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Página 1 de 83 Área de Competências-Chave Cultura, Língua e Comunicação RECURSOS DE APOIO À EVIDENCIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS Núcleo Gerador 7 – SABERES FUNDAMENTAIS Dimensão: LÍNGUA

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Área de Competências-Chave

Cultura, Língua e Comunicação

RECURSOS DE APOIO À EVIDENCIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS

Núcleo Gerador 7 – SABERES FUNDAMENTAIS

Dimensão: LÍNGUA

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SABERES FUNDAMENTAIS NA DIMENSÃO LÍNGUA A língua portuguesa

As origens da língua portuguesa perdem-se na bruma dos tempos.

No entanto, é possível divisar um tronco comum - o indo-europeu - que se espalhou pela Europa e pela

Ásia. Pensa-se que foi a partir do indo-europeu que se formaram outras línguas, pertencentes à mesma

família. Como o indo-iraniano, o

arménio, o grego, o albanês, o

eslavo, o germânico, o celta e o

itálico. Do itálico nasceram o

latim, o osco, o úmbrico e o

vético. E a partir do latim

formaram-se as várias línguas -

românicas ou novilatinas: o

português, o espanhol, o francês,

o italiano, etc.

Mas a história poderá explicar

melhor todo o seu decurso.

Quando os Romanos chegaram à

Península Ibérica, no século III a.

C., por ela tinham passado vários

povos como os Iberos, Celtas,

Fenícios, Gregos e Cartagineses.

Graças à sua organização militar,

os Romanos acabaram por dominar todas as regiões da Península, impondo-se também culturalmente.

Os Romanos vencedores eram sobretudo soldados e comerciantes e falavam o latim vulgar ou popular,

que se vulgarizou, suplantando todos os idiomas já existentes. Esse latim distinguia-se do latim erudito,

falado e escrito, pela população mais culta, particularmente no Lácio, a pequena capital do Império

Romano. Do latim erudito conservam-se ainda registos escritos, que são pertença do latim como língua

morta, pois não sofreram alterações.

Assim, podemos concluir que a origem da língua portuguesa se encontra no latim vulgar, falado pelos

soldados e pelos comerciantes (o mesmo acontecendo com as outras línguas europeias), por isso se

compreende que a maioria das palavras tenha entrado na língua portuguesa por via popular e não por

via culta ou erudita.

Porque falada, ao longo dos tempos, as alterações na língua foram-se consubstanciando, até porque

outros povos invadiram a Península Ibérica. A invasão mais importante verificou-se no século VII pelos

Árabes, que tentaram impor a sua língua como oficial, mas os habitantes da Península não o permitiram. Os

Árabes deixaram, no entanto, algumas marcas significativas na cultura, mas também na língua

portuguesa, como sucede com os vocábulos iniciados por "al".

O processo de expulsão dos Árabes durou sete

séculos e, quando D. Afonso Henriques assegurou

a independência de Portugal, que começou com

seu pai, no Condado Portucalense, falava-se nessa

região o galaico-português, que era comum na

Galiza e em Portugal. Com o tempo, o português

foi-se diferenciando do galego, que acabou por

Império romano : disponível na Internet:

http://www.multirio.rj.gov.br/acordoortografico/u1a1.html

Língua – Conjunto de sons, palavras e regras utilizados por um grupo (por uma comunidade) na comunicação.

Linguagem – capacidade que a pessoa tem para comunicar, mediantes signos.

Fala – Utilização, pelo indivíduo particular, dos sons, palavras e regras que fazem parte da língua.

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ser absorvido pelo castelhano.

O português continuou o seu percurso evolutivo. Saliente-se o importante papel dos linguistas do século

XVI, que procuraram no latim clássicos palavra novas para enriquecer o léxico. Estas palavras entraram por

via erudita e não sofreram transformações como as mais antigas. Por outro lado, este século viu nascer

Camões, que contribui grandemente para a glorificação da língua com a sua obra Os Lusíadas. Surgiram

também as primeiras gramáticas, com o sentido de uniformizar a língua portuguesa: em 1536, a de Fernão

de Oliveira e, em 1540, a de João de Barros.

Os Descobrimentos também enriqueceram

o léxico com a introdução de palavras novas

e, com o império colonial, a língua

portuguesa espalhou-se pelo mundo, sendo

atualmente a língua oficial de sete países

independentes, além de Portugal, ocupando

o quinto lugar entre as línguas mais faladas

do mundo.

No sentido da uniformização linguística e

para evitar a variação que a língua sofre ao

longo dos tempos, em 1990 foi proposto o

Acordo Ortográfico, no qual participaram

todos os países de língua oficial portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,

Portugal, S. Tomé e Príncipe e Timor Leste). O texto do Acordo prevê a elaboração de vocabulário

ortográfico comum e normalizador. N o entanto, este tratado ainda não reuniu consenso. Apesar de

algumas divergências, vários dicionários foram já publicados, obedecendo à normalização do tratado.

Retirado de: Fernandes, Cidália et al. (2010) Português Vivo – 10.º ano. Lisboa: Plátano Editora

Variações do português

Ao longo da história de Portugal, os falantes de língua materna portuguesa entraram em contacto com

falantes de outras línguas, donde resultaram as seguintes variedades do português:

Europeia - É o português falado em Portugal continental, nos arquipélagos Madeira e dos Açores. A

língua padrão corresponde à variedade de Lisboa e no território do continente distinguem-se dois grandes

grupos dialetais: o setentrional e o centro-meridional, os quais diferem, entre outras características, pelo

facto de o primeiro não opor b e v e por diferenciar bem a pronúncia dos ditongos ou. (reduzidos a a/o/e/e

médios no centro-meridional).

Africana - É o português falado nos países africanos de expressão portuguesa; só as variedades do

português de Angola, da região de Luanda, e o português falado em Moçambique é que têm sido mais

analisados apresentando diferenças em relação ao português europeu quer nível fonético, quer

morfossintático, quer lexical.

Brasileira - É o português falado no Brasil, que se distingue do português Europeu, entre outras

características, pelo facto de os seus falantes pronunciarem as vogais pretónicas mais baixas ou pela

colocação dos pronomes pessoais átonos em posição pré-verbal (ele me deu ≠ ele deu-me). Esta variedade

apresenta um léxico variado resulta influência de outras línguas, nomeadamente de línguas índia guarani,

assim como de línguas africanas.

Evolução do Império Romano entre o século V a.C e o século I: disponível

na Internet: http://ciclo.blogs.sapo.pt/8726.html

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PALAVRAS SOMOS

Entre coisas e palavras - principalmente entre palavras - circulamos. A maioria delas

não figura nos dicionários de há 30 anos, ou figura com outras acepções. A todo o

momento impõe-se tomar conhecimento de novas palavras e combinações de.

Você que me lê, preste atenção. Não deixe passar nenhuma palavra ou locução

actual, pelo seu ouvido, sem a registar. Amanhã, pode precisar dela. E cuidado ao

conversar com seu avô; talvez ele não entenda o que você diz.

África com Kapa?

– Escreve-se com kapa e dabliú! O brasileiro não entendeu. – Como? O meu amigo sorriu benevolente. Puxou a barriga para cima do cinto e dispôs-se a ajudar o funcionário da migração a preencher nossos papéis de entrada. Pegou na caneta e escreveu o nome, recheado de “k”, “w” e “y”. O anfitrião brasileiro franziu o sobrolho. Remirou as fichas e, certamente, ressen-tiu-se de o terem corrigido. Ele tinha escrito o nome do meu compatriota, empregando as normas ortográficas da língua portuguesa. Usou as letras "c", "u" e "i" onde o meu amigo insistia em emendar para kapa, dabliú e ipslon. – Não percebo por que escreve assim - teimou o funcionário. Temi que o meu companheiro de viagem puxasse de resposta arrogante. Mas ele praticou a sua gorda paciência. – Porque assim é que é a maneira africana de escrever. E antes que o recepcionista retomasse fôlego para mais pergunta, o moçambicano adiantou basta filosofia. Foi um discurso. Ali mesmo, entre malas e empurrões, pronunciou-se: era urgente romper com as imposições ortográficas da língua dos colonizadores. A revolução, exclamou ele, é para isso mesmo, para romper espartilhos. Uma dama que passava escutou a sentença e, desconfiada, apressou-se a sair dali. O meu compatriota continuava, inflamado. – Temos que assumir as nossas raízes africanas, respeitar as nossas tradições. Aqui o brasileiro conseguiu interromper. – Será que os kapas são mais africanos que os cês? Era uma pergunta, sim senhor. Afinal o brasileiro estava de espertezas, E discutiram-se os dois, divergentes. Eu não emiti opinião: não queria que se fizesse trivergência. Nem fica bem entrar num país com pé na controvérsia. Mas os dois prosseguiam a questão que se colocava. O brasileiro despachava argumento atrás de argumento. Dizia que, para ele, se tratava de pura transferência das do português para as do inglês. – Você sai da sombra da mangueira para entrar na sombra do abacateiro, moço. O moçambicano ficou embaraçado, descontou no discurso a demora de um raciocínio à altura. Mas não contra-atacou directo. Preferiu uma incursão no flanco do adversário. – E sabe que mais, meu caro? Há muita revolução por aí que se distrai na dignificação da personalidade. O brasileiro solicitou explicação. Então o Gorvachov ainda não tinha rompido com o alfabeto de S. Cirilo? E Fidel de Castro, tão consequente em tudo, mantinha-se agarrado aos padrões instituídos pela monarquia espanhola? E ambos alfabetiam. Atrás de nós já uma considerável bicha de pessoas se impacientava. Alguns comentavam: parece que é gente ligada a esse negócio do Acordo Ortográfico. Uma voz se ergueu nervosa: – E será que vão assinar o acordo aqui, no balcão do aeroporto? Os dois contendores resolveram adiar o despacho final da querela. O funcionário pegou então nos meus papéis e disse, levantando o rosto em desafio: – Pronto, também emendo o seu. Mas é só por esta vez, ouviu? E com gesto enérgico, riscou a ficha. No formulário, em letras garrafais, escreveu: MYA KOWTO.

MIA COUTO, Cronicando

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A cassete, o spray, o Iinóleo, o nylon, o nycron, o dictafone, a informática, o telex existiam em 1940?

Ponha aí o computador, os mísseis, o biquini, o módulo lunar, o antibiótico, o enfarte, a acupunctura, o

acrílico, o apartheid, o som pop, a arte pop, as estruturas e a infra-estrutura.

Não esqueça também (seria imperdoável) o Terceiro Mundo, a descapitalização, o desenvolvimento, o

unissexo, os mass media, o rendimento per capita.

De passagem, anote a reunião de cúpula, a conjuntura, o ioga e o iogurte.

Só? Não. Tem seu lugar ao sol a metalinguagem, as algias, a coca-cola, o superego, a futurologia, a UNESCO

e a ONU.

Estão reclamando porque não citei a conotação, o conglomerado, o diagrama, a IBM, o zoom e a guitarra

eléctrica.

Mas por sua vez se esqueceram de lembrar o ecumenismo, monema, parâmetro, gerontologia, genocídio,

política habitacional.

Olha aí na fila - quem? Embraiagem, desfasamento, vela de ignição, engarrafamento, poliéster, poluição.

Mas há que haver espaço para sectorial, tónica, napalm, passarela.

A transplantação. A implantação. O audiovisual e seus flanelógrafos.

A macrobiótica, pois não. E o off-set.

Fundos de investimento, e daí? Também os de incentivos fiscais.

Know-how. Máquina de barbear eléctrica de micro-ranhuras. Baquelite. LP e compacto. Alimentos

congelados. Circuito fechado de TV. (...)

Entre palavras circulamos, vivemos, morremos, e palavras somos, finalmente, mas com que significado?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Poesia e Prosa

Minha pátria é a língua portuguesa

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis,

sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie -

nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os

escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a

minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal

página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num

delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que gozo da entrega se sofre

inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me

façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água

sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si

mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas

esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso. [...]

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.

Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me

incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal

português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como

pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ipsilon, como o escarro directo que me

enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-

romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. FERNANDO PESSOA

Livro do Desassossego de Bernardo Soares

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Diferenças lexicais na língua portuguesa

O português é a língua que portugueses, brasileiros, muitos africanos e alguns asiáticos aprendem no

berço, reconhecem como património nacional e utilizam como instrumento de comunicação, quer dentro

da sua comunidade, quer no relacionamento com outras comunidades lusofalantes.

Esta língua não dispõe de um território contínuo (mas de vastos territórios separados, em vários

continentes) e não é privativa de uma comunidade (mas é sentida como sua, por igual, em comunidades

distanciadas). Por isso, apresenta grande diversidade interna, consoante as regiões e os grupos que a usam.

Mas, também por isso, é uma das principais línguas internacionais do mundo.

É possível ter perceções diferentes quanto à unidade ou diversidade internas do português, conforme a

perfectiva do observador. Quem se concentrar na língua dos escritores e da escola, colherá uma sensação

de unidade. Quem comparar a língua falada de duas regiões (dialetos) ou grupos sociais (socioletos) não

escapará a uma sensação de diversidade e até mesmo de divisão.

Uma língua de cultura como a nossa, portadora de longa história, que serve de matéria-prima e é

produto de diversas literaturas, instrumento de afirmação mundial de diversas sociedades, não se esgota

na descrição do seu sistema linguístico: uma língua como esta vive na história, na sociedade e no mundo.

Tem uma existência que é motivada e condicionada pelos grandes movimentos humanos e,

imediatamente, pela existência dos grupos que a falam. Significa isto que o português falado em Portugal,

no Brasil e em África pode continuar a ser sentido como uma única língua enquanto os povos dos vários

países lusofalantes sentirem necessidade de laços que os unam. A língua é, porventura mais poderoso

desses laços.

Instituto Camões (2010): http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/brevesum/index.html

Exemplos de palavras que diferem em três continentes diferentes: Portugal (Europa), Angola (África) e

Brasil (América do Sul).

PORTUGAL ANGOLA BRASIL

Autocarro Machimbombo ônibus

bairro de lata Musseque favela

ir embora (ou vazar entre adolescentes)

Bazar, ir embora ir embora (ou vazar entre

adolescentes)

In http://www.tiosam.net/enciclopedial?q=Dialectos_Portugueses. Maio 2010

Quais os traços que, sem hesitação ou quase sem ela, um português do Sul (...) reconhecerá como

característicos de um português do Norte?

1- a "troca do v pelo b": ausência de distinção fonológica entre /v/ e /b/, em proveito de /b/, pronunciado

quer oclusiva, quer fricativamente ([b] e [ß], respetivamente): [b'etu] por vento e [faßB] por fava, própria do

Norte do país.

2 - a "pronúncia do 5 como X ou como j": realizações ápico-alveolares, mais ou menos palatalizadas, para

os fonemas /s/ e /z/ e que constituem a pronúncia conhecida por 5 beirão: ou seja a pronúncia "assobiada"

[s'opa] (quase xopa) de sopa e [p'ezu] (quase pejo) de peso. É um traço próprio das Beiras e do norte de

Portugal.

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3 - a "pronúncia do ch como tx ou como tch": manutenção da oposição fonológica entre a africada palatal

/S/ (representada pelo grafema ch) e a palatal /S/ (representada pelo grafema x): a pronúncia [tSavi] e

[tSam'ar] para chave e chamar.

4 - a "pronúncia do ou como o-u ou à-u": conservação do ditongo ou em diferentes realizações [ow],

[aw], como em ['owru], ['awru], ['owtru], ['awtru] para ouro e outro. Este traço é sentido como característico

regionalismo nortenho.

Por outro lado, um português do Norte não terá dificuldade em reconhecer como um dos traços mais

típicos da fala de um português do Sul, uma característica:

5 - a "passagem de ei a é": monotongação do ditongo ei em [e], como em [s'efa] ceifa, [l'eti] leite ou

[az'eti] azeite. Este traço é sentido como típico regionalismo meridional e ocorre no Algarve, Alentejo,

Estremadura e Beira Baixa.

Cintra, Luís Filipe Lindley: n http://www.c1ul.ul.pt/equipa/mcruz/segura.pdf e http://cvc.instituto-camoes.pt/tempolingua/13.html,

Junho 2010 (adaptado)

O oral e o escrito

Nas nossas relações sociais, temos de recorrer frequentemente à mensagem linguística nas suas formas

orais e gráficas. É certo que qualquer locutor conhece a sua língua pelo uso oral a que desde a infância se

habituou. Na vida dos humanos, a fala surgiu sempre antes da escrita. Mas o mero conhecimento da

realização oral não é um conhecimento efetivo da língua, pois, se assim fosse, a criança que entra na pré-

primária e o analfabeto deveriam conhecê-la nas suas realizações e virtualidades. De uma sucessão de

sons, a língua começa a ganhar forma quando graficamente, pela escrita, começa a ser representada. Se

não se aprende a escrever bem, poder-se-á cair na reprodução imperfeita da fala. Não se caia, porém, na

suposição de que o oral e o escrito são níveis inferiores ou superiores de um código, e que é possível

menosprezar um a favor do outro. O código oral e o escrito são complementares, e se o segundo é um

objeto sólido, permanente e testemunhal, a língua oral continua como referência necessária.

Ao oral e ao escrito correspondem duas formas diversas de realização do código:

· o oral utiliza FONEMAS (sons vocais ou signos sonoros).

. o escrito utiliza os GRAFEMAS (signos gráficos).

Recorrendo aos fatores da comunicação e aos intervenientes do processo comunicativo pode-se

esquematizar as principais diferenças entre as duas realizações:

ORAL O emissor serve-se da voz.

O recetor usa o ouvido.

O emissor e o recetor trocam

informações de modo imediato.

Mensagem com frases curtas.

Emissor e recetor situam-se num

mesmo contexto.

Pausas constantes.

Entoação, acentuação de

intensidade. Repetições.

Predomínio da coordenação e de

construções gramaticais nada

ESCRITO O emissor serve-se da voz.

O recetor usa o ouvido.

O emissor e o recetor trocam informações de modo imediato.

Mensagem com frases curtas.

O emissor serve-se da escrita.

O recetor utiliza a vista.

O emissor e o recetor trocam informações de modo mediato.

Mensagem com frases mais longas pela necessidade de referência à

situação em que se desenrola.

Emissor e recetor não se situam no mesmo contexto. O emissor

descreve o contexto situacional.

Pontuação para facilitar a interpretação e traduzir certas marcas de

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rigorosas.

Desvios sistemáticos.

Truncamento frásico.

Contração de palavras.

oralidade.

Emissor e recetor situam-se num mesmo contexto.

Pausas constantes.

Entoação, acentuação de intensidade.

Repetições.

Predomínio da coordenação e de construções gramaticais nada

rigorosas.

Desvios sistemáticos.

Truncamento frásico.

Contração de palavras.

Uso mais frequente da subordinação e da construção gramatical

rigorosa.

Moreira, Vasco; Pimenta, Hilário. (sd) Em Português. Ensino Recorrente. 3.º Ciclo. Porto: Porto Editora

Variação e normalização linguística

A língua não é uniforme dentro de uma comunidade em que se fala. Ela está sujeita a variações

decorrentes de diferentes fatores: geográficos, sociais e situacionais.

Variedades geográficas: Muitas vezes, reconhecemos a procedência geográfica de um indivíduo

pelo seu modo de falar. Um alentejano e um portuense falam a mesma língua, entendem-se um

ao outro, mas há diferenças claras, por exemplo, na pronúncia, na entoação, em palavras que

empregam para referir uma mesma realidade... Estas diferentes formas que uma mesma língua

assume ao longo do seu território são as variedades geográficas (ou "dialetos regionais" ou,

simplesmente, "dialetos").

Variedades sociais: A idade, o sexo, o tipo de educação, a classe social, o grau de instrução e a

profissão são alguns dos fatores que influenciam o modo como os falantes usam a língua e que

conduzem às chamadas variedades sociais.

Variedades situacionais: Como já referimos, cada falante usa a língua de modo diferente de

acordo com a situação em que se encontra, isto é, faz uso da sua competência comunicativa.

Assim, a forma como falamos tem em conta fatores como a formalidade ou informalidade da

situação, o grau de conhecimento que temos do interlocutor, a sua idade e o seu grau de cultura,

a forma de transmissão da mensagem (comunicação oral ou escrita), a intenção comunicativa.

Estes diferentes usos da língua são as variedades situacionais.

Língua padrão (ou norma padrão): Apesar destas variedades, é patente na língua uma base

comum que se converte num código conhecido e partilhado por todos os falantes de uma mesma

comunidade, permitindo a comunicação entre todos - a língua padrão (ou norma). Quem mais

contribui para a normalização linguística é a escola, os meios de comunicação social e a literatura.

É a língua padrão que é exigida habitualmente nas relações sociais de caráter profissional ou

oficial (entrevista de trabalho, carta de pedido de emprego, relatório, prova de concurso público,

etc.). A norma deve, pois, ser adquirida durante a vida escolar, já que o seu domínio é essencial à

progressão social e profissional.

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Podemos pois concluir que a língua portuguesa não é um sistema unitário mas um conjunto de sistemas

linguísticos a que correspondem variedades linguísticas regionais, sociais e situacionais. Por isso se diz que

a língua portuguesa é um diassitema.

Regionalismo na gíria na Língua Portuguesa

Eu nasci numa aldeia aquiliana próximo de Lamego que, nos anos 40, não tinha nem luz elétrica, nem

estrada, nem lá chegavam os sons da telefonia. Durante séculos, os habitantes da minha aldeia passaram ao

lado dos progressos que a civilização ia operando noutros pontos do País. Nem mesmo a evolução fonética

da língua portuguesa ali havia chegado.

Nos anos 40, os velhos da minha aldeia ainda diziam "satcho" em vez de sacho, "satcho/a" em vez de

sacho/a, "catcho" de uvas em vez de cacho, e diziam "tchuva" em vez de chuva.

Com quinze anos de idade, vim trabalhar para Lisboa. Estávamos no início da década de 50 e penso que

não será difícil imaginar o choque que foi para mim aquele primeiro contacto com os lisboetas. Eu mal abria

boca e eles começavam logo a rir. E dizia um: "Este vê-se bem que acabou de chegar das berças. " E outro:

"Este andou oito dias a escorregar por uma tábua de cebo para cá chegar." Também houve quem dissesse que

eu tinha vindo de conamãim.

Trabalhei em diversos pontos da cidade, desde os bairros da periferia às avenidas novas. Digamos que as

formas de tratamento e os termos utilizados mudavam conforme se mudava de zona. Em Chelas ou na

Picheleira a linguagem era diferente da usada na Avenida João XXI ou na Avenida de Roma.

Em Chelas, por exemplo, encontraram um dia um casal de namorados entre uns canaviais em pleno acto

sexual. O caso foi muito comentado e uns diziam que os namorados tinham sido encontrados "a afiar a moca

", enquanto outros apresentavam versão diferente: o namorado "tinha ido pela espinha acima" à namorada.

Havia ainda quem dissesse que tinham sido encontrados "a mandar a pêra ".

Com o tempo fui tomando contacto com um tipo de vocabulário que não tinha nada a ver com o que

aprendera lá na montanha. Um cemitério, por exemplo, não era cemitério: era "o jardim dos pés juntos", "0

jardim das tabuletas", "o cemintendes", mas de cemitério quase ninguém falava. Com o dinheiro, passava-se

a mesma coisa. O que eu ouvia falar era de carcanhóis, bagalhoça, taco, arame, d'argent, etc. E deve dizer-se

que a palavra d'argent era muitas vezes utilizada por pessoas que não sabiam falar francês, o que pode levar-

nos a supor que se trata de uma reminiscência das invasões napoleónicas.

Em vez de morrer, dizia-se "esticar o pernil", "atar as botas", "ír desta para melhor". Beber um copo

era "molhar a palavra ", bater em alguém era "molhar a sopa ".

Quando se via um padre, dizia-se "Iá perdi cinco tostões". E porquê cinco tostões? Porque equivalia a

uma coroa (vinte e cinco tostões, por exemplo eram cinco coroas) e uma coroa era o que o padre, naquela

altura, tinha na cabeça.

Um idiota era um indivíduo "com uma aduela a menos ", o órgão sexual da mulher era "a xarifa ", e

dormir era "xoinar". Uma mulher com umas boas pernas dizia-se que "tinha umas grandes mocas ", e se

tivesse uns seios avantajados dizia-se que tinha "umas grandes prateleiras".

Se alguém se aborrecia comigo dizia-me para não lhe "amolar a paciência" e, se eu me ria, era acusado de

estar a "arreganhar a tacha" ou de estar sempre com "o teclado à mostra ". Muitas vezes me mandaram "ven-

der chuchas à porta da maternidade ", sem eu saber bem onde é que ficava a maternidade.

Quando eu comecei a arrastar a asa a uma miúda muito gira, alguém me soprou ao ouvido: "olha que essa

já mijou ossos ". Fiquei depois a saber que ela já tinha tido um filho.

Estas e muitas outras expressões faziam parte da gíria lisboeta daquele tempo e suponho que ainda fazem.

Aliás, o teatro, através da Ivone Silva, tentou recuperar muito do falar alfacinha e hoje a Marina Mota está a

tentar fazer o mesmo através de programas televisivos. Mas é de supor que nos bairros mais castiços ainda se

fale como nos anos 50.

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Havia ainda uma gíria, usada pelos gatunos, em que a algibeira era "algiba ", acolá era "alines" e arteira

era "andante ", mas isso era outra coisa. É suposto que essa gíria dos gatunos esteja hoje a ser utilizada pelos

traficantes de droga. Seja como for, trata-se de um falar que, em princípio, só funciona entre marginais.

Eu hoje vivo em Évora, onde as pessoas dizem "Iête" em vez de leite, e "cafei", em vez de café, e a

explicação que dão é que o "i" fugiu do leite para o café. O meu discurso, eu tenho consciência disso, é uma

miscelânea de termos das montanhas do Norte, de Lisboa e do Alentejo. Quando, por exemplo, um homem

me faz irritar muito, eu digo-lhe: "Oiça lá, ó compadre: prante-se manso, desampare-me a loja, senão ainda o

açapo com um estadulho no galete!"

Mas é evidente que em Évora não há estadulhos...

ROCHA, LUÍS in Jornal de Letras, 18 de janeiro de 1994

As palavras

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As

palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e

inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças:

vêm nos livros, nos jornais, nos “slogans”publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As

palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas.

O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que

vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam,

julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma

precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se

abrem e fecham sessões, se lançam

cortinas de fumo ou dispõem bambinelas

de veludo. São brindes, orações, palestras

e conferências. Pelos discursos se

transmitem louvores, agradecimentos,

programas e fantasias.

As palavras deixaram de comunicar.

Cada palavra é dita para que se não oiça

outra palavra. A palavra, mesmo quando

não afirma, afirma-se. A palavra não

responde nem pergunta: amassa. A

palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras

sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina,

observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia

calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o

joio. Mas só o trigo dá pão.

JOSÉ SARAMAGO, Deste Mundo e do Outro (1971)

Ler

O que interessa mais que tudo é ensinar a ler. Ler sem que passe despercebido o mais importe - e às

vezes é pormenor que parece uma coisinha de nada. Ler, despindo cada palavra, cada frase, auscultando

Disponível na Internet: http://pensador.uol.com.br/frase/NjI1OTI0/

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cada entoação de voz para perceber até ao fundo a beleza ou o tamanho do que se lê. É também de

interesse primário levar os rapazes a amar as palavras - mostrar como são cheias de beleza, outras como

são engraçadas, outras como são doces. Ora para amar as palavras e para, a seguir, amar a leitura, é

aconselhável, como diria La Palice, não fazer desamar as palavras, nem fazer desamar a leitura.

SEBASTIÃO DA GAMA, Diário (1961)

Um livro é um tesouro É um regalo olhar para livros quando eles são feitos com amor. Olhá-los, acariciá-los. [...] Um livro é,

em muitos casos, mesmo na fase industrial para que teve de evoluir, uma história de dádiva e paixão.

Começa no autor, mas nele não acaba. O texto inspira outras gestações, outros engenhos, outros estímulos

criadores que com o texto se fundem e lhe prolongam a odisseia, sempre renovada, de sacrifícios e

alvoroços. Da mesa do editor à oficina, da oficina à biblioteca, são muitas as personagens que participam

de tão apaixonante enredo e a ele se dedicam sem condições. Produzir livros é o ofício cujas

características são as que uma obra merece. Um editor que valha esse nome pode alhear-se das contas

com que a administração lhe refreia os entusiasmos, mas nunca deixa de excitá-lo e empolgá-lo a escolha

dos materiais, a escolha das matrizes tipográficas, o formato do volume, o equilíbrio gráfico da mancha e

das margens, o desenho da capa. Pega no volume saído do prelo como em alguma coisa viva que se gerou

da sua carne, faz dele um objeto com alma que seduz e se destina aos que são recetivos a essa sedução. O

mundo da edição, como o da criação artística, é um mundo de febre. Nunca se sabe onde termina um

deles para dar lugar ao outro. O autor deixa-se possuir, dias e noites, por uma ideia, por uma frase; os que

lhe difundirão essa ideia, essa frase, deixam-se possuir, dias e noites, pela preocupação de uma tinta que

não correspondeu ao desejado, deixam-se embevecer por uma página que tem beleza gráfica.

FERNANDO NAMORA, Diálogo em Setembro (1966)

Leitura individual [...] nunca a imagem pode substituir a escrita. E toda uma série de faculdades humanas se atrofiariam

com o exclusivo visual. Imagine-se uma sequência cinematográfica em que simplesmente um homem

entra em casa e dependura o chapéu no bengaleiro. E suponhamos que um Eça descreve a mesma

sequência. Que enorme enriquecimento e

diversificação introduziria. E simultaneamente, como

se despertariam as faculdades de inteleção,

visualização, imaginação, etc. com essa leitura. Mas a

própria leitura coletiva suprime uma parte da

atividade de tais faculdades. Além de que não é

prático obrigarmos quem lê a parar, a repetir, etc.

quando não entendemos bem ou queremos

simplesmente ficar a refletir. Mas sobretudo, ou a

linguagem falada iguala a escrita - e então é a escrita

que funciona; ou se afasta dela, e então é ilegível.

Porque a linguagem escrita tem um código diferente

da falada. Que se grave uma conversa e se transcreva

depois: ela é incompreensível, porque lhe falta o que a completa e toma inteligível desde o tom, ao gesto,

à mímica, etc.. A leitura individual foi um dos reflexos da instauração do humanismo. Hoje vive-se sob o

signo do coletivo. Mas nisso mesmo se perde toda a riqueza e produtividade da nossa leitura a sós. Já não

falo da necessidade de uma leitura individual de uma obra científica ou filosófica; mas mesmo a literária.

Disponível na Internet: http://www.ecleticus.com/2013/02/comecando-gostar-de-

ler.html

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A única leitura individual que talvez se dispense é a do jornal. Por isso o noticiário da TV é eficiente. Mas

um homem não se cumpre apenas com o noticiário do que faz um senhor ministro ou com a informação

do boletim meteorológico. A imagem tem também evidentemente o seu papel a cumprir - e as artes

plásticas existem ou o cinema ou o simples documentário. Mas o discurso é tão necessário e impositivo

que é nele que convertemos a informação sobre o que vimos ou a nossa própria reflexão. A imagem

plástica tem mesmo a vantagem do indizível sobre o discurso, ou do infinitamente ou inesgotavelmente

dizível dela. Mas o que não se esgota no dizer não é o que se não diz mas o que se não diz de todo. A

leitura de um quadro varia com o tempo e permite talvez mais do que a literatura uma interminável

retomada do que em tal quadro se implica e se renova através dos séculos. Mas o destino desse quadro

não é o da vazia contemplação mas o que indefinidamente vamos reduzindo ao discurso, ainda que tal

discurso se desenvolva no íntimo de nós. E se isso queremos traduzir a outrem na riqueza e complexidade

e abertura reflexiva que a imagem contém, é na leitura e leitura individual que sobremaneira o

conseguiremos.

VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente. 4 (1982-1983)

O prazer de ler

As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque

a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho - ,

transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria

ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem

bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem

formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar

tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo.

Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia

sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio

passivo de coisa movida. (...)

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém

páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como

do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela

primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira, sobre o

Rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio...”. E fui lendo,

até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará

chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua

majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele

assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande

emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância, de

que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela

primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Guerra, João Augusto da Fonseca; Vieira, José Augusto da Silva. (sd) Português – Ensino Secundário Recorrente. 1.ª parte. Porto: Porto Editora

Vantagens de saber ler

Toda a gente culta lamenta que, nos países civilizados, ainda haja muitos seres humanos que não sabem

ler. Parece-nos isto uma vergonha para a Civilização. De facto o é. Poucos, todavia, de entre toda essa gente

culta, chegam a meditar um pouco sobre as vantagens e desvantagens de saber ou não saber ler.

Disponível na Internet: http://menos1naestante.com/tags/gif-animado/

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A primeira vantagem de saber ler - primeira, por ser a que imediatamente ocorre a qualquer pessoa - é de

ordem prática. Evidente se toma que, neste nosso mundo moderno, o analfabeto está praticamente inibido de

muitas coisas. Mas outra vantagem - talvez não menos importante - oferece a leitura, que é a de abrir o

acesso à cultura. Analfabetos há que, pela experiência da vida, pelo trato com os homens, pelos dons

naturais, adquirem aquele grau de cultura já implicada. E homens há que sabem ler mas não sabem dispor

dessa estupenda vantagem, e então como que ficam analfabetos apesar de saberem ler.

Nos primeiros se toma particularmente aflitivo o analfabetismo. Pois se, com a simples experiência e os

dons naturais, conseguem eles distinguir-se, até onde não iriam se soubessem ler, se pudessem cultivar a

leitura? Quanto aos segundos, são o exemplo dum mal que sempre existiu, mas particularmente alastra nos

nossos vertiginosos dias. Sim, não basta saber ler, se por saber ler se entende distinguir uns certos carateres e

dar-lhes significado! Há um saber ler que vai muito mais longe, muito mais alto, muito mais fundo. E só este

verdadeiramente abre as portas de oiro da cultura autêntica.

Neste superior sentido - não, não sabe ler indivíduo que se limita a devorar jornais, revistas, seleções ou

romances mais ou menos policiais, com um mínimo de

atividade mental. Porque saber ler - no superior sentido -

é meditar os grandes autores; dialogar com eles, discutir

com eles os problemas que nos propõem; viajar, de braço

dado com eles, pelos maravilhosos reinos da

Sensibilidade, da Fantasia, da Inteligência; admirar,

conscientemente, o que nos oferecem de grande, belo,

verdadeiro; chegar, enfim, a ser digno do seu convívio, e

enriquecer o espírito ao calor e à luz desse contacto.

Isto, sim, é saber ler - porque saber ler é colaborar.

Mas isto exige atenção, vagar, concentração,

recolhimento, esforço. O profundíssimo prazer da boa

leitura é com tal moeda que se paga. Aqui me dirão que a

vertiginosa vida atual não chega para tanto! Não dá tempo. E eu bem vejo que em grande parte se substitui

hoje a leitura pela Rádio ou a Televisão, como se pudesse o que quer que seja substituir a leitura! Bem vejo

que se lê onde calha, como calha, ao deus-dará. Por certo é melhor ler mal, que nada. Mas, no fim e ao cabo,

ou o homem acabará por sofrer uma degradação, ou, na medida do possível, terá de se opor à vertigem em

que hoje vai arrastado. Meus amigos! Em havendo vontade e juventude, há sempre uma medida do possível

até contra a mais firme aparência do impossível.

JOSÉ RÉGIO, in O Grito, n.º 5, de 1 de Abril de 1960 (Texto submetido a ligeiras alterações formais.)

ALGUMAS NORMAS PRÁTICAS PARA ESCREVER UM TEXTO

1.ª fase: a planificação - A planificação exige um percurso com vários momentos.

1.ª momento - Escolhido o assunto a desenvolver, deve-se registar todas as ideias que vierem à sua

mente sem qualquer preocupação de ordenação. E uma listagem desordenada.

2.º momento - Relê-se a listagem e, tendo em mente o assunto escolhido, selecionam-se apenas as

ideias e as frases que são úteis, pondo de parte as inúteis e supérfluas. Nem tudo o que se escreve no

primeiro momento interessa.

3.º momento - Selecionadas as ideias, há que colocá-las por uma determinada ordem porque um

texto é um tecido ordenado. O caminho a seguir pode ser duplo: do mais importante para o menos

importante ou vice-versa. A ordenação deve ser visível.

Disponível na Internet: http://doisparaquinze.tumblr.com/post/18041653293/leitura

-a-menina-que-n%C3%A3o-sabia-ler

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4.º momento - Da posse dos dados anteriores, é a altura de traçar o plano do texto. De forma

geral, o texto deve ser estruturado nos três momentos clássicos: introdução, desenvolvimento e

conclusão.

A introdução deve indicar o assunto que vai ser desenvolvido e o plano que se vai seguir. Deve

ocupar um ou dois parágrafos.

O desenvolvimento retoma as ideias já selecionadas, desenvolve-as, de modo que haja dinâmica

e progressão, exemplifica para tomar mais evidente a realização do tema e estabelece as relações de

semelhança ou de oposição, de causa ou

consequência, ou outras, utilizando os conectores do

discurso, indicados mais adiante.

A conclusão é importante porque deixa a última

impressão.

2.ª fase: a redação

É necessário recordar algumas normas.

a) As frases devem ser completas.

b) A cada ideia completa deve corresponder um

parágrafo.

c) Para a expressão lógica das ideias, é preciso

utilizar com cuidado:

- a coordenação e a subordinação. (O uso sistemático da coordenação, sobretudo da conjunção

e, torna o discurso pobre e próximo da língua falada.)

- os conectores ou os articuladores do discurso. Eis os principais:

para explicitar - isto é, ou antes, ou melhor, neste caso, sendo assim, por vezes, aliás, etc.

para provar - com efeito, sem dúvida, na verdade, deste modo, efetivamente, etc.

para exemplificar - por exemplo, importa salientar, assim, tome-se como exemplo, etc.

para reforçar ideias - além disso, como já foi dito, por esta razão, etc.

para atenuar, restringir ou opor ideias - mas, no entanto, pelo menos, todavia, sobretudo, ressalve-

se, etc.

para concluir - finalmente, em conclusão, consequentemente, etc.

3. ª fase: a revisão

Os grandes escritores confessam que revêem várias vezes os seus originais. Após ter escrito o texto,

os alunos têm também necessidade de fazer uma revisão para corrigir determinadas faltas.

a) A ortografia - Há, por vezes, palavras mal escritas ou sobre as quais temos dúvidas. Será

necessário consultar um dicionário, se não formos capazes de as resolver.

b) A acentuação - Todas as palavras estão bem acentuadas? No caso de dúvida, consulte-se o

dicionário.

c) As repetições - Quantas vezes se repetiu mesma palavra? Como é que se podem evitar as

repetições? Temos à mão os pronomes que podem substituir os nomes; temos à mão os sinónimos

de palavras repetidas; por vezes, a omissão da palavra repetida é a solução. Lembremos o caso dos

verbos que, em certos contextos, implicam o sujeito não expresso.

d) A pontuação - É necessário dominar as regras da pontuação.

e) O vocabulário - Quando escrevemos um texto, devemos evitar dois defeitos: o uso de palavras

banais e o uso de palavras ditas "difíceis". No primeiro caso, o texto será muito pobre e poderá

Disponível na Internet: http://www.mandalaconteudos.com.br/blog/como-

escrever-bem/

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confundir-se com um texto oral; no segundo caso, é errado pensar que o texto vale maís por conter

palavras "difíceis". O melhor método é saber escolher os vocábulos mais adequados às ideias que

cremos exprimir. A revisão do texto escrito permite a seleção do melhor vocabulário.

f) A expressividade - Na alínea anterior já se evidenciou a necessidade de saber usar um vocabulário

preciso. Agora insiste-se na expressividade, isto é, numa qualidade que torna o texto mais belo. Não

se pedem textos de nível literário, mas que sejam usados alguns recursos já conhecidos, como, por

exemplo, a personificação, a comparação, a metáfora, etc.

A expressividade resulta da conjugação de vários fatores, desce o vocabulário com maior capacidade

de significação, até às figuras de estilo, usadas com moderação e saber.

Guerra, João Augusto da Fonseca; Vieira, José Augusto da Silva. (sd) Português – Ensino Secundário Recorrente. 1.ª parte. Porto: Porto Editora

FICHA DE PLANIFICAÇÃO DA ESCRITA

Questões em que devo pensar Selecionar com um X Conselhos a ter e conta

Qual o tema/assunto do meu texto? (construção do tópico)

Se não tem informação suficiente sobre o tema, comece por fazer uma pesquisa (enciclopédias, livros, Internet...).

Que tipo de texto vou escrever? (determinação do tipo de discurso e de texto)

de caráter utilitário: declaração requerimento carta formal relatório Outro (qual?)

Cada tipo de texto tem as suas características próprias. Se tiver dúvidas acerca das características do seu texto, informa-se junto do seu formador ou faça uma pesquisa.

expressivo/criativo

informativo

narrativo/descritivo

Quem são os destinatários do meu texto? (estatuto e relação entre os interlocutores)

superior hierárquico de uma instituição

Não pode usar a mesma linguagem se escrever a um colega, ao Diretor do Agrupamento, no seu diário, para o jornal da escola, um texto dirigido ao professor, etc. É preciso adequar o discurso ao objetivo comunicativo, ao assunto e ao interlocutor. Também tem que ter em atenção que o destinatário pode não saber as mesmas coisas que você sabe e, por isso, tem de se explicar muito bem.

professor

leitores do jornal da escola

(comunidade escolar e outros)

colegas do mesmo ano ou de

outros

outro (qual?)

Que objetivos pretendo atingir com o meu texto? (intencionalidade comunicativa)

pedir, declarar, relatar...

Quando escrevemos alguma coisa, fazemo-lo sempre com determinados objetivos.

exprimir sentimentos, emoções,

pensamentos.. .

informar

contar, descrever

Registo as primeiras ideias

Não deve começar a escrever imediatamente o teu texto, mas apenas registar os tópicos que pretende desenvolver. Registe as suas ideias conforme lhe vão surgindo sem ter, para já, grande preocupação com a sua organização.

Organizo o meu texto (elaboração de um plano-guia ou de um esquema)

Fórmula de saudação / formas de tratamento (se for o

caso) Introdução/preâmbulo Corpo/desenvolvimento Conclusão Fórmula de despedida (se for o

caso)

Atenção ao desenvolvimento das ideias de maneira que não haja repetições ou saltos entre elas (articulação do discurso), à organização em parágrafos e períodos, à pontuação, à escolha do vocabulário, etc.

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RECURSOS DE APOIO À EVIDENCIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA DIMENSÃO DA LÍNGUA, NÚCLEO GERADOR SABERES FUNDAMENTAIS

Tendo em conta que o processo de Reconhecimento e Validação de Competências (RVCC) de Nível

Secundário passa pela elaboração de um Portefólio, que deverá integrar textos de caráter autobiográfico

onde reflexivamente sejam evidenciadas, à luz do Referencial de Competências-Chave, as competências

adquiridas ao longo da vida, apresentam-se de seguida alguns textos de apoio trabalho a realizar no

âmbito do Núcleo Gerador 7 – Saberes Fundamentais na área de Cultura Língua e Comunicação.

Sendo a leitura uma das chaves do conhecimento é também condição para o desenvolvimento de

competências de escrita, cujo domínio é fundamental na elaboração do Portefólio a desenvolver pelo

candidato. Assim, como estratégia de facilitação do processo, apresentam-se de seguida alguns recursos

relacionados com competências a demonstrar no referido Núcleo Gerador, fundamentalmente na

dimensão da Língua, nos termos constantes do Referencial de Competências Chave.

De seguida, vamos apenas referir alguns os tipos textuais que pelas suas características poderão ser

facilitadores do trabalho a realizar pelos candidatos, tendo em conta os temas definidos no Referencial

de Competências-Chave: O Elemento, Processos e Métodos Científicos, Ciência e Controvérsias Públicas e

Leis e Modelos Científicos.

Como referimos, ler é uma das chaves do conhecimento e condição para escrever bem. Tendo em

conta o perfil de competências definido no Referencial de Competências-Chave, de Nível Secundário e

que a seguir se apresenta, espera-se que os candidatos em processo de RVCC sejam capazes de

apresentar evidências das competências culturais, linguísticas e comunicacionais adquiridas a longo da

vida, fruto da leitura e conhecimento de diferentes tipos textuais.

PERFIL DE COMPETÊNCIAS NA DIMENSÃO LINGUÍSTICA (RCC de CLC)

Interagir em língua portuguesa, com clareza e correção, evidenciando espírito crítico, responsabilidade e autonomia.

Compreender textos longos em língua portuguesa e/ou língua estrangeira, reconhecendo os seus

significados implícitos, as suas tipologias e respetiva funcionalidade. Evidenciar reflexão sobre o funcionamento da língua portuguesa, apreciando-a enquanto objeto

estético e meio privilegiado de expressão de outras culturas. Compreender as ideias principais de textos em língua estrangeira e expressar-se oralmente e por

escrito com à-vontade sobre diferentes temáticas. Evidenciar conhecimento sobre várias linguagens, em diferentes suportes, que lhe permitam perceber

as diferenças socioculturais, sociolinguísticas e técnico-científicas, visando uma tomada de consciência da sua própria identidade e da do outro.

Compreender os mecanismos de funcionamento e produção de conteúdos nos mass media,

posicionando-se criticamente sobre os mesmos. Evidenciar competências interculturais que lhe proporcionem uma maior abertura e aceitação de

novas experiências linguísticas e culturais.

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Competência linguística

O utilizador de uma língua – o falante – possui capacidade intuitiva de usar a sua língua materna. Esta

capacidade designa-se por competência linguística.

No entanto, esta competência não é suficiente para que um falante comunique corretamente: ele tem

de ser capaz de adequar aquilo que diz a cada situação específica. Se, por exemplo, um cidadão pretende

reclamar junto do Presidente da Câmara o mau funcionamento de um serviço, terá de usar a forma de

tratamento adequada (diferente da que usaria para se dirigir a uma amigo). Esta capacidade que o

falante possui de usar a língua de forma adequada às diferentes situações de comunicação designa-se

competência comunicativa.

Para além dos registos autobiográficos e outros tipos textuais que possam e devam ser

apresentados/produzidos no Portefólio relacionados com os diferentes contextos de vida, os candidatos

poderão evidenciar competências tendo por base a leitura de textos de diferentes tipos, de modo a

demonstrarem competências de leitura e de escrita.

NB - As competências associadas à leitura de textos, designadamente os de tipo literário como

novelas ou romances, poderão ser evidenciadas através da apresentação no Portefólio das respetivas

Fichas de Leitura, apresentando-se, de seguida, a título de exemplo, um modelo de estrutura.

FICHA EXEMPLO DE LEITURA (estrutura)

Nome do autor: ____________________________________________________________________________________________________

Título: ________________________________________________________________________________________________________________

Editor: _____________________________________________________________________________________________________________

Local e data: ____________________________________________________________________________________________________

Informações sobre o autor: ____________________________________________________________________________________

Outras obras do autor: ____________________________________________________________________________________________

Resumo/Síntese: __________________________________________________________________________________________________

Comentário: _________________________________________________________________________________________________________

Data do fim da leitura: ____________________________________________________________________________________________

Data do início da leitura: _________________________________________________________________________________________

CLASSIFICAÇÃO DE TEXTOS

Classificar textos significa aproximar ou afastar entidades singulares, únicas. Desde a antiguidade que se

procurou classificá-los. Ao longo dos tempos foram várias as classificações propostas, segundo diversos

critérios. Na verdade, os textos podem ser classificados de modos diversos, usando diferentes critérios o

que leva a que um mesmo texto possa integrar diferentes classes consoante o critério usado.

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Antes de tentar apresentar propostas de classificação de textos importa definir o conceito de texto.

Segundo Paulo Nunes 1) um texto “é um objeto verbal (ou seja, é composto por signos linguísticos) que

constitui um todo de sentido, o que equivale a dizer que se caracteriza por ser coeso e coerente, que integra

e suscita sentidos no âmbito de uma situação de enunciação particular. Do ponto de vista semântico, é,

portanto, uma unidade de significado(s), e, do ponto de vista pragmático, concretiza um ou mais atos de

fala (como prometer, perguntar, pedir, avisar, ameaçar, representar uma dada realidade, etc.).”

Segundo o mesmo autor, existem outras propriedades associadas ao conceito de texto:

“ a) a situação de enunciação em que cada texto é produzido caracteriza-se por coordenadas como os

interlocutores (os respetivos papéis sociais, as relações socioprofissionais que mantêm, etc.), o tempo e

o espaço em que o texto emerge; cada situação de enunciação é sempre única, singular;

b) os textos podem ser manifestados na oralidade ou na escrita; o suporte não é um critério decisivo

para definir o conceito de texto; desde que constitua “um todo de sentido”, qualquer produto verbal

configura um texto;

c) a extensão do objeto texto é indeterminada; deste modo, constitui um texto quer o aviso à porta de

um estabelecimento comercial (por exemplo, «volto já»), quer um romance de Eça de Queirós (como

Os Maias);

d) os textos podem ter um único locutor ou mais do que um; de acordo com esta propriedade, os

diálogos e os debates, entre outras interações verbais possíveis, são considerados textos.

A classificação dos textos não é um processo definitivamente estabelecido, antes varia de acordo com

a posição de diferentes especialistas tendo em conta que os textos são pois objetos multidimensionais.

Cada dimensão pode configurar um critério classificativo. Essas dimensões podem servir para aproximar

ou distinguir textos. Se há autores que apenas usam um critério para classificá-los, outros há que o fazem

tendo em conta mais do que um critério.

Há autores que apenas usam critérios homogéneos (apenas um critério) para classificar textos. A título

de exemplo apresentam-se os seguintes:

Classificar segundo o critério de natureza cognitiva, nomeadamente nos mecanismos cognitivos que

precedem ou subjazem à elaboração de cada texto: textos narrativos; descritivos; argumentativos;

expositivos; instrucionais.

Classificação segundo o critério das funções da linguagem que diz respeito ao objetivo que o locutor

pretende atingir com o texto produzido: textos expressivos, apelativos, poéticos, referenciais,

metalinguísticos e fáticos ou simplesmente literários e não literários. Estes apresentam-se

normalmente mais objetivos, com relações de sentido restritas e orientam-se para a informação direta

que documenta a realidade e para a interação com os indivíduos. Predomina a função referencial da

linguagem. Os textos literários possuem uma dimensão estética, plurissignificativa, e permitem, pelo seu

dinamismo e pela criação de novas relações de sentido, refletir sobre a realidade e recriá-la. Predomina

a função poética e expressiva da linguagem.

Classificação segundo o critério dos tipos de discurso intimamente ligados à natureza

socioprofissional dos respetivos autores: discurso jornalístico; discurso político; discurso jurídico;

discurso religioso; discurso académico; discurso literário; discurso publicitário, etc.

Outros autores recorrem a critérios heterogéneos (vários critérios) para classificar os textos. A título

de exemplo referem-se os seguintes: conteúdo temático; organização global; modo comunicacional;

intenção comunicativa; função perlocutória; suporte.

1 - Alguns contributos da linguística para a classificação dos textos literários, Universidade Aberta, in http://www.academia.edu/11334767/Alguns_contributos_da_lingu%C3%ADstica_para_a_classifica%C3%A7%C3%A3o_dos_textos_liter%C3%A1rios, consultado em 06/04/2015.

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A classificação dos textos em tipos tendo por base as dimensões enunciadas, (recorrendo a apenas a

um critério ou a vários critérios), especifica-se em subtipos, os modos (tratando-se de textos líricos) e estes

em géneros. Todos os textos literários podem ser integrados num de três modos (lírico, narrativo,

drama), independentemente do tempo ou do espaço geográfico e sociocultural em que foram produzidos.

Os modos configuram um conjunto fechado de classes universais e intemporais.

Os tipos de discurso especificam-se em géneros tendo por base a respetiva finalidade. O que permite

classificar os textos por géneros textuais são as estruturas que os compõem (conteúdos, estilos,

propriedades funcionais e características sócio comunicativas), sejam eles orais ou escritos. Os géneros

estão diretamente ligados às situações quotidianas de comunicação, socialmente reconhecidas.

Apresentando características comuns, permanecem estáveis no tempo. Procuram atingir intenções

comunicativas semelhantes e ocorrem em

situações específicas. Género textual é assim

uma noção relativamente vaga usada para

categorizar textos produzidos no quotidiano

das sociedades, intimamente relacionados

com os contextos onde são

produzidos/utilizados. Os géneros textuais

constituem um conjunto aberto de classes

condicionadas pelas circunstâncias histórico-

culturais em que emergem. Assim, os géneros

em que os textos se inserem dependem de

condicionalismos relativos quer ao tempo,

quer ao espaço em que emergiram.

Estamos pois perante um processo

revestido de uma certa complexidade e diversidade, sobre quando tentamos classificar os textos em

tipos, tendo em conta que eles são normalmente multidimensionais. Em alguns manuais do ensino

secundário, a classificação proposta cruza o critério da natureza linguística da sua composição (aspetos

lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) com o critério da intenção comunicativa. A proposta

que a seguir se apresenta segue estes critérios.

1. Textos informativos e textos dos domínios educativo e transacional

1.1. Textos informativos-expositivos

1.1.1. Resumo de texto informativo-expositivo

1.1.2. Resumo de texto informativo-expositivo

1.1.3. Síntese de texto informativo-expositivo

1.1.4. Comentário

1.1.5. Exposição

1.1.6. Debate

1.1.7. Reconto

1.1.8. Relato de experiências/vivências

1.1.9. Descrição/Retrato

1.1.10. Texto expressivo/criativo

1.1.11. Texto expositivo-argumentativo

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1.2. Textos do domínio educativo

1.2.1. Verbete de Dicionário

1.2.2. Verbete de Enciclopédia

1.3. Textos do domínio transacional

1.3.1. Declaração

1.3.2. Requerimento

1.3.3. Relatório

1.3.4. Carta formal

1.3.5. Contrato

1.3.6. Regulamento

1.3.7. Curriculum vitae

2. Textos dos media

2.1. Artigos de divulgação científica e técnica.

2.2. Entrevista

2.3. Cartoon

2.4. Artigo de apreciação crítica

2.5. Crónica

3. Textos de caráter autobiográfico

3.1. Autobiografia

3.2. Memórias

3.3. Diário

3.4. Carta intimista

3.5. Autorretrato

3.6. Textos digitais: Blog, Email, Facebook, Tweeter, Mensagem SMS

4. Textos literários

4.1. Modo Narrativo

4.2. Modo Dramático

4.3. Modo Lírico

Bibliografia: Silva, Paulo Nunes da. Alguns contributos da linguística para a classificação dos textos literários, Universidade Aberta,

disponível em

http://www.academia.edu/11334767/Alguns_contributos_da_lingu%C3%ADstica_para_a_classifica%C3%A7%C3%A3o_dos_t

extos_liter%C3%A1rios, data de consulta a 06/04/2015.

Moreira, Vasco;(sd) Pimenta, Hilário. Preparação para o Exame Nacional 2008, Português 12.º ano, Acesso ao Ensino

Superior. Porto Editora: Porto.

Jorge, Noémia(2014) Preparação para o Exame Nacional, Português 10.º ano. Porto Editora: Porto.

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CARACTERÍSTICAS, ESTRUTURAS E MARCAS LINGUÍSTICAS

MAIS COMUNS DOS DIFERENTES TIPOS/GÉNEROS DE

TEXTOS, COM EXEMPLOS

TEXTOS INFORMATIVOS-EXPOSITIVOS

Texto informativos-expositivo – é aquele em que se transmite de forma clara, ordenada e objetiva,

informações referentes a factos reais/concretos. Tem, geralmente, um caráter expositivo e, por isso,

assume-se que por natureza possui um caráter informativo-expositivo. Visa, principalmente, transmitir

informação de forma clara, ordenada e objetiva.

Estrutura possível: título (que sintetiza o tema do texto) e eventualmente o subtítulo (que sintetiza o

trema abordado no corpo do texto), introdução (apresentação do assunto), desenvolvimento (explicitação

do tema, por meio de definições, análises, classificações, comparações, contrastes, exemplificações) e

conclusão (resumo/síntese das ideias chave).

Marcas linguísticas mais comuns: registo corrente; vocabulário claro e objetivo; marcadores discursivos

organizadores do texto, dando-lhe nexos lógicos; utilização preferencialmente do presente do indicativo

com valor genérico (quando predomina a sequencia lógica) ou pretérito perfeito simples (quando

predomina a sequencialidade causal-cronológica).

RESUMO

O resumo de texto é uma atividade de reformulação que se exerce sobre qualquer tipo de texto, com o

objetivo de o escrever de novo, sob forma mais reduzida, preservando com o máximo rigor o essencial da

informação que ele veicula.

Caracteriza-se pela seleção da informação essencial e pela supressão da informação acessória, mas

também pela generalização baseada na substituição de determinadas expressões por outras, mais

genéricas e mais abrangente. O resumo deverá ter entre um quarto e um terço da extensão do texto

original.

Para elaborar um resumo, dever-se-á selecionar, reduzir, generalizar e reconstruir palavras e frases

constantes do texto a resumir.

Resumir é, então, o ato de condensar, com fidelidade, as ideias essenciais de um texto, mantendo

igualmente relações lógicas entre as ideias.

Para a elaboração de um resumo, é conveniente seguir algumas etapas:

1. Ler atentamente o texto a resumir, o texto-fonte, com vista à sua compreensão.

2. Encontrar os vários momentos do texto, registando os tópicos essenciais ou elaborar títulos-resumo de

cada um desses momentos.

3. Sublinhar no enunciado as palavras-chave de cada um desses momentos.

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4. Eliminar os exemplos e citações entre aspas do texto, cuja função seja apenas clarificar uma

determinada ideia apresentada.

5. Excluir as marcas do autor do texto-fonte, devendo recorrer-se a formas impessoais (Exemplo: "Eu

penso que as pessoas devem respeitar os outros..." "Respeitar os outros é um dever."; nunca se

deve utilizar o discurso indireto. Exemplo: Ele pensa que.. .).

6. Evitar comentários e opiniões, pois o autor do resumo deve manter-se isento.

7. Optar por construções mais económicas e englobantes:

· substituir expressões nominais específicas por vocabulário mais genérico, isto é, por hiperónimos.

Exemplo: Português, Matemática, Física, Inglês... fazem parte do meu currículo. - As disciplinas do

meu currículo.

· utilizar, sempre que possível, o gerúndio. Exemplo: Ao estimular o desenvolvimento –

Estimulando o desenvolvimento.

· recorrer a orações complexas. Exemplo: Algumas composições provençais eram satíricas. Essas

composições serviam para ridicularizar costumes. - Algumas composições provençais eram

satíricas, pois ridicularizavam costumes.

· recorrer a expressões económicas. Exemplo: Hoje em dia - atualmente; de forma brusca -

bruscamente; dar origem a - originar; serviam para ridicularizar - ridicularizavam.

· optar pela frase na ativa, em vez da passiva. Exemplo: Os trabalhos foram corrigidos pela

professora - A professora corrigiu os trabalhos.

8. Elaborar resumo, mantendo as ideias ou tópicos e a rede semântica relativa ao tema, integrando vo-

cábulos e expressões constantes do texto. Deve utilizar-se uma linguagem clara, coerente, concisa e

cuidada. Além disso, para manter fio condutor entre as ideias fundamentais, deve recorrer-se aos ar-

ticuladores discursivos.

9. Depois de elaborado resumo, deve ler-se mais uma vez texto-fonte, seguido do resumo, para

confirmar a concordância entre eles.

EXEMPLO DE RESUMO DE UM TEXTO

Texto 1:

Cerca de um terço do solo do planeta é constituído por desertos e cidades em que pouca atividade bio-

lógica é gerada, um terço é constituído por florestas e savanas e um terço por terrenos de agricultura e pas-

torícia. Os dois últimos terços têm, por assim dizer, vindo a diminuir (...). Entre 1950 e 1980 perderam-se

50% das reservas florestais dos Himalaias devido à duplicação da população e à procura que ela gerou, quer

de solo agrícola, quer de pastos, quer de lenha. A verdade, porém, é que a destruição maciça das florestas dos

sopés dos Himalaias começou com o colonialismo, no final do século XIX, princípios do século XX, com o

corte de madeira para exportação e para construção de caminhos-de-ferro. Trata-se, pois, de uma agressão

que, apoiada em vários cálculos económicos, se tem mantido décadas a fio. Em Julho de 1991, num apelo

dirigido aos presidentes das repúblicas da América Latina, denunciava-se que, ao ritmo da destruição atual,

no ano 2000, 3/4 das florestas tropicais da América Latina - que detém 60% do total mundial de florestas

tropicais - terão sido destruídos e com eles 50% das espécies perdidas para sempre. Entre muitos outros

efeitos, a desflorestação e a erosão do solo trazem consigo a rarificação da água potável, o que sucede tanto

nos países centrais como periféricos. Calcula-se que 40 milhões de camponeses chineses sofrem de escassez

de água potável devido à poluição agrícola e, por outro lado, os resíduos de fertilizantes têm sido detetados

nas reservas de água da França, da Alemanha, da Holanda, da Inglaterra e da Dinamarca. (...)

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Os países do Norte "especializaram-se" na poluição industrial e em tempos mais recentes têm conseguido

exportar parte dessa poluição para os países do Sul, quer sob a forma de venda de lixo tóxico, quer por trans-

ferência de algumas das indústrias mais poluentes, por ser aí menor a consciência ecológica e por serem

menos eficazes (se de todo existentes) os controlos antipoluição. De todos os efeitos da poluição e da

degradação ambiental em geral, os mais ameaçadores são hoje em dia o efeito de estufa e a degradação da

camada de ozono, com consequências para o ecossistema da Terra difíceis de prever em toda a sua extensão.

Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade,

6.a ed., Porto, Afrontamento, 1997.

Resumo do texto 1

O solo do planeta apresenta uma constituição tripartida: desertos e cidades, florestas e savanas,

terrenos de agricultura e pastorícia, tendo vindo os dois últimos terços a diminuir, como se verificou nos

Himalaias, devido, entre 1950 e 1980, ao aumento da população e ao progresso e interesses económicos

do colonialismo. Os efeitos desta situação serão o desaparecimento de 50% das espécies, a desflorestação,

a erosão do solo e, consequentemente, a rarificação da água potável. Na China e na Europa, verifica-se

grande escassez e contaminação da água, devido à poluição agrícola.

A poluição industrial, característica dos países do Norte, tem chegado aos do Sul, devido à quase inexis-

tência de consciência ecológica e de controlos antipoluição. Das consequências no ecossistema da Terra, as

mais graves são o efeito de estufa e a degradação da camada de ozono.

SÍNTESE

A síntese é semelhante ao resumo e as regras para a sua preparação e redação são idênticas. Porém, a

síntese é redigida na terceira pessoa e é mais dirigida ao leitor, apresentando um carácter apreciativo e

permitindo que se destaquem as intenções do autor. Embora deva ser neutra e fiel à reconstituição das

ideias do texto original, a síntese confere maior liberdade na ordem e na organização das ideias que o

resumo. A síntese exige que se capte correta e objetivamente o conteúdo de um texto e se reproduza fielmente.

Ela pode incidir sobre um texto apenas ou sobre dois ou mais textos, apresentando as suas semelhanças ou

diferenças. Pode ainda recorrer a citações do texto, colocadas entre aspas, para ilustrar a opinião

apresentada. A síntese deverá passar pelas mesmas etapas do resumo.

EXEMPLO DA SÍNTESE DE UM TEXTO

Texto 1

A política de integração escolar de alunos com deficiência encontra-se generalizada nos países da Comu-

nidade, muito embora com níveis de desenvolvimento estrutura/mente diferentes. O consenso existente é que

a integração é um processo que implica mudanças dos conteúdos do ensino, das práticas pedagógicas e das

atitudes dos agentes educativos, as quais no seu conjunto se traduzem em importantes fatores de

flexibilização dos sistemas educativos, essencialmente dos níveis compreendidos pela escolaridade

obrigatória.

Por outro lado, constata-se que a política de integração tem conduzido a uma redefinição do papel da

educação especial, tradicionalmente circunscrita ao universo institucional das escolas especiais. No novo

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contexto, a educação especial realiza-se preferencialmente no âmbito da escola regular como uma prestação

de serviços complementares, implicando uma forte cooperação entre todos os intervenientes. A tendência, é,

assim, a de unificar no mesmo sistema todos os recursos especializados que, dada a dimensão que atingiram

em certos países, lhes conferiram a estrutura de um sistema paralelo. Deve-se, também, realçar que em todos

os países da Comunidade a responsabilidade administrativa pela educação de crianças com deficiências é

assumida pelas respetivas autoridades educativas, quer essa educação se processe em escolas especiais, quer

em ensino integrado.

Síntese do texto 1

A integração escolar dos alunos com deficiência é já, e felizmente, uma constante, mas é importante

também que contemple fatores de flexibilização, no que respeita aos conteúdos, às práticas pedagógicas e

atitudes dos agentes pedagógicos.

Até aqui da exclusiva responsabilidade das escolas especiais, a integração passou a realizar-se

complementarmente na escola regular, implicando para isso a cooperação de todos os intervenientes.

Desta forma, a educação de crianças com deficiência conta com a responsabilização das autoridades

educativas para unificar os recursos especializados existentes, tanto em escolas especiais como em escolas

de ensino integrado. Este é, verdadeiramente, um fator de avanço!

COMENTÁRIO

Pode-se considerar comentário a interpretação e a explicação que se dá às frases, atos ou

acontecimentos. Permite dar conta, de forma refletida, do assunto de um acontecimento ou facto e tomar

posição.

Quando se procede à identificação do comentário no texto narrativo ou se faz um comentário, é preciso

ter em conta que a mensagem poderá ter ou remeter para diversos aspetos semânticos, possuir

interpretações diferentes de acordo com o contexto, conter valores civilizacionais ou estéticos.

O conteúdo do comentário orienta-se para a transmissão do que e da forma como aconteceu ou se

disse. Exige o conhecimento do assunto pela análise e interpretação, bem como a formulação de um juízo

crítico.

A análise ajuda a aprofundar o conhecimento da mensagem depois do contacto inicial. Para a

realizarmos, convém:

- situar o texto na obra e no contexto em que é produzido;

- dividir o texto em momentos ou partes;

- identificar e registar os elementos essenciais, assegurando a sua compreensão;

- estabelecer prioridade nas ideias, através da ordenação desses elementos;

- fazer as articulações lógicas do texto.

A interpretação permite a explicação e clarificação do texto, dando conta das ideias, do seu

encadeamento e significações. Ao fazer a interpretação, é importante:

- aclarar o assunto e as ideias principais;

- elucidar as passagens menos compreensíveis e as diversas significações que se podem encontrar;

- mostrar como se organiza e desenvolve o enunciado, tendo em conta:

. as ideias fundamentais;

. os elementos acessórios que servem para esclarecer ou que podem ser eliminados;

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. a ligação entre as ideias;

. as exemplificações;

. as fundamentações do que se afirma;

. os processos de enriquecimento estético;

. a correção formal: ortografia (escrita correta das palavras, acentuação, uso adequado das

maiúsculas, divisão silábica..., morfologia (aplicação correta das categorias morfológicas,

concordância em género, número e grau, flexão verbal..., léxico (seleção do vocabulário e sua

adequação à mensagem), sintaxe (pontuação, estruturação correta das frases).

O juízo crítico permite que se tome partido perante o conteúdo do texto e da mensagem ou ideias que

transmite. Ao realizá-lo é importante haver uma certa sensibilidade e conhecimentos, mas sem perder de

vista os elementos de análise e a interpretação. É conveniente:

- julgar os objetivos da mensagem, identificando-a dentro do contexto em que se insere;

- avaliá-la de acordo com esse contexto;

- apreciar a adesão ou rejeição ao seu conteúdo;

- tomar posição quanto às ideias que veicula ou a forma como as transmite;

- sugerir eventuais alternativas.

NB - O comentário que procura fazer considerações atentas e ponderadas pode dizer-se reflexão.

EXPOSIÇÃO

Exposição é um tipo de discurso que tem por objetivo explanar, explicar, informar, definir, explicar,

esclarecer, discutir, provar ou recomendar alguma coisa, recorrendo à razão e ao entendimento. Pode ser

oral ou escrito, mas em qualquer dos casos, o enunciador tenta colocar-se na perspetiva do conhecedor,

manifestando explicitamente a sua opinião ou o seu julgamento. Deverá atender ao seguinte:

- escolha do tema a desenvolver;

- definição do propósito que se persegue ou os objetivos a atingir;

- pesquisa de informação sobre o tema;

- seleção dos dados de interesse;

- elaboração de um guia com o plano do que cevai escrever ou dizer;

- estruturação de forma ordenada da informação;

- recurso a materiais de suporte como imagens, gráficos, diagramas, slides em powerpoint, flash, etc.

- se a exposição for escrita, o assunto deve ser explanado com pormenor, referindo o tempo, o espaço e

as circunstancia do seu acontecer.

DEBATE

Debate é um texto dialogal-conversacional. Apresenta-se como um diálogo alagado onde se examina um

assunto e se apresentam opiniões, argumentos, pontos de vista para encontrar a conclusões. Deverá

atender à determinação do tema (de caráter específico e nunca genérico) e dos objetivos, fixar o tempo

necessário para a sua preparação, nomeara um moderador. Na preparação, e geral, é necessário recolher

ideias sobre o assunto pesquisando-as em diversas fontes.

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RECONTO

Reconto é um texto narrativo que se baseia no ato ou no efeito de recontar (tornar a contar). Apresenta

as seguintes características:

- manutenção da informação principal/macroestrutura;

- manutenção da estrutura narrativa, organizada segundo o princípio da sequencialização (princípio,

meio e fim).

- alteração da informação secundária (que não afeta a macroestrutura textual;

- alteração da apresentação formal da narrativa (em verso e não em poesia);

- possibilidade de efetuar acrescentos e comentários pessoais.

DESCRIÇÃO/RETRATO Descrição/Retrato é texto que visa a representação da realidade, podendo ter como referente

espaços/ambientes, animais, objetos, pessoas/personagens (retrato), estados de espírito, impressões,

sentimentos, etc. A descrição pode implicar diferentes graus de objetividade/subjetividade.

A descrição/retrato deve atender aos seguintes aspetos:

- escolha do ponto de observação: por exemplo um miradouro, uma janela...

- escolha do modo de observação: fixo (representação de uma realidade fixa, em que há ausência de

movimento ou dinâmico (representação de uma realidade em movimento;

- definição do campo de observação: panorama (ou visão geral – representação da totalidade do alcance

visual) ou grande plano (ou plano intermédio – representação de determinados pormenores do alcance

visual, organizados em secções, por exemplo, direita, esquerda, superior, inferior);

- seleção dos traços individualizantes da realidade a representar: descrição de espaços/objetos –

representação de traços referentes ao aspeto, à forma, à dimensão, à luz, ao odor, à textura... ou

representação de traços referentes ao perfil físico (altura, constituição, tom de pele, rosto, roupa,

adereços...), psicológico (sentimentos, temperamento...), social (estatuto social, profissão, formação...)

- ordenação sistemática das observações: do geral para o particular (ou vice-versa); do mais próximo

para o mais distante (ou vice-versa); da esquerda para a direita (ou vice-versa); de cima para baixo (ou

vice-versa).

A descrição/retrato deve obedecer às seguintes etapas de produção:

1.ª etapa – Observação da realidade a representar – Tratando-se da leitura de uma imagem, deve

atender ao seguinte: análise da imagem em termos globais; apreensão dos traços individualizantes da

imagem; interpretação dos traços individualizantes (associada, por exemplo, às impressões causadas

pelos mesmos e às possíveis funções da imagem).

2.ª etapa – Produção da descrição – Terminada a fase de observação, passa-se à descrição

propriamente dita, seguindo-se as fases de planificação, textualização e revisão:

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- planificação – elaboração do plano do texto descritivo a produzir, tendo e conta o ponto, o modo

e o campo d observação, os traços individualizantes da realidade a descrever e a ordenação

sistemática das observações;

- textualização – redação da descrição, utilizando recursos linguísticos que: articulem a descrição;

evidenciem o modo da observação; marquem o ponto de vista assumido na descrição, objetivo

ou subjetivo; que estabeleçam as coordenadas enunciativas da descrição;

- revisão – avaliação da adequação e validade do texto produzido e reformulação dos aspetos que

possam ser melhorados.

TEXTO EXPRESSIVO/CRIATIVO

Texto expressivo/criativo é um texto que reflete claramente, de forma viva e imaginativa, aquilo que se

pretende exteriorizar ou dar a conhecer. Trata-se pois, de um texto que tem como base a imaginação e a

manifestação de ideias, conceitos, vivências pessoais ou ficcionas. Os textos expressivos criativos são

escritos em diversas áreas, desde a literária (ficcional ou autobiográfica) à comunicacional/técnica

(publicidade, jornalismo, guionismo).

A estrutura e as características linguístico-discursivas dos textos expressivos/criativos são, pois,

variáveis, dependendo do modo, da sequência e/ou do modelo adotados. Geralmente apresenta as

seguintes características:

- associa ideias que, geralmente, não costumam estar associadas;

- pode ser escrito em verso ou em prosa;

- pode apresentar características do modo lírico, narrativo, dramático...;

- pode basear-se em sequencias narrativas, argumentativas, expositivas, dialogais...;

- pode obedecer a modelos textuais diverso: conto, soneto, autorretrato, relato de experiencias

pessoais...

O processo de produção do texto expressivo/criativo deve passa pelas seguintes etapas:

1.ª etapa - Planificação – em que se elabora o plano do texto a produzir, considerando aspetos como a

estrutura formal, o modo (lírico, narrativo, dramático), o tipo de sequencialidade (narrativa, descritiva,

dialogal, expositiva, argumentativa, preditiva), o modelo adotado (conto, autorretrato, soneto...);

2.ª - Textualização – e que se produz o texto, representando as ideias através de associações criativas;

3.ª Revisão – em que se revê, reformula, aperfeiçoa o texto produzido.

TEXTO ARGUMENTATIVO

Argumentar é exprimir uma convicção ou um ponto de vista, baseados na verdade, de modo a

convencer o ouvinte/leitor. É, então, necessário que apresentemos um raciocínio coerente e convincente.

A argumentação apela não só à nossa racionalidade (por exemplo, o discurso político, os sermões do

Padre António Vieira), como também à nossa emotividade (por exemplo, o texto publicitário).

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O texto argumentativo é, por isso, um texto que visa convencer, persuadir ou influenciar o

ouvinte/leitor através da apresentação de uma tese (ponto de vista], cuja veracidade deve ser

demonstrada e provada através de argumentos adequados.

Utilizamos a argumentação constantemente no nosso dia-a-dia e ao longo de toda a nossa vida. Usamo-

La, por exemplo, quando damos a nossa opinião acerca de algo, quando apresentamos um desfecho para

um problema, quando temos a intenção de que os outros aceitem algo que estamos a pedir, quando

pretendemos sustentar um ponto de vista.

No fundo, argumentar é aconselhar, persuadir, convencer plausivelmente, e tal só é possível, através do

uso da razão. Argumentamos porque pretendemos persuadir (convencer) ou dissuadir, mediante

argumentos e razões, um recetor (ouvinte ou leitor) para que aceite as ideias do emissor.

A persuasão pode centrar-se: na credibilidade do orador (ethos); no auditório apelando às suas emoções

(pathos); no valor dos argumentos (logos).

Os princípios adotados para estruturar a argumentação são assim fundamentais para conquistar, em

primeiro lugar, a atenção e, em segundo lugar, uma possível adesão do auditório.

Construímos um texto argumentativo quando temos, por exemplo, de realizar um comentário, um texto

escrito, uma opinião ou crítica sobre um determinado assunto.

O texto argumentativo Os textos argumentativos apresentam a defesa de um raciocínio, de uma opinião. Destinam-se a um

recetor bem definido - eleitores, leitores de um jornal, os jurados e o auditório de um julgamento ou de

uma defesa de tese, o destinatário de uma carta, etc. A sua finalidade prática - convencer o destinatário,

persuadi-lo, influenciá-lo determina um trabalho cuidado da mensagem, tanto no que diz respeito à

organização do discurso como à seleção do vocabulário.

Aristóteles na Grécia antiga e Cícero e

Quintiliano em Roma foram teorizadores

da "arte de bem falar" - a retórica - e

definiram os princípios da oratória, a arte

de falar em público. Se nos nossos dias o

discurso argumentativo assume com

frequência a forma escrita - em editoriais e

artigos de opinião, ensaios, teses,

manifestos, textos publicitários - durante

séculos a exposição oral foi uma forma

privilegiada de divulgar ideias religiosas,

argumentos políticos ou judiciais. Os

sermões, os discursos inflamados em

tribunas ou no parlamento, a defesa de

uma causa em tribunal constituíram uma

forma de espetáculo a que não era alheia

uma das fases do discurso argumentativo definido por Cícero - a "actio" ou ação, isto é, o recurso aos

gestos e à entoação como uma componente significativa do discurso, a par da apresentação de argumentos

pertinentes, da articulação dos mesmos, da linguagem e do estilo do orador.

in Guia de Aprendizagem do ESRUC, Português, DES-ME, 1998

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Como se constrói um texto argumentativo?

1. Estrutura do texto

- Introdução: Parágrafo inicial no qual se apresenta a proposição (tese, opinião, declaração). Deve ser

apresentada de modo afirmativo, claro e bem definido, sem referir quaisquer razões ou provas.

- Desenvolvimento: Análise/explicitação da proposição apresentada; apresentação dos argumentos que

provam a verdade da proposição: factos, exemplos, citações, testemunhos, dados estatísticos.

- Conclusão: Parágrafo final, no qual se conclui com uma síntese da demonstração feita no

desenvolvimento.

2. Escolha e ordenação dos argumentos

Deve-se: encontrar argumentos adequados; recorrer, sempre que possível e desejável, à

exemplificação, à citação, à analogia, às relações causa efeito; organizar os argumentos por ordem

crescente de importância.

3. Adequação do texto ao objetivo e ao destinatário (informar, convencer, emocionar)

Deve-se: usar um registo adequado à situação e ao destinatário; utilizar referências de conteúdo que

o destinatário possui, para que este o possa interpretar corretamente. Apresenta as seguintes

características:

- tomada de posição;

- apresentação de argumentos que justificam a posição tomada;

- apresentação de contra-argumentos (argumentos que diminuem a força da posição contrária).

4. Exemplos de conectores lógicos que podem ser utilizados:

- Copulativos: e; nem; também; não só... mas também; tanto... como.

- Adversativos (oposição]: mas; porém; todavia; contudo; apesar disso; ainda assim; não obstante; no

entanto.

- Conclusivos (efeito): logo; pois; portanto; por conseguinte; por consequência; por isso.

- Explicativos: pois.

- Causais: porque; como; visto que; pois que; já que.

- Comparativos: como; conforme; segundo; assim como... assim também; mais... do que; menos... do

que; ao passo que.

- Temporais: quando; enquanto; apenas; mal; logo que; antes que; depois que; assim que; à medida

que.

- Concessivos (hipótese): embora; ainda que; mesmo que; se bem que; apesar de que.

- Consecutivos (consequência): tal que; de tal modo que; tanto que; de maneira que.

- Finais: para que; a fim de que.

In http://www.esqf.ptlbib/texto_arg.htm e http://www.esffl.pt/home/guioes/880-a-bd-em-duas-tiras.html, retirado de Lima, Fernando e Costa,

Raquel. Cultura, Língua e Comunicação. Fundamentos de Cultura, Língua e Comunicação. Arial Editora. Porto. sd

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TEXTOS DO DOMINIO TRANSACIONAL

Os textos do domínio transacional são textos relacionados com a comunicação burocrática e

administrativa.

CONTRATO

Características, estruturas e marcas linguísticas mais comuns

Contrato – texto que estabelece um acordo entre duas ou mais entidades coletivas. Visa validar um

acordo entre duas ou mais entidades individuais e ou coletivas. Existem variados tipos de contratos

(acessório, administrativo, aleatório, a termo, bilateral, coletivo de trabalho, de adesão, de promessa de

resolução, individual de trabalho, etc.).

Estrutura possível: designação, abertura (tipo de contrato, identificação das partes envolvidas),

encadeamento (cláusulas com as condições do contrato) e fecho (local/data, assinatura dos

intervenientes).

Marcas linguísticas mais comuns: registo formal,

vocabulário objetivo e denotativo (*), tecnicismos legais e

administrativos, léxico específico, fórmulas fixas e

construção frásica na 1.ª ou 3.ª pessoa.

(*) Denotativo - Palavra no sentido real, sentido usual, próprio,

não-figurado, de tal modo que tenha o mesmo significado para

todos os membros de uma comunidade.

Visando o planeamento do processo de elaboração do Portefólio, os candidatos poderão, no início do

processo de RVCC, contratualizar a leitura de textos com relevância para o processo de RVCC, sejam eles

autobiográficos, informativo-expositivos, dos media, literários ou do domínio transaccional. Sendo

importante demonstrar competências associadas à leitura de textos literários reconhecidos como

relevantes propõe-se a contratualização da leitura de um romance de autor português ou estrangeiro,

firmando-se o respectivo contrato entre o candidato e o formador de CLC. Abaixo, apresenta-se um

modelo que uma vez adaptado, pode ser usado para o efeito.

Imagem disponível na Internet: http://camaroteleonino.blogs.sapo.pt/429074.html

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Retirado de Magalhães et al. (2012) Português. Ensino Profissional. Porto: Porto Editora

DECLARAÇÃO

A declaração é um texto que consiste numa comunicação ou denúncia pública. Visa atestar/provar a

veracidade do que é dito por parte da entidade emissora. Existem vários tipos de declarações: escritos em

que se faz uma comunicação ou uma denúncia pública; exposição oficial de uma situação, de um facto,

feita por escrito, apresentada a um órgão próprio e que constituiu prova de compromisso; Histórica e

Política – proclamação solene de princípios de caráter político e social, normalmente de âmbito universal.

Estrutura possível: designação (Declaração), abertura (identificação da entidade declarante),

encadeamento (conteúdo da declaração) e fecho (local/data e assinatura do declarante e caso se aplique, a

identificação dom cargo e/ou carimbo da entidade declarante).

Marcas linguísticas mais comuns: registo formal, vocabulário objetivo e denotativo, tecnicismos legais e

administrativos, léxico específico, fórmulas fixas, construção frásica na 1.ª ou 3.ª pessoa e construções

passivas.

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REQUERIMENTO

O requerimento é um texto que consiste num pedido ou numa solicitação a uma entidade oficial, da justiça

ou da administração. Visa solicitar a uma autoridade pública a satisfação de um interesse.

Estrutura possível: designação, abertura (saudação inicial com identificação da entidade a quem o

requerimento é pedido), encadeamento (identificação do requerente, explicitação do pedido), fecho

(pedido de resposta favorável, local/data e assinatura do requerente: Pede deferimento).

Marcas linguísticas mais comuns: registo formal, vocabulário objetivo e denotativo, tecnicismos legais e

administrativos, léxico específico, fórmulas convencionais (Ex.mo Senhor...; Eu... venho por este meio);

construção frásica na 1.ª ou 3.ª pessoa e formas de tratamento reverente/cerimoniosos (Excelentíssimo;

V.Ex.ª).

RELATÓRIO

O relatório é um texto que consiste no registo circunstanciado e objetivo de um facto fenómeno

ocorrido, com base no que se viu, estudou, analisou, observou. Visa expor a ocorrência de um facto a

alguém que deseja ser informado. Os relatórios podem ser de dois tipos: relatório crítico (relatório em que

se descreve e analisa detalhadamente um evento ou uma experiência) e relatório-síntese (relatório mais

breve do que o relatório crítico, e que tem como base uma investigação, uma pesquisa ou um resultado

prévio).

Estrutura possível: designação (designação do texto, em que se especifica o tipo e/ou âmbito do relatório),

introdução (em que se apresenta o acontecimento relatado, explicitando os objetivos e/ou o

contexto/âmbito desse acontecimento), corpo do relatório/desenvolvimento (em que se relatam os

acontecimentos ocorridos de forma ordenada, em articulação ou não com a perspetiva explicitamente

critica; a informação pode ser complementada com imagens, quadros, gráficos, esquemas, etc.), conclusão

(em que se apresentam os comentários conclusivos do relatório.

Outra esturra possível poderá ser a seguinte: capa (em que se parenta o título do relatório, o autor, a

data e o âmbito em que o relatório foi produzido), página de rosto (em que se repetem e complementam

os dados da capa (acrescentando-lhe, por exemplo, o período de realização da atividade, o fim a que se

destina, etc.), índice, introdução (em que se explica o enquadramento da atividade, o local onde foi

realizado o trabalho, a descrição do problema, os objetivos, a estrutura do relatório), corpo do

relatório/desenvolvimento (em que se procede à descrição pormenorizada e minuciosa do trabalho

desenvolvido e em que se discutem os resultados obtidos), conclusão (em que se apresenta uma síntese do

trabalho e se apresentam propostas de atuação futura), bibliografia (em que se enumeram todas as fontes

consultadas e/ou mencionadas no relatório) e anexos (que complementam a informação apresentada.

Marcas linguísticas mais comuns: registo formal, vocabulário objetivo e denotativo, tecnicismos legais e

administrativos, fórmulas fixas, construção frásica na 1.ª ou 3.ª pessoa e construções passivas, associações

entre elementos verbais e elementos não-verbais (opcional), identificação das fontes usadas.

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CARTA (FORMAL)

A carta formal é um texto que serve de intermédio para correspondência entre pessoas que se encontram

fisicamente afastadas, produzido na área empresarial ou institucional. Visa transmitir informação a uma

entidade ausente.

Estrutura possível: cabeçalho (identificação do emissor e do destinatário, referência, data, assunto)

abertura (saudação inicial), encadeamento (exposição do assunto), fecho (fórmula de despedida,

assinatura, identificação do cargo do emissor.

Marcas linguísticas mais comuns: registo formal, vocabulário objetivo e denotativo, terminologia técnica

associada à área em causa, fórmulas de tratamento reverentes, articuladas com o tratamento da 3.º pessoa

(Ex.mo Senhor, V. Ex.ª), fórmulas de abertura (Ex.mo Senhor), encadeamento (Na sequência de ... Venho

por este meio ...; Mais informo que ...; Junto envio a documentação referente a ...; Solicito a atenção de V.

Ex.ª para o assunto que passo a expor...) e fecho (Atentamente, Com os melhores cumprimentos) fixas.

REGULAMENTO

O regulamento é o texto que consiste num conjunto de regras que regulam o funcionamento de uma

atividade ou de um grupo. Visa regulamentar o funcionamento de uma atividade de grupo. Caracteriza-se

pela exaustividade/pormenorização e pela organização das regras segundo o grau de abrangência (do geral

para o particular). Existem vários tipos de regulamentos (conjunto de regras, preceitos, prescrições, normas

a seguir; estatuto, regimento que preside ao funcionamento de corpos coletivos; etc.).

Estrutura possível: designação, preâmbulo, capítulos (referentes a normas gerais, competências, direitos,

deveres, sanções, disposições finais), datas de aprovação e de entrada em vigor e anexos.

Marcas linguísticas mais comuns: vocabulário objetivo e denotativo, fórmulas fixas, verbos flexionados no

presente do indicativo, frases do tipo declarativo, marcas de numeração a identificar capítulos, artigos e

pontos, construção frásica na 3.ª pessoa e construções passivas.

CURRICULUM VITAE

O curriculum vitae é o curriculum vitae, que acompanha as cartas de apresentação, consiste num

conjunto de indicações de um candidato a qualquer lugar, incluindo informações pessoais sobre o

nascimento, trabalhos escolares, científicos, literários, habilitações, classificações, obras publicadas, lugares

desempenhados, etc. É um documento sintético e ordenado de apresentação pessoal utilizado em variadas

situações: solicitação de emprego, concursos públicos, concursos para a concessão de bolsa, concursos

para a participação em projetos, etc. depende sempre da profissão e experiencia do candidato.

O curriculum vitae deve apresentar a seguinte informação: identificação, um resumo profissional (com

20 ou 30 palavras iniciadas com maiúscula, sem artigos nem conjunções entre si e separadas por ponto

final, com um inventário hierarquizado das qualificações mais importantes), as habilitações académicas, a

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formação profissional, a experiencia profissional, outras classificações e possível intervenção no domínio

técnico e de investigação, a haver. Quando o curriculum é uma candidatura, é frequente, após o resumo,

coloca o objetivo numa ou duas frases que descrevem sinteticamente a posição que se pretende alcançar.

Há diversos modelos de curriculum vitae. Os formatos mais usuais são:

- formato cronológico – o formato cronológica, sendo o mais frequente, apresenta a história profissional

por ordem inversa à da realização, ou seja, começa pela descrição da situação atual e relata, por ordem

decrescente, as experiências profissionais anteriores;

- formato funcional – o formato funcional organiza a informação pelas funções desempenhadas ou

competências profissionais e não pelas datas;

- formato misto – o formato misto tenta otimizar o rigor do modelo cronológico com a flexibilidade e

versatilidade do curriculum funcional. É muito apreciado por permitir observar melhor as realizações da

carreira profissional de quem o elabora.

TEXTOS DOS MEDIA

ARTIGOS DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E TÉCNICA

Artigo de divulgação científica e técnica é um artigo de divulgação científica ou de divulgação técnica é

um texto de caráter predominantemente informativo-expositivo, em que se divulga o enchimento científico

ou tecnológico a um público não especializado. São produzidos normalmente no âmbito do jornalismo

científico.

Estrutura possível: título; resumo; corpo do artigo (introdução, desenvolvimento, conclusão).

Marcas linguísticas mais comuns:

- linguagem clara e objetiva;

- terminologia técnica, associada à área do conhecimento em causa;

- construções passivas;

- construção frásica na 3.ª pessoa;

- analogias e metáforas (permitem exemplificar conceitos abstratos.)

ENTREVISTA

A entrevista e um texto jornalístico constituído por uma série de perguntas e respostas. O jornalista

dialoga com determinada personalidade, questionando-a sobre um assunto qualquer. Antecipadamente

supõe-se que o jornalista prepare um guião e recolha dados sobre o entrevistado, selecione um tema e

elabore um plano de perguntas. Num primeiro momento, o entrevistador faz a contextualização do

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entrevistado, à qual se seguem as perguntas. Por fim, o entrevistador pode elaborar uma breve conclusão

sobre as respostas dadas.

Como fazer uma entrevista?

A entrevista é um género jornalístico que tem como objetivo principal recolher informações a partir do

diálogo (discurso direto) entre o entrevistador jornalista) e o entrevistado. Há várias etapas a considerar na

elaboração de uma entrevista, a saber:

1- Antes da entrevista

Escolha do tema - deve escolher-se um tema que desperte atenção, nas situações em que a entrevista

não vai ao encontro de um tema a tratar, previamente definido. Escolhe-se uma pessoa para a entrevista -

a pessoa deve conhecer o tema ou então deve ser o veículo condutor ao tema a tratar.

Procura de informação (documentação) - devem recolher-se informações sobre o tema e sobre a pessoa

entrevistada em livros, dicionários, enciclopédias, na Internet, através da opinião de pessoas que a

conhecem, etc. (recorrer a informações escritas permite obter um conhecimento mais alargado e objetivo

sobre os assuntos que irão ser tratados).

Questionário - devem redigir-se as perguntas, procurando que estas sejam abertas (que evitem a res-

posta Sim ou Não).

2. Ao longo da entrevista

Apresentar o entrevistado - através de informação de caráter geral (nome, idade, sexo, residência,

atividade profissional, etc.).

Entrevistar - as perguntas devem ser claras, precisas, diretas e abertas. Os assuntos devem estar re-

lacionados, isto é, deve evitar-se a desorganização discursiva; 0 entrevistado deve ser respeitado: nunca

se devem colocar perguntas de caráter íntimo.

Ouvir / redigir as respostas - estas devem ser redigidas exatamente como o entrevistado respondeu

(a gravação das mesmas facilitará o trabalho).

3. Depois a entrevista

A redação - embora as respostas dadas pelo entrevistado devam ser respeitadas, algumas modificações

devem ser feitas: aclarar ideias, suprimir repetições desnecessárias e fazer correções semânticas,

sintáticas e morfológicas.

Deve também redigir-se uma introdução e um parágrafo final (despedida, síntese e agradecimento).

Além disso, é conveniente mostrar a redação definitiva ao entrevistado, para que a sua publicação possa

ser autorizada e, em caso de necessidade, corrigir informações que, na sua opinião, não reflitam aquilo

que ele pretendia dizer.

Texto 1- Umberto Eco. "O Google é uma tragédia para os jovens"

O comissário da nova exposição no Louvre, em Paris, fala do lugar que as listas ocupam na história da

cultura e dos modos como tentamos não pensar na morte. Um intelectual em discurso direto.

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As listas estão na origem da cultura. Fazem parte da história de arte e da literatura. De que precisa a

cultura? De tornar o infinito compreensível. Também precisa de criar ordem - nem sempre, mas

frequentemente. E, enquanto seres humanos, como enfrentamos o infinito? Como se pode tentar captar o

sentido do incompreensível? Por meio de listas, catálogos e coleções em museus, e recorrendo a

enciclopédias e dicionários. Há um fascínio em enumerar as mulheres com quem Don Giovanni dormiu:

2063, a acreditar em Lorenzo da Ponte, libretista de Mozart. Também temos listas inteiramente práticas -

listas de compras, testamentos, ementas - que são atos culturais por mérito próprio.

A pessoa culta deve ser vista como uma guardiã que tenta impor a ordem nos locais onde predomina o

caos?

A lista não destrói a cultura; cria-a. Para onde quer que olhe, na história da cultura, há-de encontrar listas.

Com efeito, há uma gama estonteante: listas de santos, de exércitos e plantas medicinais, de tesouros e de

títulos de livros. Pense-se na natureza das coleções do século XVI. Aliás, os meus romances estão cheios de

listas.

Os contabilistas fazem listas, mas elas também existem nas obras de Homero, James Joyce e Thomas

Mann.

Pois. Mas estes, obviamente, não são contabilistas. No "Ulisses", James Joyce descreve o modo como o seu

protagonista, Leopold Bloom, abre as gavetas e tudo o que nelas encontra. Eu considero isso uma lista

literária, e ela diz muito sobre Bloom. Ou então tomemos Homero, por exemplo. Na "Ilíada", ele tenta dar a

noção do tamanho do exército grego. De início, recorre a comparações: "Tal como um grande incêndio de

floresta, rugindo no topo de uma montanha, se avista ao longe, assim também, ao marcharem, o brilho das

armaduras iluminava o firmamento". Mas não fica satisfeito. Não consegue encontrar uma boa metáfora e,

por isso, pede às musas que o ajudem. Então tem a ideia de enumerar muitos, muitos generais e os seus

navios.

(...)

Mas também disse que as listas podem trazer ordem. Quer então dizer que tanto a ordem como a

anarquia se aplicam neste caso? Isso tornaria perfeitas para si a internet e as listas criadas pelo motor de

pesquisa Google.

Sim, no caso do Google, ambos os conceitos convergem. O Google cria uma lista, mas no momento em que

olho para a lista que o Google gerou, ela já mudou. Essas listas podem ser perigosas - não para os adultos

como eu, que adquiriram conhecimento de outro modo -, mas para os jovens, para quem o Google é uma

tragédia. As escolas deveriam ensinar a arte da discriminação.

Está a dizer que os professores deviam ensinar aos estudantes a diferença entre bom e mau? E, nesse

caso, como o fariam?

A educação deveria regressar às estratégias das oficinas da Renascença. Aí, os mestres podiam não ser

capazes de explicar aos alunos por que razão uma pintura era boa em termos teóricos, mas faziam-no de

maneiras mais práticas. Olha, isto é o aspeto que o teu dedo pode ter e este é aquele que deve ter. Olha,

esta é uma boa combinação de cores. A mesma abordagem deveria ser utilizada nas escolas quando se lida

com a internet. O professor deveria dizer: "Escolham qualquer assunto: a história da Alemanha ou a vida

das formigas. Pesquisem em 25 páginas web diferentes, comparando-as, e tentem descobrir qual tem

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informação importante e pertinente". Se dez páginas disserem a mesma coisa, pode ser sinal de que essa

informação está correta. Mas isso também pode acontecer porque alguns sites se limitaram a copiar os

erros dos outros.

Quanto a si, é mais provável que trabalhe com livros; tem uma biblioteca de 30 mil volumes.

Provavelmente não funciona sem uma lista ou catálogo.

Receio bem que, nesta altura, já sejam 50 mil livros. Quando a minha secretária os quis catalogar, pedi-lhe

que não o fizesse. Os meus interesses mudam constantemente, tal como a minha biblioteca. A propósito, se

os nossos interesses mudarem constantemente, a nossa biblioteca dirá algo de diferente sobre nós. Além

disso, mesmo sem um catálogo, vejo-me forçado a lembrar-me dos meus livros. Tenho uma sala para

literatura com 70 metros de comprimento. Percorro-a várias vezes por dia e sinto-me bem quando o faço.

Cultura não é saber quando morreu Napoleão. Cultura significa saber como vou descobrir isso em dois

minutos. Claro que, hoje em dia, posso encontrar esse tipo de informação na internet em menos de um ai.

Mas, como disse, com a internet nunca se sabe.

Incluiu uma lista simpática feita pelo filósofo francês Roland Barthes no seu novo livro, "A Vertigem das

Listas". Ele enumera as coisas de que gosta e as de que não gosta. Gosta de salada, de canela, de queijo e

de especiarias. Não gosta de ciclistas, de mulheres de calças compridas, de gerânios, de morangos e de

harpa. E o senhor?

Eu seria louco se respondesse; significaria rotular-me. Fiquei fascinado com Stendhal aos 13 anos e com

Thomas Mann aos 15 e, aos 16, adorava Chopin. A seguir, passei a vida a tentar conhecer o resto. Neste

momento, Chopin voltou a estar no topo da lista. Quando interagimos com as coisas da nossa vida, tudo

muda. Se nada mudar, somos idiotas.

Publicado no Jornal I, em 05 de Dezembro de 2009

Texto 2 - "Odeio tanto o Twitter como o Facebook"

Miguel Sousa Tavares, jornalista e escritor diz que "odeia" o Facebook porque isola pessoas e as priva

de tempo e privacidade.

Como é que faz para alimentar a sua opinião todas as semanas? Além de ler os jornais, também consulta

os blogues?

Não, não vejo nem blogues nem redes sociais. Odeio o Facebook, odeio o Twitter. A única coisa que faço na

Internet é, para além dos mails, para além de instrumentos de trabalho, wikipedias, etc., uso o Skype em

telefonemas para o estrangeiro, mais nada. Não faço mais nada. Ah, jogo bridge. Agora, a ideia de rede

social, e de blogues, tudo em comunicação, a falar… acho insuportável. Os blogues são uma série de gente

que se acha importantíssima, que tem uma espécie de capelinhas, quase religiões, com os seus fiéis atrás.

Há excesso de informação. Faz-me lembrar uma frase que a minha mãe dizia sobre o Eduardo Prado Coelho,

que ele sabia mais do que percebia. Hoje em dia, as pessoas também têm mais informação do que a que

conseguem entender. Nós temos uma dose limitada de aquisição de conhecimentos, e o resto é preciso

tempo para pensar. No Facebook e no Twitter tudo tem umas teses extraordinárias. São todos cultíssimos,

leves, frescos, trendy, sei lá...

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Mas isso não é o que também faz quando vai à TVI, por exemplo, falar sobre tudo?

Não, é totalmente diferente. O Facebook é uma coisa elitista. Os blogues também. Aquilo é a beautiful

people. Eu falo para 12% de audiência. Desde o vendedor de jornais da esquina, analfabeto ao professor

universitário. E sei que falo, porque as pessoas abordam-me na rua e perceberam, e concordaram ou

discordaram, mas perceberam. Estou a falar para elas, estou a fazer um serviço. Eu pagava um milhão para

ninguém saber quem eu era, para poder fazer os meus comentários como o homem invisível. Agora, eu não

vivo a ter opiniões instantâneas todos os dias, como se vive nos blogues, como se vive nas redes sociais. Em

relação ao Facebook, eu vejo-o como a maior ameaça próxima para a história da humanidade.

Porquê?

Porque veio subverter todo o tipo de relações humanas. As pessoas deixam de se encontrar, de se conhecer,

queimam as etapas todas, deixam de se olhar, mesmo. Tudo se torna fácil, vão para ali para arranjar

namorados, para expor as suas vidas, os jantares que dão em casa, os batizados dos filhos, as festas a que

vão… E ainda por cima é uma perversão total da intimidade! Vou a uma festa e alguém põe uma foto minha

na sua página do Facebook. É o paparazzo dentro de cada um, não é? A total promiscuidade das vidas

privadas! E está tudo radiante a expor as suas vidas privadas no Facebook, contentíssimos, porque têm um

feedback instantâneo, julgam que assim não estão solitários. E está tudo fechado em casa, diante do

computador!

Não se sente ameaçado pelos blogues, como opinador?

Enquanto houver jornais, faz sentido que haja colunistas nos jornais. Se amanhã os blogues destronarem os

colunistas dos jornais, tudo bem. Agora, não tenho a obsessão do Pacheco Pereira, que tem que estar na

televisão, nos jornais e nos blogues, tem que estar em todo o lado, sob pena de perder espaço. Eu não me

sinto ameaçado porque eu não luto para ter leitores. Quando não tiver, não tenho. Nem sequer vejo as

audiências da TVI a seguir a eu falar, não sei qual é a minha influência…

Isso não é bem verdade, pois não? Tem de estar a pensar que reação vai ter nas pessoas.

Sim, está. Mas a mim tanto me faz que eu escreva no Expresso e tenha 100 mil pessoas a ler, como 10 mil. O

que eu quero é sentir que escrevi uma coisa bem escrita e que vai mexer com as pessoas…

Entrevista publicada no Jornal I, em 05 de julho de 2009

CARTOON

O cartoon é um texto icónico ou icónico-verbal, de

caráter humorístico ou satírico, publicado em jornais e

revistas, baseado numa determinada situação da

atualidade (temas políticos, religiosos, sociais, culturais,

desportivos...).

Estrutura possível: articulação entre imagens/sequência de

imagens e texto ou imagem/sequência de imagens (sem

texto).

Marcas linguísticas mais comuns: linguagem humorística.

Disponível na Internet: https://largodoscorreios.files.wordpress.com/2012/08/4-

pilares-da-economia.jpg-ler

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A CRÓNICA

A crónica aborda, de um ponto de vista subjetivo, assuntos do quotidiano. O seu objetivo é refletir

sobre os atos do ser humano ou a vida. A linguagem é acessível, utilizando, frequentemente, um tom

coloquial. Pode encontrar-se na imprensa, sendo diferente, no entanto, de outros géneros jornalísticos,

como a notícia ou a reportagem. Na crónica, o cronista apresenta uma visão pessoal sobre os mais

variados temas (políticos, sociais, desportivos, etc.). A crónica pode se escrita num tom ligeiro ou

polémico, sarcástico ou humorístico e é normalmente breve. O discurso é de caráter subjetivo, a

linguagem é ambígua, conotativa e rica em jogos d palavras, o que contribui para aproximar este género

jornalístico do texto literário. Por vezes, a crónica nasce da observação de uma situação banal.

Características:

Aborda temas do quotidiano, de uma forma pessoal.

Tem por objetivo divertir e ou refletir criticamente sobre a vida e o comportamento dos humanos;

Pode contar uma história; nesse caso apresenta os elementos básicos de uma narrativa: tempo,

lugar, personagens, ações.

Normalmente, as personagens são poucas e o tempo e o espaço são limitados (breves instantes e

um único lugar.

O narrador pode ou não participar nos factos que narra, mas a sua visão pessoal na transmissão

dos acontecimentos está sempre presente.

A linguagem é geralmente simples e clara, mantendo muitas vezes um tom de conversa (coloquial

com o leitor).

Estrutura possível: título; Introdução; desenvolvimento; conclusão. (A estrutura da crónica é bastante

variável, podendo ter uma estrutura descritiva, narrativa, argumentativa ...).

Marcas linguísticas mais comuns:

- linguagem subjetiva e valorativa;

- vocabulário plurissignificativo, com valor conotativo;

- figuras de retórica e outros recursos expressivos.

Texto 1 – Crónica – o que é isso?

Depois de mais de trinta anos em que faço crónicas diárias, que são

guardadas e rotuladas pelos anos, eu me pergunto, diante deste mundo de folhas

de papel, também, o que é uma crónica? E principio pelo seu significado: a

crónica vem de Cronos - Tempo. Cronos foi senhor do mundo, devorou seu

filhos temendo que eles o destronassem. Somente escapou Zeus que se revoltou

contra o pai e o acorrentou. Mais tarde, reconciliaram-se e Zeus foi um bom rei que deu a seus súbditos a

Idade de Ouro. Infelizmente, a crónica pode ser vinda da Idade de Ouro. Ela vem dos bons e dos maus dias.

Em seu conceito, esta “narração segundo o tempo”, que é a definição dicionarizada da crónica, retoma o

espírito da crónica, retoma o espírito da mitologia. Ela mesma devora a si própria, isto é a seus filhos, mas

haverá sempre uma que escapa. E quem escapa? Escapa aquela crónica que tem o sentido humano, quando,

em meu entender, a crónica consegue explicar a quem se segue o que esta pessoa não compreende, ela terá

assumido a sua função social.

Agora mesmo, terminei uma crónica em que escrevi sobre este monstruoso terramoto na Itália e procurei

estudar a origem dos sismos que são simplesmente explicados como uma “acomodação do solo”. (...). Na

Imagem disponível em: http://www.sebentadigital.com/20

11/05/18/cronica-de-um-casamento-e-um-funeral/

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crónica eu apresento-me como sou. É uma conversa com milhões de pessoas muito conhecidas, outras

desconhecidas, uma conversa que tem sempre um sentido ético, fugindo, entretanto, àquele modo

apaixonado de determinados articulistas. É assim que ela me faz amizades, durante mais de trinta anos de

labuta diária.

DINAH SILVEIRA DE QUEIRÓS, O Primeiro de Janeiro

A Crónica é pois um texto produzido no âmbito da imprensa periódica, marcado pela articulação entre o

registo jornalístico e o registo literário. Se no texto predomina o registo literário estamos perante uma

crónica literária. Se predominar o registo jornalístico, então podemos considera o texto uma crónica

jornalística. A palavra crónica tem a sua origem no étimo grego khronikón, que significa relativo ao tempo.

Se na Idade Média o termo nos remetia para o registo de eventos ordenados no tempo, a partir do século

XIX, passou a estar associada a textos periodísticos, juntando registos jornalísticos com registos literários.

A crónica literária sendo normalmente publicada em jornais e revistas por escritores é muitas vezes

reeditada em livros. Da mesma forma, parte de um facto da realidade, porém, a linguagem utilizada é

poética e metafórica e o seu ator extravasa, no texto, frequentemente, a sua alma lítica. Utiliza, por isso,

recursos estilísticos diversos, que a aproximam da poesia e da literatura em geral.

No século XIX, as crónicas literárias eram escritas geralmente por autores consagrados no domínio a

literatura como Eça de Queirós e Ramalhão Ortigão (refira-se a título de exemplo as Farpas). Já no século

XX, a crónica enquanto género literário foi cultivada por autores consagrados como José Rodrigues Miguéis,

José Gomes Ferreira, urbano Tavares Rodrigues, Lídia Jorge, Maria Judite de Carvalho, Augusto Abeleira,

António Lobo Antunes, José Cardoso Pires...

A crónica jornalística, não pretendendo assumir características literárias, caracteriza-se pela

versatilidade enunciativa, temática e estilísticas, dando conta da expressão de uma opinião pessoal por

parte do cronista (também designado colunista) face ao quotidiano que pode assumir uma feição

descritiva, narrativa, reflexiva, analítica, didática, argumentativa, humorística... Sendo escrita geralmente

por um jornalista prestigiado ou por uma figura publicamente reconhecida, assume muitas vezes um

caráter mais ou menos polémico.

Texto 2 - Parabéns, caro leitor

Se está a ler estas linhas, isso significa que conseguiu sobreviver às férias, o que é cada vez mais difícil.

Não ser apanhado por um acidente de viação, um incêndio ou um acidente de viação provocado por um

incêndio costuma ser tarefa quase impossível, e este verão não foi diferente. Mas mesmo no meio da mais

funesta desgraça é possível achar uma pérola de esperança, se se for perspicaz - e, sobretudo, se a desgraça

não nos acontecer a nós.

A verdade é que os incêndios mobilizaram o povo português. Assim como Robert Duvall, em Apocalypse

Now, adora o cheiro de napalm pela manhã, alguns portugueses parecem apreciar o aroma de caruma ardida

a qualquer hora do dia. É impressionante ver as imagens dos fogos: centenas de pessoas assistem

tranquilamente e em silêncio - se não se apercebem dos repórteres de televisão - ou com indignação e

soltando brados de "Bandidos, era metê-los no meio do fogo!" – se dão pela presença das câmaras. A

afluência de povo curioso de ver eucalipto a crepitar tem sido tal que as corporações de bombeiros foram

obrigadas a rogar publicamente à população especial favor de não comparecer nas florestas em chamas, para

que não prejudiquem o trabalho dos desgraçados que muitas vezes têm de optar entre repelir o fogo ou a

populaça – qual deles o inimigo mais cruel e mais difícil de controlar.

Munidos de máquina fotográfica, e com o afã de japoneses ante a Mona Lisa, os populares disparavam na

direção do fogo de modo que não era possível indicar de onde vinha O clarão maior: se do fogo em si, se dos

flashes dos fotógrafos amadores.

Mas, e não querendo ofender estes, como dizer? Palermas, nem pôr em causa a elevada fotogenia das

labaredas, que interesse tem fotografar uma fogueira? Que conversas se têm entre amigos com estas

fotografias na mão? "Olha, vês? Aqui está a Alzira no incêndio de Carrazeda de Ansiães em 98. Já viste

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aquele pinheiro em chamas, quase a chegar-lhe fogo ao cabelo? Há coisas giras. Nesta estou eu no rescaldo

do incêndio de Castelo Branco, em 2001. Tivemos que tirar a fotografia assim de lado porque os bombeiros

queriam passar com o autotanque. A teimosia das pessoas, pá. Só estão bem a estragar as férias dos outros."

Parece-me claro que este apetite pela contemplação de fogos florestais é demasiado forte para que não o

utilizemos a nosso favor. Atear uma fogueira à porta de cada museu e biblioteca de Portugal pode,

evidentemente, fazer muito pelo nível cultural do nosso povo. Se em cada guiché da repartição de finanças

houver um galho de eucalipto a arder, suponho que a regularização das dívidas fiscais poderá ser mais

rápida.

Está na altura de fazermos de Portugal um grande país. Já se percebeu qual é o caminho.

Vão buscar os vossos isqueiros que eu vou buscar o meu.

RICARDO ARAÚJO PEREIRA, Barca do Inferna, Tinta da China, 15.ª ed., 2008

Texto 3 - Paixão

Quando eu era criança, a seleção portuguesa perdia quase sempre. Os meus ídolos foram humilhados em

Viena por 9-1 e perderam com a Inglaterra em Lisboa 10-0. São traumas que ficam para toda a vida. Era o

tempo em que “víamos” os jogos pela rádio, o tempo do “Portugal ataca e a

Espanha marca”. Quase sempre. Peyroteu entrava na área, o locutor entu-

siasmava-se, subitamente, como por artes mágicas, a bola já estava nos pés

de Gainza, que passava a Zarra, este rematava, a voz do locutor morria e só

se ouvia um estertor: golo de Espanha. Por isso eu trago comigo esta

ansiedade sempre que joga a seleção. É certo que houve 1966, na Inglaterra,

Portugal a atacar, Eusébio a marcar. Uma redenção. Mas houve também

aquele prolongamento com a França no Euro 2000, o penalti quase no fim, o

golo fatal de Zidane. E a frustração da Coreia, em 2002. Já não tenho idade

para novos traumas. Por isso reconheço e apoio o trabalho que Scolari tem feito na seleção portuguesa:

Enquanto ele lá estiver, os dirigentes dos clubes não voltarão a mandar nela. E isso é uma revolução que o

Dr. Madaíl não deve deixar transformar-se em contrarrevolução.

(... )

4. Numa carta à sua filha, por altura do Mundial de 74, o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de

Andrade escrevia: “Aqui é o de sempre, com a Copa do Mundo primando sobre qualquer assunto, e

interferindo na vida de toda a população. Forma de esquecer as frustrações da vida, sublimação de outras

carências.” Era assim há 32 anos. E agora mais ainda, com o peso cada vez maior da televisão. Talvez por

isso Jean Daniel tenha chamado ao Mundial “paixão solitária”. “Não só a humanidade é "uma", mas ela é

totalitária.” Futebol é paixão. E a paixão é cega, é sempre um absoluto que não deixa lugar para mais nada.

Com a televisão, o Mundial tornou-se no mais globalizado de todos os fenómenos. Há quem se esforce por

lembrar os grandes problemas que afligem o mundo. Mas o que verdadeiramente nos obceca é saber se a

nossa seleção vai ou não ganhar o próximo jogo. Aqui havia quem quisesse fugir da Argentina, havia

também quem a preferisse. Vamos ter a Holanda. Não é possível escapar. O Mundial, aliás, não se vence a

fugir, mas a encarar de frente cada jogo, como se fosse o único, o decisivo, o último. Neste caso, espera-se

que o encontro com a Holanda seja o primeiro até ao último. Sabendo, como diz o poeta, que futebol não se

joga só no estádio, futebol joga-se na alma. E por isso a nossa alma, a alma portuguesa está com a sua

seleção. Antes, durante e depois. Seja qual for o resultado. Embora eu ache que só pode ser um: a vitória.

MANUEL ALEGRE, O Futebol e o Vido, Do Euro 2004 ao Mundial 2006, Crónicas

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Texto 4 – Às vezes

Às vezes é preciso aprender a perder, a ouvir e não responder, a falar sem nada dizer, a esconder o que

mais queremos mostrar, a dar sem receber, sem cobrar, sem reclamar. Às vezes, é preciso respirar fundo e

esperar que o tempo nos indique o momento certo para falar e então alinhar as ideias, usar a cabeça e

esquecer o coração, dizer tudo o que se tem a dizer, não ter medo de dizer não, não esquecer nenhuma ideia,

nenhum pormenor, deixar tudo bem claro em cima da mesa para que não restem dúvidas e não duvidar nunca

daquilo que estamos a fazer.

E mesmo que a voz trema por dentro, há que fazê-la sair firme e serena, e mesmo que se oiça o coração a

bater desordenadamente fora do peito é preciso domá-lo, acalmá-lo, ordenar-lhe que bata mais devagar e faça

menos alarido, e esperar, esperar que ele obedeça, que se esqueça, apagar-lhe a memória, o desejo, a

saudade, a vontade.

Às vezes, é preciso partir antes do tempo, dizer aquilo que mais se teme dizer, arrumar a casa e a cabeça,

limpar a alma e prepará-la para um futuro incerto, acreditar que esse futuro é bom e afinal já está perto,

apertar as mãos uma contra a outra e rezar a um deus qualquer que nos dê força e serenidade. Pensar que o

tempo está a nosso favor, que a vontade de mudar é sempre mais forte, que o destino e as circunstâncias se

encarregarão de atenuar a nossa dor e de a transformar numa recordação ténue e fechada num passado sem

retorno que teve o seu tempo e a sua época e que um dia também teve o seu fim.

Às vezes, mais vale desistir do que insistir, esquecer do que querer, arrumar do que cultivar, anular do

que desejar. No ar ficará para sempre a dúvida se fizemos bem, mas pelo menos temos a paz de ter feito

aquilo que devia ser feito, somos outra vez donos da nossa vida e tudo é outra vez mais fácil, mais simples,

mais leve, melhor.

Às vezes, é preciso mudar o que parece não ter solução, deitar tudo abaixo para voltar a construir do zero,

bater com a porta e apanhar o último comboio no derradeiro momento e sem olhar para trás, abrir a janela e

jogar tudo borda fora, queimar cartas e fotografias, esquecer a voz e cheiro, as mãos e a cor da pele, apagar a

memória sem medo de a perder para sempre, esquecer tudo, cada momento, cada minuto, cada passo e cada

palavra, cada promessa e cada desilusão, atirar com tudo para dentro de uma gaveta e deitar a chave fora, ou

então pedir a alguém que guarde tudo num cofre e que a seguir esqueça o segredo.

Às vezes, é preciso saber renunciar, não aceitar, não cooperar, não ouvir nem contemporizar, não pedir

nem dar, não aceitar nem participar, sair pela porta da frente sem a fechar, pedir silêncio paz e sossego, sem

dor, sem tristeza e sem medo de partir. E partir para outro mundo, para outro lugar, mesmo quando o que

mais queremos é ficar, permanecer, construir, investir, amar.

Porque quem parte é quem sabe para onde vai, quem escolhe o seu caminho e mesmo que não haja

caminho porque o caminho se faz a andar, o sol, o vento, o céu e o cheiro do mar são os nossos guias. a única

companhia, a certeza que fizemos bem e que não podia ser de outra maneira. Quem fica, fica a ver, a pensar,

a meditar, a lembrar. Até se conformar e um dia então ESQUECER.

MARGARIDA PINTO CORREIA, As Crónicas da Margarida, Oficina do Livro

Texto 5 – !

A Praia das Maçãs de novo, a casa dos meus pais de novo. Todos os anos prometo a mim mesmo.

- Foi o último e ignoro, sinceramente, o que me faz voltar. Saudades de quê? Nunca me senti

especialmente feliz aqui, as pessoas das famílias com quem a minha família se dava não me interessam,

estou a escrever um livro e passo os dias no quarto, à noite a neblina desbota para dentro de mim e

entristece-me: o que me fará voltar? Os meus irmãos, de quem gosto muito, a luz, de quem gosto também, e

não é isso, meu Deus, não é isso. A minha infância? O menino que deixei de ser tornou-se num antepassado

e em certa medida uma criatura enigmática, distante, da qual sou filho ou neto, da qual conservo uns traços:

o orgulho, a paciência, a solidão, o sorriso, talvez. Já em criança se me afigurava esquisito haver nascido dos

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meus pais: herdei pouca coisa deles, acho eu, qualidades, defeitos, parecenças físicas. A violenta insegurança

do meu pai e a secura da minha mãe impacientavam-me: tive de me construir sozinho, não contra eles mas

de costas para eles, e julgo que isso foi bom: tornou-me livre. Estou-lhes grato por não me terem dado nada a

não ser a matéria de que me modelei. Pensando melhor acho que herdei a austeridade, o desprendimento.

Não me é difícil ir embora, a qualquer momento, seja para onde for, sem necessitar de mala. O que preciso

cabe, literalmente, nos bolsos das calças. Porque regresso à Praia das Maçãs então? Tive momentos duros

por cá aos fins de semana, no inverno, com a Zezinha e a Joana pequenas. Não vou falar nisso. Tive

momentos bons, claro: namoradas, jogos de hóquei em patins, a alegria, difícil de exprimir, dos golos, o dia

dos meus dezoito anos, dois meses antes da morte do meu avozinho, que trouxe a garrafa de vinho do Porto

do avô dele, de Belém do Pará, com o nome no rótulo, Bernardo António Antunes, guardada, com muito

mais de um século

- Para bebermos quando fores maior e que afinal, para seu imenso desgosto, estava estragado. O de

Belém do Pará, o avô visconde, como dizíamos todos, um minhoto que embarcaram para o Brasil em catraio,

acabou rico no Amazonas, e o rei D. Luís deu-lhe um título: é o anel dele que trago no dedo: sou o herdeiro

de nada, porque as fortunas da Amazónia pifaram com a borracha de Singapura. Suspeito que o rei D. Luís

não deu o título: vendeu-o pobre avô visconde, pequenino, em Belém. Do visconde nicles, salvo este anel,

claro, e uma garrafa de vinho do Porto sem conserto. Tomámos um cálice heroico, entre caretas. Mas não é

disso que se trata aqui, é da Praia das Maçãs e de mim. Se me perguntassem

- Gostas da praia das Maçãs?

Hesitava. E no entanto, reparo, povoa os meus livros. Como Nelas, vila tão amada, a que regresso sempre

que posso. Se gosto da Praia das Maçãs? Não tenho nada em comum com as criaturas que aqui veraneiam,

nem as cumprimento sequer (- O António é tão malcriado) porque não as vejo e, se as visse, não teria

paciência, vejo os pinheiros, o mar (para esses tenho paciência) os da terra que me conhecem desde sempre

(para esses tenho paciência) ando um bocado a pé, por aí, ao acaso, num intervalo do livro, passo pela casa

da minha tia Bia como se ela não tivesse morrido, apetece-me entrar na sala, estarmos juntos, calados, diante

da televisão apagada. Não a esqueci, tia, não a vou esquecer. Que mais? Na minha família não somos

especialmente divertidos nem faladores, uma implacável discrição cobre o afeto, não se fazem perguntas

pessoais, não se comenta a vida de ninguém. Engraçado: durmo na minha cama de adolescente, não durmo

nem melhor nem pior do que em qualquer outra cama e, em geral, nunca me recordo dos sonhos. O que me

fará voltar? Julgo que volto pelos meus irmãos. Por um certo melro no pinhal. Pelo cheiro das ondas. Pela tal

criatura de que sou filho ou neto e a quem, a esse sim, devo o que sou. Para que o ar da praia lhe dê boas

cores. Para reencontrar as suas aspirações confusas, a febre dos seus entusiasmos, as suas ingénuas certezas.

Lá está ele a contar as ondas, a medir versos com os dedos, poesias que julgava boas e não valiam um chavo.

Depois percebia que não eram boas e recomeçava. Tinha uma fé em si mesmo que me confunde e, de certo

modo, comove-me. Não de certo modo, comove-me de facto. Lembro-me dele pensar

- Nem que deixe a pele nisto hei de conseguir e deixou a pele nisto: tornou-se eu. Valeu a pena? Lembro-

me dele pensar

- Não escrever é estar morto e até na guerra, todos os dias, continuou a escrever. Julgo que volto, por-

tanto, pelos meus irmãos, por ele e por mim. Não me escapou, foi deliberado: volto por mim também. Pelo

homem que sou agora. Com a profunda humildade que o orgulho, que mencionei ao princípio,

inevitavelmente traz. Agora, que o meu pai já não está, vejo-o a ler sob uma copa. Vejo a minha mãe a ler.

Oiço o melro. Ainda se tira a mesa de pingue-pongue da garagem. O Pedro acende um charuto. Os olhos

azuis do Miguel, os mais azuis de todos nós. As nuvens de Sintra. Eu a pedalar na Tomadia. É curioso: custa-

me ir embora. Decido que me aborreço e custa-me ir embora. A correspondência mais curta que existe foi

escrita entre Victor Hugo e os seus editores. Tinha mandado Os Miseráveis, os editores não lhe ligavam peva

e Victor questionou-os, numa folha de papel:

?

Tempos depois chegou a carta esperada. Dizia:

!

E a correspondência acabou. De modo que me perguntassem

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- Gostas da Praia das Maçãs?

Estava capaz de responder assim

!

Só que desconheço o som que corresponde a um ponto de exclamação. Qual será?

ANTÓNIO LOBO ANTUNES, Terceiro livro de crónicas

Texto 6 - Lugares mágicos

Entro numa livraria como quem entra num santuário, onde o direito de asilo nos é sempre garantido. Nas

cidades que não conheço, é sempre o primeiro lugar que procuro e nunca resisto a entrar quando ela se

atravessa no meu caminho. As livrarias fazem parte da minha família. São amigas de infância. É nelas que

marco encontros com amigos, é passando a mão pelas capas dos livros que desfaço neuras e procuro

energias. Claro que há as minhas livrarias de eleição, aquelas a que, por qualquer motivo, me habituei como

ao café da manhã ou o jornal comprado no quiosque de sempre: durante anos e anos a Quadrante foi a minha

segunda casa, uma espécie de baby-sitter para os meus filhos pequenos, que lá deixava rodeados de livros e

vigiados pela Nini, uma cadela com quem partilhavam festas e lambidelas nos chupa-chupas - até que um dia

a Quadrante fechou e, até hoje, nada lá conseguiu vingar. Já foi casa de pronto a vestir, já foi loja de móveis,

já foi galeria de arte, neste momento alberga a redação de uma revista de saúde a quem, evidentemente,

desejo muita sorte e que consiga vencer a maldição. E há ainda as livrarias mágicas, aquelas sem as quais os

lugares, para mim, perdiam muito da sua razão de ser: ir ao Porto sem ter tempo para entrar na Lello não vale

a pena; ir a Londres sem horas disponíveis para a Waterstone é um desperdício.

E depois há aquelas velhíssimas lojas, que são livrarias, mas também vendem revistas de bordados e

croché, calendários e postais ilustrados, e muitos livros de edição de autor que acumulam pó porque já ali

estão há que anos, com um cheiro a papel que se esfarela nos dedos e nos traz å lembrança os livros de

histórias lidos na infância, com meninos "órphãos" que se perdiam nas florestas.

Numa dessas velhas livrarias de bairro entrei há dias, exatamente porque na montra deparei com um livro,

decerto tão velho como a livraria, de que tinha gostado muito em criança e de que há muito perdera o rasto.

O dono da loja (e também tão velho como ela) passou tormentos para descobrir o preço do livro, abriu

gavetas, fechou gavetas, consultou papelada, coçou a cabeça, virou e revirou o livro, até que, não sei por que

estranhos cálculos, me propôs: "Trezentos escudos, acha que está bem?" Nem hesitei e já ia a sair, com o

meu tesouro debaixo do braço, quando entra urna jovem, de ar aborrecido, que coloca um livro em cima do

balcão e diz: "Venho trocar este livro, que está estragado” O homem olha o livro e não entende, não tem

páginas trocadas, não tem páginas rasgadas, não tem manchas em lado nenhum, mas ela insiste, "não vê que

está estragado?". Como o homem continuasse a não perceber, ela abre o livro e enfia os dedos pelas páginas:

"Está a ver? As folhas estão todas juntas, assim não se consegue ler!" Como o homem, coitado, continuasse a

não perceber, antes de sair da livraria fiz a minha boa ação do dia e expliquei à jovem que, dantes, era assim

que todos os livros se publicavam, e que bastava ela pegar numa faca e abrir, e logo podia ler o livro à

vontade, e que até havia faquinhas de propósito para isso, para abrir os livros. Ela encolheu os ombros, “cá

para mim é um livro estragado, mas prontos", e lá foi à vida. O velhote, esse, nunca chegou a perceber de

que é que ela se queixava.

ALICE VIEIRA, Bica Escaldada, Ed. Notícias, 2.ª ed. 2005

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ARTIGO DE APRECIAÇÃO CRÍTICA

O artigo de apreciação crítica é o texto jornalístico de caráter interpretativo e argumentativo em que

alguém (conhecido/perito da área em causa) exprime a sua opinião critica relativamente a um determinado

tema, objeto, facto/acontecimento (sociais, económicos, políticos, culturais...), obra, atividade (exposição,

exibição artística, programa radiofónico ou televisivo...). Nos media, é geralmente produzido por críticos,

isto é, por pessoas conhecedoras da área em causa. Para além de servir para descrever e analisar o objeto

de apreciação em causa, também comporta comentários acerca dele. O artigo de apreciação crítica assume

assim um caráter predominantemente interpretativo e argumentativo.

O artigo de apreciação crítica apresenta-te pois como um atividade reflexiva, que implica observação,

análise e uma apreciação judicativa sobre o assunto. Mais do que opinativo, deve ser, simultaneamente,

informativo e interpretativo. Sem exigir um julgamento explícito do autor, que é responsável pelas

afirmações, mistura considerações objetivas e subjetivas, apreciando os assuntos no contexto e que

aconteceram e avaliando as suas repercussões. Deve explicitar muito bem a mensagem, a sua intenção e a

sua importância, atendendo à verdade dos factos, à sua abrangência e à circunstâncias.

Estrutura possível: título (em que se identifica o objeto de apreciação); introdução (em que se

apresenta brevemente o objeto de apreciação), desenvolvimento (descrição impressiva e apreciação crítica

do objeto de análise, traduzida na transmissão da opinião pessoal sobre o objeto de apreciação e se

justifica essa mesma opinião com base em argumentos significativos e pertinentes, corroborados por

exemplos significativos); conclusão (síntese e /ou reforço da argumentação feita). A estrutura não é fixa,

variando em função do estilo do autor e das características específicas do meio em que é publicado.

Marcas linguísticas mais comuns: linguagem subjetiva e valorativa (marcada por adjetivos qualificativos,

advérbios de quantidade e grau, figuras de retórica...).

Na elaboração de um texto de apreciação crítica, deve-se:

-Apreciar e fazer uma interpretação pessoal dos mesmos;

-Analisar os seus aspetos amos polémicos, fazendo anotações;

-Redigir o artigo, de acordo com uma estrutura adequada, não esquecendo que o meso deve informar

o público, mas também orientar os seus gostos no sentido de o convencer sobre qualidades do

assunto ou acontecimento.

Texto 1 - Mr. Robot: pode um hacker salvar o mundo?

Série que surpreendeu nos Estados Unidos e entrou em todas as listas dos títulos que devemos ver

estreia-se nesta sexta-feira na televisão portuguesa.

“O que estou prestes a dizer é top secret. Uma

conspiração maior do que todos nós. Há um grupo

poderoso de pessoas que secretamente dominam o mundo.

Estou a falar de tipos que ninguém conhece, aqueles que

são invisíveis. O top dos 1% do top dos 1%, os tipos que

brincam a deus sem permissão.” Onde é que já ouvimos

isto? Lembra-se, por exemplo, do movimento Occupy

Wall Street? Anonymous? Sabe o quão vulnerável o seu

telefone ou o seu computador é? E a password com que

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acede ao email todos os dias, é assim tão difícil de ser descoberta?

Está dado o mote para Mr. Robot, a série sensação do ano nos EUA e que nesta sexta-feira se estreia em

Portugal no TVSéries (23h), com Rami Malek e Christian Slater como protagonistas.

As palavras são de Elliot Alderson (Rami Malek), um engenheiro de segurança informática que vive uma

vida dupla, tão sufocante como alucinante. Durante o dia, trabalha numa grande empresa de segurança

cibernética em Nova Iorque; à noite, faz o oposto. Não protege quaisquer redes, mas corrompe-as, fazendo

parecer fácil o que não é. Elliot é um hacker, consegue entrar em tudo: computadores, smartphones, emails,

redes sociais, contas bancárias. É isto que faz e é nisto que é bom. Esta é, aliás, a única forma de saber mais

sobre as pessoas que o rodeiam. Ele, que sofre de distúrbio de ansiedade social, não é muito bom nas

relações interpessoais e o computador é a forma de conhecer todos os que de si se aproximam. Não é correto,

mas é a única forma. Ele sabe que não é correto mas é a única forma que conhece.

Elliot pode muito bem ser o herói do século XXI. Tem uma causa maior, a mudança de um sistema

financeiro e político viciado, ao mesmo tempo que vai fazendo justiça com pequenos casos aqui e ali —

descobre, por exemplo, que o dono de uma loja onde se ligou à Internet através de wi-fi é pedófilo, fazendo

chegar à polícia as provas que o incriminam. Mas, outras vezes, vasculhar a vida dos outros é a sua forma de

se encaixar no mundo, e isso faz de Elliot o nosso anti-herói. Também porque nem sempre sabemos quais as

suas reais intenções. Desde logo, com o seu ódio à multinacional E Corp (Evil Corp, para Elliot), que o rapaz

culpa pela leucemia que matou o seu pai.

E é quando Elliot é contactado por um homem misterioso que se auto-intitula de Mr. Robot (Christian

Slater) que tudo fica mais confuso. Mr. Robot quer Elliot no seu grupo secreto, o fsociety, para que juntos

possam abalar o sistema, chegar aos 1% dos 1%. Como? Começando desde logo por atacar a Evil Corp e

fazer desaparecer as dívidas de toda a gente.

Mr. Robot é isto. Uma montanha-russa. Uma série que prende tanto como confunde o espetador. Criada

por Sam Esmail, a produção não passou despercebida. O episódio piloto passou em Março no Festival South

by Southwest (SXSW), em Austin, no Texas, e arrecadou o Prémio do Público. Ainda antes de estrear na

televisão norte-americana, no canal USA, em Junho, o mesmo episódio foi disponibilizado em vários sites

para que se começasse a criar buzz à volta da série. Uma aposta ganha.

“Sabíamos, desde que lemos o provocador argumento de Sam Esmail, e testemunhámos as brilhantes

performances de Rami Malek e Christian Slater, que Mr. Robot seria uma série de excelência diferente de

tudo o que passa actualmente na televisão”, disse na altura da estreia, citado pela Variety, o presidente do

canal USA, Chris McCumber, que não teve qualquer dúvida em renovar a série. Mr. Robot tinha acabado de

se estrear na televisão e o canal anunciava uma segunda temporada para junho ou julho de 2016.

E não se ficará por aí. Sam Esmail pensou em Mr. Robot como um filme, mas depressa percebeu que

tinha páginas a mais para o tempo de uma longa-metragem. “A primeira temporada é, por isso, o primeiro

acto desta minha longa”, disse à Entertainment Weekly, não especificando quantas temporadas estão

pensadas. Esmail, norte-americano de origem egípcia, à semelhança do actor Rami Malek, viu na revolução

no Médio Oriente a inspiração para a série. “Eu estava lá [no Egipto] quando aconteceu a Primavera Árabe.

Uma das coisas que define a personagem de Elliot é o espirito revolucionário que vi nos meus primos. São

estes jovens que usam a tecnologia em seu favor para canalizar a raiva contra o status-quo, que procuram

melhorar as suas vidas”, contou o criador à Slate.

Esmail diz-se atraído pelo mundo dos ataques informáticos e dos seus mentores, mas admite alguma

desilusão pela sua fraca representação no cinema e na televisão. Com medo que o tema não fosse

compreensível ao grande público, fizeram-se opções “ridículas”, principalmente nos anos 1990, defende.

Para que isso não acontecesse aqui, foram contratados especialistas informáticos que acompanharam a

produção. A aproximação à realidade é uma das muitas críticas positivas que Mr. Robot tem recebido. No

agregador de críticas Rotten Tomatoes, a produção de Esmail bateu todos os recordes, deixando para trás

séries populares como a A Guerra dos Tronos e House of Cards.

“Descobri que Edward Snowden é um grande fã da série”, contou ao The Guardian Rami Malek, citando

uma entrevista recente daquele. “Quando percebes o quanto ele sabe sobre as táticas de vigilância do

Governo, sentes que estamos a fazer um trabalho muito rigoroso”, acrescentou o ator, lembrando as muitas

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coincidências com a realidade. Mr. Robot acabava de estrear e o ataque informático à Sony estava nas

notícias. Também o último episódio teve até de ser adiado por ter uma cena semelhante ao ataque aos dois

jornalistas mortos em direto em Virgínia.

A linha entre realidade e ficção é ténue. Na vida real como em Mr. Robot, onde nunca nada é bem o que

parece.

Carvalho, Cláudia Lima. Publicada no Ipsilon, suplemento do jornal Público, em 5 de novembro de 2015

Texto 2 – Um romance histórico relutante

Título: Mulheres de Cinza

Autoria: Mia Couto

Editora: Caminho

Um livro que se recomenda sem hesitações aos apreciadores de Mia Couto, mas que pode defraudar

essa recente subcategoria de leitores mais ou menos especializados em romances históricos

Na capa de Mulheres de Cinza anuncia-se que este é o primeiro livro de uma “trilogia moçambicana”

intitulada As Areias do Imperador. Só na badana interior se precisa que a anunciada trilogia é “sobre os

derradeiros dias do chamado Estado de Gaza” e que o imperador a que o título alude é Ngungunyane, que

governou toda a metade sul do território de Moçambique no final do século XIX.

Uma opção editorial sensata, já que este livro não é de todo uma biografia

romanceada do rei africano que em Portugal ficou conhecido como Gungunhana.

Embora referido por algumas personagens, Ngungunyane não é, ele próprio, uma

personagem. O leitor sente a sua presença, mas não o vê, não o ouve falar, não

sabe o que pensa.

Mia Couto já adiantou que o imperador aparecerá nos próximos volumes,

mas em Mulheres de Cinza os verdadeiros protagonistas são Imani, uma rapariga

de 15 anos oriunda de uma das raras tribos da região que se aliaram aos

portugueses e não adoptaram a língua e os usos dos invasores Va Nguni,

liderados por Ngungunyane -, e o sargento Germano de Melo, um militar

português que se vê desterrado em Moçambique como castigo pela sua

participação na fracassada intentona republicana de 31 de Janeiro de 1891.

Reconstituir ficcionalmente o extraordinário trajeto de Ngungunyane, opondo

uma espécie de versão moçambicana ao mitificado retrato que dele foi sendo construído em Portugal em

sucessivos momentos, do final da monarquia à I República e ao Estado Novo, parecia um desafio adequado

ao estatuto daquele que é hoje o mais reconhecido escritor moçambicano.

Mas não é bem isso que o autor faz, ou começa a fazer, em Mulheres de Cinza, um livro que se

recomenda sem hesitações aos apreciadores da obra de Mia Couto, mas que pode talvez defraudar um pouco

as expectativas dessa recente subcategoria de leitores mais ou menos especializados em romances históricos.

É certo que a ação decorre no final do século XIX, numa região de Moçambique disputada pelo Estado de

Gaza e pela Coroa portuguesa, e que há referências a várias figuras históricas, como o próprio Gungunhana,

Mouzinho de Albuquerque - o português que o derrotou e aprisionou sem saber que a sua acossada presa já

praticamente se dera por vencida -, ou ainda o militar e político Henrique Paiva Couceiro, futuro

impulsionador da Monarquia do Norte. Mas não há (por enquanto, já que faltam dois volumes) uma

verdadeira interação entre personagens históricas e ficcionais.

Como escritor, Mia Couto sempre preferiu as pequenas histórias humanas, vividas por protagonistas

oprimidos, divididos e vulneráveis, do que a grande História, representada por figuras de dimensão épica ou

heroica. Já era assim no seu marcante romance de estreia, Terra Sonâmbula, que abarca o período final da

guerra civil pós-independência, e este Mulheres de Cinza não trai essa vocação.

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O contexto histórico é aqui um dado de partida, recriado mais como atmosfera do que como sucessão de

acontecimentos, e serve ao autor como pano de fundo para desfiar os seus tópicos de sempre: os dilemas da

identidade, os conflitos de consciência, o racismo, a discriminação das mulheres, a importância da língua e

dos nomes, a sobrevivência da tradição no mundo moderno, o poder poético e criativo da cultura oral, a

indiferenciação entre passado e presente e entre real e maravilhoso, para referir apenas alguns dos temas

mais recorrentes.

Talvez possa ainda assim observar-se que este novo romance, sem se despojar da poesia que sempre

alimentou a sua prosa, se mostra bastante menos carregado - ia dizer sobrecarregado - dessa constante

invenção lexical e gramatical que se tornou a imagem de marca da sua escrita.

Um leitor português tenderá a sair deste livro sem ter a certeza se acabou mesmo de ler um romance

histórico, pelo menos no sentido convencional do termo. Mas a questão talvez esteja precisamente nessa

convenção, que é afinal a da tradição literária europeia e ocidental, que Mia Couto sempre tentou conciliar

com a invenção de uma criação literária genuinamente africana, alimentada pela tradição oral e capaz de dar

voz a uma visão do mundo naturalmente mítica e poética.

Daí que este possa ser visto como uma espécie de romance histórico híbrido, no qual um relato mais

racionalizado e cronológico - plasmado nas cartas que o sargento Germano de Melo envia a um superior - se

vai cruzando com o muito diverso olhar dos africanos sobre as mesmas circunstâncias.

E o aspeto mais conseguido do livro talvez seja o modo como o autor consegue, recorrendo apenas ao que

seria minimamente verosímil um militar escrever na sua correspondência, mostrar-nos o processo

simultaneamente doloroso e jubiloso que leva o sargento português a deixar-se progressivamente contaminar

pelo olhar do outro, a ponto de essa conversão a um mundo em que trânsitos invisíveis e inescapáveis unem

delírio e realidade vir a receber confirmação simbólica no seu próprio corpo. Há nesta personagem de

Germano de Melo, na sua progressiva desagregação interior, um pathos quase conradiano.

Já o que em Mulheres de Cinza, um romance imaginativo e inegavelmente bem construído, agrada menos

ao particular gosto deste leitor - e trata-se mesmo de mera questão de gosto - é o que sempre lhe resistiu na

obra de Mia Couto: algum excesso lírico, o aqui menos frequente ludismo verbal, uma certa propensão

didática, suplementos que adoçam um pouco de mais esta prosa para quem for, digamos assim, um

apreciador de vinhos secos.

Queirós, Luís Miguel, publicado no Jornal Público, em 30 de outubro de 1910

TEXTOS DE CARÁTER AUTOBIOGRÁFICO

Os textos de caráter autobiográfico são textos em que se procede à escrita acerca da própria vida.

Neles o sujeito enunciador reflete sobre a própria vida e autocaracteriza-se, implicando-se intimamente

no discurso, expressando opiniões, defendendo convicções e exprimindo a sua visão pessoal do mundo.

Conforme os contextos, assumem diferentes géneros:

Contextos Géneros autobiográficos

Familiar/privado Diário, memórias, relato de experiências pessoais,

carta intimista …

Literário Autobiografia, diário, memórias, autoficção,

autorretrato, carta intimista…

Religioso Confissão…

Educacional Relato de experiências pessoais, histórias de vida,

autobiografia, diário

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“Não é a pessoa que produz a História de Vida, é a História de Vida que produz a pessoa”

Pineau

Textos autobiográficos são pois aqueles em que os autores falam de si próprios, contam

situações e factos da sua vida, analisam experiências pessoais; procurando responder a questões

como: Quem sou eu? Como me vejo? Como me vêem os outros? Que vivências, que factos, que

pessoas foram importantes na minha vida? Como os avalio tendo em conta as consequências

que daí advieram para mim e para as pessoas que me são próximas? Que aprendizagens me

proporcionaram? Como agiria hoje perante essas

situações e esses fatos? Que lições extraí e de

modo me capacitaram para pensar o presente e

perspetivar o futuro?

Orientações para começar a escrever a

História de Vida

NB - Escrever uma história de vida não é limitar-se

a narrar cronologicamente factos da vida. Redigir a

História de Vida não é fazer a história da uma vida inteira. É antes escolher situações de vida (histórias de

vida) que fizeram a diferença, que marcaram o sujeito, que o mudaram, que tiveram impacto sobre as

pessoas com as quais interagiu, em diferentes contextos, que se traduziram em aprendizagens

significativas.

Comece por fazer um esboço da sua vida para ganhar

perspetiva. Para fazer isto, entre em modo retrospetivo,

peça a ajuda de um amigo ou cônjuge e esboce os

momentos mais significativos da sua vida. Se o fizer

cuidadosa e honestamente, identificará acontecimentos /

vivências fulcrais que se destacam como particularmente

significativas. Se isso não acontecer, não se preocupe. Há

muitas maneiras de fazer um esboço da vida. Tente dividir

o seu por opções determinantes, pessoas influentes,

conflitos, crenças, vivências, lições, até erros. Tente encon-

trar “histórias que pedem para ser contadas”, experiências

que realmente o moldaram.

Não comece pelo princípio. Não narre a sua história vida segundo uma ordem cronológica. É demasiado

previsível. Pense nos seus livros preferidos. A maioria não começa no início. Ao invés, fixam-no com ação

instantânea e intriga. Um bom início é uma provocação. Permite agarrar o leitor. Depois, poderá seguir

uma linha cronológica, ou não, narrando as experiências significativas, de modo reflexivo.

Use todos os seus sentidos. Os melhores escritores criam novos e vividos mundos para os seus leitores

habitarem. Procure arrebatar os leitores (e a si próprio), escrevendo com vivacidade. Isso consegue-se

através do pormenor, utilizando todos os seus sentidos para narrar situações de vida. Pode-se ensinar a si

mesmo a fazer isto. Da próxima vez que estiver num restaurante, num consultório médico ou mesmo preso

no trânsito, repare no que vê, no que ouve, no que cheira e nas texturas. É o que os escritores fazem tanto

na vida real como nas suas histórias.

Retirado de: Magalhães, Olga et al. (2012)

Português. Ensino profissional. Porto: Porto

Editora.

Imagem disponível em: https://www.google.pt/search?hl=pt-

PT&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1440&bih=775&q=po

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Exercite o seu músculo de “escritor”. Você tem um músculo de escritor que necessita de exercício para

funcionar bem. Fixe um objetivo diário de escrita, 200, 500 ou mesmo 1000 palavras. Fixe uma hora

regular, como, por exemplo, logo pela manhã, e seja disciplinado. Não se preocupe em tornar a sua escrita

perfeita.

Concentre-se em fazer desocultar situações de vida (terá tempo de sobra para Iimar arestas mais tarde).

Acima de tudo, descontraia-se. A História de vida são o tipo de escrita mais fácil de fazer bem. A pesquisa

está feita e você conhece os personagens intimamente. Agora, só tem que narrar e refletir sobre o que

apreendeu, como poderá usar essas aprendizagens noutras situações, noutros contextos, agora e no

futuro. Adaptado de Fernandes, Cidália et al. (2010) Português Vivo, 10.º ano. Porto: Plátano Editora

Enquanto método pedagógico que introduz a reflexividade na aprendizagem, os registos

autobiográficos / Histórias de Vida, sendo mais do que uma simples narrativa factual, cronológica,

uniforme e integral, permitem ao sujeito apropriar-se retrospetivamente do seu percurso de vida,

obrigando-o a um trabalho de grande implicação, contribuindo para uma tomada de consciência crítica,

individual e coletiva, e para uma participação efetiva no seu próprio processo de formação (Pineau, 2001,

adaptado). Estruturam-se em torno de momentos-chave narrados reflexivamente pelo próprio sujeito.

Deste modo, são registos importantes para a demonstração de competências e como tal podem integrar o

Portefólio do candidato em processo de RVCC.

Adaptado de referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos, Nível Secundário – Guia de Operacionalização

PORTEFÓLIO - Um conjunto variado de trabalhos datados e comentados. Desse conjunto farão

parte textos escritos de diferentes tipos, registos áudios, vídeo

e/ou outro software, trabalhos de pesquisa, projetos,

comentários / fichas de leitura de textos, de fotografias, de

filmes, etc. O portefólio deverá constituir uma amostra

significativa do trabalho do candidato, refletindo a progressão

do seu desempenho no percurso efetuado durante o processo

de Reconhecimento até à etapa da validação. Documenta

experiências significativas e é fruto de uma seleção pessoal.

Contém necessariamente provas (evidências) do desempenho

e a reflexão do candidato acerca do seu processo de

aprendizagem.

• Deve referir contextos reais, de modo a que se possa

formular juízos sobre o que os candidatos sabem e podem

fazer em situações concretas.

• Deve incluir uma variedade daquilo que o candidato sabe e pode fazer (competências), mostrando

como os problemas foram resolvidos e quais as dificuldades encontradas.

• Explicar a razão pela qual cada peça documental foi selecionada.

Adaptado de referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos, Nível Secundário – Guia de Operacionalização

Imagem disponível em:

http://blogfolios.blogspot.pt/2006/03/o-que-o-porteflio-

do-professor.html

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HISTÓRIAS DE VIDA REDIGIDAS POR AUTORES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Texto 1

Nesta sala em que escrevo, meu pai levanta-se de outrora, faz-me sentar aqui, a esta mesa, passeia em

diagonal. Pára, enfim, na minha frente, pergunta-me, fitando-me:

- Que curso queres seguir?

Tinha de optar já, no 6.º ano do liceu, pelas Letras ou Ciências. Mas o interesse profundo de um e de

outro como podia eu sabê-lo? A verdade de um curso não está no que aí se aprende mas no que disso sobeja:

o halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens. Assim, meu pai, que era médico, estava certo

com a sua profissão, como o meu irmão Tomás estaria com o seu curso de Agronomia, como o seu irmão

Evaristo com as suas sucessivas reprovações no 5.º ano.

- Penso - disse meu pai - que te darás melhor em Letras.

Decerto, decerto: eu nunca tivera saúde, a vida de professor era tranquila. Porque eu sonhara sempre,

talvez por isso, com uma farda militar e uma vida romanesca. Meu pai corrigiu:

- Não é só isso. Há mais razões.

Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a invenção do indizível e o meu verso clandestino que a

cantava. Havia a minha dedicação pela velha tia Dulce e pelo seu velho álbum, de que depois falarei. Havia,

enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta de nós próprios e que eu também fizera um

dia a meu pai:

- Quem sou eu?

Era uma tarde de verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu olhava a água absorto.

- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado - : tu és meu filho, um homem, um ser vivo que pensa, que

vive e que há-de morrer como todo o ser vivo.

- Mas eu, eu o que é que sou?

Meu pai optou por contar-me a história da evolução da vida. Mas eu, que a acredito hoje como exata,

sentia, como sinto, que alguma coisa ficaria por explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me

habita, essa presença obscura e virulenta que me aparecera, como também contarei, quando a vi fitar-me ao

espelho.

VERGÍLIO FERREIRA, Aparição

Texto 2

- Pensa bem se és “capitão” só para aproveitares o que os outros fazem, ou para fazeres mais do que eles,

para pensares melhor do que eles... - e até para dares o exemplo do que se pode fazer sozinho...

Passeando na sala, para cá e para lá, com as mãos atrás das costas, os passos lentos abafados pela alcatifa,

depois duma pausa, o pai continuou:

- Na vida nada se faz sem esforço. E é preciso manter o espírito sempre alerta; principalmente em relação

a nós próprios. Não nos podemos abandonar. Temos de escolher nas nossas tendências e preferências o que

nelas há-de bom e o que pode levar-nos por maus caminhos. O abandono a si próprio é uma fraqueza. É

preciso sermos exigentes primeiramente connosco; depois podemos sê-lo com os outros. Manter a corda

tensa e os pés fincados na terra!... A vida é uma luta de tração. Sabes como é? Quem se descuida vai

arrastado. Ou então são os companheiros que o aguentam. Mas se todos pensarem assim, afrouxam a corda e

não fincam os pés...

E vão todos... Ajudas? ... Meu amigo, conta contigo... É a única maneira de os outros contarem também

contigo, e tu com eles: porque então todos são fixes.

“Fixes”... repetiu Pedro, mentalmente, com ironia, e foi pensando para consigo:

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- O pai a armar ao calão. Não sabe. Para que o fala? ...o calão é outra coisa. Não é para toda a gente...

Aprende-se na rua: “Fixe” não é a arrastar os “ches”. É com força no “Δ – “fÍ”... E bem sabia tudo aquilo...

O pai não tinha a mania dos discursos, mas às vezes dava-lhe para aquelas filosofias. Sabia aquilo tudo...

Ajudas!... Nem imaginava do que ele era capaz. Até os outros mais velhos tinham medo dele.

BRANQUINHO DA FONSECA, Bandeira Preta

Texto 3

Lisboa, 19 de Abril 1969

Parábola que vim contar a uma assembleia judicativa e a quem mais quis ouvir...

“Quando fiz exame da quarta classe e fiquei distinto. Meu Pai, um pobre cavador sensível, chorou de

alegria e comprou-me um cavaquinho, no Bazar dos Três Vinténs. Foi a primeira prenda que recebi, mas,

apesar de merecida, deixou-me tristes recordações. Tanto dedilhei na zanguizarra, que lhe rebentei as cordas.

E, já desanimado de arranjar outras, lembrei-me de recorrer ao Xaronda, dono de uma guitarra a valer. Com

restos dos bordões que por lá tivesse, poderia eu refazer a minha lira. Mas o homem não gostava de crianças.

E, farto de ser importunado, numa hora de impaciência, tirou-me a viola das mãos e escaqueirou-a contra

uma parede.

Decorridos cinquenta anos de sucessivas ilusões desfeitas, fui surpreendido pela notícia de que me

queriam oferecer um novo bandolim. Pedi vinte e quatro horas para responder se o aceitava ou não.

Desejava meditar algum tempo, a ver se poderia receber o mimo de consciência tranquila. E cheguei à

conclusão que sim, que nenhuma razão válida me impedia de ter esse gosto. O exame de agora constara

também de toda a matéria dada. O júri puxara igualmente pelo examinando. O prémio não fora solicitado. e

meu Pai havia de ficar contente lá no outro mundo ao saber que o filho ganhara o galardão.

Assim, apoiado na lógica e no sentimento, meti-me a caminho. E, aqui estou, nesta franca simplicidade, a

contar a minha pequena história real que se tornou simbólica, a agradecer a vossa generosidade, e a pedir aos

deuses que não apareça outro Xaronda e me quebre o cavaquinho...”

MIGUEL TORGA, Diário XI

Texto 4

À minha entrada na escola primária faltou um ato solene. Eu conto: meu irmão Luís Victor e minha irmã

Maria Eugénia andavam na escola e, certo dia, a minha mãe disse para eu ir também. Julguei que ainda não

era a sério e que ia ali passar o dia com os meus irmãos pois ninguém se formalizou dizendo-me com alguma

solenidade que naquele dia entrava na escola, como tinha acontecido com eles. Três dias depois disse que

não me apetecia ir à escola. Aí formalizaram-se todos: “Era o que faltava! Não lhe apetece ir à escola! Faz

favor de se habituar a cumprir com os seus deveres”.

Foi nesse dia que eu tomei consciência de que estava na escola a sério. Mesmo assim, não me despertou

grande entusiasmo. Tinha um grande fascínio era em relação à quinta. Ali, a cinco quilómetros da Covilhã, a

quinta do Valeizão, que já fora do meu avô, era o refúgio do meu pai. Aquela estava inteiramente mitificada

por todos nós, íamos para lá em setembro, às vezes em Maio, mas raro era o dia em que o meu pai não ia à

quinta.

Todo o meu imaginário infantil estava ligado àquela casa e àqueles campos. (...)

Andava na escola oficial. O meu calção curto de fazenda, a camisola de lã, as meias e as botas, o

sobretudo com que enfrentava aqueles terríveis Invernos, eram o sinal exterior da minha condição face às

alpergatas e às calças remendadas de muitos dos meus companheiros. Fiz amizade com o filho do

marceneiro, do latoeiro e de um que estava numa bomba de gasolina. Tratavam-me com grande estima e

tinham orgulho na minha amizade, o que eu compensava com um dos dois biscoitos que levava para a minha

merenda. Minha mãe não levava muito em gosto este meu interclassicismo precoce, porque às vezes me

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pegavam piolhos e me ensinavam palavras impróprias da minha condição, Dizia de mim: “Este, puxa-lhe o

pé para a chinela...”

Sempre que penso na minha escola primária lembro-me dum caso triste que me aconteceu no último dia

de aulas. Estavam a jogar à bola e eu andava por ali. Nisto, um deu um chuto, a bola acertou-me na cara e

fiquei com o nariz a deitar sangue. Era um dos meus grandes amigos. Os que estavam ao pé de mim, e como

eu era o tal menino, encheram-se de indignação e resolveram acudir-me e dar uma sova ao que tinha dado o

chuto. Eu só o ouvia a dizer: “Foi sem querer... foi sem querer...”

Não dei um passo, não fiz um gesto para o defender. A certa altura cruzaram-se os nossos olhares, ele

como que à espera das minhas palavras e eu não abri a boca. Pergunto-me porque é que fiz isso. Por causa da

minha timidez: eu não era capaz de enfrentar aqueles que me estavam a defender. E logo isto aconteceu no

último dia e nunca mais o vi. Como recordação ficou-me aquele seu olhar inquieto e surpreendido com a

minha indiferença, no meio dos que lhe batiam, à espera de um gesto meu. [...)

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA, A Pesca à Linha, Algumas Memórias

Texto 5 – O princípio dos primeiros dias

Os meus amigos andavam todos comigo na escola. No primeiro dia em que fui à escola, com seis anos

acabados de fazer, foi a minha irmã quem me levou. A maioria dos alunos ia com a mãe. Eu fui com a minha

irmã. Antes de sairmos de casa, tirámos uma fotografia. Era um dia de setembro e de sol. Tanto o mês de

setembro como o sol ficaram nessa fotografia. No caminho, encontrámos outros rapazes da minha idade que

também iam para a escola. Eram vizinhos meus, que eu já conhecia e que faziam o mesmo caminho que eu.

A minha irmã ouvia as conversas das mulheres como se fosse a conversar também. Eu ia calado. Levava às

costas uma mala amarela que o meu pai me tinha dado pelos anos. Era uma mala muito bonita. Era a mala

mais bonita que eu conhecia. Lá dentro tinha um caderno de linhas e um caderno de contas. Tinha canetas,

tinha lápis, tinha uma borracha e uma afiadeira. Levava a mala mais pela vontade de usá-la, do que por

necessidade.

Nesse primeiro dia de escola, ficámos no recreio enquanto a professora dizia coisas misteriosas às mães

e à minha irmã. Nesse momento em que ficámos sozinhos, brincámos. Depois, quando as mães e a minha

irmã saíram, a campainha tocou pela primeira vez. A campainha era um pequeno sino de metal estridente que

a professora agitava e que se ouvia muito longe. Quando entrámos na sala, olhámos para todos os lados.

Tínhamos vergonha. A professora mandou-nos sentar. A escolha das carteiras foi feita segundo a crença de

que os meninos das carteiras da frente eram mais inteligentes do que os meninos das carteiras de trás. Sentei-

me ao centro. Eram carteiras individuais. Tinham um tampo de fórmica. Eram carteiras altas. Enquanto a

professora falava, as mães e a minha irmã ficaram atrás, de pé, encantadas. Não me lembro de uma única

palavra daquilo que a professora disse nesse dia. Enquanto andei na primeira classe, entrava às oito da manhã

e saía à uma da tarde. Ficava com a tarde livre para brincar, e isso era bom, mas nunca me habituei a acordar

cedo. A minha mãe acordava-me todos os dias com uma tigela de papa. Comia ainda na cama. Sentado, mas

ainda a dormir. Depois, fazia o caminho para a escola que demorava cerca de meia hora. Chegava atrasado

todos os dias. A professora tinha afixado um cartaz feito em papel quadriculado com o nome de todos os

alunos da sala e um mapa com todos os dias de aulas. A chegada, tínhamos de pintar o quadradinho cor-

respondente com uma caneta verde, amarela ou vermelha, consoante chegássemos a horas, atrasados ou

muito atrasados. Ter uma linha de quadrados vermelhos ou amarelos à frente do nome era considerado mau.

Eu chegava atrasado todos os dias. Quando chegava, dizia: "dá licença, minha senhora?". Essa era uma

pergunta que não esperava que a professora respondesse. Dirigia-me à minha carteira e, depois, dirigia-me ao

cartaz. A professora perguntava sempre qual era a cor que nós achávamos que devíamos utilizar. Eu dizia

sempre: "amarelo", na esperança de que a professora deixasse passar.

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Tive sempre a mesma professora da primeira à quarta classe. Cada vez que nos dirigíamos a ela,

tratávamo-la por "minha senhora". Todas as frases acabavam em "minha senhora": "posso ir afiar o lápis,

minha senhora?", "posso ir à casa de banho, minha senhora?", "posso ir ao quadro, minha senhora?". De

facto, a professora era diferente de todas as mulheres que tinha conhecido até aí e que eram as mulheres da

minha ma. Tinha anéis com pedras em quase todos os dedos. Tinha o cabelo sempre arranjado. Tinha os

olhos pintados. Falava de maneira diferente. Falava como as pessoas da televisão. Falava corretamente. A

professora, "minha senhora", era uma senhora.

[...]

Hoje, gostava de entrar na sala e perguntar:

“dá licença, minha senhora?”; gostava de ler um

texto do Papu1 em voz alta; gostava de resolver

um problema; mas, hoje, é demasiado tarde.

Dizem-me, e quase acredito, que já não existem

verdades simples; mas, mesmo assim, há manhãs

em que acordo de repente e imagino que a minha

irmã me vem buscar; é setembro, é sol, os meus

amigos andam todos comigo na escola e ainda

sinto o peso da mala amarela sobre as costas. 1: título de um livro de leitura do 1.º ano

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, ín JL - Jornal de Letras, Artes e

Ideías, 29 Setembro - 12 Outubro, 2004

O DIÁRIO

O diário é um género narrativo que se caracteriza, em primeiro lugar, pela sua modalidade de

enunciação: tratando-se de um discurso na 1.ª pessoa, o autor regista e narra, dia após dia (por vezes

com algumas descontinuidades), acontecimentos de que foi personagem ou que testemunhou. Há diários

estritamente factualistas, mas há diários nos quais os eventos narrados são sobretudo pretextos para

reflexões e digressões filosóficas, morais, estéticas, etc.

Nos diários íntimos, próximos da autobiografia, encontramos uma escrita subjetiva, confessionalista e

frequentemente narcisista, através da qual o autor desabafa os seus sentimentos e emoções. A escrita do

diário é quase simultânea com os eventos registados e narrados. Há diários que constituem testemunhos

históricos e outros em que avultam as afinidades com o lirismo e com a reflexão filosófica."

Gomes, Álvaro; Baptista Fernando Paulo. (1995) Sinfonia da Palavra 7, 2. ed., ASA. (adaptado)

Estrutura possível: local, data, saudação inicial, corpo da carta, fórmula de despedida, assinatura

Marcas linguísticas mais comuns: organização com base em critérios cronológicos (escrita diária/periódica,

geralmente datada); enunciação de tipo narrativo, em articulação com sequências descritivas,

argumentativas ou dialogias; marcação de uma situação e interlocução: enunciação na primeira pessoa,

dirigida ou não a uma segunda pessoa; articulação entre tempos gramaticais que marcam a narração de

Anne Frank (1929-1945), fac simile do seu Diário e retrato, 1942: imagens disponíveis em:

emhttp://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/sobreviver_a_guerra.html

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eventos passados (pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito) e tempos gramaticais que marcam a

exposição de eventos presentes e a reflexão crítica sobre o quotidiano (presente).

Diário - exemplos

Texto 1

1969

1 - fevereiro (sábado). Fiz cinquenta e três anos há dias. Como é óbvio, não acredito. Mas enfim, é a

opinião do Registo Civil. Acabou-se, fiz cinquenta e três. É aliás uma idade inverosímil, a minha, desde os

cinquenta. A "vergonha" da idade (que não tenho) deve vir daí. E então lembrei-me: e se eu tentasse uma vez

mais o registo diário do que me foi afetando? Admiro os que o conseguiram, desde a juventude. Nunca fui

capaz. Creio que por pudor, digamos, falta de coragem. Um romance é um biombo: a gente despe-se por

detrás. Isto não. Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás como os outros,

desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que, quando me encontro bem pela frente,

reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De resto, sou pouco abonado.

Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm z:nesmo raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse" pela

arte, por vaidade e coisas assim. Não digo que aconteça isso com todas as ditas virtudes; mas com algumas

deve ser verdade. Chega. O meu "diário" está nas centenas de cartas aos amigos. [...]

Fomos a Fontanelas, levámos o Lúcio, de Bolembre. Lúcio cresce, distancia-se. Não decerto no afeto - no

que no-lo marcou como criança. Com ele também, a fuga do tempo. A casa do Rogério - o jardim. Súbita

melancolia, o espetro do passado, ou seja da morte. Penso pouco na morte, hoje, começa a ser-me um

fenómeno natural. Um certo cansaço? Uma fadiga de tudo. Estar. Ser, olhando erradiamente, ler talvez. A

sensação de que tudo está feito. Vejo as ervas no jardim abandonado, uma cadeira desmantelada no terraço

do pavilhão. Ao longe, o mar de um tempo muito antigo. Há só dez anos que ali vou, e todavia tudo recuou

já muito. Assim, em momentos bruscos, estampa-se-me a visão flagrante do irremediável. Uma melancolia

suave. Não desesperante: suave. Compreende-se a "vontade de chorar" por nada. É o súbito espaço vazio, a

vertigem. A solidão. A solidão de não se estar sempre connosco. (...)

1974

25 - abril (quinta). Às sete da manhã, um amigo telefona-me: “Ouça o rádio.” Ouço sem entender: rebentou

a Revolução. A Revolução? Que Revolução? Por fim lá vou compreendendo. Toda a manhã a rádio nos vai

esclarecendo com notícias. Passámos o dia à escura. Será possível?

26 - abril (sexta). Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como

é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Policia. A Censura.

Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para refletir. Tudo isto é

excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir.

VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente 1, Bertrand, 3.ª ed., 1982

Texto 2

Coimbra, 4 de Junho de 1992 - Conferência internacional no Rio de Janeiro para defesa do ambiente

físico. Do metafísico já ninguém cuida. E, do outro, mais valia que os delegados, em vez de discursos sujos,

lavassem a hipocrisia nas águas ainda lustrais de Guanabara. O mundo está irremediavelmente perdido,

porque é incorrigível a voracidade capitalista e a nossa obstinação consumista. Queremos, queremos,

queremos. E os abnegados senhores do progresso fabricam, fabricam. Saturam, diligentes, os mercados do

útil e do inútil. Atravancam o planeta das suas sedutoras mercadorias. Para tanto, esventram-no, derrubam-

lhe as florestas, empestam-lhe os rios, os mares e os ares. Poucos dos que assistem ao colóquio estão ali de

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boa fé ou em nome dela. Quando a farsa terminar, nenhum petroleiro vai recolher ao estaleiro, nenhum alto

forno deixará de arder, nenhum motor de rodar.

Contemporâneos passivos de uma civilização técnica e industrial, que nos serve o necessário poluído e o

supérfluo esterilizado, já nem sequer nos indignamos de a ver acabar assim, pletórica e podre. Sornamente,

vamos vegetando intoxicados, na esperança secreta de que o dilúvio não acontecerá na nossa vida, e, se

acontecer, haverá sempre na Arca de salvação lugar para mais um.

MIGUEL TORGA, Diário, vol. XVI, Coimbra, 1993

Texto 3 - Extrato do diário de Anne Frank

Terça-feira, 11 de Abril de 1944

Querida Kitty:

Sinto como que marteladas na cabeça! Nem sei por onde começar. Sexta-feira (Santa) à tarde, e no sábado

também, fizemos vários jogos. Esses dias passaram-se sem novidade e bastante depressa. No domingo pedi

ao Peter que viesse aqui e mais tarde subimos e ficámos lá em cima até às seis horas. Das seis e quinze até às

sete horas ouvimos um belo concerto de música de Mozart; do que mais gostei foi da "K'eine Nachtmusik".

Não consigo escutar bem quando há muita gente à minha volta, porque a boa música comove-me

profundamente.

Domingo à noite o Peter e eu fomos ao sótão. Para estarmos sentados confortavelmente, levámos umas

almofadas que pusemos em cima de um caixote. O sítio é estreito e estávamos muito apertados um contra o

outro. A Mouchi fazia-nos companhia. Assim havia quem nos vigiasse. De repente, às nove menos um

quarto, o sr. Van Daan assobiou e perguntou se nós tínhamos levado uma almofada do sr. Dussel. Saltámos

do caixote abaixo e descemos com as almofadas, o gato e o sr. van Daan. Por causa da almofada do sr.

Dussel desenrolou-se uma verdadeira tragédia. Ele estava desaustinado por termos levado a sua "almofada da

noite". Receou que a enchêssemos de pulgas, fez cenas tremendas por causa de uma reles almofada.

Como vingança, o Peter e eu metemos-lhe duas escovas duras na cama. Rimo-nos muito daquele pequeno

intermezzo. Mas o divertimento não havia de ser de longa dura. Às nove e meia o Peter bateu à porta e pediu

ao pai que subisse para Ihe ensinar uma frase inglesa muito complicada.

- Aqui há gato. - disse eu à Margot - Ele não está a dizer a verdade. E tinha razão. Havia ladrões no

armazém. Com rapidez, o pai, o Peter, o sr. van Daan e o Sr. Dussel desceram. A mãe, a Margot, a Sra van

Daan e eu ficámos à espera. Quatro mulheres cheias de medo não podem fazer outra coisa senão porem-se a

falar. Assim fizemos. De repente, ouvimos, lá em baixo, uma pancada forte. Depois, silêncio. O relógio deu

dez menos um quarto. Estávamos lívidas, muito quietas e cheias de medo. Que foi feito dos homens? O que é

que significava aquela pancada? Haverá luta entre eles e os ladrões? Dez horas. Passos na escada. Entra

primeiro o pai, pálido e nervoso, depois o Sr. van Daan.

Fechem a luz. Subam sem fazer barulho. Deve vir a polícia. Agora não havia tempos para medos.

Fechámos a luz. Ainda peguei no meu casaquinho e subimos.

ANNE FRANK, Diário de Anne Frank, 2002, Livros do Brasil.

Texto 4 - O Diário de Adrian Mole

Domingo, 2 de Janeiro

Hoje analisei a minha aparência. Só cresci alguns centímetros no último ano, portanto tenho de me

convencer de que vou ser uma daquelas pessoas que nunca vêem bem no cinema.

A minha pele está uma lástima, as minhas orelhas são espetadas e o meu cabelo tem três riscos e por mais

que o penteie não consigo que fique à moda.

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Segunda-feira, 3 de Janeiro

Estão a decorrer negociações entre o meu pai e a minha mãe para regressarem ao seu estado marital. A

minha mãe disse: “Mas como pode resultar, Adrian? Há tanta coisa para esquecer.” Eu sugeri hipnose.

Terça-feira, 4 de Janeiro

Mais negociações à porta fechada. Quando saiu, pedi ao meu pai um relatório do encontro. Respondeu

“Sem comentários”, e entrou para o carro.

Quarta-feira, 5 de Janeiro

As negociações foram interrompidas.

Ouvi o açucareiro partir-se no chão e vozes altas. Depois, a porta a bater.

Quinta-feira, 6 de Janeiro

Uma mensagem foi enviada por um intermediário (eu). Novas negociações seriam bem-vindas. A

mensagem foi transmitida e a resposta favorável, por isso fui encarregado de tratar dos pormenores de

hora, local e ama-seca.

Sexta-feira, 7 de Janeiro

o encontro decorreu num restaurante chinês às 8 da noite. As negociações prolongaram-se pela noite

fora e só foram interrompidas quando uma das partes regressou a casa para dar de comer ao bebé.

Sábado, 8 de Janeiro

Ambas as partes emitiram o seguinte comunicado:

Fica acordado que Pauline Monica Mole e George AIfred Mole tentarão viver em mútua harmonia

durante o período experimental de um mês. Se durante esse período Pauline Monica Mole, a doravante

referida como PMM, e George AIfred Mole, o doravante referido como GAM, quebrarem o acordo

estabelecido, então ele será considerado nulo e o processo de divórcio seguir-se-á automaticamente.

Terça-feira, 1 de Fevereiro

Hoje apareceram as primeiras falhas no acordo matrimonial: uma discussão sobre dinheiro.

Somos mantidos pelo Estado no estilo em que o Estado nos quer manter, isto é, na pobreza. Os meus pais

não suportam mesmo serem pobres. Para mim tudo bem, estou habituado. Nunca tive mais de três libras por

semana a que chamar minhas.

Sexta-feira, 4 de Fevereiro

Passei o dia na enfermaria da escola devido a ter-me sentido fraco na primeira aula (EF).

A enfermeira perguntou-me se alguma coisa me corria mal em casa. Eu comecei a chorar e disse que

estava tudo. “Os adultos têm vidas complicadas, Adrian. Não é só ficar a pé até tarde e ter a sua própria

chave de casa!”

Eu disse que os pais deviam ter moral, ser consistentes, com princípios.

Ela respondeu: “isso é pedir muito.”

Fi-la prometer que não dizia a ninguém que me tinha visto a chorar.

Ela prometeu e amavelmente deixou-me ficar até os meus olhos voltarem ao normal.

Terça-feira, 8 de Fevereiro

Não me perguntem como tenho aguentado os longos dias de escola.

Por favor, não me perguntem. Ando de um lado para o outro como um robot sorridente. Mas a minha

alma chora, chora, chora. Tomara que os professores soubessem que uma palavra menos amável da parte

deles me enche os olhos de lágrimas.

Safo-me dizendo que sofro de conjuntivite, mas às vezes é por pouco. Hoje acaba o período experimental.

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Uma da manhã. Ambas as partes concordaram com um prolongamento.

SUE TOWNSEND , Adrian Mole na Crise da Adolescência

MEMÓRIAS

“Escrito narrativo em que se compilam factos presenciados pelo autor ou em que este tomou parte.”

A memória, o diário, o retrato ou a crónica constituem, frequentemente, formas discursivas que fixam

vivências, ficcionalizando-as em interpretações que cruzam momentos, desdobram a realidade e valorizam

múltiplos registos narrativos.

A memória surge como um escrito que permite ao seu

autor recuperar e juntar pedaos que relatam

acontecimentos considerados dignos de lembrança.

Denomina-se memória exatamente por permitir a

representação de evocações que a capacidade mnemónica

apreendeu e fixou, conservando-as em latência. Recorde-

se que o conceito de memória é mais amplo e está

presente em todas as espécies vivas e mesmo no sim¬ples

computador com as chamadas memórias RAM e ROM.

Ao contrário do diário, a memória ocupa-se de registos

do passado. Procura traduzir imagens sensoriais

recebidas, mas afastadas no tempo e, muitas vezes, do

espaço concreto ou ambiente em que se produziram.

Influenciada pela afetividade e pela vontade, identifica-se, frequentemente, com a consciência do Eu e

apresenta-se datada por um tempo interior. Identificando vivências e experiências passadas, criando

pontes entre tempos, espaços, factos e pessoas, favorece a construção de novos sentidos para o presente

da vida humana. Torna-se, assim, numa obra histórica, que, situada no presente da memória, recorre ao

passado para olhar o futuro.

Na antiguidade grega, Memória (Mnemosyne) era a deusa que dava o poder de recuar no tempo e

recordá-lo para o transmitir à sociedade. A Memória era a mãe das Musas, protetora das Artes e da

História.

Os adivinhos e os poetas eram os responsáveis por traduzir experiências e o sentimento do tempo. Os

historiadores, mais tarde, escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis e servissem de

exemplo às gerações futuras.

In Pimenta, Hilário; Moreira, Vasco. (2003 ) Língua Portuguesa, “Dimensões da palavra”.Carnaxide: Constância Editora

Marcas linguísticas mais comuns: organização com base em critérios cronológicos; enunciação de tipo

narrativo, em prosa; articulação da narração com o diálogo, a descrição, a reflexão…; enunciação na

primeira pessoa, registo intimista e modalização do discurso; articulação entre tempos gramaticais que

marcam o relato autobiográfico (pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito) e tempos gramaticais que

marcam a reflexão/comentário (presente, futuro); expressões com valor temporal e locativo, que marcam a

sequencialidade dos acontecimentos narrados e os localizam temporal e espacialmente; recursos

expressivos, com função estética (no caso autobiográfico e das memórias literárias).

Salvador Dali (1904-1989) A persistência da Memória. Imagem disponível em:

http://livreopiniao.com/2014/01/23/a-persistencia-da-memoria-25-anos-sem-salvador-dali/

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Texto 1 - O ensino

Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro duma cerca de terra

calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes dominados pelo mesmo sentimento de terror. - 8 x 7? - 8 x

7?

Entre as bancadas passeia um homem atarracado e grosso, de cabelo encarapinhado (...), botas de montar

e a palmatória metida no cano das botas: - 8 x 7? - 8 x 7? - E o seu vozeirão mete medo. - Eu tinha todos os

dias cólicas horríveis, antes de entrar no Colégio de S. Carlos, e foi ali que principiei a estragar os meus

nervos e a amargar a vida. O mestre, o Aragão, (...) acabou diretor do colégio, depois da morte do Carlos

Brandão.

Era aquele o seu sistema de ensino. De pé, entre as carteiras, nem dava tempo aos pequenos de repetirem.

- 8 x7? - Adiante! adiante!... - 59! - 64! - 32! - Adiante! adiante! - Um por fim exclamava: - 56! Punha-nos

então todos em fila e os bolos estalavam nas mãos dos rapazes, que se torciam e choravam, ou que bufavam

na pele inchada e dorida. Levavam todos - levava também o que acertara por acaso, e a quem ele dizia com

malícia: - Tu, tu também apanhas - para não te esqueceres! - Era um método.

Tinha ainda outro: o de mandar ao que acertara desancar os que tinham errado. Era um método tão bom

ou tão mau que eu nunca consegui aprender a tabuada.

Ainda hoje a não sei. (...)

Mais tarde, como interno, caí do ninho tépido no dormitório gelado e enorme daquela caserna imensa da

Rua Fernandes Tomás – e dei de repente com um mundo atroz e brutal. O colégio endurece. Havia lá de

tudo: homens de barba até ao umbigo, que estudavam as primeiras letras, garotos e brasileiros desterrados e

friorentos. (...) Era terrível ouvir o vozeirão do Dantas ensinando latim àquela cáfila, com bramidos que se

ouviam no Bolhão: - Bacamartes, pistolas e navalhas! (...) – ou o Borges de Avelar fechar o livro de repelão,

respirando com a amplitude duma baleia perseguida enquanto o Aragão cevava a sua fúria nos mais

pequenos apavorados: - 9 x 8? - 9 x 8?.. – Era verdadeiramente horrível, brutal e grosseiro – e talvez fosse

necessário...

Tudo o que aprendi, desde o desenho, onde havia coisas extraordinárias que ainda hoje me perseguem em

sonhos, como a perspetiva cavalheira e a perspetiva pitoresca, inventadas por o Miguel de Abreu, até à

química - tudo foi encasquetado à força de berros na memória daquelas gerações de desgraçados - para o

exame no liceu. Mas dali, dos oitocentos rapazes que enchiam os dormitórios e as aulas, saíram homens

ilustres como o José de Figueiredo e cocheiros de praça como o Lamas [...]. Fiquei com uma impressão de

negrume, que nunca mais me passou, do dormitório, do refeitório a cheirar a gordura, das salas de estudo

cheias de tinta (...). Fiquei transido. Há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo

sempre passado de terror...

O que este colégio, porém, tinha de melhor, é que nos punha em contacto com a realidade. Não havia

sistema de educação - mas entrava-se logo na brutalidade, no egoísmo, na dureza do mundo. Por isso a

minha sensibilidade sofreu, porque tudo estava ali em desacordo com o ninho tépido e com as noções que

aprendera em casa. Fiquei ferido para sempre.

RAUL BRANDÃO, Memórias, Tomo II, Relógio d'Água, 1998

Texto 2 - As pequenas memórias

Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que

eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras

davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de

requerimento formal e promessas mais ou menos para durar ("A menina quer namorar comigo?", "Pois sim,

se são boas as suas intenções") nunca o chegou a ser. [...] Ela era muito bonita, de rostinho redondo, mas,

para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, deveria pensar que eu era demasiado jovem

para empenhar comigo os seus sentimentos. [...] Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de

Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha

fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago. [...]

No lado direito do mesmo andar (ainda não saímos da Rua Padre Sena Freitas) morava uma família

composta de marido e mulher, mais o filho de ambos. Ele era pintor numa fábrica de cerâmica, a Viúva

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Lamego, ali ao Intendente. A mulher era espanhola, não sei de que parte de Espanha, chamava-se Carmen, e

o filho, um garotito loiro, teria, por esta altura, uns três anos (é assim que eu o recordo, como se nunca

tivesse crescido durante o tempo que vivemos). Éramos

bons amigos, esse pintor e eu, o que deverá parecer

surpreendente, uma vez que se tratava de um adulto,

com uma profissão fora do comum no meu minúsculo

mundo de relações, enquanto eu não passava de um

adolescente desajeitado, cheio de dúvidas e certezas,

mas tão pouco consciente de umas como das outras. O

apelido dele era Chaves, do nome próprio não me

lembro, ou nunca o cheguei a saber, para mim foi

sempre, e apenas, o Senhor Chaves. Para adiantar

trabalho ou talvez para cobrar horas extraordinárias, ele

fazia serão em casa, e era nessas alturas que eu o ia

visitar. [...] Eu gostava de o ver pintar os barros, cobertos

de vidrado por fundir, com uma tinta quase cinzenta que,

depois da cozedura, se transformaria no conhecido tom azul deste tipo de cerâmica. Enquanto as flores, as

volutas, os arabescos, os encordoados iam aparecendo sob os pincéis, conversávamos. (...) um dia levei-lhe

uma quadra ao jeito popular que ele pintou num pratinho em forma de coração e cuja destinatária seria a Ilda

Reis, a quem começara a namorar. Se memória não me falha, terá sido esta a minha primeira "composição

poética", um tanto tardia, diga-se em abono da verdade, se pensarmos que eu ia a caminho dos dezoito anos,

se não os havia cumprido já. Fui felicitadíssimo pelo amigo Chaves, que era de opinião que deveria

apresentar-me a uns jogos florais, esses deliciosos certames poéticos, então muito em voga, que só a

ingenuidade salvava do ridículo. O produto do meu estro rezava assim "Cautela, que ninguém ouça / O

segredo que te digo: / Dou-te um coração de louça / Porque o meu anda contigo." Reconheça-se que eu teria

merecido, pelo menos, a violeta de prata.

JOSÉ SARAMAGO, As Pequenas Memórias, Caminho, 2006 (com supressões)

AUTOBIOGRAFIA

A autobiografia é um género narrativo em prosa, em que o autor relata retrospetivamente a sua vida

individual, (re)construindo-a a partir do tempo presente da enunciação, ou seja, é o registo da vida de um

indivíduo feito por ele próprio. Assim, este tipo de texto caracteriza-se, essencialmente, pelas marcas da

primeira pessoa e pelo recurso aos tempos verbais do passado.

Marcas linguísticas mais comuns: organização com base em critérios cronológicos; enunciação de tipo

narrativo, em prosa; articulação da narração com o diálogo, a descrição, a reflexão…; enunciação na

primeira pessoa, registo intimista e modalização do discurso; articulação entre tempos gramaticais que

marcam o relato autobiográfico (pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito) e tempos gramaticais que

marcam a reflexão/comentário (presente, futuro); expressões com valor temporal e locativo, que marcam a

sequencialidade dos acontecimentos narrados e os localizam temporal e espacialmente; recursos

expressivos, com função estética (no caso autobiográfico e das memórias literárias).

Texto 1 - Onde Nasci - Agustina Bessa-Luís

Eu nasci em Vila-Meã, que em tempos foi sede de concelho e perdeu o título como os campeões o

perdem, menos os santos, que são campeões do amor de Cristo e têm patrono mais fiel do que os juízes deste

Imagem disponível em: http://comose.net/como-se-hace-una-autobiografia/

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mundo. Vila-Meã, portanto, que cai de surpresa da estrada de Amarante para os lugares airosos de Travanca

e de Real. Há outra Travanca, que foi onde viveu Pascoaes e que eu visitei há muitos anos a cavalo, por ca-

minhos serranos e serpentinos onde a poesia se adornava de giestas

brancas.

Em Vila-Meã, na rua principal e coração da vila, eu nasci num

domingo de chuva, às seis horas da tarde.

A casa tem fachada que parece anexo do mosteiro de Las Huelgas, de

tão ampla e solene. Ali vi o dia, que era, como disse, de chuva pegada.

Ainda hoje gosto da chuva e quanto mais diluviosa melhor.

Minha mãe, que não teve dores de parto, queixava-se do barulho que ia

nos armazéns, onde se acantonavam as vasilhas do vinho; pipas e almudes,

cintados de ferro fresco e brilhantíssimo. Não nasci de padecimentos, mas

de maneira sossegada. Ouvi cantar a chuva nas janelas, e um palhacinho

vestido de seda, caixa de música que movia um guizo alegre e melodioso,

deu-me as boas-vindas. Que melhor nascimento em terras de poetas antes de serem de nação afonsina? Não

guardo má memória do meu nascimento, como podeis ver. Mais tarde aprendi o que a terra tinha para me en-

sinar. O horário dos tramways, chamados os tramas do Tua, e cujo silvo nos fazia prever o tempo. No outro

lado da linha moravam os primos Bessa de Carvalho, se morar se chama a uma estadia em Setembro. Vinha-

se de Lisboa gozar a província como quem vai a lugares santos. Eu admiro quem tem tal persistência e que

da casa dos antepassados faz cruzeiro. Sou mais instável, quanto a moradas. Dizia-se que meu pai mudou

dezanove vezes de casa. E ao dizê-lo à senhora Corine, que vive em Israel e escreve sobre mulheres

escritoras, ela admirou-se, vendo no fado uma espécie de êxodo manso e sem tragédia e mais inexplicável

por isso.

Um pouco acima da casa do meu nascimento está e sempre esteve a casa da Botica. Tem um alpendre

sobre a estrada e lá viveram as melhores amigas que tive. Doces e companhias de humor partilhado em festas

de Verão. Ia-se a pé para toda a parte, até para a Lua, se ela estivesse a dez quilómetros de distância, 0 que

era razoável para um satélite de tamanho regular. Um pó branco forrava os caminhos, os lódãos deixavam

cair a sombra com Singular amor pelos viajantes e via-se o guarda-chuva preto dos feirantes aparecer na

curva e desaparecer nos pinhais, tragado pela escura e verde nave do arvoredo.

Vila-Meã mudou e está hoje uma cidade que só visto. O campo da feira parece um arraial de muitas e

boas casas, onde pode nascer, quando for caso disso, uma pessoa como eu e até melhor no fazer garatujas no

papel entre pensativos descansos. Desapareceram muitos dos que eu conhecia; da casa do Marmoiral, que era

casa erudita; da casa Sousa Soares, que era como para uma ópera à Britten. O primo Alberto, do ramo de

direito, o primo Álvaro, do ramo de engenharia, já morreram. Gente com um quê de britânico e leve, srwh, a

bem dizer. A mãe deles era tão bonita que iam vê-la embarcar para o Porto no comboio das cinco e meia. Eu

não a vi, mas diziam-me que sim.

Não sei se esta página vale como atestado de nascimento. Em Vila-Meã e não noutro lugar. Se eu

nascesse no Marão, era marana. Se eu fosse de Santarém, era escalabitana; mas sendo de Vila-Meã, não sei o

que sou. As pessoas antigas e de modesta ortografia chamavam-lhe Vila-Manhã. Aí eu já me entendia e

inscrevia-me como manhaneira na cédula pessoal. Qualquer coisa de rosados dedos, como a própria aurora.

Assim, não são rosados mas manchados de tinta. Como se tocasse as nuvens baixas que sobre o berço vieram

passar. E eu, contente, que o palhacinho de seda clara fazia ouvir o seu minuete em campainhas de prata.

In revista Anto, n.º 1,26.02.1997

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Texto 2 - Mia Couto Nasci na Beira em 1955, sou filho de uma família de emigrantes portugueses que chegaram a

Moçambique no princípio dessa década de 50. 0 meu pai era jornalista e era poeta. [...]

O meu pai foi para África porque acho que ele queria seguir a carreira

jornalística e não havia muita hipótese de emprego nessa altura em Portugal, penso

que foi por isso. [...] A minha mãe vem duma aldeia de Trás-os-Montes, não tem

história porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no parto duma

próxima irmã. Ela ficou órfã, abandonada, depois foi acolhida por um padre que se

apresentou como sendo tio delas. Então até o nome dela foi reescrito, foi inventado

para ela não ter uma ligação com a sua mãe - uma "senhora do pecado". Penso que

ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai passou... "distraído", ela

agarrou-o e foram para o Porto. Depois foram de Portugal para Moçambique e

nascemos nós, três irmãos, eu sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais velho, e o mais novo, que

tem uma diferença de sete anos de mim, chama-se Armando Jorge. [...]

Entretanto, [...] a Beira era uma cidade muito conflituosa porque a fronteira entre os brancos e os negros

era uma fronteira muito misturada, muito "atravessada". E eu recordo-me – toda a minha infância é uma

infância de viver no meio de negros, brincar, com eles [...].

Era um ambiente muito racista, ao mesmo tempo que sucedia este contacto, ou talvez até por causa disso

mesmo. Os brancos da Beira eram profundamente racistas. [...] Não podiam entrar negros nos autocarros, só

no banco de trás... Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os filhos dos brancos vinham com paus e

correntes bater nos negros...

Recordo-me duma história: eu tinha um senhor que me dava explicações de matemática, privadas, e ele

era pai dum coronel que tinha feito um massacre em que tinham sido mortos 125 ou 130 camponeses. E ele

tinha fotografias do massacre dentro de casa, como uma glória! Eu só andei uma semana naquelas

explicações. Nós chamávamos-lhe o "Bengalão", porque ele tinha uma bengala grande, e quando começava a

sessão de estudo ele mandava sair as mulheres - as meninas - e ficava só com rapazes, e dizia: "Cuidado,

porque o pretinho está-nos a ouvir, é preciso impedir isso. Na escola eu tenho que baixar as notas dos negros

para eles nunca ficarem à vossa frente, vocês têm que me ajudar nesta luta..." - e aquilo era uma coisa que

para mim soava horrível. [...]

A escola primária foi na Beira. Recordo-me de que na escola primária só havia dois negros. Era tudo

brancos, indianos, chineses e mestiços também.

[...] Depois no liceu também havia só dois ou três. Na escola técnica, que é, digamos, um curso prático,

havia mais negros, não muitos mas mais, muitos mulatos, também.

Praticamente eu vivi em dois mundos. O mundo da família, amigos da família, alguns filhos de vizinhos...

E depois o outro nível, que era o nível que eu mais procurava, que eram os negros, também da vizinhança, e

esses da escola. Isso tem a ver com a minha posição, porque eu era muito tímido e muito exc1uído, também.

[...]

Depois, em 83, publiquei o meu primeiro livro. Como uma espécie de contestação contra o domínio

absoluto da poesia militante, panfletária. [...]

Influências? Do Craveirinha, sim, um pouco do Craveirinha. Mas eu apaixonei-me mais pela linha dos

brasileiros, pelo João Cabral de Melo Neto, pelo Carlos Drummond de Andrade. [...] mas também tive a

influência de alguns poetas portugueses, como Sophia de Melo Breyner, o Eugénio de Andrade, o Fernando

Pessoa.

Depois, em 85, [...] pensei que havia de haver uma maneira de contar aquelas histórias, mantendo a graça

e a agilidade das pessoas que mas contavam e publiquei numa revista esses primeiros contos. As pessoas

encorajaram-me bastante, dizendo que eu afinal era mais um contista do que um poeta. E eu então continuei

assim a fazer algumas histórias. [...]

O que eu escrevo é moçambicano, digamos, inconscientemente, involuntariamente. Eu não faço nenhuma

coisa para que seja. É uma maneira, simplesmente, entre mil outras. [...]

Eu acho que não tem que haver um polícia de trânsito a regulamentar a língua, dizendo: "Por aqui não se

pode andar." Pode tudo!

MIA COUTO, in Patrick Chabal, Vozes Moçambicanas, Vega, 1.ª edi., 1994 (com supressões)

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Texto 3 – Vergílio Ferreira

Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-

o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de

mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses

depois o corredor da casa de minha avó amontoa-se de gente, na despedida de

minha mãe e da minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus

de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só

ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da

charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia

erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da

charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve

choro pela noite adiante - tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro

algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve -me ter vibrado pela vida

fora esse choro que não lembro. É dos livros, suponho. Depois a infância

recomeçou. Três irmãos, duas tias e avó maternas, depois a vida recomeçou. Mas toda essa infância me

parece atravessar apenas um longo Inverno. É um Inverno soturno de chuvas e de vento, de neves na

montanha, de histórias de terror, contadas à luz da candeia no negrume da cozinha, assombrada de

tempestade. Até que um dia, um tio de minha mãe, que era padre na aldeia, se pôs 0 problema de eu não ser

talvez estúpido. E imediatamente me empolgou para me consagrar ao Altíssimo. E para me ir desbravando a

alma, junta mente com a doutrina, atacou-me a memória com o latinório todo da missa. Aprendi-o sem

falhas, ia eu nos seis anos. E quando aos sete o fui ver esticado na cama, a face toda negra, e me obrigaram a

beijar-lhe a mão morta, já tinha o destino talhado para o Senhor. Minhas tias apoderaram-se logo de mim,

negligenciando um pouco os meus irmãos, e sufocaram-me de religião. Na instrução primária cumpri. Deus

mostrava à evidência que me chamava ao seu serviço. Era forte em contas, mais atrapalhado na História, de

qualquer modo, os desígnios de Deus eram evidentes. E assim, para se cumprir a sua vontade, parti. Ficava à

distância de um dia de comboio, o Seminário. Saio na estação ao anoitecer, há uma multidão de seminaristas

à minha volta, todos vestidos de preto.

Estou entre eles, não conheço ninguém. Avançamos pelo escuro estrada fora, no tropear confuso de uma

enorme massa negra. O Seminário espera-nos numa curva da estrada. É um casarão enorme, olho-o do fundo

do meu pavor. Há outono à minha volta, respiro-o agora em todo esse passado morto, nos castanheiros a

desfolharem-se na cerca, no espaço dos salões, nos longos corredores ermos, nos ângulos cruzados pelos

espetros dos prefeitos. Mas seis anos depois, levantado de heroísmo, saí. Fiz o liceu, entrei na Universidade.

Mas não o fiz assim em três palavras como o faço aqui. Meu irmão corpo. Como foi difícil acomodarmo-nos

um ao outro. À vida que me coube não a pude utilizar toda. Numa fração dela acumulei assim aquilo com

que se realiza o sonho, o trabalho, a alegria.

E eis que se me levantam os sete anos de Coimbra. Sombrios, longos, penosos. Mas o que acede desse

tempo à evocação tem apenas o halo se há muito o verso com obstinação, e as tertúlias, as rixas, o próprio

futebol, as próprias desgraças físicas - tudo me ressoa agora a toada de legenda. Da festa juvenil, como da

festa literária, ou só conhecia as margens no rumor que transbordava da alegria dos outros. Isso basta, porém,

a que a legenda se me levante e o seu eco me ondeie ao espaço da evocação. Assim Coimbra, só no ressoar

do seu nome tem já um timbre de guitarra. Música de miséria, não é nela que eu a ouço, mas no passado que

a transcende e é da memória inatingível, da memória absoluta. Coimbra da saudade difícil, Coimbra de

sempre e de nunca. Comigo a levei, longo tempo me acompanhou, presente, obsessiva. Mas havia tanta coisa

ainda à minha espera. Faro do ar marinho, da laguna das águas mortas, Bragança das invernias, Évora,

Lisboa. Professor sou-o por fatalidade. Mas alguma coisa se me impõe na avidez dos alunos que me escutam,

na necessidade de responder à sua descoberta do mundo - e assim me invento o professor que não sou, e eles

imaginam em verdade o que é em mim só ficção. Mas dos centros de irradiação da minha atividade, apenas

Évora transbordou de emoção para a lembrança. E como a Coimbra, é de novo a música, agora o coral dos

camponeses, que a levanta ao espaço da minha comoção. Ouço-o ainda agora, a esse coro de amargura,

raiado à infinitude da planície, cruzado às ruas ermas da cidade, expandido à eternidade do céu. Vejo-me

atravessando o claustro do liceu, os alunos já saíram da aula, eu suspendo-me ainda um pouco da janela para

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a planície. Évora do silêncio com sinos nas manhãs de domingo, estradas abandonadas à vertigem da

distância, ó cidade irreal, cidade única, memória perdida de mim. Sou do Alentejo como da terra onde nasci,

a mesma voz de uma e outra ressoa em mim a espaço, a angústia e solidão.

E a minha biografia deve ter findado aqui. Lisboa é um sítio onde se está, não um lugar onde se vive.

Mesmo que se lá viva há 18 anos como eu. Eu o disse, aliás, a alguém, na iminência de vir: quando for para

Lisboa, levo a província comigo e instalo-me nela. E assim se fez. Os livros que aqui escrevi são afinal da

província donde sou. Terrorismo do trânsito, das relações pessoais, da luta em febre pela glória por que se

luta ou do ódio surdo pela que calhou aos outros, terrorismo das distâncias, das relações humanas ao

telefone, das cartas que nos escrevemos para de uma rua a outra ao pé, da cultura tratada a uísque nos salões

do mundanismo, da individualidade perdida, da vida massificada, da morte massificada. Vejo-me numa

enfermaria do hospital, acordando estranhamente de não sei que tempo de inconsciência, com vários médicos

conversando entre si e sobre mim. Pergunto de que se trata, porque estou ali. “Foste atropelado” - diz-me o

meu filho, que é um dos médicos. Tenho fratura do crânio, várias contusões pelo corpo. Lisboa selvagem,

cidade bonita na claridade dos prédios, no rio das descobertas, no aéreo das colinas, meu veneno e minha

sedução. Fui atropelado. Mas é talvez justo que o fosse. Porque eu não sou daqui.

VERGÍLIO FERRElRA, 18/4/1977

Texto 3 - Camilo Castelo Branco

Ex.mo Sr. Cândido de Figueiredo

Envio a V. Ex.a as informações que me pede.

Nasci em 1842, na ilha de São Miguel. A minha família, que é ali antiga, tem os apelidos de Ponte,

Quental, Câmara e Sousa. Dela saiu, no século XVIl, o Padre Bartolomeu de Quental, varão douto e de

grandes virtudes, fundador, em Portugal, da Congregação do Oratório, e cujos sermões ainda hoje podem ser

lidos com alguma utilidade. Meu avô, André da Ponte de Quental, foi da roda de Bocage e, segundo o

testemunho deste, poeta nada vulgar; infelizmente, nada resta das suas composições porque as não escrevia.

A sua reputação morreu com ele.

Eu frequentei a Universidade fazendo formatura em Direito no ano de 1864. É o único diploma que

tenho; não pertenço a Sociedade, Academia ou Instituto algum.

Publiquei várias composições em prosa e verso (mas todas muito imperfeitas, como de rapaz de 17 e 18

anos), nas folhas Prelúdios Literários, Académico, e outras semelhantes, e alguma coisa melhor no Instituto

dos anos de 64 e 65. Em volume imprimi: em 63, uma coleção de sonetos, tirada em pequeno número de

exemplares e distribuída pelos amigos; em 64, um poema lírico, intitulada Beatrice; em 65, a Defesa da Carta

Encíclica de S. S. Pio IX, e as Odes Modernas. No fim desse ano, surgiu a chamada Questão Literária, e

publiquei por essa ocasião Bom Senso e Bom Gosto, carta ao Ex.mo Sr. A. F de Castilho, que teve várias

edições em Coimbra e Lisboa, e a Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, em Lisboa. Em 1868, saiu 0

folheto Portugal perante a Revolução de Espanha, onde defendi o iberismo, como forma de república federal.

Inaugurei em maio de 1871 as Conferências Democráticas, publicando uma delas em volume, com o

título de Causas da Decadência dos Povos Peninsulares; e, por ocasião de serem proibidas as ditas

conferências, publiquei Carta ao Ex.mo Sr. Marquês de Ávila e Bolama, que teve duas edições.

Durante os anos de 70, 71 e 72, fiz parte das redações de dois periódicos, a República e o Pensamento

Social, em companhia de Oliveira Martins no Pensamento Social, e em companhia de Oliveira Martins,

Batalha Reis, Eça de Queirós e António Enes, na República.

Publiquei mais, em 72, Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa e

Primaveras Românticas, ambas edições do Porto.

Durante esses anos, publiquei ainda ocasionalmente artigos sobre assuntos sociais ou literários, no Jornal

do Comércio e Diário Popular, de Lisboa, e Primeiro de Janeiro, do Porto.

Em 1875, dirigi com Batalha Reis a Revista Ocidental, onde por me achar já doente, só dirigi algumas

notícias bibliográficas. Nesse ano, saiu também a segunda edição das Odes Modernas, edição definitiva,

contendo muitas composições novas.

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De então para cá, por continuar sempre doente, pouquíssimo tenho publicado; uma biografia de Michelet

nos Dois Mundos (que se publicou em Paris) e ultimamente uma pequena coleção de sonetos.

A doença impede-me de dar seguimento a trabalhos mais vastos e completos, que havia projetado, e

provavelmente morrerei sem ter podido dizer mon dernier mot. Mas quem se gaba de o ter dito? Pouquís-

simos. O incompleto e o imperfeito são sorte comum. Vale mais não dar importância a estas (no fundo e

filosoficamente) ninharias e saber sofrer na paz do Senhor.

De V. S.ª

Cr.o mt.

o obrigd.

o

ANTERO DE QUENTAL

Carta datada de 3 de maio de 1881, escrita a pedido de Cândido de Figueiredo.

O RETRATO E AUTORRETRATO

O retrato apresenta as características físicas (estatura, pele, rosto, olhos, cintura, voz, gestos, fisionomia,

vestuário, etc.) e/ou psicológicas (caráter, temperamento, personalidade, comportamentos, hábitos, etc. )

e ainda outros Aspetos (estado civil, idade, profissão, marcas hereditárias, educação, meio onde se insere,

etc.) de uma personagem; o retrato segue, portanto, as características gerais da descrição.

O autorretrato é frequente entre pintores e escritores; o artista pretende, através deste género

apresentar-nos a visão que possui de si próprio.

Marcas linguísticas mais comuns: organização com base numa estrutura descritiva; enunciação na primeira

pessoa; predomínio de duas classes de palavras: o nome (que referencia os traços individualizantes) e o

adjetivo (que carateriza esses traços); recursos expressivos, com função estética (autorretrato literário).

Textos 1 e 2 Retrato próprio Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos, por taça escura, De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades, Eis Bocage em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento. MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE, Poesias de Bocage, Seara

Nova e Ed. Comunicação, 2.ª ed., 1981

Sou assim Transcendente (que transcende). (?) Sobre-humano (além do humano). (?) Oh feliz de quem entende, de quem busca e surpreende os pontos, a reta e o plano! Um pobre homenzinho ignaro1, com os pés colados ao mundo, olha o alto e olha o fundo, consegue ver tudo claro. Deus te abençoe, meu amigo. Deus te dê o que desejas. Que palpes, que oiças, que vejas o sonho que anda contigo. Todo o claro é escuro em mim. Não tenho asas nem rabo. Não sou Anjo nem Diabo. Sou assim. ANTÓNIO GEDEÃO, Obras Completas, relógio d`Água, 2.ª ed., 2007

1. Ignaro: ignorante

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Texto 3 - Retrato

O meu perfil é duro como o perfil do mundo.

Quem adivinha nele a graça da poesia?

Pedra talhada a pico e sofrimento,

É um muro hostil à volta do pomar.

Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto Faz um poema doce e desejado;

Mas quem passa na rua

Nem sequer sonha que do outro lado

A paisagem da vida continua.

MIGUEL TORGA, Antologia Poética

Texto 4 – “Mas nem todos os retratos me inquietavam”

Mas nem todos os retratos me inquietavam. O da minha avó Leonor, pintado a óleo, nunca me assustou.

Eu olhava-a e ficava em paz. Talvez por toda a gente dizer que tenho os olhos verdes como ela, talvez pelo

modo como o meu pai sempre a ela se referia. Íamos a Aveiro, ao jazigo da minha família, o meu pai benzia-

se e de repente eu via-o muito pequenino, rezando, desamparado, ao pé da mãe. Apesar de ela ter morrido

muito antes de eu nascer, quando olhava para o retrato eu via a minha própria expressão e sentia que muito

profundo me ligava àquela avó.

Já o retrato do meu avô Geraldo era para mim outra inquietação. Não sei se pela saudade que eu sentia

dele, se pela forma como tinha sido pintado: os olhos seguiam sempre quem o fitasse. Por vezes eu temia que

o meu avô saísse do retrato, me pegasse pela mão, como costumava fazer, e me levasse por aí fora, até ao

outro lado de tudo.

Enfim, era a casa. A casa com os seus retratos, seus ruídos, seus silêncios e seus mistérios. O soalho de

madeira que de noite rangia, os móveis muito antigos, de onde por vezes vinha um pequeno estalido. Quase

como um gemido. (...)

Por vezes o meu pai falava do palácio de seu avô, o Barão. Tinha grandes jardins, era o maior de Aveiro.

Ardeu numa noite e creio que esse fogo nunca se apagou completamente na memória do meu pai. Ele falava

do picadeiro, dos cavalos, dos criados de libré, das carruagens, dos barcos. Sem orientação nem azedume,

apenas, como já disse, com uma certa melancolia.

Mas para mim a casa era ali, quase junto ao rio que por vezes invadia a rua, entrava na adega e no jardim

e estava, por assim dizer, dentro de nós.

Naquele tempo ainda os moliceiros navegavam de Aveiro até ao cais da vila para receber a lenha que, no

inverno, vinha pelo rio abaixo. Era um espetáculo bonito de se ver: o rio ficava cheio de toros que batiam nos

pilares da ponte e se acumulavam em frente ao cais, onde iam sendo recolhidos.

As lampreias subiam em fins de janeiro, princípios de fevereiro. Eram pescadas à noite, ao candeio, junto

à represa da nora. As enguias pescavam-se no ribeirinho que atravessava o campo até desaguar no rio. O meu

pai costumava ir a elas com o Lince, que apanhava as minhocas na lama do ribeirinho e depois fazia o

sertelo. Levavam um guarda-chuva, abriam-no e sacudiam para dentro as enguias que vinham agarradas às

minhocas. Era engraçado. Mas eu gostava mais da pesca à linha. Nem sequer usava sediela, pescava com

linha de cozer e era capaz de apanhar centenas de ruivacos, bordalos e bogas, junto à ponte ou nas escadas do

cais.

Sim, naquele tempo ainda o rio estava vivo e fazia parte das nossas vidas.

De certo modo era ele que marcava o ritmo das estações. (...)

MANUEL ALEGRE. Alma

Imagem disponível em: http://www.salonhogar.net/Salones/Espan

ol/4-6/Redactar_Autobiografia.htm

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CARTA INTIMISTA

Carta é um escrito que se dirige a alguém, uma missiva, e tem por

objetivo estabelecer a correspondência ou a comunicação

entre pessoas ausentes. Com o aparecimento da Internet, a

carta vem sendo substituída pelo e-mail, que é a forma de

correio eletrónico mais difundida no mundo, mas ainda há

pessoas que pelo simples prazer de trocarem

correspondência física preferem utilizar o método da carta.

Podemos distinguir dois tipos de cartas: a carta pessoal

ou informal e a carta formal, esta última considerada um

texto do domínio transaccional. A carta formal, como já

referimos anteriormente, obedece a regras próprias. A carta informal é aquela que faz parte de um tipo

de correspondência particular, que não obedece a normas nem a uma estrutura específica. Também

chamada intimista, a carta informal costuma apresentar as seguintes marcas linguísticas:

Marcas linguísticas mais comuns: estrutura relativamente fixa; escrita fragmentária e continuamente

interrompida; linguagem informal, marcada pelo registo corrente e familiar; aborda temas variados (sociais,

políticos, estéticos, morais, etc.); marcação explícita da situação de interlocução: enunciação na primeira

pessoa (emissor), dirigida explicitamente a uma segunda pessoa (destinatário); tom intimista.

Texto 1

Meu bom amigo,

Espero que esta carta o encontre de excelente saúde. Bem sei que não é exatamente uma carta isto que lhe

escrevo agora, mas uma mensagem eletrónica. Já ninguém escreve cartas. Eu, sou-lhe

sincero, sinto saudades do tempo em que as pessoas se correspondiam, trocando cartas,

cartas autênticas, em bom papel, ao qual era possível acrescentar uma gota de perfume,

ou juntar flores secas, penas coloridas, uma madeixa de cabelo. Sofro uma nostalgia

miúda desse tempo em que o carteiro nos trazia as cartas a casa, e da alegria, do susto

também, com que as abríamos, com que as líamos, e do cuidado com que, ao

responder, escolhíamos as palavras, medindo-lhes o peso, avaliando a luz e o lume que

ia nelas, sentindo-lhes a fragrância, porque sabíamos que seriam depois sopesadas,

estudadas, cheiradas, saboreadas, e que algumas conseguiriam, eventualmente, escapar

à voragem do tempo, para serem relidas muitos anos depois. Não suporto a grosseira

informalidade das mensagens eletrónicas. Enfrento sempre com horror, um horror físico, um horror

metafísico e moral, aquele "Oi" que nos foi imposto a partir do Brasil como é possível levar a sério alguém

que se nos dirige assim? Os viajantes europeus que ao longo do século XIX atravessaram os sertões de

África referiam-se frequentemente, em tom de troça, aos intrincados cumprimentos trocados pelos guias na-

tivos quando, no decurso das suas longas jornadas, se cruzavam, nalguma sombra propícia, com parentes ou

conhecidos. O branco assistia, impaciente, até que, transcorridos muitos e demorados minutos de risos,

interjeições e bater de palmas, interrompia o guia:

"E então, o que disseram os homens - viram Livingstone?

"Não disseram nada, não, meu chefe", explicava o outro. "Só cumprimentaram." Eu espero de uma carta

um tempo idêntico. Façamos então de conta que isto é uma carta e que o carteiro a depositou agora mesmo

nas suas mãos.

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, O Vendedor de Passados

Texto 2

Lisboa 22 janeiro 1886

Imagem disponível em: http://hanadifalki.com/wistful-musings/stack-of-memories/

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Minha querida Emília

Ontem depois de passar o dia a pensar em si levei ainda a noite a sonhar consigo; assim o tempo todo lhe foi

dedicado. Se porém nos meus pensamentos, tu me apareceste sempre encantadora, minha querida - no sonho

apresentaste-te desagradável, seca, brusca, fria, cruel, a um ponto que me fez romper em lágrimas! Os meus prantos

todavia, e a vossa ferocidade, atribuo-os a um bacalhau de cebolada, comido num covil, a horas tardias, com amigos

mundanos... Foi a vossa carta que me acordou; e sei agora que é aos teus amáveis desejos que eu devo a tranquilidade

com que pude comer a minha perdiz na Pampilhosa, e o meu sono até Lisboa: e assim é bom, para que se estabeleça o

hábito de eu te dever tudo, desde as coisas mais pequenas até à maior que é a felicidade do coração.

Vejo também que a minha ausência foi para vós um libertamento e que vos preparais a gozá-lo lançando-vos em

dissipações infinitas - passeios, fotografias, visitas, agradabilidade geral! Quanto eu sou diferente!

Do tempo livre que concedi, não sei que hei de fazer. Não acho emprego suficientemente interessante a dar-lhe. E

tendo vindo para negócios, visitas e agradabilidade geral, como vós, - acho-me instintivamente empregando todas as

minhas horas a pensar em si, a olhar o seu retrato, a recordar Santo Ovídio.

Para isto não valia a pena fazer uma jornada do Norte a Sul!

Nunca, como agora, me sorriu tanto, e tanto me encantou a esperança de vivermos sós e um para o outro. [...] Tudo

que não seja viver escondido numa casinhola, pobre ou rica, com uma pessoa que se ama, e no adorável conforto

espiritual que dê esse amor – me parece agora vão, fictício, inútil, oco e ligeiramente imbecil. [...]

Como vão esses casos do enxoval? Os meus papéis, banhos, etc., estão prontos. Meu pai tinha-mos mandado de aqui

justamente no dia em que eu partia de aí do Porto. À propos1, sei enfim a numerosa quantidade dos meus anos. São

muitos! Não chegam aos quarenta e cinco; não chegam mesmo ainda aos quarenta; mas são muitos, muitos; um monte

deles. E tirados aqueles em que trabalhei, quase todos inúteis porque não te conhecia, ou conhecia-te apenas pela Sr.ª a

D. Emília.

Contando pois como vida útil só o tempo em que tu és para mim a Emília, eu tenho apenas cinco a seis meses. [...]

E por isso te digo agora que te adoro, e que quanto mais penso em ti mais te adoro, e que longe de ti não faço senão

adorar-te mais! Tudo que não és tu me parece secante; lugar onde tu não estejas, está vazio; palavras que não venham

de ti não me interessam.

Saudades a todos, carregando sobre a Benedita. Ela precisa sair dessa humidade. [...] Para ti, amor, o mais terno,

mais longo, mais profundo beijo que tu queiras receber. Veux-tu?2 Teu muito, muito, muito do coração.

José3

Eça de Queirós - Correspondência, leitura, coordenação, prefácio e notas de Guilherme de Castilho, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983 (com supressões) [1. À propos (francês): A propósito. 2. Veux-tu? (francês): Queres? 3. Primeiro nome de Eça de Queirós (José Maria Eça de Queirós).

Texto 3 - Todas as cartas de amor são ridículas Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas.)

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa

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EMAIL

O email ou correio eletrónico: é o sucedâneo da carta usado em ambiente eletrónico, permite comunicar

com rapidez e praticidade.

BLOG

Os blogs são diários virtuais, sucedâneos dos diários, onde alguém narra factos ou sentimentos vividos.

Têm estrutura leve, são em geral textos breves, descritivos e opinativos.

TEXTOS LITERÁRIOS

Os textos literários, consoante a forma como representam a realidade, dividem-se em três

grandes grupos: modo narrativo, modo dramático e modo lírico. Os modos, por seu lado

subdividem-se em diferentes géneros.

Desde a Antiguidade que os géneros literários se encontram divididos em lírico, narrativo ou épico e

dramático. Assim, no século IV, Diómedes propõe as seguintes distinções: ao lírico pertencem as obras em

que somente fala o autor; ao dramático, as obras em que só falam as personagens; e ao épico, as obras em

que têm igualmente direito à palavra o autor e as personagens.

A moderna Teoria Literária chama modo às categorias universais (modo narrativo, modo dramático e

modo lírico) cujas constantes são historicamente atualizadas nos vários géneros (romance, conto, tragédia,

comédia. ..)

Desta forma, qualquer obra literária pode ser enquadrada num dos três modos literários (lírico,

narrativo e dramático). Em cada um destes distinguem-se vários géneros. Por exemplo, no modo narrativo

podemos incluir o conto, a epopeia, o romance, a novela, o ensaio, a crónica, a fábula.

TEXTOS LITERÁRIOS DO MODO NARRRATIVO

Modo narrativo: Consideram-se, em geral, narrativos os textos em que há predominância de sequências

textuais narrativas (baseadas na narração ou relato de eventos em torno de uma peripécia e com vista a

um desenlace) e ocorrência de formas linguísticas próprias do modo narrativo como por exemplo o uso do

pretérito perfeito simples e de localizadores com valor temporal. Em geral, a enunciação faz-se na terceira

pessoa (por vezes na primeira, quando o narrador assume o papel de personagem). Recorre

frequentemente à ficção, apesar de, amiúdes vezes, se socorrer de acontecimentos históricos, possui três

elementos estruturais: personagem, espaço e acontecimento (ação num tempo e num espaço). Dito de

outro modo: texto narrativo é aquele em que o narrador relata um evento ou uma cadeia de eventos,

seguindo uma estrutura narrativa, em que intervêm personagens, que se envolvem numa determinada

ação, num determinado contexto espaciotemporal. Dito ainda de outro modo: texto narrativo é aquele que

relata acontecimentos que remetem para o conhecimento do Homem e das suas realizações no Mundo.

O modo narrativo - caracteriza-se por relatar um acontecimento, imaginário ou não, situado num tempo

e num espaço e envolvendo uma ou mais personagens. O sujeito responsável pelo processo narrativo é o

narrador. Predominam a narração e a descrição; está presente o diálogo e, muitas vezes, o monólogo.

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Géneros literários do modo narrativo:

Conto – narrativa breve e fictícia em que a ação geralmente se concentra sobre um único tema ou

episódio. Os contos podem ter como destinatários crianças, jovens ou adultos. Estes últimos,

caracterizam-se por apresentarem o essencial e pela crítica social. O conto distingue-se de outros

géneros literários de caráter narrativo pelos seguintes aspetos:

- relato pouco extenso se comparado com o romance; as personagens são pouco numerosas e pouco

complexas;

- a ação é simples e linear e o esquema temporal restrito. Podemos classificar os contos de acordo

com a seguinte tipologia: conto de ação;

- conto de personagem; conto decenário ou atmosfera; conto de ideia.

Novela – composição literária do género do romance, mas mais curta e simples do que este, em que se

dá preferência à narração, ao diálogo e ao resumo, evitando-se as longas descrições.

Romance – género narrativo ficcional em prosa, mais longo que a novela e o conto, em que as

personagens são apresentadas com maior densidade psicológica e, em que o tempo e o espaço são

categorias mais elaboradas. Remetem para o conhecimento do ser humano e da sociedade.

Epopeia – poema narrativo e de grande dimensão em que se celebra geralmente uma ação grandiosa e

heroica protagonizada por um herói com qualidades excecionais.

Lenda – narrativa escrita ou tradição de acontecimentos duvidosos, fantásticos ou inverosímeis.

Fábula – narrativa curta e imaginária, com um objetivo pedagógico e moral, geralmente protagonizada

por animais ou seres inanimadas.

Parábola – narração alegórica que encerra algum preceito moral ou verdade importante.

Para não alongar este documento, vamos centrar a nossa atenção em alguns géneros textuais

do modo narrativo.

CONTO

O conto é uma narrativa breve e fictícia em que a ação geralmente se concentra sobre um único tema

ou episódio. Os contos podem ter como destinatários crianças, jovens ou adultos. Estes últimos,

caracterizam-se por apresentarem o essencial e pela crítica social.

O conto apresenta o seguinte esquema: unidade dramática; unidade de tempo; número reduzido d

personagens; diálogo dominante; descrição tende a anular-se; narração tende a anular-se; dissertação

praticamente ausente.

O conto distingue-se de outros géneros literários de caráter narrativo pelos seguintes aspetos:

- relato pouco extenso se comparado com o romance.

- as personagens são pouco numerosas e pouco complexas.

- a ação é simples e linear e o esquema temporal restrito.

Podemos classificar os contos de acordo com a seguinte tipologia:

conto de ação

conto de personagem

conto decenário ou atmosfera

conto de ideia

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De seguida apresentam-se, a título de exemplo, alguns contos de autores de língua portuguesa. Texto 1 – Quarto Anjo

Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais

um aparato de fé do que de voo.

"Os pássaros", assegurou-lhe, "voam sobretudo por convicção".

O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os. Ao fim de

cinco meses tinha ganho uma certa prática, e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado

seguido de um, é certo que não muito feliz, duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também

não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava.

"Agora tira-as", disse-lhe então Deus, que o observara em silêncio, a uma distância discreta, durante todos

aqueles dias:

"Tira essas asas e voa."

O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou:

"E eu lá sou doido, Ó Deus?! Tiro coisa nenhuma!..."

Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o

forte sotaque carioca; a língua e o sotaque, claro, aprendera-os com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe

faltava o essencial, a fé, além de uma educação um pouco mais esmerada, pois, bem vistas as coisas, tratava-

se de um anjo, ainda que numa fase de iniciação - e num rápido gesto de enfado, descriou-o.

O segundo anjo era, sem dúvida, um sujeito mais cordato e delicado. Muito loiro e frágil. Muito anjo.

Tinha uma cabeleira comprida, que gostava de trazer sempre limpa e entrançada, num gracioso rabo de

cavalo. Aprendeu a voar mais depressa do que primeiro, com uma técnica original, que deixava os pássaros

envergonhados. Porém, quando Deus lhe pediu que tirasse as asas e se lançasse assim, inteiramente nu, de

um penhasco altíssimo, também ele recusou.

"Saiba o Senhor que isso eu não faço. Com o seu perdão, meu Deus, faço qualquer coisa menos isso."

Disse aquilo com voz trémula e humilde, sem sombra de arrogância, de forma que o Criador se apiedou

dele e o deixou ir. O anjo pintou as asas de cor-de-rosa e juntou-se a um bando de flamingos. Dizem alguns

gnósticos que ainda hoje é possível ver, em certos crepúsculos inflamados, nalgum palude perdido de África,

um anjo voando, com singular elegância, entre uma nuvem de flamingos. Eu nunca o vi, mas pode ser.

O terceiro anjo fê-lo Deus mais prático e destemido. Usava um bigode curvo e era respeitoso e de poucas

palavras. Voava sem esforço, mas também sem agrado. Pousava nos ramos das mangueiras, ou de outras

árvores igualmente altas e frondosas, e era capaz de ficar por ali, sentado, tardes inteiras, a cofiar o forte

bigode, a comer mangas e a fruir a sombra fresca e o canto das aves.

Quando Deus lhe pediu que subisse ao penhasco e que tirasse as asas e saltasse, não o contestou. Não

disse nada. Voou até ao penhasco, tirou as asas e saltou. Ficou claro, naquele trágico instante, que o que lhe

sobrava em disciplina faltava-lhe em fé.

Ou melhor, como Deus lhe tentou explicar enquanto ele caía, vertiginosamente, de encontro ao gume

feroz das rochas, lá muito em baixo, o problema é que colocara toda a sua fé no instrumento ao invés de a

colocar no objetivo. O impacto foi devastador.

O Senhor Deus ficou desgostoso com o novo desaire. Levou muito tempo a recuperar-se. Por fim tentou

de novo. Saiu-lhe, à quarta tentativa, um anjo alegre, até um pouco simplório, que gostava mais de cantar e

de dançar, artes, aliás, que ele próprio havia inventado, do que de voar. Para voar não parecia possuir grande

talento. Todavia, quando Deus lhe sugeriu que tirasse as asas e tentasse voar sem elas, usando para isso

apenas o esforço da fé, ele apenas perguntou, atordoado:

"E é possível?"

Depois largou as asas, espreitou o fundo abismo, fechou os olhos, e imaginou que por dentro do seu corpo

outras asas se desenrolavam e batiam. Foi com essas, um tanto torto, um outro tanto tonto, que se ergueu no

céu.

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Deus alegrou-se. Depois dele fez muitos outros anjos, legiões e legiões, mas poucos, muito poucos, foram

capazes de imitar o número quatro. Diz-se que esse anjo sem asas se passeia entre os homens, como uma

espécie de polícia à paisana. Um observador num campo de batalha. Uma testemunha incógnita.

Provavelmente o anjo número dois é mais feliz.

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, in Pública, 29-05-2005

Texto 2 - Novos Tempos

Era preciso preparar o espírito da dona

Aurora, para que o jantar não fosse um desastre. A velha matriarca ainda comandava a mesa familiar.

Uma palavra errada dela poderia pôr tudo a perder. E daquele jantar dependia a fortuna da família.

Sueli, a filha mais velha, foi encarregada de preparar o espírito da dona Aurora.

- Mamãe, lembra da Jurema? A filha da Laurentina?

- Claro que lembro. Foi criada aqui em casa.

- Ela vem nos visitar, hoje.

- Manda ela vir-me pedir a bênção.

- Ela vem jantar aqui, mamãe.

- Muito bem. Comida é o que nunca faltou nesta casa.

- Ela e o marido. Lembra do Odilon? A senhora implicava com ele. Chamava de Escurinho.

- Não era por causa da cor. Não tenho nada contra preto. Mas sempre achei que a Jurema podia ter

conseguido coisa melhor. Não era feia, aprendeu a cozinhar com a mãe, eu mesmo ensinei a bordar... Podia

ter conseguido coisa melhor. Um comerciante, um escriturário... Mas não. Quis o Odilon. Um operário. E

ainda por cima, escurinho.

- Ele hoje está num ministério, mamãe.

- Ministério? Da igreja?

- Do governo. Tem um cargo bem próximo do ministro. Coisa importante. A senhora não se lembra como

ele simpatizava com o PTl?

- Eu sabia que tinha outra coisa nele com que eu implicava...

- Fez carreira na política e hoje está no governo. Eles estão na cidade e nós convida mos os dois pra

jantar, aqui, hoje.

- Aqui? Hoje?

- É. Ele pode nos ajudar, em Brasília. Deve se lembrar como nós ajudamos a Jurema no casamento.

- Ajudamos mesmo. Eu mesmo dei uma nota de cem. Eram cruzeiros ou reais? Não me lembro mais.

- O importante, mamãe, é como nós vamos nos comportar. Sei o que a senhora pensa dos novos tempos,

mas temos de aceitar que as coisas mudaram. Certas coisas perderam o sentido e nós precisamos nos adaptar.

Mesmo porque é do nosso interesse. Podemos contar com a sua compreensão?

- Minha filha, eu nunca tive nenhum tipo de preconceito! Esta casa não foi sempre aberta para todos?

Alguma vez nós negamos comida para alguém? A própria família da Laurentina não vivia comendo aqui?

Volta e meia apareciam uns sobrinhos que ninguém conhecia e mesmo assim sempre ganhavam comida. Eu

sei que os tempos mudaram. Só não sei se...

- O que, mamãe?

- O Odilon não vai se importar de comer na cozinha. 1. PT: Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Nota: Este texto está escrito na variedade brasileira do português.

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO, in "Atual", Expresso, 11 de outubro de 2003

Texto 2 - Um pilão no 9º andar

Dá lincensss.

A voz empurrava o espaço para dentro, criava assunto. O que se passa, ó vizinho? – perguntou o do nono.

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Se passa o problema de morar. Quando se mora, tudo fica perto.

Um prédio é uma casa só, inteira de única. Todos, no prédio, são noivos do mesmo espaço.

Matrimoniados pelo mesmo habitar. Acredite, a vizinhança é um casamento. Veja lá: os quartos adormecem

encostados uns aos outros. Os filhos dos vizinhos gritamo-lhes ralhando com os nossos. Nos cheiros

provamos a comida alheia antes de ela ser servida lá, na respectiva casa. Somos os dois lados da parede, um

e outro, não acha?

E porquê esta toda introdução, meu amigo?

É que é por causa disso, por causa dessa introdução, que eu estou aqui, vizinho. Então veio a minha casa

por causa de uma introdução?

Calma, eu explico: esse seu pilão, no 9º andar, barulha até lá no chão. É um barulho: até doenta-nos os

ouvidos. Tunc, tunc, tunc... É de mais, parece que estão a pilar a cabeça da gente. A nossa paciência, caro

vizinho, está nos últimos grãos.

Desculpa-me, mas eu tenho que lhe fazer esta autocrítica.

O homem do 9º andar aceitou a queixa, razão dos incómodos sonoros. E explicou, apontando a menina: a

pilosa é a minha sobrinha. Mas tem que ser, desculpe. A farinha toda moemos aqui em casa. Não pilamos por

gosto.

Mas o queixoso não desarma e prossegue os seus argumentos. O vizinho, diz ele, tem o chão lá no pátio

que é tanto e funciona tão bem, sem avaria. Aí no chão é o lugar próprio de pilagens. A sua sobrinha mais o

pilão devem descer.

Sim, o outro, mas o vizinho inferior tem que pensar nas inconveniências sucedíveis. Outro dia, veja lá, o

elevador avariou-se. A sobrinha, coitada, desconseguiu de carregar o pilão. Não podia subir as escadas, ou

acha? Claro que não, o pilão é um peso vertical. E ela deixou lá o pilão, deixou-lhe no tal em baixo que você

está propor. Que aconteceu ainda por cima do resultado? Não sabe, nem chegou de ouvir? Pois, vizinho:

roubaram o pilão. Roubaram todo de uma vez. E hoje o preço do pilão está mais que caríssimo. É um preço,

vizinho. Está certo, compreendeu o queixoso. Mas diga-me uma coisa: agora o elevador já funciona mais

outra vez, já repararam. O vizinho ou a sobrinha podem viajar de pilão, do rés ao nono.

Com certeza, o outro respondeu, mas se estando no piso terrestre o levador se lesiona maistravez? Ou

aqui há horário de avarias? Isso só nos países avançados, meu amigo. E depois, lá se desaparece outro pilão.

Não, isso não, se faça-me um favor. Lhe encomendo uma pergunta, com a sua licença: o guarda-chuva nos

guarda a nós ou à chuva?

O reclamante não entendeu a questão. Respondeu, expondo uma ideia: e se você guardasse o pilão na

minha garagem? Lá tenho a minha carrinha nova mas ela não ocupa tudo, fica um espaçozinho, dá muito

bem para o pilão.

E assim acordaram os dois, o vizinho e o outro. A sobrinha ficou com uma cópia da chave do cadeado e lá

pilava no pátio, tunc, tunc, tunc, mas agora só a terra sofria e ela, a terra, nem queixava. A terra tem tanta

paciência com os homens, nem uma mãe! Mas eis um dia: volta o reclamante, cara de azedos. O outro, o do

nono, sem compreender: o que se passa, meu amigo? É o barulho? Mas já terminou, o pilão trabalha lá em

baixo, conforme do nosso acordo audiplomático. O pilão não é, vizinho, mas agora tenho a minha carrinha

nova toda riscada, essa sua sobrinha não tem nenhum cuidado, está tudo raspado, se fosse a um bate-chapa

não vinha assim tão raspadinha. Se apanho essa sua sobrinha risco-lhe o focinho.

Calma, vizinhinho. Calma que isso se resolve, há sempre um meio. Somos parentes bastante geográficos,

não somos? Vamos analisar a situação: o pilão, por acaso ninguém o roubou ultimamente, estou bastante

satisfeito com o comportamento desse pilão. Agora, sobre a sua carrinha, vamos lá ver. Não será o senhor,

caro vizinho, pode deixar a carrinha cá fora e a garagem fica só exclusivamente com serviço de guardar o

pilão. Que tal, vizinho? Não me responde?

MIA COUTO – Cronicando, Editorial Caminho

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Texto 3 - Civilização

(…)

Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado — ou, antes, aquele que se

munira da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente

chamado o Jasmineiro) que o seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII,

assoalhada a pinho e branqueada a cal — existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os

homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra

das Águas Fáceis, o doce país ariano. A biblioteca — que em duas salas, amplas e claras como praças,

forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Carmânia até ao teto, donde, alternadamente, através de

cristais, o sol e a eletricidade vertiam uma luz estudiosa e calma — continha vinte e cinco mil volumes,

instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa

prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliavelmente se

contradizem) havia mil e oitocentos e dezassete!

Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao

longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu

amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência — e mesmo da estupidez. E o único inconveniente

deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitavelmente lá adormecia, por

causa das poltronas, que, providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das

notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo

encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.

Ao fundo, e como um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de

couro, com brasões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre

os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho

muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e subtis instrumentos

para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter

lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de

um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, brilhavam e feriam: e nas largas

folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos réis, eu por vezes surpreendi gotas

de sangue do meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto

não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias,

e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o

seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um

portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos,

facilitadores do pensamento — a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o

telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons

curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim, dlim! Craque, craque,

craque! Trrre, Trrre, Trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhados em forças

universais transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e

disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda,

no momento de exclamar com respeito, com autoridade:

— Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século? Pois, numa doce noite de S.

João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis

Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a

conhecida voz rotunda e oracular:

— Quem não admirará os progressos deste século? Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou

alguma mola vital — porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação,

interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:

— Quem não admirará os progressos deste século? Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos,

torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa:

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— Quem não admirará os progressos deste século? Enervados, retirámos para uma sala distante,

pesadamente revestida de panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás,

implacável e rotunda:

— Quem não admirará os progressos deste século? Furiosos, enterrámos uma almofada na boca do

fonógrafo, atirámos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! Sob a

mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular. — Quem não admirará os progressos

deste século? As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales sobre a cabeça.

Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada e gosmosa:

— Quem não admirará os progressos deste século? Fugimos espavoridos para a rua. Era de madrugada.

Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçados de flores: Todas as ervas

são bentas Em manhã de S. João... Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor.

Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio

de despertar alguém. Horror! Logo da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: «admirará...

progressos... século!... » Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.

(…)

EÇA DE QUEIRÓS, Civilização (Excerto)

Poderá aceder à versão integral do conto Civilização de Eça de Queirós em: http://cdn.luso-

livros.net/wp-content/uploads/2013/06/Contos.pdf, onde estão disponíveis outros contos do mesmo

autor. Estes contos ao abrigo do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, artg. 31.º), já se

encontram sob domínio público (70 anos após a morte do autor).

NOVELA

A novela é uma composição literária do género do romance, mas mais curta e simples do que este, em

que se dá preferência à narração, ao diálogo e ao resumo, evitando-se as longas descrições.

Texto 1 – A Bruxa de Monte Córdova

(…)

Em Julho deste ano, o barão de Burgães saiu do porto a passar o estio sob os arvoredos da sua quinta.

Além da sua família, acompanhavam-no um casal de velhos: a senhora maria que o tinha criado, e o

senhor bento gomes, marido da senhora maria, camarada do seu pai, soldado

dos voluntários de d. Maria h, o qual andava morrendo de fome, porque o seu

lugar da alfândega lhe tinha sido tirado para galardoar um caceteiro eleitoral.

O barão recolheu-os e denominou-os sua família. À casa de Burgães

concorriam os nobres e os ricos daqueles arredores. A baronesa era mais

procurada dos pobres, e pagava-lhes a visita com as mãos cheias de

consolações, e o coração de alentos. O velho soldado entrava à sala dos

hóspedes mais cerimoniosos, e, à meia volta, lá vinha historiando as batalhas da

liberdade, desde a primeira dos Açores até à última da Asseiceira. De permeio,

enternecia-se até às lágrimas, quando comemorava as proezas do seu tenente.

Em uma tarde formosa de agosto, umas damas portuenses, hóspedes da

baronesa, perguntaram a um cavalheiro de santo tirso onde é que estava por

aqueles sítios uma ermitoa que o povo chamava a "bruxa do Monte Córdova".

— Oh, minhas senhoras! — respondeu o cavalheiro —, não pensei que chegava ao porto a fama da bruxa

do monte Córdova!

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— Pois não chega?! — volveu uma dama. — olhe que a mamã, quando o papá esteve a morrer, veio aqui

onde está a tal mulher, de propósito, a pedir-lhe que rezasse pela saúde do papá, e...

— E o caso é que o seu papá melhorou, minha senhora — interrompeu o risonho sujeito, que se prezava

de ter dois dedos de filosofia, segundo a quantidade em que ela está distribuída em santo tirso.

— Melhorou, sim, senhor. E quer saber mais? A mamã mandou à mulherzinha não sei quantos cruzados

novos, e ela pediu ao criado que lhe desse meio tostão para azeite da lâmpada da capelinha e não quis mais

nada.

— Lá pela independência dela fico eu — disse o cavalheiro. — sei que a bruxa não aceita, senão algum

bocado de pão e couves para o caldo; e acontece, se tem pão de mais, repartir com os pobres que lá vão

consultá-la para doenças, ou pedir-lhe orações; creio isto porque o sei de bons informadores; mas, se a vossa

excelência me permite, não acreditarei que ela curou seu papá.

— E porque não? — redarguiu a senhora. — então as orações das pessoas virtuosas não valem nada

diante de deus?!

— Como quer que seja — interveio o barão —, essa mulher é curiosidade rara nas da sua profissão. Pelo

comum, as benzedeiras, bruxas e mulheres de virtude exploram as vítimas quanto podem.

— Quem me dera vê-la! — ocorreu a baronesa. — isso é facílimo! — disse o cavalheiro de santo tirso.

Três quartos de légua de mau caminho pela serra a cima. Tem vossa excelência coragem de assentar-se num

jumentinho?

— Ai! — vamos — , conclamaram as damas portuenses. — ó senhora baronesa, vamos, sim? Quem nos

dera ver a criatura que pediu a deus pela vida do nosso papá! ...

— Que dizes, jacinto? — perguntou a baronesa.

— Vamos, filha. Prepare-se a cavalgada. Vai o rancho dos pequenos. Vamos todos. Vai a minha ama e o

gomes. Às cinco horas da manhã tudo pronto. Olha se dispões o merendeiro, Amália. Lembra-te que o nosso

apetite lá na serra não se há de regular pela abstinência da bruxa.

Saíram criados do barão a prevenir as carruagens. As damas com a baronesa foram à capoeira escolher as

vitimas. Deitaram-se cedo para madrugar; e à primeira luz da manhã, desfilava a caravana no seguimento do

cavalheiro de santo tirso, que ensinava o caminho.

Quando assomaram ao teso da primeira cortina da serra, onde assentava a cabana, viram algumas

mulheres maltrapidas à porta da capelinha, com crianças no colo, esperando que a penitente saísse da sua

oração extática para lhes benzer os filhos.

O rancho de Burgães ajoelhou diante da ermida, excetuados os dois filhos mais novos que entraram por

ali dentro, ladearam a velha muito fitos nela, e fugiram às corrimaças, exclamando:

— Oh!, que velhorra!

O pai chamou-os para si e estorcegou-lhes rijamente as orelhas.

A mãe fez um gesto de magoada e disse aos filhos:

— Sentem-se ali, meninos.

— Não se sentem — emendou o barão — , ajoelhem ao pé dos seus irmãos.

Angélica parecia não ter dado conta da invasão e da risada dos meninos.

Deteve-se orando por algum tempo; levantou-se e veio de passo muito vagaroso, e encostada a um

bordãozinho, à porta da capela.

(…)

CAMILO CASTELO BRANCO, A Bruxa de Monte Córdova (excerto)

Poderá aceder à leitura integral da novela “A Bruxa de Monte Córdova” em: http://cdn.luso-livros.net/wp-content/uploads/2013/04/A-Bruxa-do-Monte-C%C3%B3rdova.pdf.

Estão disponível na Internet mais novelas de Camilo Castelo Branco e também de outros autores como, por exemplo, Eça de Queirós, em http://www.luso-livros.net/

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Texto 2 – O Mandarim (…)

A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre

fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades

— porcelanas da Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques

maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblíquo, túnica azul, e papoulas de papel

nas tranças, desdobra algum raro brocado diante de um grosso

chinês que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na

pança: ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um

pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume

adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece...

Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa

do imperador! Jovens nobres vêm descendo do terraço de um

templo onde se estiveram adestrando à frecha. Sá-Tó disse-me os

seus nomes: eram da guarda seleta, que nas cerimónias escolta o

guarda-sol de seda amarela, com o dragão bordado, que é o

emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram

profundamente um velho que ia passando, de barbas venerandas,

com o casabeque amarelo que é o privilégio do ancião; vinha

falando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam

cotovias domesticadas... Era um príncipe do Império.

Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada

instante, a uma porta de jardim, dois mandarins pançudos que

para entrar se trocavam indefinidamente salmalés, cortesias,

recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um cerimonial dogmático — que lhes fazia oscilar de um modo

picaresco, sobre as costas, as longas penas de pavão. Depois, se erguia os olhos para o ar, lá via sempre

pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de dragões, ora de cetáceos, ora de aves fabulosas —

enchendo o espaço de uma inverosímil legião de monstros transparentes e ondeantes...

— Sá-Tó, basta de Cidade Tártara! Vamos ver os bairros chineses...

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguesia,

o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da

imundície de gerações recalcada desde séculos, ainda aqui e além jaz alguma das lajes de mármore cor-de-

rosa que outrora o calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.

(…)

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel ou Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a

atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres

monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão do seu recinto

aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de

mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte são pagodes

heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens

dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de

lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspeto heroico e fabuloso...

(…)

EÇA DE QUEIRÓS, O Mandarim (excerto)

Poderá ler na íntegra a novela de Eça de Queirós “O Mandarim” em: http://cdn.luso-livros.net/wp-

content/uploads/2013/12/O-Mandarim.pdf

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ROMANCE

O romance é género narrativo ficcional em prosa, mais longo que a novela e o conto, em que as

personagens são apresentadas com maior densidade psicológica e, em que o tempo e o espaço são

categorias mais elaboradas. Remetem para o conhecimento do ser humano e da sociedade. Esquema do romance: pluralidade e simultaneidade dramática; número ilimitado de personagens;

liberdade total de tempo e de espaço; diálogo, narração e dissertação presentes.

Romances há muitos e para todos os gostos, de autores portugueses e estrangeiros, dos clássicos aos

contemporâneos. Optou-se por não apresentar aqui qualquer excerto, mas antes por deixar apenas uma

listagem, com sugestões de leitura, que sendo estas poderiam ser naturalmente outras, tantas são as

possibilidades de escolha que se apresentam aos nossos olhos.

Sugestões (e nada mais do que isso) de leitura

. Sul, Miguel Sousa Tavares, Oficina do livro

. Equador, Miguel Sousa Tavares, Dom Quixote

. A Rapariga das Laranjas, Jostein Gaarder, Presença

. O Mundo de Sofia, J. Gaarder, Presença

. Eragon, Paolini, Gailivro

. A Cidade dos Deuses Selvagens, Isabel Allende, Difel

. Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago, Caminho

. Pequenas Memórias, José Saramago, Caminho

. O Conto da Ilha Desconhecida, José Saramago, Caminho

. Verónica Decide Morrer, Paulo Coelho, Pergaminho

. Onze Minutos, Paulo Coelho, Pergaminho

. O Alquimista, Paulo Coelho, Pergaminho

. A Fórmula de Deus, José Rodrigues dos Santos, Gradiva

. A Filha do Capitão, José Rodrigues dos Santos, Gradiva

. Um Lugar Mágico ou Como Salvar a Natureza, Susanna Tamaro, Presença

. Vai Aonde Te Leva o Coração, Susanna Tamaro, Presença

. O Sonhador, lan McEwan, Gradiva

. A Rosa Brava, José Manuel Saraiva, Oficina do livro

. Tão Longe de Sítio Nenhum, Úrsula K. le Guin, Fragmentos

. O Código Da Vinci, Dan Brown, Bertrand

. Fortaleza Digital, Dan Brown, Bertrand

. Anjos e Demónios, Dan Brown, Bertrand

. A Conspiração, Dan Brown, Bertrand

. Os Capitães de Areia, Jorge Amado, Dom Quixote

. Alma, Manuel Alegre, Dom Quixote

. O Papalagui, discursos de Tuiavii, chefe da Tribo de Tiavéa nos mares do sul, Antígona

. As Confissões de Lúcio, Mário de Sá-Carneiro, Assírio e Alvim

. O Perfume, Patrick Süskind, Presença

. Queimada Viva, Saoud, ASA

. Crónica de Uma Morte Anunciada, Gabriel Garcia Márquez, D. Quixote

. Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco, Europa-América

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. Eusébio Macário e A Corja, Camilo Castelo Branco, Caixotim

. A Metamorfose, Franz Kafka, Europa-América

. Os Filhos de Húrin, Jr Tolkien, Europa-América

. O Velho que Lia Romances de Amor, luís Sepúlveda, ASA

. Contos de Eva Luna, lsabel Allende, Difel

DESCRIÇÃO

A descrição é um fragmento discursivo portador de informação sobre as personagens, os objetos, os

lugares, o tempo. Facilmente destacável do resto do texto, constitui um momento de pausa na progressão dos

acontecimentos. As sequências descritivas são predominantemente construídas com o verbo ser e outros

verbos caracterizadores, com os tempos verbais dominantes no presente e no pretérito imperfeito do

indicativo, e com o emprego frequente de adjetivos qualificativos e de advérbios com valor locativo.

Texto 1 – Os passos

Nessa altura, a casa de Valmares já havia perdido a maior parte dos seus habitantes, e os compartimentos

onde tinham vivido os descendentes de Francisco Dias encontravam-se fechados, ao longo do corredor por

onde antigamente todos se cruzavam. Então era muito difícil distingui-los pelas passadas. Vários filhos e

vários netos, três noras e um genro, caminhando sem cessar desde madrugada, forneciam uma multiplicidade

de ruídos indestrinçáveis para quem fosse menor e ficasse à escuta, horas a fio, dentro dum quarto. Porém,

naquele inverno, no início dos anos sessenta, os passos dos que restavam eram tão identificadores quanto as

suas caras ou os seus retratos.

Havia os passos soltos e leves dos filhos de Maria Ema, ainda crianças, ainda mal pousados, lembrando

fugas de roedores, pela forma como percorriam o corredor em bando rápido. Em contraste, havia os passos

pesados de Francisco Dias produzidos por botas onde luziam duas filas de cardas que emprestavam ao som

um ruído de ferro, seguindo-o por toda a parte como se transportasse uma coroa nos pés. E havia os de

Custódio, mais leves do que os passos do pai, mas ainda assim, o protetor de metal existia, picando aqui e ali

o ladrilho e o cimento, com seu andar assimétrico de coxo. Por razões acrescidas, também esses, os passos

do filho mais velho de Francisco Dias, se tornavam inconfundíveis. O som surgia sincopado, do lado do

quarto poente, onde dormia com Maria Ema, o som saía das botas de Custódio como uma falha, um desvio

em relação ao chão e à realidade, um desequilíbrio, e contudo, nessa assimetria, alguma coisa nos passos do

filho mais velho de Francisco Dias resultava regular, mais regular do que os passos dos outros. Era em torno

desses que se ficava à escuta da falha, do silêncio dum pé, como um pêndulo que se agita e promete uma

batida desigual que nunca acontece. Inconfundíveis os seus passos, atravessando a casa de Valmares, cru-

zando-se com os de Maria Ema que nunca paravam junto dos seus.

LÍDIA JORGE, O Vale da Paixão

Texto 2 – A montanha

Era uma montanha como as outras.

Tinha formas arredondadas, como todas as montanhas já velhas, muito batidas pelos ventos. Tinha vales

pouco profundos, por onde corria um regato que nascia no cume mais alto e descia em múltiplas curvas até à

planície. Aí recebia água de outros riachos, nascidos noutras montanhas, e virava rio grande. Mas isso já era

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longe da nossa montanha, não entra na estória. Aqui era mesmo só um regato de água límpida, saltitante

entre os rochedos, lambendo as raízes das árvores que cresciam nas margens. Toda a montanha estava

coberta por vegetação: árvores grandes como a mafumeira, a mulemba ou a amoreira de tronco branco, e

também as de frutas silvestres. No chão se misturavam fetos de diferentes formas e tamanhos, begónias e

rosas-de-porcelana. Só num ou noutro sítio tinha capim, capim tenrinho e que não crescia muito, por causa

da sombra das grandes árvores, gigantes teimosos escondendo o sol.

O clima não era muito quente, por causa da altitude.

E chovia bastante, daquelas chuvadas rápidas que sem avisar nos caem em cima, embora nunca com

grande violência.

A montanha tinha dois cumes principais: o cume Lupi, o mais alto, onde nascia o rio de mesmo nome, e o

cume do 801, no extremo oposto. No meio dos dois cumes havia um morrozito com pedras, sem plantas nem

árvores, apenas capim baixo. Era o sítio mais calmo e perfumado da montanha e dali se podia ver melhor o

luar de Lua cheia; por isso era o Morro da Poesia.

Era uma montanha como todas as outras. Mas seria mesmo?

PEPETELA, A Montanha da Água Lilás

TEXTOS LITERÁRIOS DO MODO DRAMÁTICO

Consideram-se em geral, textos dramáticos aqueles que se integram na forma literária do drama,

implicam a comunicação direta das personagens entre si e com os destinatários. São expressão da dinâmica

do conflito, com personagens tentando representar as ações e reações humanas. A enunciação é feita na

segunda pessoa. Serve, frequentemente, o teatro, que tem como objetivo específico a representação e o

espetáculo.

Géneros literários do modo dramático:

Tragédia – peça teatral cuja ação dramática tem um desfecho funesto.

Comédia – peça teatral em que se dramatizam, de forma cómica, os carateres, costumes ou factos

da vida social.

Tragicomédia – tragédia entremeada de acidentes cómicos e cujo desenlace não é trágico.

Auto - composição dramática de cunho moral ou pedagógico.

Farsa – peça de caráter popular ou burlesco.

TEXTOS LITERÁRIOS DO MODO LÍRICO

Consideram-se textos líricos aqueles que, artisticamente permitem exprimir as emoções, os

sentimentos, os desejos ou os pensamentos íntimos que nascem ou se apresentam ao espírito, ao mundo

interior dos seus autores. Usualmente, recorrem à enunciação na primeira pessoa. Os textos literários

pertencentes ao modo lírico designam-se poesia lírica. Embora possam surgir em prosa (prosa poética), os

textos literários pertencentes ao modo lírico tendem a ser apresentados em verso, obedecendo a

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convenções formais específicas, ao nível da estrofe, da rima e da métrica. A poesia lírica caracteriza-se

pelos seguintes fatores e elementos constitutivos:

• interiorização e individualismo;

• subjetividade;

• valorização da sonoridade e da melodia;

• exploração entre significante e significado.

Géneros literários do modo lírico

- Elegia – poema de assunto triste ou doloroso.

- Hino – canto em louvor de um herói, de um rei, de uma pátria.

- Cantiga – composição poética composta por um mote (com dois ou três versos), que introduz o tema, e

uma ou mais glosas ou voltas (com sete verso) que desenvolvem o tema introduzido pelo mote.

- Vilancete - composição poética composta por um mote (com quatro ou cinco versos), que introduz o

tema, e uma ou mais glosas ou voltas (com oito, nove ou dez versos) que desenvolvem o tema

introduzido pelo mote.

- Soneto – composição poética constituída por duas quadras e dois tercetos decassílabos, com esquemas

rimáticos variáveis.

- Ode – composição poética com alguma extensão, de caráter erudito, em que se celebra algum evento e

que se destina a ser cantada com acompanhamento musical.

- Canção – composição poética destinada ao canto, composta por cinco ou seis estrofes com o mesmo

número de versos decassílabos e hexassílabos.

- Écloga – composição poética em forma de diálogo ou solilóquio, interpretada por pastores e que aborda

temas rústicos.

- Esparsa – espécie de trova curta, sem refrão, que aborda diretamente o assunto, de fundo melancólico e

tom epigramático (satírico, ...).

- Endechas – composição de tom melancólico e triste em versos de cinco ou seis sílabas geralmente

agrupados em quadras segundo os esquemas rimáticos ABCB, ABAB ou ABBA.

-Trova - Composição poética de quatro versos septissilábicos, com rima e sentido completo, sendo que

cada um deve ter sete sílabas poéticas (contadas pelo som), com rima (rimando o primeiro com o terceiro

e o segundo com o quarto verso) e sentido completo.

Bibliografia:

Moreira, Vasco; Pimenta, Hilário (sd) Preparação para o Exame Nacional 2008, Português 12.º ano, Acesso ao

Ensino Superior. Porto Editora: Porto.

Jorge, Noémia (2014) Preparação para o Exame Nacional, Português 10.º ano. Porto Editora: Porto.

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A terminar …

Outrora, quando se referia "leitura" o pensamento voava de imediato ao encontro de prateleiras vestidas

de palavras ou para um outro lugar qualquer onde se sentia o calor das páginas encostadas a capas e

contracapas de livros.

Era assim.

O livro era um mundo mágico de mistério à espera que o desvendassem.

Apesar da sua "magicidade" intemporal, hoje o livro jaz bafiento num canto indefinido, inúmeras vezes

folheado numa pressa agressiva, cortando-lhe pedaços das sílabas que lhe dão vida.

E grita-se e sente-se: Bem-vindos ao reinado das teclas!!!!

Ah! Invasoras de mundos, as teclas sobrepuseram-se às páginas, numa ditadura intoxicante criadora de

dependências.

É fácil observarem-se mãos adolescentes aconchegando um livro? Não!!!!!

As mesmas mãos já robotizadas pelo hábito passeiam-se sobre teclados apelativos nos mais diversificados

modelos tecnológicos!

São importantes as tecnólogas? Sem dúvida, mas como um complemento e não o inverso.

Cada vez se lê menos. No futuro, quem sabe, ainda alguém perguntará: "O que é um livro?!”.

Esperemos que não.

Haja “esperançolivro”!

In Fernandes, Cidália e al. (2010) Português Vivo – 10.º ano. Lisboa: Plátano editora