cultura dia 22 de maio

8
Cultura QUARTA-FEIRA • 22 DE MAIO DE 2013 Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 29951 de 22 de maio de 2013, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente > “Em legítima defesa...” – Galiza, Espanha - Agosto de 2012 [Foto de V. B. Vasconcellos]

Upload: profmaria

Post on 06-Jun-2015

164 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Cultura dia 22 de maio

Cultura QUARTA-FEIRA • 22 DE MAIO DE 2013

Diário do MinhoEste suplemento faz parte da edição n.º 29951

de 22 de maio de 2013, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

> “Em legítima defesa...” – Galiza, Espanha - Agosto de 2012 [Foto de V. B. Vasconcellos]

Page 2: Cultura dia 22 de maio

II Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013CulturaCultura

Aquele André Brun dá-me cabo do juízo!Aquele André Brun dá-me cabo do juízo!

A soma dos nadas

O ontem do nadaé o nada de amanhã,quem partiu não ‘stá cá,quem foi já não o é,é sombra deitadaque vagueou de pé,no cacifo adormeceu,no silêncio se perdeu, sua voz sucumbiueco que jamais se ouviuna longínqua morada.Estrela que se apagouno mundo de corre e corre,onde todo ser vivo morre,não há fortes sem aisnem fracos protegidosnem criminosos escondidosem escuros labirintos,são ignorados famintostítulos e coroas riais. Reina aqui a paz eterna,neste sagrado museu,onde se guardao valor da cada troféu, de feitos e de glórias,ligados às memóriasdesta comunidade fraterna!

M. R. Silva(Inédito. Trofa, 9-12-11)

Palco da Poesia

Poema cor de luto

Vou escrever um poema cor de lutoPara um testamento de amor;E se em vida comi o fruto.Posse do alheio que o deixou morrer,De gaivotas farei um andorPara passear sobre as ondas:A musa que fi z reviverE será minha e do infi nito...

Virão os anjos em jeito de rondasCantar para nós os seus hinos.Tocarão os sinos,Crescerão abetos no Natal.E então um poema será ditoCom voz de papoila-mulher, papoila-fl or.E será um poema cor de calPara uma promessa de amor.

Américo Brito(Inédito. Abril de 2013)

1

Ferme du bois 2, 16 de Junho de 1917

A aurora abria-se e a claridade dos very--ligths vai sendo substituída pelo sol ainda pálido do início do estio. Como toupei-ras negras vamos emergindo do nosso buraco para o triste inferno a que fomos votados pelo governo republicano.– Pedro de Freitas 3, ainda sobrou rum? – O lazarento cospe terra e acena-me afi rmativamente. Adoramos as manhãs, são tranquilas como a morte e isso é uma bênção caída do céu.Aventuro-me a pôr a cabeça acima da trincheira perscrutando o horizonte e a linha de arame farpado. Lembro-me subitamente das irmãs Ajus e Joé 4 e do seu famoso opiário por detrás do coliseu. A noite é terrível, em Lisboa a noite era a dança e o frenesim dos botequins, aqui é o triste inferno vivido na carne, e agradecemos ao governo republicano por tal dádiva. Uma hora antes do cair da noite aper-ta-se-nos o estômago, as sombras envolvem-nos e todos nos interroga-mos: O von da costa virá? A baioneta do boche irá tentar espetar-se-nos no bulho, deixando as nossas tripas pela

lama? Os oficiais da retaguarda não sabem disso, atulhados na burocracia do seguro bunker. Malditos! como eu os detesto!, não sabem que de noite todos os medos estão à fl or da pele. Não sa-bem que ou vamos de patrulha com o alicate tentando furar o arame farpado e tomar uma trincheira ou então fi camos à espera que eles caiam em cima de nós com aqueles elmos pontiagudos a gritarem pelo imperador... Malditos ofi ciais de retaguarda! E quan-do não é isso, é o maldito gás debaixo da trabuzanada das metralhadoras. Escutamos os ecos da guerra em plena escuridão e nossos corações são como as nossas olheiras, fundas e negras, sem esperança nem remissão. Lá estão eles, os malditos, a inspeccionar-nos:– Hora das visitas, meu alferes. – Cen-sura Pedro. À frente deles um ofi cial que tirou o curso comigo, André Brun de sua graça, parecia bem disposto depois de ter tido uma noite confortável com uma cama fofa de palha. Fuma uma cigarrilha e admoesta-me:– Alferes Malheiro!, existem homens que já estão a dormir vestidos encosta-dos aos sacos, é uma falta de aprumo!

E está tudo cheio de cartuchos vazios no chão, é um desmazelo!– André Brun, você só serve mesmo para escrever comédias, não é verdade?– Como? – Nada. – Brun vê um livro de couro caído, apanha-o e abre-o. Olha para mim e comenta:– Então… se em vez de escrever você tratasse do aprumo das trincheiras es-távamos bem melhor. – Riem-se todos. Passa-me o meu diário.Raios!, quando é que eu escrevi isto? Foi ontem decerto. Ando mesmo repetitivo, pudera!, todos os dias a viver o mesmo inferno. Releio as primeiras linhas:“A aurora abria-se e a claridade dos very-ligths vai sendo substituída pelo sol ainda pálido do início do estio…” ◗

1 Escritor, jornalista e dramaturgo.2 Frente da primeira Grande Guerra no

norte de França.3 Soldado que participou na Grande

Guerra e que deixou um diário escrito.4 Curandeiras vindas de Xangai, estabe-

lecidas em Lisboa.

Mário Escoto

Envio de trabalhos para publicação neste suplementoDiário do Minho

CulturaCultura Diário do Minho / Secção CulturalRua de S.ta Margarida, 4 - 4710-306 Braga; Fax: 253609469. E-mail: [email protected]

22.Maio.2013

N.º 699

Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches nasceu em Cabanas de Viriato – Canas de Senhorim, a 19 de Junho de 1815, e faleceu a 3 de Abril de 1954 com 68 anos, em Lisboa.Vivendo em ambiente familiar católico, conservador e monár-quico, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, seguindo a carreira diplomática e exercendo funções em inúme-ras delegações portuguesas por todo mundo, com desempenho notável, o que lhe granjeou re-putação e prestígio, recebendo condecorações e louvores.De eventual ascendência judaica muito remota e estando refe-renciado pertencer à linha des-cendente do Rei David, casado e com 14 fi lhos, protagonizou um desempenho de grande dimen-são humana e marco histórico, na salvação de mais de 30.000 refugiados, nomeadamente ju-deus, aquando da Segunda Guerra Mundial, altura em que sendo Cônsul em Bordéus, facultou vistos de entrada para Portugal, contra as determinações do Go-verno Português, heroicidade já traduzida em fi lme e em livros.Esta atitude de não obediência, desencadeou procedimentos pu-nitivos, provocando o seu afasta-mento da carreira diplomática e proibindo-o de exercer advoca-cia, o que com o falecimento de sua esposa e vicissitudes infelizes da sua vida pessoal, contribuíram

para que morresse na miséria, abandonado.O reconhecimento público e político, só ocorreu, inicialmente em Israel em 1960, com diversas manifestações promovidas por organizações ligadas à memória do Holocausto e posteriormente em Portugal após 1986, com a atribuição de inúmeras conde-corações a título póstumo e a reabilitação da sua memória, em diversos actos, programas e ini-ciativas de cariz político e cultural, sendo de grande valor simbólico, a iniciativa promovida para a re-construção da sua casa em Caba-nas de Viriato, que se encontra em ruínas e está classifi cada como Monumento Nacional.A comemoração do dia da morte de Aristides Sousa Mendes, a 3/4/1954, neste período Pascal, faz-nos recordar outro descen-dente da linha de David, que tão revolucionário foi nos ensinamen-tos que propagou e na vivência que protagonizou, entregando-se na ajuda a todos e para todos, acabando abandonado à injustiça dos homens, mas reabilitado pela justiça divina.Que natureza é a nossa em que sendo protagonistas da maior heroicidade, somos capazes das maiores atrocidades, numa variabilidade imprevisível e irra-cional, para nós e para os outros, perdendo toda a dignidade que impregna o ser humano?O individualismo e o colectivis-mo fundem-se numa amálgama explosiva e clivante, provocando grandes rupturas individuais e sociais, impulsionando um percurso de vivência com falsas ideias e falseada felicidade, de fi nal auto destrutivo.Refl ectir com humildade, com a força dos valores morais e com o procedimento ético que deve nortear a nossa existência, será uma atitude corajosa a incutir na vida de cada um, nestes tempos também conturbados e confu-sos, e que Aristides Sousa Men-des traduziu na frase: “Se há que desobedecer, que seja a uma ordem dos homens e nunca a uma ordem de Deus”. ◗

A natureza humanaA natureza humana

POR

A. MANUEL DOS SANTOS

MÉDICO PSIQUIATRA

Page 3: Cultura dia 22 de maio

CulturaCultura IIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013

José Fernandes da Silva, poeta e músico natural de Braga e residen-te em Vila Verde, acaba de perfazer vinte anos de intensa criação artís-tica, tendo dado à estampa neste período mais de duas dezenas de obras do foro musical e poético. No ano de 1992, este profícuo e versátil autor iniciou-se nos dois géneros artísticos, ao publicar Cofre de Ternuras e Canções da Minha Escola. Nascido em 1948 na Lageosa, Sobreposta, José Fernan-des da Silva, em plena infância, fi cou privado da visão num infeliz acidente, tragédia que não o im-pediu de prosseguir estudos e de se tornar telefonista-recepcionista. O seu gosto artístico levou-o porém a obter o Bacharelato em Composição, pelo Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, título académico que lhe valeu a entrada no ensino ofi cial, sendo actualmente professor do quadro de Educação Musical na EB 2,3 de Moure, Vila Verde.Quando publicou Relicário (1993), José Manuel Mendes, numa das badanas da capa, diria que “a poesia de José da Silva Fernandes procura sempre o registo das vi-vências e das sensações pes soais.” E ao comentar o título seguinte

(Celeiro de Retalhos, 1994), o mesmo escritor, aliás amigo de infância do autor, nota que “numa linguagem que muito deve aos ritmos populares e musicais das construções clássicas, a sua pala-vra fala das relações com a natu-reza e os seres, da vibração íntima e dos sentimentos, sem demitir o sobressalto metafísico, os registos solidários, a deceptividade ante o desconcerto do mundo”. A título de exemplo deste pensamento, citemos apenas a primeira quadra do poema Presto: “Queria ter um cavalo / mas um cavalo de vento / que a qualquer hora, num halo / me levasse o pensamento...”Paralelamente à publicação de poesia, José Fernandes da Silva foi dando à estampa também obras musicais, do foro lúdico, didáctico, religioso e tradicional (cantares de Natal, Reis e Janeiras). Quando vieram a lume as Aclamações ao Evangelho, já em 2009, o Padre António Rodrigues, fraterno com-panheiro do autor, abre o prefácio da obra com estas justas e ilumi-nantes palavras: “Não há ninguém que, tendo perseguido durante muitos anos, com toda a sua determinação e sem desânimos, um determinado objectivo, dele se possa dizer que se não apaixonou. E quem fez da escrita, música, poesia ou romance, o sonho dos seus dias e vai semeando como quem reparte pedaços da sua alma, esse já se tornou para todos mais que um luminar, um guia ou um exemplo; ele é um pedaço de todos nós, entra na nossa alma e fi ca cantando aí a sua música e dizendo aí as suas composições.”Palavras igualmente abonatórias, mas merecidas, recebeu-as o au-tor do escritor João Lobo, o qual, no prefácio de Barca de Esperan-ça (2000), assevera que“... dar à estampa um livro ilu-minado pela singeleza das coisas simples, por entre esta áspera fuzilaria a que chamamos civili-zação, é um momento grave de combate.” E mais à frente, o mes-

mo escritor, sublinha que “... na sua simplicidade infi nitamente como-vente (o poeta) soube deixar-nos ao lume da consciência um livro que arrancando do lirismo telúrico regional é sugestivamente rico em sensações visuais, fundamente catártico no seu pode emotivo, sincero nos temas que trata...”. Vejamos, como pequena ilustra-ção destas ideias, estes quatro decassílabos: “Com ternura recor-do aquele dia, / em que p’la vez primeira te encontrei; / o vendaval de frases, de alegria; / o prolonga-do abraço que te dei!”

Já em 1997, Maria Teresa Lobato, a propósito de Alfobre de Amores, um título de poesia infanto-juvenil, dado à estampa três anos depois, dizia que “José Fernandes da Silva alude a sensações pessoais e a situações onde o sentir e a mu-sicalidade que lhe é inerente se revelam, onde a generosidade das dádivas simples mas signifi cativas da vida se sobrepõe ao vazio das incongruências de certo mundo moderno e metropolitano.” A propósito do mesmo livro, Alfredo Pedrosa, ao escrever uma recen-são crítica no jornal da EB 2,3 de Vila Verde, adianta que (o poeta) surge-nos “como um homem que joga com as sílabas e as palavras de uma forma invulgarmente au-têntica, até instintiva, gostosamen-te entregue a um infi nito espectá-culo de sensações, transpirando o ambiente bucólico em que temos a felicidade de estar inseridos de uma forma intensa e objectiva.”Também a escritora Maria do Céu

Nogueira se associa a este laudé-mio generalizado, pois, segundo ela, “ler Alfobre de Amores foi pe-netrar no mundo maravilhoso da infância.” E prossegue: “Pela mão do seu autor, José Fernandes da Silva, apequenei-me e revivi, en-cantada, os meus tempos de me-nina. Cantei e dancei, fi z diabruras inocentes sob o olhar atento dos meus pais, trepei às árvores e aos muros da quinta onde nasci, provei todos os sabores dos frutos madu-ros, bebi, insaciável, a água pura e cristalina das fontes, nadei no Neiva, o rio das belas trutas, e corri, louca, pelos caminhos de erva fresca que calcava de pés descalços.”

Quando o José Fernandes da Silva me convidou para prefaciar o seu mais recente título poético, Rama-lhete de Safi ras (2012), reparei que a obra estava mergulhada num denso halo de misantropia, e que o seu costumado confessionalis-mo redentor e auto-compadecido declinava já para um tom elegíaco e passadista, e para a assumpção de um indisfarçável desencanto existencial. Deste modo, Rama-lhete de Safi ras marca de forma iniludível a entrada de José Fer-nandes da Silva na senectude da vida, tanto mais que na sua in-trospecção contrita admite: “...aos poucos, começo a ver desfeito / o meu sonho de vida...”. Esta toada disfórica e lamentosa pode ver--se em sonetos como o Cântico Final, onde o poeta confi dencia: “Imensas vezes, Mãe, nas horas de amargura, / ugio nos teus dotes de ternura...” Em contraponto a esta

derrota anímica, José Fernandes da Silva deita mão das sempre encantatórias redondilhas para abordar matéria mais comezinha e grácil, e para fugir talvez ao tormentório da existência: “A Lua infi nita / é hóstia bendita /feita de luar: / formoso luzeiro, / que não tem parceiro / para o imitar!”Em Ramalhete de Safi ras o leitor mergulha no perturbador lirismo de um poeta que persiste estoica-mente em renunciar aos sedutores cantos de sereia da sociedade contemporânea e se aferra aos va-lores perenes e inamovíveis do seu afectuoso ideário. Neste universo de grande coerência e solidez moral abundam não só poemas saídos do peito de um Eu lírico, de que cito, a título de exemplo, o primeiro dístico de Escravidão: “Era bem tempo de apagar o círio, / que alumia há anos o martírio...”; mas também poemas saídos de um Eu social, como se verifi ca em Outros Tempos: “Já não se reza o terço, como outrora, / nos pacífi -cos lares das aldeias...” A expressão de uma emoção redentora a um tempo e solidária a outro, leva o poeta a alimentar o gosto pelo bucólico: “Lua pura, véu da noite / derrama bento luar...”; pelo nostál-gico: “Já gozei dias felizes...”, pela contemplação: “Infi ndáveis tapetes de verdura...”, pela identifi cação com a dor alheia: “Jamais com-preendi qual a razão / dele tomar aquela decisão (...) atendendo a que foi arrebatado / por um golpe brutal da fera Sorte...”, e por todo um tipo de proposições que vão desde a confi ssão de desgostos pessoais até ao desagravo cris-tológico, passando por hinos ao amor conjugal, ao culto mariano e à saudade, esta bem expressa em elegias e epitáfi os.Ramalhete de Safi ras também é relicário de saudade e de luz sim-bólica de tudo o que é grandiosa-mente belo, como a misteriosa luz que nimba a noite e o dia, e que José Fernandes da Silva perdeu acidentalmente na sua infância. ◗

DoDo “Cofre de Ternuras” (1992) “Cofre de Ternuras” (1992)aoao “Ramalhete de Safi ras” (2012) “Ramalhete de Safi ras” (2012)No 20.º aniversário da vida literária de José Fernandes da SilvaNo 20.º aniversário da vida literária de José Fernandes da Silva

POR

FERNANDO PINHEIRO

ESCRITOR

O poeta e músico José Fernandes da Silva, autor de “Ramalhete de Safi ras”, nasceu em Sobreposta (Braga) e vive em Vila Verde. O seu primeiro livro foi publicado há 20 anos.

Page 4: Cultura dia 22 de maio

IV Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013CulturaCultura

Durante a primeira metade do século passado, viveu na fregue-sia de Barbudo, concelho de Vila Verde, um médico muito respei-tado, casado com uma senhora natural da freguesia da Lage, do mesmo concelho, pertencente a uma conceituada família da então, denominada “Quinta do Alferes”. Deste casamento não houve fi lhos, mas trouxeram da dita “Quinta do Alferes”, para sua companhia uma, irmã da esposa e uma fi lha desta. A irmã era mãe solteira. O médico era muito bondoso, e tinha fama de responder com prontidão e desvelo a quem o solicitasse na doença, mesmo para localidades de difícil acesso. Além de raramente cobrar honorários, era frequente deixar aos mais necessitados a sua contribuição para a compra dos medicamen-tos. Profundamente religioso, era católico praticante. Também era monárquico.Mais tarde, em 1927, a sobrinha, fi lha da irmã, contraiu matrimó-nio e todos fi caram a partilhar a mesma habitação, com a quinta

anexa. Deste casamento nasceram onze fi lhos.Acontece que entre eles, em conversa divertida, por vezes, di-ziam que sua mãe era fi lha de um «Chasco». E brincavam com esta história de família sem qualquer sombra de maldade. Do seu nome verdadeiro nada sabiam. Que teria falecido vítima de um tiro de revólver que um fi lho da “Casa do Alferes” lhe terá disparado volunta-riamente, quando o mencionado «Chasco», que morava próximo, tentava aproximar-se da avó, com intenções um pouco suspeitas. Pois que de ambos já existia uma fi lha, que era a sua mãe. E tão con-vencidos e conformados viveram com esta versão, que nunca senti-ram necessidade de saber não só a identidade do avô, mas também as reais causas que motivaram a sua trágica morte. E, por isso, a maio-ria dos netos partiu deste mundo sem nunca ter conhecido o seu nome. Mas fi caram seus bisnetos e trinetos e consideramos que estes têm todo o direito, se o desejarem, de saber a sua identidade. Nesta

conformidade fomos em demanda dessa história. Delimitadas as bali-zas temporais, fomos encontrá-la nos primeiros anos da República, encaixada em certos aconteci-mentos ocorridos no concelho de Vila Verde, e relatados pela im-prensa da época.Um pouco distante do rescaldo das comemorações do primei-ro centenário da implantação da República, achamos, mesmo assim, que teria interesse a sua divulgação.

Os primeiros anos da República: ambiente político, sociale económico do País.

Nessa altura, em 1916, a Europa vivia mergulhada na Primeira Guerra Mundial – 1914-1918. Em Portugal, após a queda do governo de Bernardino Machado e a sua substituição por um ministério to-talmente democrático, o presiden-te Arriaga, alarmado com a vio-lência da luta política e cedendo a pressões dos seus amigos políticos e pessoais, decidiu intervir. Assim,

em Janeiro de 1915, promovendo a demissão do Governo, confi ou ao seu amigo pessoal, general Pimenta de Castro, a tarefa de organizar o ministério, com o fi m de pacifi car a Nação e de presidir, com imparcialidade, às eleições legislativas que se avizinhavam. Tinha o apoio dos Evolucionistas, dos Unionistas, de parte do exér-cito, e dos monárquicos, isto é, de todas as correntes opostas ao Partido Democrático.Muitos republicanos começaram a recear um perigo monárquico por detrás das medidas de tolerância governamentais. Fruto dessa situa-ção, no dia 14 de Maio de 1915, os democráticos fi zeram eclodir uma revolução armada em Lisboa, que teve a participação da marinha, de parte do exército e de grande número de civis.Assim, Arriaga viu-se obrigado a demitir-se e o Congresso elegeu Teófi lo Braga para completar o seu período presidencial. As eleições legislativas realizadas a 13 de Junho de 1915 deram aos demo-cráticos a maioria absoluta nas duas câmaras. Foram as primeiras eleições gerais na vigência da Constituição de 1911.Em Agosto, Bernardino Machado foi eleito presidente da República para o quadriénio 1915-1919. O novo parlamento iniciou a ses-são a 2 de Novembro de 1915 e manteve-se em funções até à sua dissolução, ocorrida no dia 6 De-zembro de 1917, na sequência do golpe de Estado de Sidónio Pais.Nos princípios de 1916, a Grã-Bre-tanha, deparando-se com difi cul-dades crescentes na obtenção de transportes marítimos, solicitou de

Portugal que requisitasse as deze-nas de navios mercantes alemães que se encontravam fundeados nos portos continentais, insulares e ultramarinos. Calculando os ris-cos e as vantagens, o governo por-tuguês procedeu à requisição das embarcações (Fevereiro de 1916).A Alemanha respondeu com a de-claração de guerra a Portugal (9 de Março). No dia seguinte, é Portugal que declara guerra à Alemanha. Perante essa grave situação do País, Democráticos e Evolucionis-tas assentaram na constituição de uma União Sagrada, cedendo Afonso Costa a presidência do Ministério ao seu antigo adver-sário António José de Almeida,

Acontecimentos ocorridos no concelho deAcontecimentos ocorridos no concelho de

Vila VerdeVila Verdeem tempos conturbados da 1.ª Repúblicaem tempos conturbados da 1.ª República

– uma história de família– uma história de família

POR

ANTÓNIO RODRIGUES MORAIS

MESTRE EM HISTÓRIA DAS POPULAÇÕES

PELA UNIVERSIDADE DO MINHO

“Uns dias depois, o ‘Commércio do Minho’ do dia 14 do mesmo mês de Novembro dá notícia de que na noite de sexta-feira, dia 10 de No-vembro, na freguesia da Lage, concelho de Vila Verde, Avelino José Ferreira, proprietário da ‘Casa do Alferes’, de 28 anos, matou com um tiro de revólver, Domingos Gonçalves Pimentel, o ‘Chasco’, alfaiate de 33 anos, natural da freguesia de Gême, ambos residentes naquela freguesia da Lage, isto é, três dias após as referidas prisões.”

Page 5: Cultura dia 22 de maio

CulturaCultura VDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013

conservando apenas a pasta das Finanças.O governo da União Sagrada teve de cumprir a difícil missão de organizar uma força expedi-cionária que fosse combater em França. Como consequência da guerra, as condições de vida das massas populares agravaram-se, escasseando os géneros de primei-ra necessidade, até ao extremo da fome.

Os acontecimentosque abalaramo concelho de Vila Verde.

Nessa altura, o País vivia num cli-ma de grande turbulência política e social, a que o concelho de Vila Verde não esteve imune. Nele ocorreram graves acontecimentos que os jornais da cidade de Braga, «Commércio do Minho» e outros, e ainda a “Folha de Vila Verde”, noticiaram e classifi caram como “actos de malvadez”.Desses actos fi zeram parte, no dia 4 de Novembro de 1916, em Vila Verde, a explosão de uma bomba no peitoril uma janela da casa da Câmara e, ainda na madrugada do mesmo dia, outra contra o posto do registo civil do lugar da Portela, freguesia de Atães.Reforçando o cariz marcadamen-te político, em Marrancos, fre-guesia do concelho de Vila Verde, explodiu outra bomba junto da casa do dr. Joaquim de Oliveira, deputado pelo círculo de Braga.Também foi noticiado que “foram cortados alguns postes da linha telegráfi ca e apareceram pinheiros atravessados nas estradas”.Igualmente na cidade de Braga explodiram bombas, em Maxi-minos, na casa do Sr. Bento de Oliveira, Governador Civil substi-tuto, e do Dr. Domingos Pereira, deputado por este círculo. Todas elas produziram apenas prejuízos materiais.O ambiente em que se vivia continuava a ser de muita tensão entre a Igreja e o poder instituído, fruto das medidas anticlericais que já vinham do Governo Provi-sório presidido por Afonso Costa. Embora a Igreja, em 1916, se tornasse mais fl exível para com o novo regime, e no plano político começasse a fi rmar alianças com os elementos mais conservadores do republicanismo, porém, man-teve e não abandonou a aliança tradicional com a Monarquia e com os aristocratas.Por isso, não admira que sobre muitos sacerdotes do conce-lho de Vila Verde e sobre outros cidadãos ligados à Monarquia recaíssem as suspeitas de esta-rem por de trás dos mencionados

acontecimentos.Nessa conformidade foram efec-tuadas prisões, continuando as investigações por parte das autoridades, de harmonia com a imprensa da época.O “Commercio do Minho”, de Bra-ga, de 9 de Novembro, relata que no passado dia 7 (3ª. feira), “transi-taram do comissariado da polícia para a cadeia civil de Braga, fi can-do ali à disposição do Sr. Adminis-trador do concelho de Vila Verde, os presos que vieram daquela Vila sob arguição da autoria no caso das bombas ali lançadas”.Esta mesma notícia é-nos dada também pela “Folha de Vila Verde”, de 19 de Novembro, de forma pormenorizada: “de terem estado detidos no posto da guarda re-publicana e cadeia de Vila Verde, seguiram para Braga, escoltados por força armada”, os párocos das freguesias de Azões, de Duas Igrejas, da Loureira, de Aboim e alguns leigos. Noticia ainda o jornal vilaverden-se que “sob a acusação de pedi-rem votos e praticarem outros delitos também foram chamados à Administração, diversos cava-lheiros”. Eram provenientes das freguesias da Lage, de Vila Verde, do Pico, de Escariz, de Azões, e ainda os párocos de Doçãos, da Lage, de Godinhaços, deS. Cristóvão do Pico e da Portela e também padres de Valdreu e de Godinhaços.

Assassínio de DomingosGonçalves Pimentel– o «Chasco»

Uns dias depois, o “Commércio do Minho” do dia 14 do mesmo mês de Novembro dá a notícia de que na noite de sexta-feira, dia 10 de Novembro, na freguesia da Lage, concelho de Vila Verde, Avelino José Ferreira, proprietário da “Casa do Alferes”, de 28 anos, matou com um tiro de revólver, Domingos Gonçalves Pimentel, o «Chasco», alfaiate, de 33 anos, natural da freguesia de Gême, ambos residentes naquela fregue-sia da Lage, isto é, três dias após as referidas prisões. Mas entre o dia 11 de Novembro, sábado, e o dia 13, segunda-feira, restituídos à liberdade todos os presos por nada se averiguar que os comprometesse.

Sobre o homicídio, vejamos o que dizem documentos da época.

Atingido o objectivo da identifi ca-ção desse ramo parental, fomos em busca das razões que provo-caram o homicídio, tendo como pano de fundo os graves aconte-

cimentos relatados.A imprensa da cidade de Braga e local apontava que na origem da contenda estavam causas políticas e ainda outras anterio-res à proclamação da República. Que o “Chasco” era republicano e que teria ofendido gravemente a honra da família da “Casa do Al-feres”, que era monárquica, e que a partir daí tornaram-se inimigos irreconciliáveis. E à luz das notícias da imprensa e de documentos fi dedignos, fomos compreendendo que, embora tenham existido causas remotas, a causa próxima do fatal desfecho terão sido as suspeitas que sobre si («Chasco») recaíram de ter de-nunciado junto da Administração do concelho Vila Verde alguns residentes na freguesia da Lage. Outros documentos referem que, perante o crime, o Administrador do concelho de então participou no dia seguinte – 11 de Novem-bro de 1916 –, ao Delegado do Procurador da República de Vila Verde, a ocorrência do homicí-dio. Comunicava “que no dia 10 de Novembro, seriam 19 horas, no lugar de Bouçós, freguesia da Lage, deste concelho, quando ali passava em companhia de outros indivíduos, manso e pacífi co, foi, sem mais nem menos, assassi-nado a tiro de revólver ou pistola – Domingos Gonçalves Pimen-tel, solteiro, alfaiate, da mesma freguesia. Que o assassinado tinha ido desta Administração de prestar declarações sobre os últi-mos acontecimentos, sendo logo ameaçado”.

Declarações de testemunhas que presenciaram o homicídio, sob palavra de honra!

Todas as testemunhas relacio-naram esta morte com os graves acontecimentos deste concelho, porque o falecido era “republica-no e o homicida um autêntico monárquico”.Algumas narraram que pouco antes de se dar o assassinato estiveram com Avelino José Ferreira numa taberna sediada no lugar de Bouçós; que o referido Avelino convidara um grupo de homens que o acompanhavam para irem à sua residência beber uma pinga de vinho e ao pas-sar em frente ao assassinado, o Avelino disse a seguinte frase: “bamos comer quatro castanhas e beber uma pinga de água-pé para fazer teré-té-té para o Chas-co”; que chegados ao portão do Avelino apareceu neste momen-to o referido «Chasco» que lhe perguntou: Que é que quer ao «Chasco»? E num dado momento o homicida “mete a mão ao bolso, puxa de uma pistola, desfechando um tiro sobre o «Chasco», que caiu redondamente morto”. Outra mais disse que a seguir ao homi-cídio o Avelino pôs-se em fuga. Uma outra relatou que ouviu dizer ao Avelino que tinha queixa de um homem do lugar e dizendo que era o «Chasco» por este ter chamado à Administração do concelho algumas pessoas da sua freguesia. Os mesmos documentos dão-nos a conhecer que o Avelino con-

fessou o crime e foi preso. Quatro meses passados foi transferido da cadeia para ser julgado no Tribu-nal no dia 26 de Abril de 1917. Referem, por fi m, que o Avelino José Ferreira foi absolvido sem selos nem custas, com alegação de ter agido em legítima defesa. Nar-ram também que, enquanto o au-tor do homicídio tinha em sua mão um revólver, a vítima tinha apenas uma pedra com que o agredira.Convém insistir que se viviam tempos de grande confl itualidade, em que a Monarquia pretendia re-conquistar o poder e a República respondia, procurando defender--se a todo o custo. Já em relação à justiça praticada durante estes primeiros anos, a História diz-nos que os tribunais da República, infelizmente, con-tinuavam a funcionar com um vasto número de juízes, confes-sadamente monárquicos e, nessa medida, suspeitos de julgarem parcialmente; e não era uma suspeição: o contrário também, é provável, que terá sido verda-deiro. Por fi m, julgamos que no seio de outras famílias poderão eventual-mente contar-se episódios idên-ticos, que paixões, preconceitos e o próprio tempo terão deturpado. Em nossa opinião, seria interes-sante que pudessem ser confi r-mados e devidamente enqua-drados no tempo, pois que desse trabalho talvez pudesse resultar algum ganho para a história das respectivas comunidades.◗

Vila Verde, Abril de 2013

Vila Verde, na actualidade

Page 6: Cultura dia 22 de maio

VI Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013CulturaCultura

“Em sintonia com o povo e o pároco, o Cóne-go Avelino de Jesus da Costa (na foto), natu-ral do Barral, é o grande promotor, a alma de todo este projeto, que integra ainda o novo Santuário da Senhora da Paz, edifício mais recente, em sistema basilical de três naves.”

A caminho do centenário da Senhora da PazA caminho do centenário da Senhora da Paz

Aparições do BarralAparições do Barralocorreram há 96 anosocorreram há 96 anos

POR

LUÍS AREZES

PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA

NO ENSINO SECUNDÁRIO

PONTEPONTE

DA BARCADA BARCA

Faltam quatro anos para o cen-tenário das aparições de Nossa Senhora, no lugar do Barral, Vila Chã S. João, Ponte da Barca.Tudo remonta a 1917. A Euro-pa continuava em guerra. Nas trincheiras lamacentas do velho continente caíam milhares de cadáveres e, na frente de batalha, estavam Portugueses, combatiam homens de Ponte da Barca! Por cá, Miguel Calheiros e Passos deci-

dira, em 1916, erguer, no monte de Santa Rita, sobranceiro à sede do concelho, um monumento à Senhora da Paz.Longe de todo este mundo de afl i-ções, vive, em “extrema pobreza”, o pequeno Severino Alves. Tem 10 anos de idade e reside com sua mãe, que enviuvara cinco meses antes, e com mais seis irmãos. Todo o seu tempo de menino é ocupado com os rebanhos, nas redondezas do Barral.No dia 10 de maio de 1917, Severi-no inicia o dia, com a mesma roti-na de sempre – o nosso pastor vai para os montes com as ovelhas.Nos seus dedinhos de miúdo, cor-rem as contas do terço que reza devotamente, aplicando metade pelo pai e a outra metade a Nossa Senhora. Até que, por volta das oito horas, numa ramada, perto da ermida de Santa Marinha, é surpreendido por uma enorme luz vinda do céu... É um clarão tão forte e tão brilhante que o menino fi ca possuído por um medo fasci-nante.Vencida a emoção, dá alguns pas-sos, atravessa um portelo e olha em redor. Nesse momento, avista uma Senhora! Tem as mãos postas e o indicador da mão direita desta-cado em determinada direção. O seu rosto é lindo, como nenhum outro. Veste-se de branco e um manto azul cobre-lhe a cabeça. Toda Ela é cheia de luz e de es-

plendor! Fascinado com tamanha beleza celestial, o nosso pastor recua uns passos, maravilhado, e cai por terra. Readquirido o ânimo, ergue-se e exclama: – Jesus Cristo!Não voltou a ver a Senhora!...No dia seguinte, 11 de maio, sexta--feira, quando passa no mesmo local com o rebanho, o portelo abre-lhe a alma para uma nova visão. Ali está, de novo, a Senhora cheia de graça e de luz.Severino cai por terra, de joelhos. Olha, depois, o rosto sorridente da Senhora e diz-lhe o que o seu pároco lhe havia aconselhado:– Quem não falou ontem, fale hoje...Então, a voz da aparição, “diferen-te do falar de todos os mortais”, manifesta-se, acalmando-o:– Não te assustes, sou Eu, menino! E prossegue: – Diz aos pastores do monte que rezem sempre o terço, que os homens e mulheres rezem o terço e cantem a “Estrela do Céu”. E as mães que têm os fi lhos lá fora que rezem o terço, cantem a “Estrela do Céu” e se apeguem Comigo, que hei de acudir ao mundo e aplacar a guerra. – Sim, Senhora! – responde Severi-no extasiado, ao que a visão, olhan-do para a ramada, acrescenta:– Que gomos tão lindos! Que cachos tão bonitos!O pastorinho olha e, quando se

volta, vê que a extraordinária apa-rição já tinha desaparecido.

Rezem o terçoe cantem a “Estrela do Céu”

A sua fé de criança garante-lhe que acabara de ser protagonista de um acontecimento sobrenatu-ral. Corre a espalhar a Boa Nova. Ele quer partilhar tão grande mara-vilha com as “mães dos fi lhos da localidade que estão no exército”.Entre outros, há um facto que a todos deixa perplexos: a referência à “Estrela do Céu”, uma oração que se cantava na freguesia, “quando havia alguma calamidade ou guer-ra”, mas que – segundo o pároco – caíra em desuso há mais de quatro décadas, pelo que o povo a desconhecia. Severino não estava, portanto, a faltar à verdade. E, “a todos

quantos se acercam dele e põem em dúvida o que ele viu e relata, responde invariavelmente:– Se quiserem acreditar, que acreditem; se não quiserem, que não acreditem. Eu fi z a minha obrigação, avisando como me mandaram”. A notícia espalha-se pelas re-dondezas. De tal forma que, uma semana depois, no dia 17 de maio, festa da Ascensão do Senhor, juntam-se “já numerosos devotos no local das aparições”.No dia 1 de junho, primeira sexta-feira, chega ao conhecimento de Sebastião de Vasconcelos, advogado do Porto, com ligações familiares a Ponte da Barca. No dia seguinte, ele faz-se ao caminho. Vai ao encontro do pequeno Seve-rino. “E ali – lê-se num manuscrito inédito da sua autoria, divulgado pelo Cónego Avelinode Jesus da

Capela da Senhora da Paz,no Lugar do Barral, freguesia de Vila Chã S. João (Ponte da Barca)

Page 7: Cultura dia 22 de maio

CulturaCultura VIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013

Costa –, no meio do povoado, entre crianças, ouvi a descrição simples e impressionante que me fez, que tem sido sempre invaria-velmente repetida”.Os elementos que recolhe nesta primeira viagem ao Barral dão corpo a dois artigos que, a 9 de junho de 1917, publica nos jornais católicos do Porto, “A Ordem” e “Liberdade”, e que temos seguido de perto nesta apresentação. O título é sugestivo: “Nossa Senhora do Barral?”.

Peregrinos aos milhares

Os textos despertam enorme interesse, esgotando-se ambos os jornais, facto que levou “A Ordem” a fazer uma separata do seu artigo para atender os inúmeros pedi-dos. No mesmo dia da publicação dos textos, o “Senhor Bispo do Porto aprovava a ‘Estrela do Céu’, concedendo 100 dias de indul-gência a quem a rezasse”. Desde aí, espalharam-se aos milhares as pagelas com a “Estrela do Céu” e os jornais publicaram-na, repeti-damente. A 28 de julho, “A Ordem” anuncia ter à venda a música da antífona.Em fi nais de 1917, Sebastião de Vasconcelos “mandou fazer uma estampa segundo as indicações do ‘vidente’ […], com a legenda Regina pacis na frente […] e ‘Súpli-cas à Virgem Santíssima pela paz’, no verso”.Muitos jornais divulgam, entretan-to, os artigos e publicam outras notícias, ao longo dos meses de verão, de tal modo que as apa-rições do Barral já eram pratica-mente conhecidas em todo o País e nas Ilhas Adjacentes, quando veio a público a primeira notícia das aparições de Fátima, que saiu em O Século, a 24 de julho de 1917.Face à repercussão dos aconteci-mentos do Barral, o “Sr. Arcebispo de Braga nomeou ‘uma comissão de graves e conceituados teólo-gos’, que foi ao local, logo a 20 de julho de 1917, para colher elemen-tos para o processo canónico, segundo informaram os ‘Echos do Minho’ (órgão ofi cioso da diocese de Braga) de 22 deste mês”. Os peregrinos acorrem aos mi-lhares, vindas das mais diversas terras. O jornal “A Ordem”, que apenas se refere ao caso de Fátima a 27 de outubro, divulga os acontecimentos do Barral com entusiasmo, em números seguidos. Nas edições de 16 e 17 de junho de 1917, diz que a “devo-ção do Terço do Rosário ganhou muito com a narrativa do caso do Barral” e noticia que “tem sido uma verdadeira peregrinação para o lugar do Barral, em Ponte da

Barca, tantas são as pessoas que ali vão interrogar o pastorinho Severino Alves acerca da Aparição de Maria Santíssima e ver o local”.Esta afl uência mantém-se durante vários anos, passando a diminuir depois de 1926. Nem seria de esperar outra coisa, pois, no local, nem sequer fora construída uma imagem, muito menos uma cape-

la. A atenção e a devoção vão-se, progressivamente, concentrando em Fátima, onde Nossa Senhora se manifestara, dois dias mais tarde, a 13 de maio do mesmo ano... E, assim, as aparições da Senhora da Paz quase caem no esquecimento.Quase! Porque, 50 anos depois, Fátima cruzar-se-ia, de novo, com o Barral.

Centro Marianoconhece uma nova alma

Foram, de facto, os historiadores de Fátima que contribuíram para reavivar o interesse pela Senhora da Paz. Consultando a imprensa de 1917 para saberem o que se escrevera sobre a Cova de Iria e, assim, prepararem o 50.º aniver-sário destas aparições, acabaram por encontrar numerosos artigos sobre o Barral, situação que alte-rou o rumo dos acontecimentos.Em agosto de 1967, Fátima acolhe o XII Congresso Mariano Interna-cional para assinalar o cinquen-tenário das aparições. O Cón. Prof. doutor Avelino de Jesus da Costa, historiador e catedrático da Universidade de Coimbra, é con-vidado para colaborar e apresenta uma comunicação que desperta grande interesse: “As aparições de Nossa Senhora do Barral, a 10 e 11 de maio de 1917”. A devoção à Senhora da Paz está a ganhar nova alma. Com au-torização do Arcebispo Primaz, Avelino da Costa – também nas-

cido no Barral e contemporâneo do vidente pastorinho – escreve uma série de artigos no “Diário do Minho”, que, em parte, são publi-cados nos jornais “Novidades”, “A Voz” e “O Povo da Barca”. E, em sintonia com o pároco e os seus conterrâneos, logo pede auto-rização para mandar fazer uma imagem e para erigir uma capela

no local.A 24 de junho de 1967, a imagem da Senhora da Paz é benzida e colocada num nicho, à veneração dos fi éis. E a Confraria de Santa Ana decide promover a cons-trução da capela, cuja licença é assinada, em maio de 1968, por D. António Ribeiro, na altura bispo auxiliar de Braga e futuro cardeal patriarca.

Muito trabalho e várias inaugurações

Orçado em cerca de 400 contos, o templo é decorado com quartzo cristalizado e a inauguração acon-tece a 15 de setembro de 1969, com a bênção do vigário-geral da arquidiocese, o então cónego e futuro bispo auxiliar de Braga, D. Carlos Pinheiro.“A solene bênção e inauguração da capela-monumento atingiram um brilhantismo que ultrapassou o que era de esperar por ter sido em dia de semana, o tempo estar muito chuvoso e ter havido em alguns meios obstrucionismo à capela e à sua inauguração”, es-creve, na altura, Avelino de Jesus da Costa. O dia festivo, que mereceu uma reportagem da RTP, fi ca, entre outros aspetos, marcado também pela estreia do “Hino de Nossa Senhora da Paz”, letra de Castro Gil e música de Manuel Borda.Pouco tempo volvido, já a capela era considerada pequena para a afl uência de devotos. Para reme-

diar o mal, projeta-se a constru-ção de uma cave por baixo do adro e de uma pequena casa de recordações, junto da oliveira, que fi cara como recordação de 1917. A 2 de maio de 1971, é benzida a cripta e o altar de quartzo, um enorme bloco cristalizado, o maior existente em Portugal, com cerca de três toneladas de peso.

Neste ano, a festa da Senhora da Paz regista a presença de altas individualidades, tais como o go-vernador civil do distrito e o pre-sidente da Câmara Municipal de Ponte da Barca, sendo a procissão presidida pelo Vigário-Geral.Em 1972, a festa celebra-se a 20 de agosto, com a bênção e inau-guração dos painéis de azulejo que revestem as paredes da cripta e representam a Última Ceia, as aparições do Sagrado Coração de Jesus em Paray-le-Monial, as aparições de Nossa Senhora em La Salette, Lourdes, Pontmain, Fátima e Banneux, os Santuários Marianos da Peneda, Sameiro e Vila Viçosa, e também de dois pai-néis, cada um com seu anjo em saudação à Virgem Maria, tendo o da direita a legenda “Ave, Maria, cheia de graça” e o da esquerda “Por Maria a Jesus”. A 15 de Setembro de 1974, por ocasião do 5.º aniversário da bên-ção da Capela, é inaugurada uma imagem do Sagrado Coração de Jesus (4,20 m de altura), de braços abertos.

Apesar da forte e persistente oposição...

O Santuário da Senhora da Paz não pára de crescer, de se afi rmar como um centro de vida espiritual e de devoção mariana. Apesar da “forte e persistente oposição de pessoas, que antes nos de-viam ajudar. A pretexto de que as aparições não foram ainda apro-

vadas pela autoridade eclesiástica (mas também não foram rejeita-das por ela), faz-se campanha e obstrucionismo contra o templo e devoção a Nossa Senhora da Paz” – lamenta-se Avelino de Jesus da Costa, em outubro de 1976.Independentemente dos con-tratempos, no ano seguinte, a 29 de maio, acontece mais um momento-alto: é inaugurado o monumento ao Coração Imacu-lado de Maria, cerimónia que é testemunhada por um elevado número de devotos. São também erigidos monumentos ao Anjo da Guarda de Portugal e à Paz, este último constituído por um pe-destal de quartzo cristalizado, em cima do qual esvoaça uma pom-ba em bronze.O local é cada vez mais um ponto de atração de peregrinos e de muitos turistas, até do estrangeiro, sobretudo ingleses, atraídos, em geral, pela beleza da magnífi ca coleção de cristais de quartzo, considerada uma das melhores do mundo.Em sintonia com o povo e o pá-roco, o Cón. Avelino de Jesus da Costa é, ao longo deste período, o grande promotor, a alma de todo este projeto que integra ainda o novo Santuário da Senhora da Paz, edifício mais recente, em sistema basilical de três naves.Hoje, este é um centro com algum movimento religioso e tu-rístico. O dia maior é o da peregri-nação que se realiza no último do-mingo de maio. Mas, ao longo de todo o ano, várias são as pessoas que por lá passam, gente devota da Senhora da Paz, gente atraída pela beleza natural de um cenário com horizontes largos e convidativos, gente interessada numa visita aos monumentos e à Biblioteca-Museu que apresenta uma rica coleção de cristais de quartzo.É um património único, mas ainda pouco valorizado, seja ao nível do turismo de natureza, seja em termos de turismo religioso e até no âmbito pastoral. Ninguém está, evidentemente, obrigado a dar crédito às apa-rições, mas qualquer pessoa de bom senso terá de convir que a Senhora da Paz possui um enor-me potencial que permanece quase virgem.As celebrações do centenário, dentro de quatro anos, bem poderão ser a alavanca capaz de transfi gurar o Barral, afi rmando-o como um centro da devoção popular no Alto Lima e um local de visita obrigatória. Deus queira que assim aconteça! E que o homem sonhe, para que a obra nasça...

Ponte da Barca, Maio de 2013

Monumento à Senhora da Paz e ao Imaculado Coração de Jesus, situado junto à Capela-santuário

Page 8: Cultura dia 22 de maio

VIII Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 22 de maio de 2013CulturaCultura

Na Revista Cultural – DOM FAFES –, da Câmara Municipal de Fafe, no volume XVII, n.º 17/18, cor-respondente aos anos de 2010 e 2011, comemorativo do centená-rio da implantação da República, entre as diversas colaborações, acentuando aspectos da história local – ensino, saúde, cultura –, avulta o artigo, subordinado ao título em epígrafe, da autoria de D. Joaquim Gonçalves, com a colaboração do Prof. Doutor António Franquelim Neiva Soares, que vamos apreciar. Iniciamos estas breves notas, observando que este estudo resultou da convergência de duas circunstâncias, de certo modo, afi ns – a conclusão do Ano Sacerdotal, que assinalou os 150 anos da morte de S. João Maria Vianney, Cura d’Ars, em Junho de 2010, e o facto de, nesse mes-mo ano, D. Joaquim Gonçalves celebrar as bodas de ouro sacer-dotais, efemérides que se propôs comemorar na dupla perspectiva: pastoral e cultural, No plano pastoral, além do apro-fundamento da doutrina sobre o sacerdócio, efectuado no contex-to das celebrações festivas, reali-zadas na diocese de Vila Real e na sua terra natal, mereceu-lhe par-ticular atenção o problema das vocações sacerdotais, de tanta importância no contexto eclesial. A dimensão cultural, iniciada pela elaboração do elenco dos páro-cos de Revelhe, que foi possível identifi car, com menção especial daqueles que o acompanharam ao longo da sua caminhada, desde a entrada no Seminário, até ao episcopado. A par desta, foi surgindo outra lista, tal como a precedente, destinada a revelar e perpetuar a memória dos padres oriundos desta mesma paróquia, fazendo-os emergir do silêncio dos arquivos paroquial e diocesa-no, este, há cem anos, apropriado pela República e, posteriormente, integrado do Arquivo Distrital de Braga.

A organização destas listas de párocos e de padres naturais de Revelhe constitui um precioso contributo para a história des-ta paróquia e traduz, de forma inequívoca, a estreita ligação de D. Joaquim Gonçalves à sua terra natal, patente também noutros aspectos do estudo em análise. Nesse sentido, assumem particu-lar relevo os apontamentos sobre a vida autónoma das paróquias de Cortegaça e Revelhe, tendo a primeira sido incorporada na segunda, em data desconhecida, mas compreendida entre 1551 e 1571, possivelmente, por decisão de D. Frei Bartolomeu dos Már-tires, de cuja actividade pastoral, através da Arquidiocese de Braga, constam outros casos similares de uniões e desmembramentos.

A título de exemplos, basta recor-dar que, em Melgaço, em 1572--1573, uniu as de Santa Maria do Campo – actualmente, evocada na igreja da Misericórdia – e a de S. Facundo à de Santa Maria da Porta, e que, dada a extensão do couto e freguesia do Mosteiro de Paderne, dela desmembrou as de

Párocos de RevelhePárocos de Revelhee Padres naturais da Paróquiae Padres naturais da Paróquia

Cubalhão e de Cousso, embora nos primeiros tempos conser-vassem uma ténue ligação à paróquia-mãe. Além de ter acompanhado a vida de Cortegaça, cuja referência mais antiga consta da doação de Pedro Toderigues à Sé de Braga, em 3 de Abril de 1157, até à sua incorporação em Revelhe, o Autor proporcionou aos inte-ressados um conjunto de infor-mações, por vezes contraditórias entre os autores citados, sobre a toponímia local, a começar pela de Cortegaça, não deixando de mencionar a arbitrariedade de alguns nomes mais recentes, que gostaria de ver alterados. Neste domínio, o caso mais estranho e incompreensível é o da barragem construída na freguesia de Reve-

lhe, mas referida como sendo de Queimadela! Também aqui, a par do pormenorizado conhecimen-to da região, é patente o amor à terra que o viu crescer.Mas o grande objectivo deste estudo era revelar os nomes dos párocos de Revelhe, ampliada com a incorporação de Corte-

gaça, e os dos sacerdotes daí oriundos, tendo identifi cado trinta e dois párocos, desde 1548 até à actualidade, e vinte e quatro pa-dres daí naturais, desde meados do século XV. Na impossibilidade de traçar a biografi a de cada um deles, estes dois conjuntos foram enriquecidos com os dados pes-soais e outras informações que pôde reunir. Como estímulo à leitura atenta da lista dos párocos, observamos, apenas, que Domingos José Pereira (1791-1797) e José Joa-quim de Araújo (1812-1850) foram Cavaleiros da Ordem de Cristo, tendo o segundo permaneci-do nas funções paroquiais, em Revelhe, quase trinta e oito anos. Em data mais recente – podendo haver, ainda, quem dele se recor-de –, pastoreou esta freguesia oP. Francisco José Galvão (1907--1930), que, além de exímio violi-nista e fl autista, ligou o seu nome à paróquia que lhe estava confi a-da, pela acção cultural, concreti-zada na organização de «Banda de Revelhe», que tanto prestígio continua a ter.Quanto aos vinte e quatro sacer-dotes naturais de Revelhe, a que, na segunda metade do século XVI, fi cou defi nitivamente ligada Cortegaça, apraz-nos anotar que os quatro últimos: José Gonçal-ves, Joaquim Soares, D. Joaquim Gonçalves e Albano Nogueira, estão, felizmente vivos, aos quais desejamos longa vida e óptima saúde. Também em relação a eles, não sendo necessário deter-nos em aspectos biográfi cos, porque bem conhecidos, vem a propósito observar que os irmãos Gonçalves (José e D. Joaquim) são naturais do lugar de Cortega-ça, que perpetua a memória da extinta paróquia, acima referida. Acerca do autor, D. Joaquim Gonçalves, seria grave omitir que, após a formação humanísti-ca e teológica nos Seminários de Braga, licenciou-se em Filosofi a, na Faculdade de Letras do Porto,

POR

PROF. DOUTOR

JOSÉ MARQUES

PROFESSOR APOSENTADO

DA UNIVERSIDADE DO PORTO

leccionou no ensino secundário e, após a ordenação episcopal, foi Bispo Auxiliar de Braga, Coadjutor e Titular de Vila Real, de que é Bispo Emérito.Os resultados deste estudo, apesar do longo período crono-lógico abrangido e não obstante algumas lacunas, são muito positivos e proporcionam dados históricos, para os tempos mais remotos, geralmente desconhe-cidos, integrando-se, por isso, nos objectivos culturais da Revista Municipal, que o acolheu. Resta, agora, esperar que, no futu-ro, surjam respostas semelhantes ao convite dirigido porD. Joaquim Gonçalves aos páro-cos da sua antiga diocese de Vila Real, no cinquentenário da sua ordenação sacerdotal, para faze-rem listas «dos seus antecesso-res, a fi m de manter viva entre o povo a memória dos respectivos pastores e estimular as vocações ao sacerdócio», convite que bem se pode tornar extensivo aos das outras dioceses portuguesas. ◗

D. Joaquim Gonçalves,Bispo Emérito de Vila Real(natural de Revelhe – Fafe)