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Curso de Especialização em Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais CARRUAGEM ENTRE O SONHO E A REALIDADE: AVANÇOS E RETROCESSOS DA LUTA PELA TERRA NO BRASIL VANIA MARIA CARVALHAIS MARQUES Brasília 2010

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1

Curso de Especialização em Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais

CARRUAGEM ENTRE O SONHO E A REALIDADE:

AVANÇOS E RETROCESSOS DA LUTA PELA TERRA NO BRASIL

VANIA MARIA CARVALHAIS MARQUES

Brasília

2010

2

Universidade de Brasília - UnB

Instituto de Ciências Humanas - IH

Departamento de Serviço Social - SER

Conselho Federal de Serviço Social - CFESS

Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS

CARRUAGEM ENTRE O SONHO E A REALIDADE:

AVANÇOS E RETROCESSOS DA LUTA PELA TERRA NO BRASIL

VANIA MARIA CARVALHAIS MARQUES

Trabalho monográfico apresentado ao Departamento de

Serviço Social – SER/IH da Universidade de Brasília,

como parte dos requisitos necessários para a obtenção do

título de Especialista em Serviço Social.

Orientadora: Drª Maria Conceição Sarmento Padial

Machado

Brasília, novembro de 2010.

3

Banca Examinadora

________________________________________

Professora Doutora Maria Conceição Sarmento Padial

Machado

______________________________________

Professora Doutora Patrícia Basílio Estabile

4

Marques, Vania Maria Carvalhais

Carruagem Entre o Sonho e a Realidade: avanços e

retrocessos da luta pela terra no Brasil. Brasília:

CEAD/UNB/CFESS, 2010.

Monografia –Pós Graduação –Serviço Social – Direitos

Sociais e Competências Profissionais– 1. Questão Agrária

e Acumulação Capitalista - 2. Política Agrária e Reforma

Agrária– 3. Luta pela Terra e Projeto de Assentamento.

5

DE POUCOS PARA POUCOS

Por João Pedro Stédile

A sociedade brasileira é uma das mais injustas e desiguais do planeta. [...]. Somos um povo trabalhador. Produzimos muitas riquezas. No período de 1930-1980, fomos a economia que mais cresceu, em média. Vivemos num território que, provavelmente, seja o mais pródigo em riquezas naturais do mundo. Temos todos os climas e biomas. [...]. Não há sociedade similar que tenha se constituído com tamanha diversidade. Como diz a piada sobre a criação do universo, até os anjos reclamaram dos privilégios que teríamos recebido. Aos quais, Deus teria justificado que, em troca teríamos os piores governos do planeta. E parece que os desígnios divinos se realizaram, porque nesses mais de 500 anos de Brasil foram raros os períodos de democracia e de governos comprometidos com os interesses da população. E com tantas riquezas naturais e um povo tão batalhador nossa sociedade ainda sofre muitas mazelas inaceitáveis.

Nada justifica a elevada concentração da riqueza, da propriedade dos bens e da renda, que beneficiam apenas os 10% mais ricos. [...]. Nossa economia é cada vez mais dependente do exterior e do capital financeiro. [...]. O capital estrangeiro vem aqui nos explorar e reenviar seus lucros livremente. [...]. O capital internacional controla até nossas riquezas naturais. [...]. Nossa burguesia, como advertira o saudoso Florestan Fernandes, abandonou há tempos a proposta de um projeto de desenvolvimento nacional, mesmo capitalista. É uma lúmpen-burguesia, que se contenta em superexplorar seu povo para repartir as taxas do lucro com o capital internacional. Agora cada vez mais controlado pelo capital financeiro e pelas grandes corporações globalizadas.

Os índices de concentração da propriedade da terra, um bem da natureza que deveria estar a serviço de todos, nunca estiveram tão concentrados. O último Censo Agropecuário do IBGE revelou que a concentração fundiária em 2006 é maior do que em 1920, quando havíamos recém-saído da escravidão e que se praticava quase um monopólio da propriedade da terra. A produção agrícola está cada vez mais baseada na monocultura, no uso intensivo de venenos e na expulsão da mão de obra do campo. Transformamo-nos no maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que destroem a natureza, desequilibram o meio ambiente e contaminam os alimentos que todos comemos.

As grandes cidades se transformaram em conglomerados humanos, onde os problemas só aumentam. [...]. Sabe-se que as raízes de todos esses problemas são estruturais e do modelo econômico adotado. Primeiro, foi o modelo agroexportador no período colonial. Depois, ao longo do século XX, implantamos uma industrialização dependente do capital estrangeiro. E agora somos reféns do capital financeiro internacional. [...]. Segundo, tivemos quase sempre governos servis, subalternos aos interesses econômicos estrangeiros. Mesmo o governo Lula conseguiu apenas em parte frear as políticas neoliberais e ajudou a distribuir o bojo entre os mais pobres. Mas, por sua composição de classe e partidos, não teve força suficiente para enfrentar os problemas estruturais da sociedade brasileira.

Esses problemas são graves e tendem a se agravar mais ainda. Nos movimentos sociais, acreditamos que eles serão resolvidos somente quando tivermos em nosso país uma conjugação de forças populares, que se mobilizem em aliança com um governo popular. E assim se façam as mudanças legislativas no poder público e, sobretudo, a mudança do modelo econômico, para construir de fato um projeto popular, ou seja, a serviço do povo no Brasil. Como sonhara Paulo Freire. E, apesar da apatia e pasmaceira social nesse período de nossa história, não se iludam, o povo voltará a se mobilizar e a se organizar por mudanças estruturais.

(Publicado na edição número 600 da revista Carta Capital, de junho de 2010).

s

6

Fig. 1- Charge Erasmo/2006

A fonte principal de toda a estupidez de nossos municipalistas reside precisamente em que

não compreendem a base econômica da transformação agrária burguesa [...] nas duas

variedades possíveis dessa transformação: a latifundiária-burguesa e a camponesa-

burguesa. Sem "limpar" o regime e as relações agrárias medievais, em parte feudais e em

parte asiáticas, não pode sobreviver à transformação burguesa da agricultura, pois o

capital deve - no sentido da necessidade econômica — criar para si um novo regime

agrário adaptado às novas condições da agricultura mercantil livre. Essa "limpeza" dos

restos medievais no terreno das relações agrárias em geral e do velho regime de posse da

terra, em primeiro lugar, deve afetar principalmente as terras dos latifundiários e as terras

comunitárias dos camponeses, pois que tanto uma como a outra dessas formas de

propriedade da terra estão, no presente, adaptadas ao pagamento em trabalho, à herança

da corvéia, e não à economia livre que se desenvolve à maneira capitalista.

Lênin

7

Para Antonio e Olga (in memoriam),

meus queridos pais e doutores maiores de minha vida,

por terem me ensinado a compreender o mundo

para além da exploração capitalista.

Meu esposo e minha filha,

que acompanham e incentivam minha caminhada.

Para os sem terra e assentados em projetos de assentamentos rurais,

por sua luta incessante e busca inabalável

por direitos, respeito e dignidade,

que nesse árduo peregrinar à luz do sonho

de uma Reforma Agrária massiva e de qualidade,

ousaram ser os artífices de seus próprios destinos.

Para todos aqueles que direta ou indiretamente participam dessa luta.

8

AGRADECIMENTOS

Ao fim desse trabalho foram muitos os caminhos percorridos, muitas idas e vindas e,

sobretudo encontro com muitas pessoas que legaram prestimosas contribuições, aprendizados

e lições.

Agradeço inicialmente a esta força estranha que move a vida e que nos põe diante de

outras pessoas, de desafios, decepções, alegrias, tristezas, risos, lágrimas e conquistas, dando-

nos a exata dimensão de nossa humanidade.

Entretanto, o presente trabalho não teria se concretizado sem a inestimável ajuda de

estudiosos da temática, professores, trabalhadores assentados em projetos de assentamento de

reforma agrária, trabalhadores sem terra, lideranças de movimentos sociais, mediadores,

colegas de trabalho, familiares e amigos.

Agradeço especialmente à professora doutora Maria Conceição Sarmento Padial

Machado, minha orientadora e amiga, que, nos momentos mais difíceis desse curso de

especialização, perdoou as falhas e ausências nos debates, prorrogou prazos e motivou a

turma. Com liberdade, paciência, e muita responsabilidade acadêmica, usou seu profundo

conhecimento sobre o tema para corrigir rumos e apontar direções. Se algum mérito existe

nesta monografia, a participação da orientadora foi determinante.

Agradeço também à professora doutora Patrícia Basílio Estabile, examinadora,

integrante da Banca de Defesa, por ter dedicado parte do seu precioso tempo na leitura deste

trabalho e aporte para alargar a minha compreensão sobre o debate teórico da luta pela terra

no Brasil, fortalecendo o meu compromisso profissional de contribuir com a construção de

uma sociedade mais justa, a partir do espaço sócio-cupacional de trabalho.

Agradeço ainda aos colegas de trabalho, Marcelo e Najomary, cujas oportunas e

relevantes observações foram fundamentais para clarear o objeto da pesquisa e melhorar o

raciocínio que vinha sendo construído.

Não posso deixar de agradecer aos que lutam e caminham muito, os trabalhadores sem

terra, trabalhadores assentados e lideranças dos movimentos sociais do sul e sudeste do Pará,

que um dia irão chegar, mas que, na convivência diária, me ensinaram a compreender um

pouco mais a complexidade da luta pela terra frente os desafios da questão agrária brasileira e

a perseguir um outro mundo, onde possamos viver com dignidade.

9

Aos amigos e amigas que são muito mais do que isto, verdadeiros irmãos/irmãs

companheiros/companheiras, que sempre estiveram comigo, mesmo na distância, e foram

fundamentais para a concretização deste trabalho.

A todos aqueles que, nos diferentes lugares, até mesmo nos corredores e esquinas,

apresentaram opiniões sobre o tema, meu sincero agradecimento. Fiquem certos de que as

várias observações feitas, sem maiores pretensões, foram incorporadas ao texto final.

Agradeço carinhosamente aos meus familiares, pelo incondicional apoio, força e

estímulo nos momentos de maior dificuldade nessa caminhada, pedindo desculpas por ter

suprimido um pouco de nossa convivência para que pudesse concluir este estudo

Enfim, por tudo e para todos quero dizer obrigado. Algo indispensável para se viver na

certeza que nenhuma produção acadêmica é construída absolutamente solitária. Nesse longo

peregrinar, citar alguns a serem agradecidos não significa esquecer outros. Assim como sorver

o perfume de uma (ou mais) rosa(s) não significa dizer que as demais foram ignoradas ou não

reconhecidas em sua exuberante beleza e colorido.

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LISTA DE SIGLAS

ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária

ATES - Programa de Assistência Técnica Social e Ambiental à Reforma Agrária

CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina

CF – Constituição Federal

CNA – Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT – Comissão Pastoral da Terra

ETR – Estatuto do Trabalhador Rural

FAA – Frente Ampla da Agricultura

FHC – Fernando Henrique Cardoso

GEBAM – Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas

GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins

GERA – Grupo Interministerial de Trabalho Sobre Reforma Agrária

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INDA – Instituto de Desenvolvimento Agrário

ITERPA - Instituto de Terras do Pará

MASTER – Movimentos dos Agricultores Sem Terra

MDA – Ministério de Desenvolvimento Agrário

MIRAD - Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário

MP – Medida Provisória

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MSTR – Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais

ONU – Organização das Nações Unidas

PA – Projeto de Assentamento

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PFE – Procuradoria Federal Especializada

PGF – Procuradoria Geral Federal

PIN – Produto Interno Bruto

PIN – Programa de Integração Nacional

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PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária

PROCERA – Programa de Crédito Agricultura Familiar

PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e

Nordeste

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

SNA – Sociedade Nacional de Agricultura

SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia

SRB – Sociedade Rural Brasileira

SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

SUPRA – Superintendência de Política Agrária

STF – Supremo Tribunal Federal

TDA – Títulos da Dívida Agrária

UDR – União Democrática Ruralista

ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil

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SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS

RESUMO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15

CAPÍTULO I – QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL: UM PROCESSO HISTÓRICO

DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA.................................................................................21

1.1 A configuração agrária colonial: do regime de sesmarias à lei de terras...........................22

1.2 A configuração agrária na modernização conservadora.....................................................35

1.3 A configuração agrária atual...............................................................................................51

CAPÍTULO II – POLÍTICA AGRÁRIA E REFORMA AGRÁRIA FACE

A PROPRIEDADE PRIVADA E FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA.................................64

2.1 Propriedade privada e sistema capitalista ..........................................................................64

2.2 Propriedade privada e função social da terra .....................................................................78

2.3 Política agrária e reforma agrária: realidade, bandeira de luta ou utopia ...........................91

CAPÍTULO III – A LUTA PELA TERRA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO

NA REFORMA AGRÁRIA................................................................................................112

3.1 A luta pela terra como uma reação contra-hegemônica...................................................112

3.2 Os projetos de assentamentos na reforma agrária............................................................125

CONSIDERAÇÕES..............................................................................................................134

REFERÊNCIAS...................................................................................................................138

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RESUMO

Trata-se de uma monografia de especialização que analisa avanços e retrocessos da luta pela

terra no Brasil, cujo percurso metodológico comporta diferentes momentos históricos, em

que, ao mesmo tempo em que o direito é reconhecido, as leis do capital transformam esse

direito em sonho. É nesse vai-e-vem entre o trabalho e a precarização das condições de vida

que está inscrita a história do trabalhador campesino brasileiro. Assim, o objeto de estudo é a

trajetória da posse e expropriação da terra vivenciada pela sociedade civil e o papel

contraditório do Estado neste processo, que, ao mesmo tempo em que legitima o direito

restrito à propriedade privada, ainda tem que garantir as condições de sobrevivência para o

trabalhador campesino com a implementação de política agrária. Para isso recorreu-se a uma

pesquisa qualitativa, tendo como referencial teórico metodológico os pressupostos de uma

concepção crítico-dialético com raízes no materialismo histórico e dialético do real e do

concreto. A luta pela terra será então abordada como parte de uma totalidade social posta

pelas contradições da sociabilidade capitalista, enquanto práxis contra-hegemônica.

Palavras - Chave: questão agrária, luta pela terra, reforma agrária, política agrária.

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ABSTRACT

This is a monograph of specialization that examines advances and setbacks in the struggle for

land in Brazil, whose methodological approach includes various historical moments in which,

while the right is recognized, the laws of capital to transform this dream right . It is in this

back-and-forth between work and precarious living conditions, which is inscribed the history

of Brazilian peasant worker. Thus, the object of study is the trajectory of possession and

dispossession of land experienced by civil society and the contradictory role of the state in

this process, at the same time legitimate law restricted to private property, must still ensure

the survival conditions for the peasant worker with the implementation of agrarian policy. For

this we used a qualitative research as theoretic methodological assumptions of a critical-

dialectical conception rooted in historical and dialectical materialism of the real and concrete.

The struggle for land will be addressed as part of a social totality called the contradictions of

capitalist sociabildade as counter-hegemonic praxis.

Key - words: agrarian question, the struggle for land, agrarian reform, agrarian policy.

15

INTRODUÇÃO

Ser grande é compartilhar o choro largo do mundo.

(Mário de Andrade)

A formação da sociedade brasileira tem como característica ontológica a exploração

do trabalho, a expropriação do produto desse trabalho e, sobretudo, a concentração da

propriedade da terra, sob a forma de latifúndio. Em Pleno século XXI o quadro agrário

brasileiro tem apresentado um panorama complexo e contraditório onde a ordem tem sido a

luta e os conflitos por terra. No entanto, esse panorama vem se perpetuando ao longo do

tempo.

O título principal deste trabalho “carruagem entre o sonho e a realidade” expressa o

movimento da luta pela terra que se confunde com a própria luta pelo direito ao trabalho, à

sobrevivência e à vida. O sonho, aqui, é compreendido como uma expectativa inerente ao

trabalhador brasileiro que se depara com a realidade da privatização de um bem natural que se

transformou em mercadoria de acesso restrito, a terra.

O subtítulo “avanços e retrocessos da luta pela terra”, comporta os diferentes

momentos históricos, em que, ao mesmo tempo em que o direito é reconhecido, as leis do

capital, transformam esse direito em sonho. É nesse vai-e-vem entre o trabalho e a

precarização das condições de vida que está inscrita a história do trabalhador campesino

brasileiro.

Assim, o objeto de estudo aqui exposto, é a trajetória da posse e expropriação da terra

vivenciada pela sociedade civil e o papel contraditório do Estado neste processo, que, ao

mesmo tempo em que legitima o direito restrito à propriedade privada, ainda tem que garantir

as condições de sobrevivência para o trabalhador campesino com a implementação de política

agrária.

O fato de um bem da natureza, que deveria ser utilizado por todos, ser monopolizado

por uma parcela minoritária da população, que se coloca enquanto classe hegemônica - num

país de dimensões continentais – agrava o quadro de mazelas sociais, pois nega condições de

existência e dignidade a ampla parcela da população. À injusta concentração de terras soma-

se uma longa história de dominação, espoliação, desigualdades sociais, econômicas, políticas

e culturais, exploração dos trabalhadores rurais, marginalização, exclusão e expulsão de

16

mulheres e homens do campo. Essas desigualdades inviabilizam o próprio desenvolvimento

do país.

Para Sauer (2000), o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão

das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Entretanto, reconhece que crescimento do PIB,

aumento da renda per capita, industrialização e avanço tecnológico são importantes à

expansão das liberdades, mas insuficientes. Essas liberdades são essencialmente determinadas

pela fruição do direito ao trabalho, à terra, saúde, educação e direitos civis. No caso em tela,

desenvolvimento deve ser compreendido como crescimento econômico, justiça social e

extensão da cidadania democrática também à população do campo.

A democratização do acesso à terra é um dos caminhos para que o Brasil possa ser um

país desenvolvido. A concentração é a grande geradora do êxodo rural, do inchaço das

grandes cidades e, acima de tudo, do alto grau de miséria e pobreza em que se encontram

milhões de trabalhadores brasileiros. Representa, pois, um dos principais obstáculos à

construção da democracia brasileira.

A terra torna-se sinônimo de poder e prestígio, bem como capital sujeito à

especulação. A concentração fundiária e a imensa pobreza dela decorrente, associada ao

elevado padrão de violência contra os trabalhadores rurais, estão no cerne da “questão agrária

brasileira”.

Os contornos atuais da estrutura agrária estão intimamente ligados ao processo

histórico de colonização do país, iniciando com o regime de sesmarias, adotado no período

colonial. No afã de ocupar o território brasileiro, eram concedidas vastas extensões de terras

aos “amigos do rei”, que mais tarde converteram-se em latifúndios.

Além disso, a Lei de Terras, de 1850, pôs termo ao regime de posses e de sesmarias e

organizou a propriedade privada no Brasil. Ao reconhecer a validade dos títulos sesmariais e

eleger a compra e venda como único meio de aquisição das terras devolutas, impedindo o

acesso à propriedade aos negros, indígenas e camponeses pobres, confirmou a estrutura

fundiária concentradora e excludente. A partir dessa legislação se estruturam as bases para o

Estado legitimar a propriedade privada da terra e viabilizar a separação entre as esferas de

poder público e privado, minando a oportunidade ímpar de se fazer a reforma agrária.

A modernização conservadora, a que a agricultura brasileira foi submetida, a partir dos

anos 1960, engendrou significativo aumento da concentração fundiária e da pobreza no meio

rural. A mobilização dos trabalhadores rurais em sua luta por uma efetiva política agrária

17

logrou êxito em aprovar o Estatuto da Terra (1964), considerado um marco jurídico na luta

pela reforma agrária no Brasil.

Todavia, não garantiu que fosse aplicado ao ponto de alterar a estrutura agrária do

país. O Estatuto foi completamente esvaziado pela classe dominante agrária. A política

agrária no período ditatorial era revestida de um projeto de colonização do território,

sobretudo da Amazônia, cujo lema era “Colonizar para não Reformar” (OLIVEIRA, 2009, P.

171).

O resultado desse longo e contraditório processo histórico, agravado pelo modelo

agrícola inaugurado pela modernização conservadora, e que agora se apresenta como

agronegócio, é uma estrutura fundiária concentradora e excludente: quase metade do território

brasileiro é controlada por 1,6% dos proprietários (MARTINS, 2003) ao passo que milhões de

famílias de trabalhadores rurais esperam pela prometida e sempre abarbada reforma agrária.

Na história constitucional brasileira, a propriedade privada sempre foi sacralizada

como direito individual, exclusivo e absoluto do proprietário. Para superar as mazelas do

campo, a Constituição de 1988 elevou a reforma agrária à dignidade constitucional e conferiu

à propriedade rural uma função social. A Constituição deixou claro seu compromisso com a

mudança no padrão de distribuição e posse da terra no país. Em outras palavras, os modelos

de Estado e de sociedade fundados pela Magna Carta de 1988 assentam-se sobre a

democratização da propriedade da terra. Daí porque o Brasil precisa realizar a reforma

agrária.

Entretanto, o cumprimento integral da função social é ignorado no país. Na prática, os

elementos: ambiental e social da função social são considerados apenas para efeitos de

desapropriação, quando a propriedade descumpre também o elemento econômico, ou seja,

não atinge os índices de produtividade. Mesmo nos governos civis, apesar da elaboração dos

Planos Nacionais de Reforma Agrária I e II, não há registros de avanços consideráveis com

relação à reforma agrária.

Mas, se de um lado, há opressão, de outro, surge a resistência por parte daqueles que

não aceitam o presente quadro e cobram mudanças. A luta coletiva engendrada pelas classes

populares direciona-se contra uma situação de patente injustiça social.

A oposição à estrutura posta gera, portanto, o seu contrário, na forma de movimentos

que vão lutar pela democratização do acesso à terra e que adquiriram grande destaque nos

anos de 1990, sendo um dos grandes atores políticos da atualidade, com destaque para o

18

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Eles cobram uma dívida social vencida há

tempos: terra, trabalho, moradia, dignidade, melhores condições de existência e justiça social.

E o meio escolhido para externar suas reivindicações foi o da ação direta, mediante diversas

modalidades de pressão e protesto social: ocupações de terras e prédios públicos, caminhadas,

marchas, acampamentos e outros atos, na perspectiva de efetivação de direitos.

O método utilizado para desenvolver tal compreensão é o materialismo histórico

dialético, fundamentado nas relações de antagonismo entre as classes sociais. Trata-se de um

método abrangente por ocupar-se de das contradições expressas à sociedade, por consistir em

entender a realidade concreta; o concreto com a idéia, a forma com o conteúdo, a aparência

com a essência, o fenômeno com o ser. Segundo Ianni (1988, p. 131), permite assim, o estudo

das contradições das relações sociais, o conflito e a luta entre as classes. A abordagem crítico-

dialética se assenta nas relações de antagonismo em que o princípio da contradição governa o

modo de pensar e o modo de ser. Esta é a razão pela qual é possível aplicá-la no estudo

presente.

A luta pela terra será então abordada como parte de uma totalidade social posta pelas

contradições da sociabilidade capitalista. A dialética assume a qualidade dos fatos e das

relações sociais como propriedades inerentes, considerando quantidade e qualidade como

categorias inseparáveis e interdependentes, ensejando-se assim a dissolução das dicotomias

quantitativo/qualitativo, macro/micro, interioridade e exterioridade com que se debatem as

diversas correntes sociológicas.

A metodologia utilizada é ancorada em constatações reais da luta pela terra mediante

trabalhos de campo, visitas e reuniões em acampamentos e assentamentos; de análise de

dados do sistema de informações do INCRA (SIPRA); de leituras teóricas (pesquisa

bibliográfica) de livros, dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos e outros meios

de informação em periódicos e páginas eletrônicas; de observações participativas e

sistemáticas em seminários, oficinas de direito agrário e audiências públicas; e

acompanhamento de colóquios com o professor orientador, lideranças do MST, FETAGRI,

FETRAF e coordenadores da CPT.

Em coro com Lima (2006) ao afirmar que o modo de analisar a temática depende da

concepção que se tenha dela, bem como da própria concepção de mundo do pesquisador,

optou-se por uma abordagem de caráter plural, interdisciplinar, inserida na realidade social

brasileira.

19

Assim, os principais referenciais teóricos que balizam essa monografia estão

ancorados nos pensamentos de: Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançamo

Fernandes, Carlos Frederico Marés, José de Souza Martins, João Pedro Stédile e Sérgio

Sauer.

O cenário encontrado é a realidade brasileira, altamente complexa e contraditória,

pautada pelo modo de produção hegemônico, o capitalismo, com os contornos conferidos pela

estrutura agrária e luta pela terra no decorrer da história. Uma sociedade prenhe de injustiças e

desigualdades sociais, que atingem duramente as camadas populares, principalmente as do

campo. Não obstante este cenário, a existência das lutas sociais contra-hegemônicas, travadas

pelos que não se sentem representados pelo atual estado de coisas, merece ser pesquisada.

O interesse por esse estudo foi consubstanciado inicialmente pela trajetória acadêmica

da pesquisadora, vez que se confunde com sua militância política em defesa dos direitos da

classe trabalhadora e que desde muito cedo acompanha a luta pela terra. Sua vivência, e

posteriormente seus estudos acadêmicos, permitiram que compreendesse a dimensão política

dessa luta que tem como princípio imediato a luta pela sobrevivência.

Assim como Gramsci (1999) diz que não se faz política sem paixão, percebi que

também não se faz ciência sem paixão e sem acúmulo de experiência e saberes. Portanto, ao

fazer referência à carruagem – e não carroça, que é o veículo que os agricultores conhecem –

estou me referindo também ao movimento devir de uma realidade pautada pelo sofrimento e

pela perseverança. Esse devir não é duro como uma carroça, mas complexo como uma

carruagem que carrega uma história rica de conflitos e contradições.

A história do Brasil foi contada pelos vencedores, mas foi junto aos vencidos que pude

conhecer a verdadeira história, onde o mundo real é construído com muita luta que tem como

alicerce o sonho – ancorado na subjetividade – pois as circunstâncias objetivas pouco têm a

oferecer. Assim, a inquietação em relação à temática vem à baila após a minha inserção

profissional no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) - autarquia

responsável pela política de reforma agrária. Recentemente, como integrante da equipe de

ouvidoria Agrária do INCRA – Superintendência Regional do Sul e Sudeste do Estado do

Pará, o tema ganha ênfase ao vivenciar o cotidiano de lutas e resistências dos trabalhadores

sem terras e assentados, pela democratização do acesso à terra e garantia de políticas públicas

voltadas para os acampamentos e assentamentos rurais.

20

Não se trata apenas de um tema adequado à qualificação da pesquisadora, ou de

interesse individual, é uma questão de interesse social, com grande lacuna no campo do

conhecimento.

Esse estudo ganha destaque também no campo profissional, considerando que nas

últimas décadas o Serviço Social vem se destacando nas ciências sociais, como campo de

pesquisa e de produção de conhecimento científico. Portanto, pela sua dimensão investigativa

e interventiva, no sentido de fornecer subsídios para além da análise de um fenômeno social e,

ainda, para reforçar os valores e princípios norteadores do Projeto Ético-Político Profissional

do Serviço Social. Volta e meia somos surpreendidos com apelos de profissionais e estudiosos

no sentido de colocar a luta pela terra no cerne dos debates acadêmicos.

Em face do estudo proposto, desdobrou-se organicamente em três capítulos, sendo o

primeiro e o segundo com três tópicos e último com dois tópicos. São os capítulos: a questão

agrária no Brasil: um processo histórico da acumulação capitalista; política agrária e reforma

agrária face a propriedade privada e função social da terra; e a luta pela terra e os projetos de

assentamentos na reforma agrária.

No primeiro capítulo propõe-se a retratar a estrutura fundiária brasileira,

demonstrando as raízes históricas da questão agrária, a elevada concentração da terra, os

problemas decorrentes dessa concentração e a necessidade de sua democratização, destacando

a configuração agrária no período colonial - com o regime de sesmarias e a Lei de Terras; a

configuração agrária no processo de modernização conservadora e seus desdobramentos; e a

estrutura agrária na atualidade - destacando a luta pela terra e a política agrária nos governos

civis. Não se descuida, portanto, da abordagem do agronegócio, vendido como modelo de

desenvolvimento e modernização para o campo. O conjunto destas questões atesta a

centralidade da questão agrária, que traz à tona, aspectos altamente negativos,

consubstanciados na absurda concentração de terras, na exploração dos trabalhadores rurais e

na expulsão de camponeses, no processo do êxodo rural.

No segundo, reserva-se a uma discussão teórica sobre propriedade e função social da

terra na perspectiva do direito brasileiro. Visa analisar a origem da propriedade privada da

terra e sua importância para o sistema capitalista, bem como refletir sobre a modificação do

direito de propriedade operada pelo advento da teoria da função social. Objetiva também

analisar a proteção historicamente conferida à propriedade pelo ordenamento jurídico

brasileiro, até a transformação promovida pela Constituição Federal de 1988, que modificou

21

completamente seu regime jurídico de modo a proteger apenas a propriedade que cumpre a

função social. Em seguida, discute-se a política agrária e a reforma agrária, entre a realidade e

a utopia.

No terceiro capítulo, contra as tendências hegemônicas, que se manifestam desde os

primórdios da colonização, insurge-se a resistência popular no campo na forma de diversas

experiências: lutas indígenas e negras, Canudos, Contestado, revoltas de posseiros, Ligas

Camponesas, movimento sindical no campo e os movimentos sem terra, dentre os quais

merece menção especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Busca-se

a compreensão do sentido que a luta pela terra e suas formas de resistência, bem como a

reforma agrária adquiriram ao longo do tempo e a resposta do Estado, e dos setores

dominantes à atuação das classes populares. Está centrado, portanto, no processo de

organização, ocupação e conquista da terra que origina os assentamentos rurais - território

gestado pelos assentados após a conquista da terra.

22

CAPÍTULO I

A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL:

UM PROCESSO HISTÓRICO DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA

É possível dizer que todos os momentos mais notáveis da história da

sociedade brasileira estão influenciados pela questão agrária. As

rupturas políticas das últimas décadas, quando o Brasil já é um país

bastante urbanizado e industrializado, também revelam essa

influência. A questão agrária está presente na transição da

Monarquia à República, do Estado oligárquico ao populista, do

populista ao militar, na crise da ditadura militar e nos movimentos e

partidos que estão lutando pela construção de outra forma de

Estado. Há muito campo nessa história.

José de Souza Martins

O Brasil possui uma estrutura fundiária marcada pelo elevado índice de concentração

da propriedade da terra, pela violência contra camponeses e pela pobreza entre a população do

campo. Essa configuração foi se desenhando ao longo dos mais de 500 anos de história, em

decorrência das políticas implementadas pelos sucessivos governos. Concentração de riquezas

(e de propriedades privadas) nas mãos de poucos, exploração do trabalho e aviltamento dos

direitos estão no cerne da questão agrária brasileira, essas condições se expressam por meio

da pobreza e violência no campo e se projetam para a sociedade como um todo.

No sistema latifundiário brasileiro, mesmo com o alegado aumento de produtividade

atribuído ao agronegócio, muitas pessoas passam fome, são subnutridas ou desnutridas e

vivem na miséria absoluta, mesmo com tantos hectares de áreas agricultáveis. É desnecessário

afirmar que essa situação é vergonhosa, pois proeminentes personalidades que apóiam o

sistema capitalista já o fazem; e ainda, inúmeros documentos oficiais que atestam o

deplorável quadro. Esta situação é histórica no Brasil e vem ocorrendo em diversas gestões de

governantes que, em geral, apresentam propostas reformistas que não atingem a causa

principal (OLIVEIRA, 2006).

A acentuada desigualdade da estrutura fundiária brasileira apesar de historicamente

construída pode ser igualmente desconstruída, exigindo-se instrumentos, políticas e ações que

privilegiem os grupos historicamente excluídos, mas sem deixá-los como meros espectadores

ou destinatários, procurando inseri-los num projeto onde figurem enquanto sujeitos de sua

transformação. Em coro com Fernandes (1996), a intensificação das desigualdades é um

movimento próprio do capitalismo, mas a desigualdade não pode ser assim percebida pelos

23

“de baixo”, que “precisam” acreditar, com fé inquebrantável e, para a tranqüilidade do

sistema, na eternidade das relações sociais, ou seja, as coisas são assim, foram sempre assim e

assim o será.

A estrutura agrária, montada sobre o latifúndio, é estruturalmente violenta, no sentido

de negar o outro, de impedir uma existência digna para a ampla maioria. É uma violência

estrutural, que se manifesta de distintos modos e que muitas vezes passa despercebida, mas é

diuturnamente sentida. O campo tem sido cenário de injustiças recorrentes, de negação de

direitos sociais, mas também é aí que vem se dando, há tempos, a resistência dos

trabalhadores sem-terra e assentados em Projetos de Assentamento de Reforma Agrária, na

forma de organizações e movimentos sociais que lutam pela democratização de acesso a terra

e políticas agrárias.

1.1 A configuração agrária colonial: do regime de sesmaria à lei de terras

A existência humana sob o globo está condicionada, desde sempre, àquilo que se

extrai da terra. Ao mesmo tempo em que foram sendo adquiridos conhecimentos sobre o

manejo do solo, houve a fixação das populações, outrora nômades, o que deu origem à

agricultura, à pecuária e outras culturas afins. No entanto, aquilo que, inicialmente, era um

bem coletivo, grupal, passou a ter donos, a ser monopolizado por certas castas, a ter preço,

donde o domínio sobre a terra modificou as relações humanas e conferiu imenso poder aos

seus detentores, tornando-se motivo de contendas, abusos e mortes.

Assim, desde os primórdios da sociedade brasileira até a chegada dos portugueses ao

Brasil, a posse das terras, como as áreas de bosques, florestas e pastagens eram comunais,

sendo usufruídas pelas populações que jaziam neste território. Souza (2007) destaca que

segundo a hipótese mais aceita, as populações indígenas teriam chegado ao continente

americano através de correntes migratórias originárias da Ásia. Estima-se que cinco milhões

de índios habitavam o território brasileiro à época de sua ”descoberta”.

Nesse sentido Souza (2007) assevera que:

O histórico de apropriação de grandes extensões de terras por pequenos grupos encontra nascedouro naquilo que oficialmente ficou conhecido como

"descobrimento”, mas que, em verdade, configurou-se em verdadeira invasão

24

portuguesa [...]. Quando os europeus aqui chegaram, a América já tinha donos, há muito tempo, embora estes não soubessem o que fosse isso: ser donos (p.95).

Stédile (2005) destaca que esses habitantes pouco desenvolveram a agricultura.

Domesticaram apenas algumas plantas existentes na natureza, em especial a mandioca, o

amendoim, a banana, o tabaco e as frutas silvestres, cujos povos viviam sobre o regime de

terras comunais. Portanto, os primeiros habitantes do território brasileiro não praticaram a

apropriação individual da terra, nem tampouco conheciam a idéia de propriedade fundiária

privada.

Reforçando essa teoria, Martins (1997) adiciona que antes de 1500, data da vinda dos

portugueses para o Brasil, a propriedade da terra era representada pela forma tribal, aquela

primeira configuração da posse fundiária enfatizada por Marx (2007), onde os inúmeros

povos indígenas que habitavam o Brasil, com a sua diversidade de culturas, detinham a posse

coletiva dos seus meios de subsistência. A propriedade privada fundiária não existia, sendo a

terra do coletivo tribal, quando suas terras foram usurpadas pela colonização européia.

Ou seja, antes dos idos de 1500 a terra era um bem coletivo, trabalhada e cuidada pelas

diversas tribos indígenas, que daí extraíam sua sobrevivência (coleta, caça, pesca), sem

preocupações com a produção de excedentes e desconhecendo vícios que estavam por vir:

cercas, títulos de propriedade, comercialização, mercado, direito sucessório, entre outros.

Nessa mesma linha de pensamento, Souza (2007) afirma:

A terra era concebida como a grande mãe, de onde retirava o sustento. [...]. A terra,

portanto, era do uso comum dos povos. A mudança desse padrão de utilização teve início com o processo de expansão comercial dos países europeus, mais

especificamente com o Tratado de Tordesilhas1, em 1494, entre Portugal e Espanha,

que dividiu as descobertas territoriais no Ocidente entre os dois reinos. Após a

tripulação comandada por Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500, a conseqüência

desse tratado foi a subsunção do território brasileiro à Coroa portuguesa e a seu

ordenamento jurídico. [...]. Em 1504, Portugal instituiu o regime das sesmarias no

Brasil. Com isso, buscava-se povoar e garantir o controle do território pelos

portugueses (p. 22-23).

1 O Tratado de Tordesilhas, assinado em 4 de junho de 1494, estabelecia um meridiano imaginário, situado a

370 léguas do arquipélago de Cabo Verde, na costa da África, a leste do qual todas as descobertas seriam

reconhecidas como legitimamente pertencentes a Portugal e as situadas a oeste como pertencentes à Espanha. A

linha imaginária seguia no Brasil, o meridiano que passa por Belém do Pará, ao Norte, e por Laguna, no Estado

de Santa Catarina ao Sul.

25

A primeira forma de propriedade privada no Brasil surgiu então com a colonização

portuguesa2 por meio da introdução das sesmarias na colônia brasileira. Depois de fracassadas

as primeiras tentativas de colonização, a empresa colonial, comandada por Martim Afonso de

Souza, logrou êxito em garantir o povoamento e introduzir práticas de produção voltadas aos

interesses das metrópoles, em especial o cultivo da cana-de-açúcar (SOUZA, 2007).

A empresa colonial era, portanto, calcada na detenção de grandes áreas de terras, nas

mãos de poucos senhores, na monocultura, no trabalho escravo – inicialmente indígena e

depois negro – e na produção para exportação. É importante reconhecer que a principal

atividade econômica no período colonial não era a agricultura, mas o tráfico negreiro.

As terras que antes eram comunais tornam-se de uso privado. A madeira, por exemplo,

cujo acesso era gratuito nos bosques e florestas, a partir de então, passa a ser comprada. Em

seguida, o mesmo acontece com as pastagens, devido às crescentes indústrias urbanas

necessitarem de matéria prima em grandes quantidades, como a lã. A procura por cereais

também aumenta, visto o crescimento dos mercados urbanos.

Fazendo coro com Guimarães (1995) cumpre ressaltar que essa apropriação inicial de

terras não foi nada pacífica. Ao contrário, ostentou uma face violenta, opressiva e traumática,

avançando sobre as terras e tribos indígenas, acarretando imensos massacres. Para civilizar os

“bárbaros” e domar a terra, lançaram mão de muitas barbaridades – verdadeiro etnocídio

contra indígenas e, posteriormente, contra negros.

Tamanha violência contra pessoas e a natureza é o pecado original do latifúndio, do

qual ele jamais se redimirá. E tudo fora justificado em nome do discurso da

civilização e da evangelização (GUIMARÃES, 1995, p.19).

Várias são as correntes teóricas acerca da natureza das relações de produção da

estrutura fundiária colonial. Guimarães (1997, p. 5) sustenta o caráter feudal dessas relações.

Para ele, o “feudalismo colonial” era marcado pela concentração da terra nas mãos dos

fidalgos de confiança da Coroa, o que lhes rendia um poder extra-econômico, característica

típica do regime feudal.

2 Caio Prado Junior (2000, p. 10) afirma que a colonização portuguesa na América não é um fato isolado. Ao

contrário, é um capítulo da expansão marítima dos países da Europa. Tal expansão “se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daquele país” (p. 10). Deriva do desenvolvimento do

comércio continental europeu, que até o Século XIV é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a

uma mesma navegação costeira e de cabotagem. Em suma e no essencial, Caio Prado Junior acredita que todos

os grandes descobrimentos daquele período, inclusive o do Brasil, articulam-se num conjunto que são senão um

capítulo da história do comércio europeu.

26

Para esse autor:

A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 tinha sua base interna no

monopólio territorial. E como a terra era, então, indiscutivelmente, o principal e

mais importante dos meios de produção, a classe que possuía sobre ela o domínio absoluto estava habilitada a sobrepor às demais classes o seu poderio, por todos os

meios de coação econômica e, notadamente, de coação não-econômica [...]

(GUIMARÃES, 1997, p. 30).

O economista Simonsen (1987) classifica como capitalismo colonial o regime

econômico implantado pelos portugueses, haja vista que o objetivo de lucro e acumulação era

marcante, o que não podia ser identificado no sistema feudal.

Explicita:

Não nos parece razoável que a quase totalidade dos nossos historiadores acentuem,

em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatárias, chegando alguns a

classificá-lo como um retrocesso em relação às conquistas políticas da época.

Portugal, desejando ocupar e colonizar a nova terra e não tendo recursos para fazê-lo

à custa do erário real, outorgou para isso grandes concessões a nobres fidalgos,

alguns deles ricos proprietários, e outros experimentados nas expedições para as

Índias. [...]. Sob o ponto de vista econômico, que não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial, (SIMONSEN, 1987, p. 49).

Prado Junior (1981) numa outra vertente, acredita que o período foi marcado pelo

“capitalismo dependente” (p. 14), pois à época da entrada dos portugueses ao Brasil, o

feudalismo não mais existia em Portugal. E assim justifica:

O país estava sob a égide do nascente sistema capitalista de produção, modelo

transplantado para a colônia, com estreitos vínculos de dependência em relação à

metrópole. [...]. O epicentro dessa estrutura era a grande estrutura monocultural

trabalhada por escravos, voltada à exportação. O monopólio da terra pertencia à

Coroa portuguesa, que concedia a posse de grandes extensões aos fidalgos de

confiança do rei, tidos como homens de qualidade, dando origem a uma estrutura

essencialmente latifundiária (p. 14-18).

Já Faoro (2000) classifica o regime econômico colonial como capitalismo

patrimonialista. Para ele:

Além de se diferenciar do feudalismo pelas relações de trabalho e fins distintos, a

economia colonial com forte presença do capital, o qual se fundava na terra, no

engenho, nos escravos, enfim, no patrimônio responsável pelo domínio político de

seus detentores (p. 20-28).

Frente às diferentes vertentes acerca da natureza das relações de produção oriundas da

estrutura fundiária colonial, Souza (2007) analisa que esse não é um debate meramente

acadêmico, uma vez que estão envolvidas questões políticas relevantes, sendo que a principal

27

delas tem relação com a necessidade de se realizar a reforma agrária para viabilizar a

consolidação do capitalismo brasileiro.

Para Souza (2005) a afirmação sustentada por Simonsen - economista conservador - de

que o Brasil iniciou sua vida econômica sob o signo do capitalismo, pode levar à

compreensão de que uma mudança profunda na estrutura fundiária é algo supérfluo e

desnecessário.

Por outro lado, a classificação, como feudal, do regime implantado pelos portugueses,

sustentada por Guimarães, aponta a necessidade da reforma agrária como desenvolvimento

das forças produtivas no campo, consequentemente, sem reforma agrária não existe

capitalismo brasileiro.

Diante dessas concepções, Souza (2005) alerta que ambas foram elaboradas antes da

chamada revolução conservadora da agricultura, ocorrida durante a ditadura militar, após

1964. Tal modernização teve como função capitalizar o campo, sem fazer a reforma agrária,

contradizendo, em parte, a tese de Guimarães.

E o autor arremata:

A complexidade da estrutura agrária colonial não permite uma classificação rígida.

Isso porque apresenta elementos dos sistemas escravistas, feudal e capitalista, além

de ter sido conformada no momento histórico em que o feudalismo vivia sua

débâcle e o capitalismo ainda não tinha se consolidado, período que ficou conhecido

como mercantilismo (SOUZA, 2005, p. 25).

No entanto, isso não impede que sejam identificados os elementos fundamentais da

estrutura produtiva. A base dessa estrutura era a grande propriedade trabalhada por escravos,

voltada à exportação. Prado Júnior (2000) sustenta que o monopólio da terra pertencia à

Coroa portuguesa, que concedia a posse de vastas extensões aos fidalgos de confiança do rei,

tidos como “homens de qualidade” (p.18), dando origem a uma estrutura essencialmente

latifundiária.

Os latifúndios exploravam a força de trabalho escrava. Segundo Sauer (2005), a renda

do escravo é uma das categorias econômicas mais importantes do contexto colonial, tendo em

vista que demandava grandes investimentos privados, ao passo que a terra era doada

gratuitamente pela Coroa. O escravo valia muito mais que a terra e só podia ser obtido por

compra. A questão fundamental era ter ou não ter escravos. Ou seja, a base econômica

fundamental e decisiva era a propriedade de escravos e não a propriedade de terras.

De acordo com Martins (1995) a renda da terra durante a vigência do regime sesmarial

28

não se configurou numa categoria econômica importante, o fundamental nesse período foi à

renda do escravo, que esteve presente à lógica da acumulação mercantil. “O escravo era parte

integrante da propriedade, ele em si podia ser comprado ou vendido em qualquer tempo ou

lugar” (OLIVEIRA, 1986, p. 16). O padrão importante de acumulação se constituiu sempre na

acumulação escravista, e o escravo era o substrato para obtenção de riqueza, a qual

assegurava a inclusão de riqueza mercantil.

A empresa colonial tinha na monocultura a sua marca registrada, sendo a cana-de-

açúcar o principal produto cultivado. Uma pequena quantidade de famílias detinha o controle

sobre as terras do Brasil colonial. Prosseguindo:

Dominar a terra, açambarcá-la, significa ter o controle absoluto da totalidade dos

meios de produção agrícola. Esse domínio se espraiava pelas outras esferas da vida social e política. Em síntese, o senhorio da terra garantia aos fidalgos, amigos do rei,

a dominação econômica, social e política sobre o território colonial. A forma

jurídica para essa dominação era o instituto da sesmaria (SOUZA, 2007, p. 25-26).

A denominada Lei de Sesmarias editada em Portugal teve como objetivo combater

uma aguçada crise de abastecimento, queda demográfica e conseqüente escassez de mão de

obra que assolava a Europa, em 1934 (Souza, 2007). Movida pelas necessidades conjunturais

de promoção da agricultura, a Lei de Sesmarias apresentou um amplo programa de reforma na

distribuição da propriedade territorial, tendo como fundamento básico a obrigatoriedade de

cultivo como condição de posse da terra e a exploração da gleba ao proprietário que a

deixasse improdutiva. Souza conclui que o Instituto das Sesmarias chega ao Brasil quando já

superado em Portugal.

O fato das sesmarias terem como fonte de legitimidade a obrigatoriedade do cultivo

não impediu que a ocupação do território brasileiro prescindisse da produção. A Lei de

Sesmarias nunca foi executada como devia. Acrescenta o autor:

Na prática, quando não se pode editar uma nova lei, por razões estruturais ou

conjunturais, que concilie os institutos jurídicos com os interesses da classe

dominante, os institutos jurídicos são interpretados e aplicados de modo a agasalhar os interesses da classe dominante (SOUZA, 2007, p. 27).

A legislação somente se aplicava naquilo que interessava aos controladores da

estrutura econômica colonial. A classe dominante, essencialmente agrária, se recusava a

aplicar as normas que regulavam as sesmarias, tornando as concessões cada vez mais raras.

As sesmarias foram transplantadas mecanicamente porque a Coroa portuguesa

buscava colonizar o território, defendendo-o dos conquistadores estrangeiros. A

ocupação territorial, porém, guardava objetivos econômicos, dentre os quais

29

implantar um sistema de produção que abastecesse o mercado luso e permitisse a exportação aos demais países europeus, gerando divisas à Portugal. Como as

extensões de terras eram vastas, as dadas de terras em sesmarias eram igualmente

grandes. Na prática, o monopólio da Coroa transferiu-se às mãos dos „homens de

qualidade‟, nobres ou plebeus enriquecidos, que passavam a deter o controle não

apenas das terras, mas também o poder econômico, social e político. [...]. Dito de

outro modo, a infra-estrutura econômica do Brasil colonial deu ao instituto das

sesmarias uma conformação própria, capaz de legitimar o controle nobiliário sobre

grandes concessões de terras (SOUZA, 2007, p. 27-28).

Para esse mesmo autor, as sesmarias eram concedidas aos nobres da corte portuguesa,

comerciantes, funcionários pertencentes à burguesia e a pequena nobreza. A região do litoral

do Brasil foi dividida em imensas extensões de terras que foram chamadas de Capitanias

Hereditárias, pois eram passíveis de herança, administradas pelos donatários como já

assinalado. Assim, a questão fundiária no país remonta a criação das capitanias hereditárias e

o sistema de sesmarias.

A aplicação distorcida do sistema de sesmarias ao Brasil colonial excluiu os pobres,

indígenas e negros da propriedade sesmarial. Por essa razão, esses não tinham outra opção

senão apoderar-se fisicamente da terra necessária à sua subsistência, o que normalmente

acontecia em local afastado dos núcleos de povoamento.

Para Souza (2005), a propriedade sesmarial brasileira decorre de interesse de classe. A

maneira como a sesmaria foi interpretada e aplicada está ancorada nos objetivos dos senhores

de terra e de escravos que dominavam a estrutura econômica naquele momento histórico.

Nessa perspectiva, Gorender avalia:

A história do regime territorial no Brasil colonial permite aferir como a instituição

portuguesa da sesmaria foi amoldada aos interesses dos senhores de escravos,

mesmo quando sob certos aspectos, se lhes opunha a orientação do governo

metropolitano. Da forma jurídica original se conservou na Colônia apenas o que

convinha ao novo conteúdo econômico-social escravista (apud SOUZA 1988, p. 28).

Como resultado, as sesmarias, que tinham o oceano como marco inicial, podiam

aumentar suas áreas à luz da agregação de novas terras, rumo ao interior. Nascia, assim, o

latifúndio, “a larga extensão de terra, pouco ou escassamente trabalhada” (IANNI, 1981, p.88)

e que passou a dominar o cenário. Algumas fazendas de hoje mantém limites quase idênticos

aos da época das sesmarias, permitindo-se concluir que a estrutura fundiária muito pouco

mudou (OLIVEIRA, 2002, p. 5).

30

A propriedade sesmarial, que perdurou no Brasil cerca de três séculos, deixou como

herança uma estrutura latifundiária e um modelo agrícola3 voltado à grande propriedade

monocultora, cuja produção era direcionada à exportação. As marcas desse sistema agro-

exportador perduram até os dias atuais.

O século XIX trouxe o esgotamento do regime de sesmarias, “extinto pela Resolução

Imperial de 17 de junho de 1822, próximo à proclamação da Independência” (SOUZA, 2007,

p.29). O vazio da abolição das concessões de sesmarias, compreendendo o período de

Resolução de 17 de junho de 1822 e a edição da Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850,

chamada Lei de Terras, foi ocupado pelo costume.

Diante da inexistência de leis regulando o acesso à terra, a posse efetiva passou a

funcionar como modo de aquisição de domínio, conhecido como regime de posse. Souza

(2005) prossegue sua teoria afirmando que o direito tanto de usar quanto de dispor da terra

estava atrelado à sua efetiva utilização, independente da existência de título expedido pelo

Poder Público.

O apossamento com cultura efetiva, “se impregnou do espírito latifundiário, que a

legislação das sesmarias difundira e fomentara. As posses passaram a abranger fazendas

inteiras e léguas a fio” (SOUZA, 2005, p.30). A extinção da propriedade sesmarial ocorreu no

início da expansão da economia cafeeira e do movimento que resultou na Independência. Na

verdade, o que estava em pauta era a regulamentação da propriedade privada, como exigência

do próprio desenvolvimento do Estado.

Sobre essa análise, Prado Jr. (1995) sintetiza que a questão agrária brasileira está

intimamente ligada ao processo histórico de colonização do país, iniciando com o processo de

distribuição de grandes extensões de terra, as sesmarias. As doações das terras se deram em

grandes extensões, uma vez que sobravam terras e as ambições daqueles beneficiados não se

contentariam com pequenas propriedades. Desde o período das capitanias hereditárias,

passando pelos diversos ciclos econômicos (açúcar, mineração, borracha, pecuária e café) até

os dias atuais, a questão da posse da terra esteve presente no cenário político nacional.

Para esse autor, além da política inicial da ocupação do território brasileiro, outro fator

que agravou ainda mais a concentração de terras no país foi a criação da lei n° 601, denominada

3 Observa-se que esse período é marcado também pelo início da empresa colonial agrícola, calcada na detenção

de grandes áreas de terra - em mãos de poucos senhores -, na monocultura, no trabalho escravo inicialmente

indígena e depois negro – e na produção para exportação (SOUZA, 2007).

31

de Lei de Terras de 1850, que configurou a estrutura fundiária do país transformando a terra em

mercadoria e acabando com a única via de acesso a ela , então existente, o regime de posse ou a

lei do usucapião. Nesse sistema o uso produtivo de um pedaço de terra, após certo número de

anos, abria a via para a obtenção do título de propriedade.

A Lei de Terras n° 601, editada e aprovada em uma conjuntura de inevitável derrocada

do regime escravista, prenunciando uma profunda crise de oferta de mão de obra que atingiria

os grandes detentores de terra, organizou a propriedade privada e impediu o acesso à terra aos

que não podiam comprar, forçando os negros e pobres ”livres”- inclusive os imigrantes

europeus - a trabalhar para os grandes proprietários. Posteriormente, o Código Civil de 1917,

veio fortalecer ainda mais a propriedade privada, instituindo o direito de propriedade como

“absoluto, perpétuo, irrenunciável, imperdível, praticamente imprescindível” (MEDEIROS,

2002, p. 14).

Ao analisar a derrocada do regime escravocrata, Souza elenca que a aprovação da Lei

Eusébio de Queiroz (1850), que proibia o tráfico de escravos, acrescida da promulgação da

Lei do Ventre Livre (1871), reconhecendo o direito de liberdade aos filhos de escravos

nascidos a partir daquela data; da Lei do Sexagenário (1885), alforriando todos os escravos

maiores de 65 anos; e a Lei Áurea (1888), que aboliu a escravatura implicaria na

reformulação do sistema produtivo brasileiro, essencialmente ancorado na mão de obra

escrava. Assim,

urgia encontrar uma válvula de escape, um substitutivo ao escravo como categoria

econômica central. A essa crise do trabalho escravo responderia a elite colonial com

o processo de organização da propriedade privada e mercantilizarão da terra. A

expansão cafeeira favorece a valorização da propriedade da terra, oferecendo bases

econômicas para a passagem à mão de obra livre. A extinção do regime sesmarial é

um passo importante nesse processo de organização da propriedade privada da terra,

que se consolida com a Lei de 1850 e com o Código Civil de 1916 (SAUER, 2005,

p. 31)

Sobre a criação da Lei de Terras, com ela “a terra se valoriza e adquire importância

mercantil e o estabelecimento da propriedade privada é reforçado no Brasil e por rebatimento,

no Pará” (MOREIRA, 1997, p. 50).

Por essa razão, o debate em torno da criação da lei que regulamenta a posse e a

propriedade da terra no Brasil ocorreu numa conjuntura de declínio do regime escravocrata,

base do modelo agrário-exportador. A necessidade de regular o uso da terra estava

diretamente ligado às discussões acerca da oferta da mão de obra para trabalhar nas grandes

fazendas.

32

A forma encontrada para assegurar a propriedade privada da terra e, ao mesmo tempo,

garantir a mão de obra necessária para trabalhar nas fazendas de amplas extensões de terras

foi impedir o acesso à terra aos brancos pobres e aos negros alforriados (SOUZA, 2005).

Ainda sobre a Lei de Terras, diferente do ocorrido nas zonas pioneiras americanas,

a Lei de Terras institui no Brasil o cativeiro da terra – aqui as terras não eram e não

são livres, mas cativas. A Lei 601 estabeleceu em termos absolutos que a terra não

seria obtida por outro maio que não fosse à compra (MATINS, 1984, p. 72).

O Brasil libertou os escravos, mas tornou a terra cativa, aprisionada enquanto

propriedade privada:

Na segunda metade do século XIX, para fazer avançar o sistema capitalista no

Brasil, foi criada a propriedade da terra e em seguida os escravos tornaram-se

trabalhadores livres. Quando escravos, os trabalhadores eram vendidos como

mercadorias e como produtores de mercadorias. Como trabalhadores, vendiam sua

força de trabalho ao ex-escravocrata, então fazendeiro-capitalista. Instituiu a

separação entre trabalhadores e os meios de produção. Com a constituição da

propriedade, a terra tornara-se cativa, De modo que os escravos tornaram-se livres e

sem terra (MOÇAMO, 2000, p. 18).

Para Corazza (2003) é possível perceber que o processo de abolição da escravatura

limitou-se aos interesses do capital internacional e seu pleno desenvolvimento negligenciando

seus impactos e implicações sociais, uma vez que:

o processo de abolição da escravatura entre nós, que deu lugar ao trabalho livre, foi

basicamente motivado elo fato de os lucros do trabalho escravo se tornarem

incompatíveis com o preço do escravo. Em segundo lugar está o fato de a escravidão

dificultar a formação de um mercado interno necessário ao desenvolvimento

capitalista da época. Em outros termos, era o capital que necessitava de liberdade. é

nesse contexto que se formou a nossa questão agrária (CORAZZA, 2003, p. 12).

A partir dos séculos XXVIII e XIX, ocorreu um aumento de produtos industrializados

na Europa, sobretudo na Inglaterra. Essa nova realidade demanda um mercado consumidor

desses produtos, neste caso, o trabalhador assalariado. O trabalho escravo tornou-se,

portanto, incompatível com o sistema capitalista, pois este não pode ser consumidor. Assim,

a abolição no Brasil ocorreu para atender à política comercial internacional.

Outro fato de relevância, na época, foi que,

diante da abundância de terras para lavouras tornou-se necessário que o trabalho em

terras alheias se constituísse num imperativo e num destino compulsório para os

trabalhadores. Este trabalho foi viabilizado mediante o regime de propriedade em

que o acesso à terra só é possível mediante a compra do particular ou do Estado. Num período de cem anos, até os anos cinqüenta do século XX, este esquema

predominou. E quem não tinha terras próprias trabalhava para os fazendeiros

33

(CORAZZA, 2003, p. 12-13)

Os trabalhadores “livres” passaram a disputar o mercado de trabalho com os

imigrantes, os quais por serem brancos e estarem mais bem qualificados para as novas

exigências da economia nacional, acabavam sendo privilegiados. As famílias camponesas

expulsas da terra não tinham alternativas senão migrar para as cidades ou se apossar de

pequenas glebas de onde retiravam sua subsistência.

Para Mançano (2003) a ocupação ou apossamento é consequência da Lei de Terras.

Assim como ocorria durante o regime de sesmaria, ocupar era a alternativa de sobrevivência

de grande parte da população expulsa das fazendas e sem perspectivas de trabalho nos

centros urbanos. Entretanto, o autor sublinha que a ocupação era desordenada e

fragmentada, não passando pelas organizações e movimentos sociais, como nos tempos

atuais, embora representassem um importante componente do processo de abertura de novas

frentes agrícolas e de colonização do território brasileiro.

Com o fim da via de acesso à posse da terra através do uso, garantiu-se a

implementação dos direitos dos grandes latifundiários ao domínio das terras estruturadas na

monocultura predominante da época, a cultura cafeeira. Esta predominou de 1850 a 1930,

sempre voltada para o capital externo, que na época representava “60% das exportações do

país e, aproximadamente, 50% da exportação mundial desse produto” (SANTOS, 1995, p.

37).

Esse mesmo autor afirma que dois objetivos nortearam a edição da Lei de Terras:

promover a transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre e assegurar o controle do

Estado imperial para garantir o monopólio da terra nas mãos dos antigos detentores das

sesmarias, além de favorecer a oferta de mão de obra para as grandes propriedades

latifundiárias. A Lei de Terras se constituiu, portanto, num estatuto de substancial importância

para o disciplinamento da propriedade de terra no Brasil. É a partir dessa legislação que se

estruturaram as bases para que o Estado legitimasse a propriedade privada da terra e

objetivasse a separação entre as esferas do poder público e do privado.

A Lei n° 601 dispõe sobre as terras devolutas do Império e previa a compra e venda

com elevados preços, como única forma de aquisição da propriedade agrária no país,

conforme art. 1°: “Ficam proibidas as aquisição de terras devolutas por outro título que não

seja o de compra” (BRASIL, 1850)

34

Assim, “o Brasil independente perdeu uma oportunidade histórica de realizar a

primeira reforma agrária” (SOUZA, 2007, p. 19). Ao abrigar uma opção de classe, representou

a continuidade do modelo inicial, ou seja, fortaleceu a lógica de exclusão da maioria da

população ao direito de propriedade.

Importante notar que a Lei de Terras reflete as contradições da estrutura econômica do

Brasil Imperial na metade do Século XIX. É a expressão mais eloqüente dos interesses da

elite latifundiária que se consolidou durante o regime de sesmarias. Buscou,

fundamentalmente, “conferir um estatuto jurídico à propriedade privada, adequando-a as

novas exigências econômicas” da época (SOUZA, 2007, p. 88).

A consolidação do capitalismo brasileiro passava pela superação do escravismo e a

introdução da mão de obra livre, capaz de contratar, bem como pela organização da

propriedade privada da terra e sua mercantilização. A infra-estrutura econômica,

preponderantemente centrada na exploração do café, exigia mudanças no regime jurídico da

terra e do trabalho. Daí a edição da Lei de Terras. Por isso, “a Lei de Terras organizou, no

plano formal-legal, o caos fundiário brasileiro existente na metade do século XIX” (SOUZA,

2007, p. 32).

Ao reforçar essa assertiva esse autor explicita:

considerada divisor de águas da evolução de nossa estrutura fundiária e da própria história sócio-econômica nacional, a Lei de Terras representaria uma súmula da

história territorial brasileira. Seria a pedra de toque do sistema fundiário, que fornece

os princípios jurídicos sobre os quais toda uma estrutura se edificou de forma

perene. Foi ela que, de uma vez por todas, regulamentou a propriedade privada da

terra, assegurada pelo art. 179 da Constituição de 1824 (SOUZA, 2007, p.33).

Após a regulamentação da Lei de Terras, o Estado passa a assumir a iniciativa de

discriminar e demarcar suas terras „devolutas‟, para ter o controle sobre o território, bem

como extremar o domínio público do particular. A Lei nº. 601 elegeu a compra e venda como

único meio de aquisição das terras devolutas. Segundo Fernandes (2003) o preço mínimo da

terra, que deveria ser suficientemente alto a fim de impedir o acesso imediato das populações

pobres à propriedade fundiária, e a adoção da compra e venda como único meio de adquirir as

terras devolutas, são as duas faces da mesma moeda: proibir o acesso à terra aos negros e

pobres.

O governo imperial contribuiu para a monopolização da propriedade privada

excluindo camponeses e deixando de reconhecer as terras comunais indígenas e de negros

(quilombos, por exemplo). O dinheiro obtido com a venda de terras iria fomentar a vinda de

35

imigrantes europeus (colonos), para as lavouras de café. Assim, “matavam-se dois coelhos

com uma só cajadada. De um lado, restringia-se o acesso às terras. De outro, criavam-se as

bases para a organização de um mercado de trabalho livre para substituir o sistema escravista”

(SILVA, 1982, p. 25).

A propriedade privada é organizada, convertendo as concessões sesmariais em títulos

de domínio e regularizando as grandes posses, de modo a confirmar o latifúndio e manter o

poder econômico nas mãos da mesma elite dominante da estrutura fundiária. Em plena

sintonia com os postulados liberais (NOGUEIRA, 2007).

Foi assim que a Lei de Terras legitimou formalmente o latifúndio. As inovações

trazidas por ela e pelas legislações que a sucederam trouxeram segurança jurídica aos

proprietários, sem qualquer interferência do Poder Público.

Souza (2007), ao estudar a modalidade de propriedade – que surge com a Lei de

Terras – afirma que essa se distingue fundamentalmente da propriedade sesmarial por se

constituir em mercadoria, capaz de ser transacionada livremente, além de configurar reserva

de valor. Por mais que possibilitasse privilégios, a sesmaria não atribuía direito pleno ao seu

detentor, pois era, antes, uma concessão. Em outras palavras, a Lei de Terras aprisionou o

território brasileiro no grande cativeiro da propriedade privada absoluta. A terra foi despojada

de seu valor de uso para ser exaltada como valor de troca, dando origem, ao mercado de

terras. De grande mãe, provedora da subsistência, a terra é transformada em mercadoria, bem

de troca.

Mançano (2003) destaca que a Lei n° 601 esteve em vigência por mais de um século,

como principal diploma jurídico organizador da estrutura fundiária. Conviveu com o apogeu e

a queda da lavoura cafeeira e com o processo de industrialização, iniciado na década de

1930/1940. Foi suplantada apenas pelo Estatuto da Terra, em 1964, no auge de um novo ciclo

de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Seu legado foi uma estrutura fundiária marcada

pela concentração, violência contra os que não possuem terra e pobreza no meio rural.

Andrade (1987) defende a tese de que a concentração de terras resistiu a dois fatos

marcantes no final do século XIX, à abolição da escravatura, em 1888, e à Proclamação da

República, no ano seguinte. Para esse autor, a abolição representou a libertação formal dos

negros, sem que isso significasse a fruição material de direitos, dentre eles o direito de acesso

à terra.

36

Para alguns abolicionistas, como Joaquim Nabuco, João Alfredo e André Rebouça, a abolição deveria ser complementada com uma reforma agrária entendida enquanto

meio de inclusão social da população negra, atrelada ao fornecimento de crédito, à

criação de políticas agrícolas para os libertos e a organização da produção de

alimentos. Todavia, isso não ocorreu e tudo permaneceu como antes (ANDRADE,

1987, p. 72).

Com a República, as terras devolutas foram atribuídas aos entes federados,

impulsionando a transferência do patrimônio do antigo Império não só para municípios,

estados e União, mas também para alguns particulares, oficializando o apossamento ilegal

(grilagem), iniciado em 1850. Foi um dos momentos de pico da formação dos grandes

latifúndios no país a partir do patrimônio público.

Esse quadro de concentração de terras e de capitais ainda foi fortemente agravado no

período do Pós-Guerra com a implantação, na década de 1960, do modelo de modernização

econômica da agricultura que impôs aos trabalhadores rurais a lógica, segundo a qual, a

simples posse da terra não garante a reprodução das unidades produtivas familiares

(MARTINS, 1995).

1.2 A configuração agrária no processo de modernização conservadora

A proclamação da República não trouxe mudanças na estrutura fundiária. Ao

contrário, “o poderio de determinadas oligarquias regionais foi fortalecido, tais como: os

coronéis nordestinos e a República do Café com Leite” (ANDRADE, 1987, p.71).

Os latifundiários mantiveram sua hegemonia até a Revolução de 1930. “A grande

depressão econômica 1929-1933 e a ascensão de Vargas ao poder, assinalaram o fim do

Estado Oligárquico” (IANNI, 1977, p.128). Tais acontecimentos fizeram com que as

burguesias - agrária e comercial - perdessem parte do controle do poder político, que passou

às mãos das classes urbanas, com a revolução de 1930.

Ainda de acordo com Ianni (1977), essa revolução representou uma vitória da cidade

sobre o campo e possibilitou algumas condições políticas que fortaleceriam a futura

hegemonia do setor industrial sobre o setor agrário, principalmente a partir da década de

1950, cujo setor industrial se desenvolveu mais rapidamente que o setor agrário.

37

O colapso que sofreu a economia cafeeira com a grande depressão de 1929 reconduz a

base econômica para o mercado interno, o qual, mantendo um nível considerável de demanda,

“passa a oferecer melhores oportunidades de inversão que o setor exportador” (FURTADO,

2000, p. 209). Inicia-se, então, a fase de industrialização por substituição de importação, com

o Estado tutelando esse processo.

O setor industrial foi adquirindo importância no conjunto do subsistema econômico

brasileiro e se desenvolvendo mais rapidamente que o setor agrário. A partir dos anos 1950,

“as decisões sobre a política econômica governamental foram tomadas em função dos

interesses e das perspectivas abertas à burguesia industrial” (IANNI, 1977, p. 129-131).

Essa dupla dependência caracteriza a situação da sociedade agrária a partir da segunda

metade do Século XX. Para esse autor, um dos principais elos da cadeia de produção,

circulação e apropriação é o trabalhador agrícola, visto que está no centro do sistema de

relações e estrutura que caracteriza dupla dependência:

O trabalhador rural, portanto, se encontra no centro de um sistema de produção

bastante amplo e complexo; é como se fosse o vértice de uma pirâmide invertida.

Como fornecedor de força de trabalho produtiva, segundo as condições do setor

agrário, o excedente que o trabalhador rural produz é apropriado por diferentes setores do sistema econômico global: o proprietário, o arrendatário de terra, o

comerciante de produtos agrícolas na cidade, o comercio consome matéria-prima de

origem agrícola e o aparato governamental (IANNI, 1977, p. 131).

Esse é o contexto histórico estrutural em que se criam as condições sociais,

econômicas, políticas e culturais para o surgimento de movimentos sociais camponeses,

associações de lavradores, sindicatos rurais de trabalhadores e o Estatuto do Trabalhador

Rural (ETR). A conjuntura apontada favoreceu as reivindicações populares por direitos

trabalhistas e por reforma agrária, em especial a partir da segunda metade do século passado.

Um dos episódios mais importantes dessa luta, segundo Souza (2005) foi o congresso

que criou a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), ocorrido em

Belo Horizonte, em 1961, do qual participaram representantes das Ligas Camponesas, de

associações de trabalhadores e de vários movimentos sociais no campo.

Para Martins (1995) dentre os desdobramentos do congresso da ULTAB está a criação

da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em 22 de dezembro

de 1963, no Rio de Janeiro. A entidade conferiu caráter nacional à luta por direitos

trabalhistas que vinha sendo realizada pelo Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais

38

(MSTR), formado, à época, por 14 federações e 475 sindicatos de trabalhadores rurais. A

reforma agrária, dentro dos marcos legais, também era uma das bandeiras da Contag.

João Goulart assumiu a Presidência da República frente a uma forte pressão popular

por mudanças no campo. Martins (1997) analisa que a efervescência social em torno da luta

pela terra forçou seu governo a incluir a reforma agrária em seu programa nacional de

reformas de base. João Goulart criou a Superintendência de Política Agrária (SUPRA)

manifestando a necessidade de modernizar a agricultura e modificar a estrutura fundiária.

Sobre as conquistas no governo João Goulart,

em 2 março de 1963, foi aprovada Lei nº. 4.214, que dispôs sobre o Estatuto do

Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo. Um ano depois, em

13 de março de 1964, o presidente João Gulart assinou o Decreto nº. 53.700,

declarando de interesse social para fins de desapropriação as terras localizadas numa

faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias e ferrovias e as terras beneficiadas

ou recuperadas por investimentos da União em obras de irrigação, drenagem ou

açudagem (SOUZA, 2007, p38).

Esse decreto, sem dúvida, representou umas das principais medidas do governo Jango

na área da política agrária, pois permitia a implantação do sindicalismo rural. Daí porque

muitas ligas transformam-se em Sindicatos de Trabalhadores (OLIVEIRA, 2000).

Em Mensagem ao Congresso Nacional datada de 15 de março de 1964, João Goulart

propôs um conjunto de providências consideradas “indispensáveis e inadiáveis para atender às

velhas e justas aspirações da população” (SOUZA, 2007, p. 39). Eram as reformas de base,

sendo a primeira delas a reforma agrária. Quinze dias depois, os militares, sustentados, entre

outros setores, pelos grandes proprietários rurais, deram o golpe de Estado e destituíram o

presidente constitucional, iniciando o período de ditadura militar. Esse “golpe foi planejado

para evitar a chamada revolução agrária” (MARTINS, 1997, p. 33).

O Brasil entrou em um período de ditadura que durou 21 anos, que em princípio ficou

contra a reforma agrária. Durante o golpe militar de 1964 o projeto de reforma agrária de

Goulart foi liquidado e procedeu-se a uma verdadeira caçada às lideranças sindicais que

militavam nas Ligas Camponesas. Esse movimento foi desarticulado, proscrito, sendo seu

principal líder preso e exilado. O Movimento persistiu ainda durante algum tempo, através da

Organização Política Clandestina que possuía uma direção nacional firmada por assalariados

rurais e camponeses, que se infiltraram em sindicatos agrícolas, passando a ajudar presos e

perseguidos políticos (OLIVEIRA (2007). Com a repressão, todo o movimento refluiu e parte

39

de seus participantes teve que fugir e/ou viver na clandestinidade. Os sindicatos dos

trabalhadores sofreram forte repressão.

Entretanto, em função de um quadro de pressão social interna e, sobretudo externa,

coube ao primeiro governo militar, o Marechal Castelo Branco, ainda em 1964, a tarefa de

assinar o Estatuto da Terra (Lei n° 4.504, de 30/11/1964).

O ciclo ditatorial foi contraditório para a questão agrária. De um lado, foi

instituído o Estatuto da Terra - elaborado durante o governo de João Goulart- a

legislação que autorizava a reforma agrária, mas não aplicada. De outro, as

políticas públicas, destinadas ao campo, estimularam os projetos de

colonização, dirigidos por interesses mercadológicos e permitiram a

industrialização e a modernização da agropecuária. No entanto, aumentaram a

concentração de terras, agravando a problemática rural (MARTINS, 1977, p.

34).

Assim, como instrumento fundamental para manter a questão agrária subjugada ao

controle do Estado, bem como amenizar as pressões e mobilizações sociais por reforma

agrária, e implantar os projetos de colonização, o governo militar promulgou a Lei nº. 4.504,

de 30 de novembro de 1964, que dispôs sobre o Estatuto da Terra. Considerado um marco

jurídico na luta pela reforma agrária no Brasil, esse Estatuto trazia um discurso de boas

intenções, contendo alguns dispositivos considerados avançados, definindo o que se entendia

por propriedade da terra, quais suas modalidades (latifúndios por exploração, latifúndios por

dimensão, minifúndios e empresa rural), o módulo rural (mínimo necessário para o sustento

familiar), a função social da propriedade, e as hipóteses de desapropriação de propriedades

pelo interesse social mediante o pagamento de títulos da dívida agrária (MARTINS, 1997)

Os grandes proprietários rurais se opuseram frontalmente à aprovação do Estatuto da

Terra. As entidades de representação dos interesses da classe dominante agrária,

especialmente a Sociedade Nacional da Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira

(SRB), apesar das diferenças, unificaram suas ações na defesa intransigente do:

Sagrado direito de propriedade. O principal ponto de unidade era a oposição a

qualquer modificação na estrutura agrária. Ambas combateram com veemência a

proposta de reforma agrária do presidente João Goulart, assim como repudiaram o

Estatuto da Terra, apresentado por Castelo Branco (SOUZA, 2007, p. 39).

40

O posicionamento da Sociedade Rural Brasileira contra a reforma agrária foi uma

constante, mesmo antes do golpe militar e da proposição do Estatuto da Terra. Esses

produtores paulistas encabeçaram a reação às reformas de base de João Goulart, consoante

demonstram trechos da publicação oficial da entidade que promete “reformas, sem dizer como

vão ser feitas, sem uma crítica prévia e objetiva, sem audiência conscienciosa da opinião

pública [...] constitui realmente uma perigosa ameaça” (SOUZA, 2007, p. 40).

A Sociedade Nacional de Agricultura expressou posicionamento parecido:

O simples acesso à propriedade da terra aos que nela trabalham não é a solução [...]

Não devemos substituir uma estrutura agrária que, apesar de seus defeitos, vem

funcionando, por uma nova estrutura de perspectivas imprevisíveis [...]. O problema

é, portanto, um problema social, que não se limita a uma simples divisão de terras

(SOUZA, 2007, P.41).

Na medida em que organizavam a reação ao Estatuto da Terra, paralelamente, as

entidades ruralistas difundiam seu próprio projeto de reforma agrária, ao longo do regime

militar. Oliveira (2007) sublinha que a proposta da Sociedade Nacional da Agricultura

descartava qualquer desapropriação de terras, fosse a título de reforma ou não, uma vez que

atingia a “pedra fundamental dos interesses da classe por ela representada: a propriedade

privada” (p. 129). Para essas entidades, a reforma agrária era vista como conseqüência da

reformulação agrícola, devendo ser feita apenas nas terras devolutas da União.

Os resultados da medição de forças entre os opositores e os defensores da reforma

agrária consistiram: na aprovação de um texto legal que contemplasse a reforma agrária como

política transitória, cabendo papel permanente apenas à política agrícola, prevista no título

destinado ao desenvolvimento rural; e na extinção do SUPRA e criação do Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O Instituto de Desenvolvimento Agrário

(INDA) e o Estatuto da Terra passaram a ser entendidos como uma lei de desenvolvimento

rural e não somente uma institucionalização da Reforma Agrária (OLIVEIRA, 2007). Mas, o

grande vitorioso de todo o processo foi o conceito de “empresa agrícola” (p.130), alvo

prioritário da modernização da agricultura.

O ABRA e o INDA foram extintos em 1970 quando foi criado o INCRA, dada a

intenção de colonização de áreas novas, como a da Rodovia Transamazônica, e não de alterar

a estrutura fundiária do país (FERNANDES, 2006). O período de existência desses órgãos

promotores da contra-reforma agrária dos militares, IBRA E INDA, de 1964 a 1970, esteve

marcado por um processo intenso de corrupção, grilagens e vendas de terras para estrangeiros.

Fato que ganhou projeção nacional e internacional, desembocando, em 1968, na constituição

41

de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias veiculadas pela

imprensa.

Percebe-se que para enfrentamento da questão agrária, criavam-se institutos e nunca

ministérios ou secretarias, que são instrumentos estatais de gestão de políticas. E ainda, como

se pode observar, os órgãos coordenadores da Reforma Agrária IBRA e INDA estavam

envolvidos nos episódios da venda de terras a estrangeiros, e parte da concessão de recursos

internacionais obtidos junto aos organismos financeiros mundiais vinha “amarrada” à

necessidade de o governo brasileiro promover a reforma agrária, uma das razões dos focos de

tensão no campo durante o governo de João Goulart (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, como não era real a intenção de o governo militar fazer a reforma agrária

quando assinou o Estatuto da Terra, parte de sua implementação foi sendo adiada. Uma vez

mais, as elites dirigentes aprovaram uma legislação para evitar que mudanças fossem feitas de

fato. Ainda segundo Oliveira (2007) em 1969, quando uma missão da Organização das

Nações Unidas (ONU) visitou o Brasil, nasceu a sugestão de fusão do IBRA e do INDA em

um único organismo para implementar a reforma agrária. Assim foi que nasceu o Instituto

Nacional de Colonização4 e Reforma Agrária (INCRA), através do “Decreto-Lei número

1.110, de 09/07/70” (Fernandes, 2006).

Enquanto muitos aguardavam que o Estado, através de sua estrutura burocrática, fosse

implementar, de fato, a política agrária, o próprio Ministro do Planejamento do então governo

militar, Roberto Campos, garantia aos congressistas latifundiários que a lei era para ser

aprovada, mas não para ser colocada em prática.

Tudo não passou de uma farsa histórica, pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária – instrumento definidor da

política de implementação da reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p.122).

Uma das políticas de desenvolvimento rural prevista no Estatuto, e muito estimulada

pelos militares, foi então a colonização. Na verdade, para diminuir a pressão social por terra,

feita por trabalhadores das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, o governo estimulou projetos de

colonização, oficiais e particulares, que consistiam no povoamento e exploração de locais

pouco habitados, nas regiões Norte e Centro-Oeste, tidos como novas fronteiras agrícolas.

4Segundo Canuto (2004) o termo “colonização” no nome do instituto criado significa que esse tinha objetivos de

colonizar áreas novas, como a região da Rodovia Transamazônica, e não de transformar a estrutura do País

.

42

Os projetos de colonização foram formulados para levar desbravadores para onde

havia disponibilidade de terras. O Estado mostrava os trabalhadores uma imensidão de terras

a serem ocupadas (o que os desmobilizavam politicamente), mas, em verdade, o principal

mote foi a transferência de mão de obra para a extração da madeira, para os garimpos e para

as grandes empresas multinacionais que iriam explorar a Amazônia (FERNANDES, 1996). A

propaganda governamental prometia terras abundantes e melhores condições de vida às

famílias que se interessassem pelos projetos de colonização, mas, na prática, foram assentadas

e abandonadas pelas políticas públicas.

Nesse contexto;

Para tornar visível a uma política, o Estado manteve a questão agrária sobre o poder

central, de forma que o Estatuto da Terra não permitisse o acesso a terra para os

camponeses, à propriedade familiar, e sim aos que tinham o interesse de criar a

propriedade capitalista. Nesta condição o Estatuto revelou-se um instrumento

estratégico para controlar as lutas sociais, desarticulando os conflitos por terra.

Assim, as desapropriações somente eram realizadas como tentativa de diminuir os

conflitos e, durante o período de 1965 até 1981, foram realizados, em média, oito

decretos de desapropriação por ano contra pelo menos setenta conflitos por terra ao

ano. O Estatuto da Terra também previa as ocupações pioneiras para solucionar os problemas sociais de outras regiões (FERNANDES, 1996, p. 36).

Observa-se que o Estatuto da Terra, foi um instrumento da política agrária do regime

militar. Um dos problemas dessa política agrária estruturava-se na transformação do problema

da terra em um problema militar. Foi a conhecida época do “integrar para não entregar”

(FERNANDES, 1996, p.34) que na verdade traduz-se em uma tentativa evidente de fortalecer

a exploração territorial da Amazônia comandada por empresas estrangeiras.

Em conformidade com esse objetivo, “as terras sem homens deveriam ser ocupadas

pelos homens sem terra,” (FERNANDES, 1996, p. 35), considerando a necessidade de resolver

os conflitos sociais sem alterar a estrutura fundiária do país. A forma encontrada foi o

deslocamento dos trabalhadores para os projetos de colonização, criando mão de obra barata e

permanente para os projetos de exploração mineral e extrativista.

O projeto de reforma agrária do regime ditatorial era então revestido de um projeto de

colonização, cujo lema era “Colonizar para não Reformar”.

Como o objetivo era colonizar para não reformar, o problema da terra jamais seria

resolvido com os projetos de colonização na Amazônia, pois o que estava por trás desse projeto era uma estratégia geopolítica de exploração total dos recursos naturais

pelos grandes grupos nacionais/internacionais. Assim, o envolvimento das forças

armadas do Estado autoritário garantiu aos grandes grupos a exploração da

Amazônia (FERNANDES, 1996, p. 34).

43

Para a execução desse projeto de colonização, de acordo com a teoria de Fernandes

(1996), o governo militar, além de criar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA) e fortalecer a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE) transformou a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA)

na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Em 1969, o governo criou

o Grupo Interministerial de Trabalho sobre Reforma Agrária (GERA), que visava analisar os

problemas que impediam o desenvolvimento de medidas de reformulação fundiária. Em 1971

os militares criaram o Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do

Norte e Nordeste (PROTERRA). Todos esses organismos/projetos estavam articulados com o

Programa de Integração Nacional (PIN).

Ainda no tocante as ações do governo para implementação de sua política de

desenvolvimento agropecuário, em 1980 foram criados o Grupo Executivo das Terras do

Araguaia- Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas

(GEBAM), sendo instrumentos para a manutenção de aliança entre o governo

militar/empresários.

A área de atuação do GETAT correspondia à metade da área do Programa Grande

Carajás, com grandes investimentos de extração mineral, numa região denominada “Bico do

Papagaio”, porção de terras escravada no sul e sudeste do Pará, oeste do Maranhão e norte de

Goiás, onde hoje se situa o estado do Tocantins. O seu principal objetivo era suavizar os

conflitos agrários na região por meio da ordenação da ocupação, sob a égide da doutrina da

segurança nacional (MIRANDA, 2001).

Assim, o PIN, o INCRA, o GETAT, o GEBAM e o PROTERRA formavam um

esquema articulado nos bastidores do governo militar. Ou seja, criava o governo do General

Médici um programa que simplesmente contrariava a legislação do Estatuto da Terra.

Segundo Oliveira (2006) a política de incentivos fiscais da SUDENE e da SUDAM, foi o

instrumento que viabilizou a fusão dos capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do Centro-

Sul do país, em proprietários de terra, em latifundiários. Dessa forma, os capitalistas urbanos

tornaram-se os maiores proprietários de terra no Brasil.

O exemplo mais clássico é o famoso Projeto Jarí. Implantado pelo multimilionário

Daniel K. Ludwig foi nacionalizado no final do governo Gal. Figueiredo, quando

passou para um grupo de 25 empresas lideradas pelo grupo Azevedo Antunes. A

área ocupada, depois da atuação do Grupo Executivo do Baixo Amazonas, órgão

ligado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional, tinha uma superfície

superior a 4 milhões de hectares. É em decorrência desse processo que se tornou

possível a revelação de dois aspectos contraditórios destes capitalistas modernos: a

44

mesma indústria automobilística que pratica as mais avançadas relações de trabalho do capitalismo no Centro-Sul, NA Amazônia, ao contrário, praticava em suas

propriedades agropecuárias, a peonagem, relação de trabalho também chamada de

escravidão branca. Isso quer dizer que a mesma empresa atuava de forma

diferenciada em regiões distintas desse país (OLIVEIRA, 2006, p. 132).

Ao invés da burguesia atuar no sentido de remover o entrave que a propriedade

privada da terra traz ao desenvolvimento do capitalismo, atua no sentido de solidificar ainda

mais, a propriedade privada da terra. A concentração da propriedade privada da terra é,

portanto, parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. “Um capitalismo que

revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso e outra atrasada no reverso”

(OLIVEIRA, 2007, p. 132).

É a partir das mudanças na política fundiária que se iniciou a instauração dos projetos agropecuários por grandes empresas na Amazônia. No Centro-Sul e

Nordeste, desenvolve-se uma rápida industrialização da agricultura. Acentua a

concentração de terras, a expropriação e a exploração. Diante dessa realidade, os

conflitos por terra se multiplicaram (FERNANDES, 2007, p. 37).

Sauer (2002) afirma que essas mudanças reforçaram a lógica concentradora da

propriedade fundiária, ancorada no modelo agropecuário adotado a partir dos anos 1960,

forçando “o deslocamento de milhões de pessoas através do êxodo rural ou em direção às

novas áreas de colonização” (p. 92). No entanto, apesar se criar as condições jurídicas à

realização da reforma agrária, a aplicabilidade do Estatuto da Terra foi insatisfatória, sendo

que a permanente pressão das entidades e organizações ruralistas resultou no esvaziamento

dos dispositivos destinados à democratização da propriedade rural.

Constata-se que, ao mesmo tempo, o Estado adotou medidas que fortaleceram um

modelo agrícola com tecnologia de ponta, o qual impulsionou a concentração fundiária, entre

elas, os créditos e incentivos fiscais voltados para a modernização e tecnificação de grandes

proprietários rurais. Por todos esses efeitos perversos, esse período foi denominado de

“modernização conservadora”. Assim,

a separação entre reforma agrária e a modernização da agricultura, binômio tão caro

aos articuladores do Estatuto da Terra e que, uma vez derrotado, viria legitimar a

capitalização da agricultura brasileira, sem maiores alterações na estrutura fundiária

do país. Foi durante a vigência do Estatuto da Terra que ocorreu o encontro do

mundo rural com a tecnologia e a química. As tecnologias tradicionais foram

substituídas por novas matrizes tecnológicas, que incorporaram a mecanização e a

utilização abusiva de insumos químicos. Era o campo se industrializando. Esse

processo foi aplicado em toda a América Latina e recebeu o nome de “Revolução

Verde” (MOÇAMO, 2005, p. 141).

Dessa forma, surgem novos interesses e novos atores no campo. Concretizava-se o

45

processo de modernização da atividade agrícola através de sua integração com a indústria, sob

o apogeu da chamada “Revolução Verde.” Contudo, esse processo fez com que a população

rural diminuísse uma vez que os investimentos fundiários eram fortalecidos, transformando os

capitalistas industriais e urbanos em proprietários de terra, em latifundiário. José Graziano da

Silva (1980) prefere a expressão “modernização dolorosa”, por revelar, de um lado, a

industrialização do campo; e de outro, os problemas dela decorrentes, como o êxodo rural, o

inchaço das grandes cidades, a transferência de milhões de pessoas para as áreas de fronteira

agrícola, o aumento da concentração fundiária e da pobreza rural. O Estado entendia o

processo de colonização e de expansão das fronteiras agrícolas como a forma de integrar “os

homens sem terra com as terras sem homens” (IANNI, 1989, P. 48).

Santos (2007) acrescenta que a Revolução Verde não era para todos os camponeses,

mas apenas para uma elite agrária que a ela podia ter acesso, o que concentra a renda e

consequentemente a terra. A agricultura passa a operar com novos matizes, torna-se submissa

ao mercado quando sua produção é direcionada por ele. Isso pode até resultar num aparente

desenvolvimento rural, mas que, na realidade, é uma falácia, visto que este

“desenvolvimento” leva à falência, e até à miséria, àqueles produtores que não podem se

adequar aos novos tempos, conforme alerta Oliveira (2007):

Nos países em que, concomitantemente à „Revolução Verde‟, foi implantada a

reforma da estrutura agrária, com redivisão e redistribuição das terras, ou se fez alguma alteração estrutural na forma de propriedade, posse e uso da terra, os

resultados foram significativamente positivos, com benefícios sensíveis para a

maioria da população. Porém, nos países, como o Brasil, em que a „Revolução

Verde não foi acompanhada de uma reforma agrária, mas apenas um sucedâneo

desta, resultaram graves conseqüências, tanto de ordem econômica como

principalmente sociais (...) uma minoria apenas dos agricultores, aqueles que se

estruturaram de forma empresarial - a nova burguesia rural - foram mais ou menos

favorecidos, enquanto os mais fracos - os pequenos proprietários rurais - foram e

vão sendo progressivamente marginalizados do processo (p. 32-33).

Prova disso é o êxodo rural. Do interior das regiões mais afetadas pela modernização,

saíram as maiores levas de camponeses rumo às metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo,

o que não aconteceria se este desenvolvimento do meio rural tivesse um caráter mais

equânime (OLIVEIRA,1997)

De acordo esse autor, o campo passa a abrigar uma dualidade causada pelo processo

de modernização. De um lado tem-se um campo rico e de outro um campo em vias de

miséria. Situação propiciada pelas enormes e cada vez mais profundas desigualdades

46

existentes entre a grande e a pequena exploração agrária, e entre a agricultura de

abastecimento interno e a agricultura de exportação.

Um dos resultados da aludida dualidade tem repercussão direta na vida dos

camponeses, refere-se de trabalho. A manutenção de uma classe detentora dos meios

de produção pressupõe o não-acesso de uma outra a esses meios. Neste ínterim,

surgem os trabalhadores temporários, muitas das vezes ex-pequenos produtores, que

no contexto da agricultura capitalizada perderam suas terras e tornaram-se “bóias

frias” ou outro tipo de trabalhador temporário (Santos, 2003, p. 32).

Santos (2003) chama este trabalhador de desterritorializado pela agroindústria. O

camponês, num primeiro momento, até busca subsídios para tentar manter-se na terra e

competir com a indústria monopolista, mas logo é vencido pelos juros altíssimos dos

subsídios e os baixos preços oferecidos pelo mercado aos seus produtos, o que lhe obriga a

vender a terra. Cria-se, portanto, a situação perfeita para o surgimento dos chamados

Complexos Agroindustrial.

Com relação a esses complexos agroindusriais, Santos (2003) declara que o Estado ao

viabilizá-los e favorecer o empresariado rural, o faz em detrimento dos camponeses produtores

familiares, assim, privilegia a agricultura de exportação enquanto relega a produção para o

mercado interno, a denominada agricultura de subsistência, a um plano inferior. Considerando os

pequenos agricultores (proprietários ou não) como incapazes de acompanhar o progresso técnico,

econômico e social. E o autor denuncia:

É destaque o papel do aparelho governamental, que apropriado pela classe detentora

dos meios de produção, travestida dos poderes do Estado, criam condições

particulares para a aquisição de benefícios. Nesse sentido, a modernização da

agricultura, expressa pela consolidação dos Complexos Agroindustriais, aponta para

uma centralização ainda maior da produção e para a manutenção de seu caráter

excludente (SANTOS, 2003, p. 49).

Com terra e renda concentradas, de produtores residentes, os camponeses expulsos da

terra tornam-se assalariados, empregados sazonais - visto às inovações dispensarem mão de

obra durante todo o ano, e tantas vezes, miseráveis das cidades brasileiras.

A modernização conservadora da agricultura é um desdobramento do processo de

modernização da sociedade brasileira, iniciada a partir de 1930, com Getúlio Vargas. O

governo militar dirigiu o processo de modernização consoante anseios da burguesia industrial

e da classe dominante agrária, com vistas à expansão do capitalismo, utilizando como

47

instrumento o crédito subsidiado para capitalizar os grandes proprietários (SILVA, 1980).

Assim, a modernização conservadora consolidou o capitalismo no campo brasileiro.

Para Souza (2005) a expressão “modernização conservadora” também é utilizada para

caracterizar o modelo agropecuário adotado pelo governo militar. A recusa a mudanças

fundamentais na propriedade da terra e o incentivo a uma maior concentração fundiária são

dois dos principais elementos que evidenciam o caráter conservador dessa modernização.

Ademais, foram promovidas alterações na base produtiva sem democratizar a estrutura

fundiária. Os grandes proprietários permaneceram no controle da terra e da força de trabalho

rural.

Observa-se que o processo de modernização conservadora da agricultura brasileira foi

levado a efeito tendo como suportes: a criação do sistema nacional de crédito rural; o estímulo

às exportações de produtos agrícolas de grãos, em particular a soja; o incentivo ao cultivo de

algumas culturas através de estabelecimento de políticas creditícias e fiscais específicas, como

foi o caso do Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL); a constituição dos complexos

agro-industriais; e o fomento às indústrias de equipamento e de matéria prima agrícolas.

(DELGADO, 1997).

O modelo de modernização privilegiou as empresas capitalistas em detrimento da

agricultura camponesa além da introdução de máquinas e insumos químicos que ocasionou

uma desarticulação da lógica tradicional camponesa baseada na mão de obra familiar como

unidade de produção e da produção direta de parte dos meios necessários à subsistência, seja

produzindo alimentos para o autoconsumo, seja produzindo alimentos ou outras mercadorias

para a venda (SILVA, 1980).

Assim, a agricultura capitalista se desenvolveu enquanto os camponeses, em sua maior

parte, foram expropriados e/ou expulsos da terra. Nesse processo as empresas capitalistas se

apropriaram de terras públicas, com incentivo do governo federal, e das terras dos

camponeses aumentando a concentração da propriedade da terra, de modo que, o Brasil

atualmente é o segundo país do mundo com maior concentração fundiária, perdendo apenas

para o Paraguai, onde alguns fazendeiros são brasileiros (SILVA, 1997).

Além da expansão da agricultura capitalista, as transformações ocorridas na base

técnica de produção levaram às mudanças significativas nas relações sociais de produção, em

particular, com o avanço do assalariamento no campo. Sobre este processo de

desenvolvimento do capitalismo no campo da Silva (1989) diz que:

48

O desenvolvimento do capitalismo no campo, na medida em que incorporou

máquinas, defensivos, fertilizantes e outros insumos modernos, modificou

profundamente a base técnica da produção de algumas regiões do Brasil. O resultado

foi uma alteração nas relações de trabalho existentes no campo (SILVA, 1989, p.47).

Como resultado e traço marcante desse período, José Graziano da Silva (2002) aponta

três tendências: integração entre capitais (financeiro, industrial e agrário); redução do papel da

pequena produção no processo de desenvolvimento capitalista; redução das oportunidades do

trabalho assalariado, ampliando-se o número de trabalhadores volantes, bóias-frias ou

clandestinos.

Todo esse processo histórico e de políticas de ocupação do território brasileiro teve

como seqüela a atual estrutura fundiária baseada na alta concentração de terras nas mãos de

uma minoria oligarquia rural que, em detrimento da expropriação da agricultura camponesa,

vem a se expandir em todo território nacional, atualmente, na forma do agronegócio,

agravando ainda mais os números da estrutura fundiária brasileira e, conseqüentemente,

aprofundando as condições de sobrevivência dos camponeses na marginalidade social e

econômica.

O governo militar dirigiu o processo de modernização de modo a contemplar os

interesses da burguesia industrial, sem descuidar das reivindicações da classe

dominante agrária. A mecanização do campo estimulou o mercado de máquinas e

implementos agrícolas, o fomento do uso de adubo e mão de obra barata para o setor

industrial. Beneficiaram-se os latifundiários que se “modernizaram”, e os industriais

que passaram a vender seus produtos para o campo e receber força de trabalho a

baixo custo (SOUZA, 2007, p. 43).

Souza (2005) sublinha que o modelo agropecuário, engendrado no bojo da “Revolução

Verde”, foi desenhado por teóricos conservadores visando à expansão do capitalismo no

campo. O Poder Público criou diversos órgãos, implantou muitos programas e mecanismos de

desenvolvimento agropecuário e concedeu fartos subsídios e incentivos fiscais voltados à

agricultura, que permitiram uma mudança significativa na base produtiva agrícola, expressa

especialmente na adoção de mecanização intensiva e uso de fertilizantes químicos, sementes

selecionadas etc. As políticas públicas modernizaram o latifúndio, porém, favoreceram a

concentração ainda maior da estrutura fundiária. Daí o caráter conservador do modelo.

O principal instrumento governamental para implantar a modernização foi o crédito

subsidiado, que “capitalizou os grandes proprietários, possibilitando a industrialização do

campo. O autor afirma que as renúncias fiscais foram uma das principais formas de subsídios.

Visavam estimular o mercado de terras, por meio da compra de grandes extensões na

49

Amazônia Legal por empresários urbanos, aprofundando a concentração da propriedade da

terra. Os “compradores” obtinham ainda crédito, a juros módicos, para fazer “investimentos

produtivos” (SAUER, 2005, p. 59) como, por exemplo, o desmatamento para o plantio de

pastagem e criação de gado. Os pesados subsídios e incentivos fiscais concedidos pelo

Estado às grandes empresas abriram o campo ao investimento capitalista, protegeram e

reafirmaram a renda da terra e a especulação imobiliária, incluíram a grande propriedade

fundiária num projeto de desenvolvimento capitalista que tenta organizar, contraditoriamente,

uma sociedade moderna sobre uma economia rentista e exportadora.

Esse modelo agropecuário não resultou na superação da pobreza da população rural e

urbana. “Ao contrário, o quadro de exclusão social se agravou, dando origem a milhões de

famílias sem terras, que hoje incrementam os movimentos sociais em luta pela reforma

agrária” (MARTINS, 1989, p. 49). E ainda,

a racionalidade econômica dessa modernização levou a um processo de concentração das riquezas e a um “desenvolvimento” compreendido apenas pela sua

dimensão econômica [...]. Os incentivos possibilitaram a modernização da produção

agropecuária (mecanização, aumento da produção e produtividade, competitividade

no mercado exportador), mas mantiveram e ampliaram a má-distribuição da

propriedade da terra e, conseqüentemente, aprofundaram um modelo excludente e

concentrador no país. O êxodo é a parte mais visível desse processo (SAUER, 2002,

p. 29).

Ao analisar essas transformações na economia brasileira, Fernandes (2000) sustenta a

tese de que o Brasil conheceu uma intensa transformação em sua agricultura no período de

1965 a 1985. Nessas décadas da ditadura, os governos militares implantaram uma política de

desenvolvimento agropecuário para a modernização do campo. Esse modelo causou

transformações profundas, privilegiando a agricultura capitalista, mas não transformou a

estrutura fundiária, não democratizou o acesso a terra.

Essas transformações geraram, de um lado, a modernização tecnológica financiada

pelo Sistema Nacional de Crédito Rural, de modo que a agricultura passou a

depender menos de recursos naturais e cada vez mais da indústria produtora de

insumos, consolidando o processo de industrialização da agricultura e promovendo o

crescimento das relações de trabalho assalariado. Por outro lado, o campo foi

transformado em espaços de conflitos intensivos, pelo crescimento da desigualdade

sócio-econômica. Esse modelo de modernização conservou a secular concentração

da estrutura fundiária, intensificando a histórica luta pela terra, e criou a crise

política que persiste até os dias de hoje. O legado da modernização conservadora

não poderia ser pior: aumento da concentração e da pobreza, êxodo rural, precarização das relações sociais no campo, falta de alternativas de reinclusão das

famílias expulsas da terra (FERNANDES, 2000, p.44).

50

Todos esses fatos estimularam a organização dos trabalhadores em movimentos

sociais, sindicatos e demais entidades representativas de seus interesses, impulsionando a luta

pela terra de forma articulada. Para Santos (2007), é a partir deste momento que as relações

capitalistas de produção vão se territorializando no campo, resultando em maior concentração

fundiária e de renda, e, assim, abrindo precedentes para a resistência camponesa e o

surgimento de movimentos de luta pela terra.

O governo ditatorial – que não admitia qualquer tipo de mobilização no campo e na

cidade – reprimiu duramente os movimentos campesinos existentes antes de 1964; o governo

militarizou a questão agrária, na tentativa de administrar o enorme conflito social que cobria o

país. “Através da militarização, o governo tenta controlar e domesticar o demônio político que

libertou com a sua política agrária e econômica” (MARTINS, 1984, p. 15).

A discussão sobre reforma agrária tornou-se então essencialmente técnica, visando

retirar-lhe o matiz “político” e se tornou sinônimo de projeto de colonização (preencher os

espaços vazios) e imperativo da segurança nacional (cuidar das fronteiras). Estava instaurada

a militarização da questão agrária, sob controle do Conselho de Segurança Nacional.

Esse processo de militarização da questão da terra no Brasil, e em particular na

Amazônia, culminou, em 1982, com a criação do Ministério Extraordinário para Assuntos

Fundiários, entregue ao General Venturini que, acumulando função de secretário do Conselho

de Segurança Nacional, passou a coordenar as atividades do INCRA, além de coordenar a

execução do Programa Nacional de Regularização Fundiária. Ou seja, estava criado o

“Quartel da Terra, lugar por excelência da contra-reforma agrária” (MARTINS, 1987, p. 126).

Malgrado a propaganda exacerbada e os expressivos aportes de recursos governamentais, os projetos de colonização não resolveram o problema. Milhões de

famílias se deslocaram especialmente das regiões nordestinas e sulistas, em direção

ao Centro-Oeste e Norte. Em meados dos anos 1970, o governo passou a incentivar

os projetos privados de colonização. A falta de assistência técnica, alimentos,

financiamentos, assistência médica etc., associada ao ambiente inóspito das frentes

de colonização, levaram ao fracasso desses empreendimentos, fazendo surgir novos

focos de conflitos e disputas por terra, aumentando a violência no campo

(FERNANDES, 2000, p. 46).

No final da década de 1970, os trabalhadores rurais sem terras, organizados em nível

local, recuperando a tradição camponesa de ocupação como método de luta, iniciaram um

novo ciclo de mobilizações em prol da reforma agrária. A criação da Comissão Pastoral da

Terra (CPT) pela ala progressista da Igreja Católica, em 1975, desempenhou papel decisivo

nesse processo.

51

A CPT, entidade que congrega representantes de igrejas cristãs, surgiu na Amazônia

Legal e Centro-Oeste, visando coibir a violência no campo e a falta de acesso à terra aos

posseiros. Atualmente, está espalhada pelo país e desempenha relevante papel na denúncia da

violência perpetrada pelo latifúndio, fazendo minucioso relato das mortes, do arbítrio, da

lentidão judicial, que é publicado anualmente. Também sofre violência, nas pessoas de seus

membros e militantes. Presta assessoria (pastoral, teológica, metodológica, jurídica, política e

social e fornece estrutura, procurando impulsionar a luta dos movimentos do campo

(MARTINS, 1997).

A fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984, foi

outro componente importante na luta por modificação da estrutura agrária, nos anos 1980.

Movimento que transformou o campesinato em um dos sujeitos sociais mais relevantes do país.

O envolvimento direto da CPT nos conflitos agrários e a necessidade da realização da reforma agrária por parte do Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais

(MSTR- sistema Contag) e o surgimento do MST deu novas perspectivas à questão

fundiária, a partir da segunda metade dos anos 1980. A organização das ocupações,

como uma forma diferenciada de luta pela terra, não apenas deslocou a resistência

histórica protagonizada pelos posseiros, mas deu novas perspectivas (e novos

desafios) ao protagonismo social e político do povo do campo, recolocando a

premência da realização de uma reforma agrária no Brasil (SAUER, 2002, p. 130).

A contundência das ações de reivindicação do MST, somadas à luta do Movimento

Sindical de Trabalhadores Rurais e de muitas outras entidades e movimentos sociais,

conseguiram recolocar o tema da reforma agrária na agenda do processo de redemocratização

do Brasil, com especial destaque na Constituinte de 1988, embora, na história brasileira, a

questão fundiária esteja diretamente vinculada à organização política do país e nos pactos do

poder. A luta pela terra se intensificou e a ocupação de terras passou a ser o instrumento de

pressão social mais utilizado pelos movimentos sociais do campo (MARTINS, 1977).

Nesses aportes, avigorando a assertiva apontada no início do trabalho, podemos

caracterizar três momentos históricos em que o papel da terra foi decisivo na conformação da

sociedade brasileira: em 1850, quando foi regularizado, pela Lei de Terras, o acesso privado

às terras, impedindo que parte da população trabalhadora rural também tivesse esse direito. O

segundo momento ocorreu nas décadas de 1920 e 1930, quando o movimento tenentista

questionou o latifúndio improdutivo e iniciou os primeiros debates sobre a necessidade de

reformar a estrutura agrária do país. Já a terceira fase iniciou-se nos anos do Pós-Guerra, quando

apareceram as Ligas Camponesas

e, mais recentemente, quando surgiu o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

52

1. 3 A configuração agrária na atualidade

Em 1985 a “Nova Republica” assumiu o governo para realizar a “Transição

Democrática” da ditadura. Assim, fez novas alianças no seio do poder do Estado com a

anuência militar. Mas, aparentemente de forma contraditória, colocou como um de seus

projetos prioritários a Reforma Agrária, prometida por Tancredo Neves, anunciada durante o

IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em Brasília pela CONTAG.

Foram, feitas as articulações para a elaboração do I Plano Nacional de Reforma Agrária,

aprovado em 1985 (OLIVEIRA, 2007).

A Nova República, aportada no “pacto social” lançado por Tancredo Neves, foi então

inaugurada com a promessa de realização da reforma agrária. Segundo Oliveira (2007), em 10

de outubro de 1985, o presidente José Sarney assinou o Decreto nº. 91.9766, que aprovava o I

Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), tendo como meta o assentamento de um

milhão e quatrocentos mil famílias. Criou também o Ministério da Reforma e do

Desenvolvimento Agrário (MIRAD) que juntamente com o INCRA, seriam os órgãos

executores do I PNRA.

No mesmo ano, os grandes proprietários de terra fundaram a União Democrática

Ruralista (UDR), com a finalidade de organizar mobilizações contra a implementação do

PNRA. A exemplo do que ocorreu com o Estatuto da Terra, uma nova frente anti-reformista

foi constituída, chamada de Frente Ampla da Agricultura (FAA). Sob a liderança da UDR, a

pressão exercida pela FAA teve o condão de esvaziar o Plano de Reforma Agrária, elaborado

pelo INCRA, e interditar o avanço da política agrária na Assembléia Nacional Constituinte,

instalada em 1987 (MARTINS, 1997).

Para superar as mazelas estruturais do campo, a Constituição Federal de 1988

apresentou alguns avanços no que tange à disciplina da estrutura fundiária. O texto conferiu

regime jurídico especial ao imóvel rural, sendo que a função social passou a integrar o

conteúdo do direito de propriedade. Ainda que a Constituição destine um capítulo específico à

reforma agrária conferindo à propriedade rural uma função social, a pressão dos ruralistas

obteve êxito em forjar um texto contraditório, que resulta em intransponível obstáculo à

desconcentração fundiária (SOUZA, 2007).

53

Assim, os ruralistas conseguiram incluir na Constituição o caráter insuscetível de

desapropriação da propriedade produtiva e transferiram para a legislação complementar a

fixação das normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social da terra.

Com a vitória da política fundiária dos latifundiários, o governo Sarney “sepultou o IPNRA,

que já nasceu esquartejado.

Primeiro com a Medida Provisória n° 29, de 15/01/1989, extinguiu o cargo de

ministro de Estado da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário, e transferiu as atribuições do MIRAD para o Ministério da Agricultura. E, em segundo lugar,

dois meses depois, pela Lei n/ 7.739, de 20/03/1989, extinguiu também o MIRAD e

recriou o INCRA, vinculado ao Ministério da Agricultura. A Reforma Agrária da

Nova República terminava institucionalmente da mesma forma como os governos

militares a tinham tratado, no âmbito do Ministério da Agricultura (OLIVEIRA,

2007, p.129).

Acrescenta Oliveira (2007):

O I PNRA já trazia retrocessos em relação ao Estatuto da Terra, como por exemplo,

o artigo (artigo 2°,§ 2°, do decreto n° 91.766) onde está expresso que se evitará,

sempre que possível, a desapropriação de latifúndios. Outro ponto foram os imóveis

que tivessem grande presença de arrendatários e/ou parceiros, onde as disposições

legais fossem respeitadas. Dessa forma, o I PNRA já apareceu trazendo distorções

em relação ao Estatuto da Terra (p. 145).

Segundo Silva (1987), houve recuos legais e intencionais, que colocaram o PNRA em

um patamar jurídico-operacional inferior ao existente em novembro de 1964, quando da

criação do Estatuto da Terra. Mesmo existindo terras agricultáveis, recursos financeiros e

humanos disponíveis, além dos instrumentos jurídicos aptos a permitir desapropriações

(Estatuto), faltou a sempre ausente “vontade política” (p.29).

Ao governo Sarney, coube a Jader Barbalho, então ex-governador do Pará (1983/86)

eleito pelo PMDB, substituir Marcos Freire no MIRAD. Durante sua presença no governo do

Pará nada mais, nada menos, do que 211 trabalhadores assassinados no campo naquele estado

(30 em 1983, 29 em 1984, 59 em 1985 e 93 em 1986).

Sarney investiu na propaganda governamental para alimentar a “farsa” de fazer a

Reforma. Na região Norte apenas 18% das terras previstas foram desapropriadas; no

Nordeste, 6%; no Sudeste, 4%; no Sul, 10%, e no Centro-Oeste. 12%. Depois de dois anos,

menos de 10% das metas do I PNRA tinham sido implantadas (SOUZA, 2007). O resultado,

além de expressar a falta de vontade política e a prevalência da defesa dos interesses dos

latifundiários organizados na UDR, evidenciou a demagogia populista do Governo Sarney

54

com relação à reforma agrária. Mais uma vez, consolidou-se na estrutura do poder do Brasil, a

política agrária dos latifundiários.

No final do governo foram assentadas apenas 84.852 famílias, cerca de 6% da

previsão inicial. A maioria dos assentamentos foi motivada por ocupações de terras realizadas

pelos movimentos sociais (OLIVEIRA, 2007).

Na década de 1990, assumiu o governo, Fernando Collor de Melo, primeiro presidente

eleito diretamente, após o golpe militar. Oliveira (2006) destaca que a composição de seu

ministério revelou, desde o início, que as metas estabelecidas em seu governo também não

seriam cumpridas: assentar 500 mil famílias em 04 anos. A proposta do governo Collor para a

reforma agrária era apenas 35% do que propusera. Era uma redução expressiva das metas para

assentamentos, e, além disso, o Ministério da Agricultura foi ocupado por Antonio Cabreira,

oriundo de família de latifundiários e ligado à UDR. Revelando a decisão de não fortalecer a

política de reforma agrária, menos de 30 mil famílias foram assentadas nesse governo.

Com a cassação de Collor, assumiu o vice Itamar Franco, produto de uma ampla

articulação política. Menos de 50 mil famílias tinham sido assentadas entre 1990 e 1999,

metade do número de assentados em relação ao governo anterior. Em 1995, assumiu a

presidência da República Fernando Henrique Cardoso (FHC) com uma proposta de reforma

agrária ainda mais tímida que a dos seus antecessores: assentar 280 mil famílias. FHC

prometeu “democratizar o acesso à terra e fazer profundas mudanças no campo, com vontade

política e decisão, dentro dos princípios da lei e da ordem” (OLIVEIRA, 2006, p. 121). Com a

meta do aumento substancial dos assentamentos a cada ano, o objetivo a atingir é cem mil

famílias no último ano de seu governo.

Segundo Oliveira (2007) na década de 1990, as organizações sociais de luta pela terra,

sobretudo o MST, ampliaram significativamente as mobilizações por políticas agrárias. As

ocupações massivas de fazendas, marchas nacionais envolvendo centenas de milhares de

pessoas, ocupações de prédios públicos, acampamentos à margem de estrada e outras formas

de atuação passaram a fazer parte da agenda nacional. Na verdade, essa efervescência social é

uma reação à consolidação do modelo agrícola inaugurado pela “modernização

conservadora”, agora chamada de “agronegócio5” (p. 148).

5 A expressão “agronegócio” é nova, da década de 1990, e foi ideologicamente construída para mudar a imagem

da agricultura capitalista, particularmente do latifúndio, historicamente associados à exploração, ao trabalho

escravo, à concentração de terra, ao coronelismo, ao clientelismo, à subserviência, ao atraso político e

econômico. “Agricultura capitalista”, “agricultura patronal”, “agricultura empresarial” ou agronegócio são

eufemismos utilizados para esconder o que está na raiz, na lógica do modelo agropecuário: a concentração e a

55

Esse mesmo autor ao estudar o modo capitalista de produção, agricultura e reforma

agrária no Brasil, destaca que nos de 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso,

registram-se mais de mil conflitos espalhados por todo o país. Apresenta também, o

crescimento dos conflitos nas regiões de ocupação tradicional: Nordeste e Centro-Sudeste.

Alguns estados vão aparecer como concentradores destes conflitos como é o caso do Paraná

na região Sul; Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Mato Grosso do Sul no Centro-Sudeste;

Pernambuco no Nordeste; e Pará e Mato Grosso na Amazônia.

Entretanto, a resposta do governo Fernando Henrique à efervescência dos conflitos, foi

o aumento da repressão policial.

Este governo entrou para a História, marcado por um tipo de violência que não havia

acontecido de forma explicita no Brasil: quem passou a matar os camponeses em luta pela terra, foram as forças policiais dos Estados. O massacre de Corumbiara e

de Eldorado dos Carajás são os exemplos ocorridos no governo FHC. Estes dois

massacres representavam a posição das elites latifundiárias brasileiras em não ceder

um milímetro sequer em relação á questão da terra e da política agrária. O apoio dos

ruralistas á base de sustentação política do governo FHC, tem tido como

contrapartida duas práticas políticas pelo governo: a primeira, a posição repressiva

aos movimentos sociais e a segunda, no plano econômico, prorrogando não se sabe

até quando, as dividas destes latifundiários que não ás pagam (OLIVEIRA, 2007).

Comparando-se o governo de Fernando Henrique Cardoso com os anteriores (Sarney,

e Collor/Itamar) verifica-se consoante dados divulgados pelo INCRA, que nos primeiros seis

anos tinha assentado 373.210 famílias em 3.505 assentamentos rurais. A pressão social feita

pelos movimentos sociais com a ampliação das ocupações pressionou o governo FHC há

ampliar os assentamentos (FERNANDES, 2002).

Este fato mostra que a reforma agrária antes de ser uma política propositiva do

governo é a necessidade de resposta á pressão social. No entanto, Fernandes (2002) chama

atenção para a participação expressiva da região Amazônica no conjunto dos assentamentos:

223.368 famílias ou quase 60% do total. Se observado o número de ocupações de terra

naquela região ele representa pouco mais de 10% do total. Enquanto isso, a maior parte dos

acampados das regiões tradicionais continuava aguardando a reforma agrária chegar. Eles

eram estimados em 100.000 acampados.

exploração. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegócio procura representar a imagem da produtividade,

da geração de riquezas para o país. Desse modo, se torna o espaço produtivo por excelência, cuja supremacia não

pode ser ameaçada pela ocupação da terra. Se o território do latifúndio pode ser desapropriado para a

implantação de projetos de reforma agrária, o território do agronegócio como sagrado, que não pode ser violado.

(FERNANDES, 2000, p. 31).

56

Dessa forma, o mesmo autor analisa que a política de reforma agrária do governo FHC

passou por momentos históricos e estratégias diferenciadas. Enquanto a política do MST era

de colocar “a nu a terra improdutiva e grilagem de terra pelos latifundiários” (FERNANDES,

2002, p. 129), a resposta foi a violência policial ou a criminalização das lideranças.

A repressão sobre os movimentos que lutam pela terra tornou-se mais complexa,

reforçando-se a tática de difamá-los, criminalizá-los e enviar o conflito para o Judiciário. Em

termos de políticas agrárias, o período é marcado pelo equívoco de se confundir projetos de

assentamento com uma verdadeira política pública de reforma agrária. Pelo conjunto das

medidas, seu governo ficou marcado por uma política agrária neoliberal.

Os estudos de Oliveira (2006) apontam que mais de 1 milhão de hectares de terras

deveriam voltar ao controle do Estado, e isto vem ocorrendo lentamente. Dessa forma, vive-se

uma situação toda peculiar, porque o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está

nesse caso, em Corumbiara (RO) e em Eldorado do Carajás (PA)6, fazendo emergir uma nova

componente política da luta pela terra que é a denúncia da grilagem das terras pelos

latifundiários.

Em Corumbiara foi assim, as terras do fazendeiro que se dizia proprietário já devia

ter sido retomada pelo Estado porque ele não cumpriu o que a Lei, que permitiu o

acesso aquela terra dizia. Em Eldorado do Carajás foi a mesma coisa, o fazendeiro

que se dizia proprietário da fazenda Macaxeira, na realidade tinha uma autorização

para explorar castanha, não o titulo da propriedade das terras (OLIVEIRA, p.130).

A grilagem de terra sustenta que a falta de informações seguras do Sistema de

Cadastro Rural do INCRA cria um quadro de ilegalidade e instabilidade jurídica em relação à

posse e propriedade da terra, acabando por estimular outra prática comum na história

fundiária nacional: a grilagem de terras públicas (OLIVEIRA, 2003).

Com base no relatório da CPI da Grilagem, aprovado na Câmara dos Deputados, em

30 de agosto de 2001, Melo (2004) assevera que a grilagem tem como fins principais a

revenda das terras em grande escala, a obtenção de financiamentos bancários para projetos

agropecuários, a exploração madeireira, o pagamento de dívidas previdenciárias e fiscais, a

6 Se houve algum incidente que claramente divide a história contemporânea da luta pela terra no Pará em

períodos de “antes” e “depois” foi o massacre brutal de 19 manifestantes do MST pela polícia no dia 17 de abril

de 1996, em Eldorado de Carajás. Esse incidente resultante das tentativas de o MST forçar a expropriação de um

enorme e muito cobiçado grupo de propriedades rurais no sul do Pará. Após o massacre de Eldorado, o dia 17 de

abril tornou-se “Dia Internacional de Luta Camponesa e “Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária”

(CARTER, 2010, p. 270).

57

obtenção de bônus pelo seqüestro de carbono e o percebimento de indenização

desapropriatória.

A grilagem é um dos mais poderosos instrumentos de domínio e concentração

fundiária no meio rural brasileiro. Em todo país, o total de terras sob suspeitas de

serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares – quatro vezes a área

do Estado de São Paulo ou a área da América Central mais México. Na Região

Norte, os números são preocupantes: da área total do Estado do Amazonas, de 157

milhões de hectares, suspeita-se que nada menos de 55 milhões tenham sido grilados, o que corresponde a três vezes o território do Paraná. No Pará, um

fantasma vendeu a dezenas de sucessores aproximadamente nove milhões de

hectares de terras públicas. [...]. O Estado do Pará é a “bola da vez” na grilagem das

terras públicas brasileiras (OLIVEIRA, 2007, p.179).

Violência e corrupção se fazem presentes em todo o processo de grilagem. A violência

é mais visível: o grileiro contrata pistoleiros para expulsar posseiros, seringueiros, índios e

outros moradores que encontra na área pública da qual pretende se apropriar. Nas regiões em

que a grilagem é maior, os registros de violência contra trabalhadores também são maiores. A

corrupção é menos visível. Após expulsar os moradores da área, os grileiros falsificam

documentos relativos à dominialidade e outros relacionados com a obtenção de recursos

públicos e exploração de madeira. Nessa etapa, contam com a cumplicidade de cartórios de

registros de imóveis e de funcionários públicos.

Os agentes públicos estão diretamente relacionados com as práticas de grilagem. A

grilagem de terras acontece normalmente com a conveniência de serventuários de

Cartórios de Registro Imobiliário que, muitas vezes, registram áreas sobrepostas

umas às outras – ou seja, elas só existem no papel. Há também a conivência direta e

indireta de órgãos governamentais, que admitem a titulação de terras devolutas

estaduais ou federais correligionários do poder, laranjas ou mesmo a fantasmas –

pessoas fictícias, nomes criados apenas para levar a fraude a cabo nos cartórios.

Depois de obter o registro no cartório de títulos de imóveis, o fraudador repetia o

mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado, no Cadastro do Incra e junto

à Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados que dessem à fraude

uma aparência de consistente legalidade (MELO, 2006, p. 45).

A improdutividade da terra se soma à concentração e à grilagem na composição do

drama agrário nacional. Assim, o MST traz á tona essa discussão, e é evidente que neste

momento questiona na raiz o pacto das elites sobre a terra, e, particularmente a sua base

jurídica. Como contraponto, o Estado busca a criminalização das lideranças do MST. Esta foi,

pois, uma primeira estratégia política do governo FHC para fazer frente aos movimentos

sociais.

Mas, a resistência camponesa presente nos movimentos sociais em luta, deu o tom da

luta política principalmente, na segunda metade da década de 90 no Brasil. Por isso, o

58

governo FHC teve que se render ao avanço das lutas sociais pela reforma agrária no primeiro

mandato, e, criar o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

No segundo mandato, FHC tratou de implementar políticas repressivas, como tentativa

de frear o avanço dos novos personagens da cena política brasileira. Entre elas, está a Medida

Provisória “que suspende a vistoria pelo INCRA das propriedades ocupadas pelos

movimentos sociais e proíbe os ocupantes de ser assentados da reforma agrária” (OLIVEIRA,

2006, p. 135). Com relação às mudanças legais de responsabilidade do Ministério do

Desenvolvimento Agrário,

primeiro fez-se a securitização das dividas dos ruralistas, depois se criou o ITR

progressivo. Depois se criou o Projeto Cédula da Terra e o Banco da Terra visando

implantar uma autêntica contra-reforma agrária via mercado7. Por fim, mais duas

medidas coercitivas: a MP 2.109, de 29 de junho de 2000, que proibiu a vistoria por

dois anos em imóveis ocupados e a Portaria/MDA/n°62 de 27/03/2001, que exclui

os assentados da reforma agrária devido “atos de invasão ou esbulho de imóveis

rurais”. A inscrição para assentamentos da reforma agrária pelo correio, veiculada

com propaganda televisiva e impressa afirmando que “a porteira está aberta para a

reforma agrária, é só entrar e inscrever-se”, foi outro estelionato das políticas do

PSDB de FHC. A prática exercida pelo MDA, na realização de reuniões e

seminários com intelectuais que estudam a questão agrária, para auxiliarem na elaboração de políticas e ações de governo [...] para formarem uma espécie de frente

de ação intelectual de critica aos movimentos e seus intelectuais orgânicos

(OLIVEIRA, 2006, p. 129-130).

Para o autor mencionado, o caráter mais conservador da reforma agrária brasileira é o

programa de crédito chamado de reforma agrária de mercado, iniciado no governo FHC com

o Banco da Terra e hoje transformado no programa Cédula da Terra. Este programa, que

segue as indicações do Banco Mundial para a “reforma agrária”, tem como principal

instrumento a concessão de crédito para a compra de pequenas propriedades. Desta forma, o

Estado se torna ainda mais distante das ações, que neste caso são ditadas pelo mercado de

terras.

Os neoliberais do estudo agrário sepultaram a concepção da agricultura camponesa e

com ela os próprios camponeses. Afinal, era preciso no plano teórico e político afastar de vez

o velho fantasma da questão camponesa que já assustava os latifundiários brasileiros da UDR.

Estas medidas objetivavam enfraquecer a organização dos movimentos, sobretudo do MST,

apelando para o individualismo. Essa tática atingia os assentamentos. Ao lado de famílias

7 O caráter mais conservador da reforma agrária brasileira é o programa de crédito chamado de reforma agrária

de mercado, iniciado no governo FHC com o Banco da Terra e hoje transformado no programa Cédula da Terra.

Este programa, que segue as indicações do Banco Mundial para a “reforma agrária”, tem como principal

instrumento a concessão de crédito para a compra de pequenas propriedades. Desta forma, o Estado se torna

ainda mais distante das ações, que neste caso são ditadas pelo mercado de terras (FERRANTE, 1988).

59

participantes de organizações que lutaram pela terra, eram assentadas outras que nada tinham

em comum, ensejando o pipocar de conflitos internos. Além disso, foi incentivada a

organização de outros movimentos de sem-terra, para esvaziar o MST.

No governo FHC, seu principal braço ideológico era a mídia que construiu com a

formação de um novo ideário para a compreensão da agricultura.

Ou seja, o pensamento único sobre a lógica do chamado moderno agronegócio. Para

isso, aproveitou-se da crescente participação da produção para o mercado mundial da soja brasileira, para fomentar também, no mundo acadêmico a “decretação” do

fim da reforma agrária como alternativa de política econômica para o país. [...]. O

agronegócio hegemônico e único (STÉDILE, 2004, p. 49).

E ainda, para esse autor, o agronegócio representa mais uma etapa no desenvolvimento

da agricultura capitalista no Brasil e traduz o projeto neoliberal para a agropecuária brasileira.

Esse projeto tem como características principais: o controle da comercialização de grãos pelas

grandes empresas multinacionais; o processo de desnacionalização da agroindústria; e a

retirada do controle estatal do setor agrícola, sobretudo no que tange à assistência técnica, ao

subsídio, ao crédito e à comercialização. Segundo entende, o resultado dessa política é

desastroso, uma vez que concentra terra e renda nas mãos de poucos, não gera emprego,

impede o desenvolvimento do mercado interno e o crescimento do País.

O autor citado anteriormente defende a tese de que o agronegócio burguês expressa a

racionalidade neoliberal que dá sentido às práticas da classe dominante agrária, para

desenvolver e consolidar o capitalismo no campo.

O chamado agronegócio não é a solução. Vejam que as propriedades acima de 1.000

hectares empregam apenas 600 mil assalariados, e possuem apenas 5 por cento da

frota nacional de tratores. As pequenas propriedades empregam 13 milhões de trabalhadores familiares e mais de 1 milhão de assalariados, e detêm 52 por cento de

toda a frota de tratores do Brasil. O agronegócio dá lucro para uma minoria de

fazendeiros que se dedicam à monocultura exportadora, como fizeram em todo o

período colonial. Mas isso não resolve os problemas econômicos e sociais da

população brasileira (STÉDILE, 2004, p. 30).

Por ser o aprofundamento do modelo agropecuário instalado com a “Revolução

Verde”, o agronegócio apresenta a mesma contradição pontuada acima: por um lado, promove

crescimento econômico e aumento da produtividade na agricultura; por outro, amplia a

concentração fundiária, a degradação ambiental, a pobreza rural e a violência no campo.

O século XXI começou com o final do governo FHC e o coroamento do crescimento

do Partido dos Trabalhadores (PT) com a eleição de um trabalhador metalúrgico, Luís Inácio

Lula da Silva, ao governo da República. O presidente eleito contava com notável trajetória de

60

líder sindical e dirigente de um partido que sempre encampou as lutas populares, carregou um

forte simbolismo, representando a esperança em mudanças significativas na sociedade, numa

perspectiva democrático-popular. No imaginário de amplos setores, reacendeu-se a

possibilidade de uma ampla reforma agrária. Simultaneamente, a agricultura mundial entrava

em um novo patamar de acumulação.

No início, o governo confiou a formulação de um plano de reforma agrária a Plínio de

Arruda Sampaio e outros profissionais. O grupo, após estudos e análises, e diante de uma

estimativa de 120 milhões de hectares de terras disponíveis, propôs o assentamento de 1

milhão de famílias, em quatro anos, priorizando-se, como demanda emergencial, 180 mil

famílias acampadas. Propôs ainda: que a reforma agrária fosse encampada enquanto política

governamental; a consolidação de assentamentos já implantados; que fosse assegurada aos

assentados uma renda mensal equivalente a três salários mínimos e meio; criação de postos de

trabalho; regularização de áreas remanescentes de quilombos e a situação dos agricultores

ribeirinhos (CARVALHO FILHO, 2006, p. 26).

A proposta não foi aceita pelo governo, que negociou com os movimentos sociais,

assumiu compromissos e anunciou o II Plano Nacional de Reforma Agrária, aprovado no final

de 2003, com pretensões bem menores, mas ainda dentro de um patamar razoável. Os novos

termos: o assentamento de quatrocentas mil famílias até o ano de 2006; regularização da

posse de 500 mil famílias; crédito fundiário para 128 mil famílias; viabilidade econômica dos

assentamentos; regularização de imóveis rurais e cadastro de propriedades através do

“georreferenciamento” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 27).

O II Plano Nacional de Reforma Agrária elaborado pelo Ministério do

Desenvolvimento Agrário e pelo INCRA e apresentado à sociedade no final de 2003, durante

a Conferência da Terra, em Brasília, como proposta do governo Lula, destacava a reforma

agrária mais que um compromisso e um programa do governo federal.

Ela é uma necessidade urgente e tem um potencial transformador da sociedade brasileira. Gera emprego e renda, garante à segurança alimentar e abre uma nova

trilha para a democracia e para o desenvolvimento com justiça social. A reforma

agrária é estratégica para um projeto de nação moderno e soberano. [...]. Mas o II

PNRA, tradutor de uma visão ampliada de reforma agrária, vai além da garantia do

acesso à terra. Prevê ações para que estes homens e mulheres possam produzir gerar

emprego e ter acesso aos demais direitos fundamentais, como saúde e educação,

energia e saneamento. Para viabilizar um modelo de desenvolvimento rural e

agrícola será fundamental a implementação de um programa de reforma agrária,

amplo e não atomizado. [...]. Assim, o II PNRA, Vida Digna no Campo, é

fundamental para o país, pois irá gerar postos de trabalho no campo, contribuir com

as políticas de soberania alimentar, combate à pobreza, e com a consolidação da

61

agricultura familiar (INCRA, 2003, p.15).

O II PNRA expressa uma visão ampliada de políticas agrárias que pretendem mudar a

estrutura agrária brasileira e ações dirigidas a impulsionar uma nova estrutura produtiva,

fortalecendo os assentados de reforma agrária, a agricultura familiar, as comunidades rurais

tradicionais e superando a desigualdade de gênero, entre outras. Não basta apenas

desconcentrar a propriedade da terra para a correção das mazelas da atual estrutura agrária.

Esta profunda mudança no padrão de vida e de trabalho no meio rural envolve a garantia de

crédito do seguro agrícola, da assistência técnica e extensão rural, de políticas de

comercialização, de agroindustrialização, de recuperação e preservação ambiental e da

promoção da igualdade.

A apresentação do II Plano Nacional de Reforma Agrária retrata a questão agrária

atual e a política de reforma agrária, no país, ao destacar:

Os pobres do campo são pobres porque não têm acesso à terra suficiente e políticas

agrícolas adequadas para gerar uma produção apta a satisfazer as necessidades

próprias e de suas famílias. Falta título de propriedade ou posse de terras, ou estas

são muito pequenas, pouco férteis, mal situadas em relação aos mercados e

insuficientemente dotadas de infra-estrutura produtiva. São pobres, também, porque

recebem, pelo aluguel de sua força de trabalho, remuneração insuficiente; ou ainda porque os direitos da cidadania-saúde, educação, alimentação e moradia-não chegam

ao campo. [...]. Essa situação vem de muita longa data, mas se agravou bastante nas

duas últimas décadas, em razão da substituição de trabalho humano por máquinas e

insumos químicos na maior parte dos estabelecimentos agropecuários (INCRA,

2003, p.12).

A situação exposta revela a necessidade de implementar uma política agrária que

possa contribuir com a superação da desigualdade e a exclusão social de parte significativa da

população rural. Entretanto, o representante da CPT, Dom Tomas Balduíno (2005), reconhece

que ocorreu modificação no trato com os movimentos sociais em geral, não havendo o

incentivo à criminalização ou repressão dos mesmos. Estes encontraram também maior

abertura para apresentar demandas e cobrar iniciativas governamentais.

Todavia, não se alterou o quadro de lentidão na implantação da política de reforma

agrária nem se deu a ruptura com o modelo agroexportador, sem contar que foi nomeado para

o Ministério da Agricultura um dos representantes do agronegócio (Roberto Rodrigues).

Segundo informa Stédile (2007), 10% das verbas orçamentárias foram destinadas para

agricultura familiar e 90% para o agronegócio de exportação.

Como resultado da política implantada pelo II PNRA, o número de famílias assentadas

e de Projetos de Assentamento, a área destinada à Reforma Agrária e os créditos para

62

instalação e consolidação dos assentamentos aumentaram. Não obstante, os créditos à

agricultura patronal têm aumentado em maior proporção, tornando os créditos para os

usuários da Reforma Agrária e da agricultura familiar ínfimos, se comparados em seus valores

absolutos.

Essas metas não vêm sendo cumpridas, ou o vem de forma reduzida. Até outubro de

2005, um ano antes do final do primeiro mandato do Presidente Lula, teriam sido assentadas

apenas 180 mil famílias, verificando-se o contingenciamento de recursos do Ministério de

Desenvolvimento Agrário, a diminuição de créditos e a falta de projetos de recuperação e

estruturação dos assentamentos. A ação governamental ficou muito aquém do esperado e “não

apresenta diferenças significativas quando comparada com aquela implementada pelo governo

anterior” (OLIVEIRA, 2007, p. 32).

Assim, o que se viu no primeiro mandato, e se vê no segundo mandato de Luiz Inácio

Lula da Silva foi a comprovação de que o Estado ainda trata a questão agrária como uma

questão isolada e setorial, com políticas conjunturais conforme o poder de mobilização dos

movimentos sociais do campo. Ou seja, uma reforma agrária conservadora que segundo

Carter (2009)

define-se por ser de caráter reativo, antes que proativo; restrito no seu alcance em

vez de empenhado em forjar uma mudança social‟, um assunto marginal para o

desenvolvimento rural. Essa reforma responde à pressão social e ao intuito de

apaziguar os conflitos rurais, antes que ao esforço por promover a agricultura

camponesa mediante a transformação da estrutura fundiária e as suas relações de

poder (p. 260).

O controle político do Estado pelos ruralistas, ainda hoje, impede o desenvolvimento

da agricultura camponesa, e determina as condições para que a modernização da agricultura

mantenha a estrutura fundiária concentrada (FERNANDES, 2008).

Este governo está sendo marcado pelo relançamento do capital financeiro na

agricultura através de uma nova aliança do capital e da grande propriedade fundiária, sob

tutela das políticas públicas, favorecendo a desmobilização dos movimentos sociais. Os

partidos de esquerda, sucessores da tradição da luta pela Reforma Agrária, hoje no governo,

“colocaram-se na perspectiva de administrar o ajustamento constrangido” (DELGADO, 2005,

p. 68).

Entretanto, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) acaba de concluir

um novo levantamento sobre a reforma agrária no governo do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva. De acordo com os números oficiais, em sete anos foram assentadas 574,6 mil famílias,

63

numa área de 46,7 milhões de hectares. Isso corresponde a duas vezes o território do Estado

de São Paulo – com 24,8 milhões de hectares (INCRA, 2010, p. 3).

Ainda de acordo com os dados oficiais, já encaminhados ao Palácio do Planalto, as

realizações do atual governo representam 55% de tudo que foi feito na área da reforma agrária

em 40 anos de existência do INCRA. Na soma dos vários governos do período, 84,3 milhões

de hectares já foram transformados em assentamentos rurais. Considerando que o Brasil tem

aproximadamente 850 milhões de hectares, pode-se dizer que 10% do território foi para a

reforma agrária (INCRA, 2010).

Todavia, ao avaliar a política agrária no primeiro mandato de governo do presidente

Lula, contestando a falta de transparência dos dados divulgados pelo INCRA com relação ao

número de famílias assentadas, Stédile (2006) destaca:

O desempenho desses quatro anos é patético. Parece que 50% de todas as famílias

que teriam sido assentadas se encontram na região amazônica. São, na verdade

projetos de colonização, em sua maioria, em terras públicas. No fundamental não

afetam o latifúndio, não contribuem para a desconcentração de terras. Não se trata

de reforma agrária. [...]. Apenas um terço da reforma agrária prometida foi feito no

primeiro governo Lula. A conseqüência é que mais de 150 mil famílias que estavam

acampadas em 2003 continuam acampadas em 2007. Somando-se elas ao

contingente que foi para os acampamentos entre 2004 e 2006, chega-se ao total de mais de 240 mil em baixo das lonas pretas à espera de reforma agrária que não vem.

[...]. O MDA/INCRA não quer desapropriar os grandes imóveis improdutivos dos

estados das regiões onde o agronegócio tem força econôm9ica – Sul, Sudeste e

Centro Oeste - para não “desestabilizar” o agronegócio (p. 176).

A política agrária está acoplada à expansão do agronegócio no país. É por isso que a

reforma agrária no Brasil é uma conquista dos movimentos sociais e, só ocorre quando eles

vão à luta.

Os governos de Cardoso e Lula não apresentaram grandes diferenciais quanto ao

número de famílias assentadas, mas a administração do último teve um trato mais aberto e

dialogal com os movimentos sociais do campo, alguns dos quais acabaram influenciando as

nomeações de cargos de confiança do MDA e do INCRA. Para Carter (2009) o governo Lula

também deu maior apoio financeiro e logístico para a consolidação dos assentamentos e

Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e suas parcerias com

universidades públicas e escolas técnicas. O Programa de Assistência Técnica Social e

Ambiental (ATES) mais que triplicou a sua cobertura depois de 2003. Ademais, O Programa

Luz para Todos iniciado pelo Ministério de Minas, Energia e Comunicações do governo Lula

estendeu, até 2009, a eletrificação rural a mais de 8 milhões de pessoas.

64

Essas e outras melhoras foram efetuadas num clima de insistente pressão por parte dos

movimentos sociais no campo. A contratação de 1.800 novos servidores para o INCRA,

decisão que aumentou a capacidade de atuação desse órgão em 40%, foi assumida pelo

governo federal como parte do acordo realizado com o MST, durante a Marcha Nacional pela

Reforma Agrária, em 2005(CARTER, 2009).

Neste sentido, o II PNRA avançou ao apresentar uma compreensão ampliada de

reforma agrária. Porém, a execução do plano tem apresentado uma reforma conservadora da

estrutura fundiária através da criação de assentamentos rurais. Consideramos que no período

analisado (1988-2009) houve uma reforma agrária conservadora, pois a forma como é

conduzida a política de assentamentos conserva a estrutura das regiões de ocupação

consolidada, isto é, centro-sul e Nordeste, de forma que o cumprimento dos princípios

constitucionais é muito restrito. A partir desta premissa, é possível compreender o quanto

reformadora é a política de assentamentos rurais que fundamenta esta reforma agrária

conservadora.

Apesar de suas promessas históricas em favor de uma reforma agrária progressista, o

presidente Lula manteve a inércia conservadora, atenuando-a só em parte. A opção

preferencial pelo agronegócio emperrou a possibilidade de levar adiante uma reforma agrária

entendida como uma forte política de Estado, com redistribuição de terra, renda e poder.

Os acontecimentos, passados e atuais apontam que não se pode esperar alterações

profundas a partir da mera vitória eleitoral. Reforçam também o seguinte entendimento:

mesmo num governo comprometido com as lutas sociais, alimentado pela esperança, se não

houver pressão popular as mudanças não acontecerão. Como afirma Demo (2001):

A mera vitória eleitoral de grupos políticos de esquerda não significa,

necessariamente, a solução de alguns problemas dos movimentos sociais. Mesmo

assim, o espaço público deve ser ocupado, para que ele de fato seja público, em

outra perspectiva, uma vez que é a sociedade organizada que define o papel e o espaço do Estado, não o contrário. Em tese, este existe para atender seus cidadãos e

não para subjugá-los (p. 15).

A reforma agrária atrelada ao conjunto de Políticas Públicas eficientes para garantir a

autonomia de produção do camponês inexiste sem a intervenção dos movimentos sociais,

protagonistas na recriação do campesinato brasileiro no interior do modo de produção

capitalista, uma vez que o Estado tem mantido os velhos pactos entre os setores do bloco

hegemônico.

65

CAPÍTULO II

POLÍTICA AGRÁRIA E REFORMA AGRÁRIA FACE A PROPRIEDADE PRIVADA

E A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA

A terra e a democracia aqui não se encontram. Negam-se,

renegam-se. Por isso, para se chegar à democracia é

fundamental abrir a terra, romper essas cercas que excluem e

matam, universalizar esse bem, acabar com o absurdo,

restabelecer os caminhos fechados, as trilhas cercadas, os

rios e lagos apropriados por quem, julgando-se dono do

mundo, na verdade o rouba de todos os demais.

Hebert de Souza, o Betinho.

2.1 Propriedade privada e sistema capitalista

O direito de propriedade percorreu um longo caminho até chegar à configuração atual.

É importante ressaltar que a propriedade privada, especialmente a dos meios de produção, não

é algo dado, ínsito à natureza humana, fruto da razão. Ao contrário, a propriedade é uma

construção humana, que tem origem histórica, constituindo-se como produto de uma

determinada forma de organização humana.

A propriedade representa um dos conceitos fundamentais e uma das instituições mais

complexas das sociedades contemporâneas, considerando que “todo direito gira, de certo

modo, em torno do tema da propriedade e de sua respectiva proteção” (AMARAL JÚNIOR,

1983, p. 337).

Ao discorrer sobre a origem da família, da propriedade privada e do estado, Engels

(1987) afirma que os primeiros habitantes do planeta não conheceram a apropriação

individual da riqueza e dos meios de produção. Pra ele, a propriedade privada surge na

passagem do gênero humano do estado de barbárie para a civilização, no momento histórico

em que se descobre a agricultura e a pecuária.

O princípio materialista contido na obra do antropólogo Morgan, segundo Engels

(1997), é o que fundamenta a compreensão de que as fases de desenvolvimento humano

acompanham os progressos obtidos na produção dos meios de existência, ou seja, as épocas

de progresso no desenvolvimento da humanidade coincidem com a ampliação das fontes de

existência. Este é o princípio que permite a Morgan estabelecer e classificar os estágios pré-

históricos de cultura, que são basicamente três: selvagem, barbárie e civilização.

66

Engels (2000) analisa que a infância do gênero humano era marcada pelo estado

selvagem, período em que homens e mulheres habitando bosques e florestas, se apropriavam

dos produtos da natureza apenas para suas necessidades diretas e imediatas. No período

posterior, denominado de barbárie, aparecem a criação de gado e a agricultura, com o início

do incremento da produção, a partir da natureza, pelo trabalho humano, com introdução da

cerâmica. O período de civilização inicia-se com a fundição do minério de ferro e a invenção

da escrita alfabética, em que o homem amplia e complexifica a elaboração de produtos

naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.

A agricultura e a pecuária representam “a primeira divisão do trabalho” (ENGELS,

2000, p. 179) e deram origem à apropriação individual da terra e do gado. A transformação do

ferro e de outros metais em ferramentas de trabalho, em substituição à pedra, tornou possível

a agricultura em escala e a preparação para o cultivo, de grandes áreas de florestas. O

surgimento das cidades, formado por casas de pedras ou tijolos, como residência central da

tribo ou confederações de tribos, encerrou significativo progresso na arquitetura e evidenciou

a necessidade de defesa.

Essas modificações traduzem aquilo que Engels (2000, p. 183) chamou de “a segunda

divisão social do trabalho”, com a separação entre o artesanato e a agricultura. Para ele, o

crescimento da produção e do trabalho aumentou o valor da força de trabalho do ser humano.

A escravidão, em estado nascente e esporádico na fase anterior, transformou-se em elemento

básico do sistema social. E o mesmo autor (2000) acrescenta que, ao se dividir a produção nos

dois ramos – agricultura e ofícios manuais-, surgiu à produção diretamente para troca, a

produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras das tribos, mas

também por mar.

No estado da barbárie, a humanidade inaugura a divisão do trabalho e firma o sentido

da posse e da propriedade. A civilização materializa e aumenta todas as divisões já existentes,

acentuando a contradição entre a cidade e o campo, e acrescenta uma terceira divisão do

trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, “criando uma classe social que não se

ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca de produto: os comerciantes” (ENGELS,

2000, p. 186). Esse ciclo se encerra com a criação do dinheiro, especialmente do dinheiro-

metal, apontada pelo autor como “a mercadoria por excelência” (ENGELS, 2000, p. 187).

67

As mutações porque passaram a instituição “família” foram preponderantes para a

transição da fase de apropriação coletiva para o surgimento da propriedade privada da

produção, assim como foi determinante para o surgimento do Estado.

A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e

escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em

classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as

antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda

subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades.

A terra cultivada foi distribuída entre familiares particulares, a princípio por tempo

limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi

realizando-se aos poucos, paralelamente passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou a transformar-se na unidade econômica

da sociedade (ENGELS, 2000, p. 184).

Em A ideologia alemã, Karl Marx e Friedrich Engels (1984) afirmam que o primeiro

exemplo de propriedade é a escravidão familiar:

Com a divisão do trabalho na qual estão todas estas contradições, e a qual por sua

vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em

famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a

repartição, e precisamente a partição desigual tanto quantitativa quanto qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e, portanto a propriedade, a qual já tem o seu

embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos

do homem. A escravatura latente na família, bem que ainda muito rudimentar, é a

primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos

modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor da força de trabalho. [...]

alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas -

numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na outra se enuncia

relativamente ao produto da atividade (p.36 -37).

Com relação à agricultura e a propriedade da terra Martins (2007) discorre que a

agricultura tornou a terra cativa: A agricultura fez da terra um espaço privado, onde cada

homem passou a controlar o seu produto promovendo:

Uma mudança no comportamento ético, passando o ser humano a se considerar o

destinatário do Universo, subjugando todos os animais e plantas e, ao final, a supremacia de alguns homens sobre todos os outros homens. O ser humano perdera

o paraíso, no mito da criação (2003, p. 12).

O agrarista Marés (2003) parte da teoria de que a terra e seus frutos passaram ter

donos, gerando “um direito exclusivo, acumulativo, individual. Direito tão geral pleno que

continha em si o direito de não usar, não produzir” (p.31). A divisão do trabalho gerou a

propriedade privada. A propriedade privada deu causa ao surgimento do Estado, que foi

criado para garanti-la e protegê-la. O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se

68

impôs à sociedade e fora para dentro; tampouco é „a realidade da idéia moral‟, nem „a imagem

e a realidade da razão‟, como afirma Hegel:

É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de

desenvolvimento é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está divida por antagonismos irreconciliáveis que não

consegue classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não

consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado

aparentemente acima da sociedade, chamada a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da „ordem‟. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima

dela se distanciando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 2000, p. 191).

O Estado tem suas origens na necessidade de controlar os conflitos sociais entre os

diferentes interesses econômicos, e que esse controle é realizado pela classe com mais poder

de dominação econômica, normalmente a classe proprietária:

Como o Estado nasceu da necessidade de conter os antagonismos das classes, e

como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o

Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que,

por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e

adquire novos meios de repressão e exploração da classe oprimida (ENGELS, 2000,

p. 194).

O direito de propriedade é considerado “a essência do processo civilizatório”.

Contraditoriamente, esse direito, “acabou de ser, ele mesmo, fonte de muitos males”

(MARÉS, 2003, p.12). A propriedade privada sempre ocupou um papel central nas relações

sociais das diferentes sociedades humanas. Por isso, o conceito de propriedade sofreu

profundas modificações no decorrer da história das sociedades.

A distribuição da posse e da propriedade, especialmente da fundiária, foi determinante

para a constituição dos Estados antigo e medieval.

Na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são

regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser

o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não

possuem. Foi o que vimos em Atenas e em Roma, onde a classificação da população

era estabelecida de acordo com o montante dos bens. O mesmo acontece no Estado

feudal da Idade Média, onde o poder político era distribuído conforme a importância

da propriedade territorial (ENGELS, 2000, p. 194).

O florescimento das cidades, o desenvolvimento das relações comerciais e o

surgimento da burguesia fragilizaram a nobreza medieval, incentivando a transformação do

feudalismo. Durante o Antigo Regime – caracterizado pelo absolutismo político – a

propriedade de todas as terras foi transferida ao monarca (MARÉS, 2003).

69

O advento da sociedade burguesa, com a consolidação do sistema capitalista,

provocou profundas modificações no direito da propriedade, que passou a ter, marcadamente,

um sentido de mera utilidade econômica. Para Marés (2003) a terra, considerada em muitas

culturas como divindade especial, foi confinada à condição de simples mercadoria.

Marx (1985) ao defender a tese da propriedade fundiária como raiz da propriedade

privada explicita:

A raiz da propriedade privada é a propriedade fundiária, contudo a radicalização do

poder da mercadoria agrária no sistema produz grande impacto no conjunto de

relações tradicionais estabelecidas em torno dos domínios fundiários. A

transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é a ruína final da velha

aristocracia e o aperfeiçoamento final da aristocracia do dinheiro. Na propriedade feudal ou tradicional da terra, a relação político- jurídica com a terra em uma

mercadoria, que responde ao toque do dinheiro, a converte em mera riqueza coisal,

despindo-a de qualquer coloração política, assim como no lugar do casamento de

honra com a terra se instala o casamento por interesse. [...]. A propriedade fundiária

foi o terreno mais duradouro da dominação social na era pré-capitalista. A relação

do se humano com o campo se alterou bruscamente com a formação da indústria no

século XIII e desde então se modifica aceleradamente (MARX, 1985, p. 137).

Marés (2003) considera John Locke o grande pensador da propriedade contemporânea,

especialmente por que:

Organizou a defesa teórica da propriedade burguesa absoluta, que viria a se transformar no direito fundante das constituições liberais próximas. Até Locke, a

civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade; a partir dele, e na

construção capitalista, passa a ser um direito subjetivo independente (MARÉS,

2003a, p. 23).

O autor entende que a propriedade privada constitui um direito natural e que seu

fundamento está no trabalho humano. O domínio comum acaba quando o ser humano, com

seu trabalho, torna próprios os frutos que a natureza oferece:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada

homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer

direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos pode dizer-

se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe

forneceu e no qual o deixou, fica lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe

algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o

do estado comum que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o

exclui do direito comum de todos (Locke, apud MARÉS, 2003, p. 23).

Ao analisar a estrutura do pensamento lockeano, Marés (2003) destaca que o filósofo

inglês estabeleceu uma estreita relação entre propriedade e trabalho quando defendeu que a

possibilidade de acumulação está diretamente relacionada com a possibilidade de comprar

70

trabalho alheio. Como o trabalho é o único meio de gerar, originalmente, legítima

propriedade, a compra do trabalho alheio representa a aquisição da legítima propriedade por

ele produzida. A partir daí, as transferências do bem se legitimam apenas pelo contrato de

compra e venda de mercadoria.

Quer dizer, Locke inicia sua reflexão afirmando que a única propriedade legítima é a

produzida pelo trabalho e somente pode se acumular até a quantidade corruptível. Se

o bem não é corruptível, é infinitamente acumulável, mas como se junta tantos bens?

Com a possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, já que o trabalho produz

propriedade. Esta elaboração teórica e moral se encaixava como uma luva para o

pensamento burguês e suas necessidades de acumulação de capital. Daí a

importância para o capitalismo do contato livre entre partes formalmente iguais.

Toda a teoria jurídica posterior vai passar a sustentar a legitimidade da propriedade

de bens na transferência contratual e na legitimidade originária da aquisição,

normalmente um contrato de trabalho (MARÉS, 2003, p. 25-26).

A visão de Locke, “o direito de propriedade é um direito natural” porque “surge de

uma atividade pessoal do indivíduo, e esta atividade pessoal do indivíduo é o trabalho”

(BOBBIO, 1997, p. 38).

Seguindo uma linha de pensamento distinta da de Locke, mas que, ao final, também

serviu para justificar a propriedade privada, Jean Jacques Rousseau (2005) assevera que a

propriedade privada está na origem das desigualdades sociais. Para ele, que foi um dos mais

influentes filósofos do século das luzes, os homens eram bons e capazes de viver em

harmonia quando se encontravam no estado de natureza, mas o surgimento da propriedade

privada e a fundação da sociedade civil modificaram completamente esse estado. Afirma:

O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “Isto é meu” e encontrou

pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade

civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido poupados ao gênero humano àquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso,

tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem esse impostor! Vocês estarão

perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!

(ROUSSEAU, apud MARÉS, 2003, p. 27).

Marés (20030) assinala que a criação da propriedade privada ocasionou a necessidade

de defendê-la Por isso, o pensamento de Rousseau remete à conclusão de que a fundação das

sociedades políticas foi do interesse dos proprietários, que eram os que tinham com o que se

preocupar. Daí porque, pela necessidade de segurança e paz, surgiu o contrato social, através

do qual os homens concordaram, livremente, em viver sobre uma autoridade comum à qual

ficam submetidos. Essa autoridade é o Estado, cujas atribuições essenciais são garantir a

liberdade e a propriedade.

71

Para esse autor, Rousseau tinha uma visão de que o Estado expressava a vontade geral

e estava acima dos interesses particulares e das classes. Em outras palavras, o Estado era o

depositório da vontade geral, o gerenciador da sociedade em seu conjunto.

Rousseau de forma contraditória, no seu discurso sobre economia política

considerou certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos

dos cidadãos e mais importante, de certa forma, que a própria liberdade. É preciso

relembrar aqui, insistiu, que o fundamento do pacto social é a propriedade, e sua

primeira condição que cada qual se mantenha no gozo tranqüilo do que lhe pertence.

Em outro escrito, incluído entre os seus Fragmentos Políticos, chegou mesmo a

afirmar que, fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim que

este último é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a autoridade pública de possuir um fundamento

legítimo, ninguém seria obrigado a reconhecê-la, a não ser constrangido pela força

(MARES, 2003, p. 43).

Portanto, ainda que exista diferença entre propriedade privada dos meios de vida e a

apropriação privada dos meios de trabalho ou de produção, as teorias filosóficas que

justificam o capitalismo defendem que toda e qualquer propriedade privada constitui direito e

garantia individual, tal como o direito à vida, à liberdade e à segurança (SOUZA, 2007).

Para Marés (2003), a compreensão de que a propriedade é um direito natural foi

compartilhada por Locke, Rousseau e vários pensadores iluministas que, com distintos

argumentos, produziram a legitimação filosófica da propriedade privada, no que atenderam

plenamente aos interesses da nascente classe burguesa.

Com relação ao caráter inviolável e sagrado dado à propriedade privada no Artigo 17

da Declaração Francesa/1789,

é um evidente anacronismo, especialmente porque as revoluções burguesas

desencadearam o mais rápido movimento de transformação social de todos os

tempos. A sacralidade da propriedade, em sintonia com as modificações promovidas

pelo capitalismo, assumiu nos tempos modernos a abstração simbólica de um mito

(SOUZA, 2007, p. 68).

A civilização burguesa conferiu então à propriedade privada ”o status de direito

absoluto, intangível, exclusivo, indeterminado” (SOUZA, p. 69), contando com grande leque

de prerrogativas. Essas características eram condizentes com a segurança reivindicada pela

burguesia nascente para a expansão das forças produtivas liberadas pela revolução industrial.

Além disso, o capitalismo promoveu profundo estreitamento conceitual da

propriedade. Souza (2007) afirma que até o século XVII, era comum os autores referirem-se à

propriedade num sentido bem mais amplo que o atual. Locke, por exemplo, afirmava que a

vida, a liberdade e os bens do indivíduo eram sua propriedade. A pessoa, as faculdades e os

72

direitos de cada um eram considerados mais propriedade que a renda ou as coisas materiais.

Aos poucos, a propriedade perdeu esse sentido amplo e o termo adquiriu o estreito sentido de

propriedade de rendas e coisas materiais.

Desde a antigüidade clássica à revolução industrial, a concepção de propriedade

abrangia o direito individual de excluir outrem do uso ou gozo de alguma coisa e o

direito individual de não ser excluído do uso e gozo daquilo que era considerado

público – praças, estradas, etc. Com o capitalismo, a noção de propriedade passou a

referir-se tão somente ao direito de excluir outrem (SOUZA, p.69).

Marés (2003) analisa que embora preserve semelhanças pontuais com a propriedade

romana, a propriedade capitalista possui características próprias. A principal delas diz respeito

ao fato da sociedade de mercado ter restringido-a a um direito individual, exclusivo e absoluto

de usar e dispor de coisas materiais. O autor acrescenta:

A ordem jurídica do capitalismo reserva especial atenção à propriedade privada, sobretudo a da terra. Não seria diferente, já que a terra foi tornada mercadoria, e a

mercadoria é a razão de ser do próprio sistema [...]. Na concepção prevalecente em

todo o século XIX, a propriedade figurou como o instituto central do Direito

privado, em torno do qual gravitariam todos os bens, em contraposição às pessoas

(MARÉS, 2003, p.41).

Para esse autor, também que a propriedade capitalista se legitima pelo contrato, que

representa o modo ou procedimento de sua aquisição e prova. Segundo o entendimento desse

autor, o proprietário pode tudo “em relação ao bem que possui e, bastando a presunção da

liberdade contratual, os acordos valem mesmo que sejam destrutivo dos bens” (MARÉS,

2003, p. 39).

Além da terra, outro bem valiosíssimo entra no rol das propriedades, o trabalho,

desde a concepção de Locke. Portanto, o contrato que compra a terra ou o trabalho é

válido a partir da mesma presunção, não importa que seja para deixar a terra inerte

ou destruí-la, nem importa que a remuneração do trabalhador seja suficiente sequer

para mantê-lo vivo (MARÉS, 2003, p. 39-40).

Prossegue o agrarista:

O elogio do trabalhador livre se transforma na presunção jurídica da liberdade

contratual, vista sempre desde uma perspectiva individual. O contratante tem

liberdade para fazer e desfazer, contratar e distratar. Os homens livres sem

propriedade vendem sua força de trabalho, por valor evidentemente menor do que o

dos bens produzidos, de tal forma que o resultado da produção pertence ao

contratante, legitimado pelo contrato. Esta nova propriedade, legítima para o

sistema, é fruto, portanto, do contrato. Quer dizer, a legitimidade da propriedade

moderna está assente no contrato: se for legítimo, legítima será a propriedade

(MARÉS, 2003a, p. 39-40).

73

Se a propriedade capitalista é fruto do contrato, a legitimidade contratual reside “na

livre manifestação de vontade, que por sua vez se assenta na idéia do homem, quer dizer,

indivíduo, livre de todas as amarras coletivas”. Ao discorrer sobre a propriedade da terra, o

autor acima afirma que Locke acreditava haver terra abundante e que a propriedade estava

diretamente vinculada à produção, de tal modo que o proprietário seria quem a usasse.

Portanto, para Locke, a terra tinha “valor de uso” (MARÉS, 2003, p. 40).

Apesar disso, o capitalismo transformou a terra “em bem jurídico sujeito a uma

propriedade privada, a ela estabelecendo valor de troca”, transformando-a em

reprodutora de capital. Essa transformação foi potencializada pelo desenvolvimento

do capitalismo na Inglaterra, que reduziu as propriedades comuns de campos e

pastagens a proprietários únicos e individuais pelo processo de cercamentos (MARÉS, 2003, p. 26).

Na civilização burguesa, não é a natureza, a razão ou Deus, o grande guardião da

propriedade privada é o Estado, detentor legítimo do monopólio da violência é ele que

assegura a liberdade de contratar, assim como é ele que reconhece e garante o direito de

propriedade.

O Estado de Direito, instituído pela burguesia sob inspiração do pensamento liberal,

estabeleceu uma nítida separação entre o público e o privado, o indivíduo e o

cidadão, o Estado e a sociedade civil. Nessa dicotomia, a propriedade e a liberdade

de contratar foram colocadas inteiramente no campo do direito privado, encartados entre os direitos e garantias individuais do cidadão (SOUZA, 2003, p, 72).

Para o liberalismo, a vida econômica guia-se por leis naturais cujo princípio regulador

se encontra na livre concorrência. Como decorrência, a intervenção do Estado na atividade

econômica deve ser restringida, deixando livre o jogo das forças econômicas. Daí porque

Estado e economia são tidos como realidades distintas.

A dicotomia entre Estado e sociedade foi criticada por Karl Marx e Friedrich Engels

(1984), uma vez que consideravam essa separação mero discurso ideológico, pois o Estado

acabava sendo apropriado pela classe proprietária. Esses teóricos analisam que as condições

materiais de uma sociedade constituem a base da estrutura social e da consciência humana,

sendo que a forma de Estado emerge das relações de produção e não do desenvolvimento

geral da mente humana ou do conjunto das vontades humanas.

As relações jurídicas, assim como as formas do Estado, não podem ser tomadas por

si mesmas nem do chamado desenvolvimento geral da mente humana, mas têm suas

raízes nas condições materiais de vida, em sua totalidade, relações estas que Hegel

[...] combinava sob o nome de sociedade civil. Cheguei também à conclusão de que

a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política [...]. Na

produção social da vida, os homens entram em relações determinadas, necessárias e

independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau

determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A soma total

74

dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual

correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida

real condiciona, de forma geral, o processo de vida social, político e intelectual. Não

é a consciência dos homens que determina sua forma de ser, mas, ao contrário, é sua

forma de ser social que determina sua consciência (ENGELS e MARX, 1984, p.

326).

Divergindo do idealismo hegeliano, Marx (1984) acreditava que o Estado, emergindo

das relações de produção, não representa o interesse comum, mas é expressão da estrutura de

classe inerente à produção. Não comungava com a tese do Estado como o curador da

sociedade, típica dos contratualistas. Para Marx, como a sociedade capitalista é dividida em

classes e dominada pela burguesia, o Estado é a expressão política dessa dominação.

Dito de outra forma:

O Estado é o instrumento essencial de dominação de classes na sociedade

capitalista. Ele não está acima dos conflitos de classes, mas profundamente

envolvido neles (CARNOY, 1994, p. 66).

Segundo Marx e Engels (1984), o Estado surge da contradição entre o interesse de um

indivíduo (ou família) e o interesse comum de todos os indivíduos. A defesa da propriedade é

o grande objeto dessa contradição. A comunidade se transforma em Estado, aparentemente

divorciado do indivíduo e da comunidade, quando, na realidade, está baseado na relação de

grupos particulares. Eles acreditam que o moderno Estado capitalista, dominado pela

burguesia, tem como missão fundamental garantir a propriedade:

Através da emancipação da propriedade privada diante da comunidade, o Estado se

torna uma entidade separada, ao lado e fora da sociedade civil, mas não é nada mais

do que a forma de organização que a burguesia necessariamente adota para fins

internos e externos, para garantia mútua de sua propriedade e interesses (MARX;

ENGELS, 1984, p. 37-38).

Corroborando com a tese marxista, Souza (2007) assegura que o sistema de

propriedade é, então, a expressão legal da estrutura básica do capitalismo, isto é “a divisão da

sociedade em duas classes fundamentais: a de empregadores e a de assalariados” (p.74). Em

síntese, a civilização burguesa reduziu o conceito de propriedade à apropriação de coisas com

valor de troca, a mercadoria, e transformou-a em direito individual, absoluto e excludente,

inscrito nas constituições e códigos. Essa propriedade é adquirida e transferida por meio do

contrato, que lhe confere legitimidade. O Estado de Direito deve se limitar a assegurar a

liberdade contratual e proteger o direito de propriedade.

75

Para Souza (2007) a concepção do direito de propriedade vem sofrendo significativas

transformações desde a segunda metade do Século XIX. O caráter absoluto, perpétuo e

exclusivo da propriedade, assim como o confinamento da terra à condição de mercadoria

foram combatidos pela crítica marxista, socialista e pela doutrina social da Igreja Católica.

As críticas ao sistema capitalista tinham como foco a propriedade privada. Segundo

Souza (2007) a forma como estava distribuída e disciplinada em lei explicava o agravamento

das desigualdades sociais e tornava impossível a concretização de uma sociedade livre, nos

moldes propagados pelos teóricos do liberalismo.

Mas, enquanto socialistas e comunistas sustentavam que a dignidade somente seria

possível com a extinção da propriedade, Leão XIII reclamava por uma propriedade

com dignidade humana, propunha que governos fortes tomassem por missão

proteger o seu povo da exploração e pedia aos católicos para aplicarem princípios da

justiça social às suas próprias vidas. O documento defende a solidariedade social

entre ricos e pobres, em substituição à tese da luta de classes, e exorta os fiéis a

buscar uma solução pacífica para os conflitos sociais e trabalhistas do final do

Século XIX (SOUZA, 2007, P. 89).

Esse mesmo autor assegura que a crítica socializante engendrada pelos marxistas e

pela doutrina social da Igreja foi responsável por um “abrandamento” do conceito de

propriedade, fazendo com que o direito a essa instituição assumisse uma dimensão ética.

No decurso do Século XX e início do Século XXI, principalmente sob a égide do

Estado de Bem-estar Social, os fundamentos apresentados pelos marxistas e católicos

firmaram-se como a base da teoria da função social da propriedade, hoje admitida pela

maioria das cartas constitucionais. “O entendimento de que a propriedade absoluta impedia a

concretização dos direitos sociais representou o elemento justificador da defesa da função

social da propriedade promovida pelos juristas humanistas e outros” (MARÉS, 2003, p. 91).

Isso contribuiu com que a teoria da função social da propriedade ganhasse cada vez

mais adeptos no universo jurídico, e, ao lado das ponderações filosóficas e econômicas, levou

a uma completa reconceituação do direito de propriedade. A função social que a propriedade

contemporânea deve atender não pode ser confundida “com as limitações de polícia ou

mesmo as decorrentes da tributação impostas pelo Estado, mas como elemento essencial do

próprio conceito de propriedade” (MARÉS, 2003, P. 91).

Para esse agrarista, as transformações ocorridas no direito de propriedade não se

deram de forma isolada, mas em decorrências das grandes modificações pelas quais passou a

sociedade capitalista. A concentração do poder econômico, o agravamento da questão social,

o surgimento do movimento sindical, o triunfo da Revolução Russa, entre outros fatores,

76

colocaram na ordem do dia a reformulação do Estado de Direito e a necessidade de se alterar

a disciplina jurídica da propriedade.

A grande depressão que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, a crise da

Bolsa de Valores de Nova Iorque, em outubro de 1929, fizeram com que a economia

capitalista reclamasse um novo papel para o Estado.

Foi nesse contexto que John Maynard Keynes publicou sua principal obra, “Teoria

Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, em 1936, defendendo uma maior

intervenção do Estado no domínio econômico. Hostil às revoluções socialistas,

Keynes considera que o liberalismo econômico não atendia mais às necessidades da

sociedade capitalista das décadas 1920 e 1930. Sua teoria econômica, centrada na

moeda e no emprego, sustenta que a intervenção do Estado na economia é

fundamental para impedir o esfacelamento do sistema capitalista e para garantir o

aumento do emprego e da rentabilidade do capital ( MARÉS, 2003, p. 94).

Os postulados keynesianos serviram para promover uma nova concepção de Estado,

conhecida como Estado de Bem-Estar-Social:

No desempenho de seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de

implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração, de

modernização e de legitimação capitalista. Essa atuação, contudo, não conduz à

substituição do sistema capitalista. Pois é justamente a fim de impedir tal

substituição - seja pela transição para o socialismo, seja mediante a superação do

capitalismo e do socialismo - que o Estado é chamado a atuar sobre o domínio

econômico (SOUZA, 2007, p. 78).

Por essa razão, é comum afirmar-se que a intervenção do Estado no domínio

econômico e no regime da propriedade foi uma estratégia adotada para salvar o sistema

capitalista. A exploração das classes oprimidas continuou. Seus efeitos, porém, foram

mitigados pelas políticas públicas promovidas pelo Estado.

Para Marés (2003) o Estado de Bem-Estar-Social se caracterizou pela intervenção

direta na economia e no regime da propriedade, pela criação de sistemas previdenciários e

pela interferência direta nos contratos, especialmente de trabalho e agrários. Por meio das

empresas estatais, o Poder Público assumiu a vanguarda do desenvolvimento. Por meio de

subsídios diretos e indiretos, de empréstimos estrangeiros garantidos pelos governos, do

investimento em pesquisas, entre outros, o Estado alavancou a atividade de inúmeras

empresas privadas. Outra marca desse modelo de Estado foi a promoção de políticas públicas

nas áreas de saúde, moradia, educação, nutrição, segurança e renda, capazes de garantir

proteção mínima aos mais pobres.

O constitucionalismo do Século XX consagrou a idéia de que a propriedade gera

obrigações. Na maioria das cartas a função social passou a constar do texto das

77

constituições. Como exemplo, pode-se citar as Constituições espanhola (1931), italiana (1947), alemã (1949) e a brasileira (1934), dentre outras (MARÉS, 2003,

p.87).

No entanto, esse autor assinala que a dependência era a marca do Estado de Bem-

Estar-Social latino-americano:

Na América Latina foi se organizando um Estado do Bem-Estar dependente, que

obteve pequenas conquistas sociais e, ainda assim, associado a ditaduras e caudilhos nacionalistas, como Perón e Vargas. Mesmo depois de escrito nas leis, o bem estar

não chegou senão a pouco [...]. No Brasil, especificamente não tivemos um Estado

do Bem-Estar Social (MARÉS, 2003, p. 87).

O modelo estatal pressupunha uma ordem fundiária mais justa e fundada no uso da

terra. Por essa razão, praticamente todos os países latino-americanos editaram leis de reforma

agrária, muitas vezes, impulsionadas por incentivos externos, outras pelas lutas camponesas.

Apesar das leis, pouco se avançou, salvo raras exceções, porque permaneceu como paradigma

o poder absoluto do proprietário de dispor do bem, tendo como única exceção a

desapropriação. “As exceções foram: México, Bolívia e Cuba” (MARÉS, 2003, p 87).

A Revolução Mexicana de 1917 promoveu uma ampla e massiva reforma agrária.

[...]. A Constituição da República, de 31 de janeiro de 1917, estabelecia que a

propriedade privada das terras e das águas pertencia originalmente à Nação que

podia transmitir o domínio aos particulares. Além disso, determinava que cada

Estado deveria fixar a extensão máxima de propriedade rural admitida. A

Constituição mexicana é considerada uma das mais avançadas porque suavizou o

conceito de propriedade individual da terra [...]. Na Bolívia, a reforma agrária foi

fruto da revolução de 1952, comandada pelo Movimento Nacionalista

Revolucionário (MNR). O solo, o subsolo e as águas pertenciam por direito

originário à Nação Boliviana. Assim, implantou no país a reforma agrária,

reconhecendo a propriedade privada desde que cumprisse uma função útil para a coletividade. [...]. A lei boliviana deu um passo à frente em relação à Constituição

mexicana, pois além de reconceituar o exercício do direito de propriedade,

estabeleceu uma nova legitimidade para ser proprietário. A Revolução Cubana,

liderada por Fidel Castro em 1959, expropriou a propriedade privada dos meios de

produção e editou a Lei de Reforma Agrária determinando a distribuição das terras

dos estados, províncias e municípios aos camponeses e trabalhadores rurais. As

exceções previstas na lei foram as áreas de cooperativas de produção, as de

estabelecimentos públicos, as reservas florestais e áreas destinadas à educação ou

similares [...] (MARÉS, 2003, p. 89).

O estabelecimento da função social foi a principal transformação ocorrida no direito

de propriedade. A maioria das constituições do mundo contemporâneo assegura a propriedade

desde que ela cumpra sua função social. No Brasil, o direito de propriedade é protegido desde

a Carta de 1824, mas somente em 1988 a função social, já com status constitucional, passou a

integrar o conteúdo do direito de propriedade (SOUZA, 2007, p. 81).

78

Esse autor defende que a propriedade privada sempre ocupou um espaço de grande

importância nas constituições, códigos e leis brasileiras. Na Constituição Política do Império

do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824, a propriedade era garantida em toda sua

amplitude. Por isso, albergava contradições extremas, pois, apesar de afirmar que “a lei será

igual para todos e de celebrar a livre iniciativa e a liberdade de contratar” (p. 31), manteve o

regime de escravidão até 1888, assegurando aos senhores de terra a propriedade sobre os

escravos.

A leitura do artigo 179, XXII, dessa Constituição, chama a atenção por dois fatos:

Primeiro o reconhecimento do direito em toda a sua plenitude, e em segundo, pela

única exceção existente, a desapropriação. „Em toda sua plenitude‟ quer dizer

exatamente que a propriedade garantida tem caráter absoluto, oponível e excludente

de todos os interesses e direitos individuais alheios. A afirmação é quase tão

eloqüente quanto a da portuguesa, que a considerava um direito sagrado e inviolável.

A plenitude de um direito é, na verdade, a plenitude de seu exercício, quer dizer que

nenhum limite haverá de se impor a ele (MARÉS, 2003, p. 31).

A propriedade descrita na Constituição Imperial é privada e individual. A pública é

exceção. Tanto é assim que sua regulamentação, disciplinada pela Lei nº. 601, de 18 de

setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras (analisada anteriormente), põe termo à

concessão das sesmarias, na qual o domínio permanecia público, e inaugura um novo sistema,

fundado na propriedade privada. Lei que previa o contrato de compra e venda como o único

mecanismo legítimo de aquisição da propriedade agrária no Brasil.

A Lei nº. 1.237, de 24 de setembro de 1864, e seu regulamento, o Decreto nº. 3.453, de

26 de abril de 1865, redefiniu a hipoteca, eliminando os obstáculos jurídicos então existentes

à mercantilização da propriedade fundiária. Nas avaliações desse autor, a Lei de Terras e a

legislação que instituiu a hipoteca e o registro “dariam as condições jurídicas para que a terra

viesse a se tornar uma mercadoria aceitável nas transações entre credores e fazendeiros”

(MARÉS, 2003. p. 32).

Posteriormente, a Lei nº. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que instituiu o Código Civil,

reforçou o caráter absoluto do direito de propriedade desenhada pela Lei de Terras e

referendada pela legislação hipotecária.

Não se pode olvidar que, entre a edição da Lei de Terras e a entrada em vigor do

Código Civil, ocorreu a proclamação da República, quando “a Constituição de 1891

o Estado passa a representar o papel que as forças políticas lhe atribuíram segundo a

orientação do pensamento liberal-econômico”. Ainda que proclamasse que “todos são iguais perante a lei”, a Constituição de 1891 manteve inalterada a concentração

do poder econômico privado nas mãos dos grandes proprietários rurais. O direito de

79

propriedade restou protegido em toda sua totalidade. Até o subsolo era considerado propriedade privada (MARÉS, 2003, p. 65).

O Código Civil brasileiro era impregnado de princípios privatísticos e liberais, que se

harmonizavam com os fins e objetivos da classe latifundiária monopolista da época. A

propriedade é tratada como “um dos direitos de mais pronunciado cunho individualista. O

Código representa o cume de um amplo processo de organização da propriedade privada”

(MARÉS, 2003, p. 32).

A Constituição Imperial de 1824, assim como a Constituição Republicana de 1891

foram fiéis à proteção do direito de propriedade em sua plenitude, nos termos exigidos pelo

sistema capitalista. Em ambas, nem o Estado nem a sociedade podem desconstituir a

propriedade de alguém sem lhe dar outra, em substituição.

2.2 Propriedade privada da terra e função social da terra

Foi a Constituição Federal de 1934 que, pela primeira vez, fez explícita referência às

relações de propriedade e interesse social (MARÉS, 2003), legado da Revolução de 1930 que

trouxe em seu bojo o anseio por mudanças estruturais na sociedade brasileira.

O sopro de socialização a que aludira Rui Barbosa insistia em penetrar no edifício

constitucional do país. Enriquecido com as inspirações dos direitos sociais e econômicos emergentes da Primeira Grande Guerra, o debate em torno da nova

Constituição procurava responder às expectativas criadas pela Revolução. No dia 16

de julho de 1934, foi promulgada a segunda Constituição Republicana (SOUZA,

2007, p. 94).

No dia 16 de julho de 1934, foi promulgada a segunda Constituição Republicana.

Ainda que não desprezasse a essência do regime liberal individualista, a nova Constituição

rompeu com os radicalismos presentes nas anteriores. Apesar de encartar a propriedade entre

os direitos e garantias individuais, inovou em relação aos textos anteriores ao estipular que “É

garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou

coletivo” (SOUZA, 2007, p.88).

Dentro desse novo contexto ideológico, o direito de propriedade continua garantido

[...]. Mas os novos ventos imprimem a esse direito uma configuração diferente. A

ideologia implantada após os movimentos inovadores da revolução social coloca

perante o interesse individual o interesse social ou coletivo, como limitador do

80

direito que até então fora subtraído pelo indivíduo em toda plenitude (SOUZA, 2007, p. 89).

Ainda que não utilizasse a expressão função social, é inegável que a Constituição de

1934 representou um grande avanço em relação às cartas anteriores. Entretanto, esse avanço

limitou-se ao plano jurídico, já que a realidade pouco foi alterada.

Primeiro, porque o Código Civil de 1916 foi integralmente recepcionado pelo novo

texto constitucional, de sorte que o regime jurídico da propriedade nele instituído

permaneceu intacto. Segundo, porque o golpe de estado promovido por Getúlio

Vargas, em 10 de novembro de 1937, produziu uma nova Constituição, que nada

estatui quanto à função social da propriedade. Garantiu-se apenas o direito à propriedade. A Constituição de 1946 recolocou o direito de propriedade numa

perspectiva bem mais progressista. Encartada entre os direitos e garantias

individuais, a propriedade privada foi assegurada, porém condicionada ao

atendimento do bem estar social (SOUZA, 2003, p. 90).

Foi com fundamento na Constituição de 1946 que João Goulart apresentou seu plano

de reforma de bases, entre os quais a reforma agrária, conforme analisamos anteriormente. Os

militares, ao assumirem o poder após o golpe, “garantiram a aprovação da Emenda

Constitucional nº. 10, de 9 de novembro de 1964” (SOUZA, 2007, p. 92), que possibilitou a

desapropriação de imóveis rurais, com o pagamento de indenização por meio de títulos

especiais da dívida pública. Logo após foi promulgada a Lei nº. 4.504, de 30 de novembro de

1964, que dispôs sobre o Estatuto da Terra, sendo o primeiro diploma legislativo brasileiro a

utilizar a expressão função social para se referir à propriedade rural.

A Constituição de 1967, integralmente reformada pela Emenda Constitucional nº. 1,

de 20 de outubro de 19699, também garantiu a propriedade no capítulo destinado

aos direitos e garantias individuais. Entretanto, diferente das anteriores, a Carta de

1967 guindou a função social da propriedade ao patamar dos princípios da ordem

econômica e social. No art. 161, a Carta de 1967 reiterou ainda a possibilidade de desapropriação do imóvel rural por interesse social e regulou o processo de

execução da reforma agrária (SOUZA, 2007, p. 92).

A Constituição de 1967 foi a primeira a reconhecer a função social da propriedade

como um princípio constitucional. Apesar de mais esse impulso de atualização do conceito de

propriedade, o dispositivo constitucional não teve senão eficácia formal, pois pouco se fez

para atacar a concentração da propriedade privada e oferecer melhores condições de vida à

população expropriada (MARÉS, 2003). A conjuntura política não favorecia as investidas

socializantes sobre o direito de propriedade. O Brasil, sob o regime de ditadura militar, foi

sustentado pela classe dominante agrária. O próprio Estatuto da Terra foi completamente

esvaziado.

81

A Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, introduziu

profundas transformações no regime da propriedade. Chamada de Constituição cidadã pela

ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente

para a plena realização da cidadania. Expressão maior do movimento pela redemocratização

do Brasil, a Carta Maior de 1988, no plano formal, é mais incisiva que as constituições

anteriores “no conceber a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social para o fim de

assegurar a todos uma existência digna” (SILVA, 2005, p. 764). Por outro lado, agasalha uma

nítida opção capitalista, na medida em que assenta a ordem econômica na livre iniciativa e

nos princípios da propriedade privada e da livre concorrência.

Entretanto, o regime jurídico da propriedade foi completamente modificado pela

Constituição de 1988. Segundo Marés (2003) a função social passou a integrar o conteúdo do

direito de propriedade. Tal alteração tem relação com o novo regime jurídico da propriedade,

considerando que a função social integra o próprio conteúdo do direito de propriedade.

Agora, propriedade e função social são duas faces do mesmo direito. Sem embargo,

a nova ordem constitucional consagrou a garantia do direito de propriedade desde

que essa propriedade cumpra a função social. Vale dizer que a função social não é

uma mera limitação do uso da propriedade, mas um elemento essencial, interno, que

compõe a definição da propriedade. Em outras palavras, a função social não se

localiza na parte exterior do domínio, mas penetra seu interior, definindo o conteúdo

do direito de propriedade. Daí porque só é legítima a propriedade que cumpre a

função social; do contrário, não merece proteção jurídica. Os deveres fundamentais, em matéria de propriedade, alcançam, além do Poder Público, os demais sujeitos

privados (MARÉS, 2003, p. 49).

Para ele, o descumprimento da função social pelo proprietário significa:

Uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade, reconhecido doravante

pelo sistema. [...]. Quando a Constituição declara como objetivos fundamentais do

Estado Brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,

e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais

(art. 3º), é óbvio que ela está determinando, implicitamente, a realização pelo

Estado, em todos os níveis – federal, estadual e municipal –, de uma política de

distribuição eqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à

exploração agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradias. A

não realização dessa política pública representa, indubitavelmente, uma

inconstitucionalidade por omissão. Instrumento clássico para a realização da política

de redistribuição de propriedades é a desapropriação por interesse social (MARÉS,

p. 50).

. Em outras palavras, o novo código atualizou-se à luz da Lei Maior, passando a exigir a

consonância entre a propriedade e sua finalidade social. Propriedade legítima agora é aquela

82

que cumpre sua função social. Em síntese, a Constituição Federal (CF) de 1988 alterou

significativamente o regime jurídico da propriedade.

Marés (2003) assegura que a função social passou a integrar o próprio conteúdo do

direito de propriedade. A propriedade que não cumpre a função social não é protegida pela

CF, pelo Código Civil e pelas demais legislações infraconstitucionais. Por isso, esse mesmo

autor sentencia que o princípio da função social, com tamanha dimensão constitucional e com

o prestígio com que ingressou na CF/88, mostra-se inquestionável.

Assim, o acesso ao imóvel rural é condicionado ao atendimento da função social. E

mais, a legitimidade do direito de propriedade advirá da observância, simultânea, de quatro

requisitos, os mesmos estipulados no Estatuto, mas em outra ordem: a) aproveitamento

racional e adequado (conforme graus de utilização da terra e de eficiência na exploração); b)

utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente; c) observação das

disposições que regulam as relações de trabalho; d) uma exploração que favoreça o bem estar

dos proprietários e dos trabalhadores. A regulamentação deste artigo e a definição de cada um

dos quatro requisitos foi dada pela Lei n.º 8629/93.

A função social do imóvel rural consiste, pois, no uso econômico correto da terra e na

sua justa distribuição de maneira a atender o bem estar da coletividade por meio do aumento

da produtividade e da promoção da justiça social. O não cumprimento dos requisitos da

função social autoriza o Estado a retirar compulsoriamente o imóvel rural das mãos do

cidadão, por meio da desapropriação, e destiná-lo à reforma agrária (SOUZA, 2007).

O artigo 185 - inserido pelo “Centrão” e forças conservadoras, UDR à frente – numa

visão totalmente economicista - declarou a impossibilidade de a propriedade produtiva vir a

ser desapropriada, separando produtividade de função social. Segundo Marés (2003) no

contexto de 1988, representou uma vitória das forças conservadoras. De fato, numa

interpretação literal, restrita e que só considere o aspecto econômico (produtividade), restaria

inviável qualquer medida tendente à realização de uma reforma agrária, já que não se poderia

tocar no latifúndio.

Contudo, a Constituição não pode ser interpretada em pedaços, já que carrega um

sentido social – até mesmo socializante – e o princípio da unidade interpretativa que referenda

a função social para todo tipo de propriedade, cujo conceito de produtividade está impingido

o conceito de função social. Desta feita, não há contradição entre os artigos 185 e 186, vez

que a propriedade só é produtiva se respeitar todos os requisitos da função social.

83

Todavia, a realidade não é bem desse jeito, pois a função social é gritantemente

desrespeitada. Os juristas ainda não a assimilaram, havendo muita resistência, quanto à

observância dos requisitos ambiental e trabalhista e uma tendência de se considerar apenas o

elemento produtividade, sem muitos critérios, o que é sentido na rapidez com que são

concedidas as ações de manutenção ou reintegração de posse, muitas vezes em benefício

daqueles que não dão à terra uma destinação condizente com os ditames constitucionais.

Historicamente, o próprio INCRA optou “por interpretar o texto constitucional da

forma mais restrita possível”, deixando de fiscalizar o cumprimento das outras condicionantes

da função social (MARÉS, 2003, p. 43). Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal (STF),

guardião da Constituição, ainda não enfrentou diretamente o tema da relação existente entre

propriedade produtiva e função social.

E é neste ponto que as ocupações de terras adquirem destaque, sendo empreendidas

para denunciar as propriedades que não estão cumprindo a função social – improdutividade,

latifúndio inexplorado, presenças do trabalho escravo, desrespeito ao meio ambiente – ou que

foram griladas. O intuito é protestar contra a omissão ou lentidão governamental em dar início

ou seguimento às políticas que destravem a reforma agrária – assentamentos, infra-estrutura,

direitos humanos (OLIVEIRA, 2009).

Entretanto, merece destaque a matéria publicada no site do INCRA, de autoria da

procuradora geral dessa Autarquia, Drª Gilda Diniz (INCRA, 2010), que após promover,

recentemente, três cursos para os procuradores federais junto ao INCRA e engenheiros

agrônomos sobre a Legislação Agrária (Lei Agrária 8.629/93), tendo como objetivo reforçar a

afirmativa de que o acesso ao imóvel rural é condicionado ao atendimento da função social,

divulga o lançamento da Legislação Agrária numa versão comentada por especialista. Assim

diz:

A Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra (PFE/Incra) publicará uma

edição da Lei 8.629/93 comentada pelos procuradores federais lotados na autarquia.

Esta Lei promulgada pelo Congresso Nacional em 1993 regulamentou as

disposições relativas à reforma agrária, previstas na Constituição Federal de 1988

(arts. 184 a 191). Entre as regras estabelecidas na Lei, estão os critérios para seleção

de famílias a serem assentadas e os que medem a produtividade dos imóveis rurais.

A publicação também apresentará pareceres firmados pela PFE, em processos

administrativos ou defesas em processos judiciais relacionados à reforma agrária,

bem como um apêndice contendo as notas técnicas produzidas pela Procuradoria. [...]. (DINIZ, 2010, p.2)

84

O objetivo do projeto é uniformizar as teses jurídicas referentes à defesa do Incra em

processos judiciais relacionados à reforma agrária, bem como o desenvolvimento de produção

teórica relativa ao caráter preferencial e prejudicial da ação de desapropriação frente às ações

anulatórias conexas. Explicita Diniz (2010):

À medida que a produção doutrinária é fomentada, vão surgindo mais elementos de

defesa. Até um tempo atrás, nós discutíamos a Reforma Agrário sob um ponto de

vista econômico, agora defendemos também como uma forma de garantia de direitos

fundamentais, ou seja, acesso a moradia, educação, entre outros. Então, esse novo

entendimento surgiu a partir do aprofundamento da discussão doutrinária (p. 2).

Para Gilda Diniz (2010), além da edição comentada da Lei 8.629/93 se mostrar

oportuna no contexto do processo de reestruturação da Procuradoria Geral Federal (PGF),

uma vez que poderá facilitar o acesso ao conhecimento da legislação às novas unidades de

representação judicial do INCRA, esse subsídio doutrinário é muito importante, considerando

que a visão civilista da propriedade privada como direito absoluto é um dos principais

gargalos que enfrenta a PFE/INCRA.

Há uma carência teórica muito grande dos operadores jurídicos envolvidos na

Reforma Agrária, principalmente devido ao distanciamento do Direito Agrário. Isso

faz com que o Direito Civil venha pautando algumas discussões, o que é

extremamente danoso (DINIZ, 2010, p. 2)

A Constituição Federal de 1988 admite duas modalidades principais de

desapropriação: por necessidade ou utilidade pública ou interesse social.

Em uma delas, a indenização é prévia, justa e em dinheiro. Está prevista no art. 5º,

XXIV, da Constituição como sendo o regime indenizatório corrente, normal. A outra

é a que se efetua mediante pagamento de títulos especiais da dívida pública,

resgatáveis, durante vinte anos, em parcelas anuais e sucessivas. A indenização

também deve ser justa, mas não é prévia, ainda que o texto constitucional assim o

qualifique (Souza, 2007, p. 92).

Marés (2003) identifica dois pressupostos fundamentais da desapropriação:

a) a necessidade ou utilidade pública ou, ainda, o interesse social; b) justa

indenização ao expropriado que, em regra, é prévia e em dinheiro, podendo,

entretanto, nos casos previstos no art. 182, § 4º, III, e no art. 184, caput, ocorrer

mediante pagamento de títulos da dívida pública ou da dívida Agrária, resgatáveis

em até dez ou vinte anos, conforme o caso, assegurada a preservação do seu valor real (MARÉS, 2003, p, 94).

85

A desapropriação tem uma importância singular no contexto da legislação agrária,

porque dela depende, basicamente, a almejada reforma agrária brasileira. Entretanto, Melo

(2000) assim define a desapropriação:

A desapropriação é o procedimento através do qual o Poder Público despoja alguém

de uma propriedade e a adquire, mediante indenização, fundado no interesse

público. À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o

procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública,

utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um certo

bem, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização

prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo nos casos de certos imóveis urbanos ou

rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública,

resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real (p.646).

Negando a tese acima, Marés (2003, p. 85) adverte que “a desapropriação não retira,

despoja ou suprime a propriedade de alguém; tampouco viola o direito de propriedade”. Ao

contrário, é um instituto jurídico tipicamente capitalista, que homenageia a propriedade

absoluta e sagrada. Isso porque, se é certo que a desapropriação representa uma modalidade

de intervenção do Estado no domínio privado, “é igualmente certo que essa intervenção

assume a forma de uma espécie de contrato, em que se troca um tipo de propriedade (bem)

por outro tipo de propriedade (dinheiro, capital)”.

A desapropriação, longe de ser a negação do conceito liberal de propriedade, é sua

reafirmação. A grande novidade no conceito liberal é a livre disposição do bem, mas

o bem é sempre integrante de um patrimônio e o que está garantido com a

desapropriação é exatamente esse patrimônio. A desapropriação é entendida como

uma reparação de um dano patrimonial causado ao cidadão e, portanto, é uma

reafirmação da plenitude do direito de propriedade (MARÉS, 2003, p. 109)

Na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, a terra é trocada

por capital, seja na forma de dinheiro, seja na forma de Títulos da Dívida Agrária (TDA). É

por essa razão que a classe dominante agrária no Brasil, e na maioria dos países da América

Latina, não cogita de outra modalidade de reforma agrária que não seja baseada na

desapropriação, a qual consolida a noção de propriedade privada. (MARÉS, 2003).

Nesse sentido, o autor citado acrescenta que as normas jurídicas do país não admitiram

outra modalidade de reforma agrária que não fosse a baseada na desapropriação. Apesar de

alterar o regime jurídico do imóvel rural, a Constituição de 1988 foi devota da reforma agrária

de tipo capitalista, ao estabelecer que a propriedade que descumpre os requisitos da função

social será submetida à desapropriação agrária. O imóvel rural deve observar o elemento

86

econômico, o elemento ambiental e o elemento social para ser considerado cumpridor da

função social.

Embora uma importante conquista popular, especialmente se levarmos em

consideração que a cultura jurídica brasileira sacralizou o direito de propriedade, isto é, a

“redação do art. 184 alberga distorções e injustiças, porquanto „premia‟ o proprietário que

descumpre os requisitos da função social” (MARÉS, 2003, p. 109), E ainda,

A desapropriação usada nos casos de descumprimento da função social da

propriedade alimenta dois enormes defeitos e injustiças: primeiro, remunera a mal

usada propriedade, isto é, premia o descumprimento da lei, porque considera

causador do dano e obriga a indenizar o violador da norma, mas o Poder Público que

resolve por fim à violação; segundo, deixa a iniciativa de coibir o mau uso ao Poder

Público, garantindo a integridade do direito ao violador da lei (MARÉS, 2003, p.

110).

Nesse aspecto, existe grande diferença entre o Brasil e alguns países latino-

americanos. Enquanto a Constituição Mexicana e a Lei Boliviana afastaram a desapropriação,

por não reconhecer qualquer direito à terra que não estava sendo usada, a legislação brasileira

concede ao Estado apenas o direito de “comprar, pagando o preço a terra, cujo exercício do

direito de propriedade fosse contrário à lei” (MARÉS, 2003, p. 109).

Isso porque a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, no

Brasil, garante a integral recomposição patrimonial do expropriado. Para Marés (2003, p. 110)

o titular do direito perde o domínio, mas recebe outra propriedade, na forma de justa

indenização em títulos da dívida agrária. O papel da indenização expropriatória “é fazer entrar

no patrimônio do expropriado um valor exatamente equivalente ao apresentado pelo bem de

que foi despojado”. Assim, a real natureza da desapropriação por interesse social para fins de

reforma agrária é a “de troca de um bem (terra) por outro (capital, seja na forma de TDA ou

na de dinheiro)”.

Trocando em miúdos, o infrator da norma constitucional que estabelece os requisitos

da função social da propriedade não apenas é premiado com a desapropriação, como é

beneficiado com a incidência de juros compensatórios e moratórios. Para Melo (2000) a terra

que não cumpre a função social não deveria ser indenizada. Uma das maiores contradições da

CF de1988 é impedir que isso aconteça.

Esse fato é mais uma prova do apego dos juristas brasileiros à propriedade

individual, exclusiva e absoluta. Expressa também a força da classe dominante

agrária que, em pleno século XXI, logrou êxito em manter inalterada uma estrutura fundiária com mais de 133 milhões de hectares de latifúndios improdutivos

(SOUZA, 2007, p. 103).

87

Com efeito, embora a função social do imóvel rural seja amplamente reconhecida pela

jurisprudência e o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha consolidado o entendimento

segundo o qual, descumprida a função social - que é inerente ao direito de propriedade - é

legitima a intervenção do Estado no domínio privado, existe um grande desrespeito com

relação à lei de desapropriação. Uma das estratégias mais usadas para impedir a

desapropriação de imóveis que não cumprem sua função social é a judicialização da questão.

Essa tática arrasta por anos a desapropriação de áreas avaliadas e declaradas pela União

(INCRA) como improdutivas. A maioria dos decretos de desapropriação de terras foi barrada

no Supremo Tribunal Federal (STF). E aí os processos se prolongam, aumentando o

sofrimento e o descrédito das famílias acampadas (STÉDILE, 2003).

Segundo esse mesmo autor, de cada seis decretos assinados pelo presidente Luis

Inácio Lula da Silva, nos últimos cinco anos (2005/2009), um tratava da desapropriação de

propriedades destinadas para a reforma agrária. Em números absolutos, entre janeiro de 2005

e dezembro de 2009, a presidência da República baixou 3.615 decretos, sendo 603 declarando

o interesse social por imóveis avaliados pela União e considerados improdutivos, passivos de

desapropriação. Somente este ano, de 730 decretos sancionados, 130 versam sobre a

expropriação de terras. A sequência de despejos já ocorridos na área mostra que a vara de

conflitos agrários trata a situação como ocupação de Sem Terras e observa simplesmente a lei

da propriedade privada, sem observar a lei que trata da função social da terra.

Diante disso, Marés (2003) analisa:

Há uma espécie de código ideológico, que tem poder superior a qualquer código de leis, capaz de, pelo que se entende por “respeito à lei” (?) infringir as mais

elementares leis do respeito devido às pessoas. Trata-se de uma cultura jurídica

interpretativa dos fatos e das leis, que pré-julga, por uma síndrome medrosa e

preconceituosa, todo o povo pobre ativo - como são as/os sem-terra que defendem

seus direitos - fechado numa clausura de suspeita antecipada de que ele é, por sua

própria condição social, perigoso e tendente a praticar crimes. A mídia, com raras

exceções, se encarrega de alimentar esse preconceito, ao ponto de invadir cabeça e

coração de administradores públicos, juízes e formadores de opinião, na condição de

executores desse outro código (p.65)

Realmente, surpreende a rapidez com que as manutenções ou reintegrações são

disponibilizadas, cedendo-se às pressões dos proprietários e desconsiderando-se aspectos

fundamentais para o deslinde do caso, cuja gravidade imporia outro tipo de encaminhamento,

mais elaborado e que levasse em consideração a situação e o drama das famílias, a falta de

88

perspectivas (levá-las para onde?), as omissões dos poderes constituídos (como falar de

direitos para essas famílias?). Constantemente vivencia-se esse tipo de violência contra os

trabalhadores sem terra no sul e sudeste do Pará.

Fernandes (1998) defende a tese que toda medida poderia ser precedida por uma

inspeção judicial aos acampamentos, estabelecendo-se um contato direto de juízes e

promotores com o caso. Contentam-se com a prova da posse pelo proprietário (título),

comprovando-se, igualmente, a entrada nas terras, deixando de proceder à audiência de

justificação prévia e à intimação do INCRA, para que este ateste o cumprimento, ou não, da

função social por parte daquela propriedade. A prova da posse poderia esbarrar, por exemplo,

na questão dos falsos títulos ou dos inexistentes (situação muito presente na Amazônia Legal).

Mas não se dão a estes cuidados, determinando o despejo das famílias sem terra, com

emprego de força policial. Será que a reforma agrária é caso de polícia?

Nesse sentido, Dom Tomás Balduíno (2005, p.32), em entrevista à Revista Caros

Amigos, acrescenta:

Quando acontece despejo, o juiz não chega a examinar a coisa. Vê um papel na sua

frente e, mesmo que seja duvidoso, ele rapidamente despacha. Um juiz nos dizia

que, quando se trata de ação contra o MST, ele assina logo. Então há um preconceito

do Judiciário com relação aos sem-terra (CAROS AMIGOS, 2005, p. 32).

O grosso da atuação jurisdicional nos conflitos de terra orienta-se, então, pelo

formalismo, pela interpretação conservadora da legislação, pela valorização excessiva do

direito à propriedade em detrimento das finalidades sociais e da persecução do bem comum.

Por estas e outras “o Judiciário figura como espaço de legitimação dos interesses dos grandes

proprietários, recebendo a menção, nada honrosa, de ser uma cerca a mais do latifúndio”

(FERNANDES, 1998, p. 45).

Esse mesmo autor sinaliza que a concepção jurídica hegemônica, estruturada segundo

o modo de produção capitalista, cabe a tarefa de sustentar e proteger a propriedade privada

por todos os meios possíveis, emprestando-lhe um sentido absoluto, individual, exclusivo (nas

mãos de poucos), ilimitado, sagrado e incompatível com qualquer função social. Mantém-se

uma idéia que remonta ao iluminismo e às revoluções burguesas, mesmo com todos os

avanços teóricos, constitucionais e legais apontando em sentido oposto.

Cunha-se, por fim, um discurso ideológico de respeito a toda e qualquer

propriedade, sobretudo à propriedade da terra; mas ao mesmo tempo, assegura-se

que o acesso a ela será vedado aos segmentos marginalizados, o que é obtido pelo

89

estabelecimento da comercialização, como modo preferencial de adquiri-la, à custa de valores exorbitantes (SOUZA, 2006, p. 41).

Para dificultar ainda mais a desapropriação de áreas que não cumprem a função social,

conforme sublinhado no capítulo anterior, o Supremo Tribunal Federal deu aval a “Medida

Provisória (MP) antiocupações”, nº 2.027-40, editada no dia 29 de junho de 2000, pelo

presidente FHC, que em seu parágrafo 6º determina que:

O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à

desocupação do imóvel. A medida foi reeditada em abril de 2001, sob o número

2.109 e em agosto de 2001, sob o nº 2.183-56, hoje com o acréscimo de mais um

parágrafo que excluía do Programa de Reforma Agrária quem tivesse lote em

Assentamento ou pretendesse esse benefício e tivesse participado de invasão ou

esbulho de imóvel rural em processo de vistoria, além de quem estivesse em

processo de desapropriação ou tivesse participado de invasão de prédio público

(BRASIL, 2000).

Essa Medida Provisória além de proibir, por dois anos, as avaliações e vistorias em

terras invadidas e excluir do Programa de Reforma Agrária os que participarem de ocupações,

suspende os processos em tramitação durante as ocupações. De caráter eminentemente

político-repressivo, a MP objetivou especificamente garantir às autoridades federais

descumprir o preceito que determinou a implementação da política agrária, omissão

desmascarada pela ação dos trabalhadores rurais sem terra ao ocupar as áreas improdutivas e

descumpridoras da função social, e exigir sua desapropriação em obediência ao art. 184 da

Constituição Federal. Para conter a pressão crescente dos Movimentos Sociais por Reforma

Agrária, o governo FHC editou Medidas Provisórias que criminalizavam as ocupações.

De outro lado, encontra-se no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de

inconstitucionalidade patrocinada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária

(CNA), que visa à dissociação entre função social e produtividade econômica, pedindo que o

Supremo declare que a propriedade economicamente produtiva não tenha a obrigação de

cumprir a sua função social ainda que para atingir os índices de produtividade ela tenha se

valido de degradação ambiental, trabalho escravo e violência contra a pessoa. Se houvesse a

possibilidade jurídica, o pedido seria, certamente, pela própria inconstitucionalidade da

função social da propriedade (SAUER, 2009).

O tema ganha relevância à medida que aumentam os conflitos fundiários de natureza

sócio-ambiental-cultural, além dos caracterizados pelo trabalho escravo. Para Sauer (2009) é

na temática da função social da propriedade que a bancada ruralista do Congresso Nacional

90

vem investindo, ao lado de temas como a transgenia, territorialidade e meio ambiente. Estão

em curso diversos projetos de lei no Congresso, entre eles o que transfere para o legislativo a

competência de decidir sobre a desapropriação e a atualização dos índices de produtividade.

Nota-se a estratégia coordenada entre a ocupação das pautas do Judiciário e Legislativo

simultaneamente.

Nesse sentido, no judiciário não se cogita a análise do cumprimento da função social

da propriedade para se deferir o mandato de reintegração de posse, como se posse e

propriedade fossem coisas absolutamente independentes. Sem a apreciação da função social

da propriedade na decisão de reintegração de posse, o judiciário acaba por proteger uma

inconstitucionalidade, ao passo que persegue e criminaliza uma manifestação social que se

orienta pelo cumprimento da Constituição. “Mais que paradoxal. isto representa que o

judiciário ainda não se adequou à ideologia Constitucional (SAUER, 2009, p. 124),

orientando-se pela manutenção das estruturas sociais que a própria Constituição tem por

objetivo fundamental erradicar.

Diante disso, o autor conclui que “o cumprimento integral da função social inexiste no

Brasil” (SAUER, 2009, p. 134). Chega a essa conclusão após verificar que, na prática, os

elementos, ambiental e social, da função social são considerados apenas para efeitos de

desapropriação, quando a propriedade descumpre também o elemento econômico, ou seja,

não atinge os índices de produtividade.

De acordo com a lei 8.629/93, os índices de produtividade deveriam ser revistos

periodicamente, levando em conta os avanços tecnológicos e o emprego de novos

conhecimentos na produção agrícola. Entretanto, por pressão do setor mais conservador do

país, está estacionado com índices referentes a 1975. Esses índices determinam se uma

propriedade é produtiva ou não. Atualizá-los significa avançar no processo de reforma agrária

no Brasil, considerando que os órgãos responsáveis por políticas agrárias passam a ter mais

agilidade e ferramentas para determinar que as propriedades cumpram sua função social ou

venham a ser desapropriadas para fins de reforma agrária.

Para Sauer (2009) a função social da propriedade, princípio constitucional que rege

todo e qualquer direito de propriedade de bens e imóveis e dá causa à desapropriação para fins

de reforma agrária, não encontrou na prática, a eficácia de suas dimensões do trabalho e do

bem estar.

Prossegue o autor:

91

A sociedade tem assistido os ataques ao Governo por parte de latifundiários

contrários à atualização desses índices. O próprio Ministério da Agricultura se

recusou a assinar a proposta para atualizar os índices de produtividade. Os

latifundiários, o agronegócio e a mídia conservadora não admitem que se cumpra a

Lei agrária, que determina a atualização regular dos índices de produtividade. [...].

Também não basta apenas atualização dos índices para fazer a Reforma Agrária. É

preciso mudar o modelo agrícola e cumprir a Constituição, que determina que sejam

desapropriadas as grandes áreas que não tem função social e não cumprem a lei

trabalhista, agridam o ambiente e estejam abaixo da média da produtividade. O

último censo do IBGE concluiu que temos menos de 15 mil latifundiários com áreas

maiores de 2.500 hectares, com um total de 98 milhões de hectares. É muita terra nas mãos de pouca gente, que nem mora no campo (SAUER, 2009, p. 139).

A atualização dos índices de produtividade da terra, tantas vezes protelada, é uma

exigência de justiça social. Mas a superação dessa arcaica estrutura agrária alicerçada no

latifúndio, não se concretizará apenas com os limites para a propriedade da terra consagrados

em nossa Constituição. A partir daí, outra luta será travada: fazer cumprir a Constituição.

Afinal, a luta não se encerra com a positivação de direitos. Nessa perspectiva, Stédile

(2003) adverte que não basta estar na lei para virar realidade. É preciso força de pressão social

para tirá-los do papel; garantir sua efetividade, evitando-se “as leis que não pegam” (p, 39);

negar vigência às disposições que vão de encontro aos anseios populares; modificar ou

incrementar a interpretação, estabelecendo outros usos; e para manter direitos fundamentais

que constantemente são ameaçados.

É preciso ter clareza das funções que a legislação desempenha numa sociedade de

classes: cristalizar os interesses hegemônicos ou espelhar conquistas populares. Portanto, a

atuação contra-hegemônica nesse sentido significa exigir o cumprimento daquilo que foi

estabelecido e não está sendo cumprido.

Afinal, a história não é escrita em uma única direção, de uma só maneira “e onde

existe hegemonia, poder, controle, vai sendo incubada a contra-hegemonia, surgindo espaços

e movimentos de resistência, contestação e luta social” (CÁRCOVA, 1996, p. 29-30), até a

desestabilização e derrocada de um sistema e substituição por outro.

Ou seja, o desenvolvimento da hegemonia não é linear, não é imune a ataques e

questionamentos, mas tem incrível capacidade de adaptação, de cooptação e de apropriação

daquilo que outrora a desafiava e que é funcionalizada em seu benefício. Por outro lado, é

prenhe de lacunas, brechas e omissões, o que abre as portas para questionamentos,

confrontações, ousadia, criatividade, experiências, projetos, ações que, mesmo inseridas nos

92

contornos hegemônicos, começam a apontar caminhos outros, mudanças, renovações e

oportunidades de transformar os limites em possibilidades (a história não acabou).

Todavia, os questionamentos fluem naturalmente. Qual seria a proteção/segurança

jurídica dos destituídos de terra, teto, alimentos e trabalho? Como exigir direitos e garantir

justiça social sem ressonância jurídica se as leis só “pegam” conforme os interesses

hegemônicos? O que de fato é legal ou ilegal? Não se consegue apanhar as respostas.

2.3 Política agrária e reforma agrária: realidade, bandeira de luta ou utopia

Guarda os teus sonhos, os sábios não os

têm tão belos como os loucos.

Baudelaire

Souza (2007) analisa que a questão agrária é uma expressão abstrusa, que sintetiza o

conjunto de problemas relacionados com a posse, domínio e concentração fundiária. Expressa

ainda a luta dos camponeses para garantir o acesso e a permanência na terra, fugindo da

pobreza rural. Na história da sociedade brasileira a questão agrária sempre foi tratada como

tema residual. Entretanto, de tempos em tempos, emerge no cenário regional e/ou nacional em

razão, dentre outros fatores, das crescentes mobilizações sociais e da intensificação dos

conflitos no campo.

O paradigma da questão agrária agrega três principais elementos: a desigualdade, a

contradição e o conflito. O desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo provoca a

destruição e recriação do campesinato, ocasionando a concentração da terra. Como

conseqüência nasce à luta pela terra produzindo, obviamente, o conflito. Esse processo é

inerente ao capitalismo, fazendo parte de sua lógica expansionista (FERNANDES, 2008).

Delgado (2005) acrescenta que o processo histórico do qual faz parte a questão agrária

na atualidade refere-se, basicamente, a penetração e à expansão do capitalismo no setor

agropecuário brasileiro. A grande concentração fundiária, vinculada ao poder do capital dos

proprietários, transforma o campo em extensas áreas improdutivas e com valor especulativo.

Dos 400 milhões de hectares titulados como propriedades privadas, apenas 60 milhões são

utilizados como lavouras, sendo que o restante destina-se à pecuária ou não é aproveitado.

93

Quase metade das terras agricultáveis, 46,8%, pertence a, aproximadamente, 1,6%

dos proprietários rurais, com imóveis acima de mil hectares. Já as propriedades com

até 10 hectares representam 32,9% do total de imóveis, mas detêm, apenas, 1,6% da

área total. [...]. Há latifúndios com área superior ao território de muitos países.

Estima-se que a área do latifúndio no Brasil corresponda a 2,05 milhões de

quilômetros quadrados, área maior do que todas as regiões do país, à exceção da

Região Norte. Nesse espaço caberiam Bélgica, França, Espanha e Alemanha, com

bastante folga (MELO, 2006, p. 25 - 41).

Segundo Martins (1994) em sociedades estrutural e historicamente oligárquicas, como

a brasileira, o domínio da propriedade, mormente da imobiliária rural, é fator de acesso a

outras formas de riqueza e benesses. Valoriza-se o detentor de grandes propriedades, mesmo

improdutivas. Toda essa associação produz uma cultura latifundiária, autoritária, violenta,

calcada no “mandonismo, clientelismo e coronelismo, que são sempre atuais” (p.43), apesar

de soarem como práticas ultrapassadas.

O oligarquismo brasileiro sempre teve uma cara moderna como fachada necessária

para preservar o atraso econômico do latifúndio e das relações sociais e de trabalho

nele baseadas. Isto é, para preservar mecanismos atrasados de acumulação de

capital, os mecanismos do nosso capitalismo rentista (MARTINS, 1994, p. 147).

Ao longo da história brasileira, a força duradoura da sua classe latifundiária tem

prejudicado as tentativas de democratização política e extensão igualitária dos direitos de

cidadania. Cartel (2010) certifica que hoje, não é incomum achar descrições do regime

contemporâneo brasileiro como uma democracia ancorada em um sistema oligárquico de

representação. Esse sistema é o resultado de uma antiga tradição elitista na política brasileira e

de arranjos institucionais criados durante o século XX que solaparam a participação política e

aos recursos públicos.

Frisa-se a correspondência entre o monopólio da terra e a representação política, o que

faz com que certas famílias, em cujas mãos encontram-se grandes latifúndios, tenham assento

quase permanente no Congresso Nacional e em outras esferas de poder (famílias Sarney,

Magalhães, Bornhausen, etc.). Martins (1994 pontua que o Congresso é composto por um

grupo de deputados e senadores de vários partidos, que formam a Bancada Ruralista e

defendem interesses dos latifundiários e do segmento patronal, pressionando o governo para

obtenção do perdão de dívidas e outros objetivos questionáveis. Cobram do Estado,

justamente, aquilo que negam aos trabalhadores rurais, as políticas públicas, o tratamento

diferenciado, subsídios etc.

94

É possível constatar que entre 1995 e 2006, a representação política média de camponeses sem-terra foi de apenas um deputado federal para cada 612 mil famílias.

Os grandes proprietários de terras, por outro lado, tiveram um deputado federal para

cada 236 famílias. Dessa forma, a representação política dos maiores latifundiários

do país foi 2.587vezes maior do que a dos camponeses sem terra. Como

conseqüência dessa distribuição desigual d poder, entre 1995 e 2005, os maiores

fazendeiros do país tiveram acesso a 1.582 dólares em gastos públicos para cada

disponibilizado aos trabalhadores rurais sem terra. Assim, as extremas disparidades

de poder político levaram ao que Galbrait (1987, p. 279) descreveu com fina ironia

como “socialismo para os ricos (CARTER, 2010, p. 217).

E são esses “grupos de interesses”, altamente refratários a qualquer tipo de mudança,

os responsáveis pela votação de projetos de leis e implantação de políticas públicas, dirigidas,

supostamente, a alterar e solucionar a situação no campo, o que bem retrata a dificuldade em

se lutar por modificações estruturais e direcionadas para os segmentos populares, junto às vias

institucionais. “A imensa e absurda concentração de terras garante incomensurável poder, não

sendo despiciendo mencionar que, dentro do sistema capitalista, terra é sinônimo de poder e

prestígio” (PRADO JR., 1981 p. 34).

Por isso, a questão agrária passa a ser pautada pelo debate sobre a posse da terra e a

relação íntima entre pobreza, fome, concentração de terra e de renda. No Brasil não restam

dúvidas sobre a relação direta entre a pobreza rural e a estrutura fundiária de alta concentração

de propriedade, assim como o modelo de produção predominante (VEIGA, 2000).

Daí porque Fernandes (2008) define o termo “questão agrária” da seguinte forma:

A questão agrária é o movimento do conjunto de problemas relativos ao

desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores,

que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações

capitalistas de produção. Em diferentes momentos da história, essa questão

apresenta-se com características diversas, relacionadas aos distintos estágios

do desenvolvimento do capitalismo (2001, p. 23).

Realmente, ela é um dos elementos estruturais do modo capitalista de produção, cujo

processo histórico de afirmação (acumulação primitiva ou originária) dá-se, em grande

medida, com a expropriação do produtor rural, do camponês (MARX, 1987).

Nessa mesma lógica, Martins (1997) ao conceituar a questão agrária, sobrepõe:

Ela é essencialmente uma questão política em qualquer país. Surge com o

desenvolvimento do capitalismo, em consequência do obstáculo que a propriedade

territorial e o pagamento da renda da terra ao proprietário representam para a

reprodução ampliada do capital e à acumulação capitalista na agricultura (p.11- 12).

95

Diante dessas concepções, Stédile (2005) sistematiza as diferentes interpretações por

áreas de conhecimento:

Na literatura política, a questão agrária relaciona-se ao estudo dos problemas que a

concentração da propriedade da terra traz ao desenvolvimento das forças produtivas

e sua influência no poder político. [...]. Na Sociologia, a questão agrária é utilizada

para explicar as formas como se desenvolvem as relações sociais na organização da

produção agrícola. [...]. Na História, o termo contribui para esclarecer a evolução da

luta política e da luta de classes pelo domínio e controle dos territórios e da posse da

terra. (p. 15).

Para Fernandes (2001) os problemas referentes à questão agrária estão relacionados,

essencialmente:

À propriedade da terra, consequentemente à concentração da estrutura fundiária; aos

processos de expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais:

camponeses e assalariados; à luta pela terra, pela reforma agrária e pela resistência

na terra; à violência extrema contra os trabalhadores, à produção, abastecimento e

segurança alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e seus

padrões tecnológicos, às políticas agrícolas e ao mercado, ao campo e à cidade, à

qualidade de vida e dignidade humana. Por tudo isso a questão agrária abrange a

dimensão econômica, social e política (p. 23-24).

Desta feita, para esse autor, importa contextualizar a questão agrária em face da

realidade brasileira, traçando características que se têm mostrado perenes: a negação do

acesso à terra a uma parte considerável da população, variados processos de expropriação,

vergonhosa e perversa concentração fundiária, a exploração do trabalho rural, violência

perpetrada contra camponeses, trabalhadores rurais, movimentos sociais do campo e todos os

que se opõem às injustiças aí verificadas (sindicalistas, religiosos, advogados etc.), expulsão

de homens e mulheres do campo, sem esquecer as implicações oriundas do agronegócio.

Para Fernandes (2001) a estrutura agrária do país, ou seja, a forma como a terra está

dividida, apenas reflete a estrutura social e de classes, marcadas por alta e absurda

concentração de renda e por profundas e gritantes desigualdades. De outra parte, o

entendimento dessas mazelas é fundamental para o seu enfrentamento. O paradoxo é que as

questões mais atuais e prementes são justamente aquelas que se colocam como problemas dos

mais antigos, para os quais muito já se propôs e muito pouco se concretizou. Abordar essas

questões significa, portanto, desnudar as relações mesmas de poder desta sociedade.

Assim, quando falamos em questão agrária no Brasil estamos nos referindo às

contradições geradas a partir da concentração da propriedade da terra no país, que resultou na

expropriação de milhões de camponeses. Com a expropriação surge também a resistência dos

96

trabalhadores. Segundo Fernandes (2001) é nesse processo histórico que ocorre a formação

camponesa no Brasil, ou seja, desde a resistência negra e indígena à escravidão até as

ocupações dos trabalhadores sem-terra, o camponês busca resistir e se reproduzir enquanto

sujeito social .

É no interior desse processo desigual que se desenvolvem a exploração econômica, a

exclusão cultural e a dominação política, gerando os conflitos e a resistência. No cerne desse

processo formam-se também diferentes movimentos sociais que inauguram novas situações,

desenvolvem outros processos (FERNANDES, 2001).

A luta pela terra está assentada nesse processo contraditório de desenvolvimento do

capital que, ao mesmo tempo em que se expropria abre possibilidade histórica do retorno a

terra. Isso permite compreender os conflitos fundiários constantes no Brasil como parte de

uma luta histórica que vem desenhando novos contornos, em virtude das transformações

contemporâneas no campo brasileiro.

Se a mundialização da economia capitalista traz à tona novos sujeitos sociais e

novas articulações, igualmente e contraditoriamente, traz também à tona a luta de novos personagens sociais: basta olharmos para o México, e lá estão os Zapatistas8

em luta. Com certeza a história não acabou, e muito menos a utopia (OLIVEIRA,

1991, p. 11).

Martins (1997) reforça que a questão agrária brasileira abarca dois processos

combinados: a expropriação e a exploração. Ou seja, a concentração da propriedade fundiária

faz com que os pequenos produtores sejam expulsos da terra, que é o seu principal

instrumento de trabalho, em favor dos latifundiários. Esse processo, segundo Martins (1991) é

realizado por grandes empresas capitalistas nacionais ou multinacionais, com incentivos

financeiros do Estado, o qual ocorre de diferentes maneiras, no país inteiro.

Na visão deste autor, a expropriação é intrínseca ao processo de expansão capitalista,

sendo um componente da lógica de reprodução do capital. A separação entre o trabalhador e a

produção é o processo inicial para que se instaure o domínio do capital e o desenvolvimento

do capitalismo. O trabalhador livre, proprietário de si mesmo, inteiramente despossuído dos

meios de vida necessários à sobrevivência, além de liberto de outros laços de dependência

8 Segundo Oliveira (2008) o Zapatismo nasceu para mostrar novos sinais e novos signos do mundo dos

excluídos. O Zapatismo colocou para o mundo mundializado pelo capitalismo neoliberal, novas formas de luta

para se compreender e transformar o mundo. A rebeldia dos povos indígenas mexicanos está colocando o mundo

intelectual e político a ter que compreendê-lo e junto com eles os movimentos sociais que surgem em diferentes

partes dos países do mundo. Eles têm diferenças e semelhanças. Suas formas de lutas são diferentes e

semelhantes, porque lutam por direitos fundamentais negado pela etapa moderna do imperialismo: o

neoliberalismo.

97

pessoal, que não a mera dependência econômica, vê-se obrigado para sobreviver, a vender aos

proprietários dos meios e condições de trabalho, a sua energia vital, a sua força de trabalho

(MARX, 1985). Mesmo com o fim da escravidão, o então chamado trabalhador livre continua

separado dos meios de produção e também da força de trabalho - que ele passa a vender.

Para Martins (1997) a questão agrária no Brasil surge quando a propriedade da terra:

Ao invés de ser atenuada para viabilizar o livre fluxo e reprodução do capital, é

enrijecida para viabilizar a sujeição do trabalhador livre ao capital proprietário de terra. Ela se torna instrumento de criação artificial de um exército industrial de

reserva, necessário para assegurar a exploração de força de trabalho e a acumulação.

A questão agrária, curiosamente, foi ganhando visibilidade à medida que

escasseavam as alternativas de reinclusão dos expulsos da terra. Portanto, entre nós,

ela é a face escamoteada da questão do trabalho que se manifesta na exclusão social

(p. 12).

O desenvolvimento do modo capitalista de produção no campo se dá inicialmente pela

sujeição da renda da terra ao capital quer pela compra da terra para explorar ou vender, quer

pela subordinação à produção do tipo camponês. Assim o fundamental para o capital é a

sujeição da renda da terra, pois a partir daí, ele tem as condições necessárias para sujeitar

também o trabalho que se dá na terra. “Primeiramente, o capital sujeita a renda da terra e em

seguida subjuga o trabalho nela praticado” (OLIVEIRA, 1991, p. 49).

Apesar de considerar o progresso de generalização das relações capitalistas de

produção, Martins (1991) aponta para a necessidade de se compreender a especificidade da

expansão do capitalismo na agricultura, centrada na sujeição da renda da terra ao capital e na

contradição terra/capital. Isso significa que a apropriação capitalista da terra (por meio da

compra) vai transformá-la em um equivalente de capital, tornando possível a subordinação do

trabalho agrícola. A renda que será paga ao proprietário da terra não nasce na produção, ela

somente será transferida ao proprietário no momento da distribuição da mais-valia,

considerando que não é na produção que a mais-valia é originada, mas é somente na

circulação da mercadoria que ela se realiza. O capitalista, para concentrar a exploração

capitalista, não precisa concentrar a propriedade da terra, basta apenas pagar a renda e alugar

parcelas de terras. No entanto, caso imobilize dinheiro na compra da terra, estará comprando o

direito de extrair renda da sociedade. , renda capitalizada. Por conseguinte, estará deixando a

condição de capitalista para se tornar proprietário da terra e capitalista.

Ainda segundo esse mesmo autor, a propriedade da terra é uma contradição do

capitalismo, já que ela cobra um tributo do capital, mas não é de forma alguma resquício, uma

excrescência. Ela é uma figura de dentro do capitalismo. A condição capitalista da terra está

98

inerente, oculta. Daí, porque Martins (1991) acredita ser fundamental separar produção do

capital e reprodução capitalista do capital. A primeira nunca é produto de relações capitalistas

de produção. Para ele, não só relações não-capitalistas podem ser dominadas e reproduzidas

pelo capital, como é o caso da produção familiar do tipo camponesa, como também

determinadas relações podem não parecer integrantes do processo capital, embora o sejam,

como é o caso da propriedade capitalista da terra.

Assim, este autor utiliza a sujeição da renda da terra ao capital para explicar a lógica

das relações camponesas e da propriedade fundiária, demonstrando que a produção

camponesa se expressa enquanto produto e contradição da expansão capitalista. A

propriedade da terra no Brasil aliou-se ao capital moderno e acabou perpetuando a presença

viva e atuante de estrutura do passado, tendo como conseqüência as relações políticas arcaicas

que agem sorrateiramente, capturando as lutas sociais de profundo caráter transformador.

Oliveira (2007) sustenta que a base teórica para compreender o campo brasileiro, está

na compreensão da lógica do desenvolvimento capitalista moderno, que se faz de forma

desigual e contraditória. Ou seja, o desenvolvimento do capitalismo, e sua conseqüente

expansão no campo, se fazem de forma heterogênea, complexa e, portanto plural. Este quadro

de referência teórica está, portanto, no oposto daquele que vê a expansão homogênea, total e

absoluta do trabalho assalariado no campo com característica fundante do capitalismo

moderno.

Desta forma, o capitalismo brasileiro trabalha com o movimento contraditório da

desigualdade no processo de seu desenvolvimento. Ou seja:

No caso brasileiro o capitalismo atua desenvolvendo simultaneamente, na direção do

trabalho assalariado no campo em várias culturas e diferentes áreas do país, como

ocorre, por exemplo, na cultura da cana-de-açúcar, da laranja, da soja, etc. Mas, por

outro lado, este mesmo capital desenvolve de forma articulada e contraditória a

produção do camponês (OLIVEIRA, 2007, p.131).

Daí porque podemos afirmar que a expansão do capitalismo é desigual e contraditória,

ou seja, o capital ao se reproduzir reproduz suas contradições, criando e recriando as relações

não-capitalistas de produção. Oliveira (1991) destaca que o campo tem sido um dos lugares

privilegiados da reprodução dessas relações não-capitalistas. Portanto, não podemos

compreender o campesinato, sua reprodução, como fora do capitalismo, mas sim, como uma

classe social de dentro do capitalismo.

99

O processo de desenvolvimento contraditório ocorre por meio de formas articuladas

pelos próprios capitalistas que se utilizam dessas relações de trabalho não tipicamente

capitalistas (arrendamento de terras, meação e parceria), para não investirem na contratação

de mão de obra uma parte do seu capital (MARTINS, 1997). Por isso, o capitalismo não é

capaz de conter apenas um modelo de relação social.

Nesse sentido, Oliveira (1991) explicita:

Um fazendeiro que desenvolve pecuária de corte [...] precisa ter sempre em boas

condições as pastagens de sua propriedade e manter um conjunto de trabalhadores

assalariados para cuidarem do rebanho. Quando as pastagens estiverem desgastadas [...] elas terão que ser refeitas [...]. Para refazer a pastagem o fazendeiro pode

deslocar ou contratar trabalhadores assalariados para arar a terra, adubá-la e semear

capim, esperá-lo crescer, para depois soltar novamente o gado na área. Nem sempre

isso ocorre, muitas vezes, esse fazendeiro, ao invés de destinar uma parte de seu

capital para realizar a tarefa de refazer o pasto, arrenda a terra a camponeses sem-

terra ou com pouca terra na região, para que eles façam o trabalho por ele. Esse

arrendamento pode ser de várias formas, entre elas a de dividir parte da produção

obtida no solo durante uma colheita de algodão, amendoim, milho etc. O fazendeiro

entra com a terra e por isso recebe metade, ou um terço ou um quarto ou uma

porcentagem previamente estipulada da produção obtida. Também, pode cobrar uma

quantia em dinheiro pela cessão da terra. No primeiro caso, temos a parceira e no segundo a renda em dinheiro. Em seguida o camponês planta, por um ano ou menos

ainda, um produto na terra que era ocupada pela pastagem. Após a colheita, ou ele

entrega parte da produção ao fazendeiro ou vende a safra e paga em dinheiro a

quantia estipulada previamente no contrato de arrendamento. Em seguida semeia o

capim na terra e devolve a área ao fazendeiro, que aguardará apenas o crescimento

do capim e terá o pasto reformado, sem que para tal, tenha gasto parte de seu capital

(OLIVEIRA, 1991, p. 19).

Essa é uma das formas de exploração do sistema predominante. O próprio capitalista

lança mão de relações de trabalho e de produção não-capitalistas para produzir o capital.

Diante desse contexto é que os trabalhadores rurais têm criado diversas formas de resistência,

durante toda a sua história, por meio das lutas sociais no enfrentamento com o Estado, com os

proprietários de terra e capitalistas.

Oliveira (1991) aponta essa questão teórica como fundamental para apanharmos a

essência da agricultura camponesa no Brasil, pois a manutenção de relações não-capitalistas

de produção ocorre mediante esforços dos trabalhadores na busca de espaços para se

reproduzirem.

Nesse contexto, Fernandes (1996) ressalta que a análise da agricultura camponesa não

pode ser a mesma da lógica dos conceitos componentes na agricultura capitalista, pois quando

os camponeses adquirem a terra por meio de compra (quando isso é possível) ou por herança,

esta não entra no cálculo econômico para definir os custos da produção.

100

Essa abordagem valoriza a dimensão política do campesinato, isto é, sua resistência e

sua particularidade histórica, representando as transformações desses sujeitos sociais no

campo brasileiro, que lutam contra as cercas dos latifúndios ao longo dos séculos.

As lutas pela terra e pela reforma agrária se inserem em um contexto de

transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da modernidade ocidental (SAUER,

2005). Estas transformações são exacerbadas pelo que, mais recentemente, se tem

denominado de globalização. Esta globalização constitui re-arranjos nos processos de

acumulação do capital que atingem todas as dimensões da vida, inclusive o meio rural

brasileiro.

A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital,

um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que no passado

garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu

todo à lei do valor, no pressuposto de que toda atividade social é mais bem

organizada quando organizada sob a forma de mercado. A conseqüência principal

desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das

oportunidades produzidas pela globalização neoliberal no interior do sistema

mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais

entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país

(SANTOS, 2003, p. 30).

É fundamental considerar que as lutas sociais no campo não se restringem “a lutas pela

propriedade privada e pelos valores tradicionais camponeses” (SAUER, 2005, p.15).

Transcendem ao acesso aos meios de produção e se transformam em um processo de

construção de sujeitos políticos, recriando relações sociais e transformando o espaço rural na

constituição de uma nova ruralidade.

Outro pressuposto teórico importante, desenvolvido por Martins (1991), é o caráter

rentista do capitalismo no Brasil. Isto que dizer que no Brasil o desenvolvimento do modo

capitalista de produção se faz, principalmente, através da fusão9 em uma mesma pessoa do

capitalista e do proprietário de terra. Este processo que teve sua origem na escravidão vem

9. No entanto, foi na segunda metade do século XX que essa fusão ampliou-se significadamente. Após a

deposição, pelo golpe militar de 64, do Governo de João Goulart, os militares procuraram re-soldar esta aliança

política, particularmente, porque durante o curto Governo de João Goulart, ocorreram cisões nas votações do

Congresso Nacional em questões relativas a questão agrária. Principalmente, quando uma parte dos congressistas

votou a legislação sobre a Reforma Agrária. Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou no

sentido da transformação dos latifúndios em empresários capitalistas, mas, ao contrário, transformou os

capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do centro-sul do país, em proprietários de terra, em latifundiários

(MARTINS, 1991).

101

sendo cada vez mais consolidado, desde a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre,

principalmente com a Lei de Terras e o final da escravidão.

No entanto, foi na segunda metade do século XX que essa fusão ampliou-se

significadamente. Após a deposição, pelo golpe militar de 64, do Governo de João Goulart, os

militares procuraram re-soldar esta aliança política, particularmente, porque durante o curto

Governo de João Goulart, ocorreram cisões nas votações do Congresso Nacional em questões

relativas a questão agrária. Principalmente, quando uma parte dos congressistas votou a

legislação sobre a Reforma Agrária. Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou

no sentido da transformação dos latifúndios em empresários capitalistas, mas, ao contrário,

transformou os capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do centro-sul do país, em

proprietários de terra, em latifundiários (MARTINS, 1991).

Para Martins (1991) a formação do campesinato no Brasil10

deve ser entendida a

partir da etapa concorrencial do capitalismo, já que a grande propriedade, dominante em toda

a história, se impôs como modelo socialmente reconhecido, no qual recebeu estímulo social

expresso nas políticas públicas, „modernizando-se‟ e dessa maneira, garantindo sua

reprodução.

O campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais

da história da agricultura brasileira, o seu quadro colonial que se perpetuou como uma

herança, após a independência nacional e a dominação econômica, social e política do grande

proprietário, bem como a marca da escravidão e a existência de uma enorme fronteira de

terras livres passíveis de serem ocupadas (MARTINS, 1986).

Assim, a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro da

criação/destruição /recriação das relações sociais como a propriedade camponesa, a posse,

arrendamento, a meação e a parceria. Ao mesmo tempo em que o capital destrói o

campesinato em um lugar ele recria em outro. Ou no mesmo lugar em outro tempo. Dessa

10

O campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais da história da

agricultura brasileira, o seu quadro colonial que se perpetuou como uma herança, após a independência nacional

e a dominação econômica, social e política do grande proprietário, bem como a marca da escravidão e a

existência de uma enorme fronteira de terras livres passíveis de serem ocupadas (MARTINS, 1986). Assim, a

história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro da criação/destruição /recriação das relações

sociais como a propriedade camponesa, a posse, arrendamento, a meação e a parceria. Ao mesmo tempo em que

o capital destrói o campesinato em um lugar ele recria em outro. Ou no mesmo lugar em outro tempo. Dessa

forma, pode-se compreender destruição do campesinato pela territorialização do capital, bem como o processo

de recriação do campesinato, onde o capital se territorializou (Fernandes, 2000).

102

forma, pode-se compreender destruição do campesinato pela territorialização do capital, bem

como o processo de recriação do campesinato, onde o capital se territorializou (Fernandes,

2000).

Para discutir a gênese da questão agrária, esse autor reforça a necessidade e

importância de compreendê-la enquanto um processo histórico conseqüente da solução dada

ao escravismo, uma vez que a “nossa história social, desde a dissolução da sociedade

escravista, tem sido essencialmente uma história de desincorporação daqueles que o trabalho

livre descartou ou tornou descartável” (MARTINS, 1994, p.14).

Isso produz os chamados excluídos, que são os incluídos num sistema desigual e

injusto ocupando funções subalternas, condição indispensável para a acumulação capitalista.

Os trabalhadores são expropriados da produção de subsistência e de suas bases fundiárias. As

terras não são mais reservadas para a produção de alimentos e, aos poucos, transformam-se

em mercadoria. Para Marx (1985):

A transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é a ruína final da velha

aristocracia e o aperfeiçoamento final da aristocracia do dinheiro. Na propriedade feudal ou tradicional da terra produz uma aparência familiar entre o possuidor e a

propriedade. A transformação da terra em mercadoria, que responde ao toque do

dinheiro, a converte em mera riqueza coisal, despindo-a de qualquer coloração

política, assim como no lugar do casamento de honra com a terra se instale o

casamento por interesse (p. 136).

Sauer (2005) em seus estudos sobre a questão agrária afiança que ela está no centro da

constituição do Estado republicano brasileiro e permanece até hoje como base de poder

político e exclusão social. Stédile (2005) acrescenta que os problemas sociais de hoje têm

suas raízes no processo de sustentação da estrutura social que vem permeando a nossa

história. Mas, os enigmas que se encontram na raiz da questão agrária brasileira têm início

com a chegada dos colonizadores portugueses no Brasil.

Entretanto, Martins (1997) acredita que a questão agrária propriamente dita

aparece em meados do século XIX, com o processo de abolição da escravidão e a edição da

Lei de Terras de 1850. Essa Lei organizou a propriedade privada e impediu o acesso à terra

aos que não a podiam comprar, forçando os negros e pobres livres, inclusive os imigrantes

europeus, a trabalhar para os grandes proprietários.

Vários foram os movimentos de luta e libertação dos trabalhadores rurais, desde os

idos coloniais. Para analisar a luta pela terra no Brasil a partir de 1850, Stédile (1993) procura

classificá-la em três etapas distintas, sendo a primeira fase de 1850 a 1940, com o surgimento

103

das lutas “messiânicas (Canudos e Contestado). A segunda etapa de 1940 a 1955 quando

ocorrem as “lutas radicais localizadas” (p. 36) marcadas por violentos conflitos nos quais

fazendeiros e empresas expulsavam posseiros que viviam nas terras há anos. E a terceira fase

de 1955 a 1964, marcada pelo movimento de trabalhadores organizados, tendo como

destaques: a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), as Ligas

Camponesas e os Movimentos dos Agricultores Sem Terra (MASTER) que tiveram uma

atuação mais específica no Rio Grande do Sul (CORAZZA, 2003).

O cenário delineado aponta que as transformações nas relações de trabalho no campo,

assim como os conflitos e a luta pela terra, acompanharam a intensidade das intervenções do

capital estatal e privado rumo ao desenvolvimento do capitalismo no espaço agrário, uma vez

que em meados do século XX vários estudos apontavam a estrutura agrária extremamente

concentradora como elemento limitante ao processo de industrialização do país (Silva, 1981).

A tese de Medeiros (1987) assevera que o debate em torno da questão agrária adquiriu

novos contornos a partir da década de 1960, em decorrência da luta engendrada pelas Ligas

Camponesas, associações de lavradores e outros movimentos sociais no campo. Essas

organizações estimularam a resistência na terra e colocaram o tema da reforma agrária na

pauta nacional.

Para Delgado (2004) a reforma agrária é uma possibilidade de solução para a questão

agrária, destacando que, na segunda metade do Século XX, quatro grupos distintos

protagonizaram o debate no Brasil. Um dos grupos vinculava-se à Igreja Católica, motivado

por sua doutrina social. O outro era coordenado pela Comissão Econômica para a América

Latina (CEPAL). O terceiro ligava-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No quarto

grupo estavam intelectuais que se opunham à reforma agrária como um fator econômico

capaz de promover o desenvolvimento.

A Igreja Católica não propiciou um debate sistemático sobre a questão agrária,

tampouco organizou uma proposta de reforma agrária. Sua contribuição, no entanto, foi muito

importante para a luta dos trabalhadores rurais. Além de enfatizar a função social da

propriedade, incorporada ao texto do Estatuto da Terra (1964) e da Constituição Federal de

1988, as pastorais sociais, em especial a Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975,

tiveram destacada atuação na formação e organização dos camponeses e trabalhadores rurais.

Embora, ainda que não dispusesse de um projeto próprio, a Igreja Católica sempre apresentou

posições claras defendendo a reforma agrária (Souza, 2007).

104

O grupo ligado à CEPAL defendia a necessidade de uma mudança na estrutura

fundiária e nas relações de trabalho no meio rural. Segundo Delgado (2004), “as teses da

CEPAL atribuem ao setor agrícola uma tendência de gerar tensões estruturais sobre a inflação

e crises freqüentes de abastecimento de alimentos” (p.11). Os intelectuais ligados ao PCB, em

especial Caio Prado Junior e Alberto Passos Guimarães, com diferentes concepções ou

ênfases, foram os que mais avançaram na compreensão da questão agrária brasileira. Um dos

aspectos de maior destaque nessas discussões foi a importância ou o lugar da reforma agrária

no processo de desenvolvimento econômico brasileiro.

Caio Prado Junior (1981) acastelava a tese de que a estrutura fundiária impunha

condições subumanas de vida e trabalho à maioria da população do campo. Esse autor

identifica a tendência de crescimento do assalariamento dessa população, o que pressupunha

uma legislação trabalhista capaz de proteger os trabalhadores rurais. Por isso, definia como

prioridade a luta pela extensão dos direitos trabalhistas à população rural, enquanto o outro

militante do PCB (Guimarães) defendia a tese da reforma da estrutura fundiária como

condição ao desenvolvimento.

Segundo Souza (2007) os economistas conservadores, entre os quais Roberto

Simonsen e Delfim Neto, defendiam a viabilidade de modernizar a produção agropecuária,

aumentar a produção e a produtividade da terra, sem realizar a reforma agrária. Essa tese

selou-se vitoriosa com o golpe militar de 1964, resultando em um modelo agropecuário que

foi capaz de „modernizar‟ o campo sem democratizar a estrutura fundiária. Chamado de

“modernização conservadora” da agricultura, esse modelo aprofundou a concentração

fundiária, o êxodo rural e a pobreza no campo.

Nessa perspectiva, Sauer (2005) destaca que esse padrão de desenvolvimento

agropecuário da chamada Revolução Verde resultou no

reforço de um modelo industrial concentrador, predatório e excludente. Este

modelo seguiu a lógica dominante de privilegiar a política de investimentos

no setor industrial voltado para o desenvolvimento dos centros urbanos,

transformando o atraso do meio rural no contraponto ideal, imagem e

representação de como o desenvolvimento moderno não poderia ser (p.11).

Após a modernização conservadora, no período militar, pregou-se que a reforma

agrária já não era uma necessidade de desenvolvimento do capitalismo, como ocorrera em

outros países, pois mesmo com a propriedade concentrada (latifúndio), o sistema havia

conseguido aumentar a produção e as exportações, aplicando novas técnicas (agronegócio) e

105

uma reforma agrária poderia reverter esse caminho. Dizem tratar-se de mera bandeira política,

manipulada pelos movimentos sociais e que não haveria espaço e nem seria o caso de se falar

em problema agrário. Quando muito, defendem-se projetos de assentamento como meio de se

diminuir os conflitos na zona rural (STÉDILE, 2002).

O regime militar perseguiu e reprimiu duramente os movimentos sociais de luta pela

terra. As Ligas Camponesas, por exemplo, foram destroçadas. A conjuntura internacional

marcada pelo conflito político-ideológico da “guerra-fria”, que opunha Estados Unidos e

União Soviética, favorecia a ação dos militares, já que a política agrária era tida como

reivindicação de comunistas (Souza, 2007).

Diante das contradições do modelo agropecuário e da repressão do governo militar, os

camponeses e trabalhadores rurais começaram a se reorganizar para resistir e lutar por terra,

dando origem a entidades e movimentos sociais que recolocaram a reforma agrária no cento

das atenções nacionais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é fruto

desse processo.

Na década de 1990, o modelo agropecuário surgido nos anos 1960 se aprofundou e

passou a ser denominado de “agronegócio”. Frente a isso, Fernandes (2005) sustenta que:

A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura

capitalista, para modernizá-la. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador,

predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter

produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias.

Da escravidão à colheitadeira controlada por satélite, o processo de exploração e

dominação está presente, a concentração da propriedade da terra se intensifica e a

destruição do campesinato aumenta. O desenvolvimento do conhecimento que

provocou as mudanças tecnológicas foi construído a partir da estrutura do modo de

produção capitalista. De modo que houve o aperfeiçoamento do processo, mas não a

solução dos problemas socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade, o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade

(p. 11).

De fato, a política de reforma agrária no Brasil tem vínculos estreitos com seus

legados autoritários e patrimoniais. O atual modelo de desenvolvimento rural do país, fundado

na promoção do agronegócio e na proteção das grandes propriedades de terras, foi

desenvolvido e financiado pelo regime militar. Desde então a inércia conservadora do Estado

se manteve sem grandes alterações, apesar da democratização do regime político, das leis

favoráveis à reforma agrária e da expressiva demanda popular por terra (FERNANDES,

2005).

106

A restauração do regime democrático em 1985 permitiu a eleição de cinco presidentes

civis com orientações partidárias e políticas distintas. Todos eles, porém, de José Sarney a

Luiz Inácio Lula da Silva, mantiveram de uma forma ou outra uma política agrária

conservadora. Embora com discursos favoráveis a uma reforma fundiária, na prática todos

esses governos implementaram uma política caracterizada por:

repartição de terras por pressão social, processos administrativos lentos e

complicados, violações freqüentes de direitos humanos com ampla impunidade, distribuição residual de terras, e escasso apoio aos assentamentos – persistiram ao

longo de todos os governos federais estabelecidos entre 1985 e 2009, com algumas

diferenças perceptíveis entre essas administrações [...], sendo a administração do

governo Lula, em alguns aspectos, menos conservadora que seus antecessores

(Carter, 2009, p.297).

No Brasil, os defensores da propriedade privada como direito individual e absoluto

foram historicamente hegemônicos, de sorte que as poucas iniciativas governamentais

relacionadas à reforma agrária não lograram êxito. Foi assim durante os governos Jango, com

as reformas de base, e Sarney, com o I PNRA, e está sendo assim na gestão de Luiz Inácio

Lula da Silva (CARTER, 2009).

Os contornos da questão agrária no início do Século XXI estão totalmente atrelados à

modernização conservadora da agricultura. O modelo dominante agropecuário continua

hegemônico, a reforma agrária não foi realizada e a concentração fundiária permanece como

uma das mais elevadas do mundo. Como aponta Martins (1995), na história brasileira, a

questão fundiária está intimamente vinculada à organização política do país e nos pactos do

poder. Ou seja, a concentração fundiária está intimamente relacionada a determinadas formas

de exercício de poder, ao culto ao direito de propriedade sem limites e, portanto, à exclusão

social.

A reforma agrária é necessária para o desenvolvimento do país, mas há uma

resistência homérica em efetivá-la, talvez o Brasil seja o único e o último país de dimensões continentais que ainda resiste à Reforma Agrária, o qual ainda tenta,

enfim, a ela se opor (FERNANDES, 1998, p. 74).

Stédile (1993) sinaliza que para os projetos políticos dos grupos hegemônicos, a

reforma agrária pode até ter perdido a razão, mas, não obstante, continua sendo uma

necessidade dos trabalhadores rurais, dentro de um desenvolvimento sócio-econômico de

outro tipo. Importa delinear qual modelo de reforma agrária é perseguido.

Para Fernandes (1998), a luta pela reforma agrária, nesses termos, seria mais ampla e

englobaria a luta pela terra. De todo modo, diz o autor, as duas são complementares e

107

indissociáveis. O objetivo imediato é o acesso à terra física, que interessa diretamente aos

trabalhadores envolvidos; o mediato é a reforma agrária, reforçada por outras políticas

públicas que proporcionem uma alteração profunda da estrutura fundiária, apresentando-se

como de interesse de toda a sociedade.

O autor acima analisa também que o latifúndio representa um vazio e quando ele é

dividido e ocupado por outros atores, deve ser preenchido com uma série de políticas públicas

visando à sua emancipação (crédito, subsídios específicos, eletrificação, saneamento,

educação, assistência técnica, postos de saúde, políticas de preços etc.).

A reforma agrária, assim, é entendida como uma verdadeira política de Estado,

envolvendo ministérios, secretarias, instituições, verbas no orçamento – insuficiente em todos

os governos. “O foco é direcionado à pequena produção, à agricultura familiar, em

contraponto à agricultura de grande extensão, revertendo-se o predomínio desta” (VEIGA,

2002, p. 91), mas sem abrir mão dos incrementos tecnológicos, observando-se o

desenvolvimento sustentável e respeito ao meio ambiente. Nestes termos, a finalidade é a

conquista da terra de trabalho, de moradia, de onde se retira o sustento digno, garantindo-se a

produção de alimentos.

Não se trata, portanto, de uma reforma agrária como política compensatória que

expressa um processo de controle social dos movimentos camponeses pelo estado, sob

influência direta do capital. A política compensatória é uma forma de tratamento terminal do

campesinato. “A aposta no fim do campesinato não se efetua como se tem esperado, de modo

que a política compensatória mantém os movimentos na UTI” (FERNANDES, 2005, p. 10).

A reforma agrária pensada como política de desenvolvimento econômico insere-se em

uma lógica que se contrapõe a do agribusiness. A tese de que o Brasil caminha rapidamente

para um processo inexorável de urbanização, segundo Dias (2006), coloca a distribuição de

terras como um anacronismo, em que a mesma não cumpre os seus objetivos sociais e, de

certa forma, atrapalha o desenvolvimento econômico do país.

Por outro lado, a reforma agrária como revolução política de transformação

socioeconômica expressa um processo de enfrentamento permanente. Essa compreensão é

defendida por movimentos camponeses, especialmente os vinculados à Via Campesina. A

posição está fundada na diferenciação do campesinato pela renda capitalizada da terra. Essa é

a essência da questão agrária e sua solução só é possível com a superação do modo capitalista

de produção.

108

Para Oliveira (2009) não se pode confundir reforma agrária e revolução agrária. A

primeira seria um programa de governo, plano de atuação estatal, mediante a intervenção do

Estado na economia agrícola, mas apenas para promover a repartição da propriedade e da

renda fundiária (renovação da estrutura fundiária vigente). Ou seja, a reforma agrária provoca

alterações na estrutura fundiária sem alterar o modo capitalista de produção existente em

diferentes sociedades. Já a revolução agrária implica necessariamente, na transformação da

estrutura fundiária realizada de forma com toda a estrutura social existente, visando à

construção de outra sociedade.

A concepção de reforma agrária que se tem postulado no Brasil, até pelas esquerdas,

e a Constituição consagrou (art. 189), reforça o modo de produção capitalista, na

medida em que se pleiteia a redistribuição da terra em favor de unidade de produção

familiar, o que difunde e consolida a propriedade agrária e cria resistências a uma

transformação de tipo socialista (SILVA, 2005, p. 821).

O MST entende que reforma agrária não é só distribuição de lotes de terra em projetos

de assentamento, que tem sido a política oficial. Por isso, ao lado de um amplo programa

regionalizado de desapropriações, com a célere distribuição para todas as famílias sem terra,

colocam:

As políticas de crédito (democratização do capital); o subsídio para a aquisição de

máquinas e equipamentos; a definição de um limite para a propriedade rural;

proibição de projetos de colonização com transferência de populações, pois esta

acaba revelando-se solução artificiosa e danosa; política agrícola dirigida ao

pequeno produtor (apoio, estímulo, assistência técnica adequada); autonomia para

áreas indígenas, com urgência nas demarcações; áreas de irrigação no Nordeste

(democratização da água e da terra); investigação e punição dos crimes contra trabalhadores rurais; expropriação de áreas onde se constate trabalho escravo;

combate à pobreza e às desigualdades; democratização da educação (STÉDILE,

1993, p. 39-47).

A reforma agrária nos moldes apresentados pelo MST traduz um exercício de

cidadania e uma luta contra a pobreza, fome, desemprego, pela soberania e segurança

alimentares e contra o desrespeito aos direitos humanos.

Como não se restringe ao campo, muito menos é uma necessidade apenas dos sem

terra, camponeses ou trabalhadores rurais, a luta traz a necessária interação com a

cidade – criou-se até mesmo um termo específico, o “rurbanismo”. Por essa razão,

defendem que ela é travada fortemente no campo, mas é ganha nas cidades (OLIVEIRA, 2002, p. 54).

A proposta que aqui se defende, é que ela também engloba a luta pela construção e

concretização de outra concepção do Direito e, por conseguinte, de novas relações jurídicas.

109

Para Carter (2010), por definição, reforma agrária implica o envolvimento do Estado na

reestruturação de relações de direito de propriedade ou, no mínimo, na regulamentação dos

termos de posse no campo, em favor dos trabalhadores rurais. “Na ausência do Estado,

alterações como essas só poderiam ocorrer por meio de guerras, apropriações de terra e outras

expressões de força bruta” (p. 48). O Estado pode, em última instância, legitimar os resultados

dessas lutas, pois toda reforma agrária deve ser sancionada pelo Estado, consoante

expectativas e demandas da sociedade. Por isso, a execução de reformas agrárias implica uma

combinação de impulsos por parte do Estado.

O padrão de modernização neoliberal não abarca o conjunto da sociedade de forma

igual. Embora as diferentes leituras contidas nos projetos políticos e territoriais que acreditam

na agricultura camponesa como modelo de desenvolvimento ou que a vêem como uma

política de controle social do capital percebe-se que os debates são realizados muito mais em

torno de questão e reforma agrária, do que em torno de uma política abrangente que possa

garantir os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo.

A reforma agrária, proposta pelos movimentos sociais, que em principio é um meio

para distribuição igualitária de terra, passa a ser um fim, explorado politicamente pelos meios

de comunicação, entidades da sociedade civil e por alguns políticos. Isso reduz a discussão e

o entendimento sobre a necessidade de uma política efetiva e eficaz que envolve outras tantas

políticas, na perspectiva de garantir o protagonismo da população campesina, que até então

tem uma subordinação à vida urbana.

A Reforma Agrária não deve então ser entendida somente como uma política de

redistribuição de terras, mas sim como uma política necessariamente acompanhada de uma

reforma agrária com profundas transformações nos sistemas de produção, comercialização e

infra-estrutura voltados para a agricultura familiar no País. Agregando ainda o acesso aos

recursos naturais, às tecnologias, ao mercado e, segundo Leite (2006), principalmente à

distribuição do poder político.

Para que a reforma agrária cumpra efetivamente seu papel de mudança no modelo de

desenvolvimento do País é necessário também a construção de outro modelo agrícola,

envolvendo fatores como a viabilidade de sistemas de produção alternativos à agricultura

predominante, o estímulo à estruturação do mercado interno dos produtos agrícolas e a

eficiência de políticas de assistência técnica e preservação ambiental.

110

No traçado do desenho da realidade agrária brasileira, apanhado nos matizes das diversas

correntes teóricas pesquisadas, foi possível perceber que ao longo da história tem persistido a

excessiva concentração de terras, e apesar das lutas que resultaram em alguns avanços, a ausência

de uma efetiva política de reforma agrária tem resultado em graves problemas de distribuição de

renda e justiça social. E constituído-se em óbice ao progresso social e econômico da sociedade.

Por isso, Stédile e Fernandes (1999, p. 162) asseveram que “a reforma agrária deve ser

sintetizada na luta contra três cercas: a cerca do latifúndio, a cerca do capital e a cerca da

ignorância”. Assim, além de democratizar a terra para eliminar a pobreza e a desigualdade, é

preciso também democratizar o capital, os outros meios de produção e a educação.

Miguel Carter (2010), numa abrangente análise dos impedimentos à reforma agrária no

Brasil, destaca que a solidez dessas barreiras que ajudam a sustentar as desigualdades agrárias

no país se relaciona à combinação de quatro características básicas: seus aspectos

multidimensionais, sistêmicos, históricos e políticos. Os dois primeiros elementos apontam

para um conjunto diversificado e inter-relacionado de fatores que funcionam em uma

complexa teia de sinergia. As características históricas e políticas dizem respeito ao impacto

da tradição, a trajetória de desenvolvimento, instituições e práticas que definem a distribuição

de poder na sociedade e na política.

Para esse autor a análise dos obstáculos à reforma agrária no Brasil requer um

entendimento dos níveis e elementos multidimensionais da análise em questão.

Esses diversos obstáculos funcionam de forma sistêmica. Eles não agem em

isolamento, mas estão interconectados de varias maneiras. Assim, eles tendem a

criar um ciclo auto-sustentado que reforça os impedimentos e a resistência à

mudança. Por meio de numerosas afinidades eletivas e estratégicas, eles sustentam

os interesses dos grandes proprietários de terra no Brasil (CARTER, 2010, p. 513).

Os principais obstáculos à reforma agrária no Brasil são também de natureza histórica,

tais como: o modelo de desenvolvimento excludente desta nação, suas acentuadas

desigualdades sociais, a influente classe de grandes proprietários rurais, expansão do

agronegócio, política oligárquica, fraca representação de setores populares na sociedade civil

e política, sistema judiciário conservador e proteção ineficaz do Estado de direitos humanos

que têm profundas raízes no passado do Brasil (CARTER, 2010).

Para esse estudioso da questão agrária, as barreiras à reforma agrária têm ainda um

iminente caráter político. Elas se relacionam a lutas mais amplas de poder na sociedade,

“definidas por configurações de classe e conflitos políticos por acesso à proteção do Estado”

111

(CARTER, 2010, p. 517). Além disso, estão vinculadas a uma série de mecanismos e práticas

convencionais que limitam a representação política dos interesses populares. Entre esses

fatores, podemos salientar a tradição patrimonialista no Brasil; um aparelho burocrático de

Estado fragmentado e politizado; o peso da representação da elite agrária no Congresso; um

sistema partidário fraco; o clientelismo político; a frequente prática de compra de votos; o alto

custo das campanhas eleitorais; e o oligopólio dos meios de comunicação.

Todos esses mecanismos têm reforçado um sistema político no qual predomina como

”um governo dos poucos para poucos” (CARTER, 2010, p. 517). As possibilidades de

impulsionar uma reforma agrária se reduzem de forma previsível quando oponentes

conservadores recorrem a esses e outros instrumentos políticos para abafar as tentativas de

mudanças. Assim, as barreiras à reforma agrária no Brasil têm vínculos estreitos com seus

legados históricos autoritários e patrimoniais.

Mas, com todas essas barreiras será que ainda há alternativas pela via institucional para

alcançar a reforma agrária?

Como afirma Frei Beto (2006) em sua obra “A Mosca Azul” citado por Oliveira (2009):

parece que a sina dos que lutam por uma verdadeira política agrária tem que ser aquela de nunca

perder a esperança. Aliás, como ele mesmo escreveu: “A esperança é um pássaro em vôo

permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe

nenhuma barreira” (p 189). Ou ainda, como diz um trecho da música “O bêbado e a equilibrista”

de João Bosco e Aldir Blanc: “A esperança dança na corda-bamba de sombrinha, / em cada

passo dessa linha. Pode se machucar. Azar! A esperança equilibrista sabe / que o show de

todo artista tem que continuar.”

Afinal, “outro mundo é possível”. A luta pela reforma agrária é um caminho

imprescindível para conquistar este outro mundo. Sua semente está sendo plantada, há

tempos, “por pessoas de carne e osso, imbuídas da inafastável esperança de que o

extraordinário se torne cotidiano e a vida, mais humana” (FERNANDES, 2002, p. 24). É

tarefa utópica, não como algo irrealizável, mas no sentido de que a reforma agrária pode ser

feita através da luta popular.

Nas palavras de Stédile (2002):

E o devir/porvir depende do maior acúmulo possível de reflexões e atuações

transformadoras (práxis), passando, inexoravelmente, pela realização da reforma agrária sendo a história um processo de incertezas (obra de seres humanos), a utopia

ainda faz com que se caminhe e que se acredite (p. 321).

112

É fundamental, portanto, que seja mantida e/ou aflorada à capacidade de indignação e

o inconformismo. Que destino dar então à reforma agrária? A resposta ficará na dependência

daquilo que seus atores puderem concretizar na caminhada histórica pela afirmação e

concretização de direitos,

[...] ou se sucumbe às delícias do mercado diante do aparentemente inexorável

avanço do neoliberalismo ou da neobarbárie, ou então os que estão dispostos a não

sucumbir como indivíduo, como cidadão, como categoria, como classe, retornarão a

empunhar as bandeiras do direito, da liberdade e da igualdade. (PRESSBURGER,

1996, p. 290).

Eis o desafio!

113

CAPÍTULO III

A LUTA PELA TERRA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO NA REFORMA

AGRÁRIA

Evidentemente que só lutam por direitos

aqueles que deles são carecedores [...].

(Miguel Pressburger)

3.1 A luta pela terra como uma reação contra-hegemônica

O presente tópico tem como finalidade apontar movimentos e expressões de lutas que

denunciaram e resistiram às injustiças inerentes ao sistema capitalista, descritos nos capítulos

anteriores e que buscaram, e ainda buscam, a democratização do acesso à terra e melhores

condições de existência no campo, rompendo com as estruturas convencionais. Desafiando e

criando novas formas de organização, os trabalhadores rurais se engajam num novo processo

de luta e conquista da terra.

A luta pela terra remonta raízes no processo histórico de formação da sociedade

brasileira e latino-americana em que grupos alijados e historicamente excluídos

empreenderam diversas formas de resistência, não aceitando, resignada e passivamente, o

“destino” de meros expectadores dos fatos, por mais que a versão oficial insista em reproduzir

relatos de apatia e conformismo. Essa luta de milhões de camponeses manifesta na resistência

contra a perda das condições objetivas, sobretudo a terra.

A luta pela conquista da terra travada pelos pobres do campo contra a classe

latifundiária está presente em todos os momentos de nossa história, desde o remoto

passado até os nossos dias. Ela é o fio condutor ao qual estão ligados todos os

acontecimentos marcantes da vida rural brasileira; é o fator determinante e o

elemento propulsor das insuficientes, mas significativas, transformações por que tem

passado nossa agricultura (GUIMARÃES, 1997, p. 215)

Assim, no limiar do século XXI, a vitalidade da luta pela terra é uma das facetas do

padrão de desenvolvimento concentrador de riqueza que caracterizou a sociedade brasileira. O

tema da reforma agrária continua presente no debate político brasileiro, impulsionado pelas

lutas que se concretizam nos acampamentos e nas ocupações de terra.

Medeiros (2003) aponta que o tema da reforma agrária tem sido cada vez mais

articulado, no debate político, ao das opções em torno de formas de desenvolvimento,

tornando-o uma questão relevante não apenas para o vasto contingente dos que demandam

114

terra, mas também para o conjunto da sociedade. São esses os componentes que tornam a

reforma agrária uma bandeira de luta que ultrapassa fronteiras nacionais e permite a

construção de uma linguagem comum entre povos profundamente diferentes nas suas

histórias e culturas.

No entanto, muitas vezes, no debate político ela acaba sendo apresentada em termos

que reduzem a sua riqueza de significados: Política compensatória, condições para a

ampliação da agricultura familiar, caminho para o combate à pobreza no campo,

inserção de pequenos agricultores de forma competitiva no mercado. A reforma

agrária tem um pouco de cada um desses componentes, mas é também um caminho

para garantir a dignidade a um contingente dos que querem fazer da terra seu lugar

de reprodução (MEDEIROS, 2003, p. 94-95).

Stédile (1993) aponta a luta ampliada por terra e política agrária como uma condição

fundamental para a democracia e transformação social,

trazendo em seu bojo, como vivência ou como potência, valores e princípios, hábeis

a constituir mulheres e homens novos: solidariedade, companheirismo, autonomia,

estudo, trabalho, democracia interna, valorização do coletivo, participação de todos

na tomada das decisões e enfrentamento de todas as formas de desigualdades (p. 56).

Nessa perspectiva, a demanda por reforma agrária é uma das faces da luta contra a

desigualdade econômica, social e cultural e, portanto, uma das ferramentas da construção de

uma efetiva democracia, baseada na possibilidade de contínua expansão e criação de direitos.

Sob essa perspectiva,

sua permanência no vocabulário das lutas sociais deve ser entendida não como o

resquício do velho, mas, por sua plasticidade, como uma palavra capaz de abrigar o

novo. Em nosso país, o velho a ser superado no campo é o recurso à violência, a

formas indignas de trabalho, o não reconhecimento de direitos (MEDEIROS, 2003,

p. 95)

A resistência, individual ou coletiva, à vergonhosa e perversa monopolização da terra,

aos abusos e violações a uma parte considerável da população, aos variados processos de

expropriação, exploração do trabalho rural, violência perpetrada contra camponeses,

trabalhadores rurais e todos os que se opõem às mais variadas formas de injustiças, expulsão

de homens e mulheres do campo, é uma reação contra-hegemônica, desde que se proceda a

uma análise dialética e relacional dos fenômenos, podendo afirmar que, onde há poder,

também há contra poder e onde impera a concentração de terras, irá explodir o seu contrário,

na forma de luta popular (GUIMARÃES, 1997).

115

Longe de aflorar a polêmica sobre a existência, ou não, de um campesinato brasileiro,

nos moldes postos na Europa feudal e moderna, trata-se, sobretudo, de pessoas que vivem do

campo e no campo, ou daqueles que aí desejam voltar. Conforme Silva (2004) há diversas

categorias - proprietários minifundistas, trabalhadores sem terra, assalariados, posseiros,

meeiros - que apresentam, sim, diferenças, mas que empreendem uma luta fundamental, que

os identifica a todos sob a denominação de pobres do campo. Daí porque emprega-se os

termos “camponeses”, “trabalhadores rurais”, “ trabalhadores do campo”, como expressões

sinônimas.

Nesse sentido, Martins (1995) destaca o protagonismo das classes populares do campo

como produtoras de história, refutando-se uma interpretação urbana sobre os movimentos

sociais, arraigada de preconceitos, prenhe de dúvidas sobre sua capacidade organizativa e

sempre identificando o meio rural como lócus do atraso, da ignorância e do entrave às

mudanças, numa patente exclusão ideológica do camponês, como descreve o autor:

Essa exclusão ideológica é tão profunda, tão radical, que alguns dos mais

importantes acontecimentos políticos da história contemporânea do Brasil são camponeses, e, não obstante, desconhecidos não só da imensa massa do povo, como

também dos intelectuais, exceção feita a este ou aquele que por razões profissionais

se vê obrigado a saber de certas coisas (MARTINS, 1995, p. 25-26).

Como exemplo de manifestações coletivas que, ao longo da história nacional,

contribuíram como símbolo e acúmulo de forças (campo de pressão popular), para a formação

dos atuais movimentos de luta pela terra e reforma agrária, dentre os quais destaca-se o

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Corazza (2003) enfatiza: as lutas

indígenas e as lutas negras no período colonial e imperial, os conflitos e revoltas que

abordaram - ainda que indiretamente - a questão agrária, tais como: Cabanagem (no Pará e

Amazonas), Farropilha (no Rio Grande do Sul), Sabinada (na Bahia), Balaiada (no Maranhão,

Piauí e Ceará), Guerra dos Marimbondos (na Zona da Mata de Pernambuco).

Nos anos da República, a autora mencionada destaca as lutas messiânicas, fortemente

marcadas por líderes religiosos, tendo como movimentos mais importantes, com grande

repercussão nacional: os de Canudos (na zona de latifundiários da Bahia) e o Contestado (no

Paraná e Santa Catarina), e ainda a luta do Cangaço11

(no Sertão Nordestino).

11

A discussão mais recente sobre formas de protesto social tem possibilitado uma releitura do ciclo do Cangaço,

que procura negar o caráter criminoso de algumas de suas manifestações, ressaltando o aspecto de ter sido um

movimento agrário em defesa dos oprimidos rurais, que nasceu da disputa pela terra naquela região. Embora essa

perspectiva crítica não desconheça seus aspectos contraditórios, de revolta contra o excesso de pobreza,

116

O período posterior, que se estende até o golpe militar de 1964, é marcado por revolta

de posseiros e arrendatários, em vários Estados, como meio de se contrapor às expulsões e

lutar pela permanência na terra. Os posseiros passaram a resistir, coletivamente, povoando o

período com inúmeras revoltas: em Trombas e Formoso (GO); em Teófilo Otoni (MG); a

revolta de Dona “Noca” (MA), entre outras. Estas lutas, apesar de localizadas, tiveram caráter

de massa e envolveram milhares de pessoas. No “Paraná e Maranhão, elas atingiram um

patamar de grande significado político e de controle camponês sobre áreas liberadas, como a

tomada de cidades e implantação de poderes paralelos” (CORAZZA, 2003, p. 36). Esse

período é também marcado pelas Ligas Camponesas.

As ligas surgem no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, depois se

espalham por diversos outros Estados, já que não eram permitidos sindicatos rurais – o que

mudou depois, com Jango. Até o início dos anos de 1960, juntamente com o Partido

Comunista Brasileiro (PCB), representaram a principal força política no campo, repercutindo

vivamente e abalando os centos do poder, tendo importância crucial na história da luta pela

terra (MARTINS, 1995).

No tema específico da reforma agrária, as Ligas Camponesas passaram a defender que

ela fosse feita e controlada pelos trabalhadores, cunhando um lema que teve impacto

considerável na época: “reforma agrária na lei ou na marra”. Essa bandeira foi tida por

radical, já que conduzia a

uma proposta de revolução camponesa, enquanto que a estratégia do Partido

Comunista caminhava na direção de uma coexistência pacífica com a burguesia, que

deveria resultar numa revolução democrática burguesa (MARTINS, 1995, p. 78).

Em relação ao movimento sindical de trabalhadores rurais, teve grande relevância à

criação da CONTAG, em 1963, que nasceu no interior das ligas camponesas e que também

encapou a luta pela reforma agrária.

Também adquiriu relevo, conforme grifado no primeiro capítulo, a criação da

ULTAB, entidade fundada pelo PCB, em 1963, e que defendeu a modificação da estrutura

agrária brasileira e a organização dos trabalhadores rurais, em aliança com os operários

urbanos; e o MASTER, movimento que surgiu no Rio Grande do Sul, no início da década de

1960, com apoio do governador, Leonel Brizola, e de seu Partido Trabalhista Brasileiro

reparação de injustiças e questionamento do poder dos coronéis, de um lado, e o fato de que muitos grupos

estavam a serviço dos poderosos, de outro; ora estavam próximos do povo, ora dos coronéis (STÉDILE, 1993, p.

18).

117

(PTB), quando posseiros foram despejados e começaram a acampar próximo aos latifúndios

improdutivos, pedindo a desapropriação do imóvel. Esse movimento inaugurou uma forma de

luta que é a principal tática dos movimentos de hoje: a ocupação de terras e o acampamento,

como meios de pressão, visando a reforma agrária (MARTINS, 1995).

Para esse autor, mesmo com o refluxo dos movimentos, a resistência não deixou de

existir e se manifestou nos mais diversos setores que, após os primeiros revezes, voltaram a se

mobilizar e pressionar, tendo a reforma agrária como mote. A retomada das lutas sociais no

campo e o surgimento de outros movimentos populares e sindicais (metalúrgicos do ABC, por

exemplo), e a criação da CPT (1975) inseriram-se num espectro maior de lutas, tendo em mira

a redemocratização do país.

Além dos movimentos e organizações sindicais, a reforma agrária era reivindicada e

debatida por outras entidades, como a ABRA, que reunia técnicos, intelectuais, professores

universitários. Segundo Stédile, (2002, p. 310-311) a igreja progressista teria ocupado posição

de destaque na zona rural, naquele momento, pois ela era o único ator progressista de alcance

nacional.

A partir de 1978, cresce o número de manifestações, conflitos e lutas, em todos os

estados, aumentando, também, o número de ocupações de terras, com algumas conquistas. Já

no início da década de 1980, passam a ocorrer encontros entre as lideranças dessas

experiências localizadas, mediados pela CPT, o que vai dar base para a realização do I

Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel-PR, no ano de 1984, quando

ocorreu a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O lema desse

encontro foi: “Terra não se ganha, se conquista” (MARTINS, 1995, p. 103).

Vale lembrar que, com a derrocada do regime militar, os movimentos sociais, até

então amordaçados, se rearticularam inaugurando uma nova fase na luta pela terra no Brasil.

Esta luta adquiriu solidez após 1985, com a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST), que se tornou o maior movimento social organizado do país.

O MST passou a lutar contra o modelo de desenvolvimento econômico hegemônico,

ou seja, contra o capital mundializado, construindo sua organização e formas de atuação.

Como bem assinala Fernandes (2000), este movimento tem como principal referência a luta

pela terra, uma importante dimensão da questão agrária, mas sua luta envolve também

questões relacionadas à conquista da terra, aos recursos para viabilizar o projeto de

assentamento e à reprodução dos assentados.

118

Assim, a luta do MST não se circunscreve apenas à terra, embora esta seja a principal

reivindicação posta em evidência. O Movimento, em seu processo evolutivo, transferiu o

enfoque da luta pela terra à construção de uma sociedade superior, mais justa e igualitária.

Voltou-se para o desenvolvimento de uma nova forma de produção da vida, fundamentada em

relações de produção, nas quais os trabalhadores controlam o processo produtivo, em especial

aquelas que contemplam o trabalho coletivo. Esta concepção depreende-se do fato de que o

processo de reconstrução da sociedade está intimamente ligado às relações de produção

estabelecidas, tendo como premissa que o modelo de produção capitalista é gerador de

desigualdades e, portanto, amplia a divisão entre as classes sociais (FERNANDES, 2000).

Este postulado fundamenta-se na tese marxista de que no processo de produção e

reprodução da sociedade burguesa, através da produção de mais-valia, se produz

concomitantemente os elementos necessários à superação do modo de produção capitalista.

Nas palavras de Stédile (2002) a produção e reprodução da sociedade capitalista constituem-

se no tempo e no espaço de negação do capitalismo, com a degeneração do trabalho

individual enquanto fonte da vida e sua substituição pelo trabalho social, ou seja, coletivo.

O MST constitui-se numa das expressões da degeneração da sociedade capitalista,

pois, unifica em torno de um objetivo comum pessoas excluídas por aquele sistema. A

crescente acumulação de riquezas nas mãos de poucos (os capitalistas) é responsável pelo

aumento da exclusão social de muitos (os trabalhadores). Para Fernandes (2000), como os

trabalhadores representam o fundamento da existência da sociedade burguesa, a crescente

impossibilidade de se reproduzir, caracteriza a negação do próprio sistema.

[...] A negação da sociedade capitalista pelo socialismo não significa supressão da sociedade humana, mas apenas a supressão de certos aspectos determinados de uma

das fases de sua evolução. E também não significa de modo algum a supressão de

todos os aspectos que distinguem a sociedade capitalista da forma social que a

precedeu [...] (KAUTSKY, apud STÉDILE, 2005, p. 221).

Analisando o MST, Fernandes (1999) reforça que este Movimento enseja a

possibilidade de ruptura com o sistema capitalista que o criou. Sua formação, ao estar

imbricada com a conscientização2 da condição de marginalização, impõe a conscientização da

possibilidade de transformação da estrutura agrária vigente e, em conseqüência, da sociedade

e do espaço. Estas modificações estão no seio da luta entre classes, representada no campo

brasileiro pelos sem terra, pequenos produtores rurais, grandes proprietários e Estado.

Corroborando com Fernandes, Coelho (1996) afirma:

119

As lutas de classe são [...] expressões das rupturas dos velhos arranjos de poderes e a

emergência de novos, que aí tentam se impor [...], determinando assim uma

(re)organização do território (p. 257).

Souza (1998) defende a tese de que os movimentos sem terra são movidos por um

critério próprio do justo e do jurídico, obtido em oposição às situações de injustiça e de

negação de direitos que sofrem – sentem e sabem muito bem, o quanto são injustiçados,

preteridos e excluídos. Injusta é a concentração de terras, a violência que sofrem, os mandos e

desmandos, o descaso ou apatia dos órgãos governamentais. Justa é a luta pela superação

desse estado de coisas.

Por essas características, o MST desponta como importante ator na cena política atual,

organizando os destituídos de terra e dignidade. Muitos de seus membros são filhos de

famílias camponesas, que tiveram de sair das terras e para elas querem voltar, outros

enxergam no movimento uma oportunidade para fugir das agruras do desemprego e da

exclusão.

A luta pela reforma agrária põe à mostra as injustiças sociais que campeiam na

concentrada estrutura fundiária brasileira. Mas, mais do que isso, é uma luta pela

inclusão social, pela possibilidade da participação produtiva e criativa, na sociedade,

dos que dela têm sido sistematicamente excluídos por um processo econômico

perverso e pela dignidade da pessoa humana (ALFONSIN, 2003, p.288).

Mas, o surpreendente sucesso do Movimento está estreitamente ligado à sua

capacidade de se engajar em uma forma particular de luta social: o ativismo público. Como

Carter (2010) explica:

Essa abordagem à luta social envolve uma forma organizada, politizada, visível,

autônoma, periódica e não violenta de assumir o caráter social. O objetivo é atrair a

atenção pública, influenciar as políticas do Estado e persuadir outros atores sociais.

O ativismo público combina ações de pressão sobre o Estado, amparadas em um

amplo repertório tático de contestação, e o empenho recorrente por negociar com

suas autoridades. O ativismo público do MST tem sido fundamental para o

restabelecimento da reforma agrária na agenda pública do Brasil. Ele teve papel

decisivo na criação de mais de 2.000 assentamentos agrícolas ligados ao MST, entre

1985 e 2008, beneficiando cerca de 40.000 mil famílias. [...]. Ademais, a política de

pressão e atividades de lobby do MST contribuíram de modo significativo para uma distribuição sem precedentes de recursos públicos à população pobre do campo, por

meio de compra de terra, programas de crédito para a produção agrícola, moradia e

projetos educativos, o desenvolvimento da infraestrutura rural, à assistência técnica

e a criação de cooperativas [...].

120

Ao contrário da opinião de seus críticos conservadores, a adoção do ativismo público

por parte do Movimento tem, na realidade, contribuído para o avanço da democracia no Brasil

ao:

Fortalecer a sociedade civil brasileira através da organização e incorporação de

setores marginalizados da população; promover um processo civilizador no campo

[...]; realçar a importância do ativismo público como catalisador do desenvolvimento

social [...]; facilitar a extensão e o exercício dos direitos básicos de cidadania (

direitos civis, políticos e sociais) entre os pobres; salientar a responsabilidade vital

do Estado para a proteção dos direitos humanos e a promoção de reformas que

acrescentem a igualdade social; destacar o valor da educação [...]; gerar um sentido

de utopia, esperança e afirmação de ideais que impregnam o processo de democratização do Brasil [...].

Desta feita, a luta pela reforma agrária no Brasil sugere que o ativismo público pode se

revelar um instrumento indispensável para reduzir a desigualdade em sociedades marcadas

por disparidades extremas no acesso à riqueza e ao poder. Tudo isso implica também que a

tentativa de “promover reformas só por meios afáveis, institucionalizados e de cima para

baixo muito provavelmente acabam em promessas vazias ou iniciativas inócuas” (CARTER,

2010, p. 517).

O sem terra é o indivíduo (ser) com suas aptidões, expectativas, sonhos, força e

fraquezas, mas também é o militante, o componente de um movimento social (ser social e

político), cuja identidade é moldada na persecução daqueles objetivos, nas histórias de vida,

nas relações que travam (com a terra, com companheiros, com adversários, com o sistema

capitalista), nas ocupações, acampamentos, assentamentos e confraternizações. Em síntese,

“na própria caminhada de expropriação, exploração, resistência e tentativa de superação”

(BORGES, 1997, p. 17; SADER, 1988, p. 55-56).

Como bem analisa Alfonsin (2003):

O “sem” de sua denominação denota, sim, o que eles não têm, mas, ao mesmo

tempo, mostra aos que têm direito, justamente o acesso à terra e à vida com

dignidade no campo. Estes são direitos humanos fundamentais, não porque

encontram respaldo numa ordem natural, superior, imutável, muito menos porque se

encontram previstos em declarações de direitos ou constituições, mas porque são

aspirações legítimas, que viabilizam a existência humana (301).

A luta pela materialização e fruição dessas aspirações, fundada numa concepção

concreta de justiça – nenhum trabalhador sem terra e nenhuma terra sem trabalhador – tem

como conseqüência, a instituição de direitos, que adquirem maior substrato, na medida em

que se afirmam e se renovam em outras e sucessivas lutas. A luta pelo direito a ter direitos,

121

consubstanciada nas ocupações de terras e outros meios coletivos de pressão e protesto social,

cria direitos e é condição para sua efetivação (ALFONSIN, 2003, p. 301).

Stédile e Fernandes (2004), a exemplo de Martins, têm demonstrado que as lutas

camponesas ultrapassam a simples demanda por terra porque são lutas pela libertação e

emancipação humanas. Estas lutas em busca de sobrevivência e reprodução social não se

restringem à dimensão econômica, mas incluem demandas por saúde, educação, justiça, paz.

São lutas que reivindicam integração política, [de] emancipação, (isto é, de libertação

de todos os vínculos de dependência e submissão), [de] reconhecimentos como

sujeitos de seu próprio destino e de um destino próprio, diferente, se necessário

(Martins, 1994, p. 159), possibilitando processos sociais e políticos de recriação do

rural e de uma nova realidade (Martins, 1994, p. 159).

No contexto de globalização, a luta pela terra materializa a luta por um lugar,

buscando melhores condições de vida (cidadania) e transformando as conquistas em

processos de apropriação de territórios, ou seja, em reterritorializações. As mobilizações,

articulações e lutas dão protagonismo social e político às organizações agrárias. Martins

(1994) enfatiza que este protagonismo representa também um processo pedagógico que

transforma as pessoas em atores e sujeitos de suas próprias biografias. Isso faz dessa luta um

movimento moderno que permite releituras e consolidação de novos valores no meio rural, o

que não dilui diferenças, mas estabelece novas inter-relações entre campo e cidade.

Para Stédile (2002) as políticas de distribuição fundiária foram sempre precedidas por

ocupações de terra e outras táticas de pressão por parte dos camponeses, entre elas: as

manifestações massivas e diretas, na forma de ocupações de terras, praças e prédios públicos,

acampamentos, assentamentos, marchas, caminhadas, passeatas, bloqueios de rodovias, entre

outras, almejando estabelecer um contato com a sociedade (mostrar que existem e têm

problemas) em um canal de diálogo e negociação com as autoridades, para acelerar os

trâmites e obter o acesso à terra, que só é conquistada após intensa e vigorosa pressão.

Ao apresentar a ocupação como forma de acesso a terra, esta é compreendida como

ação de resistência essencial à formação campesina no interior do processo contraditório do

desenvolvimento do capitalismo. Sobre isto afirma Oliveira (1991):

O Capital não expande de forma absoluta o trabalho assalariado, sua relação de trabalho típica, por todo lugar, destruindo de forma total e absoluta o trabalho

familiar campesino. Ao contrário, este, o capital, se cria e recria para que sua

produção seja possível, e como ela pode ter também uma criação, de novos

capitalistas (p.20).

122

As ocupações de terras no Brasil têm sido uma das principais vias de acesso à terra

que os camponeses sem terras encontraram nas últimas décadas.

No Brasil, a ocupação se converteu em uma forma importante de aceder a terra. Nas

últimas décadas, a ocupação de latifúndios tem constituído a principal ação na luta

pela terra. Por meio das ocupações, os sem-terra espacializam a luta, conquistando a

terra e territorializando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(FERNANDES, 2000, p. 46).

Sobre o processo de ocupações de terra, no qual as famílias organizam o espaço de

luta e resistência para a conquista da terra, Fernandes (2000) explicita:

A ocupação é uma ação que inaugura uma dimensão do espaço de socialização

política: o espaço de luta e resistência. Esse espaço construído pelos trabalhadores é

o lugar da experiência e da formação do Movimento. A ocupação é o movimento.

Nela fazem-se novos sujeitos. A cada realização de uma ocupação de terra, cria-se

uma fonte geradora de experiências, que suscitará novos sujeitos, que não existiram

sem essa ação. A ocupação é a condição de existência desses sujeitos. Ao conceber a

ocupação como fato, esses sujeitos recriam a sua história. Não concebê-la é não ser

concebido. Com a ocupação cria-se a condição nova para o enfrentamento. Na realização da ocupação, os sem terra, sem, ainda, conquistarem a terra, conquistam o

fato: a possibilidade de negociação [...] (p. 45).

As ocupações representam a materialização das ações dos movimentos sociais, em

particular do MST, uma vez que lhes dão notoriedade perante a sociedade como um todo. Por

outro lado, possuem ainda outro significado que diz respeito à intervenção direta no espaço,

alterando as relações de poder que o permeiam,constituindo-se assim um espaço de luta e

resistência pelo direito de acesso à terra.

Da tentativa das ocupações resultam os acampamentos e, posteriormente, os

assentamentos que inauguram o processo de territorialização da luta contra as grandes

unidades de produção e a monocultura de exportação. Nesse mesmo sentido, Medeiros (2004)

afirma:

Através da ocupação de latifúndio e terras devolutas, a estrutura organizada do

espaço se transforma. Entram em cena novas formas de gestão do território: os

acampamentos e assentamentos rurais (p.65)

A ocupação transforma a paisagem, mobiliza a opinião pública, cria o conflito. É um

processo longo, com despejos, reintegração de posse, mudança de local, negociação entre

fazendeiros, sem terra, e Estado.

Ainda com relação o processo de ocupação de terra, Fernandes (2000) acresce que

esse é um momento de manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos, é efetivamente

123

um espaço de luta e que busca, fundamentalmente, a garantia de sua sobrevivência como

sujeito histórico. Assim:

O acampamento é na sua concretude o espaço de luta e resistência, é quando os

trabalhadores partem para o enfrentamento direto com o Estado e com os

latifundiários. O acampamento é a ocupação do latifúndio, cujas conseqüências são

imprevisíveis. Neste espaço está colocada em questão a luta e, portanto, o

enfrentamento com Estado, por intermédio da negociação política, e com os

latifundiários, pelo conflito direto. Dependendo da formado encaminhamento e da relação de poder entre as forças políticas vão se dar diferentes situações de luta.

Com relação ao Estado acontece o despejo. Frequentemente, por meio do uso da

violência pela força policial. Com relação os latifundiários o enfrentamento violento

contra jagunços contratados para fazerem o serviço [...]. É um confronto violento

que as famílias acampadas procuram resistir de diferentes maneiras para não sair da

terra. Esta resistência pode ser desenvolvida a partir da (re)criação de forma da luta

popular e de pressão política aos parlamentares e ao governo, para lutar política e

juridicamente contra seus inimigos. Em último caso, tentar ampliar o prazo da

liminar de reintegração de posse ao latifundiário. Contudo, o despejo é, quase

sempre, iminente. Mas o despejo não significa o fim. O acampamento é removido

para a beira de uma rodovia, de onde se reiniciam as negociações no plano político, jurídico e social (FERNANDES, 1996, p. 238-239).

Os acampamentos configuram-se em espaços e tempos de transição na luta

pela terra, pois além de espaços de politização e socialização, criam pontos de tensão. Deste

modo, as ocupações e os acampamentos se tornam a principal forma de pressão sobre os

órgãos governamentais, no que concerne à agilização dos processos de desapropriação e

constituição dos assentamentos. Não se pode esquecer que as iniciativas governamentais no

sentido de resolver a problemática da terra, em geral, são emergenciais, ou seja, “pontuais,

dispersas, desarticuladas, [...] segundo a gravidade dos conflitos existentes [...]”

(MEDEIROS, 1998, p.56).

A principal causa de que faz o acesso a terra ser por vias das ocupações, é o

comportamento dos governos, tanto a nível federal quanto estadual, com as políticas de

reforma agrária, representado por um comportamento inerte diante do processo de

democratização do acesso a terra. Isso tem colocado na marginalidade social milhões de

camponeses e, consequentemente, também tem colaborado para o acirramento dos conflitos

no campo envolvendo os camponeses sem terra e os proprietários das terras em disputa,

contribuindo, assim, para o aumento das estatísticas da violência no campo. “Eles são a

expressão local e específica do conflito capital x trabalho e a concretização da resistência à

exclusão social e espacial” (FERNANDES, 2001, p.68).

Stédile em entrevista a Bernardo M. Fernandes (1999) destaca como passo

fundamental na caminhada dos movimentos sem-terra foi ter compreendido o processo de

124

ocupação como forma de pressionar para que sejam aplicadas, as normas que dispõe sobre

reforma agrária.

Se não ocuparmos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que

só houve desapropriações quando houve ocupação. É só comparar [...]. A lei só é

aplicada quando existe iniciativa social, essa é a norma do direito. Nossos alunos

aprendem isso no primeiro dia de aula. A lei vem depois do fato social, nunca antes.

O fato social na reforma agrária é a ocupação, as pessoas querem terra, para depois

se aplicar a lei. Nesse sentido, o sociólogo Fernando Henrique tem consciência. Ele afirmou: „Eu não condeno o movimento de vocês. É justo. Se não fizer pressão, não

sai‟ (STÉDILE apud FERNANDES, 1999, p. 115).

Esta omissão do Estado e sua atuação apenas sob pressão, no sentido de

resolver o problema agrário, se deve aos interesses por ele representados. Gonçalves Neto

(1997, p.13) expõe claramente que, em sendo o Estado o “guardião da ordem dominante”,

seus interesses serão os interesses da classe dominante, não da sociedade como um todo. Se

em algum momento o poder público contraria estes interesses, o faz conforme já referido, a

partir da mediação do confronto.

O espaço de luta e resistência é fundamental para apreender que a ocupação é um dos

principais momentos da luta pela terra, com forte impacto socioterritorial. Pode-se afirmar,

sem receio, que a conquista da terra guarda proporção direta com o número de ocupações.

Dados do Incra (2006) confirmam que a maior parte dos assentamentos de reforma agrária

teve origem em ocupações. A mesma conclusão é referendada pelos estudos realizados por

Oliveira em (2009, p. 145).

Fernandes (1996) ao situar a luta pela terra, além de reforçar a importância das

ocupações classifica este processo como o primeiro processo de impacto socioterritorial. O

segundo começa com a conquista da terra, com os assentamentos rurais. A criação e o futuro

do assentamento remontam suas raízes neste processo, onde as famílias passam fome,

enfrentam a polícia, os jagunços, a justiça e a discriminação por grande parte da sociedade.

A luta pela terra é um processo complexo que assume diferentes formas. Situa-se

dentro do contexto da luta pelo espaço e pela ruptura do poder de poder. Nessa medida, a

conquista do espaço liga-se à procura da identidade social.

Os acampamentos e assentamentos são lugares essenciais no processo de constituição

de identidade e re-significação do mundo. “A diferença mais significativa entre estes dois

lugares é terra, ou seja, o sonho e o desejo da terra (acampamento) e a realidade do acesso à

mesma (assentamento)” (SAUER, 2003, p. 21). O acesso a esta transforma a realidade e a

125

identidade dos sem terra em pessoas com terra, gerando diferenças nas formas de organização

e demandas políticas, sociais e econômicas. Nestes espaços diferentes biografias se encontram

e iniciam novos processos de interação e identidade sociais.

Nessa mesma linha de pensamento, Borges (1997) acrescenta que no decorrer do

processo de ocupação-desocupação-reocupação da terra, os trabalhadores se afirmam

politicamente a partir da luta, processo em que têm a oportunidade efetiva de reconhecer o

outro, constituindo-se, então, o novo sujeito coletivo – o trabalhador sem-terra, o trabalhador

acampado, o trabalhador assentado, enfim, “aquele que tendo a terra como seu ponto de

partida, a descobre e conquista, finalmente, como ponto de chegada” (p. 29).

O processo de luta e a construção simbólica colocam a terra (acampamentos e

assentamentos) como um lugar de vida, uma moradia, capaz de acolher e dar sentido à

existência. Para Sauer (2003) diferentemente dos processos de deslocamento do espaço do

lugar, a terra é representada como um local, geograficamente localizado, que possibilita

trabalho e moradia. Representada como lugar de morada, a terra se transforma em símbolo de

fartura e garantia de futuro, materializando a possibilidade de reprodução social. “A terra

comparece como um meio de subsistência para o trabalhador do campo, sendo concebida

enquanto terra de trabalho” (p. 21).

Entretanto, para Stédile (2003) a obtenção da terra (lote) não extingue a luta, tanto é

assim que os assentados continuam integrando os movimentos sociais rurais e apoiando suas

ações. As pressões e protestos dos movimentos populares sobre o Estado, melhor dizendo,

sobre os governantes, continuam no sentido de cobrar maiores compromissos com esses

setores, na direção da diminuição das carências e atendimento das demandas, através do

estabelecimento de políticas públicas e o alargamento dos espaços de participação e de

definição de diretrizes e projetos sociais. Continuam procurando o enfrentamento público

objetivando o potencial apoio do restante da sociedade.

Afinal, ao ocuparem terras, os trabalhadores não estão violando ou negando o direito

de propriedade privada. Os sem terra também sonham com um pedaço de chão, mas repudiam

a propriedade privada, que permite a concentração, que exclui e inviabiliza uma existência

digna para a ampla maioria.

Concluindo esse tópico, vale à pena recorrer a um trecho da Carta de Alforria do

Camponês, escrita por Francisco Julião (1961), presidente de honra das Ligas Camponesas de

Pernambuco, ao afirmar:

126

Muitos são os caminhos que te levarão à liberdade. Liberdade quer dizer terra. Quer dizer pão. Quer dizer casa. Quer dizer remédio. Quer dizer escola. Quer dizer paz.

Eu te apontarei esses caminhos. Mas eu te digo e repito: não adianta a viagem se tu

fores sozinho. Convida seu irmão sem terra ou de pouca terra. E pede que ele

convide outro. No começo serão dois. Depois, dez. Depois, cem. Depois, mil. E no

fim serão todos. Marchando unidos. Como unidos vão à feira, à festa, à missa, ao

culto, ao enterro, à eleição. Digo e repito: a união é a mãe da liberdade. São muitos

os caminhos por onde poderás viajar com os teus irmãos. Eles começam em lugares

diferentes, mas vão todos para o mesmo lugar. Que caminhos são esses? Esses

caminhos são: 1) A democracia para o camponês. 2) O sindicato para o camponês.

3) A cooperativa para o camponês. 4) Uma lei justa e humana para o camponês [...].

(p.71-72).

3.2 Os Projetos de assentamentos na reforma agrária

A omissão do Estado e sua atuação apenas sob

pressão, para resolver o problema agrário, se deve aos

interesses por ele representados. [...]. Sendo o Estado o

guardião da ordem dominante, seus interesses serão os

interesses da classe dominante, não da sociedade como

um todo. Se em algum momento o poder público

contraria estes interesses, o faz a partir da mediação

do confronto.

Leonilde Medeiros

O Estado constitui-se no mediador da luta entre os diferentes segmentos sociais. O

poder público é o veículo pelo qual a sociedade transforma o espaço segundo interesses

específicos, aperfeiçoando continuamente as formas materiais e sociais de uso dos territórios.

Todavia, estas transformações, por vezes, apresentam resultados que exigem a reformulação

dos fins almejados, em vista da pressão advinda dos diferentes grupos sociais (ANDRADE,

1984).

No caso do campo brasileiro, a atuação do Estado se processa a partir da “mediação”

do confronto entre a elite agrária (grandes produtores rurais), os movimentos sociais (os

trabalhadores sem terra). Assim, pode-se dizer que os assentamentos resultam desta mediação.

Sua criação, aparentemente, encerra um ciclo, porém inicia outro, o de luta pela permanência

na terra, inaugurando o processo de construção de um novo território no espaço rural.

Neste novo embate, os sem terra iniciam um longo processo de estruturação do

assentamento, no qual, por vezes, travam-se disputas quanto à forma de organização da

produção no seu interior e à divisão dos lotes. Não obstante, a ausência de recursos e demora

127

na liberação dos financiamentos do governo federal, dificulta e retarda a estruturação

socioeconômica e produtiva dos assentados. Além destes aspectos, ainda há a necessidade de

encontrar canais de inserção no mercado, bem como obter o reconhecimento e respeito da

população local (SAUER, 2003).

No estudo sobre os impactos dos assentamentos no meio rural brasileiro, Leite (2004)

assim analisa:

A existência dos assentamentos como unidades territoriais e administrativas resulta

numa ampliação das demandas e infra-estrutura e em pressão sobre os poderes

políticos locais, estaduais e federal. Ao mesmo tempo em que podem ser visto com o

“ponto de chegada” de um processo de luta pela terra, os assentamentos tornam-se

“ponto de partida” para uma nova condição de vida, onde muitas vezes tudo está por

fazer, desde a organização do lote e construção do local de moradia até toda a infra-

estrutura coletiva e de serviços necessária à viabilização econômica e social das

novas unidades de produção familiar criadas. (p.79).

A experiência de luta pela terra, a existência do assentamento como espaço de referência

para políticas públicas, a precariedade de infra-estrutura, entre outros fatores, fazem então com

que os assentamentos tornem-se

ponto de partida de demandas, levando à afirmação de novas identidades e

interesses, ao surgimento de formas organizativas internas e também mais amplas e

à busca de lugares que se façam ouvir (LEITE, 2004, p. 258).

As famílias assentadas imprimem nessa nova área relações sociais próprias, distintas

daquelas existentes, até então, desenvolvem relações não capitalistas, construindo assim, seu

território através da prática dessas relações nessa porção de espaço.

A criação dos assentamentos gera uma nova organização social, econômica e política.

Segundo Martins (2000), os projetos de assentamentos são “uma verdadeira reinvenção da

sociedade como uma clara reação aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da

própria modernidade” (p. 46).

Nessa mesma perspectiva, Carvalho (1999) trata os assentamentos como um processo

social inteiramente novo ao enfatizar:

Nesse espaço físico, uma parcela do território rural, plasmar-se-á uma nova

organização social, um microcosmo social, quando o conjunto de famílias de

trabalhadores rurais sem terra passarem a apossarem-se formalmente dessa terra.

128

Esse espaço físico transforma-se, mais uma vez na sua história, num espaço econômico, político e social (CARVALHO, 1999, p. 7).

Pensados como “encruzilhadas sociais” (Carvalho, 1999), os acampamentos e

assentamentos são lugares de sociabilidade, diferenciados entre si basicamente pela

oportunidade de acesso à terra. “As experiências de luta, privações, desejos e sonhos –

associados às histórias de vidas, verdadeiros itinerários biográficos de deslocamentos em busca

de sobrevivência – forjam novas identidades e perspectivas de vida” (p. 49).

O assentamento aparece na política de reforma agrária como principal instrumento de

democratização e acesso a terra. Para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA), o assentamento rural é considerado como:

Retrato físico da Reforma Agrária. Ele nasce quando o INCRA, após se imitir na

posse da terra (recebê-la legalmente) transfere-a para trabalhadores rurais sem terra a

fim de que a cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico. O

assentamento é, portanto, razão da existência do INCRA. (s.d. p.02).

No entanto, podemos caracteriza o assentamento rural a partir de duas perspectivas, a

primeira como um decreto governamental, fruto de um ato administrativo; Na segunda

perspectiva, analisa-se o assentamento como resultado de uma conquista dos trabalhadores

sem terra diante o latifúndio, ou seja, resultado de um conflito de classes.

Segundo Sauer (2005), o assentamento é um espaço, geograficamente delimitado, que

abarca um grupo de famílias beneficiadas por programas governamentais de reforma agrária.

Nesse sentido, a constituição do assentamento é resultado de um decreto administrativo do

governo federal que estabelece condições legais de posse e uso da terra. Logo, o assentamento

é fruto de um ato administrativo que limita o território, seleciona as famílias a serem

beneficiadas, etc., sendo, portanto, artificialmente constituído, criando um novo ambiente

geográfico e uma nova organização social.

A criação do assentamento é, por outro lado, produto de conflitos, lutas populares e

demandas sociais pelo direito de acesso à terra. A mobilização e organização sociais, o

enfrentamento com os poderes políticos locais e nacionais, as disputas com o latifúndio e com o

estado e os questionamentos das leis de propriedade são capazes de estabelecer territórios,

delimitar regiões, criar fronteiras (BOURDIEU, 1998, p. 113).

O significado dos assentamentos para os trabalhadores sem terra é a reterritorialização,

uma vez que estes se constituem em território conquistado. Em contrapartida, como o

129

território é conquistado normalmente em áreas onde predomina a grande propriedade,

demarcam claramente os limites entre o espaço dos assentados e dos grandes produtores

rurais. Assim, nas palavras de Souza (1995, p. 86), “o assentamento delimita [...] a diferença

entre „nós‟ [...] e os „outros‟[...]”.

Sauer (2003) também chama a atenção para a importância das fronteiras dos

assentamentos em sua delimitação com o restante do espaço agrário.

A luta pela terra é um processo social de reforço de vínculos locais e de relações de

pertencimento a um determinado lugar, se constituindo em um processo de

reterritorialização que situa as pessoas em um espaço geograficamente bem

delimitado. O assentamento (e as próprias parcelas e lotes) é caracterizado por

limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas sociais que dão identidade e sentimentos de familiaridade a seus habitantes [...]. (SAUER, 2003, p. 19).

Estes limites e fronteiras aparecem claramente na forma de ocupação do espaço. O

autor referido identifica o espaço da grande exploração como um “não-lugar” ou um “vazio

identitário” (SAUER, 2003, p, 12), pois materializa a ausência a partir da exclusão social e da

marginalização. Nesta perspectiva, enfatiza o papel dos assentamentos na construção de um

novo território no espaço rural, enquanto contextura da prática social. Os assentamentos são

espaços singulares que possibilitam a resignificação do lugar.

O estabelecimento de fronteiras geográficas, segundo Bourdieu (apud, Nogueira,

2004) é uma definição legítima e um resultado das lutas pelo “poder de ver e fazer crer,

produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na realidade” (p. 12).

Este poder estabelece divisões do mundo social, cria diferenças culturais e geram identidades

permitindo tratar as áreas de assentamento como realidades distintas. Portanto, como unidades

de análise, um objeto peculiar de estudo.

No entanto, esta distinção não significa isolamento das relações sociais e políticas

locais e regionais, ou seja, os estudos sobre assentamentos rurais de reforma agrária devem

ser feitos considerando os contextos sociais, políticos, econômicos, incluindo processos

históricos de constituição dos projetos e de inserção no seu entorno, pois segundo Leite:

Os assentamentos tendem a promover um rearranjo do processo produtivo nas

regiões onde se instalam, muitas vezes, caracterizada por uma agricultura com baixo

dinamismo. A diversificação da produção agrícola, a introdução de atividades mais lucrativas, mudanças tecnológicas, refletem-se na composição da receita dos

assentados afetando o comércio local, a geração de impostos, a movimentação

bancária, etc., com efeitos sobre a capacidade do assentamento se firmar

politicamente como um interlocutor de peso no plano local/regional (2000, p. 48).

130

Por isso, os assentamentos apresentam-se como elementos reestruturadores do campo,

pois, à medida que novos assentamentos são organizados, se estabelecem novas formas de

produção, novas práticas e novas formas de organização do trabalho. Medeiros (1998)

assinala que os assentamentos têm se constituído como laboratórios de experiências sociais.

Além de dinamizarem o debate sobre as perspectivas futuras do meio rural, eles têm

embasado a discussão a respeito de um novo modelo de desenvolvimento fundado na unidade

de produção familiar.

Desta maneira, os assentamentos indicam uma tendência de (re) organização do

espaço agrário. Esta tendência é apontada por Sauer (2003, p. 20) quando afirma que a criação

dos assentamentos gera uma nova organização social, econômica e política.

Entretanto, o autor afirma que a concretização destas perspectivas requer a

continuidade da luta, porém, agora, uma luta por políticas públicas voltadas para a pequena

produção, uma luta por novas alternativas de renda e por novas formas de produção. É com

base nesta luta que se estrutura o novo território, que se convencionou chamar de território

dos assentamentos ou território dos assentados.

Os assentamentos constituem-se, pois, em territórios que iniciam uma nova dinâmica

de apropriação do espaço, onde o elemento social é priorizado. Esta característica se apresenta

sob diferentes aspectos, seja na resolução, mesmo que em parte, do problema da concentração

fundiária, seja na busca por novas formas de organização do trabalho e da produção.

De acordo com Nogueira e Garcia (2009) pode-se dizer que:

[...] a construção/reconstrução de seu espaço social [dos assentados] constitui-se num novo modo de vida, que se dá tanto a partir dos referenciais que cada assentado

traz em sua história de vida, como a partir de referenciais coletivos reelaborados na

luta pela conquista da terra, de forma que o assentamento continua a ser espaço de

recriação cultural, de continuação e emergência de uma nova cultura política e,

acima de tudo, por ser um espaço de vivência de relações sociais diferenciadas e por

desenvolver no cotidiano concreto fragmentos significativos de uma nova sociedade

modificada, torna-se uma força instituinte no social-histórico, possibilitando a

instituição de um novo modo de viver no campo (11).

Os assentamentos promovem então, em primeira instância, um reordenamento do uso

da terra. Decorre da criação do assentamento, com a divisão da terra em pequenas unidades de

produção, uma redistribuição fundiária.

As transformações decorrentes da organização dos assentamentos são notáveis de tal

forma que Leite (1998) as denominou de impactos dos assentamentos. O simples ato de

criação do assentamento altera as relações de poder local. Mesmo que haja adesão ao modelo

131

produtivista, o assentamento promove um rearranjo do processo produtivo, a produção se

diversifica e novas atividades são introduzidas. Além disso, pode-se constituir o

associativismo e se formar cooperativas. Esses fatores, em conjunto, afetam a dinâmica do

comércio local, a movimentação bancária, a arrecadação municipal, entre outros. Deve-se

considerar também a importância da produção de subsistência para o consumo dos

assentados.

De acordo com as diretrizes estabelecidas no II Programa Nacional de Reforma

Agrária implantado em 2003, o que se busca com a reforma agrária atualmente desenvolvida

no País é a implantação de um novo modelo de assentamento, baseado na viabilidade

econômica, na sustentabilidade ambiental e no desenvolvimento territorial com a adoção de

instrumentos fundiários adequados a cada público e a cada região; a adequação institucional e

normativa a uma intervenção rápida e eficiente dos instrumentos agrários; o forte

envolvimento dos governos estaduais e prefeituras; a promoção da igualdade de gênero na

reforma agrária; e o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas reformadas.

Assim, o INCRA ousa implementar a reforma agrária buscando a qualificação e

consolidação dos assentamentos rurais, mediante o licenciamento ambiental, o acesso a infra-

estrutura básica, o crédito e a assessoria técnica e social e a articulação com as demais

políticas públicas, contribuindo para o cumprimento das legislações ambiental e trabalhista e

para a promoção da paz no campo, o que vem acontecendo a passos lentos.

Porém, o processo de estruturação dos assentamentos não é destituído de luta. Eles

normalmente são criados de forma estratégica e pontual, e os programas de crédito

implementados para os assentados são insuficientes para a manutenção da propriedade

(SOUSA, 1998). Diante desta problemática, existe o imperativo de se criar novas formas de

organização produtiva e social, objetivando possibilitar a melhoria da qualidade de vida dos

assentados. São estas formas de organização que permitem alterar as relações de poder local

(LEITE, 1998), reconstruindo o território.

Sauer (2003) esclarece que a territorialização da luta pela terra não pode ser

confundida com a territorialização do próprio campesinato. Pelo menos dois novos desafios

são colocados à medida que os assentamentos são conquistados: um deles refere-se à

possibilidade de estabilização relativa do campesinato nessas áreas frente às condições

políticas e econômicas existentes; o outro refere-se a construção de uma autonomia relativa do

132

campesinato perante o padrão de subordinação do território pelo capital que predomina no

agrário brasileiro.

Portanto, dois elementos importantes estão colocados. A criação dos assentamentos

não é fruto de um planejamento prévio, tampouco é uma aplicação homogênea de uma

política do Estado. Fruto das diversas formas de luta pela terra desenvolvida por distintos

movimentos sociais, em diferentes contextos históricos, os assentamentos também expressam

essa diversidade. O desafio da consolidação dos assentamentos, compreendido como a

possibilidade de estabilização e conquista de uma autonomia relativa pelo campesinato, não

pode ser tratado de maneira igual para o seu conjunto, reconhecendo que cada um deles

possui uma trajetória própria que significa um certo acúmulo de trunfos específicos.

Como sinalizou Leite (2004), a criação do assentamento, ao invés de ser um ponto

final de um processo de luta que às vezes durou anos e anos, tornou-se um ponto de partida

para novas demandas daqueles que tiveram acesso a terra e que procuraram nela se viabilizar

econômica e socialmente: educação, saúde, cultura e esportes, estradas, transporte, créditos,

assistência técnica são apenas algumas das reivindicações que emergem e que obrigam os

assentados a intensificar experiências a que, na sua situação de vida anterior, dificilmente

teriam acesso.

A existência dos assentamentos como unidades territoriais e administrativas, que são

referência para políticas pública, ainda segundo Leite (2004) resulta numa ampliação das

demandas de infra-estrutura e a própria experiência política da luta pela terra (qualquer que

tenha sido sua forma) acabou por produzir lideranças, formas de representação, aprendizado

sobre a importância das formas organizativas e sobre sua capacidade de produzir demandas.

Os trabalhadores assentados passam a organizar-se, procurar os poderes públicos,

demandar, pressionar, negociar enfim um espetáculo de atividades que os colocam frente ao

exercício da participação política e que os levam a ter, em muitos municípios, peso no

cotidiano da vida pública, impondo-se como interlocutores em diversas iniciativas.

Por efeitos dos assentados, sobretudo pela sua capacidade produtiva e organizativa, os

assentados em muitos lugares ganharam reconhecimento social e político pelos demais setores

sociais, superando uma tensão inicial, muitas vezes marcada por uma visão de que os

assentados eram “forasteiros” ou “Arruaceiros” (LEITE, 2004, p. 36), em especial nas áreas

onde os assentados foram resultados de ocupações de terra.

133

O assentamento é, portanto, um novo lugar para se viver, iniciando um processo de

materialização da terra que fornece materialidade à possibilidade da reforma agrária como

“processo social, vivo e ativo, de reformulação de mentalidade e de relações sociais a partir de

uma inflexão na experiência de vida do beneficiário, representada pelo acesso à terra,

enquanto proprietário e protagonista de um direito” (MARTINS, 2003, p.16).

O autor explicita que a passagem para a condição de “assentado” dá um novo lugar

social para essa população e coloca novos atores na econômica, social e política local, o que

traz conseqüências não somente para suas vidas, mas para a região onde está inserida. Por

outro lado, o deslocamento para o assentamento atinge não apenas famílias isoladas, mas

grupos de parentes que se estabelecem, sejam em diferentes lotes nos assentamentos, seja

num único lote ou moradia. Além do número dos empregos que geram, os projetos de

assentamento acabam servindo como amparo social a parentes, atuando também, em alguns

casos, como reconstituição de laços familiares antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade

das pessoas para buscar alternativas de sobrevivência.

Os assentamentos atuam então como mecanismos de recomposição familiar

aproximando membros que se encontravam dispersos, contribuindo para garantir a

reprodução não apenas econômica, mas também a reprodução social desse grupo de

trabalhadores.

A conversão de um latifúndio, de uma grande área de terra improdutiva em um lugar

de produção e vida para dezenas, centenas de famílias é apenas um aspecto da “reorganização

fundiária”. Esta questão tem impactos, inclusive econômicos, que transcendem as fronteiras

dos projetos, transformando o que Wanderley (2003, p. 28) denomina de a “ruralidade de

espaços vazios”.

Mesmo com alguns insucessos, os assentamentos têm garantido a permanência do

homem no campo, principalmente após a implementação do “Programa Luz Para Todos”,

empregando e gerando renda para um considerável número de famílias. Além disso, os

assentamentos têm possibilitado a recuperação da auto-estima e da dignidade dos assentados,

a integração ao mercado, a alteração das relações de poder local e a organização de novas

formas de produção, contribuindo também para o desenvolvimento da economia local,

regional e nacional (MEDEIROS, 1998).

Assim, os assentamentos apresentam-se como elementos reestruturadores do campo,

pois, à medida que novos assentamentos são organizados, se estabelecem novas formas de

134

produção, novas práticas e novas formas de organização do trabalho. Medeiros (1998)

assinala que, embora ainda em número relativamente pequeno, os assentamentos têm se

constituído como laboratórios de experiências sociais. Além de dinamizarem o debate sobre

as perspectivas futuras do meio rural, eles têm embasado a discussão a respeito de um novo

modelo de desenvolvimento fundado na unidade de produção familiar.

Entretanto, embora a criação dos assentamentos rurais tenha implicações na

redistribuição fundiária e viabilizado o acesso à terra a uma população de trabalhadores rurais,

não alterou de forma significativa o quadro da concentração fundiária, não podendo

considerar então, a política de implementação de assentamentos rurais como um profundo

processo de reforma agrária (LEITE, 2004).

Embora não encerrem a problemática agrária, os assentamentos lançam as bases para a

mudança da sociedade, alertando para a necessidade de se elaborar políticas agrárias que

promovam a inclusão social e o efetivo desenvolvimento socioespacial

A concretização das perspectivas da maioria dos trabalhadores assentados com relação

aos Projetos de Assentamento, alicerçada na esperança de uma vida digna e nas “promessas”

do INCRA, todavia, requer a continuidade da luta por políticas públicas voltadas para a

pequena produção, uma luta por novas alternativas de renda e novas formas de produção. É

com base nesta luta que se estrutura o novo território dos assentados e, quem sabe, a alforria

do camponês.

Enfim, cada assentamento traz, dentro de si,

um turbilhão de pequenas e boas histórias a serem sopradas pelos ventos que

serpenteiam as estradas e “quebradas”, que as conduzam às cidades e a outros

assentamentos, para se tornarem lendas nas bocas de caminhantes. Escrevê-las é se

comprometer com que não sejam enterradas pelo mesmo esquecimento que

transforma terras agricultáveis em latifúndios improdutivos (AZEVEDO, 2006, p.

91).

Cabe aqui lembrar a assertiva de Miguel Carter (2010, p. 413) ao afirmar que “no

Brasil de hoje, o farol da esperança não está entre os céticos da reforma agrária, mas entre

aqueles que continuam lutando por sua implementação progressista”.

135

CONSIDERAÇÕES

A história do homem e da terra tinha assim

uma intensidade que lhe não podiam dar nem a

imaginação nem a ciência, porque a ciência é

mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto

que o que eu via era condensação viva de todos

os tempos.

Machado de Assis

Estas últimas palavras põem termo, sim, a etapa final de um trabalho de

especialização, mas não às reflexões, questionamentos e esforços para se ladrilhar o caminho

de outras concepções sobre os avanços e desafios da luta pela terra no Brasil.

As reflexões não possuem, pois, caráter conclusivo, elas refletem, antes de tudo, as

possíveis tendências que se configuram a partir de novas condições objetivas articuladas às

práticas dos trabalhadores sem terras, trabalhadores assentados e do Estado, neste momento

em que a política agrária representa muito mais recuos que avanços. O presente estudo

representa, portanto, a tentativa de se compreender uma temática complexa e instigante, sem a

pretensão de esgotar todas as suas possibilidades.

O Brasil é uma das nações de maior desigualdade social do mundo. Suas disparidades

em termos de distribuição de riqueza têm profundas raízes históricas. Esta pesquisa

bibliográfica abordou também um importante legado e um permanente aspecto da injustiça

social no Brasil: a acentuada desigualdade da sua estrutura fundiária que originou-se na era

colonial e foi mantida até hoje por meio de diversas práticas políticas. A sociedade brasileira

nasceu com fortes traços oligárquicos, ancorados em uma poderosa classe latifundiária e um

Estado débil e patrimonialista.

A história do nosso país é densa no atinente às questões da posse da terra e sua

legitimação pelo Estado. São mais de 500 amos de ocupação marcada pela força do latifúndio

que sempre ditou o direito, que fez da terra uma mercadoria, com inserção do colonialismo e,

ao mesmo tempo, formando a propriedade privada da terra, a definindo como plena e absoluta.

O modo de produção e o modelo econômico atual mantêm as formas de apropriação

privada da terra estabelecidas historicamente. O agravante é que no mesmo momento em que

136

alguns se apropriam de um bem, outros tantos são excluídos da fruição deste, ficando

condicionados, se quiserem ter acesso a seus “benefícios”, aos mandamentos ditados por

aqueles que se tornaram proprietários.

A propriedade produtiva, tal como vem sendo concebida e aplicada pelos profissionais

do direito (judiciário), representa uma pedra importante no caminho da reforma agrária. A

produtividade da terra não pode ser avaliada apenas ao seu aspecto econômico que privilegia

a estrutura latifundiária originária das sesmarias. É necessário incluir os demais elementos da

função social.

A interpretação de que qualquer produtividade torna o imóvel rural insuscetível de

desapropriação agrária, além de ferir a Constituição, privilegia a estrutura latifundiária

originária das sesmarias. “Pinçar dispositivos constitucionais, para dizer que basta atender aos

índices de produtividade para tornar a propriedade produtiva, é uma clara opção ideológica”

(MARÉS, 2003, p. 88), porque favorece os senhores da terra, em detrimento do conjunto da

sociedade.

Ao longo da história brasileira, a elite agrária colheu os benefícios da proteção do

Estado e o acesso privilegiado aos recursos públicos. Essas características patrimoniais

geraram um modelo de desenvolvimento concentrador e conseqüentemente excludente. É

preciso abrir mão dessa submissão ideológica alicerçada em valores e visão de mundo da

classe dominante e romper com essa cultura de regalias aos que fazem da terra espaço de

especulação e conflitos.

A “reforma agrária” tem sido cada vez mais articulada no debate político, ao das

opções em torno de formas de desenvolvimento, impulsionado pelas lutas que se concretizam

nas ocupações de terra, nos acampamentos e assentamentos, tornando-a questão relevante não

apenas para o vasto contingente dos que demandam terra, mas também para o conjunto da

sociedade.

São esses os componentes que tornam a reforma agrária uma bandeira de luta que

ultrapassa fronteiras nacionais e permite a construção de uma linguagem comum entre povos

profundamente diferentes nas suas histórias e culturas. No entanto, de governo a governo, tem

persistido uma política agrária compensatória, que expressa um processo de controle social

dos movimentos sociais pelo Estado, sem alterar a estrutura fundiária altamente excludente.

Muitas vezes, no debate político, ela acaba sendo apresentada em termos que reduzem

a sua riqueza de significados: política compensatória, condições para a ampliação da

137

agricultura familiar, caminho para o combate à pobreza no campo, inserção de pequenos

agricultores de forma competitiva no mercado. A política de reforma agrária tem um pouco de

cada um desses componentes, mas é também um caminho para garantir a dignidade a um

contingente dos que querem fazer da terra um lugar de reprodução.

Sob essa perspectiva, a demanda por uma política agrária efetiva não é, como muitos

de seus opositores têm afirmado, sinônimo de atraso, ameaça de desestruturação de sistemas

produtivos, mas simplesmente uma das faces da luta contra a desigualdade econômica, social

política e cultural. Portanto, uma das ferramentas da construção de uma ativa democracia,

baseada na possibilidade de contínua expansão, criação de direitos e constituição de outras

relações sociais.

Sua permanência no vocabulário das lutas sociais deve ser entendida não como o

resquício do velho, mas como uma palavra capaz de abranger o novo. “Em nosso país, o

velho a ser superado no campo é o recurso à violência, à concentração fundiária, a forma

indigna de trabalho e o não reconhecimento de direitos” (MEDEIROS, 2006. P.46).

A reforma agrária é uma política pública que ataca também uma das instituições

sacralizadas pelo sistema capitalista, a propriedade privada. Para implementá-la, é

indispensável a existência de “vontade política” do Poder Executivo, mas isso não basta. É

preciso que a correlação das forças sociais seja favorável à mudança na estrutura fundiária.

A grande contradição que envolve esse tema pode ser expressa da seguinte maneira:

não se muda o Brasil sem uma verdadeira política agrária e não se faz reforma agrária sem

mudar o Brasil. Em outras palavras, a mudança do país passa pela redistribuição da

propriedade da terra, que, por sua vez, somente será efetivada se houver uma alteração

significativa no tratamento que o Estado e a sociedade brasileira conferem à propriedade. Até

porque a democratização do acesso à terra significa, essencialmente, a democratização do

poder.

Por essa razão, a luta pela terra é, ao mesmo tempo, específica e geral. É uma luta dos

sem-terra e de todos os militantes sociais comprometidos com a construção de uma sociedade

verdadeiramente justa, fraterna e solidária.

Alterar esse estado de coisas, não é tarefa fácil, pois toda vez que se discutem os

espaços de poder, deve-se esperar os ataques, as incompreensões, as ameaças e as agressões.

Mas, se isto não for feito, nada se altera.

138

O caminho encontrado é o da luta, da contestação, do inconformismo e do

engajamento em organizações coletivas, afastando-se as formas individuais de resolução de

conflitos. Pelo contrário, procuraram o fortalecimento pela união, estabelecendo outros canais

de expressão e diálogo.

A luta pela terra e por uma política agrária de cunho progressista é travada tanto no

plano da produção, na infra-estrutura material da sociedade, quanto no plano cultural, posto

que sua viabilidade passa por uma mudança de concepção. Alterar a estrutura fundiária, para

distribuir a terra, é condição fundamental para o próprio desenvolvimento do país. Fazendo

coro ao slogan dos movimentos sociais do campo, “sem reforma agrária, não há democracia”

(MARTINS, 1997, p.73).

A política agrária no Brasil está acoplada à expansão do agronegócio. É por isso que

ela também é uma conquista dos movimentos sociais e, só ocorre quando eles vão à luta. As

poucas iniciativas governamentais relacionadas à reforma agrária não lograram êxitos.

Os movimentos guardam em comum a necessidade, à vontade, o escopo de ocupar a

terra para aquele que a conhece, que lhe tem um afeto especial, possa tirar o seu sustento e

minimizar a precária situação de vida de sua família. Enfim, dar a terra uma verdadeira função

social.

A política agrária vista como um instrumento de intervenção pontual, sem enfatizar a

preocupação com seus desdobramentos de natureza redistributiva, em especial no que se

refere à democratização do poder político, está na contramão de um amplo processo de

mudanças na propriedade e no uso da terra, abrangendo dimensões econômicas, sociais,

políticas, culturais e ambientais.

É certo que ainda falta muito para se chegar lá e corrigir a secular injustiça fundiária

que marca a nossa história, assim como para que os homens e mulheres do campo alcancem a

plena cidadania. Todavia, não se iludam, também é certo que a luta pela terra, travada há

séculos, não irá cessar. Mas não é uma luta apenas dos sem terra. É de todos os que se ligam

pelo pensamento de justiça social e que só vão se sentir incluídos, no dia em que todos

também estiverem; que só se sentirão humanos, quando todos estiverem em condições de

viver com dignidade. Oxalá!

A terra é um sonho qui a gente tem desde piqueno,

criança. Conquistá o direito de trabaiá na terra é um

sonho qui demora tanto, que quando é conquistado já

passou tanto tempo qui a gente nem tem mais força

139

pra trabaiá mais. Ai, a gente acaba desistino. Igual um

velho qui já tem 50 anos, qui já tá precisano é de

aposentá. Ele não vai guentá. A gente pensa qui a

coisa é fácil, depois vê que é de outro jeito. Os qui

guenta ficá no acampamento, no mato ou beira de

estrada, é só os qui pensa nos filho, só isso. Não é todo

mundo qui guenta essa luta [...]. Mas se nós não lutá

como é qui a gente pussui arguma coisa, tá

entendeno?[...].

(Depoimento de um trabalhador sem terra, 2010)

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