvolvimento e modernização para o campo. O conjunto destas questões atesta a
centralidade da questão agrária, que traz à tona, aspectos altamente negativos,
consubstanciados na absurda concentração de terras, na exploração dos trabalhadores rurais e
na expulsão de camponeses, no processo do êxodo rural.
No segundo, reserva-se a uma discussão teórica sobre propriedade e função social da
terra na perspectiva do direito brasileiro. Visa analisar a origem da propriedade privada da
terra e sua importância para o sistema capitalista, bem como refletir sobre a modificação do
direito de propriedade operada pelo advento da teoria da função social. Objetiva também
analisar a proteção historicamente conferida à propriedade pelo ordenamento jurídico
brasileiro, até a transformação promovida pela Constituição Federal de 1988, que modificou
21
completamente seu regime jurídico de modo a proteger apenas a propriedade que cumpre a
função social. Em seguida, discute-se a política agrária e a reforma agrária, entre a realidade e
a utopia.
No terceiro capítulo, contra as tendências hegemônicas, que se manifestam desde os
primórdios da colonização, insurge-se a resistência popular no campo na forma de diversas
experiências: lutas indígenas e negras, Canudos, Contestado, revoltas de posseiros, Ligas
Camponesas, movimento sindical no campo e os movimentos sem terra, dentre os quais
merece menção especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Busca-se
a compreensão do sentido que a luta pela terra e suas formas de resistência, bem como a
reforma agrária adquiriram ao longo do tempo e a resposta do Estado, e dos setores
dominantes à atuação das classes populares. Está centrado, portanto, no processo de
organização, ocupação e conquista da terra que origina os assentamentos rurais - território
gestado pelos assentados após a conquista da terra.
22
CAPÍTULO I
A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL:
UM PROCESSO HISTÓRICO DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA
É possível dizer que todos os momentos mais notáveis da história da
sociedade brasileira estão influenciados pela questão agrária. As
rupturas políticas das últimas décadas, quando o Brasil já é um país
bastante urbanizado e industrializado, também revelam essa
influência. A questão agrária está presente na transição da
Monarquia à República, do Estado oligárquico ao populista, do
populista ao militar, na crise da ditadura militar e nos movimentos e
partidos que estão lutando pela construção de outra forma de
Estado. Há muito campo nessa história.
José de Souza Martins
O Brasil possui uma estrutura fundiária marcada pelo elevado índice de concentração
da propriedade da terra, pela violência contra camponeses e pela pobreza entre a população do
campo. Essa configuração foi se desenhando ao longo dos mais de 500 anos de história, em
decorrência das políticas implementadas pelos sucessivos governos. Concentração de riquezas
(e de propriedades privadas) nas mãos de poucos, exploração do trabalho e aviltamento dos
direitos estão no cerne da questão agrária brasileira, essas condições se expressam por meio
da pobreza e violência no campo e se projetam para a sociedade como um todo.
No sistema latifundiário brasileiro, mesmo com o alegado aumento de produtividade
atribuído ao agronegócio, muitas pessoas passam fome, são subnutridas ou desnutridas e
vivem na miséria absoluta, mesmo com tantos hectares de áreas agricultáveis. É desnecessário
afirmar que essa situação é vergonhosa, pois proeminentes personalidades que apóiam o
sistema capitalista já o fazem; e ainda, inúmeros documentos oficiais que atestam o
deplorável quadro. Esta situação é histórica no Brasil e vem ocorrendo em diversas gestões de
governantes que, em geral, apresentam propostas reformistas que não atingem a causa
principal (OLIVEIRA, 2006).
A acentuada desigualdade da estrutura fundiária brasileira apesar de historicamente
construída pode ser igualmente desconstruída, exigindo-se instrumentos, políticas e ações que
privilegiem os grupos historicamente excluídos, mas sem deixá-los como meros espectadores
ou destinatários, procurando inseri-los num projeto onde figurem enquanto sujeitos de sua
transformação. Em coro com Fernandes (1996), a intensificação das desigualdades é um
movimento próprio do capitalismo, mas a desigualdade não pode ser assim percebida pelos
23
“de baixo”, que “precisam” acreditar, com fé inquebrantável e, para a tranqüilidade do
sistema, na eternidade das relações sociais, ou seja, as coisas são assim, foram sempre assim e
assim o será.
A estrutura agrária, montada sobre o latifúndio, é estruturalmente violenta, no sentido
de negar o outro, de impedir uma existência digna para a ampla maioria. É uma violência
estrutural, que se manifesta de distintos modos e que muitas vezes passa despercebida, mas é
diuturnamente sentida. O campo tem sido cenário de injustiças recorrentes, de negação de
direitos sociais, mas também é aí que vem se dando, há tempos, a resistência dos
trabalhadores sem-terra e assentados em Projetos de Assentamento de Reforma Agrária, na
forma de organizações e movimentos sociais que lutam pela democratização de acesso a terra
e políticas agrárias.
1.1 A configuração agrária colonial: do regime de sesmaria à lei de terras
A existência humana sob o globo está condicionada, desde sempre, àquilo que se
extrai da terra. Ao mesmo tempo em que foram sendo adquiridos conhecimentos sobre o
manejo do solo, houve a fixação das populações, outrora nômades, o que deu origem à
agricultura, à pecuária e outras culturas afins. No entanto, aquilo que, inicialmente, era um
bem coletivo, grupal, passou a ter donos, a ser monopolizado por certas castas, a ter preço,
donde o domínio sobre a terra modificou as relações humanas e conferiu imenso poder aos
seus detentores, tornando-se motivo de contendas, abusos e mortes.
Assim, desde os primórdios da sociedade brasileira até a chegada dos portugueses ao
Brasil, a posse das terras, como as áreas de bosques, florestas e pastagens eram comunais,
sendo usufruídas pelas populações que jaziam neste território. Souza (2007) destaca que
segundo a hipótese mais aceita, as populações indígenas teriam chegado ao continente
americano através de correntes migratórias originárias da Ásia. Estima-se que cinco milhões
de índios habitavam o território brasileiro à época de sua ”descoberta”.
Nesse sentido Souza (2007) assevera que:
O histórico de apropriação de grandes extensões de terras por pequenos grupos encontra nascedouro naquilo que oficialmente ficou conhecido como
"descobrimento”, mas que, em verdade, configurou-se em verdadeira invasão
24
portuguesa [...]. Quando os europeus aqui chegaram, a América já tinha donos, há muito tempo, embora estes não soubessem o que fosse isso: ser donos (p.95).
Stédile (2005) destaca que esses habitantes pouco desenvolveram a agricultura.
Domesticaram apenas algumas plantas existentes na natureza, em especial a mandioca, o
amendoim, a banana, o tabaco e as frutas silvestres, cujos povos viviam sobre o regime de
terras comunais. Portanto, os primeiros habitantes do território brasileiro não praticaram a
apropriação individual da terra, nem tampouco conheciam a idéia de propriedade fundiária
privada.
Reforçando essa teoria, Martins (1997) adiciona que antes de 1500, data da vinda dos
portugueses para o Brasil, a propriedade da terra era representada pela forma tribal, aquela
primeira configuração da posse fundiária enfatizada por Marx (2007), onde os inúmeros
povos indígenas que habitavam o Brasil, com a sua diversidade de culturas, detinham a posse
coletiva dos seus meios de subsistência. A propriedade privada fundiária não existia, sendo a
terra do coletivo tribal, quando suas terras foram usurpadas pela colonização européia.
Ou seja, antes dos idos de 1500 a terra era um bem coletivo, trabalhada e cuidada pelas
diversas tribos indígenas, que daí extraíam sua sobrevivência (coleta, caça, pesca), sem
preocupações com a produção de excedentes e desconhecendo vícios que estavam por vir:
cercas, títulos de propriedade, comercialização, mercado, direito sucessório, entre outros.
Nessa mesma linha de pensamento, Souza (2007) afirma:
A terra era concebida como a grande mãe, de onde retirava o sustento. [...]. A terra,
portanto, era do uso comum dos povos. A mudança desse padrão de utilização teve início com o processo de expansão comercial dos países europeus, mais
especificamente com o Tratado de Tordesilhas1, em 1494, entre Portugal e Espanha,
que dividiu as descobertas territoriais no Ocidente entre os dois reinos. Após a
tripulação comandada por Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500, a conseqüência
desse tratado foi a subsunção do território brasileiro à Coroa portuguesa e a seu
ordenamento jurídico. [...]. Em 1504, Portugal instituiu o regime das sesmarias no
Brasil. Com isso, buscava-se povoar e garantir o controle do território pelos
portugueses (p. 22-23).
1 O Tratado de Tordesilhas, assinado em 4 de junho de 1494, estabelecia um meridiano imaginário, situado a
370 léguas do arquipélago de Cabo Verde, na costa da África, a leste do qual todas as descobertas seriam
reconhecidas como legitimamente pertencentes a Portugal e as situadas a oeste como pertencentes à Espanha. A
linha imaginária seguia no Brasil, o meridiano que passa por Belém do Pará, ao Norte, e por Laguna, no Estado
de Santa Catarina ao Sul.
25
A primeira forma de propriedade privada no Brasil surgiu então com a colonização
portuguesa2 por meio da introdução das sesmarias na colônia brasileira. Depois de fracassadas
as primeiras tentativas de colonização, a empresa colonial, comandada por Martim Afonso de
Souza, logrou êxito em garantir o povoamento e introduzir práticas de produção voltadas aos
interesses das metrópoles, em especial o cultivo da cana-de-açúcar (SOUZA, 2007).
A empresa colonial era, portanto, calcada na detenção de grandes áreas de terras, nas
mãos de poucos senhores, na monocultura, no trabalho escravo – inicialmente indígena e
depois negro – e na produção para exportação. É importante reconhecer que a principal
atividade econômica no período colonial não era a agricultura, mas o tráfico negreiro.
As terras que antes eram comunais tornam-se de uso privado. A madeira, por exemplo,
cujo acesso era gratuito nos bosques e florestas, a partir de então, passa a ser comprada. Em
seguida, o mesmo acontece com as pastagens, devido às crescentes indústrias urbanas
necessitarem de matéria prima em grandes quantidades, como a lã. A procura por cereais
também aumenta, visto o crescimento dos mercados urbanos.
Fazendo coro com Guimarães (1995) cumpre ressaltar que essa apropriação inicial de
terras não foi nada pacífica. Ao contrário, ostentou uma face violenta, opressiva e traumática,
avançando sobre as terras e tribos indígenas, acarretando imensos massacres. Para civilizar os
“bárbaros” e domar a terra, lançaram mão de muitas barbaridades – verdadeiro etnocídio
contra indígenas e, posteriormente, contra negros.
Tamanha violência contra pessoas e a natureza é o pecado original do latifúndio, do
qual ele jamais se redimirá. E tudo fora justificado em nome do discurso da
civilização e da evangelização (GUIMARÃES, 1995, p.19).
Várias são as correntes teóricas acerca da natureza das relações de produção da
estrutura fundiária colonial. Guimarães (1997, p. 5) sustenta o caráter feudal dessas relações.
Para ele, o “feudalismo colonial” era marcado pela concentração da terra nas mãos dos
fidalgos de confiança da Coroa, o que lhes rendia um poder extra-econômico, característica
típica do regime feudal.
2 Caio Prado Junior (2000, p. 10) afirma que a colonização portuguesa na América não é um fato isolado. Ao
contrário, é um capítulo da expansão marítima dos países da Europa. Tal expansão “se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daquele país” (p. 10). Deriva do desenvolvimento do
comércio continental europeu, que até o Século XIV é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a
uma mesma navegação costeira e de cabotagem. Em suma e no essencial, Caio Prado Junior acredita que todos
os grandes descobrimentos daquele período, inclusive o do Brasil, articulam-se num conjunto que são senão um
capítulo da história do comércio europeu.
26
Para esse autor:
A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 tinha sua base interna no
monopólio territorial. E como a terra era, então, indiscutivelmente, o principal e
mais importante dos meios de produção, a classe que possuía sobre ela o domínio absoluto estava habilitada a sobrepor às demais classes o seu poderio, por todos os
meios de coação econômica e, notadamente, de coação não-econômica [...]
(GUIMARÃES, 1997, p. 30).
O economista Simonsen (1987) classifica como capitalismo colonial o regime
econômico implantado pelos portugueses, haja vista que o objetivo de lucro e acumulação era
marcante, o que não podia ser identificado no sistema feudal.
Explicita:
Não nos parece razoável que a quase totalidade dos nossos historiadores acentuem,
em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatárias, chegando alguns a
classificá-lo como um retrocesso em relação às conquistas políticas da época.
Portugal, desejando ocupar e colonizar a nova terra e não tendo recursos para fazê-lo
à custa do erário real, outorgou para isso grandes concessões a nobres fidalgos,
alguns deles ricos proprietários, e outros experimentados nas expedições para as
Índias. [...]. Sob o ponto de vista econômico, que não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial, (SIMONSEN, 1987, p. 49).
Prado Junior (1981) numa outra vertente, acredita que o período foi marcado pelo
“capitalismo dependente” (p. 14), pois à época da entrada dos portugueses ao Brasil, o
feudalismo não mais existia em Portugal. E assim justifica:
O país estava sob a égide do nascente sistema capitalista de produção, modelo
transplantado para a colônia, com estreitos vínculos de dependência em relação à
metrópole. [...]. O epicentro dessa estrutura era a grande estrutura monocultural
trabalhada por escravos, voltada à exportação. O monopólio da terra pertencia à
Coroa portuguesa, que concedia a posse de grandes extensões aos fidalgos de
confiança do rei, tidos como homens de qualidade, dando origem a uma estrutura
essencialmente latifundiária (p. 14-18).
Já Faoro (2000) classifica o regime econômico colonial como capitalismo
patrimonialista. Para ele:
Além de se diferenciar do feudalismo pelas relações de trabalho e fins distintos, a
economia colonial com forte presença do capital, o qual se fundava na terra, no
engenho, nos escravos, enfim, no patrimônio responsável pelo domínio político de
seus detentores (p. 20-28).
Frente às diferentes vertentes acerca da natureza das relações de produção oriundas da
estrutura fundiária colonial, Souza (2007) analisa que esse não é um debate meramente
acadêmico, uma vez que estão envolvidas questões políticas relevantes, sendo que a principal
27
delas tem relação com a necessidade de se realizar a reforma agrária para viabilizar a
consolidação do capitalismo brasileiro.
Para Souza (2005) a afirmação sustentada por Simonsen - economista conservador - de
que o Brasil iniciou sua vida econômica sob o signo do capitalismo, pode levar à
compreensão de que uma mudança profunda na estrutura fundiária é algo supérfluo e
desnecessário.
Por outro lado, a classificação, como feudal, do regime implantado pelos portugueses,
sustentada por Guimarães, aponta a necessidade da reforma agrária como desenvolvimento
das forças produtivas no campo, consequentemente, sem reforma agrária não existe
capitalismo brasileiro.
Diante dessas concepções, Souza (2005) alerta que ambas foram elaboradas antes da
chamada revolução conservadora da agricultura, ocorrida durante a ditadura militar, após
1964. Tal modernização teve como função capitalizar o campo, sem fazer a reforma agrária,
contradizendo, em parte, a tese de Guimarães.
E o autor arremata:
A complexidade da estrutura agrária colonial não permite uma classificação rígida.
Isso porque apresenta elementos dos sistemas escravistas, feudal e capitalista, além
de ter sido conformada no momento histórico em que o feudalismo vivia sua
débâcle e o capitalismo ainda não tinha se consolidado, período que ficou conhecido
como mercantilismo (SOUZA, 2005, p. 25).
No entanto, isso não impede que sejam identificados os elementos fundamentais da
estrutura produtiva. A base dessa estrutura era a grande propriedade trabalhada por escravos,
voltada à exportação. Prado Júnior (2000) sustenta que o monopólio da terra pertencia à
Coroa portuguesa, que concedia a posse de vastas extensões aos fidalgos de confiança do rei,
tidos como “homens de qualidade” (p.18), dando origem a uma estrutura essencialmente
latifundiária.
Os latifúndios exploravam a força de trabalho escrava. Segundo Sauer (2005), a renda
do escravo é uma das categorias econômicas mais importantes do contexto colonial, tendo em
vista que demandava grandes investimentos privados, ao passo que a terra era doada
gratuitamente pela Coroa. O escravo valia muito mais que a terra e só podia ser obtido por
compra. A questão fundamental era ter ou não ter escravos. Ou seja, a base econômica
fundamental e decisiva era a propriedade de escravos e não a propriedade de terras.
De acordo com Martins (1995) a renda da terra durante a vigência do regime sesmarial
28
não se configurou numa categoria econômica importante, o fundamental nesse período foi à
renda do escravo, que esteve presente à lógica da acumulação mercantil. “O escravo era parte
integrante da propriedade, ele em si podia ser comprado ou vendido em qualquer tempo ou
lugar” (OLIVEIRA, 1986, p. 16). O padrão importante de acumulação se constituiu sempre na
acumulação escravista, e o escravo era o substrato para obtenção de riqueza, a qual
assegurava a inclusão de riqueza mercantil.
A empresa colonial tinha na monocultura a sua marca registrada, sendo a cana-de-
açúcar o principal produto cultivado. Uma pequena quantidade de famílias detinha o controle
sobre as terras do Brasil colonial. Prosseguindo:
Dominar a terra, açambarcá-la, significa ter o controle absoluto da totalidade dos
meios de produção agrícola. Esse domínio se espraiava pelas outras esferas da vida social e política. Em síntese, o senhorio da terra garantia aos fidalgos, amigos do rei,
a dominação econômica, social e política sobre o território colonial. A forma
jurídica para essa dominação era o instituto da sesmaria (SOUZA, 2007, p. 25-26).
A denominada Lei de Sesmarias editada em Portugal teve como objetivo combater
uma aguçada crise de abastecimento, queda demográfica e conseqüente escassez de mão de
obra que assolava a Europa, em 1934 (Souza, 2007). Movida pelas necessidades conjunturais
de promoção da agricultura, a Lei de Sesmarias apresentou um amplo programa de reforma na
distribuição da propriedade territorial, tendo como fundamento básico a obrigatoriedade de
cultivo como condição de posse da terra e a exploração da gleba ao proprietário que a
deixasse improdutiva. Souza conclui que o Instituto das Sesmarias chega ao Brasil quando já
superado em Portugal.
O fato das sesmarias terem como fonte de legitimidade a obrigatoriedade do cultivo
não impediu que a ocupação do território brasileiro prescindisse da produção. A Lei de
Sesmarias nunca foi executada como devia. Acrescenta o autor:
Na prática, quando não se pode editar uma nova lei, por razões estruturais ou
conjunturais, que concilie os institutos jurídicos com os interesses da classe
dominante, os institutos jurídicos são interpretados e aplicados de modo a agasalhar os interesses da classe dominante (SOUZA, 2007, p. 27).
A legislação somente se aplicava naquilo que interessava aos controladores da
estrutura econômica colonial. A classe dominante, essencialmente agrária, se recusava a
aplicar as normas que regulavam as sesmarias, tornando as concessões cada vez mais raras.
As sesmarias foram transplantadas mecanicamente porque a Coroa portuguesa
buscava colonizar o território, defendendo-o dos conquistadores estrangeiros. A
ocupação territorial, porém, guardava objetivos econômicos, dentre os quais
29
implantar um sistema de produção que abastecesse o mercado luso e permitisse a exportação aos demais países europeus, gerando divisas à Portugal. Como as
extensões de terras eram vastas, as dadas de terras em sesmarias eram igualmente
grandes. Na prática, o monopólio da Coroa transferiu-se às mãos dos „homens de
qualidade‟, nobres ou plebeus enriquecidos, que passavam a deter o controle não
apenas das terras, mas também o poder econômico, social e político. [...]. Dito de
outro modo, a infra-estrutura econômica do Brasil colonial deu ao instituto das
sesmarias uma conformação própria, capaz de legitimar o controle nobiliário sobre
grandes concessões de terras (SOUZA, 2007, p. 27-28).
Para esse mesmo autor, as sesmarias eram concedidas aos nobres da corte portuguesa,
comerciantes, funcionários pertencentes à burguesia e a pequena nobreza. A região do litoral
do Brasil foi dividida em imensas extensões de terras que foram chamadas de Capitanias
Hereditárias, pois eram passíveis de herança, administradas pelos donatários como já
assinalado. Assim, a questão fundiária no país remonta a criação das capitanias hereditárias e
o sistema de sesmarias.
A aplicação distorcida do sistema de sesmarias ao Brasil colonial excluiu os pobres,
indígenas e negros da propriedade sesmarial. Por essa razão, esses não tinham outra opção
senão apoderar-se fisicamente da terra necessária à sua subsistência, o que normalmente
acontecia em local afastado dos núcleos de povoamento.
Para Souza (2005), a propriedade sesmarial brasileira decorre de interesse de classe. A
maneira como a sesmaria foi interpretada e aplicada está ancorada nos objetivos dos senhores
de terra e de escravos que dominavam a estrutura econômica naquele momento histórico.
Nessa perspectiva, Gorender avalia:
A história do regime territorial no Brasil colonial permite aferir como a instituição
portuguesa da sesmaria foi amoldada aos interesses dos senhores de escravos,
mesmo quando sob certos aspectos, se lhes opunha a orientação do governo
metropolitano. Da forma jurídica original se conservou na Colônia apenas o que
convinha ao novo conteúdo econômico-social escravista (apud SOUZA 1988, p. 28).
Como resultado, as sesmarias, que tinham o oceano como marco inicial, podiam
aumentar suas áreas à luz da agregação de novas terras, rumo ao interior. Nascia, assim, o
latifúndio, “a larga extensão de terra, pouco ou escassamente trabalhada” (IANNI, 1981, p.88)
e que passou a dominar o cenário. Algumas fazendas de hoje mantém limites quase idênticos
aos da época das sesmarias, permitindo-se concluir que a estrutura fundiária muito pouco
mudou (OLIVEIRA, 2002, p. 5).
30
A propriedade sesmarial, que perdurou no Brasil cerca de três séculos, deixou como
herança uma estrutura latifundiária e um modelo agrícola3 voltado à grande propriedade
monocultora, cuja produção era direcionada à exportação. As marcas desse sistema agro-
exportador perduram até os dias atuais.
O século XIX trouxe o esgotamento do regime de sesmarias, “extinto pela Resolução
Imperial de 17 de junho de 1822, próximo à proclamação da Independência” (SOUZA, 2007,
p.29). O vazio da abolição das concessões de sesmarias, compreendendo o período de
Resolução de 17 de junho de 1822 e a edição da Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850,
chamada Lei de Terras, foi ocupado pelo costume.
Diante da inexistência de leis regulando o acesso à terra, a posse efetiva passou a
funcionar como modo de aquisição de domínio, conhecido como regime de posse. Souza
(2005) prossegue sua teoria afirmando que o direito tanto de usar quanto de dispor da terra
estava atrelado à sua efetiva utilização, independente da existência de título expedido pelo
Poder Público.
O apossamento com cultura efetiva, “se impregnou do espírito latifundiário, que a
legislação das sesmarias difundira e fomentara. As posses passaram a abranger fazendas
inteiras e léguas a fio” (SOUZA, 2005, p.30). A extinção da propriedade sesmarial ocorreu no
início da expansão da economia cafeeira e do movimento que resultou na Independência. Na
verdade, o que estava em pauta era a regulamentação da propriedade privada, como exigência
do próprio desenvolvimento do Estado.
Sobre essa análise, Prado Jr. (1995) sintetiza que a questão agrária brasileira está
intimamente ligada ao processo histórico de colonização do país, iniciando com o processo de
distribuição de grandes extensões de terra, as sesmarias. As doações das terras se deram em
grandes extensões, uma vez que sobravam terras e as ambições daqueles beneficiados não se
contentariam com pequenas propriedades. Desde o período das capitanias hereditárias,
passando pelos diversos ciclos econômicos (açúcar, mineração, borracha, pecuária e café) até
os dias atuais, a questão da posse da terra esteve presente no cenário político nacional.
Para esse autor, além da política inicial da ocupação do território brasileiro, outro fator
que agravou ainda mais a concentração de terras no país foi a criação da lei n° 601, denominada
3 Observa-se que esse período é marcado também pelo início da empresa colonial agrícola, calcada na detenção
de grandes áreas de terra - em mãos de poucos senhores -, na monocultura, no trabalho escravo inicialmente
indígena e depois negro – e na produção para exportação (SOUZA, 2007).
31
de Lei de Terras de 1850, que configurou a estrutura fundiária do país transformando a terra em
mercadoria e acabando com a única via de acesso a ela , então existente, o regime de posse ou a
lei do usucapião. Nesse sistema o uso produtivo de um pedaço de terra, após certo número de
anos, abria a via para a obtenção do título de propriedade.
A Lei de Terras n° 601, editada e aprovada em uma conjuntura de inevitável derrocada
do regime escravista, prenunciando uma profunda crise de oferta de mão de obra que atingiria
os grandes detentores de terra, organizou a propriedade privada e impediu o acesso à terra aos
que não podiam comprar, forçando os negros e pobres ”livres”- inclusive os imigrantes
europeus - a trabalhar para os grandes proprietários. Posteriormente, o Código Civil de 1917,
veio fortalecer ainda mais a propriedade privada, instituindo o direito de propriedade como
“absoluto, perpétuo, irrenunciável, imperdível, praticamente imprescindível” (MEDEIROS,
2002, p. 14).
Ao analisar a derrocada do regime escravocrata, Souza elenca que a aprovação da Lei
Eusébio de Queiroz (1850), que proibia o tráfico de escravos, acrescida da promulgação da
Lei do Ventre Livre (1871), reconhecendo o direito de liberdade aos filhos de escravos
nascidos a partir daquela data; da Lei do Sexagenário (1885), alforriando todos os escravos
maiores de 65 anos; e a Lei Áurea (1888), que aboliu a escravatura implicaria na
reformulação do sistema produtivo brasileiro, essencialmente ancorado na mão de obra
escrava. Assim,
urgia encontrar uma válvula de escape, um substitutivo ao escravo como categoria
econômica central. A essa crise do trabalho escravo responderia a elite colonial com
o processo de organização da propriedade privada e mercantilizarão da terra. A
expansão cafeeira favorece a valorização da propriedade da terra, oferecendo bases
econômicas para a passagem à mão de obra livre. A extinção do regime sesmarial é
um passo importante nesse processo de organização da propriedade privada da terra,
que se consolida com a Lei de 1850 e com o Código Civil de 1916 (SAUER, 2005,
p. 31)
Sobre a criação da Lei de Terras, com ela “a terra se valoriza e adquire importância
mercantil e o estabelecimento da propriedade privada é reforçado no Brasil e por rebatimento,
no Pará” (MOREIRA, 1997, p. 50).
Por essa razão, o debate em torno da criação da lei que regulamenta a posse e a
propriedade da terra no Brasil ocorreu numa conjuntura de declínio do regime escravocrata,
base do modelo agrário-exportador. A necessidade de regular o uso da terra estava
diretamente ligado às discussões acerca da oferta da mão de obra para trabalhar nas grandes
fazendas.
32
A forma encontrada para assegurar a propriedade privada da terra e, ao mesmo tempo,
garantir a mão de obra necessária para trabalhar nas fazendas de amplas extensões de terras
foi impedir o acesso à terra aos brancos pobres e aos negros alforriados (SOUZA, 2005).
Ainda sobre a Lei de Terras, diferente do ocorrido nas zonas pioneiras americanas,
a Lei de Terras institui no Brasil o cativeiro da terra – aqui as terras não eram e não
são livres, mas cativas. A Lei 601 estabeleceu em termos absolutos que a terra não
seria obtida por outro maio que não fosse à compra (MATINS, 1984, p. 72).
O Brasil libertou os escravos, mas tornou a terra cativa, aprisionada enquanto
propriedade privada:
Na segunda metade do século XIX, para fazer avançar o sistema capitalista no
Brasil, foi criada a propriedade da terra e em seguida os escravos tornaram-se
trabalhadores livres. Quando escravos, os trabalhadores eram vendidos como
mercadorias e como produtores de mercadorias. Como trabalhadores, vendiam sua
força de trabalho ao ex-escravocrata, então fazendeiro-capitalista. Instituiu a
separação entre trabalhadores e os meios de produção. Com a constituição da
propriedade, a terra tornara-se cativa, De modo que os escravos tornaram-se livres e
sem terra (MOÇAMO, 2000, p. 18).
Para Corazza (2003) é possível perceber que o processo de abolição da escravatura
limitou-se aos interesses do capital internacional e seu pleno desenvolvimento negligenciando
seus impactos e implicações sociais, uma vez que:
o processo de abolição da escravatura entre nós, que deu lugar ao trabalho livre, foi
basicamente motivado elo fato de os lucros do trabalho escravo se tornarem
incompatíveis com o preço do escravo. Em segundo lugar está o fato de a escravidão
dificultar a formação de um mercado interno necessário ao desenvolvimento
capitalista da época. Em outros termos, era o capital que necessitava de liberdade. é
nesse contexto que se formou a nossa questão agrária (CORAZZA, 2003, p. 12).
A partir dos séculos XXVIII e XIX, ocorreu um aumento de produtos industrializados
na Europa, sobretudo na Inglaterra. Essa nova realidade demanda um mercado consumidor
desses produtos, neste caso, o trabalhador assalariado. O trabalho escravo tornou-se,
portanto, incompatível com o sistema capitalista, pois este não pode ser consumidor. Assim,
a abolição no Brasil ocorreu para atender à política comercial internacional.
Outro fato de relevância, na época, foi que,
diante da abundância de terras para lavouras tornou-se necessário que o trabalho em
terras alheias se constituísse num imperativo e num destino compulsório para os
trabalhadores. Este trabalho foi viabilizado mediante o regime de propriedade em
que o acesso à terra só é possível mediante a compra do particular ou do Estado. Num período de cem anos, até os anos cinqüenta do século XX, este esquema
predominou. E quem não tinha terras próprias trabalhava para os fazendeiros
33
(CORAZZA, 2003, p. 12-13)
Os trabalhadores “livres” passaram a disputar o mercado de trabalho com os
imigrantes, os quais por serem brancos e estarem mais bem qualificados para as novas
exigências da economia nacional, acabavam sendo privilegiados. As famílias camponesas
expulsas da terra não tinham alternativas senão migrar para as cidades ou se apossar de
pequenas glebas de onde retiravam sua subsistência.
Para Mançano (2003) a ocupação ou apossamento é consequência da Lei de Terras.
Assim como ocorria durante o regime de sesmaria, ocupar era a alternativa de sobrevivência
de grande parte da população expulsa das fazendas e sem perspectivas de trabalho nos
centros urbanos. Entretanto, o autor sublinha que a ocupação era desordenada e
fragmentada, não passando pelas organizações e movimentos sociais, como nos tempos
atuais, embora representassem um importante componente do processo de abertura de novas
frentes agrícolas e de colonização do território brasileiro.
Com o fim da via de acesso à posse da terra através do uso, garantiu-se a
implementação dos direitos dos grandes latifundiários ao domínio das terras estruturadas na
monocultura predominante da época, a cultura cafeeira. Esta predominou de 1850 a 1930,
sempre voltada para o capital externo, que na época representava “60% das exportações do
país e, aproximadamente, 50% da exportação mundial desse produto” (SANTOS, 1995, p.
37).
Esse mesmo autor afirma que dois objetivos nortearam a edição da Lei de Terras:
promover a transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre e assegurar o controle do
Estado imperial para garantir o monopólio da terra nas mãos dos antigos detentores das
sesmarias, além de favorecer a oferta de mão de obra para as grandes propriedades
latifundiárias. A Lei de Terras se constituiu, portanto, num estatuto de substancial importância
para o disciplinamento da propriedade de terra no Brasil. É a partir dessa legislação que se
estruturaram as bases para que o Estado legitimasse a propriedade privada da terra e
objetivasse a separação entre as esferas do poder público e do privado.
A Lei n° 601 dispõe sobre as terras devolutas do Império e previa a compra e venda
com elevados preços, como única forma de aquisição da propriedade agrária no país,
conforme art. 1°: “Ficam proibidas as aquisição de terras devolutas por outro título que não
seja o de compra” (BRASIL, 1850)
34
Assim, “o Brasil independente perdeu uma oportunidade histórica de realizar a
primeira reforma agrária” (SOUZA, 2007, p. 19). Ao abrigar uma opção de classe, representou
a continuidade do modelo inicial, ou seja, fortaleceu a lógica de exclusão da maioria da
população ao direito de propriedade.
Importante notar que a Lei de Terras reflete as contradições da estrutura econômica do
Brasil Imperial na metade do Século XIX. É a expressão mais eloqüente dos interesses da
elite latifundiária que se consolidou durante o regime de sesmarias. Buscou,
fundamentalmente, “conferir um estatuto jurídico à propriedade privada, adequando-a as
novas exigências econômicas” da época (SOUZA, 2007, p. 88).
A consolidação do capitalismo brasileiro passava pela superação do escravismo e a
introdução da mão de obra livre, capaz de contratar, bem como pela organização da
propriedade privada da terra e sua mercantilização. A infra-estrutura econômica,
preponderantemente centrada na exploração do café, exigia mudanças no regime jurídico da
terra e do trabalho. Daí a edição da Lei de Terras. Por isso, “a Lei de Terras organizou, no
plano formal-legal, o caos fundiário brasileiro existente na metade do século XIX” (SOUZA,
2007, p. 32).
Ao reforçar essa assertiva esse autor explicita:
considerada divisor de águas da evolução de nossa estrutura fundiária e da própria história sócio-econômica nacional, a Lei de Terras representaria uma súmula da
história territorial brasileira. Seria a pedra de toque do sistema fundiário, que fornece
os princípios jurídicos sobre os quais toda uma estrutura se edificou de forma
perene. Foi ela que, de uma vez por todas, regulamentou a propriedade privada da
terra, assegurada pelo art. 179 da Constituição de 1824 (SOUZA, 2007, p.33).
Após a regulamentação da Lei de Terras, o Estado passa a assumir a iniciativa de
discriminar e demarcar suas terras „devolutas‟, para ter o controle sobre o território, bem
como extremar o domínio público do particular. A Lei nº. 601 elegeu a compra e venda como
único meio de aquisição das terras devolutas. Segundo Fernandes (2003) o preço mínimo da
terra, que deveria ser suficientemente alto a fim de impedir o acesso imediato das populações
pobres à propriedade fundiária, e a adoção da compra e venda como único meio de adquirir as
terras devolutas, são as duas faces da mesma moeda: proibir o acesso à terra aos negros e
pobres.
O governo imperial contribuiu para a monopolização da propriedade privada
excluindo camponeses e deixando de reconhecer as terras comunais indígenas e de negros
(quilombos, por exemplo). O dinheiro obtido com a venda de terras iria fomentar a vinda de
35
imigrantes europeus (colonos), para as lavouras de café. Assim, “matavam-se dois coelhos
com uma só cajadada. De um lado, restringia-se o acesso às terras. De outro, criavam-se as
bases para a organização de um mercado de trabalho livre para substituir o sistema escravista”
(SILVA, 1982, p. 25).
A propriedade privada é organizada, convertendo as concessões sesmariais em títulos
de domínio e regularizando as grandes posses, de modo a confirmar o latifúndio e manter o
poder econômico nas mãos da mesma elite dominante da estrutura fundiária. Em plena
sintonia com os postulados liberais (NOGUEIRA, 2007).
Foi assim que a Lei de Terras legitimou formalmente o latifúndio. As inovações
trazidas por ela e pelas legislações que a sucederam trouxeram segurança jurídica aos
proprietários, sem qualquer interferência do Poder Público.
Souza (2007), ao estudar a modalidade de propriedade – que surge com a Lei de
Terras – afirma que essa se distingue fundamentalmente da propriedade sesmarial por se
constituir em mercadoria, capaz de ser transacionada livremente, além de configurar reserva
de valor. Por mais que possibilitasse privilégios, a sesmaria não atribuía direito pleno ao seu
detentor, pois era, antes, uma concessão. Em outras palavras, a Lei de Terras aprisionou o
território brasileiro no grande cativeiro da propriedade privada absoluta. A terra foi despojada
de seu valor de uso para ser exaltada como valor de troca, dando origem, ao mercado de
terras. De grande mãe, provedora da subsistência, a terra é transformada em mercadoria, bem
de troca.
Mançano (2003) destaca que a Lei n° 601 esteve em vigência por mais de um século,
como principal diploma jurídico organizador da estrutura fundiária. Conviveu com o apogeu e
a queda da lavoura cafeeira e com o processo de industrialização, iniciado na década de
1930/1940. Foi suplantada apenas pelo Estatuto da Terra, em 1964, no auge de um novo ciclo
de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Seu legado foi uma estrutura fundiária marcada
pela concentração, violência contra os que não possuem terra e pobreza no meio rural.
Andrade (1987) defende a tese de que a concentração de terras resistiu a dois fatos
marcantes no final do século XIX, à abolição da escravatura, em 1888, e à Proclamação da
República, no ano seguinte. Para esse autor, a abolição representou a libertação formal dos
negros, sem que isso significasse a fruição material de direitos, dentre eles o direito de acesso
à terra.
36
Para alguns abolicionistas, como Joaquim Nabuco, João Alfredo e André Rebouça, a abolição deveria ser complementada com uma reforma agrária entendida enquanto
meio de inclusão social da população negra, atrelada ao fornecimento de crédito, à
criação de políticas agrícolas para os libertos e a organização da produção de
alimentos. Todavia, isso não ocorreu e tudo permaneceu como antes (ANDRADE,
1987, p. 72).
Com a República, as terras devolutas foram atribuídas aos entes federados,
impulsionando a transferência do patrimônio do antigo Império não só para municípios,
estados e União, mas também para alguns particulares, oficializando o apossamento ilegal
(grilagem), iniciado em 1850. Foi um dos momentos de pico da formação dos grandes
latifúndios no país a partir do patrimônio público.
Esse quadro de concentração de terras e de capitais ainda foi fortemente agravado no
período do Pós-Guerra com a implantação, na década de 1960, do modelo de modernização
econômica da agricultura que impôs aos trabalhadores rurais a lógica, segundo a qual, a
simples posse da terra não garante a reprodução das unidades produtivas familiares
(MARTINS, 1995).
1.2 A configuração agrária no processo de modernização conservadora
A proclamação da República não trouxe mudanças na estrutura fundiária. Ao
contrário, “o poderio de determinadas oligarquias regionais foi fortalecido, tais como: os
coronéis nordestinos e a República do Café com Leite” (ANDRADE, 1987, p.71).
Os latifundiários mantiveram sua hegemonia até a Revolução de 1930. “A grande
depressão econômica 1929-1933 e a ascensão de Vargas ao poder, assinalaram o fim do
Estado Oligárquico” (IANNI, 1977, p.128). Tais acontecimentos fizeram com que as
burguesias - agrária e comercial - perdessem parte do controle do poder político, que passou
às mãos das classes urbanas, com a revolução de 1930.
Ainda de acordo com Ianni (1977), essa revolução representou uma vitória da cidade
sobre o campo e possibilitou algumas condições políticas que fortaleceriam a futura
hegemonia do setor industrial sobre o setor agrário, principalmente a partir da década de
1950, cujo setor industrial se desenvolveu mais rapidamente que o setor agrário.
37
O colapso que sofreu a economia cafeeira com a grande depressão de 1929 reconduz a
base econômica para o mercado interno, o qual, mantendo um nível considerável de demanda,
“passa a oferecer melhores oportunidades de inversão que o setor exportador” (FURTADO,
2000, p. 209). Inicia-se, então, a fase de industrialização por substituição de importação, com
o Estado tutelando esse processo.
O setor industrial foi adquirindo importância no conjunto do subsistema econômico
brasileiro e se desenvolvendo mais rapidamente que o setor agrário. A partir dos anos 1950,
“as decisões sobre a política econômica governamental foram tomadas em função dos
interesses e das perspectivas abertas à burguesia industrial” (IANNI, 1977, p. 129-131).
Essa dupla dependência caracteriza a situação da sociedade agrária a partir da segunda
metade do Século XX. Para esse autor, um dos principais elos da cadeia de produção,
circulação e apropriação é o trabalhador agrícola, visto que está no centro do sistema de
relações e estrutura que caracteriza dupla dependência:
O trabalhador rural, portanto, se encontra no centro de um sistema de produção
bastante amplo e complexo; é como se fosse o vértice de uma pirâmide invertida.
Como fornecedor de força de trabalho produtiva, segundo as condições do setor
agrário, o excedente que o trabalhador rural produz é apropriado por diferentes setores do sistema econômico global: o proprietário, o arrendatário de terra, o
comerciante de produtos agrícolas na cidade, o comercio consome matéria-prima de
origem agrícola e o aparato governamental (IANNI, 1977, p. 131).
Esse é o contexto histórico estrutural em que se criam as condições sociais,
econômicas, políticas e culturais para o surgimento de movimentos sociais camponeses,
associações de lavradores, sindicatos rurais de trabalhadores e o Estatuto do Trabalhador
Rural (ETR). A conjuntura apontada favoreceu as reivindicações populares por direitos
trabalhistas e por reforma agrária, em especial a partir da segunda metade do século passado.
Um dos episódios mais importantes dessa luta, segundo Souza (2005) foi o congresso
que criou a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), ocorrido em
Belo Horizonte, em 1961, do qual participaram representantes das Ligas Camponesas, de
associações de trabalhadores e de vários movimentos sociais no campo.
Para Martins (1995) dentre os desdobramentos do congresso da ULTAB está a criação
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em 22 de dezembro
de 1963, no Rio de Janeiro. A entidade conferiu caráter nacional à luta por direitos
trabalhistas que vinha sendo realizada pelo Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais
38
(MSTR), formado, à época, por 14 federações e 475 sindicatos de trabalhadores rurais. A
reforma agrária, dentro dos marcos legais, também era uma das bandeiras da Contag.
João Goulart assumiu a Presidência da República frente a uma forte pressão popular
por mudanças no campo. Martins (1997) analisa que a efervescência social em torno da luta
pela terra forçou seu governo a incluir a reforma agrária em seu programa nacional de
reformas de base. João Goulart criou a Superintendência de Política Agrária (SUPRA)
manifestando a necessidade de modernizar a agricultura e modificar a estrutura fundiária.
Sobre as conquistas no governo João Goulart,
em 2 março de 1963, foi aprovada Lei nº. 4.214, que dispôs sobre o Estatuto do
Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo. Um ano depois, em
13 de março de 1964, o presidente João Gulart assinou o Decreto nº. 53.700,
declarando de interesse social para fins de desapropriação as terras localizadas numa
faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias e ferrovias e as terras beneficiadas
ou recuperadas por investimentos da União em obras de irrigação, drenagem ou
açudagem (SOUZA, 2007, p38).
Esse decreto, sem dúvida, representou umas das principais medidas do governo Jango
na área da política agrária, pois permitia a implantação do sindicalismo rural. Daí porque
muitas ligas transformam-se em Sindicatos de Trabalhadores (OLIVEIRA, 2000).
Em Mensagem ao Congresso Nacional datada de 15 de março de 1964, João Goulart
propôs um conjunto de providências consideradas “indispensáveis e inadiáveis para atender às
velhas e justas aspirações da população” (SOUZA, 2007, p. 39). Eram as reformas de base,
sendo a primeira delas a reforma agrária. Quinze dias depois, os militares, sustentados, entre
outros setores, pelos grandes proprietários rurais, deram o golpe de Estado e destituíram o
presidente constitucional, iniciando o período de ditadura militar. Esse “golpe foi planejado
para evitar a chamada revolução agrária” (MARTINS, 1997, p. 33).
O Brasil entrou em um período de ditadura que durou 21 anos, que em princípio ficou
contra a reforma agrária. Durante o golpe militar de 1964 o projeto de reforma agrária de
Goulart foi liquidado e procedeu-se a uma verdadeira caçada às lideranças sindicais que
militavam nas Ligas Camponesas. Esse movimento foi desarticulado, proscrito, sendo seu
principal líder preso e exilado. O Movimento persistiu ainda durante algum tempo, através da
Organização Política Clandestina que possuía uma direção nacional firmada por assalariados
rurais e camponeses, que se infiltraram em sindicatos agrícolas, passando a ajudar presos e
perseguidos políticos (OLIVEIRA (2007). Com a repressão, todo o movimento refluiu e parte
39
de seus participantes teve que fugir e/ou viver na clandestinidade. Os sindicatos dos
trabalhadores sofreram forte repressão.
Entretanto, em função de um quadro de pressão social interna e, sobretudo externa,
coube ao primeiro governo militar, o Marechal Castelo Branco, ainda em 1964, a tarefa de
assinar o Estatuto da Terra (Lei n° 4.504, de 30/11/1964).
O ciclo ditatorial foi contraditório para a questão agrária. De um lado, foi
instituído o Estatuto da Terra - elaborado durante o governo de João Goulart- a
legislação que autorizava a reforma agrária, mas não aplicada. De outro, as
políticas públicas, destinadas ao campo, estimularam os projetos de
colonização, dirigidos por interesses mercadológicos e permitiram a
industrialização e a modernização da agropecuária. No entanto, aumentaram a
concentração de terras, agravando a problemática rural (MARTINS, 1977, p.
34).
Assim, como instrumento fundamental para manter a questão agrária subjugada ao
controle do Estado, bem como amenizar as pressões e mobilizações sociais por reforma
agrária, e implantar os projetos de colonização, o governo militar promulgou a Lei nº. 4.504,
de 30 de novembro de 1964, que dispôs sobre o Estatuto da Terra. Considerado um marco
jurídico na luta pela reforma agrária no Brasil, esse Estatuto trazia um discurso de boas
intenções, contendo alguns dispositivos considerados avançados, definindo o que se entendia
por propriedade da terra, quais suas modalidades (latifúndios por exploração, latifúndios por
dimensão, minifúndios e empresa rural), o módulo rural (mínimo necessário para o sustento
familiar), a função social da propriedade, e as hipóteses de desapropriação de propriedades
pelo interesse social mediante o pagamento de títulos da dívida agrária (MARTINS, 1997)
Os grandes proprietários rurais se opuseram frontalmente à aprovação do Estatuto da
Terra. As entidades de representação dos interesses da classe dominante agrária,
especialmente a Sociedade Nacional da Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira
(SRB), apesar das diferenças, unificaram suas ações na defesa intransigente do:
Sagrado direito de propriedade. O principal ponto de unidade era a oposição a
qualquer modificação na estrutura agrária. Ambas combateram com veemência a
proposta de reforma agrária do presidente João Goulart, assim como repudiaram o
Estatuto da Terra, apresentado por Castelo Branco (SOUZA, 2007, p. 39).
40
O posicionamento da Sociedade Rural Brasileira contra a reforma agrária foi uma
constante, mesmo antes do golpe militar e da proposição do Estatuto da Terra. Esses
produtores paulistas encabeçaram a reação às reformas de base de João Goulart, consoante
demonstram trechos da publicação oficial da entidade que promete “reformas, sem dizer como
vão ser feitas, sem uma crítica prévia e objetiva, sem audiência conscienciosa da opinião
pública [...] constitui realmente uma perigosa ameaça” (SOUZA, 2007, p. 40).
A Sociedade Nacional de Agricultura expressou posicionamento parecido:
O simples acesso à propriedade da terra aos que nela trabalham não é a solução [...]
Não devemos substituir uma estrutura agrária que, apesar de seus defeitos, vem
funcionando, por uma nova estrutura de perspectivas imprevisíveis [...]. O problema
é, portanto, um problema social, que não se limita a uma simples divisão de terras
(SOUZA, 2007, P.41).
Na medida em que organizavam a reação ao Estatuto da Terra, paralelamente, as
entidades ruralistas difundiam seu próprio projeto de reforma agrária, ao longo do regime
militar. Oliveira (2007) sublinha que a proposta da Sociedade Nacional da Agricultura
descartava qualquer desapropriação de terras, fosse a título de reforma ou não, uma vez que
atingia a “pedra fundamental dos interesses da classe por ela representada: a propriedade
privada” (p. 129). Para essas entidades, a reforma agrária era vista como conseqüência da
reformulação agrícola, devendo ser feita apenas nas terras devolutas da União.
Os resultados da medição de forças entre os opositores e os defensores da reforma
agrária consistiram: na aprovação de um texto legal que contemplasse a reforma agrária como
política transitória, cabendo papel permanente apenas à política agrícola, prevista no título
destinado ao desenvolvimento rural; e na extinção do SUPRA e criação do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O Instituto de Desenvolvimento Agrário
(INDA) e o Estatuto da Terra passaram a ser entendidos como uma lei de desenvolvimento
rural e não somente uma institucionalização da Reforma Agrária (OLIVEIRA, 2007). Mas, o
grande vitorioso de todo o processo foi o conceito de “empresa agrícola” (p.130), alvo
prioritário da modernização da agricultura.
O ABRA e o INDA foram extintos em 1970 quando foi criado o INCRA, dada a
intenção de colonização de áreas novas, como a da Rodovia Transamazônica, e não de alterar
a estrutura fundiária do país (FERNANDES, 2006). O período de existência desses órgãos
promotores da contra-reforma agrária dos militares, IBRA E INDA, de 1964 a 1970, esteve
marcado por um processo intenso de corrupção, grilagens e vendas de terras para estrangeiros.
Fato que ganhou projeção nacional e internacional, desembocando, em 1968, na constituição
41
de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias veiculadas pela
imprensa.
Percebe-se que para enfrentamento da questão agrária, criavam-se institutos e nunca
ministérios ou secretarias, que são instrumentos estatais de gestão de políticas. E ainda, como
se pode observar, os órgãos coordenadores da Reforma Agrária IBRA e INDA estavam
envolvidos nos episódios da venda de terras a estrangeiros, e parte da concessão de recursos
internacionais obtidos junto aos organismos financeiros mundiais vinha “amarrada” à
necessidade de o governo brasileiro promover a reforma agrária, uma das razões dos focos de
tensão no campo durante o governo de João Goulart (OLIVEIRA, 2007).
Entretanto, como não era real a intenção de o governo militar fazer a reforma agrária
quando assinou o Estatuto da Terra, parte de sua implementação foi sendo adiada. Uma vez
mais, as elites dirigentes aprovaram uma legislação para evitar que mudanças fossem feitas de
fato. Ainda segundo Oliveira (2007) em 1969, quando uma missão da Organização das
Nações Unidas (ONU) visitou o Brasil, nasceu a sugestão de fusão do IBRA e do INDA em
um único organismo para implementar a reforma agrária. Assim foi que nasceu o Instituto
Nacional de Colonização4 e Reforma Agrária (INCRA), através do “Decreto-Lei número
1.110, de 09/07/70” (Fernandes, 2006).
Enquanto muitos aguardavam que o Estado, através de sua estrutura burocrática, fosse
implementar, de fato, a política agrária, o próprio Ministro do Planejamento do então governo
militar, Roberto Campos, garantia aos congressistas latifundiários que a lei era para ser
aprovada, mas não para ser colocada em prática.
Tudo não passou de uma farsa histórica, pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária – instrumento definidor da
política de implementação da reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p.122).
Uma das políticas de desenvolvimento rural prevista no Estatuto, e muito estimulada
pelos militares, foi então a colonização. Na verdade, para diminuir a pressão social por terra,
feita por trabalhadores das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, o governo estimulou projetos de
colonização, oficiais e particulares, que consistiam no povoamento e exploração de locais
pouco habitados, nas regiões Norte e Centro-Oeste, tidos como novas fronteiras agrícolas.
4Segundo Canuto (2004) o termo “colonização” no nome do instituto criado significa que esse tinha objetivos de
colonizar áreas novas, como a região da Rodovia Transamazônica, e não de transformar a estrutura do País
.
42
Os projetos de colonização foram formulados para levar desbravadores para onde
havia disponibilidade de terras. O Estado mostrava os trabalhadores uma imensidão de terras
a serem ocupadas (o que os desmobilizavam politicamente), mas, em verdade, o principal
mote foi a transferência de mão de obra para a extração da madeira, para os garimpos e para
as grandes empresas multinacionais que iriam explorar a Amazônia (FERNANDES, 1996). A
propaganda governamental prometia terras abundantes e melhores condições de vida às
famílias que se interessassem pelos projetos de colonização, mas, na prática, foram assentadas
e abandonadas pelas políticas públicas.
Nesse contexto;
Para tornar visível a uma política, o Estado manteve a questão agrária sobre o poder
central, de forma que o Estatuto da Terra não permitisse o acesso a terra para os
camponeses, à propriedade familiar, e sim aos que tinham o interesse de criar a
propriedade capitalista. Nesta condição o Estatuto revelou-se um instrumento
estratégico para controlar as lutas sociais, desarticulando os conflitos por terra.
Assim, as desapropriações somente eram realizadas como tentativa de diminuir os
conflitos e, durante o período de 1965 até 1981, foram realizados, em média, oito
decretos de desapropriação por ano contra pelo menos setenta conflitos por terra ao
ano. O Estatuto da Terra também previa as ocupações pioneiras para solucionar os problemas sociais de outras regiões (FERNANDES, 1996, p. 36).
Observa-se que o Estatuto da Terra, foi um instrumento da política agrária do regime
militar. Um dos problemas dessa política agrária estruturava-se na transformação do problema
da terra em um problema militar. Foi a conhecida época do “integrar para não entregar”
(FERNANDES, 1996, p.34) que na verdade traduz-se em uma tentativa evidente de fortalecer
a exploração territorial da Amazônia comandada por empresas estrangeiras.
Em conformidade com esse objetivo, “as terras sem homens deveriam ser ocupadas
pelos homens sem terra,” (FERNANDES, 1996, p. 35), considerando a necessidade de resolver
os conflitos sociais sem alterar a estrutura fundiária do país. A forma encontrada foi o
deslocamento dos trabalhadores para os projetos de colonização, criando mão de obra barata e
permanente para os projetos de exploração mineral e extrativista.
O projeto de reforma agrária do regime ditatorial era então revestido de um projeto de
colonização, cujo lema era “Colonizar para não Reformar”.
Como o objetivo era colonizar para não reformar, o problema da terra jamais seria
resolvido com os projetos de colonização na Amazônia, pois o que estava por trás desse projeto era uma estratégia geopolítica de exploração total dos recursos naturais
pelos grandes grupos nacionais/internacionais. Assim, o envolvimento das forças
armadas do Estado autoritário garantiu aos grandes grupos a exploração da
Amazônia (FERNANDES, 1996, p. 34).
43
Para a execução desse projeto de colonização, de acordo com a teoria de Fernandes
(1996), o governo militar, além de criar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) e fortalecer a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE) transformou a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA)
na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Em 1969, o governo criou
o Grupo Interministerial de Trabalho sobre Reforma Agrária (GERA), que visava analisar os
problemas que impediam o desenvolvimento de medidas de reformulação fundiária. Em 1971
os militares criaram o Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do
Norte e Nordeste (PROTERRA). Todos esses organismos/projetos estavam articulados com o
Programa de Integração Nacional (PIN).
Ainda no tocante as ações do governo para implementação de sua política de
desenvolvimento agropecuário, em 1980 foram criados o Grupo Executivo das Terras do
Araguaia- Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas
(GEBAM), sendo instrumentos para a manutenção de aliança entre o governo
militar/empresários.
A área de atuação do GETAT correspondia à metade da área do Programa Grande
Carajás, com grandes investimentos de extração mineral, numa região denominada “Bico do
Papagaio”, porção de terras escravada no sul e sudeste do Pará, oeste do Maranhão e norte de
Goiás, onde hoje se situa o estado do Tocantins. O seu principal objetivo era suavizar os
conflitos agrários na região por meio da ordenação da ocupação, sob a égide da doutrina da
segurança nacional (MIRANDA, 2001).
Assim, o PIN, o INCRA, o GETAT, o GEBAM e o PROTERRA formavam um
esquema articulado nos bastidores do governo militar. Ou seja, criava o governo do General
Médici um programa que simplesmente contrariava a legislação do Estatuto da Terra.
Segundo Oliveira (2006) a política de incentivos fiscais da SUDENE e da SUDAM, foi o
instrumento que viabilizou a fusão dos capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do Centro-
Sul do país, em proprietários de terra, em latifundiários. Dessa forma, os capitalistas urbanos
tornaram-se os maiores proprietários de terra no Brasil.
O exemplo mais clássico é o famoso Projeto Jarí. Implantado pelo multimilionário
Daniel K. Ludwig foi nacionalizado no final do governo Gal. Figueiredo, quando
passou para um grupo de 25 empresas lideradas pelo grupo Azevedo Antunes. A
área ocupada, depois da atuação do Grupo Executivo do Baixo Amazonas, órgão
ligado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional, tinha uma superfície
superior a 4 milhões de hectares. É em decorrência desse processo que se tornou
possível a revelação de dois aspectos contraditórios destes capitalistas modernos: a
44
mesma indústria automobilística que pratica as mais avançadas relações de trabalho do capitalismo no Centro-Sul, NA Amazônia, ao contrário, praticava em suas
propriedades agropecuárias, a peonagem, relação de trabalho também chamada de
escravidão branca. Isso quer dizer que a mesma empresa atuava de forma
diferenciada em regiões distintas desse país (OLIVEIRA, 2006, p. 132).
Ao invés da burguesia atuar no sentido de remover o entrave que a propriedade
privada da terra traz ao desenvolvimento do capitalismo, atua no sentido de solidificar ainda
mais, a propriedade privada da terra. A concentração da propriedade privada da terra é,
portanto, parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. “Um capitalismo que
revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso e outra atrasada no reverso”
(OLIVEIRA, 2007, p. 132).
É a partir das mudanças na política fundiária que se iniciou a instauração dos projetos agropecuários por grandes empresas na Amazônia. No Centro-Sul e
Nordeste, desenvolve-se uma rápida industrialização da agricultura. Acentua a
concentração de terras, a expropriação e a exploração. Diante dessa realidade, os
conflitos por terra se multiplicaram (FERNANDES, 2007, p. 37).
Sauer (2002) afirma que essas mudanças reforçaram a lógica concentradora da
propriedade fundiária, ancorada no modelo agropecuário adotado a partir dos anos 1960,
forçando “o deslocamento de milhões de pessoas através do êxodo rural ou em direção às
novas áreas de colonização” (p. 92). No entanto, apesar se criar as condições jurídicas à
realização da reforma agrária, a aplicabilidade do Estatuto da Terra foi insatisfatória, sendo
que a permanente pressão das entidades e organizações ruralistas resultou no esvaziamento
dos dispositivos destinados à democratização da propriedade rural.
Constata-se que, ao mesmo tempo, o Estado adotou medidas que fortaleceram um
modelo agrícola com tecnologia de ponta, o qual impulsionou a concentração fundiária, entre
elas, os créditos e incentivos fiscais voltados para a modernização e tecnificação de grandes
proprietários rurais. Por todos esses efeitos perversos, esse período foi denominado de
“modernização conservadora”. Assim,
a separação entre reforma agrária e a modernização da agricultura, binômio tão caro
aos articuladores do Estatuto da Terra e que, uma vez derrotado, viria legitimar a
capitalização da agricultura brasileira, sem maiores alterações na estrutura fundiária
do país. Foi durante a vigência do Estatuto da Terra que ocorreu o encontro do
mundo rural com a tecnologia e a química. As tecnologias tradicionais foram
substituídas por novas matrizes tecnológicas, que incorporaram a mecanização e a
utilização abusiva de insumos químicos. Era o campo se industrializando. Esse
processo foi aplicado em toda a América Latina e recebeu o nome de “Revolução
Verde” (MOÇAMO, 2005, p. 141).
Dessa forma, surgem novos interesses e novos atores no campo. Concretizava-se o
45
processo de modernização da atividade agrícola através de sua integração com a indústria, sob
o apogeu da chamada “Revolução Verde.” Contudo, esse processo fez com que a população
rural diminuísse uma vez que os investimentos fundiários eram fortalecidos, transformando os
capitalistas industriais e urbanos em proprietários de terra, em latifundiário. José Graziano da
Silva (1980) prefere a expressão “modernização dolorosa”, por revelar, de um lado, a
industrialização do campo; e de outro, os problemas dela decorrentes, como o êxodo rural, o
inchaço das grandes cidades, a transferência de milhões de pessoas para as áreas de fronteira
agrícola, o aumento da concentração fundiária e da pobreza rural. O Estado entendia o
processo de colonização e de expansão das fronteiras agrícolas como a forma de integrar “os
homens sem terra com as terras sem homens” (IANNI, 1989, P. 48).
Santos (2007) acrescenta que a Revolução Verde não era para todos os camponeses,
mas apenas para uma elite agrária que a ela podia ter acesso, o que concentra a renda e
consequentemente a terra. A agricultura passa a operar com novos matizes, torna-se submissa
ao mercado quando sua produção é direcionada por ele. Isso pode até resultar num aparente
desenvolvimento rural, mas que, na realidade, é uma falácia, visto que este
“desenvolvimento” leva à falência, e até à miséria, àqueles produtores que não podem se
adequar aos novos tempos, conforme alerta Oliveira (2007):
Nos países em que, concomitantemente à „Revolução Verde‟, foi implantada a
reforma da estrutura agrária, com redivisão e redistribuição das terras, ou se fez alguma alteração estrutural na forma de propriedade, posse e uso da terra, os
resultados foram significativamente positivos, com benefícios sensíveis para a
maioria da população. Porém, nos países, como o Brasil, em que a „Revolução
Verde não foi acompanhada de uma reforma agrária, mas apenas um sucedâneo
desta, resultaram graves conseqüências, tanto de ordem econômica como
principalmente sociais (...) uma minoria apenas dos agricultores, aqueles que se
estruturaram de forma empresarial - a nova burguesia rural - foram mais ou menos
favorecidos, enquanto os mais fracos - os pequenos proprietários rurais - foram e
vão sendo progressivamente marginalizados do processo (p. 32-33).
Prova disso é o êxodo rural. Do interior das regiões mais afetadas pela modernização,
saíram as maiores levas de camponeses rumo às metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo,
o que não aconteceria se este desenvolvimento do meio rural tivesse um caráter mais
equânime (OLIVEIRA,1997)
De acordo esse autor, o campo passa a abrigar uma dualidade causada pelo processo
de modernização. De um lado tem-se um campo rico e de outro um campo em vias de
miséria. Situação propiciada pelas enormes e cada vez mais profundas desigualdades
46
existentes entre a grande e a pequena exploração agrária, e entre a agricultura de
abastecimento interno e a agricultura de exportação.
Um dos resultados da aludida dualidade tem repercussão direta na vida dos
camponeses, refere-se de trabalho. A manutenção de uma classe detentora dos meios
de produção pressupõe o não-acesso de uma outra a esses meios. Neste ínterim,
surgem os trabalhadores temporários, muitas das vezes ex-pequenos produtores, que
no contexto da agricultura capitalizada perderam suas terras e tornaram-se “bóias
frias” ou outro tipo de trabalhador temporário (Santos, 2003, p. 32).
Santos (2003) chama este trabalhador de desterritorializado pela agroindústria. O
camponês, num primeiro momento, até busca subsídios para tentar manter-se na terra e
competir com a indústria monopolista, mas logo é vencido pelos juros altíssimos dos
subsídios e os baixos preços oferecidos pelo mercado aos seus produtos, o que lhe obriga a
vender a terra. Cria-se, portanto, a situação perfeita para o surgimento dos chamados
Complexos Agroindustrial.
Com relação a esses complexos agroindusriais, Santos (2003) declara que o Estado ao
viabilizá-los e favorecer o empresariado rural, o faz em detrimento dos camponeses produtores
familiares, assim, privilegia a agricultura de exportação enquanto relega a produção para o
mercado interno, a denominada agricultura de subsistência, a um plano inferior. Considerando os
pequenos agricultores (proprietários ou não) como incapazes de acompanhar o progresso técnico,
econômico e social. E o autor denuncia:
É destaque o papel do aparelho governamental, que apropriado pela classe detentora
dos meios de produção, travestida dos poderes do Estado, criam condições
particulares para a aquisição de benefícios. Nesse sentido, a modernização da
agricultura, expressa pela consolidação dos Complexos Agroindustriais, aponta para
uma centralização ainda maior da produção e para a manutenção de seu caráter
excludente (SANTOS, 2003, p. 49).
Com terra e renda concentradas, de produtores residentes, os camponeses expulsos da
terra tornam-se assalariados, empregados sazonais - visto às inovações dispensarem mão de
obra durante todo o ano, e tantas vezes, miseráveis das cidades brasileiras.
A modernização conservadora da agricultura é um desdobramento do processo de
modernização da sociedade brasileira, iniciada a partir de 1930, com Getúlio Vargas. O
governo militar dirigiu o processo de modernização consoante anseios da burguesia industrial
e da classe dominante agrária, com vistas à expansão do capitalismo, utilizando como
47
instrumento o crédito subsidiado para capitalizar os grandes proprietários (SILVA, 1980).
Assim, a modernização conservadora consolidou o capitalismo no campo brasileiro.
Para Souza (2005) a expressão “modernização conservadora” também é utilizada para
caracterizar o modelo agropecuário adotado pelo governo militar. A recusa a mudanças
fundamentais na propriedade da terra e o incentivo a uma maior concentração fundiária são
dois dos principais elementos que evidenciam o caráter conservador dessa modernização.
Ademais, foram promovidas alterações na base produtiva sem democratizar a estrutura
fundiária. Os grandes proprietários permaneceram no controle da terra e da força de trabalho
rural.
Observa-se que o processo de modernização conservadora da agricultura brasileira foi
levado a efeito tendo como suportes: a criação do sistema nacional de crédito rural; o estímulo
às exportações de produtos agrícolas de grãos, em particular a soja; o incentivo ao cultivo de
algumas culturas através de estabelecimento de políticas creditícias e fiscais específicas, como
foi o caso do Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL); a constituição dos complexos
agro-industriais; e o fomento às indústrias de equipamento e de matéria prima agrícolas.
(DELGADO, 1997).
O modelo de modernização privilegiou as empresas capitalistas em detrimento da
agricultura camponesa além da introdução de máquinas e insumos químicos que ocasionou
uma desarticulação da lógica tradicional camponesa baseada na mão de obra familiar como
unidade de produção e da produção direta de parte dos meios necessários à subsistência, seja
produzindo alimentos para o autoconsumo, seja produzindo alimentos ou outras mercadorias
para a venda (SILVA, 1980).
Assim, a agricultura capitalista se desenvolveu enquanto os camponeses, em sua maior
parte, foram expropriados e/ou expulsos da terra. Nesse processo as empresas capitalistas se
apropriaram de terras públicas, com incentivo do governo federal, e das terras dos
camponeses aumentando a concentração da propriedade da terra, de modo que, o Brasil
atualmente é o segundo país do mundo com maior concentração fundiária, perdendo apenas
para o Paraguai, onde alguns fazendeiros são brasileiros (SILVA, 1997).
Além da expansão da agricultura capitalista, as transformações ocorridas na base
técnica de produção levaram às mudanças significativas nas relações sociais de produção, em
particular, com o avanço do assalariamento no campo. Sobre este processo de
desenvolvimento do capitalismo no campo da Silva (1989) diz que:
48
O desenvolvimento do capitalismo no campo, na medida em que incorporou
máquinas, defensivos, fertilizantes e outros insumos modernos, modificou
profundamente a base técnica da produção de algumas regiões do Brasil. O resultado
foi uma alteração nas relações de trabalho existentes no campo (SILVA, 1989, p.47).
Como resultado e traço marcante desse período, José Graziano da Silva (2002) aponta
três tendências: integração entre capitais (financeiro, industrial e agrário); redução do papel da
pequena produção no processo de desenvolvimento capitalista; redução das oportunidades do
trabalho assalariado, ampliando-se o número de trabalhadores volantes, bóias-frias ou
clandestinos.
Todo esse processo histórico e de políticas de ocupação do território brasileiro teve
como seqüela a atual estrutura fundiária baseada na alta concentração de terras nas mãos de
uma minoria oligarquia rural que, em detrimento da expropriação da agricultura camponesa,
vem a se expandir em todo território nacional, atualmente, na forma do agronegócio,
agravando ainda mais os números da estrutura fundiária brasileira e, conseqüentemente,
aprofundando as condições de sobrevivência dos camponeses na marginalidade social e
econômica.
O governo militar dirigiu o processo de modernização de modo a contemplar os
interesses da burguesia industrial, sem descuidar das reivindicações da classe
dominante agrária. A mecanização do campo estimulou o mercado de máquinas e
implementos agrícolas, o fomento do uso de adubo e mão de obra barata para o setor
industrial. Beneficiaram-se os latifundiários que se “modernizaram”, e os industriais
que passaram a vender seus produtos para o campo e receber força de trabalho a
baixo custo (SOUZA, 2007, p. 43).
Souza (2005) sublinha que o modelo agropecuário, engendrado no bojo da “Revolução
Verde”, foi desenhado por teóricos conservadores visando à expansão do capitalismo no
campo. O Poder Público criou diversos órgãos, implantou muitos programas e mecanismos de
desenvolvimento agropecuário e concedeu fartos subsídios e incentivos fiscais voltados à
agricultura, que permitiram uma mudança significativa na base produtiva agrícola, expressa
especialmente na adoção de mecanização intensiva e uso de fertilizantes químicos, sementes
selecionadas etc. As políticas públicas modernizaram o latifúndio, porém, favoreceram a
concentração ainda maior da estrutura fundiária. Daí o caráter conservador do modelo.
O principal instrumento governamental para implantar a modernização foi o crédito
subsidiado, que “capitalizou os grandes proprietários, possibilitando a industrialização do
campo. O autor afirma que as renúncias fiscais foram uma das principais formas de subsídios.
Visavam estimular o mercado de terras, por meio da compra de grandes extensões na
49
Amazônia Legal por empresários urbanos, aprofundando a concentração da propriedade da
terra. Os “compradores” obtinham ainda crédito, a juros módicos, para fazer “investimentos
produtivos” (SAUER, 2005, p. 59) como, por exemplo, o desmatamento para o plantio de
pastagem e criação de gado. Os pesados subsídios e incentivos fiscais concedidos pelo
Estado às grandes empresas abriram o campo ao investimento capitalista, protegeram e
reafirmaram a renda da terra e a especulação imobiliária, incluíram a grande propriedade
fundiária num projeto de desenvolvimento capitalista que tenta organizar, contraditoriamente,
uma sociedade moderna sobre uma economia rentista e exportadora.
Esse modelo agropecuário não resultou na superação da pobreza da população rural e
urbana. “Ao contrário, o quadro de exclusão social se agravou, dando origem a milhões de
famílias sem terras, que hoje incrementam os movimentos sociais em luta pela reforma
agrária” (MARTINS, 1989, p. 49). E ainda,
a racionalidade econômica dessa modernização levou a um processo de concentração das riquezas e a um “desenvolvimento” compreendido apenas pela sua
dimensão econômica [...]. Os incentivos possibilitaram a modernização da produção
agropecuária (mecanização, aumento da produção e produtividade, competitividade
no mercado exportador), mas mantiveram e ampliaram a má-distribuição da
propriedade da terra e, conseqüentemente, aprofundaram um modelo excludente e
concentrador no país. O êxodo é a parte mais visível desse processo (SAUER, 2002,
p. 29).
Ao analisar essas transformações na economia brasileira, Fernandes (2000) sustenta a
tese de que o Brasil conheceu uma intensa transformação em sua agricultura no período de
1965 a 1985. Nessas décadas da ditadura, os governos militares implantaram uma política de
desenvolvimento agropecuário para a modernização do campo. Esse modelo causou
transformações profundas, privilegiando a agricultura capitalista, mas não transformou a
estrutura fundiária, não democratizou o acesso a terra.
Essas transformações geraram, de um lado, a modernização tecnológica financiada
pelo Sistema Nacional de Crédito Rural, de modo que a agricultura passou a
depender menos de recursos naturais e cada vez mais da indústria produtora de
insumos, consolidando o processo de industrialização da agricultura e promovendo o
crescimento das relações de trabalho assalariado. Por outro lado, o campo foi
transformado em espaços de conflitos intensivos, pelo crescimento da desigualdade
sócio-econômica. Esse modelo de modernização conservou a secular concentração
da estrutura fundiária, intensificando a histórica luta pela terra, e criou a crise
política que persiste até os dias de hoje. O legado da modernização conservadora
não poderia ser pior: aumento da concentração e da pobreza, êxodo rural, precarização das relações sociais no campo, falta de alternativas de reinclusão das
famílias expulsas da terra (FERNANDES, 2000, p.44).
50
Todos esses fatos estimularam a organização dos trabalhadores em movimentos
sociais, sindicatos e demais entidades representativas de seus interesses, impulsionando a luta
pela terra de forma articulada. Para Santos (2007), é a partir deste momento que as relações
capitalistas de produção vão se territorializando no campo, resultando em maior concentração
fundiária e de renda, e, assim, abrindo precedentes para a resistência camponesa e o
surgimento de movimentos de luta pela terra.
O governo ditatorial – que não admitia qualquer tipo de mobilização no campo e na
cidade – reprimiu duramente os movimentos campesinos existentes antes de 1964; o governo
militarizou a questão agrária, na tentativa de administrar o enorme conflito social que cobria o
país. “Através da militarização, o governo tenta controlar e domesticar o demônio político que
libertou com a sua política agrária e econômica” (MARTINS, 1984, p. 15).
A discussão sobre reforma agrária tornou-se então essencialmente técnica, visando
retirar-lhe o matiz “político” e se tornou sinônimo de projeto de colonização (preencher os
espaços vazios) e imperativo da segurança nacional (cuidar das fronteiras). Estava instaurada
a militarização da questão agrária, sob controle do Conselho de Segurança Nacional.
Esse processo de militarização da questão da terra no Brasil, e em particular na
Amazônia, culminou, em 1982, com a criação do Ministério Extraordinário para Assuntos
Fundiários, entregue ao General Venturini que, acumulando função de secretário do Conselho
de Segurança Nacional, passou a coordenar as atividades do INCRA, além de coordenar a
execução do Programa Nacional de Regularização Fundiária. Ou seja, estava criado o
“Quartel da Terra, lugar por excelência da contra-reforma agrária” (MARTINS, 1987, p. 126).
Malgrado a propaganda exacerbada e os expressivos aportes de recursos governamentais, os projetos de colonização não resolveram o problema. Milhões de
famílias se deslocaram especialmente das regiões nordestinas e sulistas, em direção
ao Centro-Oeste e Norte. Em meados dos anos 1970, o governo passou a incentivar
os projetos privados de colonização. A falta de assistência técnica, alimentos,
financiamentos, assistência médica etc., associada ao ambiente inóspito das frentes
de colonização, levaram ao fracasso desses empreendimentos, fazendo surgir novos
focos de conflitos e disputas por terra, aumentando a violência no campo
(FERNANDES, 2000, p. 46).
No final da década de 1970, os trabalhadores rurais sem terras, organizados em nível
local, recuperando a tradição camponesa de ocupação como método de luta, iniciaram um
novo ciclo de mobilizações em prol da reforma agrária. A criação da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) pela ala progressista da Igreja Católica, em 1975, desempenhou papel decisivo
nesse processo.
51
A CPT, entidade que congrega representantes de igrejas cristãs, surgiu na Amazônia
Legal e Centro-Oeste, visando coibir a violência no campo e a falta de acesso à terra aos
posseiros. Atualmente, está espalhada pelo país e desempenha relevante papel na denúncia da
violência perpetrada pelo latifúndio, fazendo minucioso relato das mortes, do arbítrio, da
lentidão judicial, que é publicado anualmente. Também sofre violência, nas pessoas de seus
membros e militantes. Presta assessoria (pastoral, teológica, metodológica, jurídica, política e
social e fornece estrutura, procurando impulsionar a luta dos movimentos do campo
(MARTINS, 1997).
A fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984, foi
outro componente importante na luta por modificação da estrutura agrária, nos anos 1980.
Movimento que transformou o campesinato em um dos sujeitos sociais mais relevantes do país.
O envolvimento direto da CPT nos conflitos agrários e a necessidade da realização da reforma agrária por parte do Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais
(MSTR- sistema Contag) e o surgimento do MST deu novas perspectivas à questão
fundiária, a partir da segunda metade dos anos 1980. A organização das ocupações,
como uma forma diferenciada de luta pela terra, não apenas deslocou a resistência
histórica protagonizada pelos posseiros, mas deu novas perspectivas (e novos
desafios) ao protagonismo social e político do povo do campo, recolocando a
premência da realização de uma reforma agrária no Brasil (SAUER, 2002, p. 130).
A contundência das ações de reivindicação do MST, somadas à luta do Movimento
Sindical de Trabalhadores Rurais e de muitas outras entidades e movimentos sociais,
conseguiram recolocar o tema da reforma agrária na agenda do processo de redemocratização
do Brasil, com especial destaque na Constituinte de 1988, embora, na história brasileira, a
questão fundiária esteja diretamente vinculada à organização política do país e nos pactos do
poder. A luta pela terra se intensificou e a ocupação de terras passou a ser o instrumento de
pressão social mais utilizado pelos movimentos sociais do campo (MARTINS, 1977).
Nesses aportes, avigorando a assertiva apontada no início do trabalho, podemos
caracterizar três momentos históricos em que o papel da terra foi decisivo na conformação da
sociedade brasileira: em 1850, quando foi regularizado, pela Lei de Terras, o acesso privado
às terras, impedindo que parte da população trabalhadora rural também tivesse esse direito. O
segundo momento ocorreu nas décadas de 1920 e 1930, quando o movimento tenentista
questionou o latifúndio improdutivo e iniciou os primeiros debates sobre a necessidade de
reformar a estrutura agrária do país. Já a terceira fase iniciou-se nos anos do Pós-Guerra, quando
apareceram as Ligas Camponesas
e, mais recentemente, quando surgiu o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
52
1. 3 A configuração agrária na atualidade
Em 1985 a “Nova Republica” assumiu o governo para realizar a “Transição
Democrática” da ditadura. Assim, fez novas alianças no seio do poder do Estado com a
anuência militar. Mas, aparentemente de forma contraditória, colocou como um de seus
projetos prioritários a Reforma Agrária, prometida por Tancredo Neves, anunciada durante o
IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em Brasília pela CONTAG.
Foram, feitas as articulações para a elaboração do I Plano Nacional de Reforma Agrária,
aprovado em 1985 (OLIVEIRA, 2007).
A Nova República, aportada no “pacto social” lançado por Tancredo Neves, foi então
inaugurada com a promessa de realização da reforma agrária. Segundo Oliveira (2007), em 10
de outubro de 1985, o presidente José Sarney assinou o Decreto nº. 91.9766, que aprovava o I
Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), tendo como meta o assentamento de um
milhão e quatrocentos mil famílias. Criou também o Ministério da Reforma e do
Desenvolvimento Agrário (MIRAD) que juntamente com o INCRA, seriam os órgãos
executores do I PNRA.
No mesmo ano, os grandes proprietários de terra fundaram a União Democrática
Ruralista (UDR), com a finalidade de organizar mobilizações contra a implementação do
PNRA. A exemplo do que ocorreu com o Estatuto da Terra, uma nova frente anti-reformista
foi constituída, chamada de Frente Ampla da Agricultura (FAA). Sob a liderança da UDR, a
pressão exercida pela FAA teve o condão de esvaziar o Plano de Reforma Agrária, elaborado
pelo INCRA, e interditar o avanço da política agrária na Assembléia Nacional Constituinte,
instalada em 1987 (MARTINS, 1997).
Para superar as mazelas estruturais do campo, a Constituição Federal de 1988
apresentou alguns avanços no que tange à disciplina da estrutura fundiária. O texto conferiu
regime jurídico especial ao imóvel rural, sendo que a função social passou a integrar o
conteúdo do direito de propriedade. Ainda que a Constituição destine um capítulo específico à
reforma agrária conferindo à propriedade rural uma função social, a pressão dos ruralistas
obteve êxito em forjar um texto contraditório, que resulta em intransponível obstáculo à
desconcentração fundiária (SOUZA, 2007).
53
Assim, os ruralistas conseguiram incluir na Constituição o caráter insuscetível de
desapropriação da propriedade produtiva e transferiram para a legislação complementar a
fixação das normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social da terra.
Com a vitória da política fundiária dos latifundiários, o governo Sarney “sepultou o IPNRA,
que já nasceu esquartejado.
Primeiro com a Medida Provisória n° 29, de 15/01/1989, extinguiu o cargo de
ministro de Estado da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário, e transferiu as atribuições do MIRAD para o Ministério da Agricultura. E, em segundo lugar,
dois meses depois, pela Lei n/ 7.739, de 20/03/1989, extinguiu também o MIRAD e
recriou o INCRA, vinculado ao Ministério da Agricultura. A Reforma Agrária da
Nova República terminava institucionalmente da mesma forma como os governos
militares a tinham tratado, no âmbito do Ministério da Agricultura (OLIVEIRA,
2007, p.129).
Acrescenta Oliveira (2007):
O I PNRA já trazia retrocessos em relação ao Estatuto da Terra, como por exemplo,
o artigo (artigo 2°,§ 2°, do decreto n° 91.766) onde está expresso que se evitará,
sempre que possível, a desapropriação de latifúndios. Outro ponto foram os imóveis
que tivessem grande presença de arrendatários e/ou parceiros, onde as disposições
legais fossem respeitadas. Dessa forma, o I PNRA já apareceu trazendo distorções
em relação ao Estatuto da Terra (p. 145).
Segundo Silva (1987), houve recuos legais e intencionais, que colocaram o PNRA em
um patamar jurídico-operacional inferior ao existente em novembro de 1964, quando da
criação do Estatuto da Terra. Mesmo existindo terras agricultáveis, recursos financeiros e
humanos disponíveis, além dos instrumentos jurídicos aptos a permitir desapropriações
(Estatuto), faltou a sempre ausente “vontade política” (p.29).
Ao governo Sarney, coube a Jader Barbalho, então ex-governador do Pará (1983/86)
eleito pelo PMDB, substituir Marcos Freire no MIRAD. Durante sua presença no governo do
Pará nada mais, nada menos, do que 211 trabalhadores assassinados no campo naquele estado
(30 em 1983, 29 em 1984, 59 em 1985 e 93 em 1986).
Sarney investiu na propaganda governamental para alimentar a “farsa” de fazer a
Reforma. Na região Norte apenas 18% das terras previstas foram desapropriadas; no
Nordeste, 6%; no Sudeste, 4%; no Sul, 10%, e no Centro-Oeste. 12%. Depois de dois anos,
menos de 10% das metas do I PNRA tinham sido implantadas (SOUZA, 2007). O resultado,
além de expressar a falta de vontade política e a prevalência da defesa dos interesses dos
latifundiários organizados na UDR, evidenciou a demagogia populista do Governo Sarney
54
com relação à reforma agrária. Mais uma vez, consolidou-se na estrutura do poder do Brasil, a
política agrária dos latifundiários.
No final do governo foram assentadas apenas 84.852 famílias, cerca de 6% da
previsão inicial. A maioria dos assentamentos foi motivada por ocupações de terras realizadas
pelos movimentos sociais (OLIVEIRA, 2007).
Na década de 1990, assumiu o governo, Fernando Collor de Melo, primeiro presidente
eleito diretamente, após o golpe militar. Oliveira (2006) destaca que a composição de seu
ministério revelou, desde o início, que as metas estabelecidas em seu governo também não
seriam cumpridas: assentar 500 mil famílias em 04 anos. A proposta do governo Collor para a
reforma agrária era apenas 35% do que propusera. Era uma redução expressiva das metas para
assentamentos, e, além disso, o Ministério da Agricultura foi ocupado por Antonio Cabreira,
oriundo de família de latifundiários e ligado à UDR. Revelando a decisão de não fortalecer a
política de reforma agrária, menos de 30 mil famílias foram assentadas nesse governo.
Com a cassação de Collor, assumiu o vice Itamar Franco, produto de uma ampla
articulação política. Menos de 50 mil famílias tinham sido assentadas entre 1990 e 1999,
metade do número de assentados em relação ao governo anterior. Em 1995, assumiu a
presidência da República Fernando Henrique Cardoso (FHC) com uma proposta de reforma
agrária ainda mais tímida que a dos seus antecessores: assentar 280 mil famílias. FHC
prometeu “democratizar o acesso à terra e fazer profundas mudanças no campo, com vontade
política e decisão, dentro dos princípios da lei e da ordem” (OLIVEIRA, 2006, p. 121). Com a
meta do aumento substancial dos assentamentos a cada ano, o objetivo a atingir é cem mil
famílias no último ano de seu governo.
Segundo Oliveira (2007) na década de 1990, as organizações sociais de luta pela terra,
sobretudo o MST, ampliaram significativamente as mobilizações por políticas agrárias. As
ocupações massivas de fazendas, marchas nacionais envolvendo centenas de milhares de
pessoas, ocupações de prédios públicos, acampamentos à margem de estrada e outras formas
de atuação passaram a fazer parte da agenda nacional. Na verdade, essa efervescência social é
uma reação à consolidação do modelo agrícola inaugurado pela “modernização
conservadora”, agora chamada de “agronegócio5” (p. 148).
5 A expressão “agronegócio” é nova, da década de 1990, e foi ideologicamente construída para mudar a imagem
da agricultura capitalista, particularmente do latifúndio, historicamente associados à exploração, ao trabalho
escravo, à concentração de terra, ao coronelismo, ao clientelismo, à subserviência, ao atraso político e
econômico. “Agricultura capitalista”, “agricultura patronal”, “agricultura empresarial” ou agronegócio são
eufemismos utilizados para esconder o que está na raiz, na lógica do modelo agropecuário: a concentração e a
55
Esse mesmo autor ao estudar o modo capitalista de produção, agricultura e reforma
agrária no Brasil, destaca que nos de 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso,
registram-se mais de mil conflitos espalhados por todo o país. Apresenta também, o
crescimento dos conflitos nas regiões de ocupação tradicional: Nordeste e Centro-Sudeste.
Alguns estados vão aparecer como concentradores destes conflitos como é o caso do Paraná
na região Sul; Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Mato Grosso do Sul no Centro-Sudeste;
Pernambuco no Nordeste; e Pará e Mato Grosso na Amazônia.
Entretanto, a resposta do governo Fernando Henrique à efervescência dos conflitos, foi
o aumento da repressão policial.
Este governo entrou para a História, marcado por um tipo de violência que não havia
acontecido de forma explicita no Brasil: quem passou a matar os camponeses em luta pela terra, foram as forças policiais dos Estados. O massacre de Corumbiara e
de Eldorado dos Carajás são os exemplos ocorridos no governo FHC. Estes dois
massacres representavam a posição das elites latifundiárias brasileiras em não ceder
um milímetro sequer em relação á questão da terra e da política agrária. O apoio dos
ruralistas á base de sustentação política do governo FHC, tem tido como
contrapartida duas práticas políticas pelo governo: a primeira, a posição repressiva
aos movimentos sociais e a segunda, no plano econômico, prorrogando não se sabe
até quando, as dividas destes latifundiários que não ás pagam (OLIVEIRA, 2007).
Comparando-se o governo de Fernando Henrique Cardoso com os anteriores (Sarney,
e Collor/Itamar) verifica-se consoante dados divulgados pelo INCRA, que nos primeiros seis
anos tinha assentado 373.210 famílias em 3.505 assentamentos rurais. A pressão social feita
pelos movimentos sociais com a ampliação das ocupações pressionou o governo FHC há
ampliar os assentamentos (FERNANDES, 2002).
Este fato mostra que a reforma agrária antes de ser uma política propositiva do
governo é a necessidade de resposta á pressão social. No entanto, Fernandes (2002) chama
atenção para a participação expressiva da região Amazônica no conjunto dos assentamentos:
223.368 famílias ou quase 60% do total. Se observado o número de ocupações de terra
naquela região ele representa pouco mais de 10% do total. Enquanto isso, a maior parte dos
acampados das regiões tradicionais continuava aguardando a reforma agrária chegar. Eles
eram estimados em 100.000 acampados.
exploração. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegócio procura representar a imagem da produtividade,
da geração de riquezas para o país. Desse modo, se torna o espaço produtivo por excelência, cuja supremacia não
pode ser ameaçada pela ocupação da terra. Se o território do latifúndio pode ser desapropriado para a
implantação de projetos de reforma agrária, o território do agronegócio como sagrado, que não pode ser violado.
(FERNANDES, 2000, p. 31).
56
Dessa forma, o mesmo autor analisa que a política de reforma agrária do governo FHC
passou por momentos históricos e estratégias diferenciadas. Enquanto a política do MST era
de colocar “a nu a terra improdutiva e grilagem de terra pelos latifundiários” (FERNANDES,
2002, p. 129), a resposta foi a violência policial ou a criminalização das lideranças.
A repressão sobre os movimentos que lutam pela terra tornou-se mais complexa,
reforçando-se a tática de difamá-los, criminalizá-los e enviar o conflito para o Judiciário. Em
termos de políticas agrárias, o período é marcado pelo equívoco de se confundir projetos de
assentamento com uma verdadeira política pública de reforma agrária. Pelo conjunto das
medidas, seu governo ficou marcado por uma política agrária neoliberal.
Os estudos de Oliveira (2006) apontam que mais de 1 milhão de hectares de terras
deveriam voltar ao controle do Estado, e isto vem ocorrendo lentamente. Dessa forma, vive-se
uma situação toda peculiar, porque o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está
nesse caso, em Corumbiara (RO) e em Eldorado do Carajás (PA)6, fazendo emergir uma nova
componente política da luta pela terra que é a denúncia da grilagem das terras pelos
latifundiários.
Em Corumbiara foi assim, as terras do fazendeiro que se dizia proprietário já devia
ter sido retomada pelo Estado porque ele não cumpriu o que a Lei, que permitiu o
acesso aquela terra dizia. Em Eldorado do Carajás foi a mesma coisa, o fazendeiro
que se dizia proprietário da fazenda Macaxeira, na realidade tinha uma autorização
para explorar castanha, não o titulo da propriedade das terras (OLIVEIRA, p.130).
A grilagem de terra sustenta que a falta de informações seguras do Sistema de
Cadastro Rural do INCRA cria um quadro de ilegalidade e instabilidade jurídica em relação à
posse e propriedade da terra, acabando por estimular outra prática comum na história
fundiária nacional: a grilagem de terras públicas (OLIVEIRA, 2003).
Com base no relatório da CPI da Grilagem, aprovado na Câmara dos Deputados, em
30 de agosto de 2001, Melo (2004) assevera que a grilagem tem como fins principais a
revenda das terras em grande escala, a obtenção de financiamentos bancários para projetos
agropecuários, a exploração madeireira, o pagamento de dívidas previdenciárias e fiscais, a
6 Se houve algum incidente que claramente divide a história contemporânea da luta pela terra no Pará em
períodos de “antes” e “depois” foi o massacre brutal de 19 manifestantes do MST pela polícia no dia 17 de abril
de 1996, em Eldorado de Carajás. Esse incidente resultante das tentativas de o MST forçar a expropriação de um
enorme e muito cobiçado grupo de propriedades rurais no sul do Pará. Após o massacre de Eldorado, o dia 17 de
abril tornou-se “Dia Internacional de Luta Camponesa e “Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária”
(CARTER, 2010, p. 270).
57
obtenção de bônus pelo seqüestro de carbono e o percebimento de indenização
desapropriatória.
A grilagem é um dos mais poderosos instrumentos de domínio e concentração
fundiária no meio rural brasileiro. Em todo país, o total de terras sob suspeitas de
serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares – quatro vezes a área
do Estado de São Paulo ou a área da América Central mais México. Na Região
Norte, os números são preocupantes: da área total do Estado do Amazonas, de 157
milhões de hectares, suspeita-se que nada menos de 55 milhões tenham sido grilados, o que corresponde a três vezes o território do Paraná. No Pará, um
fantasma vendeu a dezenas de sucessores aproximadamente nove milhões de
hectares de terras públicas. [...]. O Estado do Pará é a “bola da vez” na grilagem das
terras públicas brasileiras (OLIVEIRA, 2007, p.179).
Violência e corrupção se fazem presentes em todo o processo de grilagem. A violência
é mais visível: o grileiro contrata pistoleiros para expulsar posseiros, seringueiros, índios e
outros moradores que encontra na área pública da qual pretende se apropriar. Nas regiões em
que a grilagem é maior, os registros de violência contra trabalhadores também são maiores. A
corrupção é menos visível. Após expulsar os moradores da área, os grileiros falsificam
documentos relativos à dominialidade e outros relacionados com a obtenção de recursos
públicos e exploração de madeira. Nessa etapa, contam com a cumplicidade de cartórios de
registros de imóveis e de funcionários públicos.
Os agentes públicos estão diretamente relacionados com as práticas de grilagem. A
grilagem de terras acontece normalmente com a conveniência de serventuários de
Cartórios de Registro Imobiliário que, muitas vezes, registram áreas sobrepostas
umas às outras – ou seja, elas só existem no papel. Há também a conivência direta e
indireta de órgãos governamentais, que admitem a titulação de terras devolutas
estaduais ou federais correligionários do poder, laranjas ou mesmo a fantasmas –
pessoas fictícias, nomes criados apenas para levar a fraude a cabo nos cartórios.
Depois de obter o registro no cartório de títulos de imóveis, o fraudador repetia o
mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado, no Cadastro do Incra e junto
à Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados que dessem à fraude
uma aparência de consistente legalidade (MELO, 2006, p. 45).
A improdutividade da terra se soma à concentração e à grilagem na composição do
drama agrário nacional. Assim, o MST traz á tona essa discussão, e é evidente que neste
momento questiona na raiz o pacto das elites sobre a terra, e, particularmente a sua base
jurídica. Como contraponto, o Estado busca a criminalização das lideranças do MST. Esta foi,
pois, uma primeira estratégia política do governo FHC para fazer frente aos movimentos
sociais.
Mas, a resistência camponesa presente nos movimentos sociais em luta, deu o tom da
luta política principalmente, na segunda metade da década de 90 no Brasil. Por isso, o
58
governo FHC teve que se render ao avanço das lutas sociais pela reforma agrária no primeiro
mandato, e, criar o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
No segundo mandato, FHC tratou de implementar políticas repressivas, como tentativa
de frear o avanço dos novos personagens da cena política brasileira. Entre elas, está a Medida
Provisória “que suspende a vistoria pelo INCRA das propriedades ocupadas pelos
movimentos sociais e proíbe os ocupantes de ser assentados da reforma agrária” (OLIVEIRA,
2006, p. 135). Com relação às mudanças legais de responsabilidade do Ministério do
Desenvolvimento Agrário,
primeiro fez-se a securitização das dividas dos ruralistas, depois se criou o ITR
progressivo. Depois se criou o Projeto Cédula da Terra e o Banco da Terra visando
implantar uma autêntica contra-reforma agrária via mercado7. Por fim, mais duas
medidas coercitivas: a MP 2.109, de 29 de junho de 2000, que proibiu a vistoria por
dois anos em imóveis ocupados e a Portaria/MDA/n°62 de 27/03/2001, que exclui
os assentados da reforma agrária devido “atos de invasão ou esbulho de imóveis
rurais”. A inscrição para assentamentos da reforma agrária pelo correio, veiculada
com propaganda televisiva e impressa afirmando que “a porteira está aberta para a
reforma agrária, é só entrar e inscrever-se”, foi outro estelionato das políticas do
PSDB de FHC. A prática exercida pelo MDA, na realização de reuniões e
seminários com intelectuais que estudam a questão agrária, para auxiliarem na elaboração de políticas e ações de governo [...] para formarem uma espécie de frente
de ação intelectual de critica aos movimentos e seus intelectuais orgânicos
(OLIVEIRA, 2006, p. 129-130).
Para o autor mencionado, o caráter mais conservador da reforma agrária brasileira é o
programa de crédito chamado de reforma agrária de mercado, iniciado no governo FHC com
o Banco da Terra e hoje transformado no programa Cédula da Terra. Este programa, que
segue as indicações do Banco Mundial para a “reforma agrária”, tem como principal
instrumento a concessão de crédito para a compra de pequenas propriedades. Desta forma, o
Estado se torna ainda mais distante das ações, que neste caso são ditadas pelo mercado de
terras.
Os neoliberais do estudo agrário sepultaram a concepção da agricultura camponesa e
com ela os próprios camponeses. Afinal, era preciso no plano teórico e político afastar de vez
o velho fantasma da questão camponesa que já assustava os latifundiários brasileiros da UDR.
Estas medidas objetivavam enfraquecer a organização dos movimentos, sobretudo do MST,
apelando para o individualismo. Essa tática atingia os assentamentos. Ao lado de famílias
7 O caráter mais conservador da reforma agrária brasileira é o programa de crédito chamado de reforma agrária
de mercado, iniciado no governo FHC com o Banco da Terra e hoje transformado no programa Cédula da Terra.
Este programa, que segue as indicações do Banco Mundial para a “reforma agrária”, tem como principal
instrumento a concessão de crédito para a compra de pequenas propriedades. Desta forma, o Estado se torna
ainda mais distante das ações, que neste caso são ditadas pelo mercado de terras (FERRANTE, 1988).
59
participantes de organizações que lutaram pela terra, eram assentadas outras que nada tinham
em comum, ensejando o pipocar de conflitos internos. Além disso, foi incentivada a
organização de outros movimentos de sem-terra, para esvaziar o MST.
No governo FHC, seu principal braço ideológico era a mídia que construiu com a
formação de um novo ideário para a compreensão da agricultura.
Ou seja, o pensamento único sobre a lógica do chamado moderno agronegócio. Para
isso, aproveitou-se da crescente participação da produção para o mercado mundial da soja brasileira, para fomentar também, no mundo acadêmico a “decretação” do
fim da reforma agrária como alternativa de política econômica para o país. [...]. O
agronegócio hegemônico e único (STÉDILE, 2004, p. 49).
E ainda, para esse autor, o agronegócio representa mais uma etapa no desenvolvimento
da agricultura capitalista no Brasil e traduz o projeto neoliberal para a agropecuária brasileira.
Esse projeto tem como características principais: o controle da comercialização de grãos pelas
grandes empresas multinacionais; o processo de desnacionalização da agroindústria; e a
retirada do controle estatal do setor agrícola, sobretudo no que tange à assistência técnica, ao
subsídio, ao crédito e à comercialização. Segundo entende, o resultado dessa política é
desastroso, uma vez que concentra terra e renda nas mãos de poucos, não gera emprego,
impede o desenvolvimento do mercado interno e o crescimento do País.
O autor citado anteriormente defende a tese de que o agronegócio burguês expressa a
racionalidade neoliberal que dá sentido às práticas da classe dominante agrária, para
desenvolver e consolidar o capitalismo no campo.
O chamado agronegócio não é a solução. Vejam que as propriedades acima de 1.000
hectares empregam apenas 600 mil assalariados, e possuem apenas 5 por cento da
frota nacional de tratores. As pequenas propriedades empregam 13 milhões de trabalhadores familiares e mais de 1 milhão de assalariados, e detêm 52 por cento de
toda a frota de tratores do Brasil. O agronegócio dá lucro para uma minoria de
fazendeiros que se dedicam à monocultura exportadora, como fizeram em todo o
período colonial. Mas isso não resolve os problemas econômicos e sociais da
população brasileira (STÉDILE, 2004, p. 30).
Por ser o aprofundamento do modelo agropecuário instalado com a “Revolução
Verde”, o agronegócio apresenta a mesma contradição pontuada acima: por um lado, promove
crescimento econômico e aumento da produtividade na agricultura; por outro, amplia a
concentração fundiária, a degradação ambiental, a pobreza rural e a violência no campo.
O século XXI começou com o final do governo FHC e o coroamento do crescimento
do Partido dos Trabalhadores (PT) com a eleição de um trabalhador metalúrgico, Luís Inácio
Lula da Silva, ao governo da República. O presidente eleito contava com notável trajetória de
60
líder sindical e dirigente de um partido que sempre encampou as lutas populares, carregou um
forte simbolismo, representando a esperança em mudanças significativas na sociedade, numa
perspectiva democrático-popular. No imaginário de amplos setores, reacendeu-se a
possibilidade de uma ampla reforma agrária. Simultaneamente, a agricultura mundial entrava
em um novo patamar de acumulação.
No início, o governo confiou a formulação de um plano de reforma agrária a Plínio de
Arruda Sampaio e outros profissionais. O grupo, após estudos e análises, e diante de uma
estimativa de 120 milhões de hectares de terras disponíveis, propôs o assentamento de 1
milhão de famílias, em quatro anos, priorizando-se, como demanda emergencial, 180 mil
famílias acampadas. Propôs ainda: que a reforma agrária fosse encampada enquanto política
governamental; a consolidação de assentamentos já implantados; que fosse assegurada aos
assentados uma renda mensal equivalente a três salários mínimos e meio; criação de postos de
trabalho; regularização de áreas remanescentes de quilombos e a situação dos agricultores
ribeirinhos (CARVALHO FILHO, 2006, p. 26).
A proposta não foi aceita pelo governo, que negociou com os movimentos sociais,
assumiu compromissos e anunciou o II Plano Nacional de Reforma Agrária, aprovado no final
de 2003, com pretensões bem menores, mas ainda dentro de um patamar razoável. Os novos
termos: o assentamento de quatrocentas mil famílias até o ano de 2006; regularização da
posse de 500 mil famílias; crédito fundiário para 128 mil famílias; viabilidade econômica dos
assentamentos; regularização de imóveis rurais e cadastro de propriedades através do
“georreferenciamento” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 27).
O II Plano Nacional de Reforma Agrária elaborado pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário e pelo INCRA e apresentado à sociedade no final de 2003, durante
a Conferência da Terra, em Brasília, como proposta do governo Lula, destacava a reforma
agrária mais que um compromisso e um programa do governo federal.
Ela é uma necessidade urgente e tem um potencial transformador da sociedade brasileira. Gera emprego e renda, garante à segurança alimentar e abre uma nova
trilha para a democracia e para o desenvolvimento com justiça social. A reforma
agrária é estratégica para um projeto de nação moderno e soberano. [...]. Mas o II
PNRA, tradutor de uma visão ampliada de reforma agrária, vai além da garantia do
acesso à terra. Prevê ações para que estes homens e mulheres possam produzir gerar
emprego e ter acesso aos demais direitos fundamentais, como saúde e educação,
energia e saneamento. Para viabilizar um modelo de desenvolvimento rural e
agrícola será fundamental a implementação de um programa de reforma agrária,
amplo e não atomizado. [...]. Assim, o II PNRA, Vida Digna no Campo, é
fundamental para o país, pois irá gerar postos de trabalho no campo, contribuir com
as políticas de soberania alimentar, combate à pobreza, e com a consolidação da
61
agricultura familiar (INCRA, 2003, p.15).
O II PNRA expressa uma visão ampliada de políticas agrárias que pretendem mudar a
estrutura agrária brasileira e ações dirigidas a impulsionar uma nova estrutura produtiva,
fortalecendo os assentados de reforma agrária, a agricultura familiar, as comunidades rurais
tradicionais e superando a desigualdade de gênero, entre outras. Não basta apenas
desconcentrar a propriedade da terra para a correção das mazelas da atual estrutura agrária.
Esta profunda mudança no padrão de vida e de trabalho no meio rural envolve a garantia de
crédito do seguro agrícola, da assistência técnica e extensão rural, de políticas de
comercialização, de agroindustrialização, de recuperação e preservação ambiental e da
promoção da igualdade.
A apresentação do II Plano Nacional de Reforma Agrária retrata a questão agrária
atual e a política de reforma agrária, no país, ao destacar:
Os pobres do campo são pobres porque não têm acesso à terra suficiente e políticas
agrícolas adequadas para gerar uma produção apta a satisfazer as necessidades
próprias e de suas famílias. Falta título de propriedade ou posse de terras, ou estas
são muito pequenas, pouco férteis, mal situadas em relação aos mercados e
insuficientemente dotadas de infra-estrutura produtiva. São pobres, também, porque
recebem, pelo aluguel de sua força de trabalho, remuneração insuficiente; ou ainda porque os direitos da cidadania-saúde, educação, alimentação e moradia-não chegam
ao campo. [...]. Essa situação vem de muita longa data, mas se agravou bastante nas
duas últimas décadas, em razão da substituição de trabalho humano por máquinas e
insumos químicos na maior parte dos estabelecimentos agropecuários (INCRA,
2003, p.12).
A situação exposta revela a necessidade de implementar uma política agrária que
possa contribuir com a superação da desigualdade e a exclusão social de parte significativa da
população rural. Entretanto, o representante da CPT, Dom Tomas Balduíno (2005), reconhece
que ocorreu modificação no trato com os movimentos sociais em geral, não havendo o
incentivo à criminalização ou repressão dos mesmos. Estes encontraram também maior
abertura para apresentar demandas e cobrar iniciativas governamentais.
Todavia, não se alterou o quadro de lentidão na implantação da política de reforma
agrária nem se deu a ruptura com o modelo agroexportador, sem contar que foi nomeado para
o Ministério da Agricultura um dos representantes do agronegócio (Roberto Rodrigues).
Segundo informa Stédile (2007), 10% das verbas orçamentárias foram destinadas para
agricultura familiar e 90% para o agronegócio de exportação.
Como resultado da política implantada pelo II PNRA, o número de famílias assentadas
e de Projetos de Assentamento, a área destinada à Reforma Agrária e os créditos para
62
instalação e consolidação dos assentamentos aumentaram. Não obstante, os créditos à
agricultura patronal têm aumentado em maior proporção, tornando os créditos para os
usuários da Reforma Agrária e da agricultura familiar ínfimos, se comparados em seus valores
absolutos.
Essas metas não vêm sendo cumpridas, ou o vem de forma reduzida. Até outubro de
2005, um ano antes do final do primeiro mandato do Presidente Lula, teriam sido assentadas
apenas 180 mil famílias, verificando-se o contingenciamento de recursos do Ministério de
Desenvolvimento Agrário, a diminuição de créditos e a falta de projetos de recuperação e
estruturação dos assentamentos. A ação governamental ficou muito aquém do esperado e “não
apresenta diferenças significativas quando comparada com aquela implementada pelo governo
anterior” (OLIVEIRA, 2007, p. 32).
Assim, o que se viu no primeiro mandato, e se vê no segundo mandato de Luiz Inácio
Lula da Silva foi a comprovação de que o Estado ainda trata a questão agrária como uma
questão isolada e setorial, com políticas conjunturais conforme o poder de mobilização dos
movimentos sociais do campo. Ou seja, uma reforma agrária conservadora que segundo
Carter (2009)
define-se por ser de caráter reativo, antes que proativo; restrito no seu alcance em
vez de empenhado em forjar uma mudança social‟, um assunto marginal para o
desenvolvimento rural. Essa reforma responde à pressão social e ao intuito de
apaziguar os conflitos rurais, antes que ao esforço por promover a agricultura
camponesa mediante a transformação da estrutura fundiária e as suas relações de
poder (p. 260).
O controle político do Estado pelos ruralistas, ainda hoje, impede o desenvolvimento
da agricultura camponesa, e determina as condições para que a modernização da agricultura
mantenha a estrutura fundiária concentrada (FERNANDES, 2008).
Este governo está sendo marcado pelo relançamento do capital financeiro na
agricultura através de uma nova aliança do capital e da grande propriedade fundiária, sob
tutela das políticas públicas, favorecendo a desmobilização dos movimentos sociais. Os
partidos de esquerda, sucessores da tradição da luta pela Reforma Agrária, hoje no governo,
“colocaram-se na perspectiva de administrar o ajustamento constrangido” (DELGADO, 2005,
p. 68).
Entretanto, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) acaba de concluir
um novo levantamento sobre a reforma agrária no governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. De acordo com os números oficiais, em sete anos foram assentadas 574,6 mil famílias,
63
numa área de 46,7 milhões de hectares. Isso corresponde a duas vezes o território do Estado
de São Paulo – com 24,8 milhões de hectares (INCRA, 2010, p. 3).
Ainda de acordo com os dados oficiais, já encaminhados ao Palácio do Planalto, as
realizações do atual governo representam 55% de tudo que foi feito na área da reforma agrária
em 40 anos de existência do INCRA. Na soma dos vários governos do período, 84,3 milhões
de hectares já foram transformados em assentamentos rurais. Considerando que o Brasil tem
aproximadamente 850 milhões de hectares, pode-se dizer que 10% do território foi para a
reforma agrária (INCRA, 2010).
Todavia, ao avaliar a política agrária no primeiro mandato de governo do presidente
Lula, contestando a falta de transparência dos dados divulgados pelo INCRA com relação ao
número de famílias assentadas, Stédile (2006) destaca:
O desempenho desses quatro anos é patético. Parece que 50% de todas as famílias
que teriam sido assentadas se encontram na região amazônica. São, na verdade
projetos de colonização, em sua maioria, em terras públicas. No fundamental não
afetam o latifúndio, não contribuem para a desconcentração de terras. Não se trata
de reforma agrária. [...]. Apenas um terço da reforma agrária prometida foi feito no
primeiro governo Lula. A conseqüência é que mais de 150 mil famílias que estavam
acampadas em 2003 continuam acampadas em 2007. Somando-se elas ao
contingente que foi para os acampamentos entre 2004 e 2006, chega-se ao total de mais de 240 mil em baixo das lonas pretas à espera de reforma agrária que não vem.
[...]. O MDA/INCRA não quer desapropriar os grandes imóveis improdutivos dos
estados das regiões onde o agronegócio tem força econôm9ica – Sul, Sudeste e
Centro Oeste - para não “desestabilizar” o agronegócio (p. 176).
A política agrária está acoplada à expansão do agronegócio no país. É por isso que a
reforma agrária no Brasil é uma conquista dos movimentos sociais e, só ocorre quando eles
vão à luta.
Os governos de Cardoso e Lula não apresentaram grandes diferenciais quanto ao
número de famílias assentadas, mas a administração do último teve um trato mais aberto e
dialogal com os movimentos sociais do campo, alguns dos quais acabaram influenciando as
nomeações de cargos de confiança do MDA e do INCRA. Para Carter (2009) o governo Lula
também deu maior apoio financeiro e logístico para a consolidação dos assentamentos e
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e suas parcerias com
universidades públicas e escolas técnicas. O Programa de Assistência Técnica Social e
Ambiental (ATES) mais que triplicou a sua cobertura depois de 2003. Ademais, O Programa
Luz para Todos iniciado pelo Ministério de Minas, Energia e Comunicações do governo Lula
estendeu, até 2009, a eletrificação rural a mais de 8 milhões de pessoas.
64
Essas e outras melhoras foram efetuadas num clima de insistente pressão por parte dos
movimentos sociais no campo. A contratação de 1.800 novos servidores para o INCRA,
decisão que aumentou a capacidade de atuação desse órgão em 40%, foi assumida pelo
governo federal como parte do acordo realizado com o MST, durante a Marcha Nacional pela
Reforma Agrária, em 2005(CARTER, 2009).
Neste sentido, o II PNRA avançou ao apresentar uma compreensão ampliada de
reforma agrária. Porém, a execução do plano tem apresentado uma reforma conservadora da
estrutura fundiária através da criação de assentamentos rurais. Consideramos que no período
analisado (1988-2009) houve uma reforma agrária conservadora, pois a forma como é
conduzida a política de assentamentos conserva a estrutura das regiões de ocupação
consolidada, isto é, centro-sul e Nordeste, de forma que o cumprimento dos princípios
constitucionais é muito restrito. A partir desta premissa, é possível compreender o quanto
reformadora é a política de assentamentos rurais que fundamenta esta reforma agrária
conservadora.
Apesar de suas promessas históricas em favor de uma reforma agrária progressista, o
presidente Lula manteve a inércia conservadora, atenuando-a só em parte. A opção
preferencial pelo agronegócio emperrou a possibilidade de levar adiante uma reforma agrária
entendida como uma forte política de Estado, com redistribuição de terra, renda e poder.
Os acontecimentos, passados e atuais apontam que não se pode esperar alterações
profundas a partir da mera vitória eleitoral. Reforçam também o seguinte entendimento:
mesmo num governo comprometido com as lutas sociais, alimentado pela esperança, se não
houver pressão popular as mudanças não acontecerão. Como afirma Demo (2001):
A mera vitória eleitoral de grupos políticos de esquerda não significa,
necessariamente, a solução de alguns problemas dos movimentos sociais. Mesmo
assim, o espaço público deve ser ocupado, para que ele de fato seja público, em
outra perspectiva, uma vez que é a sociedade organizada que define o papel e o espaço do Estado, não o contrário. Em tese, este existe para atender seus cidadãos e
não para subjugá-los (p. 15).
A reforma agrária atrelada ao conjunto de Políticas Públicas eficientes para garantir a
autonomia de produção do camponês inexiste sem a intervenção dos movimentos sociais,
protagonistas na recriação do campesinato brasileiro no interior do modo de produção
capitalista, uma vez que o Estado tem mantido os velhos pactos entre os setores do bloco
hegemônico.
65
CAPÍTULO II
POLÍTICA AGRÁRIA E REFORMA AGRÁRIA FACE A PROPRIEDADE PRIVADA
E A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA
A terra e a democracia aqui não se encontram. Negam-se,
renegam-se. Por isso, para se chegar à democracia é
fundamental abrir a terra, romper essas cercas que excluem e
matam, universalizar esse bem, acabar com o absurdo,
restabelecer os caminhos fechados, as trilhas cercadas, os
rios e lagos apropriados por quem, julgando-se dono do
mundo, na verdade o rouba de todos os demais.
Hebert de Souza, o Betinho.
2.1 Propriedade privada e sistema capitalista
O direito de propriedade percorreu um longo caminho até chegar à configuração atual.
É importante ressaltar que a propriedade privada, especialmente a dos meios de produção, não
é algo dado, ínsito à natureza humana, fruto da razão. Ao contrário, a propriedade é uma
construção humana, que tem origem histórica, constituindo-se como produto de uma
determinada forma de organização humana.
A propriedade representa um dos conceitos fundamentais e uma das instituições mais
complexas das sociedades contemporâneas, considerando que “todo direito gira, de certo
modo, em torno do tema da propriedade e de sua respectiva proteção” (AMARAL JÚNIOR,
1983, p. 337).
Ao discorrer sobre a origem da família, da propriedade privada e do estado, Engels
(1987) afirma que os primeiros habitantes do planeta não conheceram a apropriação
individual da riqueza e dos meios de produção. Pra ele, a propriedade privada surge na
passagem do gênero humano do estado de barbárie para a civilização, no momento histórico
em que se descobre a agricultura e a pecuária.
O princípio materialista contido na obra do antropólogo Morgan, segundo Engels
(1997), é o que fundamenta a compreensão de que as fases de desenvolvimento humano
acompanham os progressos obtidos na produção dos meios de existência, ou seja, as épocas
de progresso no desenvolvimento da humanidade coincidem com a ampliação das fontes de
existência. Este é o princípio que permite a Morgan estabelecer e classificar os estágios pré-
históricos de cultura, que são basicamente três: selvagem, barbárie e civilização.
66
Engels (2000) analisa que a infância do gênero humano era marcada pelo estado
selvagem, período em que homens e mulheres habitando bosques e florestas, se apropriavam
dos produtos da natureza apenas para suas necessidades diretas e imediatas. No período
posterior, denominado de barbárie, aparecem a criação de gado e a agricultura, com o início
do incremento da produção, a partir da natureza, pelo trabalho humano, com introdução da
cerâmica. O período de civilização inicia-se com a fundição do minério de ferro e a invenção
da escrita alfabética, em que o homem amplia e complexifica a elaboração de produtos
naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.
A agricultura e a pecuária representam “a primeira divisão do trabalho” (ENGELS,
2000, p. 179) e deram origem à apropriação individual da terra e do gado. A transformação do
ferro e de outros metais em ferramentas de trabalho, em substituição à pedra, tornou possível
a agricultura em escala e a preparação para o cultivo, de grandes áreas de florestas. O
surgimento das cidades, formado por casas de pedras ou tijolos, como residência central da
tribo ou confederações de tribos, encerrou significativo progresso na arquitetura e evidenciou
a necessidade de defesa.
Essas modificações traduzem aquilo que Engels (2000, p. 183) chamou de “a segunda
divisão social do trabalho”, com a separação entre o artesanato e a agricultura. Para ele, o
crescimento da produção e do trabalho aumentou o valor da força de trabalho do ser humano.
A escravidão, em estado nascente e esporádico na fase anterior, transformou-se em elemento
básico do sistema social. E o mesmo autor (2000) acrescenta que, ao se dividir a produção nos
dois ramos – agricultura e ofícios manuais-, surgiu à produção diretamente para troca, a
produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras das tribos, mas
também por mar.
No estado da barbárie, a humanidade inaugura a divisão do trabalho e firma o sentido
da posse e da propriedade. A civilização materializa e aumenta todas as divisões já existentes,
acentuando a contradição entre a cidade e o campo, e acrescenta uma terceira divisão do
trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, “criando uma classe social que não se
ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca de produto: os comerciantes” (ENGELS,
2000, p. 186). Esse ciclo se encerra com a criação do dinheiro, especialmente do dinheiro-
metal, apontada pelo autor como “a mercadoria por excelência” (ENGELS, 2000, p. 187).
67
As mutações porque passaram a instituição “família” foram preponderantes para a
transição da fase de apropriação coletiva para o surgimento da propriedade privada da
produção, assim como foi determinante para o surgimento do Estado.
A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e
escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em
classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as
antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda
subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades.
A terra cultivada foi distribuída entre familiares particulares, a princípio por tempo
limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi
realizando-se aos poucos, paralelamente passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou a transformar-se na unidade econômica
da sociedade (ENGELS, 2000, p. 184).
Em A ideologia alemã, Karl Marx e Friedrich Engels (1984) afirmam que o primeiro
exemplo de propriedade é a escravidão familiar:
Com a divisão do trabalho na qual estão todas estas contradições, e a qual por sua
vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em
famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a
repartição, e precisamente a partição desigual tanto quantitativa quanto qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e, portanto a propriedade, a qual já tem o seu
embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos
do homem. A escravatura latente na família, bem que ainda muito rudimentar, é a
primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos
modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor da força de trabalho. [...]
alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas -
numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na outra se enuncia
relativamente ao produto da atividade (p.36 -37).
Com relação à agricultura e a propriedade da terra Martins (2007) discorre que a
agricultura tornou a terra cativa: A agricultura fez da terra um espaço privado, onde cada
homem passou a controlar o seu produto promovendo:
Uma mudança no comportamento ético, passando o ser humano a se considerar o
destinatário do Universo, subjugando todos os animais e plantas e, ao final, a supremacia de alguns homens sobre todos os outros homens. O ser humano perdera
o paraíso, no mito da criação (2003, p. 12).
O agrarista Marés (2003) parte da teoria de que a terra e seus frutos passaram ter
donos, gerando “um direito exclusivo, acumulativo, individual. Direito tão geral pleno que
continha em si o direito de não usar, não produzir” (p.31). A divisão do trabalho gerou a
propriedade privada. A propriedade privada deu causa ao surgimento do Estado, que foi
criado para garanti-la e protegê-la. O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se
68
impôs à sociedade e fora para dentro; tampouco é „a realidade da idéia moral‟, nem „a imagem
e a realidade da razão‟, como afirma Hegel:
É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de
desenvolvimento é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está divida por antagonismos irreconciliáveis que não
consegue classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não
consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
aparentemente acima da sociedade, chamada a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da „ordem‟. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima
dela se distanciando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 2000, p. 191).
O Estado tem suas origens na necessidade de controlar os conflitos sociais entre os
diferentes interesses econômicos, e que esse controle é realizado pela classe com mais poder
de dominação econômica, normalmente a classe proprietária:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter os antagonismos das classes, e
como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o
Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que,
por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e
adquire novos meios de repressão e exploração da classe oprimida (ENGELS, 2000,
p. 194).
O direito de propriedade é considerado “a essência do processo civilizatório”.
Contraditoriamente, esse direito, “acabou de ser, ele mesmo, fonte de muitos males”
(MARÉS, 2003, p.12). A propriedade privada sempre ocupou um papel central nas relações
sociais das diferentes sociedades humanas. Por isso, o conceito de propriedade sofreu
profundas modificações no decorrer da história das sociedades.
A distribuição da posse e da propriedade, especialmente da fundiária, foi determinante
para a constituição dos Estados antigo e medieval.
Na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são
regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser
o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não
possuem. Foi o que vimos em Atenas e em Roma, onde a classificação da população
era estabelecida de acordo com o montante dos bens. O mesmo acontece no Estado
feudal da Idade Média, onde o poder político era distribuído conforme a importância
da propriedade territorial (ENGELS, 2000, p. 194).
O florescimento das cidades, o desenvolvimento das relações comerciais e o
surgimento da burguesia fragilizaram a nobreza medieval, incentivando a transformação do
feudalismo. Durante o Antigo Regime – caracterizado pelo absolutismo político – a
propriedade de todas as terras foi transferida ao monarca (MARÉS, 2003).
69
O advento da sociedade burguesa, com a consolidação do sistema capitalista,
provocou profundas modificações no direito da propriedade, que passou a ter, marcadamente,
um sentido de mera utilidade econômica. Para Marés (2003) a terra, considerada em muitas
culturas como divindade especial, foi confinada à condição de simples mercadoria.
Marx (1985) ao defender a tese da propriedade fundiária como raiz da propriedade
privada explicita:
A raiz da propriedade privada é a propriedade fundiária, contudo a radicalização do
poder da mercadoria agrária no sistema produz grande impacto no conjunto de
relações tradicionais estabelecidas em torno dos domínios fundiários. A
transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é a ruína final da velha
aristocracia e o aperfeiçoamento final da aristocracia do dinheiro. Na propriedade feudal ou tradicional da terra, a relação político- jurídica com a terra em uma
mercadoria, que responde ao toque do dinheiro, a converte em mera riqueza coisal,
despindo-a de qualquer coloração política, assim como no lugar do casamento de
honra com a terra se instala o casamento por interesse. [...]. A propriedade fundiária
foi o terreno mais duradouro da dominação social na era pré-capitalista. A relação
do se humano com o campo se alterou bruscamente com a formação da indústria no
século XIII e desde então se modifica aceleradamente (MARX, 1985, p. 137).
Marés (2003) considera John Locke o grande pensador da propriedade contemporânea,
especialmente por que:
Organizou a defesa teórica da propriedade burguesa absoluta, que viria a se transformar no direito fundante das constituições liberais próximas. Até Locke, a
civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade; a partir dele, e na
construção capitalista, passa a ser um direito subjetivo independente (MARÉS,
2003a, p. 23).
O autor entende que a propriedade privada constitui um direito natural e que seu
fundamento está no trabalho humano. O domínio comum acaba quando o ser humano, com
seu trabalho, torna próprios os frutos que a natureza oferece:
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada
homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer
direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos pode dizer-
se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe
forneceu e no qual o deixou, fica lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe
algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o
do estado comum que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o
exclui do direito comum de todos (Locke, apud MARÉS, 2003, p. 23).
Ao analisar a estrutura do pensamento lockeano, Marés (2003) destaca que o filósofo
inglês estabeleceu uma estreita relação entre propriedade e trabalho quando defendeu que a
possibilidade de acumulação está diretamente relacionada com a possibilidade de comprar
70
trabalho alheio. Como o trabalho é o único meio de gerar, originalmente, legítima
propriedade, a compra do trabalho alheio representa a aquisição da legítima propriedade por
ele produzida. A partir daí, as transferências do bem se legitimam apenas pelo contrato de
compra e venda de mercadoria.
Quer dizer, Locke inicia sua reflexão afirmando que a única propriedade legítima é a
produzida pelo trabalho e somente pode se acumular até a quantidade corruptível. Se
o bem não é corruptível, é infinitamente acumulável, mas como se junta tantos bens?
Com a possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, já que o trabalho produz
propriedade. Esta elaboração teórica e moral se encaixava como uma luva para o
pensamento burguês e suas necessidades de acumulação de capital. Daí a
importância para o capitalismo do contato livre entre partes formalmente iguais.
Toda a teoria jurídica posterior vai passar a sustentar a legitimidade da propriedade
de bens na transferência contratual e na legitimidade originária da aquisição,
normalmente um contrato de trabalho (MARÉS, 2003, p. 25-26).
A visão de Locke, “o direito de propriedade é um direito natural” porque “surge de
uma atividade pessoal do indivíduo, e esta atividade pessoal do indivíduo é o trabalho”
(BOBBIO, 1997, p. 38).
Seguindo uma linha de pensamento distinta da de Locke, mas que, ao final, também
serviu para justificar a propriedade privada, Jean Jacques Rousseau (2005) assevera que a
propriedade privada está na origem das desigualdades sociais. Para ele, que foi um dos mais
influentes filósofos do século das luzes, os homens eram bons e capazes de viver em
harmonia quando se encontravam no estado de natureza, mas o surgimento da propriedade
privada e a fundação da sociedade civil modificaram completamente esse estado. Afirma:
O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “Isto é meu” e encontrou
pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade
civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido poupados ao gênero humano àquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem esse impostor! Vocês estarão
perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!
(ROUSSEAU, apud MARÉS, 2003, p. 27).
Marés (20030) assinala que a criação da propriedade privada ocasionou a necessidade
de defendê-la Por isso, o pensamento de Rousseau remete à conclusão de que a fundação das
sociedades políticas foi do interesse dos proprietários, que eram os que tinham com o que se
preocupar. Daí porque, pela necessidade de segurança e paz, surgiu o contrato social, através
do qual os homens concordaram, livremente, em viver sobre uma autoridade comum à qual
ficam submetidos. Essa autoridade é o Estado, cujas atribuições essenciais são garantir a
liberdade e a propriedade.
71
Para esse autor, Rousseau tinha uma visão de que o Estado expressava a vontade geral
e estava acima dos interesses particulares e das classes. Em outras palavras, o Estado era o
depositório da vontade geral, o gerenciador da sociedade em seu conjunto.
Rousseau de forma contraditória, no seu discurso sobre economia política
considerou certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos
dos cidadãos e mais importante, de certa forma, que a própria liberdade. É preciso
relembrar aqui, insistiu, que o fundamento do pacto social é a propriedade, e sua
primeira condição que cada qual se mantenha no gozo tranqüilo do que lhe pertence.
Em outro escrito, incluído entre os seus Fragmentos Políticos, chegou mesmo a
afirmar que, fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim que
este último é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a autoridade pública de possuir um fundamento
legítimo, ninguém seria obrigado a reconhecê-la, a não ser constrangido pela força
(MARES, 2003, p. 43).
Portanto, ainda que exista diferença entre propriedade privada dos meios de vida e a
apropriação privada dos meios de trabalho ou de produção, as teorias filosóficas que
justificam o capitalismo defendem que toda e qualquer propriedade privada constitui direito e
garantia individual, tal como o direito à vida, à liberdade e à segurança (SOUZA, 2007).
Para Marés (2003), a compreensão de que a propriedade é um direito natural foi
compartilhada por Locke, Rousseau e vários pensadores iluministas que, com distintos
argumentos, produziram a legitimação filosófica da propriedade privada, no que atenderam
plenamente aos interesses da nascente classe burguesa.
Com relação ao caráter inviolável e sagrado dado à propriedade privada no Artigo 17
da Declaração Francesa/1789,
é um evidente anacronismo, especialmente porque as revoluções burguesas
desencadearam o mais rápido movimento de transformação social de todos os
tempos. A sacralidade da propriedade, em sintonia com as modificações promovidas
pelo capitalismo, assumiu nos tempos modernos a abstração simbólica de um mito
(SOUZA, 2007, p. 68).
A civilização burguesa conferiu então à propriedade privada ”o status de direito
absoluto, intangível, exclusivo, indeterminado” (SOUZA, p. 69), contando com grande leque
de prerrogativas. Essas características eram condizentes com a segurança reivindicada pela
burguesia nascente para a expansão das forças produtivas liberadas pela revolução industrial.
Além disso, o capitalismo promoveu profundo estreitamento conceitual da
propriedade. Souza (2007) afirma que até o século XVII, era comum os autores referirem-se à
propriedade num sentido bem mais amplo que o atual. Locke, por exemplo, afirmava que a
vida, a liberdade e os bens do indivíduo eram sua propriedade. A pessoa, as faculdades e os
72
direitos de cada um eram considerados mais propriedade que a renda ou as coisas materiais.
Aos poucos, a propriedade perdeu esse sentido amplo e o termo adquiriu o estreito sentido de
propriedade de rendas e coisas materiais.
Desde a antigüidade clássica à revolução industrial, a concepção de propriedade
abrangia o direito individual de excluir outrem do uso ou gozo de alguma coisa e o
direito individual de não ser excluído do uso e gozo daquilo que era considerado
público – praças, estradas, etc. Com o capitalismo, a noção de propriedade passou a
referir-se tão somente ao direito de excluir outrem (SOUZA, p.69).
Marés (2003) analisa que embora preserve semelhanças pontuais com a propriedade
romana, a propriedade capitalista possui características próprias. A principal delas diz respeito
ao fato da sociedade de mercado ter restringido-a a um direito individual, exclusivo e absoluto
de usar e dispor de coisas materiais. O autor acrescenta:
A ordem jurídica do capitalismo reserva especial atenção à propriedade privada, sobretudo a da terra. Não seria diferente, já que a terra foi tornada mercadoria, e a
mercadoria é a razão de ser do próprio sistema [...]. Na concepção prevalecente em
todo o século XIX, a propriedade figurou como o instituto central do Direito
privado, em torno do qual gravitariam todos os bens, em contraposição às pessoas
(MARÉS, 2003, p.41).
Para esse autor, também que a propriedade capitalista se legitima pelo contrato, que
representa o modo ou procedimento de sua aquisição e prova. Segundo o entendimento desse
autor, o proprietário pode tudo “em relação ao bem que possui e, bastando a presunção da
liberdade contratual, os acordos valem mesmo que sejam destrutivo dos bens” (MARÉS,
2003, p. 39).
Além da terra, outro bem valiosíssimo entra no rol das propriedades, o trabalho,
desde a concepção de Locke. Portanto, o contrato que compra a terra ou o trabalho é
válido a partir da mesma presunção, não importa que seja para deixar a terra inerte
ou destruí-la, nem importa que a remuneração do trabalhador seja suficiente sequer
para mantê-lo vivo (MARÉS, 2003, p. 39-40).
Prossegue o agrarista:
O elogio do trabalhador livre se transforma na presunção jurídica da liberdade
contratual, vista sempre desde uma perspectiva individual. O contratante tem
liberdade para fazer e desfazer, contratar e distratar. Os homens livres sem
propriedade vendem sua força de trabalho, por valor evidentemente menor do que o
dos bens produzidos, de tal forma que o resultado da produção pertence ao
contratante, legitimado pelo contrato. Esta nova propriedade, legítima para o
sistema, é fruto, portanto, do contrato. Quer dizer, a legitimidade da propriedade
moderna está assente no contrato: se for legítimo, legítima será a propriedade
(MARÉS, 2003a, p. 39-40).
73
Se a propriedade capitalista é fruto do contrato, a legitimidade contratual reside “na
livre manifestação de vontade, que por sua vez se assenta na idéia do homem, quer dizer,
indivíduo, livre de todas as amarras coletivas”. Ao discorrer sobre a propriedade da terra, o
autor acima afirma que Locke acreditava haver terra abundante e que a propriedade estava
diretamente vinculada à produção, de tal modo que o proprietário seria quem a usasse.
Portanto, para Locke, a terra tinha “valor de uso” (MARÉS, 2003, p. 40).
Apesar disso, o capitalismo transformou a terra “em bem jurídico sujeito a uma
propriedade privada, a ela estabelecendo valor de troca”, transformando-a em
reprodutora de capital. Essa transformação foi potencializada pelo desenvolvimento
do capitalismo na Inglaterra, que reduziu as propriedades comuns de campos e
pastagens a proprietários únicos e individuais pelo processo de cercamentos (MARÉS, 2003, p. 26).
Na civilização burguesa, não é a natureza, a razão ou Deus, o grande guardião da
propriedade privada é o Estado, detentor legítimo do monopólio da violência é ele que
assegura a liberdade de contratar, assim como é ele que reconhece e garante o direito de
propriedade.
O Estado de Direito, instituído pela burguesia sob inspiração do pensamento liberal,
estabeleceu uma nítida separação entre o público e o privado, o indivíduo e o
cidadão, o Estado e a sociedade civil. Nessa dicotomia, a propriedade e a liberdade
de contratar foram colocadas inteiramente no campo do direito privado, encartados entre os direitos e garantias individuais do cidadão (SOUZA, 2003, p, 72).
Para o liberalismo, a vida econômica guia-se por leis naturais cujo princípio regulador
se encontra na livre concorrência. Como decorrência, a intervenção do Estado na atividade
econômica deve ser restringida, deixando livre o jogo das forças econômicas. Daí porque
Estado e economia são tidos como realidades distintas.
A dicotomia entre Estado e sociedade foi criticada por Karl Marx e Friedrich Engels
(1984), uma vez que consideravam essa separação mero discurso ideológico, pois o Estado
acabava sendo apropriado pela classe proprietária. Esses teóricos analisam que as condições
materiais de uma sociedade constituem a base da estrutura social e da consciência humana,
sendo que a forma de Estado emerge das relações de produção e não do desenvolvimento
geral da mente humana ou do conjunto das vontades humanas.
As relações jurídicas, assim como as formas do Estado, não podem ser tomadas por
si mesmas nem do chamado desenvolvimento geral da mente humana, mas têm suas
raízes nas condições materiais de vida, em sua totalidade, relações estas que Hegel
[...] combinava sob o nome de sociedade civil. Cheguei também à conclusão de que
a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política [...]. Na
produção social da vida, os homens entram em relações determinadas, necessárias e
independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau
determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A soma total
74
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida
real condiciona, de forma geral, o processo de vida social, político e intelectual. Não
é a consciência dos homens que determina sua forma de ser, mas, ao contrário, é sua
forma de ser social que determina sua consciência (ENGELS e MARX, 1984, p.
326).
Divergindo do idealismo hegeliano, Marx (1984) acreditava que o Estado, emergindo
das relações de produção, não representa o interesse comum, mas é expressão da estrutura de
classe inerente à produção. Não comungava com a tese do Estado como o curador da
sociedade, típica dos contratualistas. Para Marx, como a sociedade capitalista é dividida em
classes e dominada pela burguesia, o Estado é a expressão política dessa dominação.
Dito de outra forma:
O Estado é o instrumento essencial de dominação de classes na sociedade
capitalista. Ele não está acima dos conflitos de classes, mas profundamente
envolvido neles (CARNOY, 1994, p. 66).
Segundo Marx e Engels (1984), o Estado surge da contradição entre o interesse de um
indivíduo (ou família) e o interesse comum de todos os indivíduos. A defesa da propriedade é
o grande objeto dessa contradição. A comunidade se transforma em Estado, aparentemente
divorciado do indivíduo e da comunidade, quando, na realidade, está baseado na relação de
grupos particulares. Eles acreditam que o moderno Estado capitalista, dominado pela
burguesia, tem como missão fundamental garantir a propriedade:
Através da emancipação da propriedade privada diante da comunidade, o Estado se
torna uma entidade separada, ao lado e fora da sociedade civil, mas não é nada mais
do que a forma de organização que a burguesia necessariamente adota para fins
internos e externos, para garantia mútua de sua propriedade e interesses (MARX;
ENGELS, 1984, p. 37-38).
Corroborando com a tese marxista, Souza (2007) assegura que o sistema de
propriedade é, então, a expressão legal da estrutura básica do capitalismo, isto é “a divisão da
sociedade em duas classes fundamentais: a de empregadores e a de assalariados” (p.74). Em
síntese, a civilização burguesa reduziu o conceito de propriedade à apropriação de coisas com
valor de troca, a mercadoria, e transformou-a em direito individual, absoluto e excludente,
inscrito nas constituições e códigos. Essa propriedade é adquirida e transferida por meio do
contrato, que lhe confere legitimidade. O Estado de Direito deve se limitar a assegurar a
liberdade contratual e proteger o direito de propriedade.
75
Para Souza (2007) a concepção do direito de propriedade vem sofrendo significativas
transformações desde a segunda metade do Século XIX. O caráter absoluto, perpétuo e
exclusivo da propriedade, assim como o confinamento da terra à condição de mercadoria
foram combatidos pela crítica marxista, socialista e pela doutrina social da Igreja Católica.
As críticas ao sistema capitalista tinham como foco a propriedade privada. Segundo
Souza (2007) a forma como estava distribuída e disciplinada em lei explicava o agravamento
das desigualdades sociais e tornava impossível a concretização de uma sociedade livre, nos
moldes propagados pelos teóricos do liberalismo.
Mas, enquanto socialistas e comunistas sustentavam que a dignidade somente seria
possível com a extinção da propriedade, Leão XIII reclamava por uma propriedade
com dignidade humana, propunha que governos fortes tomassem por missão
proteger o seu povo da exploração e pedia aos católicos para aplicarem princípios da
justiça social às suas próprias vidas. O documento defende a solidariedade social
entre ricos e pobres, em substituição à tese da luta de classes, e exorta os fiéis a
buscar uma solução pacífica para os conflitos sociais e trabalhistas do final do
Século XIX (SOUZA, 2007, P. 89).
Esse mesmo autor assegura que a crítica socializante engendrada pelos marxistas e
pela doutrina social da Igreja foi responsável por um “abrandamento” do conceito de
propriedade, fazendo com que o direito a essa instituição assumisse uma dimensão ética.
No decurso do Século XX e início do Século XXI, principalmente sob a égide do
Estado de Bem-estar Social, os fundamentos apresentados pelos marxistas e católicos
firmaram-se como a base da teoria da função social da propriedade, hoje admitida pela
maioria das cartas constitucionais. “O entendimento de que a propriedade absoluta impedia a
concretização dos direitos sociais representou o elemento justificador da defesa da função
social da propriedade promovida pelos juristas humanistas e outros” (MARÉS, 2003, p. 91).
Isso contribuiu com que a teoria da função social da propriedade ganhasse cada vez
mais adeptos no universo jurídico, e, ao lado das ponderações filosóficas e econômicas, levou
a uma completa reconceituação do direito de propriedade. A função social que a propriedade
contemporânea deve atender não pode ser confundida “com as limitações de polícia ou
mesmo as decorrentes da tributação impostas pelo Estado, mas como elemento essencial do
próprio conceito de propriedade” (MARÉS, 2003, P. 91).
Para esse agrarista, as transformações ocorridas no direito de propriedade não se
deram de forma isolada, mas em decorrências das grandes modificações pelas quais passou a
sociedade capitalista. A concentração do poder econômico, o agravamento da questão social,
o surgimento do movimento sindical, o triunfo da Revolução Russa, entre outros fatores,
76
colocaram na ordem do dia a reformulação do Estado de Direito e a necessidade de se alterar
a disciplina jurídica da propriedade.
A grande depressão que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, a crise da
Bolsa de Valores de Nova Iorque, em outubro de 1929, fizeram com que a economia
capitalista reclamasse um novo papel para o Estado.
Foi nesse contexto que John Maynard Keynes publicou sua principal obra, “Teoria
Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, em 1936, defendendo uma maior
intervenção do Estado no domínio econômico. Hostil às revoluções socialistas,
Keynes considera que o liberalismo econômico não atendia mais às necessidades da
sociedade capitalista das décadas 1920 e 1930. Sua teoria econômica, centrada na
moeda e no emprego, sustenta que a intervenção do Estado na economia é
fundamental para impedir o esfacelamento do sistema capitalista e para garantir o
aumento do emprego e da rentabilidade do capital ( MARÉS, 2003, p. 94).
Os postulados keynesianos serviram para promover uma nova concepção de Estado,
conhecida como Estado de Bem-Estar-Social:
No desempenho de seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de
implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração, de
modernização e de legitimação capitalista. Essa atuação, contudo, não conduz à
substituição do sistema capitalista. Pois é justamente a fim de impedir tal
substituição - seja pela transição para o socialismo, seja mediante a superação do
capitalismo e do socialismo - que o Estado é chamado a atuar sobre o domínio
econômico (SOUZA, 2007, p. 78).
Por essa razão, é comum afirmar-se que a intervenção do Estado no domínio
econômico e no regime da propriedade foi uma estratégia adotada para salvar o sistema
capitalista. A exploração das classes oprimidas continuou. Seus efeitos, porém, foram
mitigados pelas políticas públicas promovidas pelo Estado.
Para Marés (2003) o Estado de Bem-Estar-Social se caracterizou pela intervenção
direta na economia e no regime da propriedade, pela criação de sistemas previdenciários e
pela interferência direta nos contratos, especialmente de trabalho e agrários. Por meio das
empresas estatais, o Poder Público assumiu a vanguarda do desenvolvimento. Por meio de
subsídios diretos e indiretos, de empréstimos estrangeiros garantidos pelos governos, do
investimento em pesquisas, entre outros, o Estado alavancou a atividade de inúmeras
empresas privadas. Outra marca desse modelo de Estado foi a promoção de políticas públicas
nas áreas de saúde, moradia, educação, nutrição, segurança e renda, capazes de garantir
proteção mínima aos mais pobres.
O constitucionalismo do Século XX consagrou a idéia de que a propriedade gera
obrigações. Na maioria das cartas a função social passou a constar do texto das
77
constituições. Como exemplo, pode-se citar as Constituições espanhola (1931), italiana (1947), alemã (1949) e a brasileira (1934), dentre outras (MARÉS, 2003,
p.87).
No entanto, esse autor assinala que a dependência era a marca do Estado de Bem-
Estar-Social latino-americano:
Na América Latina foi se organizando um Estado do Bem-Estar dependente, que
obteve pequenas conquistas sociais e, ainda assim, associado a ditaduras e caudilhos nacionalistas, como Perón e Vargas. Mesmo depois de escrito nas leis, o bem estar
não chegou senão a pouco [...]. No Brasil, especificamente não tivemos um Estado
do Bem-Estar Social (MARÉS, 2003, p. 87).
O modelo estatal pressupunha uma ordem fundiária mais justa e fundada no uso da
terra. Por essa razão, praticamente todos os países latino-americanos editaram leis de reforma
agrária, muitas vezes, impulsionadas por incentivos externos, outras pelas lutas camponesas.
Apesar das leis, pouco se avançou, salvo raras exceções, porque permaneceu como paradigma
o poder absoluto do proprietário de dispor do bem, tendo como única exceção a
desapropriação. “As exceções foram: México, Bolívia e Cuba” (MARÉS, 2003, p 87).
A Revolução Mexicana de 1917 promoveu uma ampla e massiva reforma agrária.
[...]. A Constituição da República, de 31 de janeiro de 1917, estabelecia que a
propriedade privada das terras e das águas pertencia originalmente à Nação que
podia transmitir o domínio aos particulares. Além disso, determinava que cada
Estado deveria fixar a extensão máxima de propriedade rural admitida. A
Constituição mexicana é considerada uma das mais avançadas porque suavizou o
conceito de propriedade individual da terra [...]. Na Bolívia, a reforma agrária foi
fruto da revolução de 1952, comandada pelo Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR). O solo, o subsolo e as águas pertenciam por direito
originário à Nação Boliviana. Assim, implantou no país a reforma agrária,
reconhecendo a propriedade privada desde que cumprisse uma função útil para a coletividade. [...]. A lei boliviana deu um passo à frente em relação à Constituição
mexicana, pois além de reconceituar o exercício do direito de propriedade,
estabeleceu uma nova legitimidade para ser proprietário. A Revolução Cubana,
liderada por Fidel Castro em 1959, expropriou a propriedade privada dos meios de
produção e editou a Lei de Reforma Agrária determinando a distribuição das terras
dos estados, províncias e municípios aos camponeses e trabalhadores rurais. As
exceções previstas na lei foram as áreas de cooperativas de produção, as de
estabelecimentos públicos, as reservas florestais e áreas destinadas à educação ou
similares [...] (MARÉS, 2003, p. 89).
O estabelecimento da função social foi a principal transformação ocorrida no direito
de propriedade. A maioria das constituições do mundo contemporâneo assegura a propriedade
desde que ela cumpra sua função social. No Brasil, o direito de propriedade é protegido desde
a Carta de 1824, mas somente em 1988 a função social, já com status constitucional, passou a
integrar o conteúdo do direito de propriedade (SOUZA, 2007, p. 81).
78
Esse autor defende que a propriedade privada sempre ocupou um espaço de grande
importância nas constituições, códigos e leis brasileiras. Na Constituição Política do Império
do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824, a propriedade era garantida em toda sua
amplitude. Por isso, albergava contradições extremas, pois, apesar de afirmar que “a lei será
igual para todos e de celebrar a livre iniciativa e a liberdade de contratar” (p. 31), manteve o
regime de escravidão até 1888, assegurando aos senhores de terra a propriedade sobre os
escravos.
A leitura do artigo 179, XXII, dessa Constituição, chama a atenção por dois fatos:
Primeiro o reconhecimento do direito em toda a sua plenitude, e em segundo, pela
única exceção existente, a desapropriação. „Em toda sua plenitude‟ quer dizer
exatamente que a propriedade garantida tem caráter absoluto, oponível e excludente
de todos os interesses e direitos individuais alheios. A afirmação é quase tão
eloqüente quanto a da portuguesa, que a considerava um direito sagrado e inviolável.
A plenitude de um direito é, na verdade, a plenitude de seu exercício, quer dizer que
nenhum limite haverá de se impor a ele (MARÉS, 2003, p. 31).
A propriedade descrita na Constituição Imperial é privada e individual. A pública é
exceção. Tanto é assim que sua regulamentação, disciplinada pela Lei nº. 601, de 18 de
setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras (analisada anteriormente), põe termo à
concessão das sesmarias, na qual o domínio permanecia público, e inaugura um novo sistema,
fundado na propriedade privada. Lei que previa o contrato de compra e venda como o único
mecanismo legítimo de aquisição da propriedade agrária no Brasil.
A Lei nº. 1.237, de 24 de setembro de 1864, e seu regulamento, o Decreto nº. 3.453, de
26 de abril de 1865, redefiniu a hipoteca, eliminando os obstáculos jurídicos então existentes
à mercantilização da propriedade fundiária. Nas avaliações desse autor, a Lei de Terras e a
legislação que instituiu a hipoteca e o registro “dariam as condições jurídicas para que a terra
viesse a se tornar uma mercadoria aceitável nas transações entre credores e fazendeiros”
(MARÉS, 2003. p. 32).
Posteriormente, a Lei nº. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que instituiu o Código Civil,
reforçou o caráter absoluto do direito de propriedade desenhada pela Lei de Terras e
referendada pela legislação hipotecária.
Não se pode olvidar que, entre a edição da Lei de Terras e a entrada em vigor do
Código Civil, ocorreu a proclamação da República, quando “a Constituição de 1891
o Estado passa a representar o papel que as forças políticas lhe atribuíram segundo a
orientação do pensamento liberal-econômico”. Ainda que proclamasse que “todos são iguais perante a lei”, a Constituição de 1891 manteve inalterada a concentração
do poder econômico privado nas mãos dos grandes proprietários rurais. O direito de
79
propriedade restou protegido em toda sua totalidade. Até o subsolo era considerado propriedade privada (MARÉS, 2003, p. 65).
O Código Civil brasileiro era impregnado de princípios privatísticos e liberais, que se
harmonizavam com os fins e objetivos da classe latifundiária monopolista da época. A
propriedade é tratada como “um dos direitos de mais pronunciado cunho individualista. O
Código representa o cume de um amplo processo de organização da propriedade privada”
(MARÉS, 2003, p. 32).
A Constituição Imperial de 1824, assim como a Constituição Republicana de 1891
foram fiéis à proteção do direito de propriedade em sua plenitude, nos termos exigidos pelo
sistema capitalista. Em ambas, nem o Estado nem a sociedade podem desconstituir a
propriedade de alguém sem lhe dar outra, em substituição.
2.2 Propriedade privada da terra e função social da terra
Foi a Constituição Federal de 1934 que, pela primeira vez, fez explícita referência às
relações de propriedade e interesse social (MARÉS, 2003), legado da Revolução de 1930 que
trouxe em seu bojo o anseio por mudanças estruturais na sociedade brasileira.
O sopro de socialização a que aludira Rui Barbosa insistia em penetrar no edifício
constitucional do país. Enriquecido com as inspirações dos direitos sociais e econômicos emergentes da Primeira Grande Guerra, o debate em torno da nova
Constituição procurava responder às expectativas criadas pela Revolução. No dia 16
de julho de 1934, foi promulgada a segunda Constituição Republicana (SOUZA,
2007, p. 94).
No dia 16 de julho de 1934, foi promulgada a segunda Constituição Republicana.
Ainda que não desprezasse a essência do regime liberal individualista, a nova Constituição
rompeu com os radicalismos presentes nas anteriores. Apesar de encartar a propriedade entre
os direitos e garantias individuais, inovou em relação aos textos anteriores ao estipular que “É
garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou
coletivo” (SOUZA, 2007, p.88).
Dentro desse novo contexto ideológico, o direito de propriedade continua garantido
[...]. Mas os novos ventos imprimem a esse direito uma configuração diferente. A
ideologia implantada após os movimentos inovadores da revolução social coloca
perante o interesse individual o interesse social ou coletivo, como limitador do
80
direito que até então fora subtraído pelo indivíduo em toda plenitude (SOUZA, 2007, p. 89).
Ainda que não utilizasse a expressão função social, é inegável que a Constituição de
1934 representou um grande avanço em relação às cartas anteriores. Entretanto, esse avanço
limitou-se ao plano jurídico, já que a realidade pouco foi alterada.
Primeiro, porque o Código Civil de 1916 foi integralmente recepcionado pelo novo
texto constitucional, de sorte que o regime jurídico da propriedade nele instituído
permaneceu intacto. Segundo, porque o golpe de estado promovido por Getúlio
Vargas, em 10 de novembro de 1937, produziu uma nova Constituição, que nada
estatui quanto à função social da propriedade. Garantiu-se apenas o direito à propriedade. A Constituição de 1946 recolocou o direito de propriedade numa
perspectiva bem mais progressista. Encartada entre os direitos e garantias
individuais, a propriedade privada foi assegurada, porém condicionada ao
atendimento do bem estar social (SOUZA, 2003, p. 90).
Foi com fundamento na Constituição de 1946 que João Goulart apresentou seu plano
de reforma de bases, entre os quais a reforma agrária, conforme analisamos anteriormente. Os
militares, ao assumirem o poder após o golpe, “garantiram a aprovação da Emenda
Constitucional nº. 10, de 9 de novembro de 1964” (SOUZA, 2007, p. 92), que possibilitou a
desapropriação de imóveis rurais, com o pagamento de indenização por meio de títulos
especiais da dívida pública. Logo após foi promulgada a Lei nº. 4.504, de 30 de novembro de
1964, que dispôs sobre o Estatuto da Terra, sendo o primeiro diploma legislativo brasileiro a
utilizar a expressão função social para se referir à propriedade rural.
A Constituição de 1967, integralmente reformada pela Emenda Constitucional nº. 1,
de 20 de outubro de 19699, também garantiu a propriedade no capítulo destinado
aos direitos e garantias individuais. Entretanto, diferente das anteriores, a Carta de
1967 guindou a função social da propriedade ao patamar dos princípios da ordem
econômica e social. No art. 161, a Carta de 1967 reiterou ainda a possibilidade de desapropriação do imóvel rural por interesse social e regulou o processo de
execução da reforma agrária (SOUZA, 2007, p. 92).
A Constituição de 1967 foi a primeira a reconhecer a função social da propriedade
como um princípio constitucional. Apesar de mais esse impulso de atualização do conceito de
propriedade, o dispositivo constitucional não teve senão eficácia formal, pois pouco se fez
para atacar a concentração da propriedade privada e oferecer melhores condições de vida à
população expropriada (MARÉS, 2003). A conjuntura política não favorecia as investidas
socializantes sobre o direito de propriedade. O Brasil, sob o regime de ditadura militar, foi
sustentado pela classe dominante agrária. O próprio Estatuto da Terra foi completamente
esvaziado.
81
A Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, introduziu
profundas transformações no regime da propriedade. Chamada de Constituição cidadã pela
ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente
para a plena realização da cidadania. Expressão maior do movimento pela redemocratização
do Brasil, a Carta Maior de 1988, no plano formal, é mais incisiva que as constituições
anteriores “no conceber a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social para o fim de
assegurar a todos uma existência digna” (SILVA, 2005, p. 764). Por outro lado, agasalha uma
nítida opção capitalista, na medida em que assenta a ordem econômica na livre iniciativa e
nos princípios da propriedade privada e da livre concorrência.
Entretanto, o regime jurídico da propriedade foi completamente modificado pela
Constituição de 1988. Segundo Marés (2003) a função social passou a integrar o conteúdo do
direito de propriedade. Tal alteração tem relação com o novo regime jurídico da propriedade,
considerando que a função social integra o próprio conteúdo do direito de propriedade.
Agora, propriedade e função social são duas faces do mesmo direito. Sem embargo,
a nova ordem constitucional consagrou a garantia do direito de propriedade desde
que essa propriedade cumpra a função social. Vale dizer que a função social não é
uma mera limitação do uso da propriedade, mas um elemento essencial, interno, que
compõe a definição da propriedade. Em outras palavras, a função social não se
localiza na parte exterior do domínio, mas penetra seu interior, definindo o conteúdo
do direito de propriedade. Daí porque só é legítima a propriedade que cumpre a
função social; do contrário, não merece proteção jurídica. Os deveres fundamentais, em matéria de propriedade, alcançam, além do Poder Público, os demais sujeitos
privados (MARÉS, 2003, p. 49).
Para ele, o descumprimento da função social pelo proprietário significa:
Uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade, reconhecido doravante
pelo sistema. [...]. Quando a Constituição declara como objetivos fundamentais do
Estado Brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais
(art. 3º), é óbvio que ela está determinando, implicitamente, a realização pelo
Estado, em todos os níveis – federal, estadual e municipal –, de uma política de
distribuição eqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à
exploração agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradias. A
não realização dessa política pública representa, indubitavelmente, uma
inconstitucionalidade por omissão. Instrumento clássico para a realização da política
de redistribuição de propriedades é a desapropriação por interesse social (MARÉS,
p. 50).
. Em outras palavras, o novo código atualizou-se à luz da Lei Maior, passando a exigir a
consonância entre a propriedade e sua finalidade social. Propriedade legítima agora é aquela
82
que cumpre sua função social. Em síntese, a Constituição Federal (CF) de 1988 alterou
significativamente o regime jurídico da propriedade.
Marés (2003) assegura que a função social passou a integrar o próprio conteúdo do
direito de propriedade. A propriedade que não cumpre a função social não é protegida pela
CF, pelo Código Civil e pelas demais legislações infraconstitucionais. Por isso, esse mesmo
autor sentencia que o princípio da função social, com tamanha dimensão constitucional e com
o prestígio com que ingressou na CF/88, mostra-se inquestionável.
Assim, o acesso ao imóvel rural é condicionado ao atendimento da função social. E
mais, a legitimidade do direito de propriedade advirá da observância, simultânea, de quatro
requisitos, os mesmos estipulados no Estatuto, mas em outra ordem: a) aproveitamento
racional e adequado (conforme graus de utilização da terra e de eficiência na exploração); b)
utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente; c) observação das
disposições que regulam as relações de trabalho; d) uma exploração que favoreça o bem estar
dos proprietários e dos trabalhadores. A regulamentação deste artigo e a definição de cada um
dos quatro requisitos foi dada pela Lei n.º 8629/93.
A função social do imóvel rural consiste, pois, no uso econômico correto da terra e na
sua justa distribuição de maneira a atender o bem estar da coletividade por meio do aumento
da produtividade e da promoção da justiça social. O não cumprimento dos requisitos da
função social autoriza o Estado a retirar compulsoriamente o imóvel rural das mãos do
cidadão, por meio da desapropriação, e destiná-lo à reforma agrária (SOUZA, 2007).
O artigo 185 - inserido pelo “Centrão” e forças conservadoras, UDR à frente – numa
visão totalmente economicista - declarou a impossibilidade de a propriedade produtiva vir a
ser desapropriada, separando produtividade de função social. Segundo Marés (2003) no
contexto de 1988, representou uma vitória das forças conservadoras. De fato, numa
interpretação literal, restrita e que só considere o aspecto econômico (produtividade), restaria
inviável qualquer medida tendente à realização de uma reforma agrária, já que não se poderia
tocar no latifúndio.
Contudo, a Constituição não pode ser interpretada em pedaços, já que carrega um
sentido social – até mesmo socializante – e o princípio da unidade interpretativa que referenda
a função social para todo tipo de propriedade, cujo conceito de produtividade está impingido
o conceito de função social. Desta feita, não há contradição entre os artigos 185 e 186, vez
que a propriedade só é produtiva se respeitar todos os requisitos da função social.
83
Todavia, a realidade não é bem desse jeito, pois a função social é gritantemente
desrespeitada. Os juristas ainda não a assimilaram, havendo muita resistência, quanto à
observância dos requisitos ambiental e trabalhista e uma tendência de se considerar apenas o
elemento produtividade, sem muitos critérios, o que é sentido na rapidez com que são
concedidas as ações de manutenção ou reintegração de posse, muitas vezes em benefício
daqueles que não dão à terra uma destinação condizente com os ditames constitucionais.
Historicamente, o próprio INCRA optou “por interpretar o texto constitucional da
forma mais restrita possível”, deixando de fiscalizar o cumprimento das outras condicionantes
da função social (MARÉS, 2003, p. 43). Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal (STF),
guardião da Constituição, ainda não enfrentou diretamente o tema da relação existente entre
propriedade produtiva e função social.
E é neste ponto que as ocupações de terras adquirem destaque, sendo empreendidas
para denunciar as propriedades que não estão cumprindo a função social – improdutividade,
latifúndio inexplorado, presenças do trabalho escravo, desrespeito ao meio ambiente – ou que
foram griladas. O intuito é protestar contra a omissão ou lentidão governamental em dar início
ou seguimento às políticas que destravem a reforma agrária – assentamentos, infra-estrutura,
direitos humanos (OLIVEIRA, 2009).
Entretanto, merece destaque a matéria publicada no site do INCRA, de autoria da
procuradora geral dessa Autarquia, Drª Gilda Diniz (INCRA, 2010), que após promover,
recentemente, três cursos para os procuradores federais junto ao INCRA e engenheiros
agrônomos sobre a Legislação Agrária (Lei Agrária 8.629/93), tendo como objetivo reforçar a
afirmativa de que o acesso ao imóvel rural é condicionado ao atendimento da função social,
divulga o lançamento da Legislação Agrária numa versão comentada por especialista. Assim
diz:
A Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra (PFE/Incra) publicará uma
edição da Lei 8.629/93 comentada pelos procuradores federais lotados na autarquia.
Esta Lei promulgada pelo Congresso Nacional em 1993 regulamentou as
disposições relativas à reforma agrária, previstas na Constituição Federal de 1988
(arts. 184 a 191). Entre as regras estabelecidas na Lei, estão os critérios para seleção
de famílias a serem assentadas e os que medem a produtividade dos imóveis rurais.
A publicação também apresentará pareceres firmados pela PFE, em processos
administrativos ou defesas em processos judiciais relacionados à reforma agrária,
bem como um apêndice contendo as notas técnicas produzidas pela Procuradoria. [...]. (DINIZ, 2010, p.2)
84
O objetivo do projeto é uniformizar as teses jurídicas referentes à defesa do Incra em
processos judiciais relacionados à reforma agrária, bem como o desenvolvimento de produção
teórica relativa ao caráter preferencial e prejudicial da ação de desapropriação frente às ações
anulatórias conexas. Explicita Diniz (2010):
À medida que a produção doutrinária é fomentada, vão surgindo mais elementos de
defesa. Até um tempo atrás, nós discutíamos a Reforma Agrário sob um ponto de
vista econômico, agora defendemos também como uma forma de garantia de direitos
fundamentais, ou seja, acesso a moradia, educação, entre outros. Então, esse novo
entendimento surgiu a partir do aprofundamento da discussão doutrinária (p. 2).
Para Gilda Diniz (2010), além da edição comentada da Lei 8.629/93 se mostrar
oportuna no contexto do processo de reestruturação da Procuradoria Geral Federal (PGF),
uma vez que poderá facilitar o acesso ao conhecimento da legislação às novas unidades de
representação judicial do INCRA, esse subsídio doutrinário é muito importante, considerando
que a visão civilista da propriedade privada como direito absoluto é um dos principais
gargalos que enfrenta a PFE/INCRA.
Há uma carência teórica muito grande dos operadores jurídicos envolvidos na
Reforma Agrária, principalmente devido ao distanciamento do Direito Agrário. Isso
faz com que o Direito Civil venha pautando algumas discussões, o que é
extremamente danoso (DINIZ, 2010, p. 2)
A Constituição Federal de 1988 admite duas modalidades principais de
desapropriação: por necessidade ou utilidade pública ou interesse social.
Em uma delas, a indenização é prévia, justa e em dinheiro. Está prevista no art. 5º,
XXIV, da Constituição como sendo o regime indenizatório corrente, normal. A outra
é a que se efetua mediante pagamento de títulos especiais da dívida pública,
resgatáveis, durante vinte anos, em parcelas anuais e sucessivas. A indenização
também deve ser justa, mas não é prévia, ainda que o texto constitucional assim o
qualifique (Souza, 2007, p. 92).
Marés (2003) identifica dois pressupostos fundamentais da desapropriação:
a) a necessidade ou utilidade pública ou, ainda, o interesse social; b) justa
indenização ao expropriado que, em regra, é prévia e em dinheiro, podendo,
entretanto, nos casos previstos no art. 182, § 4º, III, e no art. 184, caput, ocorrer
mediante pagamento de títulos da dívida pública ou da dívida Agrária, resgatáveis
em até dez ou vinte anos, conforme o caso, assegurada a preservação do seu valor real (MARÉS, 2003, p, 94).
85
A desapropriação tem uma importância singular no contexto da legislação agrária,
porque dela depende, basicamente, a almejada reforma agrária brasileira. Entretanto, Melo
(2000) assim define a desapropriação:
A desapropriação é o procedimento através do qual o Poder Público despoja alguém
de uma propriedade e a adquire, mediante indenização, fundado no interesse
público. À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o
procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública,
utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um certo
bem, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização
prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo nos casos de certos imóveis urbanos ou
rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública,
resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real (p.646).
Negando a tese acima, Marés (2003, p. 85) adverte que “a desapropriação não retira,
despoja ou suprime a propriedade de alguém; tampouco viola o direito de propriedade”. Ao
contrário, é um instituto jurídico tipicamente capitalista, que homenageia a propriedade
absoluta e sagrada. Isso porque, se é certo que a desapropriação representa uma modalidade
de intervenção do Estado no domínio privado, “é igualmente certo que essa intervenção
assume a forma de uma espécie de contrato, em que se troca um tipo de propriedade (bem)
por outro tipo de propriedade (dinheiro, capital)”.
A desapropriação, longe de ser a negação do conceito liberal de propriedade, é sua
reafirmação. A grande novidade no conceito liberal é a livre disposição do bem, mas
o bem é sempre integrante de um patrimônio e o que está garantido com a
desapropriação é exatamente esse patrimônio. A desapropriação é entendida como
uma reparação de um dano patrimonial causado ao cidadão e, portanto, é uma
reafirmação da plenitude do direito de propriedade (MARÉS, 2003, p. 109)
Na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, a terra é trocada
por capital, seja na forma de dinheiro, seja na forma de Títulos da Dívida Agrária (TDA). É
por essa razão que a classe dominante agrária no Brasil, e na maioria dos países da América
Latina, não cogita de outra modalidade de reforma agrária que não seja baseada na
desapropriação, a qual consolida a noção de propriedade privada. (MARÉS, 2003).
Nesse sentido, o autor citado acrescenta que as normas jurídicas do país não admitiram
outra modalidade de reforma agrária que não fosse a baseada na desapropriação. Apesar de
alterar o regime jurídico do imóvel rural, a Constituição de 1988 foi devota da reforma agrária
de tipo capitalista, ao estabelecer que a propriedade que descumpre os requisitos da função
social será submetida à desapropriação agrária. O imóvel rural deve observar o elemento
86
econômico, o elemento ambiental e o elemento social para ser considerado cumpridor da
função social.
Embora uma importante conquista popular, especialmente se levarmos em
consideração que a cultura jurídica brasileira sacralizou o direito de propriedade, isto é, a
“redação do art. 184 alberga distorções e injustiças, porquanto „premia‟ o proprietário que
descumpre os requisitos da função social” (MARÉS, 2003, p. 109), E ainda,
A desapropriação usada nos casos de descumprimento da função social da
propriedade alimenta dois enormes defeitos e injustiças: primeiro, remunera a mal
usada propriedade, isto é, premia o descumprimento da lei, porque considera
causador do dano e obriga a indenizar o violador da norma, mas o Poder Público que
resolve por fim à violação; segundo, deixa a iniciativa de coibir o mau uso ao Poder
Público, garantindo a integridade do direito ao violador da lei (MARÉS, 2003, p.
110).
Nesse aspecto, existe grande diferença entre o Brasil e alguns países latino-
americanos. Enquanto a Constituição Mexicana e a Lei Boliviana afastaram a desapropriação,
por não reconhecer qualquer direito à terra que não estava sendo usada, a legislação brasileira
concede ao Estado apenas o direito de “comprar, pagando o preço a terra, cujo exercício do
direito de propriedade fosse contrário à lei” (MARÉS, 2003, p. 109).
Isso porque a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, no
Brasil, garante a integral recomposição patrimonial do expropriado. Para Marés (2003, p. 110)
o titular do direito perde o domínio, mas recebe outra propriedade, na forma de justa
indenização em títulos da dívida agrária. O papel da indenização expropriatória “é fazer entrar
no patrimônio do expropriado um valor exatamente equivalente ao apresentado pelo bem de
que foi despojado”. Assim, a real natureza da desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária é a “de troca de um bem (terra) por outro (capital, seja na forma de TDA ou
na de dinheiro)”.
Trocando em miúdos, o infrator da norma constitucional que estabelece os requisitos
da função social da propriedade não apenas é premiado com a desapropriação, como é
beneficiado com a incidência de juros compensatórios e moratórios. Para Melo (2000) a terra
que não cumpre a função social não deveria ser indenizada. Uma das maiores contradições da
CF de1988 é impedir que isso aconteça.
Esse fato é mais uma prova do apego dos juristas brasileiros à propriedade
individual, exclusiva e absoluta. Expressa também a força da classe dominante
agrária que, em pleno século XXI, logrou êxito em manter inalterada uma estrutura fundiária com mais de 133 milhões de hectares de latifúndios improdutivos
(SOUZA, 2007, p. 103).
87
Com efeito, embora a função social do imóvel rural seja amplamente reconhecida pela
jurisprudência e o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha consolidado o entendimento
segundo o qual, descumprida a função social - que é inerente ao direito de propriedade - é
legitima a intervenção do Estado no domínio privado, existe um grande desrespeito com
relação à lei de desapropriação. Uma das estratégias mais usadas para impedir a
desapropriação de imóveis que não cumprem sua função social é a judicialização da questão.
Essa tática arrasta por anos a desapropriação de áreas avaliadas e declaradas pela União
(INCRA) como improdutivas. A maioria dos decretos de desapropriação de terras foi barrada
no Supremo Tribunal Federal (STF). E aí os processos se prolongam, aumentando o
sofrimento e o descrédito das famílias acampadas (STÉDILE, 2003).
Segundo esse mesmo autor, de cada seis decretos assinados pelo presidente Luis
Inácio Lula da Silva, nos últimos cinco anos (2005/2009), um tratava da desapropriação de
propriedades destinadas para a reforma agrária. Em números absolutos, entre janeiro de 2005
e dezembro de 2009, a presidência da República baixou 3.615 decretos, sendo 603 declarando
o interesse social por imóveis avaliados pela União e considerados improdutivos, passivos de
desapropriação. Somente este ano, de 730 decretos sancionados, 130 versam sobre a
expropriação de terras. A sequência de despejos já ocorridos na área mostra que a vara de
conflitos agrários trata a situação como ocupação de Sem Terras e observa simplesmente a lei
da propriedade privada, sem observar a lei que trata da função social da terra.
Diante disso, Marés (2003) analisa:
Há uma espécie de código ideológico, que tem poder superior a qualquer código de leis, capaz de, pelo que se entende por “respeito à lei” (?) infringir as mais
elementares leis do respeito devido às pessoas. Trata-se de uma cultura jurídica
interpretativa dos fatos e das leis, que pré-julga, por uma síndrome medrosa e
preconceituosa, todo o povo pobre ativo - como são as/os sem-terra que defendem
seus direitos - fechado numa clausura de suspeita antecipada de que ele é, por sua
própria condição social, perigoso e tendente a praticar crimes. A mídia, com raras
exceções, se encarrega de alimentar esse preconceito, ao ponto de invadir cabeça e
coração de administradores públicos, juízes e formadores de opinião, na condição de
executores desse outro código (p.65)
Realmente, surpreende a rapidez com que as manutenções ou reintegrações são
disponibilizadas, cedendo-se às pressões dos proprietários e desconsiderando-se aspectos
fundamentais para o deslinde do caso, cuja gravidade imporia outro tipo de encaminhamento,
mais elaborado e que levasse em consideração a situação e o drama das famílias, a falta de
88
perspectivas (levá-las para onde?), as omissões dos poderes constituídos (como falar de
direitos para essas famílias?). Constantemente vivencia-se esse tipo de violência contra os
trabalhadores sem terra no sul e sudeste do Pará.
Fernandes (1998) defende a tese que toda medida poderia ser precedida por uma
inspeção judicial aos acampamentos, estabelecendo-se um contato direto de juízes e
promotores com o caso. Contentam-se com a prova da posse pelo proprietário (título),
comprovando-se, igualmente, a entrada nas terras, deixando de proceder à audiência de
justificação prévia e à intimação do INCRA, para que este ateste o cumprimento, ou não, da
função social por parte daquela propriedade. A prova da posse poderia esbarrar, por exemplo,
na questão dos falsos títulos ou dos inexistentes (situação muito presente na Amazônia Legal).
Mas não se dão a estes cuidados, determinando o despejo das famílias sem terra, com
emprego de força policial. Será que a reforma agrária é caso de polícia?
Nesse sentido, Dom Tomás Balduíno (2005, p.32), em entrevista à Revista Caros
Amigos, acrescenta:
Quando acontece despejo, o juiz não chega a examinar a coisa. Vê um papel na sua
frente e, mesmo que seja duvidoso, ele rapidamente despacha. Um juiz nos dizia
que, quando se trata de ação contra o MST, ele assina logo. Então há um preconceito
do Judiciário com relação aos sem-terra (CAROS AMIGOS, 2005, p. 32).
O grosso da atuação jurisdicional nos conflitos de terra orienta-se, então, pelo
formalismo, pela interpretação conservadora da legislação, pela valorização excessiva do
direito à propriedade em detrimento das finalidades sociais e da persecução do bem comum.
Por estas e outras “o Judiciário figura como espaço de legitimação dos interesses dos grandes
proprietários, recebendo a menção, nada honrosa, de ser uma cerca a mais do latifúndio”
(FERNANDES, 1998, p. 45).
Esse mesmo autor sinaliza que a concepção jurídica hegemônica, estruturada segundo
o modo de produção capitalista, cabe a tarefa de sustentar e proteger a propriedade privada
por todos os meios possíveis, emprestando-lhe um sentido absoluto, individual, exclusivo (nas
mãos de poucos), ilimitado, sagrado e incompatível com qualquer função social. Mantém-se
uma idéia que remonta ao iluminismo e às revoluções burguesas, mesmo com todos os
avanços teóricos, constitucionais e legais apontando em sentido oposto.
Cunha-se, por fim, um discurso ideológico de respeito a toda e qualquer
propriedade, sobretudo à propriedade da terra; mas ao mesmo tempo, assegura-se
que o acesso a ela será vedado aos segmentos marginalizados, o que é obtido pelo
89
estabelecimento da comercialização, como modo preferencial de adquiri-la, à custa de valores exorbitantes (SOUZA, 2006, p. 41).
Para dificultar ainda mais a desapropriação de áreas que não cumprem a função social,
conforme sublinhado no capítulo anterior, o Supremo Tribunal Federal deu aval a “Medida
Provisória (MP) antiocupações”, nº 2.027-40, editada no dia 29 de junho de 2000, pelo
presidente FHC, que em seu parágrafo 6º determina que:
O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à
desocupação do imóvel. A medida foi reeditada em abril de 2001, sob o número
2.109 e em agosto de 2001, sob o nº 2.183-56, hoje com o acréscimo de mais um
parágrafo que excluía do Programa de Reforma Agrária quem tivesse lote em
Assentamento ou pretendesse esse benefício e tivesse participado de invasão ou
esbulho de imóvel rural em processo de vistoria, além de quem estivesse em
processo de desapropriação ou tivesse participado de invasão de prédio público
(BRASIL, 2000).
Essa Medida Provisória além de proibir, por dois anos, as avaliações e vistorias em
terras invadidas e excluir do Programa de Reforma Agrária os que participarem de ocupações,
suspende os processos em tramitação durante as ocupações. De caráter eminentemente
político-repressivo, a MP objetivou especificamente garantir às autoridades federais
descumprir o preceito que determinou a implementação da política agrária, omissão
desmascarada pela ação dos trabalhadores rurais sem terra ao ocupar as áreas improdutivas e
descumpridoras da função social, e exigir sua desapropriação em obediência ao art. 184 da
Constituição Federal. Para conter a pressão crescente dos Movimentos Sociais por Reforma
Agrária, o governo FHC editou Medidas Provisórias que criminalizavam as ocupações.
De outro lado, encontra-se no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de
inconstitucionalidade patrocinada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
(CNA), que visa à dissociação entre função social e produtividade econômica, pedindo que o
Supremo declare que a propriedade economicamente produtiva não tenha a obrigação de
cumprir a sua função social ainda que para atingir os índices de produtividade ela tenha se
valido de degradação ambiental, trabalho escravo e violência contra a pessoa. Se houvesse a
possibilidade jurídica, o pedido seria, certamente, pela própria inconstitucionalidade da
função social da propriedade (SAUER, 2009).
O tema ganha relevância à medida que aumentam os conflitos fundiários de natureza
sócio-ambiental-cultural, além dos caracterizados pelo trabalho escravo. Para Sauer (2009) é
na temática da função social da propriedade que a bancada ruralista do Congresso Nacional
90
vem investindo, ao lado de temas como a transgenia, territorialidade e meio ambiente. Estão
em curso diversos projetos de lei no Congresso, entre eles o que transfere para o legislativo a
competência de decidir sobre a desapropriação e a atualização dos índices de produtividade.
Nota-se a estratégia coordenada entre a ocupação das pautas do Judiciário e Legislativo
simultaneamente.
Nesse sentido, no judiciário não se cogita a análise do cumprimento da função social
da propriedade para se deferir o mandato de reintegração de posse, como se posse e
propriedade fossem coisas absolutamente independentes. Sem a apreciação da função social
da propriedade na decisão de reintegração de posse, o judiciário acaba por proteger uma
inconstitucionalidade, ao passo que persegue e criminaliza uma manifestação social que se
orienta pelo cumprimento da Constituição. “Mais que paradoxal. isto representa que o
judiciário ainda não se adequou à ideologia Constitucional (SAUER, 2009, p. 124),
orientando-se pela manutenção das estruturas sociais que a própria Constituição tem por
objetivo fundamental erradicar.
Diante disso, o autor conclui que “o cumprimento integral da função social inexiste no
Brasil” (SAUER, 2009, p. 134). Chega a essa conclusão após verificar que, na prática, os
elementos, ambiental e social, da função social são considerados apenas para efeitos de
desapropriação, quando a propriedade descumpre também o elemento econômico, ou seja,
não atinge os índices de produtividade.
De acordo com a lei 8.629/93, os índices de produtividade deveriam ser revistos
periodicamente, levando em conta os avanços tecnológicos e o emprego de novos
conhecimentos na produção agrícola. Entretanto, por pressão do setor mais conservador do
país, está estacionado com índices referentes a 1975. Esses índices determinam se uma
propriedade é produtiva ou não. Atualizá-los significa avançar no processo de reforma agrária
no Brasil, considerando que os órgãos responsáveis por políticas agrárias passam a ter mais
agilidade e ferramentas para determinar que as propriedades cumpram sua função social ou
venham a ser desapropriadas para fins de reforma agrária.
Para Sauer (2009) a função social da propriedade, princípio constitucional que rege
todo e qualquer direito de propriedade de bens e imóveis e dá causa à desapropriação para fins
de reforma agrária, não encontrou na prática, a eficácia de suas dimensões do trabalho e do
bem estar.
Prossegue o autor:
91
A sociedade tem assistido os ataques ao Governo por parte de latifundiários
contrários à atualização desses índices. O próprio Ministério da Agricultura se
recusou a assinar a proposta para atualizar os índices de produtividade. Os
latifundiários, o agronegócio e a mídia conservadora não admitem que se cumpra a
Lei agrária, que determina a atualização regular dos índices de produtividade. [...].
Também não basta apenas atualização dos índices para fazer a Reforma Agrária. É
preciso mudar o modelo agrícola e cumprir a Constituição, que determina que sejam
desapropriadas as grandes áreas que não tem função social e não cumprem a lei
trabalhista, agridam o ambiente e estejam abaixo da média da produtividade. O
último censo do IBGE concluiu que temos menos de 15 mil latifundiários com áreas
maiores de 2.500 hectares, com um total de 98 milhões de hectares. É muita terra nas mãos de pouca gente, que nem mora no campo (SAUER, 2009, p. 139).
A atualização dos índices de produtividade da terra, tantas vezes protelada, é uma
exigência de justiça social. Mas a superação dessa arcaica estrutura agrária alicerçada no
latifúndio, não se concretizará apenas com os limites para a propriedade da terra consagrados
em nossa Constituição. A partir daí, outra luta será travada: fazer cumprir a Constituição.
Afinal, a luta não se encerra com a positivação de direitos. Nessa perspectiva, Stédile
(2003) adverte que não basta estar na lei para virar realidade. É preciso força de pressão social
para tirá-los do papel; garantir sua efetividade, evitando-se “as leis que não pegam” (p, 39);
negar vigência às disposições que vão de encontro aos anseios populares; modificar ou
incrementar a interpretação, estabelecendo outros usos; e para manter direitos fundamentais
que constantemente são ameaçados.
É preciso ter clareza das funções que a legislação desempenha numa sociedade de
classes: cristalizar os interesses hegemônicos ou espelhar conquistas populares. Portanto, a
atuação contra-hegemônica nesse sentido significa exigir o cumprimento daquilo que foi
estabelecido e não está sendo cumprido.
Afinal, a história não é escrita em uma única direção, de uma só maneira “e onde
existe hegemonia, poder, controle, vai sendo incubada a contra-hegemonia, surgindo espaços
e movimentos de resistência, contestação e luta social” (CÁRCOVA, 1996, p. 29-30), até a
desestabilização e derrocada de um sistema e substituição por outro.
Ou seja, o desenvolvimento da hegemonia não é linear, não é imune a ataques e
questionamentos, mas tem incrível capacidade de adaptação, de cooptação e de apropriação
daquilo que outrora a desafiava e que é funcionalizada em seu benefício. Por outro lado, é
prenhe de lacunas, brechas e omissões, o que abre as portas para questionamentos,
confrontações, ousadia, criatividade, experiências, projetos, ações que, mesmo inseridas nos
92
contornos hegemônicos, começam a apontar caminhos outros, mudanças, renovações e
oportunidades de transformar os limites em possibilidades (a história não acabou).
Todavia, os questionamentos fluem naturalmente. Qual seria a proteção/segurança
jurídica dos destituídos de terra, teto, alimentos e trabalho? Como exigir direitos e garantir
justiça social sem ressonância jurídica se as leis só “pegam” conforme os interesses
hegemônicos? O que de fato é legal ou ilegal? Não se consegue apanhar as respostas.
2.3 Política agrária e reforma agrária: realidade, bandeira de luta ou utopia
Guarda os teus sonhos, os sábios não os
têm tão belos como os loucos.
Baudelaire
Souza (2007) analisa que a questão agrária é uma expressão abstrusa, que sintetiza o
conjunto de problemas relacionados com a posse, domínio e concentração fundiária. Expressa
ainda a luta dos camponeses para garantir o acesso e a permanência na terra, fugindo da
pobreza rural. Na história da sociedade brasileira a questão agrária sempre foi tratada como
tema residual. Entretanto, de tempos em tempos, emerge no cenário regional e/ou nacional em
razão, dentre outros fatores, das crescentes mobilizações sociais e da intensificação dos
conflitos no campo.
O paradigma da questão agrária agrega três principais elementos: a desigualdade, a
contradição e o conflito. O desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo provoca a
destruição e recriação do campesinato, ocasionando a concentração da terra. Como
conseqüência nasce à luta pela terra produzindo, obviamente, o conflito. Esse processo é
inerente ao capitalismo, fazendo parte de sua lógica expansionista (FERNANDES, 2008).
Delgado (2005) acrescenta que o processo histórico do qual faz parte a questão agrária
na atualidade refere-se, basicamente, a penetração e à expansão do capitalismo no setor
agropecuário brasileiro. A grande concentração fundiária, vinculada ao poder do capital dos
proprietários, transforma o campo em extensas áreas improdutivas e com valor especulativo.
Dos 400 milhões de hectares titulados como propriedades privadas, apenas 60 milhões são
utilizados como lavouras, sendo que o restante destina-se à pecuária ou não é aproveitado.
93
Quase metade das terras agricultáveis, 46,8%, pertence a, aproximadamente, 1,6%
dos proprietários rurais, com imóveis acima de mil hectares. Já as propriedades com
até 10 hectares representam 32,9% do total de imóveis, mas detêm, apenas, 1,6% da
área total. [...]. Há latifúndios com área superior ao território de muitos países.
Estima-se que a área do latifúndio no Brasil corresponda a 2,05 milhões de
quilômetros quadrados, área maior do que todas as regiões do país, à exceção da
Região Norte. Nesse espaço caberiam Bélgica, França, Espanha e Alemanha, com
bastante folga (MELO, 2006, p. 25 - 41).
Segundo Martins (1994) em sociedades estrutural e historicamente oligárquicas, como
a brasileira, o domínio da propriedade, mormente da imobiliária rural, é fator de acesso a
outras formas de riqueza e benesses. Valoriza-se o detentor de grandes propriedades, mesmo
improdutivas. Toda essa associação produz uma cultura latifundiária, autoritária, violenta,
calcada no “mandonismo, clientelismo e coronelismo, que são sempre atuais” (p.43), apesar
de soarem como práticas ultrapassadas.
O oligarquismo brasileiro sempre teve uma cara moderna como fachada necessária
para preservar o atraso econômico do latifúndio e das relações sociais e de trabalho
nele baseadas. Isto é, para preservar mecanismos atrasados de acumulação de
capital, os mecanismos do nosso capitalismo rentista (MARTINS, 1994, p. 147).
Ao longo da história brasileira, a força duradoura da sua classe latifundiária tem
prejudicado as tentativas de democratização política e extensão igualitária dos direitos de
cidadania. Cartel (2010) certifica que hoje, não é incomum achar descrições do regime
contemporâneo brasileiro como uma democracia ancorada em um sistema oligárquico de
representação. Esse sistema é o resultado de uma antiga tradição elitista na política brasileira e
de arranjos institucionais criados durante o século XX que solaparam a participação política e
aos recursos públicos.
Frisa-se a correspondência entre o monopólio da terra e a representação política, o que
faz com que certas famílias, em cujas mãos encontram-se grandes latifúndios, tenham assento
quase permanente no Congresso Nacional e em outras esferas de poder (famílias Sarney,
Magalhães, Bornhausen, etc.). Martins (1994 pontua que o Congresso é composto por um
grupo de deputados e senadores de vários partidos, que formam a Bancada Ruralista e
defendem interesses dos latifundiários e do segmento patronal, pressionando o governo para
obtenção do perdão de dívidas e outros objetivos questionáveis. Cobram do Estado,
justamente, aquilo que negam aos trabalhadores rurais, as políticas públicas, o tratamento
diferenciado, subsídios etc.
94
É possível constatar que entre 1995 e 2006, a representação política média de camponeses sem-terra foi de apenas um deputado federal para cada 612 mil famílias.
Os grandes proprietários de terras, por outro lado, tiveram um deputado federal para
cada 236 famílias. Dessa forma, a representação política dos maiores latifundiários
do país foi 2.587vezes maior do que a dos camponeses sem terra. Como
conseqüência dessa distribuição desigual d poder, entre 1995 e 2005, os maiores
fazendeiros do país tiveram acesso a 1.582 dólares em gastos públicos para cada
disponibilizado aos trabalhadores rurais sem terra. Assim, as extremas disparidades
de poder político levaram ao que Galbrait (1987, p. 279) descreveu com fina ironia
como “socialismo para os ricos (CARTER, 2010, p. 217).
E são esses “grupos de interesses”, altamente refratários a qualquer tipo de mudança,
os responsáveis pela votação de projetos de leis e implantação de políticas públicas, dirigidas,
supostamente, a alterar e solucionar a situação no campo, o que bem retrata a dificuldade em
se lutar por modificações estruturais e direcionadas para os segmentos populares, junto às vias
institucionais. “A imensa e absurda concentração de terras garante incomensurável poder, não
sendo despiciendo mencionar que, dentro do sistema capitalista, terra é sinônimo de poder e
prestígio” (PRADO JR., 1981 p. 34).
Por isso, a questão agrária passa a ser pautada pelo debate sobre a posse da terra e a
relação íntima entre pobreza, fome, concentração de terra e de renda. No Brasil não restam
dúvidas sobre a relação direta entre a pobreza rural e a estrutura fundiária de alta concentração
de propriedade, assim como o modelo de produção predominante (VEIGA, 2000).
Daí porque Fernandes (2008) define o termo “questão agrária” da seguinte forma:
A questão agrária é o movimento do conjunto de problemas relativos ao
desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores,
que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações
capitalistas de produção. Em diferentes momentos da história, essa questão
apresenta-se com características diversas, relacionadas aos distintos estágios
do desenvolvimento do capitalismo (2001, p. 23).
Realmente, ela é um dos elementos estruturais do modo capitalista de produção, cujo
processo histórico de afirmação (acumulação primitiva ou originária) dá-se, em grande
medida, com a expropriação do produtor rural, do camponês (MARX, 1987).
Nessa mesma lógica, Martins (1997) ao conceituar a questão agrária, sobrepõe:
Ela é essencialmente uma questão política em qualquer país. Surge com o
desenvolvimento do capitalismo, em consequência do obstáculo que a propriedade
territorial e o pagamento da renda da terra ao proprietário representam para a
reprodução ampliada do capital e à acumulação capitalista na agricultura (p.11- 12).
95
Diante dessas concepções, Stédile (2005) sistematiza as diferentes interpretações por
áreas de conhecimento:
Na literatura política, a questão agrária relaciona-se ao estudo dos problemas que a
concentração da propriedade da terra traz ao desenvolvimento das forças produtivas
e sua influência no poder político. [...]. Na Sociologia, a questão agrária é utilizada
para explicar as formas como se desenvolvem as relações sociais na organização da
produção agrícola. [...]. Na História, o termo contribui para esclarecer a evolução da
luta política e da luta de classes pelo domínio e controle dos territórios e da posse da
terra. (p. 15).
Para Fernandes (2001) os problemas referentes à questão agrária estão relacionados,
essencialmente:
À propriedade da terra, consequentemente à concentração da estrutura fundiária; aos
processos de expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais:
camponeses e assalariados; à luta pela terra, pela reforma agrária e pela resistência
na terra; à violência extrema contra os trabalhadores, à produção, abastecimento e
segurança alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e seus
padrões tecnológicos, às políticas agrícolas e ao mercado, ao campo e à cidade, à
qualidade de vida e dignidade humana. Por tudo isso a questão agrária abrange a
dimensão econômica, social e política (p. 23-24).
Desta feita, para esse autor, importa contextualizar a questão agrária em face da
realidade brasileira, traçando características que se têm mostrado perenes: a negação do
acesso à terra a uma parte considerável da população, variados processos de expropriação,
vergonhosa e perversa concentração fundiária, a exploração do trabalho rural, violência
perpetrada contra camponeses, trabalhadores rurais, movimentos sociais do campo e todos os
que se opõem às injustiças aí verificadas (sindicalistas, religiosos, advogados etc.), expulsão
de homens e mulheres do campo, sem esquecer as implicações oriundas do agronegócio.
Para Fernandes (2001) a estrutura agrária do país, ou seja, a forma como a terra está
dividida, apenas reflete a estrutura social e de classes, marcadas por alta e absurda
concentração de renda e por profundas e gritantes desigualdades. De outra parte, o
entendimento dessas mazelas é fundamental para o seu enfrentamento. O paradoxo é que as
questões mais atuais e prementes são justamente aquelas que se colocam como problemas dos
mais antigos, para os quais muito já se propôs e muito pouco se concretizou. Abordar essas
questões significa, portanto, desnudar as relações mesmas de poder desta sociedade.
Assim, quando falamos em questão agrária no Brasil estamos nos referindo às
contradições geradas a partir da concentração da propriedade da terra no país, que resultou na
expropriação de milhões de camponeses. Com a expropriação surge também a resistência dos
96
trabalhadores. Segundo Fernandes (2001) é nesse processo histórico que ocorre a formação
camponesa no Brasil, ou seja, desde a resistência negra e indígena à escravidão até as
ocupações dos trabalhadores sem-terra, o camponês busca resistir e se reproduzir enquanto
sujeito social .
É no interior desse processo desigual que se desenvolvem a exploração econômica, a
exclusão cultural e a dominação política, gerando os conflitos e a resistência. No cerne desse
processo formam-se também diferentes movimentos sociais que inauguram novas situações,
desenvolvem outros processos (FERNANDES, 2001).
A luta pela terra está assentada nesse processo contraditório de desenvolvimento do
capital que, ao mesmo tempo em que se expropria abre possibilidade histórica do retorno a
terra. Isso permite compreender os conflitos fundiários constantes no Brasil como parte de
uma luta histórica que vem desenhando novos contornos, em virtude das transformações
contemporâneas no campo brasileiro.
Se a mundialização da economia capitalista traz à tona novos sujeitos sociais e
novas articulações, igualmente e contraditoriamente, traz também à tona a luta de novos personagens sociais: basta olharmos para o México, e lá estão os Zapatistas8
em luta. Com certeza a história não acabou, e muito menos a utopia (OLIVEIRA,
1991, p. 11).
Martins (1997) reforça que a questão agrária brasileira abarca dois processos
combinados: a expropriação e a exploração. Ou seja, a concentração da propriedade fundiária
faz com que os pequenos produtores sejam expulsos da terra, que é o seu principal
instrumento de trabalho, em favor dos latifundiários. Esse processo, segundo Martins (1991) é
realizado por grandes empresas capitalistas nacionais ou multinacionais, com incentivos
financeiros do Estado, o qual ocorre de diferentes maneiras, no país inteiro.
Na visão deste autor, a expropriação é intrínseca ao processo de expansão capitalista,
sendo um componente da lógica de reprodução do capital. A separação entre o trabalhador e a
produção é o processo inicial para que se instaure o domínio do capital e o desenvolvimento
do capitalismo. O trabalhador livre, proprietário de si mesmo, inteiramente despossuído dos
meios de vida necessários à sobrevivência, além de liberto de outros laços de dependência
8 Segundo Oliveira (2008) o Zapatismo nasceu para mostrar novos sinais e novos signos do mundo dos
excluídos. O Zapatismo colocou para o mundo mundializado pelo capitalismo neoliberal, novas formas de luta
para se compreender e transformar o mundo. A rebeldia dos povos indígenas mexicanos está colocando o mundo
intelectual e político a ter que compreendê-lo e junto com eles os movimentos sociais que surgem em diferentes
partes dos países do mundo. Eles têm diferenças e semelhanças. Suas formas de lutas são diferentes e
semelhantes, porque lutam por direitos fundamentais negado pela etapa moderna do imperialismo: o
neoliberalismo.
97
pessoal, que não a mera dependência econômica, vê-se obrigado para sobreviver, a vender aos
proprietários dos meios e condições de trabalho, a sua energia vital, a sua força de trabalho
(MARX, 1985). Mesmo com o fim da escravidão, o então chamado trabalhador livre continua
separado dos meios de produção e também da força de trabalho - que ele passa a vender.
Para Martins (1997) a questão agrária no Brasil surge quando a propriedade da terra:
Ao invés de ser atenuada para viabilizar o livre fluxo e reprodução do capital, é
enrijecida para viabilizar a sujeição do trabalhador livre ao capital proprietário de terra. Ela se torna instrumento de criação artificial de um exército industrial de
reserva, necessário para assegurar a exploração de força de trabalho e a acumulação.
A questão agrária, curiosamente, foi ganhando visibilidade à medida que
escasseavam as alternativas de reinclusão dos expulsos da terra. Portanto, entre nós,
ela é a face escamoteada da questão do trabalho que se manifesta na exclusão social
(p. 12).
O desenvolvimento do modo capitalista de produção no campo se dá inicialmente pela
sujeição da renda da terra ao capital quer pela compra da terra para explorar ou vender, quer
pela subordinação à produção do tipo camponês. Assim o fundamental para o capital é a
sujeição da renda da terra, pois a partir daí, ele tem as condições necessárias para sujeitar
também o trabalho que se dá na terra. “Primeiramente, o capital sujeita a renda da terra e em
seguida subjuga o trabalho nela praticado” (OLIVEIRA, 1991, p. 49).
Apesar de considerar o progresso de generalização das relações capitalistas de
produção, Martins (1991) aponta para a necessidade de se compreender a especificidade da
expansão do capitalismo na agricultura, centrada na sujeição da renda da terra ao capital e na
contradição terra/capital. Isso significa que a apropriação capitalista da terra (por meio da
compra) vai transformá-la em um equivalente de capital, tornando possível a subordinação do
trabalho agrícola. A renda que será paga ao proprietário da terra não nasce na produção, ela
somente será transferida ao proprietário no momento da distribuição da mais-valia,
considerando que não é na produção que a mais-valia é originada, mas é somente na
circulação da mercadoria que ela se realiza. O capitalista, para concentrar a exploração
capitalista, não precisa concentrar a propriedade da terra, basta apenas pagar a renda e alugar
parcelas de terras. No entanto, caso imobilize dinheiro na compra da terra, estará comprando o
direito de extrair renda da sociedade. , renda capitalizada. Por conseguinte, estará deixando a
condição de capitalista para se tornar proprietário da terra e capitalista.
Ainda segundo esse mesmo autor, a propriedade da terra é uma contradição do
capitalismo, já que ela cobra um tributo do capital, mas não é de forma alguma resquício, uma
excrescência. Ela é uma figura de dentro do capitalismo. A condição capitalista da terra está
98
inerente, oculta. Daí, porque Martins (1991) acredita ser fundamental separar produção do
capital e reprodução capitalista do capital. A primeira nunca é produto de relações capitalistas
de produção. Para ele, não só relações não-capitalistas podem ser dominadas e reproduzidas
pelo capital, como é o caso da produção familiar do tipo camponesa, como também
determinadas relações podem não parecer integrantes do processo capital, embora o sejam,
como é o caso da propriedade capitalista da terra.
Assim, este autor utiliza a sujeição da renda da terra ao capital para explicar a lógica
das relações camponesas e da propriedade fundiária, demonstrando que a produção
camponesa se expressa enquanto produto e contradição da expansão capitalista. A
propriedade da terra no Brasil aliou-se ao capital moderno e acabou perpetuando a presença
viva e atuante de estrutura do passado, tendo como conseqüência as relações políticas arcaicas
que agem sorrateiramente, capturando as lutas sociais de profundo caráter transformador.
Oliveira (2007) sustenta que a base teórica para compreender o campo brasileiro, está
na compreensão da lógica do desenvolvimento capitalista moderno, que se faz de forma
desigual e contraditória. Ou seja, o desenvolvimento do capitalismo, e sua conseqüente
expansão no campo, se fazem de forma heterogênea, complexa e, portanto plural. Este quadro
de referência teórica está, portanto, no oposto daquele que vê a expansão homogênea, total e
absoluta do trabalho assalariado no campo com característica fundante do capitalismo
moderno.
Desta forma, o capitalismo brasileiro trabalha com o movimento contraditório da
desigualdade no processo de seu desenvolvimento. Ou seja:
No caso brasileiro o capitalismo atua desenvolvendo simultaneamente, na direção do
trabalho assalariado no campo em várias culturas e diferentes áreas do país, como
ocorre, por exemplo, na cultura da cana-de-açúcar, da laranja, da soja, etc. Mas, por
outro lado, este mesmo capital desenvolve de forma articulada e contraditória a
produção do camponês (OLIVEIRA, 2007, p.131).
Daí porque podemos afirmar que a expansão do capitalismo é desigual e contraditória,
ou seja, o capital ao se reproduzir reproduz suas contradições, criando e recriando as relações
não-capitalistas de produção. Oliveira (1991) destaca que o campo tem sido um dos lugares
privilegiados da reprodução dessas relações não-capitalistas. Portanto, não podemos
compreender o campesinato, sua reprodução, como fora do capitalismo, mas sim, como uma
classe social de dentro do capitalismo.
99
O processo de desenvolvimento contraditório ocorre por meio de formas articuladas
pelos próprios capitalistas que se utilizam dessas relações de trabalho não tipicamente
capitalistas (arrendamento de terras, meação e parceria), para não investirem na contratação
de mão de obra uma parte do seu capital (MARTINS, 1997). Por isso, o capitalismo não é
capaz de conter apenas um modelo de relação social.
Nesse sentido, Oliveira (1991) explicita:
Um fazendeiro que desenvolve pecuária de corte [...] precisa ter sempre em boas
condições as pastagens de sua propriedade e manter um conjunto de trabalhadores
assalariados para cuidarem do rebanho. Quando as pastagens estiverem desgastadas [...] elas terão que ser refeitas [...]. Para refazer a pastagem o fazendeiro pode
deslocar ou contratar trabalhadores assalariados para arar a terra, adubá-la e semear
capim, esperá-lo crescer, para depois soltar novamente o gado na área. Nem sempre
isso ocorre, muitas vezes, esse fazendeiro, ao invés de destinar uma parte de seu
capital para realizar a tarefa de refazer o pasto, arrenda a terra a camponeses sem-
terra ou com pouca terra na região, para que eles façam o trabalho por ele. Esse
arrendamento pode ser de várias formas, entre elas a de dividir parte da produção
obtida no solo durante uma colheita de algodão, amendoim, milho etc. O fazendeiro
entra com a terra e por isso recebe metade, ou um terço ou um quarto ou uma
porcentagem previamente estipulada da produção obtida. Também, pode cobrar uma
quantia em dinheiro pela cessão da terra. No primeiro caso, temos a parceira e no segundo a renda em dinheiro. Em seguida o camponês planta, por um ano ou menos
ainda, um produto na terra que era ocupada pela pastagem. Após a colheita, ou ele
entrega parte da produção ao fazendeiro ou vende a safra e paga em dinheiro a
quantia estipulada previamente no contrato de arrendamento. Em seguida semeia o
capim na terra e devolve a área ao fazendeiro, que aguardará apenas o crescimento
do capim e terá o pasto reformado, sem que para tal, tenha gasto parte de seu capital
(OLIVEIRA, 1991, p. 19).
Essa é uma das formas de exploração do sistema predominante. O próprio capitalista
lança mão de relações de trabalho e de produção não-capitalistas para produzir o capital.
Diante desse contexto é que os trabalhadores rurais têm criado diversas formas de resistência,
durante toda a sua história, por meio das lutas sociais no enfrentamento com o Estado, com os
proprietários de terra e capitalistas.
Oliveira (1991) aponta essa questão teórica como fundamental para apanharmos a
essência da agricultura camponesa no Brasil, pois a manutenção de relações não-capitalistas
de produção ocorre mediante esforços dos trabalhadores na busca de espaços para se
reproduzirem.
Nesse contexto, Fernandes (1996) ressalta que a análise da agricultura camponesa não
pode ser a mesma da lógica dos conceitos componentes na agricultura capitalista, pois quando
os camponeses adquirem a terra por meio de compra (quando isso é possível) ou por herança,
esta não entra no cálculo econômico para definir os custos da produção.
100
Essa abordagem valoriza a dimensão política do campesinato, isto é, sua resistência e
sua particularidade histórica, representando as transformações desses sujeitos sociais no
campo brasileiro, que lutam contra as cercas dos latifúndios ao longo dos séculos.
As lutas pela terra e pela reforma agrária se inserem em um contexto de
transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da modernidade ocidental (SAUER,
2005). Estas transformações são exacerbadas pelo que, mais recentemente, se tem
denominado de globalização. Esta globalização constitui re-arranjos nos processos de
acumulação do capital que atingem todas as dimensões da vida, inclusive o meio rural
brasileiro.
A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital,
um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que no passado
garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu
todo à lei do valor, no pressuposto de que toda atividade social é mais bem
organizada quando organizada sob a forma de mercado. A conseqüência principal
desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das
oportunidades produzidas pela globalização neoliberal no interior do sistema
mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais
entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país
(SANTOS, 2003, p. 30).
É fundamental considerar que as lutas sociais no campo não se restringem “a lutas pela
propriedade privada e pelos valores tradicionais camponeses” (SAUER, 2005, p.15).
Transcendem ao acesso aos meios de produção e se transformam em um processo de
construção de sujeitos políticos, recriando relações sociais e transformando o espaço rural na
constituição de uma nova ruralidade.
Outro pressuposto teórico importante, desenvolvido por Martins (1991), é o caráter
rentista do capitalismo no Brasil. Isto que dizer que no Brasil o desenvolvimento do modo
capitalista de produção se faz, principalmente, através da fusão9 em uma mesma pessoa do
capitalista e do proprietário de terra. Este processo que teve sua origem na escravidão vem
9. No entanto, foi na segunda metade do século XX que essa fusão ampliou-se significadamente. Após a
deposição, pelo golpe militar de 64, do Governo de João Goulart, os militares procuraram re-soldar esta aliança
política, particularmente, porque durante o curto Governo de João Goulart, ocorreram cisões nas votações do
Congresso Nacional em questões relativas a questão agrária. Principalmente, quando uma parte dos congressistas
votou a legislação sobre a Reforma Agrária. Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou no
sentido da transformação dos latifúndios em empresários capitalistas, mas, ao contrário, transformou os
capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do centro-sul do país, em proprietários de terra, em latifundiários
(MARTINS, 1991).
101
sendo cada vez mais consolidado, desde a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre,
principalmente com a Lei de Terras e o final da escravidão.
No entanto, foi na segunda metade do século XX que essa fusão ampliou-se
significadamente. Após a deposição, pelo golpe militar de 64, do Governo de João Goulart, os
militares procuraram re-soldar esta aliança política, particularmente, porque durante o curto
Governo de João Goulart, ocorreram cisões nas votações do Congresso Nacional em questões
relativas a questão agrária. Principalmente, quando uma parte dos congressistas votou a
legislação sobre a Reforma Agrária. Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou
no sentido da transformação dos latifúndios em empresários capitalistas, mas, ao contrário,
transformou os capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do centro-sul do país, em
proprietários de terra, em latifundiários (MARTINS, 1991).
Para Martins (1991) a formação do campesinato no Brasil10
deve ser entendida a
partir da etapa concorrencial do capitalismo, já que a grande propriedade, dominante em toda
a história, se impôs como modelo socialmente reconhecido, no qual recebeu estímulo social
expresso nas políticas públicas, „modernizando-se‟ e dessa maneira, garantindo sua
reprodução.
O campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais
da história da agricultura brasileira, o seu quadro colonial que se perpetuou como uma
herança, após a independência nacional e a dominação econômica, social e política do grande
proprietário, bem como a marca da escravidão e a existência de uma enorme fronteira de
terras livres passíveis de serem ocupadas (MARTINS, 1986).
Assim, a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro da
criação/destruição /recriação das relações sociais como a propriedade camponesa, a posse,
arrendamento, a meação e a parceria. Ao mesmo tempo em que o capital destrói o
campesinato em um lugar ele recria em outro. Ou no mesmo lugar em outro tempo. Dessa
10
O campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais da história da
agricultura brasileira, o seu quadro colonial que se perpetuou como uma herança, após a independência nacional
e a dominação econômica, social e política do grande proprietário, bem como a marca da escravidão e a
existência de uma enorme fronteira de terras livres passíveis de serem ocupadas (MARTINS, 1986). Assim, a
história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro da criação/destruição /recriação das relações
sociais como a propriedade camponesa, a posse, arrendamento, a meação e a parceria. Ao mesmo tempo em que
o capital destrói o campesinato em um lugar ele recria em outro. Ou no mesmo lugar em outro tempo. Dessa
forma, pode-se compreender destruição do campesinato pela territorialização do capital, bem como o processo
de recriação do campesinato, onde o capital se territorializou (Fernandes, 2000).
102
forma, pode-se compreender destruição do campesinato pela territorialização do capital, bem
como o processo de recriação do campesinato, onde o capital se territorializou (Fernandes,
2000).
Para discutir a gênese da questão agrária, esse autor reforça a necessidade e
importância de compreendê-la enquanto um processo histórico conseqüente da solução dada
ao escravismo, uma vez que a “nossa história social, desde a dissolução da sociedade
escravista, tem sido essencialmente uma história de desincorporação daqueles que o trabalho
livre descartou ou tornou descartável” (MARTINS, 1994, p.14).
Isso produz os chamados excluídos, que são os incluídos num sistema desigual e
injusto ocupando funções subalternas, condição indispensável para a acumulação capitalista.
Os trabalhadores são expropriados da produção de subsistência e de suas bases fundiárias. As
terras não são mais reservadas para a produção de alimentos e, aos poucos, transformam-se
em mercadoria. Para Marx (1985):
A transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é a ruína final da velha
aristocracia e o aperfeiçoamento final da aristocracia do dinheiro. Na propriedade feudal ou tradicional da terra produz uma aparência familiar entre o possuidor e a
propriedade. A transformação da terra em mercadoria, que responde ao toque do
dinheiro, a converte em mera riqueza coisal, despindo-a de qualquer coloração
política, assim como no lugar do casamento de honra com a terra se instale o
casamento por interesse (p. 136).
Sauer (2005) em seus estudos sobre a questão agrária afiança que ela está no centro da
constituição do Estado republicano brasileiro e permanece até hoje como base de poder
político e exclusão social. Stédile (2005) acrescenta que os problemas sociais de hoje têm
suas raízes no processo de sustentação da estrutura social que vem permeando a nossa
história. Mas, os enigmas que se encontram na raiz da questão agrária brasileira têm início
com a chegada dos colonizadores portugueses no Brasil.
Entretanto, Martins (1997) acredita que a questão agrária propriamente dita
aparece em meados do século XIX, com o processo de abolição da escravidão e a edição da
Lei de Terras de 1850. Essa Lei organizou a propriedade privada e impediu o acesso à terra
aos que não a podiam comprar, forçando os negros e pobres livres, inclusive os imigrantes
europeus, a trabalhar para os grandes proprietários.
Vários foram os movimentos de luta e libertação dos trabalhadores rurais, desde os
idos coloniais. Para analisar a luta pela terra no Brasil a partir de 1850, Stédile (1993) procura
classificá-la em três etapas distintas, sendo a primeira fase de 1850 a 1940, com o surgimento
103
das lutas “messiânicas (Canudos e Contestado). A segunda etapa de 1940 a 1955 quando
ocorrem as “lutas radicais localizadas” (p. 36) marcadas por violentos conflitos nos quais
fazendeiros e empresas expulsavam posseiros que viviam nas terras há anos. E a terceira fase
de 1955 a 1964, marcada pelo movimento de trabalhadores organizados, tendo como
destaques: a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), as Ligas
Camponesas e os Movimentos dos Agricultores Sem Terra (MASTER) que tiveram uma
atuação mais específica no Rio Grande do Sul (CORAZZA, 2003).
O cenário delineado aponta que as transformações nas relações de trabalho no campo,
assim como os conflitos e a luta pela terra, acompanharam a intensidade das intervenções do
capital estatal e privado rumo ao desenvolvimento do capitalismo no espaço agrário, uma vez
que em meados do século XX vários estudos apontavam a estrutura agrária extremamente
concentradora como elemento limitante ao processo de industrialização do país (Silva, 1981).
A tese de Medeiros (1987) assevera que o debate em torno da questão agrária adquiriu
novos contornos a partir da década de 1960, em decorrência da luta engendrada pelas Ligas
Camponesas, associações de lavradores e outros movimentos sociais no campo. Essas
organizações estimularam a resistência na terra e colocaram o tema da reforma agrária na
pauta nacional.
Para Delgado (2004) a reforma agrária é uma possibilidade de solução para a questão
agrária, destacando que, na segunda metade do Século XX, quatro grupos distintos
protagonizaram o debate no Brasil. Um dos grupos vinculava-se à Igreja Católica, motivado
por sua doutrina social. O outro era coordenado pela Comissão Econômica para a América
Latina (CEPAL). O terceiro ligava-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No quarto
grupo estavam intelectuais que se opunham à reforma agrária como um fator econômico
capaz de promover o desenvolvimento.
A Igreja Católica não propiciou um debate sistemático sobre a questão agrária,
tampouco organizou uma proposta de reforma agrária. Sua contribuição, no entanto, foi muito
importante para a luta dos trabalhadores rurais. Além de enfatizar a função social da
propriedade, incorporada ao texto do Estatuto da Terra (1964) e da Constituição Federal de
1988, as pastorais sociais, em especial a Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975,
tiveram destacada atuação na formação e organização dos camponeses e trabalhadores rurais.
Embora, ainda que não dispusesse de um projeto próprio, a Igreja Católica sempre apresentou
posições claras defendendo a reforma agrária (Souza, 2007).
104
O grupo ligado à CEPAL defendia a necessidade de uma mudança na estrutura
fundiária e nas relações de trabalho no meio rural. Segundo Delgado (2004), “as teses da
CEPAL atribuem ao setor agrícola uma tendência de gerar tensões estruturais sobre a inflação
e crises freqüentes de abastecimento de alimentos” (p.11). Os intelectuais ligados ao PCB, em
especial Caio Prado Junior e Alberto Passos Guimarães, com diferentes concepções ou
ênfases, foram os que mais avançaram na compreensão da questão agrária brasileira. Um dos
aspectos de maior destaque nessas discussões foi a importância ou o lugar da reforma agrária
no processo de desenvolvimento econômico brasileiro.
Caio Prado Junior (1981) acastelava a tese de que a estrutura fundiária impunha
condições subumanas de vida e trabalho à maioria da população do campo. Esse autor
identifica a tendência de crescimento do assalariamento dessa população, o que pressupunha
uma legislação trabalhista capaz de proteger os trabalhadores rurais. Por isso, definia como
prioridade a luta pela extensão dos direitos trabalhistas à população rural, enquanto o outro
militante do PCB (Guimarães) defendia a tese da reforma da estrutura fundiária como
condição ao desenvolvimento.
Segundo Souza (2007) os economistas conservadores, entre os quais Roberto
Simonsen e Delfim Neto, defendiam a viabilidade de modernizar a produção agropecuária,
aumentar a produção e a produtividade da terra, sem realizar a reforma agrária. Essa tese
selou-se vitoriosa com o golpe militar de 1964, resultando em um modelo agropecuário que
foi capaz de „modernizar‟ o campo sem democratizar a estrutura fundiária. Chamado de
“modernização conservadora” da agricultura, esse modelo aprofundou a concentração
fundiária, o êxodo rural e a pobreza no campo.
Nessa perspectiva, Sauer (2005) destaca que esse padrão de desenvolvimento
agropecuário da chamada Revolução Verde resultou no
reforço de um modelo industrial concentrador, predatório e excludente. Este
modelo seguiu a lógica dominante de privilegiar a política de investimentos
no setor industrial voltado para o desenvolvimento dos centros urbanos,
transformando o atraso do meio rural no contraponto ideal, imagem e
representação de como o desenvolvimento moderno não poderia ser (p.11).
Após a modernização conservadora, no período militar, pregou-se que a reforma
agrária já não era uma necessidade de desenvolvimento do capitalismo, como ocorrera em
outros países, pois mesmo com a propriedade concentrada (latifúndio), o sistema havia
conseguido aumentar a produção e as exportações, aplicando novas técnicas (agronegócio) e
105
uma reforma agrária poderia reverter esse caminho. Dizem tratar-se de mera bandeira política,
manipulada pelos movimentos sociais e que não haveria espaço e nem seria o caso de se falar
em problema agrário. Quando muito, defendem-se projetos de assentamento como meio de se
diminuir os conflitos na zona rural (STÉDILE, 2002).
O regime militar perseguiu e reprimiu duramente os movimentos sociais de luta pela
terra. As Ligas Camponesas, por exemplo, foram destroçadas. A conjuntura internacional
marcada pelo conflito político-ideológico da “guerra-fria”, que opunha Estados Unidos e
União Soviética, favorecia a ação dos militares, já que a política agrária era tida como
reivindicação de comunistas (Souza, 2007).
Diante das contradições do modelo agropecuário e da repressão do governo militar, os
camponeses e trabalhadores rurais começaram a se reorganizar para resistir e lutar por terra,
dando origem a entidades e movimentos sociais que recolocaram a reforma agrária no cento
das atenções nacionais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é fruto
desse processo.
Na década de 1990, o modelo agropecuário surgido nos anos 1960 se aprofundou e
passou a ser denominado de “agronegócio”. Frente a isso, Fernandes (2005) sustenta que:
A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura
capitalista, para modernizá-la. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador,
predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter
produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias.
Da escravidão à colheitadeira controlada por satélite, o processo de exploração e
dominação está presente, a concentração da propriedade da terra se intensifica e a
destruição do campesinato aumenta. O desenvolvimento do conhecimento que
provocou as mudanças tecnológicas foi construído a partir da estrutura do modo de
produção capitalista. De modo que houve o aperfeiçoamento do processo, mas não a
solução dos problemas socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade, o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade
(p. 11).
De fato, a política de reforma agrária no Brasil tem vínculos estreitos com seus
legados autoritários e patrimoniais. O atual modelo de desenvolvimento rural do país, fundado
na promoção do agronegócio e na proteção das grandes propriedades de terras, foi
desenvolvido e financiado pelo regime militar. Desde então a inércia conservadora do Estado
se manteve sem grandes alterações, apesar da democratização do regime político, das leis
favoráveis à reforma agrária e da expressiva demanda popular por terra (FERNANDES,
2005).
106
A restauração do regime democrático em 1985 permitiu a eleição de cinco presidentes
civis com orientações partidárias e políticas distintas. Todos eles, porém, de José Sarney a
Luiz Inácio Lula da Silva, mantiveram de uma forma ou outra uma política agrária
conservadora. Embora com discursos favoráveis a uma reforma fundiária, na prática todos
esses governos implementaram uma política caracterizada por:
repartição de terras por pressão social, processos administrativos lentos e
complicados, violações freqüentes de direitos humanos com ampla impunidade, distribuição residual de terras, e escasso apoio aos assentamentos – persistiram ao
longo de todos os governos federais estabelecidos entre 1985 e 2009, com algumas
diferenças perceptíveis entre essas administrações [...], sendo a administração do
governo Lula, em alguns aspectos, menos conservadora que seus antecessores
(Carter, 2009, p.297).
No Brasil, os defensores da propriedade privada como direito individual e absoluto
foram historicamente hegemônicos, de sorte que as poucas iniciativas governamentais
relacionadas à reforma agrária não lograram êxito. Foi assim durante os governos Jango, com
as reformas de base, e Sarney, com o I PNRA, e está sendo assim na gestão de Luiz Inácio
Lula da Silva (CARTER, 2009).
Os contornos da questão agrária no início do Século XXI estão totalmente atrelados à
modernização conservadora da agricultura. O modelo dominante agropecuário continua
hegemônico, a reforma agrária não foi realizada e a concentração fundiária permanece como
uma das mais elevadas do mundo. Como aponta Martins (1995), na história brasileira, a
questão fundiária está intimamente vinculada à organização política do país e nos pactos do
poder. Ou seja, a concentração fundiária está intimamente relacionada a determinadas formas
de exercício de poder, ao culto ao direito de propriedade sem limites e, portanto, à exclusão
social.
A reforma agrária é necessária para o desenvolvimento do país, mas há uma
resistência homérica em efetivá-la, talvez o Brasil seja o único e o último país de dimensões continentais que ainda resiste à Reforma Agrária, o qual ainda tenta,
enfim, a ela se opor (FERNANDES, 1998, p. 74).
Stédile (1993) sinaliza que para os projetos políticos dos grupos hegemônicos, a
reforma agrária pode até ter perdido a razão, mas, não obstante, continua sendo uma
necessidade dos trabalhadores rurais, dentro de um desenvolvimento sócio-econômico de
outro tipo. Importa delinear qual modelo de reforma agrária é perseguido.
Para Fernandes (1998), a luta pela reforma agrária, nesses termos, seria mais ampla e
englobaria a luta pela terra. De todo modo, diz o autor, as duas são complementares e
107
indissociáveis. O objetivo imediato é o acesso à terra física, que interessa diretamente aos
trabalhadores envolvidos; o mediato é a reforma agrária, reforçada por outras políticas
públicas que proporcionem uma alteração profunda da estrutura fundiária, apresentando-se
como de interesse de toda a sociedade.
O autor acima analisa também que o latifúndio representa um vazio e quando ele é
dividido e ocupado por outros atores, deve ser preenchido com uma série de políticas públicas
visando à sua emancipação (crédito, subsídios específicos, eletrificação, saneamento,
educação, assistência técnica, postos de saúde, políticas de preços etc.).
A reforma agrária, assim, é entendida como uma verdadeira política de Estado,
envolvendo ministérios, secretarias, instituições, verbas no orçamento – insuficiente em todos
os governos. “O foco é direcionado à pequena produção, à agricultura familiar, em
contraponto à agricultura de grande extensão, revertendo-se o predomínio desta” (VEIGA,
2002, p. 91), mas sem abrir mão dos incrementos tecnológicos, observando-se o
desenvolvimento sustentável e respeito ao meio ambiente. Nestes termos, a finalidade é a
conquista da terra de trabalho, de moradia, de onde se retira o sustento digno, garantindo-se a
produção de alimentos.
Não se trata, portanto, de uma reforma agrária como política compensatória que
expressa um processo de controle social dos movimentos camponeses pelo estado, sob
influência direta do capital. A política compensatória é uma forma de tratamento terminal do
campesinato. “A aposta no fim do campesinato não se efetua como se tem esperado, de modo
que a política compensatória mantém os movimentos na UTI” (FERNANDES, 2005, p. 10).
A reforma agrária pensada como política de desenvolvimento econômico insere-se em
uma lógica que se contrapõe a do agribusiness. A tese de que o Brasil caminha rapidamente
para um processo inexorável de urbanização, segundo Dias (2006), coloca a distribuição de
terras como um anacronismo, em que a mesma não cumpre os seus objetivos sociais e, de
certa forma, atrapalha o desenvolvimento econômico do país.
Por outro lado, a reforma agrária como revolução política de transformação
socioeconômica expressa um processo de enfrentamento permanente. Essa compreensão é
defendida por movimentos camponeses, especialmente os vinculados à Via Campesina. A
posição está fundada na diferenciação do campesinato pela renda capitalizada da terra. Essa é
a essência da questão agrária e sua solução só é possível com a superação do modo capitalista
de produção.
108
Para Oliveira (2009) não se pode confundir reforma agrária e revolução agrária. A
primeira seria um programa de governo, plano de atuação estatal, mediante a intervenção do
Estado na economia agrícola, mas apenas para promover a repartição da propriedade e da
renda fundiária (renovação da estrutura fundiária vigente). Ou seja, a reforma agrária provoca
alterações na estrutura fundiária sem alterar o modo capitalista de produção existente em
diferentes sociedades. Já a revolução agrária implica necessariamente, na transformação da
estrutura fundiária realizada de forma com toda a estrutura social existente, visando à
construção de outra sociedade.
A concepção de reforma agrária que se tem postulado no Brasil, até pelas esquerdas,
e a Constituição consagrou (art. 189), reforça o modo de produção capitalista, na
medida em que se pleiteia a redistribuição da terra em favor de unidade de produção
familiar, o que difunde e consolida a propriedade agrária e cria resistências a uma
transformação de tipo socialista (SILVA, 2005, p. 821).
O MST entende que reforma agrária não é só distribuição de lotes de terra em projetos
de assentamento, que tem sido a política oficial. Por isso, ao lado de um amplo programa
regionalizado de desapropriações, com a célere distribuição para todas as famílias sem terra,
colocam:
As políticas de crédito (democratização do capital); o subsídio para a aquisição de
máquinas e equipamentos; a definição de um limite para a propriedade rural;
proibição de projetos de colonização com transferência de populações, pois esta
acaba revelando-se solução artificiosa e danosa; política agrícola dirigida ao
pequeno produtor (apoio, estímulo, assistência técnica adequada); autonomia para
áreas indígenas, com urgência nas demarcações; áreas de irrigação no Nordeste
(democratização da água e da terra); investigação e punição dos crimes contra trabalhadores rurais; expropriação de áreas onde se constate trabalho escravo;
combate à pobreza e às desigualdades; democratização da educação (STÉDILE,
1993, p. 39-47).
A reforma agrária nos moldes apresentados pelo MST traduz um exercício de
cidadania e uma luta contra a pobreza, fome, desemprego, pela soberania e segurança
alimentares e contra o desrespeito aos direitos humanos.
Como não se restringe ao campo, muito menos é uma necessidade apenas dos sem
terra, camponeses ou trabalhadores rurais, a luta traz a necessária interação com a
cidade – criou-se até mesmo um termo específico, o “rurbanismo”. Por essa razão,
defendem que ela é travada fortemente no campo, mas é ganha nas cidades (OLIVEIRA, 2002, p. 54).
A proposta que aqui se defende, é que ela também engloba a luta pela construção e
concretização de outra concepção do Direito e, por conseguinte, de novas relações jurídicas.
109
Para Carter (2010), por definição, reforma agrária implica o envolvimento do Estado na
reestruturação de relações de direito de propriedade ou, no mínimo, na regulamentação dos
termos de posse no campo, em favor dos trabalhadores rurais. “Na ausência do Estado,
alterações como essas só poderiam ocorrer por meio de guerras, apropriações de terra e outras
expressões de força bruta” (p. 48). O Estado pode, em última instância, legitimar os resultados
dessas lutas, pois toda reforma agrária deve ser sancionada pelo Estado, consoante
expectativas e demandas da sociedade. Por isso, a execução de reformas agrárias implica uma
combinação de impulsos por parte do Estado.
O padrão de modernização neoliberal não abarca o conjunto da sociedade de forma
igual. Embora as diferentes leituras contidas nos projetos políticos e territoriais que acreditam
na agricultura camponesa como modelo de desenvolvimento ou que a vêem como uma
política de controle social do capital percebe-se que os debates são realizados muito mais em
torno de questão e reforma agrária, do que em torno de uma política abrangente que possa
garantir os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo.
A reforma agrária, proposta pelos movimentos sociais, que em principio é um meio
para distribuição igualitária de terra, passa a ser um fim, explorado politicamente pelos meios
de comunicação, entidades da sociedade civil e por alguns políticos. Isso reduz a discussão e
o entendimento sobre a necessidade de uma política efetiva e eficaz que envolve outras tantas
políticas, na perspectiva de garantir o protagonismo da população campesina, que até então
tem uma subordinação à vida urbana.
A Reforma Agrária não deve então ser entendida somente como uma política de
redistribuição de terras, mas sim como uma política necessariamente acompanhada de uma
reforma agrária com profundas transformações nos sistemas de produção, comercialização e
infra-estrutura voltados para a agricultura familiar no País. Agregando ainda o acesso aos
recursos naturais, às tecnologias, ao mercado e, segundo Leite (2006), principalmente à
distribuição do poder político.
Para que a reforma agrária cumpra efetivamente seu papel de mudança no modelo de
desenvolvimento do País é necessário também a construção de outro modelo agrícola,
envolvendo fatores como a viabilidade de sistemas de produção alternativos à agricultura
predominante, o estímulo à estruturação do mercado interno dos produtos agrícolas e a
eficiência de políticas de assistência técnica e preservação ambiental.
110
No traçado do desenho da realidade agrária brasileira, apanhado nos matizes das diversas
correntes teóricas pesquisadas, foi possível perceber que ao longo da história tem persistido a
excessiva concentração de terras, e apesar das lutas que resultaram em alguns avanços, a ausência
de uma efetiva política de reforma agrária tem resultado em graves problemas de distribuição de
renda e justiça social. E constituído-se em óbice ao progresso social e econômico da sociedade.
Por isso, Stédile e Fernandes (1999, p. 162) asseveram que “a reforma agrária deve ser
sintetizada na luta contra três cercas: a cerca do latifúndio, a cerca do capital e a cerca da
ignorância”. Assim, além de democratizar a terra para eliminar a pobreza e a desigualdade, é
preciso também democratizar o capital, os outros meios de produção e a educação.
Miguel Carter (2010), numa abrangente análise dos impedimentos à reforma agrária no
Brasil, destaca que a solidez dessas barreiras que ajudam a sustentar as desigualdades agrárias
no país se relaciona à combinação de quatro características básicas: seus aspectos
multidimensionais, sistêmicos, históricos e políticos. Os dois primeiros elementos apontam
para um conjunto diversificado e inter-relacionado de fatores que funcionam em uma
complexa teia de sinergia. As características históricas e políticas dizem respeito ao impacto
da tradição, a trajetória de desenvolvimento, instituições e práticas que definem a distribuição
de poder na sociedade e na política.
Para esse autor a análise dos obstáculos à reforma agrária no Brasil requer um
entendimento dos níveis e elementos multidimensionais da análise em questão.
Esses diversos obstáculos funcionam de forma sistêmica. Eles não agem em
isolamento, mas estão interconectados de varias maneiras. Assim, eles tendem a
criar um ciclo auto-sustentado que reforça os impedimentos e a resistência à
mudança. Por meio de numerosas afinidades eletivas e estratégicas, eles sustentam
os interesses dos grandes proprietários de terra no Brasil (CARTER, 2010, p. 513).
Os principais obstáculos à reforma agrária no Brasil são também de natureza histórica,
tais como: o modelo de desenvolvimento excludente desta nação, suas acentuadas
desigualdades sociais, a influente classe de grandes proprietários rurais, expansão do
agronegócio, política oligárquica, fraca representação de setores populares na sociedade civil
e política, sistema judiciário conservador e proteção ineficaz do Estado de direitos humanos
que têm profundas raízes no passado do Brasil (CARTER, 2010).
Para esse estudioso da questão agrária, as barreiras à reforma agrária têm ainda um
iminente caráter político. Elas se relacionam a lutas mais amplas de poder na sociedade,
“definidas por configurações de classe e conflitos políticos por acesso à proteção do Estado”
111
(CARTER, 2010, p. 517). Além disso, estão vinculadas a uma série de mecanismos e práticas
convencionais que limitam a representação política dos interesses populares. Entre esses
fatores, podemos salientar a tradição patrimonialista no Brasil; um aparelho burocrático de
Estado fragmentado e politizado; o peso da representação da elite agrária no Congresso; um
sistema partidário fraco; o clientelismo político; a frequente prática de compra de votos; o alto
custo das campanhas eleitorais; e o oligopólio dos meios de comunicação.
Todos esses mecanismos têm reforçado um sistema político no qual predomina como
”um governo dos poucos para poucos” (CARTER, 2010, p. 517). As possibilidades de
impulsionar uma reforma agrária se reduzem de forma previsível quando oponentes
conservadores recorrem a esses e outros instrumentos políticos para abafar as tentativas de
mudanças. Assim, as barreiras à reforma agrária no Brasil têm vínculos estreitos com seus
legados históricos autoritários e patrimoniais.
Mas, com todas essas barreiras será que ainda há alternativas pela via institucional para
alcançar a reforma agrária?
Como afirma Frei Beto (2006) em sua obra “A Mosca Azul” citado por Oliveira (2009):
parece que a sina dos que lutam por uma verdadeira política agrária tem que ser aquela de nunca
perder a esperança. Aliás, como ele mesmo escreveu: “A esperança é um pássaro em vôo
permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe
nenhuma barreira” (p 189). Ou ainda, como diz um trecho da música “O bêbado e a equilibrista”
de João Bosco e Aldir Blanc: “A esperança dança na corda-bamba de sombrinha, / em cada
passo dessa linha. Pode se machucar. Azar! A esperança equilibrista sabe / que o show de
todo artista tem que continuar.”
Afinal, “outro mundo é possível”. A luta pela reforma agrária é um caminho
imprescindível para conquistar este outro mundo. Sua semente está sendo plantada, há
tempos, “por pessoas de carne e osso, imbuídas da inafastável esperança de que o
extraordinário se torne cotidiano e a vida, mais humana” (FERNANDES, 2002, p. 24). É
tarefa utópica, não como algo irrealizável, mas no sentido de que a reforma agrária pode ser
feita através da luta popular.
Nas palavras de Stédile (2002):
E o devir/porvir depende do maior acúmulo possível de reflexões e atuações
transformadoras (práxis), passando, inexoravelmente, pela realização da reforma agrária sendo a história um processo de incertezas (obra de seres humanos), a utopia
ainda faz com que se caminhe e que se acredite (p. 321).
112
É fundamental, portanto, que seja mantida e/ou aflorada à capacidade de indignação e
o inconformismo. Que destino dar então à reforma agrária? A resposta ficará na dependência
daquilo que seus atores puderem concretizar na caminhada histórica pela afirmação e
concretização de direitos,
[...] ou se sucumbe às delícias do mercado diante do aparentemente inexorável
avanço do neoliberalismo ou da neobarbárie, ou então os que estão dispostos a não
sucumbir como indivíduo, como cidadão, como categoria, como classe, retornarão a
empunhar as bandeiras do direito, da liberdade e da igualdade. (PRESSBURGER,
1996, p. 290).
Eis o desafio!
113
CAPÍTULO III
A LUTA PELA TERRA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO NA REFORMA
AGRÁRIA
Evidentemente que só lutam por direitos
aqueles que deles são carecedores [...].
(Miguel Pressburger)
3.1 A luta pela terra como uma reação contra-hegemônica
O presente tópico tem como finalidade apontar movimentos e expressões de lutas que
denunciaram e resistiram às injustiças inerentes ao sistema capitalista, descritos nos capítulos
anteriores e que buscaram, e ainda buscam, a democratização do acesso à terra e melhores
condições de existência no campo, rompendo com as estruturas convencionais. Desafiando e
criando novas formas de organização, os trabalhadores rurais se engajam num novo processo
de luta e conquista da terra.
A luta pela terra remonta raízes no processo histórico de formação da sociedade
brasileira e latino-americana em que grupos alijados e historicamente excluídos
empreenderam diversas formas de resistência, não aceitando, resignada e passivamente, o
“destino” de meros expectadores dos fatos, por mais que a versão oficial insista em reproduzir
relatos de apatia e conformismo. Essa luta de milhões de camponeses manifesta na resistência
contra a perda das condições objetivas, sobretudo a terra.
A luta pela conquista da terra travada pelos pobres do campo contra a classe
latifundiária está presente em todos os momentos de nossa história, desde o remoto
passado até os nossos dias. Ela é o fio condutor ao qual estão ligados todos os
acontecimentos marcantes da vida rural brasileira; é o fator determinante e o
elemento propulsor das insuficientes, mas significativas, transformações por que tem
passado nossa agricultura (GUIMARÃES, 1997, p. 215)
Assim, no limiar do século XXI, a vitalidade da luta pela terra é uma das facetas do
padrão de desenvolvimento concentrador de riqueza que caracterizou a sociedade brasileira. O
tema da reforma agrária continua presente no debate político brasileiro, impulsionado pelas
lutas que se concretizam nos acampamentos e nas ocupações de terra.
Medeiros (2003) aponta que o tema da reforma agrária tem sido cada vez mais
articulado, no debate político, ao das opções em torno de formas de desenvolvimento,
tornando-o uma questão relevante não apenas para o vasto contingente dos que demandam
114
terra, mas também para o conjunto da sociedade. São esses os componentes que tornam a
reforma agrária uma bandeira de luta que ultrapassa fronteiras nacionais e permite a
construção de uma linguagem comum entre povos profundamente diferentes nas suas
histórias e culturas.
No entanto, muitas vezes, no debate político ela acaba sendo apresentada em termos
que reduzem a sua riqueza de significados: Política compensatória, condições para a
ampliação da agricultura familiar, caminho para o combate à pobreza no campo,
inserção de pequenos agricultores de forma competitiva no mercado. A reforma
agrária tem um pouco de cada um desses componentes, mas é também um caminho
para garantir a dignidade a um contingente dos que querem fazer da terra seu lugar
de reprodução (MEDEIROS, 2003, p. 94-95).
Stédile (1993) aponta a luta ampliada por terra e política agrária como uma condição
fundamental para a democracia e transformação social,
trazendo em seu bojo, como vivência ou como potência, valores e princípios, hábeis
a constituir mulheres e homens novos: solidariedade, companheirismo, autonomia,
estudo, trabalho, democracia interna, valorização do coletivo, participação de todos
na tomada das decisões e enfrentamento de todas as formas de desigualdades (p. 56).
Nessa perspectiva, a demanda por reforma agrária é uma das faces da luta contra a
desigualdade econômica, social e cultural e, portanto, uma das ferramentas da construção de
uma efetiva democracia, baseada na possibilidade de contínua expansão e criação de direitos.
Sob essa perspectiva,
sua permanência no vocabulário das lutas sociais deve ser entendida não como o
resquício do velho, mas, por sua plasticidade, como uma palavra capaz de abrigar o
novo. Em nosso país, o velho a ser superado no campo é o recurso à violência, a
formas indignas de trabalho, o não reconhecimento de direitos (MEDEIROS, 2003,
p. 95)
A resistência, individual ou coletiva, à vergonhosa e perversa monopolização da terra,
aos abusos e violações a uma parte considerável da população, aos variados processos de
expropriação, exploração do trabalho rural, violência perpetrada contra camponeses,
trabalhadores rurais e todos os que se opõem às mais variadas formas de injustiças, expulsão
de homens e mulheres do campo, é uma reação contra-hegemônica, desde que se proceda a
uma análise dialética e relacional dos fenômenos, podendo afirmar que, onde há poder,
também há contra poder e onde impera a concentração de terras, irá explodir o seu contrário,
na forma de luta popular (GUIMARÃES, 1997).
115
Longe de aflorar a polêmica sobre a existência, ou não, de um campesinato brasileiro,
nos moldes postos na Europa feudal e moderna, trata-se, sobretudo, de pessoas que vivem do
campo e no campo, ou daqueles que aí desejam voltar. Conforme Silva (2004) há diversas
categorias - proprietários minifundistas, trabalhadores sem terra, assalariados, posseiros,
meeiros - que apresentam, sim, diferenças, mas que empreendem uma luta fundamental, que
os identifica a todos sob a denominação de pobres do campo. Daí porque emprega-se os
termos “camponeses”, “trabalhadores rurais”, “ trabalhadores do campo”, como expressões
sinônimas.
Nesse sentido, Martins (1995) destaca o protagonismo das classes populares do campo
como produtoras de história, refutando-se uma interpretação urbana sobre os movimentos
sociais, arraigada de preconceitos, prenhe de dúvidas sobre sua capacidade organizativa e
sempre identificando o meio rural como lócus do atraso, da ignorância e do entrave às
mudanças, numa patente exclusão ideológica do camponês, como descreve o autor:
Essa exclusão ideológica é tão profunda, tão radical, que alguns dos mais
importantes acontecimentos políticos da história contemporânea do Brasil são camponeses, e, não obstante, desconhecidos não só da imensa massa do povo, como
também dos intelectuais, exceção feita a este ou aquele que por razões profissionais
se vê obrigado a saber de certas coisas (MARTINS, 1995, p. 25-26).
Como exemplo de manifestações coletivas que, ao longo da história nacional,
contribuíram como símbolo e acúmulo de forças (campo de pressão popular), para a formação
dos atuais movimentos de luta pela terra e reforma agrária, dentre os quais destaca-se o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Corazza (2003) enfatiza: as lutas
indígenas e as lutas negras no período colonial e imperial, os conflitos e revoltas que
abordaram - ainda que indiretamente - a questão agrária, tais como: Cabanagem (no Pará e
Amazonas), Farropilha (no Rio Grande do Sul), Sabinada (na Bahia), Balaiada (no Maranhão,
Piauí e Ceará), Guerra dos Marimbondos (na Zona da Mata de Pernambuco).
Nos anos da República, a autora mencionada destaca as lutas messiânicas, fortemente
marcadas por líderes religiosos, tendo como movimentos mais importantes, com grande
repercussão nacional: os de Canudos (na zona de latifundiários da Bahia) e o Contestado (no
Paraná e Santa Catarina), e ainda a luta do Cangaço11
(no Sertão Nordestino).
11
A discussão mais recente sobre formas de protesto social tem possibilitado uma releitura do ciclo do Cangaço,
que procura negar o caráter criminoso de algumas de suas manifestações, ressaltando o aspecto de ter sido um
movimento agrário em defesa dos oprimidos rurais, que nasceu da disputa pela terra naquela região. Embora essa
perspectiva crítica não desconheça seus aspectos contraditórios, de revolta contra o excesso de pobreza,
116
O período posterior, que se estende até o golpe militar de 1964, é marcado por revolta
de posseiros e arrendatários, em vários Estados, como meio de se contrapor às expulsões e
lutar pela permanência na terra. Os posseiros passaram a resistir, coletivamente, povoando o
período com inúmeras revoltas: em Trombas e Formoso (GO); em Teófilo Otoni (MG); a
revolta de Dona “Noca” (MA), entre outras. Estas lutas, apesar de localizadas, tiveram caráter
de massa e envolveram milhares de pessoas. No “Paraná e Maranhão, elas atingiram um
patamar de grande significado político e de controle camponês sobre áreas liberadas, como a
tomada de cidades e implantação de poderes paralelos” (CORAZZA, 2003, p. 36). Esse
período é também marcado pelas Ligas Camponesas.
As ligas surgem no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, depois se
espalham por diversos outros Estados, já que não eram permitidos sindicatos rurais – o que
mudou depois, com Jango. Até o início dos anos de 1960, juntamente com o Partido
Comunista Brasileiro (PCB), representaram a principal força política no campo, repercutindo
vivamente e abalando os centos do poder, tendo importância crucial na história da luta pela
terra (MARTINS, 1995).
No tema específico da reforma agrária, as Ligas Camponesas passaram a defender que
ela fosse feita e controlada pelos trabalhadores, cunhando um lema que teve impacto
considerável na época: “reforma agrária na lei ou na marra”. Essa bandeira foi tida por
radical, já que conduzia a
uma proposta de revolução camponesa, enquanto que a estratégia do Partido
Comunista caminhava na direção de uma coexistência pacífica com a burguesia, que
deveria resultar numa revolução democrática burguesa (MARTINS, 1995, p. 78).
Em relação ao movimento sindical de trabalhadores rurais, teve grande relevância à
criação da CONTAG, em 1963, que nasceu no interior das ligas camponesas e que também
encapou a luta pela reforma agrária.
Também adquiriu relevo, conforme grifado no primeiro capítulo, a criação da
ULTAB, entidade fundada pelo PCB, em 1963, e que defendeu a modificação da estrutura
agrária brasileira e a organização dos trabalhadores rurais, em aliança com os operários
urbanos; e o MASTER, movimento que surgiu no Rio Grande do Sul, no início da década de
1960, com apoio do governador, Leonel Brizola, e de seu Partido Trabalhista Brasileiro
reparação de injustiças e questionamento do poder dos coronéis, de um lado, e o fato de que muitos grupos
estavam a serviço dos poderosos, de outro; ora estavam próximos do povo, ora dos coronéis (STÉDILE, 1993, p.
18).
117
(PTB), quando posseiros foram despejados e começaram a acampar próximo aos latifúndios
improdutivos, pedindo a desapropriação do imóvel. Esse movimento inaugurou uma forma de
luta que é a principal tática dos movimentos de hoje: a ocupação de terras e o acampamento,
como meios de pressão, visando a reforma agrária (MARTINS, 1995).
Para esse autor, mesmo com o refluxo dos movimentos, a resistência não deixou de
existir e se manifestou nos mais diversos setores que, após os primeiros revezes, voltaram a se
mobilizar e pressionar, tendo a reforma agrária como mote. A retomada das lutas sociais no
campo e o surgimento de outros movimentos populares e sindicais (metalúrgicos do ABC, por
exemplo), e a criação da CPT (1975) inseriram-se num espectro maior de lutas, tendo em mira
a redemocratização do país.
Além dos movimentos e organizações sindicais, a reforma agrária era reivindicada e
debatida por outras entidades, como a ABRA, que reunia técnicos, intelectuais, professores
universitários. Segundo Stédile, (2002, p. 310-311) a igreja progressista teria ocupado posição
de destaque na zona rural, naquele momento, pois ela era o único ator progressista de alcance
nacional.
A partir de 1978, cresce o número de manifestações, conflitos e lutas, em todos os
estados, aumentando, também, o número de ocupações de terras, com algumas conquistas. Já
no início da década de 1980, passam a ocorrer encontros entre as lideranças dessas
experiências localizadas, mediados pela CPT, o que vai dar base para a realização do I
Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel-PR, no ano de 1984, quando
ocorreu a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O lema desse
encontro foi: “Terra não se ganha, se conquista” (MARTINS, 1995, p. 103).
Vale lembrar que, com a derrocada do regime militar, os movimentos sociais, até
então amordaçados, se rearticularam inaugurando uma nova fase na luta pela terra no Brasil.
Esta luta adquiriu solidez após 1985, com a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), que se tornou o maior movimento social organizado do país.
O MST passou a lutar contra o modelo de desenvolvimento econômico hegemônico,
ou seja, contra o capital mundializado, construindo sua organização e formas de atuação.
Como bem assinala Fernandes (2000), este movimento tem como principal referência a luta
pela terra, uma importante dimensão da questão agrária, mas sua luta envolve também
questões relacionadas à conquista da terra, aos recursos para viabilizar o projeto de
assentamento e à reprodução dos assentados.
118
Assim, a luta do MST não se circunscreve apenas à terra, embora esta seja a principal
reivindicação posta em evidência. O Movimento, em seu processo evolutivo, transferiu o
enfoque da luta pela terra à construção de uma sociedade superior, mais justa e igualitária.
Voltou-se para o desenvolvimento de uma nova forma de produção da vida, fundamentada em
relações de produção, nas quais os trabalhadores controlam o processo produtivo, em especial
aquelas que contemplam o trabalho coletivo. Esta concepção depreende-se do fato de que o
processo de reconstrução da sociedade está intimamente ligado às relações de produção
estabelecidas, tendo como premissa que o modelo de produção capitalista é gerador de
desigualdades e, portanto, amplia a divisão entre as classes sociais (FERNANDES, 2000).
Este postulado fundamenta-se na tese marxista de que no processo de produção e
reprodução da sociedade burguesa, através da produção de mais-valia, se produz
concomitantemente os elementos necessários à superação do modo de produção capitalista.
Nas palavras de Stédile (2002) a produção e reprodução da sociedade capitalista constituem-
se no tempo e no espaço de negação do capitalismo, com a degeneração do trabalho
individual enquanto fonte da vida e sua substituição pelo trabalho social, ou seja, coletivo.
O MST constitui-se numa das expressões da degeneração da sociedade capitalista,
pois, unifica em torno de um objetivo comum pessoas excluídas por aquele sistema. A
crescente acumulação de riquezas nas mãos de poucos (os capitalistas) é responsável pelo
aumento da exclusão social de muitos (os trabalhadores). Para Fernandes (2000), como os
trabalhadores representam o fundamento da existência da sociedade burguesa, a crescente
impossibilidade de se reproduzir, caracteriza a negação do próprio sistema.
[...] A negação da sociedade capitalista pelo socialismo não significa supressão da sociedade humana, mas apenas a supressão de certos aspectos determinados de uma
das fases de sua evolução. E também não significa de modo algum a supressão de
todos os aspectos que distinguem a sociedade capitalista da forma social que a
precedeu [...] (KAUTSKY, apud STÉDILE, 2005, p. 221).
Analisando o MST, Fernandes (1999) reforça que este Movimento enseja a
possibilidade de ruptura com o sistema capitalista que o criou. Sua formação, ao estar
imbricada com a conscientização2 da condição de marginalização, impõe a conscientização da
possibilidade de transformação da estrutura agrária vigente e, em conseqüência, da sociedade
e do espaço. Estas modificações estão no seio da luta entre classes, representada no campo
brasileiro pelos sem terra, pequenos produtores rurais, grandes proprietários e Estado.
Corroborando com Fernandes, Coelho (1996) afirma:
119
As lutas de classe são [...] expressões das rupturas dos velhos arranjos de poderes e a
emergência de novos, que aí tentam se impor [...], determinando assim uma
(re)organização do território (p. 257).
Souza (1998) defende a tese de que os movimentos sem terra são movidos por um
critério próprio do justo e do jurídico, obtido em oposição às situações de injustiça e de
negação de direitos que sofrem – sentem e sabem muito bem, o quanto são injustiçados,
preteridos e excluídos. Injusta é a concentração de terras, a violência que sofrem, os mandos e
desmandos, o descaso ou apatia dos órgãos governamentais. Justa é a luta pela superação
desse estado de coisas.
Por essas características, o MST desponta como importante ator na cena política atual,
organizando os destituídos de terra e dignidade. Muitos de seus membros são filhos de
famílias camponesas, que tiveram de sair das terras e para elas querem voltar, outros
enxergam no movimento uma oportunidade para fugir das agruras do desemprego e da
exclusão.
A luta pela reforma agrária põe à mostra as injustiças sociais que campeiam na
concentrada estrutura fundiária brasileira. Mas, mais do que isso, é uma luta pela
inclusão social, pela possibilidade da participação produtiva e criativa, na sociedade,
dos que dela têm sido sistematicamente excluídos por um processo econômico
perverso e pela dignidade da pessoa humana (ALFONSIN, 2003, p.288).
Mas, o surpreendente sucesso do Movimento está estreitamente ligado à sua
capacidade de se engajar em uma forma particular de luta social: o ativismo público. Como
Carter (2010) explica:
Essa abordagem à luta social envolve uma forma organizada, politizada, visível,
autônoma, periódica e não violenta de assumir o caráter social. O objetivo é atrair a
atenção pública, influenciar as políticas do Estado e persuadir outros atores sociais.
O ativismo público combina ações de pressão sobre o Estado, amparadas em um
amplo repertório tático de contestação, e o empenho recorrente por negociar com
suas autoridades. O ativismo público do MST tem sido fundamental para o
restabelecimento da reforma agrária na agenda pública do Brasil. Ele teve papel
decisivo na criação de mais de 2.000 assentamentos agrícolas ligados ao MST, entre
1985 e 2008, beneficiando cerca de 40.000 mil famílias. [...]. Ademais, a política de
pressão e atividades de lobby do MST contribuíram de modo significativo para uma distribuição sem precedentes de recursos públicos à população pobre do campo, por
meio de compra de terra, programas de crédito para a produção agrícola, moradia e
projetos educativos, o desenvolvimento da infraestrutura rural, à assistência técnica
e a criação de cooperativas [...].
120
Ao contrário da opinião de seus críticos conservadores, a adoção do ativismo público
por parte do Movimento tem, na realidade, contribuído para o avanço da democracia no Brasil
ao:
Fortalecer a sociedade civil brasileira através da organização e incorporação de
setores marginalizados da população; promover um processo civilizador no campo
[...]; realçar a importância do ativismo público como catalisador do desenvolvimento
social [...]; facilitar a extensão e o exercício dos direitos básicos de cidadania (
direitos civis, políticos e sociais) entre os pobres; salientar a responsabilidade vital
do Estado para a proteção dos direitos humanos e a promoção de reformas que
acrescentem a igualdade social; destacar o valor da educação [...]; gerar um sentido
de utopia, esperança e afirmação de ideais que impregnam o processo de democratização do Brasil [...].
Desta feita, a luta pela reforma agrária no Brasil sugere que o ativismo público pode se
revelar um instrumento indispensável para reduzir a desigualdade em sociedades marcadas
por disparidades extremas no acesso à riqueza e ao poder. Tudo isso implica também que a
tentativa de “promover reformas só por meios afáveis, institucionalizados e de cima para
baixo muito provavelmente acabam em promessas vazias ou iniciativas inócuas” (CARTER,
2010, p. 517).
O sem terra é o indivíduo (ser) com suas aptidões, expectativas, sonhos, força e
fraquezas, mas também é o militante, o componente de um movimento social (ser social e
político), cuja identidade é moldada na persecução daqueles objetivos, nas histórias de vida,
nas relações que travam (com a terra, com companheiros, com adversários, com o sistema
capitalista), nas ocupações, acampamentos, assentamentos e confraternizações. Em síntese,
“na própria caminhada de expropriação, exploração, resistência e tentativa de superação”
(BORGES, 1997, p. 17; SADER, 1988, p. 55-56).
Como bem analisa Alfonsin (2003):
O “sem” de sua denominação denota, sim, o que eles não têm, mas, ao mesmo
tempo, mostra aos que têm direito, justamente o acesso à terra e à vida com
dignidade no campo. Estes são direitos humanos fundamentais, não porque
encontram respaldo numa ordem natural, superior, imutável, muito menos porque se
encontram previstos em declarações de direitos ou constituições, mas porque são
aspirações legítimas, que viabilizam a existência humana (301).
A luta pela materialização e fruição dessas aspirações, fundada numa concepção
concreta de justiça – nenhum trabalhador sem terra e nenhuma terra sem trabalhador – tem
como conseqüência, a instituição de direitos, que adquirem maior substrato, na medida em
que se afirmam e se renovam em outras e sucessivas lutas. A luta pelo direito a ter direitos,
121
consubstanciada nas ocupações de terras e outros meios coletivos de pressão e protesto social,
cria direitos e é condição para sua efetivação (ALFONSIN, 2003, p. 301).
Stédile e Fernandes (2004), a exemplo de Martins, têm demonstrado que as lutas
camponesas ultrapassam a simples demanda por terra porque são lutas pela libertação e
emancipação humanas. Estas lutas em busca de sobrevivência e reprodução social não se
restringem à dimensão econômica, mas incluem demandas por saúde, educação, justiça, paz.
São lutas que reivindicam integração política, [de] emancipação, (isto é, de libertação
de todos os vínculos de dependência e submissão), [de] reconhecimentos como
sujeitos de seu próprio destino e de um destino próprio, diferente, se necessário
(Martins, 1994, p. 159), possibilitando processos sociais e políticos de recriação do
rural e de uma nova realidade (Martins, 1994, p. 159).
No contexto de globalização, a luta pela terra materializa a luta por um lugar,
buscando melhores condições de vida (cidadania) e transformando as conquistas em
processos de apropriação de territórios, ou seja, em reterritorializações. As mobilizações,
articulações e lutas dão protagonismo social e político às organizações agrárias. Martins
(1994) enfatiza que este protagonismo representa também um processo pedagógico que
transforma as pessoas em atores e sujeitos de suas próprias biografias. Isso faz dessa luta um
movimento moderno que permite releituras e consolidação de novos valores no meio rural, o
que não dilui diferenças, mas estabelece novas inter-relações entre campo e cidade.
Para Stédile (2002) as políticas de distribuição fundiária foram sempre precedidas por
ocupações de terra e outras táticas de pressão por parte dos camponeses, entre elas: as
manifestações massivas e diretas, na forma de ocupações de terras, praças e prédios públicos,
acampamentos, assentamentos, marchas, caminhadas, passeatas, bloqueios de rodovias, entre
outras, almejando estabelecer um contato com a sociedade (mostrar que existem e têm
problemas) em um canal de diálogo e negociação com as autoridades, para acelerar os
trâmites e obter o acesso à terra, que só é conquistada após intensa e vigorosa pressão.
Ao apresentar a ocupação como forma de acesso a terra, esta é compreendida como
ação de resistência essencial à formação campesina no interior do processo contraditório do
desenvolvimento do capitalismo. Sobre isto afirma Oliveira (1991):
O Capital não expande de forma absoluta o trabalho assalariado, sua relação de trabalho típica, por todo lugar, destruindo de forma total e absoluta o trabalho
familiar campesino. Ao contrário, este, o capital, se cria e recria para que sua
produção seja possível, e como ela pode ter também uma criação, de novos
capitalistas (p.20).
122
As ocupações de terras no Brasil têm sido uma das principais vias de acesso à terra
que os camponeses sem terras encontraram nas últimas décadas.
No Brasil, a ocupação se converteu em uma forma importante de aceder a terra. Nas
últimas décadas, a ocupação de latifúndios tem constituído a principal ação na luta
pela terra. Por meio das ocupações, os sem-terra espacializam a luta, conquistando a
terra e territorializando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(FERNANDES, 2000, p. 46).
Sobre o processo de ocupações de terra, no qual as famílias organizam o espaço de
luta e resistência para a conquista da terra, Fernandes (2000) explicita:
A ocupação é uma ação que inaugura uma dimensão do espaço de socialização
política: o espaço de luta e resistência. Esse espaço construído pelos trabalhadores é
o lugar da experiência e da formação do Movimento. A ocupação é o movimento.
Nela fazem-se novos sujeitos. A cada realização de uma ocupação de terra, cria-se
uma fonte geradora de experiências, que suscitará novos sujeitos, que não existiram
sem essa ação. A ocupação é a condição de existência desses sujeitos. Ao conceber a
ocupação como fato, esses sujeitos recriam a sua história. Não concebê-la é não ser
concebido. Com a ocupação cria-se a condição nova para o enfrentamento. Na realização da ocupação, os sem terra, sem, ainda, conquistarem a terra, conquistam o
fato: a possibilidade de negociação [...] (p. 45).
As ocupações representam a materialização das ações dos movimentos sociais, em
particular do MST, uma vez que lhes dão notoriedade perante a sociedade como um todo. Por
outro lado, possuem ainda outro significado que diz respeito à intervenção direta no espaço,
alterando as relações de poder que o permeiam,constituindo-se assim um espaço de luta e
resistência pelo direito de acesso à terra.
Da tentativa das ocupações resultam os acampamentos e, posteriormente, os
assentamentos que inauguram o processo de territorialização da luta contra as grandes
unidades de produção e a monocultura de exportação. Nesse mesmo sentido, Medeiros (2004)
afirma:
Através da ocupação de latifúndio e terras devolutas, a estrutura organizada do
espaço se transforma. Entram em cena novas formas de gestão do território: os
acampamentos e assentamentos rurais (p.65)
A ocupação transforma a paisagem, mobiliza a opinião pública, cria o conflito. É um
processo longo, com despejos, reintegração de posse, mudança de local, negociação entre
fazendeiros, sem terra, e Estado.
Ainda com relação o processo de ocupação de terra, Fernandes (2000) acresce que
esse é um momento de manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos, é efetivamente
123
um espaço de luta e que busca, fundamentalmente, a garantia de sua sobrevivência como
sujeito histórico. Assim:
O acampamento é na sua concretude o espaço de luta e resistência, é quando os
trabalhadores partem para o enfrentamento direto com o Estado e com os
latifundiários. O acampamento é a ocupação do latifúndio, cujas conseqüências são
imprevisíveis. Neste espaço está colocada em questão a luta e, portanto, o
enfrentamento com Estado, por intermédio da negociação política, e com os
latifundiários, pelo conflito direto. Dependendo da formado encaminhamento e da relação de poder entre as forças políticas vão se dar diferentes situações de luta.
Com relação ao Estado acontece o despejo. Frequentemente, por meio do uso da
violência pela força policial. Com relação os latifundiários o enfrentamento violento
contra jagunços contratados para fazerem o serviço [...]. É um confronto violento
que as famílias acampadas procuram resistir de diferentes maneiras para não sair da
terra. Esta resistência pode ser desenvolvida a partir da (re)criação de forma da luta
popular e de pressão política aos parlamentares e ao governo, para lutar política e
juridicamente contra seus inimigos. Em último caso, tentar ampliar o prazo da
liminar de reintegração de posse ao latifundiário. Contudo, o despejo é, quase
sempre, iminente. Mas o despejo não significa o fim. O acampamento é removido
para a beira de uma rodovia, de onde se reiniciam as negociações no plano político, jurídico e social (FERNANDES, 1996, p. 238-239).
Os acampamentos configuram-se em espaços e tempos de transição na luta
pela terra, pois além de espaços de politização e socialização, criam pontos de tensão. Deste
modo, as ocupações e os acampamentos se tornam a principal forma de pressão sobre os
órgãos governamentais, no que concerne à agilização dos processos de desapropriação e
constituição dos assentamentos. Não se pode esquecer que as iniciativas governamentais no
sentido de resolver a problemática da terra, em geral, são emergenciais, ou seja, “pontuais,
dispersas, desarticuladas, [...] segundo a gravidade dos conflitos existentes [...]”
(MEDEIROS, 1998, p.56).
A principal causa de que faz o acesso a terra ser por vias das ocupações, é o
comportamento dos governos, tanto a nível federal quanto estadual, com as políticas de
reforma agrária, representado por um comportamento inerte diante do processo de
democratização do acesso a terra. Isso tem colocado na marginalidade social milhões de
camponeses e, consequentemente, também tem colaborado para o acirramento dos conflitos
no campo envolvendo os camponeses sem terra e os proprietários das terras em disputa,
contribuindo, assim, para o aumento das estatísticas da violência no campo. “Eles são a
expressão local e específica do conflito capital x trabalho e a concretização da resistência à
exclusão social e espacial” (FERNANDES, 2001, p.68).
Stédile em entrevista a Bernardo M. Fernandes (1999) destaca como passo
fundamental na caminhada dos movimentos sem-terra foi ter compreendido o processo de
124
ocupação como forma de pressionar para que sejam aplicadas, as normas que dispõe sobre
reforma agrária.
Se não ocuparmos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que
só houve desapropriações quando houve ocupação. É só comparar [...]. A lei só é
aplicada quando existe iniciativa social, essa é a norma do direito. Nossos alunos
aprendem isso no primeiro dia de aula. A lei vem depois do fato social, nunca antes.
O fato social na reforma agrária é a ocupação, as pessoas querem terra, para depois
se aplicar a lei. Nesse sentido, o sociólogo Fernando Henrique tem consciência. Ele afirmou: „Eu não condeno o movimento de vocês. É justo. Se não fizer pressão, não
sai‟ (STÉDILE apud FERNANDES, 1999, p. 115).
Esta omissão do Estado e sua atuação apenas sob pressão, no sentido de
resolver o problema agrário, se deve aos interesses por ele representados. Gonçalves Neto
(1997, p.13) expõe claramente que, em sendo o Estado o “guardião da ordem dominante”,
seus interesses serão os interesses da classe dominante, não da sociedade como um todo. Se
em algum momento o poder público contraria estes interesses, o faz conforme já referido, a
partir da mediação do confronto.
O espaço de luta e resistência é fundamental para apreender que a ocupação é um dos
principais momentos da luta pela terra, com forte impacto socioterritorial. Pode-se afirmar,
sem receio, que a conquista da terra guarda proporção direta com o número de ocupações.
Dados do Incra (2006) confirmam que a maior parte dos assentamentos de reforma agrária
teve origem em ocupações. A mesma conclusão é referendada pelos estudos realizados por
Oliveira em (2009, p. 145).
Fernandes (1996) ao situar a luta pela terra, além de reforçar a importância das
ocupações classifica este processo como o primeiro processo de impacto socioterritorial. O
segundo começa com a conquista da terra, com os assentamentos rurais. A criação e o futuro
do assentamento remontam suas raízes neste processo, onde as famílias passam fome,
enfrentam a polícia, os jagunços, a justiça e a discriminação por grande parte da sociedade.
A luta pela terra é um processo complexo que assume diferentes formas. Situa-se
dentro do contexto da luta pelo espaço e pela ruptura do poder de poder. Nessa medida, a
conquista do espaço liga-se à procura da identidade social.
Os acampamentos e assentamentos são lugares essenciais no processo de constituição
de identidade e re-significação do mundo. “A diferença mais significativa entre estes dois
lugares é terra, ou seja, o sonho e o desejo da terra (acampamento) e a realidade do acesso à
mesma (assentamento)” (SAUER, 2003, p. 21). O acesso a esta transforma a realidade e a
125
identidade dos sem terra em pessoas com terra, gerando diferenças nas formas de organização
e demandas políticas, sociais e econômicas. Nestes espaços diferentes biografias se encontram
e iniciam novos processos de interação e identidade sociais.
Nessa mesma linha de pensamento, Borges (1997) acrescenta que no decorrer do
processo de ocupação-desocupação-reocupação da terra, os trabalhadores se afirmam
politicamente a partir da luta, processo em que têm a oportunidade efetiva de reconhecer o
outro, constituindo-se, então, o novo sujeito coletivo – o trabalhador sem-terra, o trabalhador
acampado, o trabalhador assentado, enfim, “aquele que tendo a terra como seu ponto de
partida, a descobre e conquista, finalmente, como ponto de chegada” (p. 29).
O processo de luta e a construção simbólica colocam a terra (acampamentos e
assentamentos) como um lugar de vida, uma moradia, capaz de acolher e dar sentido à
existência. Para Sauer (2003) diferentemente dos processos de deslocamento do espaço do
lugar, a terra é representada como um local, geograficamente localizado, que possibilita
trabalho e moradia. Representada como lugar de morada, a terra se transforma em símbolo de
fartura e garantia de futuro, materializando a possibilidade de reprodução social. “A terra
comparece como um meio de subsistência para o trabalhador do campo, sendo concebida
enquanto terra de trabalho” (p. 21).
Entretanto, para Stédile (2003) a obtenção da terra (lote) não extingue a luta, tanto é
assim que os assentados continuam integrando os movimentos sociais rurais e apoiando suas
ações. As pressões e protestos dos movimentos populares sobre o Estado, melhor dizendo,
sobre os governantes, continuam no sentido de cobrar maiores compromissos com esses
setores, na direção da diminuição das carências e atendimento das demandas, através do
estabelecimento de políticas públicas e o alargamento dos espaços de participação e de
definição de diretrizes e projetos sociais. Continuam procurando o enfrentamento público
objetivando o potencial apoio do restante da sociedade.
Afinal, ao ocuparem terras, os trabalhadores não estão violando ou negando o direito
de propriedade privada. Os sem terra também sonham com um pedaço de chão, mas repudiam
a propriedade privada, que permite a concentração, que exclui e inviabiliza uma existência
digna para a ampla maioria.
Concluindo esse tópico, vale à pena recorrer a um trecho da Carta de Alforria do
Camponês, escrita por Francisco Julião (1961), presidente de honra das Ligas Camponesas de
Pernambuco, ao afirmar:
126
Muitos são os caminhos que te levarão à liberdade. Liberdade quer dizer terra. Quer dizer pão. Quer dizer casa. Quer dizer remédio. Quer dizer escola. Quer dizer paz.
Eu te apontarei esses caminhos. Mas eu te digo e repito: não adianta a viagem se tu
fores sozinho. Convida seu irmão sem terra ou de pouca terra. E pede que ele
convide outro. No começo serão dois. Depois, dez. Depois, cem. Depois, mil. E no
fim serão todos. Marchando unidos. Como unidos vão à feira, à festa, à missa, ao
culto, ao enterro, à eleição. Digo e repito: a união é a mãe da liberdade. São muitos
os caminhos por onde poderás viajar com os teus irmãos. Eles começam em lugares
diferentes, mas vão todos para o mesmo lugar. Que caminhos são esses? Esses
caminhos são: 1) A democracia para o camponês. 2) O sindicato para o camponês.
3) A cooperativa para o camponês. 4) Uma lei justa e humana para o camponês [...].
(p.71-72).
3.2 Os Projetos de assentamentos na reforma agrária
A omissão do Estado e sua atuação apenas sob
pressão, para resolver o problema agrário, se deve aos
interesses por ele representados. [...]. Sendo o Estado o
guardião da ordem dominante, seus interesses serão os
interesses da classe dominante, não da sociedade como
um todo. Se em algum momento o poder público
contraria estes interesses, o faz a partir da mediação
do confronto.
Leonilde Medeiros
O Estado constitui-se no mediador da luta entre os diferentes segmentos sociais. O
poder público é o veículo pelo qual a sociedade transforma o espaço segundo interesses
específicos, aperfeiçoando continuamente as formas materiais e sociais de uso dos territórios.
Todavia, estas transformações, por vezes, apresentam resultados que exigem a reformulação
dos fins almejados, em vista da pressão advinda dos diferentes grupos sociais (ANDRADE,
1984).
No caso do campo brasileiro, a atuação do Estado se processa a partir da “mediação”
do confronto entre a elite agrária (grandes produtores rurais), os movimentos sociais (os
trabalhadores sem terra). Assim, pode-se dizer que os assentamentos resultam desta mediação.
Sua criação, aparentemente, encerra um ciclo, porém inicia outro, o de luta pela permanência
na terra, inaugurando o processo de construção de um novo território no espaço rural.
Neste novo embate, os sem terra iniciam um longo processo de estruturação do
assentamento, no qual, por vezes, travam-se disputas quanto à forma de organização da
produção no seu interior e à divisão dos lotes. Não obstante, a ausência de recursos e demora
127
na liberação dos financiamentos do governo federal, dificulta e retarda a estruturação
socioeconômica e produtiva dos assentados. Além destes aspectos, ainda há a necessidade de
encontrar canais de inserção no mercado, bem como obter o reconhecimento e respeito da
população local (SAUER, 2003).
No estudo sobre os impactos dos assentamentos no meio rural brasileiro, Leite (2004)
assim analisa:
A existência dos assentamentos como unidades territoriais e administrativas resulta
numa ampliação das demandas e infra-estrutura e em pressão sobre os poderes
políticos locais, estaduais e federal. Ao mesmo tempo em que podem ser visto com o
“ponto de chegada” de um processo de luta pela terra, os assentamentos tornam-se
“ponto de partida” para uma nova condição de vida, onde muitas vezes tudo está por
fazer, desde a organização do lote e construção do local de moradia até toda a infra-
estrutura coletiva e de serviços necessária à viabilização econômica e social das
novas unidades de produção familiar criadas. (p.79).
A experiência de luta pela terra, a existência do assentamento como espaço de referência
para políticas públicas, a precariedade de infra-estrutura, entre outros fatores, fazem então com
que os assentamentos tornem-se
ponto de partida de demandas, levando à afirmação de novas identidades e
interesses, ao surgimento de formas organizativas internas e também mais amplas e
à busca de lugares que se façam ouvir (LEITE, 2004, p. 258).
As famílias assentadas imprimem nessa nova área relações sociais próprias, distintas
daquelas existentes, até então, desenvolvem relações não capitalistas, construindo assim, seu
território através da prática dessas relações nessa porção de espaço.
A criação dos assentamentos gera uma nova organização social, econômica e política.
Segundo Martins (2000), os projetos de assentamentos são “uma verdadeira reinvenção da
sociedade como uma clara reação aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da
própria modernidade” (p. 46).
Nessa mesma perspectiva, Carvalho (1999) trata os assentamentos como um processo
social inteiramente novo ao enfatizar:
Nesse espaço físico, uma parcela do território rural, plasmar-se-á uma nova
organização social, um microcosmo social, quando o conjunto de famílias de
trabalhadores rurais sem terra passarem a apossarem-se formalmente dessa terra.
128
Esse espaço físico transforma-se, mais uma vez na sua história, num espaço econômico, político e social (CARVALHO, 1999, p. 7).
Pensados como “encruzilhadas sociais” (Carvalho, 1999), os acampamentos e
assentamentos são lugares de sociabilidade, diferenciados entre si basicamente pela
oportunidade de acesso à terra. “As experiências de luta, privações, desejos e sonhos –
associados às histórias de vidas, verdadeiros itinerários biográficos de deslocamentos em busca
de sobrevivência – forjam novas identidades e perspectivas de vida” (p. 49).
O assentamento aparece na política de reforma agrária como principal instrumento de
democratização e acesso a terra. Para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), o assentamento rural é considerado como:
Retrato físico da Reforma Agrária. Ele nasce quando o INCRA, após se imitir na
posse da terra (recebê-la legalmente) transfere-a para trabalhadores rurais sem terra a
fim de que a cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico. O
assentamento é, portanto, razão da existência do INCRA. (s.d. p.02).
No entanto, podemos caracteriza o assentamento rural a partir de duas perspectivas, a
primeira como um decreto governamental, fruto de um ato administrativo; Na segunda
perspectiva, analisa-se o assentamento como resultado de uma conquista dos trabalhadores
sem terra diante o latifúndio, ou seja, resultado de um conflito de classes.
Segundo Sauer (2005), o assentamento é um espaço, geograficamente delimitado, que
abarca um grupo de famílias beneficiadas por programas governamentais de reforma agrária.
Nesse sentido, a constituição do assentamento é resultado de um decreto administrativo do
governo federal que estabelece condições legais de posse e uso da terra. Logo, o assentamento
é fruto de um ato administrativo que limita o território, seleciona as famílias a serem
beneficiadas, etc., sendo, portanto, artificialmente constituído, criando um novo ambiente
geográfico e uma nova organização social.
A criação do assentamento é, por outro lado, produto de conflitos, lutas populares e
demandas sociais pelo direito de acesso à terra. A mobilização e organização sociais, o
enfrentamento com os poderes políticos locais e nacionais, as disputas com o latifúndio e com o
estado e os questionamentos das leis de propriedade são capazes de estabelecer territórios,
delimitar regiões, criar fronteiras (BOURDIEU, 1998, p. 113).
O significado dos assentamentos para os trabalhadores sem terra é a reterritorialização,
uma vez que estes se constituem em território conquistado. Em contrapartida, como o
129
território é conquistado normalmente em áreas onde predomina a grande propriedade,
demarcam claramente os limites entre o espaço dos assentados e dos grandes produtores
rurais. Assim, nas palavras de Souza (1995, p. 86), “o assentamento delimita [...] a diferença
entre „nós‟ [...] e os „outros‟[...]”.
Sauer (2003) também chama a atenção para a importância das fronteiras dos
assentamentos em sua delimitação com o restante do espaço agrário.
A luta pela terra é um processo social de reforço de vínculos locais e de relações de
pertencimento a um determinado lugar, se constituindo em um processo de
reterritorialização que situa as pessoas em um espaço geograficamente bem
delimitado. O assentamento (e as próprias parcelas e lotes) é caracterizado por
limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas sociais que dão identidade e sentimentos de familiaridade a seus habitantes [...]. (SAUER, 2003, p. 19).
Estes limites e fronteiras aparecem claramente na forma de ocupação do espaço. O
autor referido identifica o espaço da grande exploração como um “não-lugar” ou um “vazio
identitário” (SAUER, 2003, p, 12), pois materializa a ausência a partir da exclusão social e da
marginalização. Nesta perspectiva, enfatiza o papel dos assentamentos na construção de um
novo território no espaço rural, enquanto contextura da prática social. Os assentamentos são
espaços singulares que possibilitam a resignificação do lugar.
O estabelecimento de fronteiras geográficas, segundo Bourdieu (apud, Nogueira,
2004) é uma definição legítima e um resultado das lutas pelo “poder de ver e fazer crer,
produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na realidade” (p. 12).
Este poder estabelece divisões do mundo social, cria diferenças culturais e geram identidades
permitindo tratar as áreas de assentamento como realidades distintas. Portanto, como unidades
de análise, um objeto peculiar de estudo.
No entanto, esta distinção não significa isolamento das relações sociais e políticas
locais e regionais, ou seja, os estudos sobre assentamentos rurais de reforma agrária devem
ser feitos considerando os contextos sociais, políticos, econômicos, incluindo processos
históricos de constituição dos projetos e de inserção no seu entorno, pois segundo Leite:
Os assentamentos tendem a promover um rearranjo do processo produtivo nas
regiões onde se instalam, muitas vezes, caracterizada por uma agricultura com baixo
dinamismo. A diversificação da produção agrícola, a introdução de atividades mais lucrativas, mudanças tecnológicas, refletem-se na composição da receita dos
assentados afetando o comércio local, a geração de impostos, a movimentação
bancária, etc., com efeitos sobre a capacidade do assentamento se firmar
politicamente como um interlocutor de peso no plano local/regional (2000, p. 48).
130
Por isso, os assentamentos apresentam-se como elementos reestruturadores do campo,
pois, à medida que novos assentamentos são organizados, se estabelecem novas formas de
produção, novas práticas e novas formas de organização do trabalho. Medeiros (1998)
assinala que os assentamentos têm se constituído como laboratórios de experiências sociais.
Além de dinamizarem o debate sobre as perspectivas futuras do meio rural, eles têm
embasado a discussão a respeito de um novo modelo de desenvolvimento fundado na unidade
de produção familiar.
Desta maneira, os assentamentos indicam uma tendência de (re) organização do
espaço agrário. Esta tendência é apontada por Sauer (2003, p. 20) quando afirma que a criação
dos assentamentos gera uma nova organização social, econômica e política.
Entretanto, o autor afirma que a concretização destas perspectivas requer a
continuidade da luta, porém, agora, uma luta por políticas públicas voltadas para a pequena
produção, uma luta por novas alternativas de renda e por novas formas de produção. É com
base nesta luta que se estrutura o novo território, que se convencionou chamar de território
dos assentamentos ou território dos assentados.
Os assentamentos constituem-se, pois, em territórios que iniciam uma nova dinâmica
de apropriação do espaço, onde o elemento social é priorizado. Esta característica se apresenta
sob diferentes aspectos, seja na resolução, mesmo que em parte, do problema da concentração
fundiária, seja na busca por novas formas de organização do trabalho e da produção.
De acordo com Nogueira e Garcia (2009) pode-se dizer que:
[...] a construção/reconstrução de seu espaço social [dos assentados] constitui-se num novo modo de vida, que se dá tanto a partir dos referenciais que cada assentado
traz em sua história de vida, como a partir de referenciais coletivos reelaborados na
luta pela conquista da terra, de forma que o assentamento continua a ser espaço de
recriação cultural, de continuação e emergência de uma nova cultura política e,
acima de tudo, por ser um espaço de vivência de relações sociais diferenciadas e por
desenvolver no cotidiano concreto fragmentos significativos de uma nova sociedade
modificada, torna-se uma força instituinte no social-histórico, possibilitando a
instituição de um novo modo de viver no campo (11).
Os assentamentos promovem então, em primeira instância, um reordenamento do uso
da terra. Decorre da criação do assentamento, com a divisão da terra em pequenas unidades de
produção, uma redistribuição fundiária.
As transformações decorrentes da organização dos assentamentos são notáveis de tal
forma que Leite (1998) as denominou de impactos dos assentamentos. O simples ato de
criação do assentamento altera as relações de poder local. Mesmo que haja adesão ao modelo
131
produtivista, o assentamento promove um rearranjo do processo produtivo, a produção se
diversifica e novas atividades são introduzidas. Além disso, pode-se constituir o
associativismo e se formar cooperativas. Esses fatores, em conjunto, afetam a dinâmica do
comércio local, a movimentação bancária, a arrecadação municipal, entre outros. Deve-se
considerar também a importância da produção de subsistência para o consumo dos
assentados.
De acordo com as diretrizes estabelecidas no II Programa Nacional de Reforma
Agrária implantado em 2003, o que se busca com a reforma agrária atualmente desenvolvida
no País é a implantação de um novo modelo de assentamento, baseado na viabilidade
econômica, na sustentabilidade ambiental e no desenvolvimento territorial com a adoção de
instrumentos fundiários adequados a cada público e a cada região; a adequação institucional e
normativa a uma intervenção rápida e eficiente dos instrumentos agrários; o forte
envolvimento dos governos estaduais e prefeituras; a promoção da igualdade de gênero na
reforma agrária; e o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas reformadas.
Assim, o INCRA ousa implementar a reforma agrária buscando a qualificação e
consolidação dos assentamentos rurais, mediante o licenciamento ambiental, o acesso a infra-
estrutura básica, o crédito e a assessoria técnica e social e a articulação com as demais
políticas públicas, contribuindo para o cumprimento das legislações ambiental e trabalhista e
para a promoção da paz no campo, o que vem acontecendo a passos lentos.
Porém, o processo de estruturação dos assentamentos não é destituído de luta. Eles
normalmente são criados de forma estratégica e pontual, e os programas de crédito
implementados para os assentados são insuficientes para a manutenção da propriedade
(SOUSA, 1998). Diante desta problemática, existe o imperativo de se criar novas formas de
organização produtiva e social, objetivando possibilitar a melhoria da qualidade de vida dos
assentados. São estas formas de organização que permitem alterar as relações de poder local
(LEITE, 1998), reconstruindo o território.
Sauer (2003) esclarece que a territorialização da luta pela terra não pode ser
confundida com a territorialização do próprio campesinato. Pelo menos dois novos desafios
são colocados à medida que os assentamentos são conquistados: um deles refere-se à
possibilidade de estabilização relativa do campesinato nessas áreas frente às condições
políticas e econômicas existentes; o outro refere-se a construção de uma autonomia relativa do
132
campesinato perante o padrão de subordinação do território pelo capital que predomina no
agrário brasileiro.
Portanto, dois elementos importantes estão colocados. A criação dos assentamentos
não é fruto de um planejamento prévio, tampouco é uma aplicação homogênea de uma
política do Estado. Fruto das diversas formas de luta pela terra desenvolvida por distintos
movimentos sociais, em diferentes contextos históricos, os assentamentos também expressam
essa diversidade. O desafio da consolidação dos assentamentos, compreendido como a
possibilidade de estabilização e conquista de uma autonomia relativa pelo campesinato, não
pode ser tratado de maneira igual para o seu conjunto, reconhecendo que cada um deles
possui uma trajetória própria que significa um certo acúmulo de trunfos específicos.
Como sinalizou Leite (2004), a criação do assentamento, ao invés de ser um ponto
final de um processo de luta que às vezes durou anos e anos, tornou-se um ponto de partida
para novas demandas daqueles que tiveram acesso a terra e que procuraram nela se viabilizar
econômica e socialmente: educação, saúde, cultura e esportes, estradas, transporte, créditos,
assistência técnica são apenas algumas das reivindicações que emergem e que obrigam os
assentados a intensificar experiências a que, na sua situação de vida anterior, dificilmente
teriam acesso.
A existência dos assentamentos como unidades territoriais e administrativas, que são
referência para políticas pública, ainda segundo Leite (2004) resulta numa ampliação das
demandas de infra-estrutura e a própria experiência política da luta pela terra (qualquer que
tenha sido sua forma) acabou por produzir lideranças, formas de representação, aprendizado
sobre a importância das formas organizativas e sobre sua capacidade de produzir demandas.
Os trabalhadores assentados passam a organizar-se, procurar os poderes públicos,
demandar, pressionar, negociar enfim um espetáculo de atividades que os colocam frente ao
exercício da participação política e que os levam a ter, em muitos municípios, peso no
cotidiano da vida pública, impondo-se como interlocutores em diversas iniciativas.
Por efeitos dos assentados, sobretudo pela sua capacidade produtiva e organizativa, os
assentados em muitos lugares ganharam reconhecimento social e político pelos demais setores
sociais, superando uma tensão inicial, muitas vezes marcada por uma visão de que os
assentados eram “forasteiros” ou “Arruaceiros” (LEITE, 2004, p. 36), em especial nas áreas
onde os assentados foram resultados de ocupações de terra.
133
O assentamento é, portanto, um novo lugar para se viver, iniciando um processo de
materialização da terra que fornece materialidade à possibilidade da reforma agrária como
“processo social, vivo e ativo, de reformulação de mentalidade e de relações sociais a partir de
uma inflexão na experiência de vida do beneficiário, representada pelo acesso à terra,
enquanto proprietário e protagonista de um direito” (MARTINS, 2003, p.16).
O autor explicita que a passagem para a condição de “assentado” dá um novo lugar
social para essa população e coloca novos atores na econômica, social e política local, o que
traz conseqüências não somente para suas vidas, mas para a região onde está inserida. Por
outro lado, o deslocamento para o assentamento atinge não apenas famílias isoladas, mas
grupos de parentes que se estabelecem, sejam em diferentes lotes nos assentamentos, seja
num único lote ou moradia. Além do número dos empregos que geram, os projetos de
assentamento acabam servindo como amparo social a parentes, atuando também, em alguns
casos, como reconstituição de laços familiares antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade
das pessoas para buscar alternativas de sobrevivência.
Os assentamentos atuam então como mecanismos de recomposição familiar
aproximando membros que se encontravam dispersos, contribuindo para garantir a
reprodução não apenas econômica, mas também a reprodução social desse grupo de
trabalhadores.
A conversão de um latifúndio, de uma grande área de terra improdutiva em um lugar
de produção e vida para dezenas, centenas de famílias é apenas um aspecto da “reorganização
fundiária”. Esta questão tem impactos, inclusive econômicos, que transcendem as fronteiras
dos projetos, transformando o que Wanderley (2003, p. 28) denomina de a “ruralidade de
espaços vazios”.
Mesmo com alguns insucessos, os assentamentos têm garantido a permanência do
homem no campo, principalmente após a implementação do “Programa Luz Para Todos”,
empregando e gerando renda para um considerável número de famílias. Além disso, os
assentamentos têm possibilitado a recuperação da auto-estima e da dignidade dos assentados,
a integração ao mercado, a alteração das relações de poder local e a organização de novas
formas de produção, contribuindo também para o desenvolvimento da economia local,
regional e nacional (MEDEIROS, 1998).
Assim, os assentamentos apresentam-se como elementos reestruturadores do campo,
pois, à medida que novos assentamentos são organizados, se estabelecem novas formas de
134
produção, novas práticas e novas formas de organização do trabalho. Medeiros (1998)
assinala que, embora ainda em número relativamente pequeno, os assentamentos têm se
constituído como laboratórios de experiências sociais. Além de dinamizarem o debate sobre
as perspectivas futuras do meio rural, eles têm embasado a discussão a respeito de um novo
modelo de desenvolvimento fundado na unidade de produção familiar.
Entretanto, embora a criação dos assentamentos rurais tenha implicações na
redistribuição fundiária e viabilizado o acesso à terra a uma população de trabalhadores rurais,
não alterou de forma significativa o quadro da concentração fundiária, não podendo
considerar então, a política de implementação de assentamentos rurais como um profundo
processo de reforma agrária (LEITE, 2004).
Embora não encerrem a problemática agrária, os assentamentos lançam as bases para a
mudança da sociedade, alertando para a necessidade de se elaborar políticas agrárias que
promovam a inclusão social e o efetivo desenvolvimento socioespacial
A concretização das perspectivas da maioria dos trabalhadores assentados com relação
aos Projetos de Assentamento, alicerçada na esperança de uma vida digna e nas “promessas”
do INCRA, todavia, requer a continuidade da luta por políticas públicas voltadas para a
pequena produção, uma luta por novas alternativas de renda e novas formas de produção. É
com base nesta luta que se estrutura o novo território dos assentados e, quem sabe, a alforria
do camponês.
Enfim, cada assentamento traz, dentro de si,
um turbilhão de pequenas e boas histórias a serem sopradas pelos ventos que
serpenteiam as estradas e “quebradas”, que as conduzam às cidades e a outros
assentamentos, para se tornarem lendas nas bocas de caminhantes. Escrevê-las é se
comprometer com que não sejam enterradas pelo mesmo esquecimento que
transforma terras agricultáveis em latifúndios improdutivos (AZEVEDO, 2006, p.
91).
Cabe aqui lembrar a assertiva de Miguel Carter (2010, p. 413) ao afirmar que “no
Brasil de hoje, o farol da esperança não está entre os céticos da reforma agrária, mas entre
aqueles que continuam lutando por sua implementação progressista”.
135
CONSIDERAÇÕES
A história do homem e da terra tinha assim
uma intensidade que lhe não podiam dar nem a
imaginação nem a ciência, porque a ciência é
mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto
que o que eu via era condensação viva de todos
os tempos.
Machado de Assis
Estas últimas palavras põem termo, sim, a etapa final de um trabalho de
especialização, mas não às reflexões, questionamentos e esforços para se ladrilhar o caminho
de outras concepções sobre os avanços e desafios da luta pela terra no Brasil.
As reflexões não possuem, pois, caráter conclusivo, elas refletem, antes de tudo, as
possíveis tendências que se configuram a partir de novas condições objetivas articuladas às
práticas dos trabalhadores sem terras, trabalhadores assentados e do Estado, neste momento
em que a política agrária representa muito mais recuos que avanços. O presente estudo
representa, portanto, a tentativa de se compreender uma temática complexa e instigante, sem a
pretensão de esgotar todas as suas possibilidades.
O Brasil é uma das nações de maior desigualdade social do mundo. Suas disparidades
em termos de distribuição de riqueza têm profundas raízes históricas. Esta pesquisa
bibliográfica abordou também um importante legado e um permanente aspecto da injustiça
social no Brasil: a acentuada desigualdade da sua estrutura fundiária que originou-se na era
colonial e foi mantida até hoje por meio de diversas práticas políticas. A sociedade brasileira
nasceu com fortes traços oligárquicos, ancorados em uma poderosa classe latifundiária e um
Estado débil e patrimonialista.
A história do nosso país é densa no atinente às questões da posse da terra e sua
legitimação pelo Estado. São mais de 500 amos de ocupação marcada pela força do latifúndio
que sempre ditou o direito, que fez da terra uma mercadoria, com inserção do colonialismo e,
ao mesmo tempo, formando a propriedade privada da terra, a definindo como plena e absoluta.
O modo de produção e o modelo econômico atual mantêm as formas de apropriação
privada da terra estabelecidas historicamente. O agravante é que no mesmo momento em que
136
alguns se apropriam de um bem, outros tantos são excluídos da fruição deste, ficando
condicionados, se quiserem ter acesso a seus “benefícios”, aos mandamentos ditados por
aqueles que se tornaram proprietários.
A propriedade produtiva, tal como vem sendo concebida e aplicada pelos profissionais
do direito (judiciário), representa uma pedra importante no caminho da reforma agrária. A
produtividade da terra não pode ser avaliada apenas ao seu aspecto econômico que privilegia
a estrutura latifundiária originária das sesmarias. É necessário incluir os demais elementos da
função social.
A interpretação de que qualquer produtividade torna o imóvel rural insuscetível de
desapropriação agrária, além de ferir a Constituição, privilegia a estrutura latifundiária
originária das sesmarias. “Pinçar dispositivos constitucionais, para dizer que basta atender aos
índices de produtividade para tornar a propriedade produtiva, é uma clara opção ideológica”
(MARÉS, 2003, p. 88), porque favorece os senhores da terra, em detrimento do conjunto da
sociedade.
Ao longo da história brasileira, a elite agrária colheu os benefícios da proteção do
Estado e o acesso privilegiado aos recursos públicos. Essas características patrimoniais
geraram um modelo de desenvolvimento concentrador e conseqüentemente excludente. É
preciso abrir mão dessa submissão ideológica alicerçada em valores e visão de mundo da
classe dominante e romper com essa cultura de regalias aos que fazem da terra espaço de
especulação e conflitos.
A “reforma agrária” tem sido cada vez mais articulada no debate político, ao das
opções em torno de formas de desenvolvimento, impulsionado pelas lutas que se concretizam
nas ocupações de terra, nos acampamentos e assentamentos, tornando-a questão relevante não
apenas para o vasto contingente dos que demandam terra, mas também para o conjunto da
sociedade.
São esses os componentes que tornam a reforma agrária uma bandeira de luta que
ultrapassa fronteiras nacionais e permite a construção de uma linguagem comum entre povos
profundamente diferentes nas suas histórias e culturas. No entanto, de governo a governo, tem
persistido uma política agrária compensatória, que expressa um processo de controle social
dos movimentos sociais pelo Estado, sem alterar a estrutura fundiária altamente excludente.
Muitas vezes, no debate político, ela acaba sendo apresentada em termos que reduzem
a sua riqueza de significados: política compensatória, condições para a ampliação da
137
agricultura familiar, caminho para o combate à pobreza no campo, inserção de pequenos
agricultores de forma competitiva no mercado. A política de reforma agrária tem um pouco de
cada um desses componentes, mas é também um caminho para garantir a dignidade a um
contingente dos que querem fazer da terra um lugar de reprodução.
Sob essa perspectiva, a demanda por uma política agrária efetiva não é, como muitos
de seus opositores têm afirmado, sinônimo de atraso, ameaça de desestruturação de sistemas
produtivos, mas simplesmente uma das faces da luta contra a desigualdade econômica, social
política e cultural. Portanto, uma das ferramentas da construção de uma ativa democracia,
baseada na possibilidade de contínua expansão, criação de direitos e constituição de outras
relações sociais.
Sua permanência no vocabulário das lutas sociais deve ser entendida não como o
resquício do velho, mas como uma palavra capaz de abranger o novo. “Em nosso país, o
velho a ser superado no campo é o recurso à violência, à concentração fundiária, a forma
indigna de trabalho e o não reconhecimento de direitos” (MEDEIROS, 2006. P.46).
A reforma agrária é uma política pública que ataca também uma das instituições
sacralizadas pelo sistema capitalista, a propriedade privada. Para implementá-la, é
indispensável a existência de “vontade política” do Poder Executivo, mas isso não basta. É
preciso que a correlação das forças sociais seja favorável à mudança na estrutura fundiária.
A grande contradição que envolve esse tema pode ser expressa da seguinte maneira:
não se muda o Brasil sem uma verdadeira política agrária e não se faz reforma agrária sem
mudar o Brasil. Em outras palavras, a mudança do país passa pela redistribuição da
propriedade da terra, que, por sua vez, somente será efetivada se houver uma alteração
significativa no tratamento que o Estado e a sociedade brasileira conferem à propriedade. Até
porque a democratização do acesso à terra significa, essencialmente, a democratização do
poder.
Por essa razão, a luta pela terra é, ao mesmo tempo, específica e geral. É uma luta dos
sem-terra e de todos os militantes sociais comprometidos com a construção de uma sociedade
verdadeiramente justa, fraterna e solidária.
Alterar esse estado de coisas, não é tarefa fácil, pois toda vez que se discutem os
espaços de poder, deve-se esperar os ataques, as incompreensões, as ameaças e as agressões.
Mas, se isto não for feito, nada se altera.
138
O caminho encontrado é o da luta, da contestação, do inconformismo e do
engajamento em organizações coletivas, afastando-se as formas individuais de resolução de
conflitos. Pelo contrário, procuraram o fortalecimento pela união, estabelecendo outros canais
de expressão e diálogo.
A luta pela terra e por uma política agrária de cunho progressista é travada tanto no
plano da produção, na infra-estrutura material da sociedade, quanto no plano cultural, posto
que sua viabilidade passa por uma mudança de concepção. Alterar a estrutura fundiária, para
distribuir a terra, é condição fundamental para o próprio desenvolvimento do país. Fazendo
coro ao slogan dos movimentos sociais do campo, “sem reforma agrária, não há democracia”
(MARTINS, 1997, p.73).
A política agrária no Brasil está acoplada à expansão do agronegócio. É por isso que
ela também é uma conquista dos movimentos sociais e, só ocorre quando eles vão à luta. As
poucas iniciativas governamentais relacionadas à reforma agrária não lograram êxitos.
Os movimentos guardam em comum a necessidade, à vontade, o escopo de ocupar a
terra para aquele que a conhece, que lhe tem um afeto especial, possa tirar o seu sustento e
minimizar a precária situação de vida de sua família. Enfim, dar a terra uma verdadeira função
social.
A política agrária vista como um instrumento de intervenção pontual, sem enfatizar a
preocupação com seus desdobramentos de natureza redistributiva, em especial no que se
refere à democratização do poder político, está na contramão de um amplo processo de
mudanças na propriedade e no uso da terra, abrangendo dimensões econômicas, sociais,
políticas, culturais e ambientais.
É certo que ainda falta muito para se chegar lá e corrigir a secular injustiça fundiária
que marca a nossa história, assim como para que os homens e mulheres do campo alcancem a
plena cidadania. Todavia, não se iludam, também é certo que a luta pela terra, travada há
séculos, não irá cessar. Mas não é uma luta apenas dos sem terra. É de todos os que se ligam
pelo pensamento de justiça social e que só vão se sentir incluídos, no dia em que todos
também estiverem; que só se sentirão humanos, quando todos estiverem em condições de
viver com dignidade. Oxalá!
A terra é um sonho qui a gente tem desde piqueno,
criança. Conquistá o direito de trabaiá na terra é um
sonho qui demora tanto, que quando é conquistado já
passou tanto tempo qui a gente nem tem mais força
139
pra trabaiá mais. Ai, a gente acaba desistino. Igual um
velho qui já tem 50 anos, qui já tá precisano é de
aposentá. Ele não vai guentá. A gente pensa qui a
coisa é fácil, depois vê que é de outro jeito. Os qui
guenta ficá no acampamento, no mato ou beira de
estrada, é só os qui pensa nos filho, só isso. Não é todo
mundo qui guenta essa luta [...]. Mas se nós não lutá
como é qui a gente pussui arguma coisa, tá
entendeno?[...].
(Depoimento de um trabalhador sem terra, 2010)
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Marcos Prado. Desapropriação por interesse social para fins de reforma
agrária. In: BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio
Quintão. O direito agrário na constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
ALFONSIN, Jacques. A reforma agrária no contexto do respeito dos direitos humanos
fundamentais. In: ESTERCI, Neide; VALLE, Raul Silva Telles do (Org.). Reforma agrária e
meio ambiente. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003.
_______. Apontamento sobre alguns impasses interpretativos da função social da
propriedade rural e sua possível superação. Revista de Direito Agrário, Brasília, DF, ano 18,
n. 17, jan./jun. 2002.
_______. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e
à moradia. Porto Alegre: Fabris, 2002.
ANDRADE, Manuel da Costa de. Abolição e reforma agrária. São Paulo: Ática, 1
BALDUÍNO, Dom Tomás. O patriarca da terra. In: Revista Caros Amigos, São Paulo, ano
VIII, número 96, março/2005, p. 30-35. 987.
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Graal, 1982.
_______. Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997.
_______. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
140
_______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
BRASIL. Estatuto da terra. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (Coleção Saraiva legislação).
BRUNO, Regina. Senhores da Terra, senhores da guerra. Rio de Janeiro, Forense, 1997.
BRELAZ, Moura Walmir. Os sobreviventes do massacre dos Carajás: Um caso de violação
do princípio da dignidade da pessoa humana. Belém: Unama, 2005.
CARTER, Miguel (Org). Combatendo a desigualdade social no Brasil: o MST e a reforma
agrária no Brasil. São Paulo: UNESP, 2010.
CARVALHO, Horácio Martins. A reforma agrária que não se faz. In: Revista Sem Terra,
nov. / dez. de 2005, ano VIII. Número 33, p. 14-19.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
_______. O que é ideologia. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CHIAVENATO, Júlio José. A violência no campo: o latifúndio e a reforma agrária. São
Paulo: Moderna, 1996.
COELHO, M. C. N. A CVRD e a (re)estruturação do espaço geográfico na área de Carajás
(Pará). In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Brasil: questões atuais da
reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 199
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Secretaria Nacional. Conflitos no Campo- Brasil –
2007. Goiânia: CPT Nacional, 2008.
CORAZZA, G. O MST e projeto popular para o Brasil. Santo Ângelo, 2003. 176 p.
Dissertação (Mestrados em Estudos de História Latino Americana). Universidade Regional
Integrado do Alto Uruguai e das Missões- URL- Campus de Santo Angelo-RS, 2003.
DELGADO, Guilherme da Costa. A questão agrária no Brasil: 1950-2003. Brasília: IPEA,
2004. (mimeo).
DEMO, Pedro. O charme da exclusão social. Campinas-SP: Autores Associados, 1998.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e estado. 15. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
ENGELS, Friedrich MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Estudos Avançados:
São Paulo, v.12, n. 34, p. 7-46, set./dez. 1998.
_______. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1987.
141
_______. Manifesto do partido comunista. Prólogo de José Paulo Neto. São Paulo: Cortez,
1998.
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Globo, 2000.
FELICIANO, Alberto Carlos. Movimento Camponês Rebelde: A reforma agrária no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2006.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no
Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
_______. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 245-281.
_______. Questão agrária, pesquisa e MST. São Paulo: Cortez, 2001.
_______. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. Disponível
em:<http:// www2.prudente.unesp.Br/dgeo/nera>. Acesso em 10.05.2010.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 3. ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
FRANCO, Alberto Silva. Breves considerações sobre um relevante acórdão - Liberdade –
Direito fundamental – Prisão cautelar – Esbulho possessório. In: STROZAKE, Juvelino José
(Org.). Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002. p. 277-
289.
GRAZIANO, Francisco Neto. A (difícil) interpretação da realidade agrária. In: SCHMIDT,
Benício Viero et alii (Org.). Os assentamentos de reforma agrária no Brasil. Brasília: Editora:
UnB, 1998. p. 153-169.
GORENDER, Jacob. Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988.
_______. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. In: Stédile, João
Pedro. A questão agrária hoje. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 15-44.
GUERRA, Yolanda. A dimensão investigativa no exercício profissional In: Curso: Serviço
social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS / ABEPSS / CEAD-
UNB, 2009.
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 3. ed.Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
IANNI, Octávio. A luta pela terra – História social da terra e da luta pela terra numa área
da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1978.
INCRA, II Plano Nacional de Reforma Agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio
rural. Brasília: INCRA, 2003.
142
JOSÉ, Graziano da. A modernização dolorosa. Rio De Janeiro.
_______. (org.). A reforma agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1987.
_______. et al. Questão agrária no Brasil na década de 90. Porto Alegre; UFRGS, 2000.
JULIÃO, Francisco. Que são as Ligas Camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1962, p. 71-72. (Cadernos do povo brasileiro).
LARANJEIRA, Raimundo. Direito Agrário. São Paulo: LTR,1984.
LÊNIN, Wladimir Y. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de formação
do mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Nova Cultural, 1982.
MARÉS, Carlos Frederico. Direito agrário e meio ambiente. In: LARANJEIRA, Raymundo
(Coord.). Direito agrário brasileiro. Em homenagem à memória de Fernando Pereira Sodero.
São Paulo: LTr, 1999, p. 507-519.
_______. Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Fabris, 2003.
MARTINS, José de Sousa. O poder do atraso. Ensaios de sociologia da história lenta. São
Paulo: Hucitec, 1994.
_______. José de Souza. Reforma agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Ed. USP, 2001.
_______. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1998.
_______. A caminhada no chão da noite. Emancipação política e libertação dos no campo.
São Paulo: Hucitec, 1989.
_______. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STÉDILE, João Pedro (Org.) A
reforma agrária e a luta do MST. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
_______. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos
sociais do campo. São Paulo: Hucitec, 1989.
_______. .A reforma agrária e os limites da democracia na ―Nova República‖.São Paulo:
Hucitec, 986.
_______. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.
_______. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. Edgar Malagodi com colaboração
de José Arthur Gianotti. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
143
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta
pela terra. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
_______. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.
_______. Impactos históricos do uso e da propriedade da terra no Brasil. In: STEDILE, João
Pedro. (Org.). A reforma agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997.
_______. Reforma Agrária: concepções, controvérsias e questões. RIAD: Cadernos
Temáticos, Rio de Janeiro, 1994.
MAZOYER, Marciel. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise
contemporânea. São Paulo: UNESP; Brasília: NEAD, 2010. MELO, João Alfredo Telles. Reforma agrária quando? CPI mostra as causas da luta pela
terra no Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2006.
MINAYO, MCS. O Desafio do Conhecimento. Pesquisa qualitativa em Saúde. São Paulo:
Hucitec, 2004.
MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular,
2001.
NEAD, Estudos sobre projetos de assentamentos rurais. Brasília: NEAD, 2009.
PRADO JÚNIOR, Caio. A questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.
_______. A questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_______. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense: Publifolha,
2000.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS, José Vicente Tavares dos. A questão política social no campo. Petrópolis: Vozes,
2003.
SAUER, Sergio. Violação dos direitos humanos na Amazônia: conflito e violência na
fronteira paraense. Goiânia/Rio de Janeiro/Curitiba: CPT/Justiça Global/Terra de Direitos,
2005.
_______. Terra e modernidade: a dimensão do espaço na aventura da luta pela terra. Tese
(Doutorado) – Universidade de Brasília, 2002.
_______. Reforma Agrária e geração de emprego e renda no meio rural. São Paulo: Abete,
1998.
144
_______. Movimentos na luta pela terra: conflitos no campo e disputas políticas. Manuscrito
não publicado, 2007.
SAUER, Sergio; SOUZA, Marcos Rogério de; TUBINO, Nilton. O parlamento e a
criminalização dos movimentos de luta pela terra: um balanço da CPMI da terra. Manuscrito
não publicado, 2006.
SAUER, Sergio; PEREIRA, João Marcio Mendes. (ed.). Capturando a terra: Banco Mundial,
políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado. São Paulo: Expressão Popular,
2006.
SCOLESE, Eduardo. A reforma agrária. São Paulo: Publifolha, 2005.
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa. Rio De Janeiro: Zahar, 1981.
SILVA, Anderson Antonio; FERNANDES, Bernardo Mançano. Ocupações de terras, 2000-
2005: movimentos socioterritoriais e espacialização da luta pela terra. Caderno Conflitos no
campo Brasil, 2005. Goiânia: CPT, 2006.
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1987.
SMITH, Roberto. Propriedade privada e transição: estudo da formação da terra transição
para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.
SOUSA JÚNIOR. José Geraldo de. O direito achado na rua: terra, trabalho, justiça e paz.
In: MOLINA, Mônica Castagna; TOURINHO NETO, Fernando da Costa (Org.).
Introdução crítica ao direito agrário. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 17-27.
_______. (Org.) Na fronteira: conhecimento e práticas jurídicas para a sociedade
emancipatória. Porto Alegre: Síntese, 200
SOUZA, Washington Peluso Albino de. A experiência brasileira de Constituição Econômica.
In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 26, n. 102, abr./jun., 1989.
STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra no Brasil. São Paulo: Scrita, 1993.
_______. (Org.). A questão agrária no Brasil 3: programas de reforma agrária: 1946-2003.
São Paulo: Expressão Popular, 2005.
_______. Depoimento à CPMI da Terra. Informação oral apresentada à 5ª Reunião da
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana do Congresso
Nacional (CPMI da Terra), realizada em abril 2004. (mimeo).
2000.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção na agricultura. São
Paulo: Ática, 1986.
145
_______. A geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1988.
_______. A agricultura camponesa no Brasil. São Pulo: Contexto, 1991.
PRESSBURGER, T. Miguel. Advocacia dos movimentos populares. Anais da XVI
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil – Direito, advocacia e mudança.
Brasília: OAB – Conselho Federal, 1996, p. 283-290.
VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do
direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito da reforma agrária: o direito face aos
novos conflitos sociais. Leme: LED, 1998.
VEIGA, José Eli. O que é reforma agrária. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, l990.