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TIA LUZIA OLIVEIRA DA SILVA 1 . . CURRICULO: AINDA HA MUITO A PERCORRER (CURRICULUM: THERE 15YET MUCH TO SE DONE) RESUMO o currículo escolar tem tido afunção de trans- mitir os saberes considerados válidos socialmente. Faz-se necessária uma análise crítica de sua relação com a escola e com o ensino e, mais profundamente, de suas inspirações ideológicas e do tratamento que tem dado ao saber. O presente texto objetiva abordar, historica- mente, a ligação que tem tido o currículo com as ten- dências pedagógicas e em quais aspectos ele tem servido para preservar a hegemonia, e o que ainda lhe falta para garantir a construção de um verdadei- ro projeto de educação para o País. Palavras-chave: currículo, escola, ensino, tendên- cias pedagógicas. ABSTRACT The school curriculum has been used to transmit knowledge that is considered socially valido It is therefore necessary to make a critical analysis of it and its relation, not only to the school and to teaching, but in a more profound manner, to its ideological inspirations and to the treatment it has been given to knowledge. The object of this text is to trace historically the relationship between the curriculum with its pedagogical tendencies and its e.fforts topreserve its dominance, and what yet remains to garantee lhe construction of a genuine project in education for lhe country. Keywords: curriculum, school, teaching, pedagogical tendencies A escola, palavra que em grego significa lugar do ócio (11), surgiu a partir da divisão da sociedade em classes, advinda da propriedade privada da terra, na Antigüidade. À escola tinham acesso as classes ociosas, ou seja, aquelas que não necessitavam traba- lhar para sobreviver: os proprietários de terras. Estes viviam do esforço da maioria da população, que se educava no labor diário. A escola, então, desde cedo caracterizava-se como o próprio lugar de diferencia- ção e exclusão social. As escolas paroquiais da Idade Média educa- vam para atividades consideradas nobres, em que o ócio era ocupado para a formação do cortês, do aris- tocrata, do cavalheiro que se manteria distante de ati- vidades indignas à sua posição. Ensinava-se, então, tudo o que seria necessário para a manutenção de sua condição que, inclusive, era hereditária. Na época moderna, com a expansão do capita- lismo e com a crescente urbanização, cresceu também a necessidade de se expandir a escola para todos. Aten- der às necessidades da nova configuração social era o papel da escola: formar proprietários livres. Lembre- se que liberdade, neste contexto, mantinha estreita li- gação com propriedade. Formava-se uma sociedade contratual, baseada em relações formais, em que o papel da escrita assumiu grande importância, deter- minando a própria racionalidade capitalista, Logo, escolarizar era preciso. A escola, então, formaria o cidadão civiliza- do, afinado com as necessidades do progresso e com a manutenção do próprio capitalismo. A f9I- ma escolar de educação foi se sobrepondo pouco a pouco às formas não escolarizadas - educação não- - formal - e foi absorvendo muitas e diversas res- ponsabilidades. Quase tudo seria função da escola, segundo Saviani: 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira - Faculdade de Educação - Universidade Federal do Ceará. 44 EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 •V 2• NQ 38 p. 44-49 • 1999

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Page 1: CURRICULO: AINDA HA MUITO A PERCORRER (CURRICULUM: … · busca ser mais eavertente da pedagogia crítico-soci-al dos conteúdos, de que faziam parte Libâneo, Saviani, Cury, Mello

CÁTIA LUZIA OLIVEIRA DA SILVA 1

. .CURRICULO: AINDA HA MUITO A PERCORRER(CURRICULUM: THERE 15YET MUCH TO SE DONE)

RESUMO

o currículo escolar tem tido afunção de trans-mitir os saberes considerados válidos socialmente.Faz-se necessária uma análise crítica de sua relaçãocom a escola e com o ensino e, mais profundamente,de suas inspirações ideológicas e do tratamento quetem dado ao saber.

O presente texto objetiva abordar, historica-mente, a ligação que tem tido o currículo com as ten-dências pedagógicas e em quais aspectos ele temservido para preservar a hegemonia, e o que aindalhe falta para garantir a construção de um verdadei-ro projeto de educação para o País.

Palavras-chave: currículo, escola, ensino, tendên-cias pedagógicas.

ABSTRACT

The school curriculum has been used to transmitknowledge that is considered socially valido It istherefore necessary to make a critical analysis of itand its relation, not only to the school and to teaching,but in a more profound manner, to its ideologicalinspirations and to the treatment it has been given toknowledge.

The object of this text is to trace historically therelationship between the curriculum with itspedagogicaltendencies and its e.fforts topreserve its dominance, andwhat yet remains to garantee lhe construction of agenuine project in education for lhe country.

Keywords: curriculum, school, teaching,pedagogical tendencies

A escola, palavra que em grego significa lugardo ócio (11), surgiu a partir da divisão da sociedadeem classes, advinda da propriedade privada da terra,na Antigüidade. À escola tinham acesso as classesociosas, ou seja, aquelas que não necessitavam traba-lhar para sobreviver: os proprietários de terras. Estesviviam do esforço da maioria da população, que seeducava no labor diário. A escola, então, desde cedocaracterizava-se como o próprio lugar de diferencia-ção e exclusão social.

As escolas paroquiais da Idade Média educa-vam para atividades consideradas nobres, em que oócio era ocupado para a formação do cortês, do aris-tocrata, do cavalheiro que se manteria distante de ati-vidades indignas à sua posição. Ensinava-se, então,tudo o que seria necessário para a manutenção de suacondição que, inclusive, era hereditária.

Na época moderna, com a expansão do capita-lismo e com a crescente urbanização, cresceu tambéma necessidade de se expandir a escola para todos. Aten-der às necessidades da nova configuração social era opapel da escola: formar proprietários livres. Lembre-se que liberdade, neste contexto, mantinha estreita li-gação com propriedade. Formava-se uma sociedadecontratual, baseada em relações formais, em que opapel da escrita assumiu grande importância, deter-minando a própria racionalidade capitalista, Logo,escolarizar era preciso.

A escola, então, formaria o cidadão civiliza-do, afinado com as necessidades do progresso ecom a manutenção do próprio capitalismo. A f9I-ma escolar de educação foi se sobrepondo pouco apouco às formas não escolarizadas - educação não- -formal - e foi absorvendo muitas e diversas res-ponsabilidades. Quase tudo seria função da escola,segundo Saviani:

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira - Faculdade de Educação - Universidade Federal do Ceará.

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isto nos permite compreender por que assis-timos hoje em dia a uma verdadeira hipertro-fia da escola. Em outros termos: tende-se aconsiderar e atribuir à escola tudo aquilo queé educativo; a escola tem que absorver todasas funções educativas que antes eram desen-volvidas fora da escola, já que hoje há umatendência a esperar que as mesmas sejamdesenvolvidas dentro da escola (1 I: 157).

Tal hipertrofia da escola refere-se ao fato deque ela tem suas funções distendidas tanto horizon-talmente quanto verticalmente, respectivamente, ouseja, espera-se que os alunos dispendam mais tempona escola, assumindo umajomada integral e que maisanos sejam incorporados à permanência nas sériesescolares. Isto também diz respeito à absorção de tudoquanto se julgue educativo e válido de ser ensinado, oque traz conseqüências imediatas para o currículo, poiseste fica sobrecarregado (I 1: 151 a 168).

Assumindo um papel de destaque no modo deprodução capitalista, a escola passou a extrapolar oespecificamente pedagógico. Entretanto, sendo o ca-pitalismo o grau mais avançado da diferenciação declasses, a escola acompanhou esta tendência: na me-dida em que buscou se generalizar, se diferenciou, ouseja, a escola das elites não seria a mesma das mas-sas. Enquanto aqueles que detinham o poder econô-mico se beneficiavam de uma escolarização avançada,a classe operária, assalariada, era educada para res-peitar as virtudes seculares, segundo um currículoconservador que dava primazia ao conhecimento reli-gioso e que preparava, sobretudo, para ler, escrever econtar (8: 35).

Percebe-se, hoje em dia, entretanto, uma ten-dência contrária: cada vez mais se tem falado de edu-cação não-formal. Não são poucas as vozes que selevantam a seu favor, destacando suas vantagens. Dequalquer forma, tal oposição reforça, digamos assim,as características do modo escolarizado de educação,pois só em função deste é que se pode conceber onão- formal.

A escola, uma vez que está engajada num am-plo contexto - social, econômico, cultural, político -não está imune às mudanças do mundo com o qualmantém relação, fazendo parte até das exigências destemesmo mundo em transformação. Assim sendo, comoorganizar o currículo para que atenda aos novosanseios?

Currículo, escola e ensino são coisas diferen-tes, mas são tão interligadas que chega a ser difíciltraçar uma linha divisória para demarcá-Ias. Vivem

uma em função da outra. O estabelecimento de umcurrículo depende do tipo de ensino que se quer ado-tar e da escola que se deseja. Tem sido assim ao longoda história.

O currículo tem estado orientado em função dosaber válido socialmente e digno de ser transmitido.Trata-se de uma seleção intencional deste mesmo sa-ber, e de forma organizada, objetivando que o alunoalcance resultados. É, então, muito mais que uma gra-de curricular, pois abarca todo o envolvimento escolarpara propiciar o dinamismo do processo educacional.Originalmente, entretanto,

a palavra currículo vem da palavra latinaScurrere, correr, e refere-se a curso (ou carrode corrida). As implicações etimológicas sãoque, com isso, o currículo é definido como umcurso a ser seguido, ou, mais especificamen-te, apresentado. (8: 31)

Outra implicação da origem latina do currículo éo vínculo com a disciplina, oriunda da divisão dos alu-nos em classes, na época da crescente escolarização dasmassas. Aqui, o grupo se afirmou em oposição à con-templação das características individuais. O currículoassumiu uma posição definitiva na epistemologia daescolarização, uma vez que, combinado à pedagogia eà avaliação, formou uma trilogia característica do pro-cesso escolar no início do século XX (8: 35).

o CURRíCULO E AS TENDÊNCIASPEDAGÓGICAS

Leite (9) destaca as influências das tendênciaspedagógicas no currículo escolar. No ensino huma-nístico-clássico, em que se buscava transmitir a he-rança cultural, prevalecia a educação tradicional. Oprofessor ocupava o centro do processo e o aluno nãopassava de mero receptor passivo. O currículo marca-va-se por ser racionalista-acadêmico, pois sua baseera a neutralidade da educação e a alienação do mundo.Ainda em nossos dias, observamos que persiste estaforma tradicional de educação. O currículo se restrin-giu tão-somente ao rol de disciplinas, pregando um con-junto de verdades conservadas tradicionalmente pelaciência no mundo ocidental. O conhecimento ficou li-mitado ao seu lado informativo, factual, estático,prescritivo, até as primeiras décadas do século XX.

os anos 30, nasceu a tendência escolanovista.A Escola Nova tinha suas bases fincadas no huma-nismo moderno e possuía influência norte-america-na. Apoiada, então, numa doutrina liberal, visava à

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formação de cidadãos participantes e, ao mesmo tem-po, de indivíduos auto-suficientes nas habilidadesmentais. O eixo da educação era a criança e o seumundo, sendo o professor um facilitador da aprendi-zagem do aluno. Embora, nesta tendência, o educan-do seja visto como sujeito de sua aprendizagem,devendo-se levar em conta suas vivências e dar prio-ridade aos aspectos psicológicos em lugar dos lógi-cos, prevaleceu o tecnicismo, que privilegiou os modosem detrimento dos conteúdos. Também, por não sedestinar a uma grande quantidade de alunos, ressal-tando o aspecto individual da educação, foi acusadade ser seletiva.

Nos anos 80, a grande insatisfação da socieda-de brasileira levou ao nascimento da tendência críticada educação. O desgaste da ditadura militar levou ase considerar a educação como saída da opressão esuperação do caráter reprodutor da sociedade. Basea-da no neomarxismo, esta tendência tinha como pres-supostos o esclarecimento e a emancipação. Nas salasde aula, pregava-se que os conteúdos deveriam ser tra-balhados criticamente. A tendência crítica da educa-ção deu origem a duas vertentes: a vertente libertadora,de Paulo Freire, baseada na interação do homem como mundo para a formação de um ser crítico, apto a seinserir no mundo histórico, atuando como sujeito quebusca ser mais e a vertente da pedagogia crítico-soci-al dos conteúdos, de que faziam parte Libâneo,Saviani, Cury, Mello. Ressaltava-se a importância datransmissão dos conteúdos na interação com o meiosocial, sendo estes mesmos conteúdos que determina-riam os procedimentos e métodos adotados. O currí-culo ficou conhecido como "currículo-formação".Nasceu o paradigma dinâmico-dialógico do currícu-lo, em que este era relacionado com o contexto histó-rico e cultural, buscando a emancipação das camadaspopulares.

Assim, teoricamente podemos nos referir aocurrículo tanto como ciência natural quanto como ci-ência crítica (9). O currículo como ciência natural se-gue os mesmos pressupostos das ciências da natureza,tendo a Física como modelo supremo: previsibilidade,predetenninação e planejamento. Seguindo o princí-pio da generalização, caracteriza-se por sua tecnicidadee racionalismo. O currículo é chamado de "currículo-produto". Atende às divisões do trabalho na socieda-de industrial, reproduzindo a estrutura social e consolidauma visão fragmentária da educação. Na busca pelaneutralidade, privilegia a racional idade técnica. A estetipo de currículo correspondem as tendências tradicio-nal e escolanovista, pois buscam adaptar a escola e ocurrículo à ordem capitalista. As escolas mesmas são

comparadas a fábricas, que devem primar por um geren-ciamento também científico. Curioso é notar que ocurrículo como ciência crítica teve seu início influenci-ado pelo método positivista das ciências naturais. De-pois, entretanto, buscou orientação em teorias sociaisemergentes na Europa (neomarxismo, teoria crítica daescola de Frankfurt, fenomenologia etc) que tinham oobjetivo de revelar a tensão entre natureza e cultura,considerando que esta é mediatizada por aquela. Duascorrentes nasceram destas idéias - uma humanística eoutra neomarxista. A partir de então, o currículo foivislumbrado em três aspectos: o formal (prescrito emdocumentos), o oculto (regras do senso comum quepassam a integrar o currículo), em ação (relacionadoao que é utilizado cotidianamente em sala de aula).

Dos três aspectos anteriormente mencionados,o oculto merece ser destacado. Ele é comparado, porApple (2), a uma caixa negra que produz e reproduza hegemonia. Na tentativa de estabelecer limites ide-ológicos, tem a escola procurado promover oquietismo e o sentimento de que parece ser natural aneutralidade do conhecimento. O objetivo é consoli-dar normas e valores sociais, de uma maneira implíci-ta, efetivamente transmitidos, entretanto, pelas escolas.Desta forma, os alunos assimilam, através das formasde interação que ocorrem dentro da escola, o modocomo devem se relacionar com a estrutura social:

uma sociedade baseada no capital culturaltécnico e na acumulação individual do capi-tal econômico precisa mostrar-se como seforao único mundo possível (2: 126)

Nasceram, também, nesta época, a análise crí-tica e a sociologia do currículo que davam importân-cia a três aspectos fundamentais: a ideologia (englobatodo o contexto educacional e o currículo, revelando-se nos livros didáticos e nas aulas de tom idealista), acultura (tanto é criada e reproduzida pelo currículoquanto é transmitida) e o poder (o currículo é penneadopelas relações de poder).

Analisando-se o aspecto cultural do currículo,especificamente, percebe-se que a cultura chega à es-cola através dos conteúdos que foram selecionadospara compor a proposta curricular. A seleção dos con-teúdos, por sua vez, obedece a determinantes pedagó-gicos e políticos. Considerando-se que, em últimainstância, o Estado é responsável pela determinaçãodo currículo, os conhecimentos determinados por elese traduzem em cultura oficial. Chega-se, aqui, a umponto importante: a cultura oficial prioriza a culturada elite, em detrimento da cultura popular, diminuin-

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do-a, marginalizando-a. A escola não raro tem sidoalvo de duras críticas por manter a diferenciação atéatingir o ponto da exclusão social. Uma reflexão so-bre o currículo - tanto em seu conteúdo quanto em suaforma - se faz necessária, na medida em que apontarápara o respeito às diferenças culturais, sem a preten-são de homogeneizar as várias culturas.

O currículo, tenha-se em conta, ganha sig-nificação no universo das atividades educacionaisescolares:

entre a teoria educacional e a prática peda-gógica, entre o planejamento e a ação, entreo que éprescrito e o que realmente sucede nassalas de aula (4: 34).

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aisda Padronizar um currículo para toda uma popula-

ção é tarefa por demais difícil, uma vez que há dife-renças culturais, econômicas e políticas em jogo; talveza orientação pedagógica para debelar este problemaseja adotar um currículo com uma parte fechada (fina-lidades, metas, objetivos gerais, aprendizagens míni-mas) e outra parte aberta (conteúdos específicos,objetivos finais, metodologia e atividades). É o quevárias nações do mundo já têm feito. Isto amplia aliberdade criativa, sem desprezar a padronização, quegarante um grau de igualdade.

Países em todo o mundo têm vivenciado trans-formações profundas na esfera econômica, que têmafetado as formas de gestão e de organização do tra-balho. A globalização' das economias tem exigido umarevisão dos processos de produção e decomercialização para que se continue garantindo ní-veis de competitividade no mercado internacional. Emmeio a tudo isto, ocorrem mudanças de ordem traba-lhista: o trabalho em equipe tem substituído dia a diao trabalho individual, num contexto de instabilidade,temporalidade e insegurança do trabalhador. Verifica-se uma crescente tendência ao desaparecimento doemprego tal qual o concebemos hoje, cedendo lugara novas formas de ocupação.

Desta forma, o que se tem esperado das institui-ções escolares é um novo compromisso com a forma-ção dos alunos:

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... existem certos aspectos do crescimento pes-soal, considerados importantes no âmbito dacultura do grupo que não ocorrerão de for-ma alguma, a menos que seja fornecida umaajuda especifica, que sejam exercidas ativi-dades de ensino especialmente pensadas paraessefim (4: 43)

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A escola tem sido o espaço escolhido social-mente para que se garanta o acesso aos conhecimen-tos significativos acumulados pela humanidade.Contudo, a verdadeira educação proporcionada pelaescola deve promover o desenvolvimento integral doser humano, uma vez que a acumulação de informa-ções por si só não leva à construção do conhecimento:

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... a educação escolar ideal não é a que trans-mite os saberes constituídos e legitimados so-cialmente, mas, sim, aquela que garante algumascondições ideais para que os alunos desenvolvamas suas potencialidades e capacidades cognitivas,afetivas, sociais e de aprendizagem. (5: 11)

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iaA proposta curricular, por sua vez, é direcionada

em função da escola que se deseja ter, com base naconcepção de educação e no próprio conceito de cur-rículo. Isto é que delineará as metas, os objetivos aserem alcançados, os conteúdos a serem seleciona-dos, as atividades a serem escolhidas, o método a serseguido. A partir de então, ficará explícito o projetoeducacional, com orientações para a prática pedagó-gica. Segundo ColI

poucas vezes ao longo da história foi tãourgente a aposta em uma educação verda-deiramente comprometida com valores de de-mocracia, solidariedade e crítica, se quisermosajudar cidadãos e cidadãs a enfrentar essaspolíticas de flexibilidade, descentralização eautonomia propugnadas nas esferas traba-lhistas. (12: 23)

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Outros autores, entretanto, alertam para as con-seqüências do elo entre educação e econom ia, tendocomo base a adoção de um currículo nacional:

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o currículo é um elo entre a declaração dosprincípios gerais e sua tradução operacional,

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aoe 2 O termo globalização tem sido utilizado em alusão a uma multiplicidade de fenômenos que, sobretudo a partir da década de 70,

estariam configurando uma redefinição nas relações internacionais em diferentes áreas da vida social, como a economia, as finanças.a tecnologia, as comunicações, a cultura, a religião etc. (... ) Na esfera cultural. Featherstone (1994: 12) salienta que a uniformização ea difusão internacional de hábitos, convenções e informação são crescentes, sendo exemplos o desenvolvimento de competiçõesesportivas e a generalização de conceitos padronizados de cidadania em âmbito mundial. (I: 114)

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um currículo nacional pode ser visto como uminstrumento de prestação de contas, para aju-dar-nos a estabelecer parâmetros afim de queos pais possam avaliar as escolas. Porém, eletambém aciona um sistema em que as própriascrianças serão classificadas e categorizadascomo nunca foram antes. Uma de suas fun-ções básicas será atuar como "mecanismo"para diferenciação mais rigorosa das crian-ças segundo normas fixas.função essa cujossignificados e origem social não são expli-citados (I: 75).

De qualquer forma, é preciso desafiar a tradi-ção prescritiva do currículo para que ele agrupe umaampla variedade de novas práticas educacionais, pro-movendo aprendizagens significativas' , condizentescom a nova ordem mundial.

No Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais(PCN) nasceram para atender às determinações da Leide Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),de 20 de dezembro de 1996, sendo uma proposta deinovação curricular, cujo objetivo é contribuir para sevencer a crise por que tem passado a educação brasi-leira. São um modelo curricular para que

... o sistema educacional do País se organi-ze, a fim de garantir que, respeitadas as di-versidades culturais, regionais, étnicas,religiosas epolíticas que atravessam uma soci-edade múltipla, estratificada e complexa, a edu-cação possa atuar, decisivamente, no processode construção da cidadania, tendo como metao ideal de uma crescente igualdade de direitosentre os cidadãos, baseados nos princípios de-mocráticos. Essa igualdade implica necessari-amente o acesso à totalidade dos bens públicos,entre os quais o conjunto dos conhecimentos

-' - socialmente relevantes. (10: Vol.I, 13)

Assim, elaborados a partir de um amplo pro-cesso de debates na sociedade, os PCN também apon-tam para uma reflexão sobre a prática educativa,insistindo no desenvolvimento profissional dos pro-fessores para que se propicie a melhoria do ensino.Contrapõem-se veementemente às práticas educativastradicionais nas quais o aluno não participa do pro-cesso de construção de seu próprio conhecimento, emque a tendência predominante é a transmissão-incor-

poração de conteúdos. Consideram, também, comofunção primordial da escola ensinar o que o aluno, so-zinho, não tem condições de aprender. Para tanto, osconteúdos não são enfocados como um fim em si mes-mos, mas como meio para que os alunos desenvolvamcapacidades para poder atuar eficientemente no meiosocial. E sobre a seleção dos conteúdos, afirmam quedeve haver um processo de reflexão que leve à suaressignificação, rejeitando a vinculação entre a impor-tância dos conteúdos e a interpretação transmissiva ecumulativa do ensino e aprendizagem. Fatos e concei-tos ampliam-se para incluir procedimentos, valores, nor-mas e atitudes. Os conteúdos são agrupados em trêscategorias: conceituais, procedimentais e atitudinais.

Os conteúdos conceituais dizem respeito à orga-nização da realidade, por meio da construção de capaci-dades tais como as de operar com símbolos, idéias,imagens e representações. (10: vol. 1,74) Tal aprendi-zagem se dá pouco a pouco, iniciando pelo conheci-mento de fatos e, por aproximações sucessivas, chega-seà compreensão de princípios, que detêm um nível maiorde abstração. Desta forma, os conteúdos ganharão sig-nificado e poderão ser relacionados a outros.

Os conteúdos procedimentais, por sua vez, têmsido confundidos, historicamente, com o ensino de con-ceitos. Para aprender um procedimento - saber fazer,que envolve tomar decisões e realizar uma série deações, de forma ordenada e não aleatória, para atin-gir uma meta (10: vol. I, 75) - o aluno deve contarcom a orientação segura do professor, pois não se tratade algo que se possa realizar espontaneamente, numprimeiro momento. Tal aprendizado deve levar, sobre-tudo, à compreensão dos conceitos, contrapondo-seao aprendizado mecânico.

Já os conteúdos atitudinais permeiam todo oconhecimento escolar (10: vol 1, 76). Tais conteú-dos tratam de valores, normas e atitudes a serem abor-dados no projeto pedagógico da escola, tendo-se claroo compromisso que esta tem com a formação de indi-víduos atuantes na sociedade. Aqui, deve-se levar emconta as diferenças culturais, sociais e econômicasdos alunos, e a prática que se desenvolve no contextoescolar.

Conhecer a natureza dos diferentes conteúdos éimportante à medida em que se pode trabalhá-Ios deforma consciente e integradora.

Para que certas temáticas não se restringissem auma determinada área do conhecimento, surgiram ostemas transversais, pressupondo uma abordagem

3 Nas aprendizagens significativas, as novas informações e os novos conhecimentos relacionam-se de uma forma não arbitrária comaquilo que a pessoajá sabe. A aprendizagem que visa à memorização, por sua vez, não permite que este processo ocorra

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moso-oses-am

integradora das diversas áreas, contemplando questõessociais de grande relevância e urgência. Apontando parauma transformação da prática pedagógica,atransversal idade critica a herança cultural de se con-ceber o conhecimento estaticamente. Restringe-se,portanto, ao campo da didática. Distancia-seconceitualmente da interdisciplinaridade, que, embo-ra também rejeite o tratamento compartimentalizadodado ao conhecimento, relaciona-se ao tratamentoepistemológico daquilo que se deseja conhecer.

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Dr-aeei-or-'ês CONCLUSÃO

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Historicamente, observamos que muitos foramos cursos seguidos pela educação brasileira até aqui.Em tempos de acirramento da política neoliberal, emque testemunhamos um processo de crescente desem-prego, fome, miséria e marginalização, a escola, atra-vés do currículo, está cada vez mais exposta a ser ummeio de controle e regulação por parte do Estado, poisnunca se privilegiou tanto a ligação entre o saber e osaber fazer e o discurso do aprender a aprender

Na era da globalização, muito ainda há que secorrer nesta pista para que se garanta uma educaçãocompromissada com as diversidades e com a constru-ção de identidade. Desta forma, se entendemos que aformação do aluno é um processo, faz-se necessárioestruturar o currículo em função deste mesmo proces-so, em seu aspecto total, e não somente em razão deuma parte dele (e.g.: objetivos, metas). Devemos pre-parar um tempo em que

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... o currículo não será visto como uma "pistadecorridas" determinada,apriori,esimcomoumapassagem de transformaçãopessoal. Esta mudan-ça defoco e sujeito colocarámais ênfaseno corre-dor correndo e nos padrões que emergemconforme muitos corredores correm, e menosênfase napista de corridas, embora nem os cor-redoresnem apista possam ser dicotomicamenteseparados. (6:20)

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é As políticas curriculares dizem respeito a umjogo decisivo tanto para o estabelecimento dahegemonia quanto para a sobrevivência da oposição,da resistência. No meio desta luta, encontra-se o pro-jeto de educação que se almeja construir para o País.

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E, seguramente, o sucesso da educação não dependeunicamente de uma boa proposta curricular. Porém,para que esta proposta chegue a resultados válidos,para que se tenha a escola cidadã, muito mais queestar aberta à discussão crítica, deve ser passível deser trasladada à prática - convenientemente.

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