cultura dia 10 abril-2013

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Cultura QUARTA-FEIRA • 10 DE ABRIL DE 2013 Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 29915 de 10 de abril de 2013, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente > “Igreja de S. Julian” – Salamanca, Espanha, Agosto-2012 [Foto de V. B. de Vasconcellos]

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Cultura QUARTA-FEIRA • 10 DE ABRIL DE 2013

Diário do MinhoEste suplemento faz parte da edição n.º 29915

de 10 de abril de 2013, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente

> “Igreja de S. Julian” – Salamanca, Espanha, Agosto-2012 [Foto de V. B. de Vasconcellos]

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II Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013CulturaCultura

Envio de trabalhos para publicação neste suplementoDiário do Minho

CulturaCultura Diário do Minho / Secção CulturalRua de S.ta Margarida, 4 - 4710-306 Braga; Fax: 253609469. E-mail: [email protected]

10.Abril.2013

N.º 693

No próximo sábado, na Casa da Botica – Póvoa de LanhosoNo próximo sábado, na Casa da Botica – Póvoa de Lanhoso

Escritor bracarenseEscritor bracarense Mário Escoto Mário Escotoapresenta “Sonho de uma noite de lua cheia”apresenta “Sonho de uma noite de lua cheia”

O escritor bracarense Mário Escoto apresenta no próximo sábado, 13 de abril (21h00), na Casa da Botica, Póvoa de Lanhoso, a sua mais recente obra literária – “Sonho de uma noite de lua cheia” –, publicada em outubro passado pela editora “Apenas Livros”.

“Lisbonna, anno da graça 1424”. Assim come-ça o mais recente livro do escritor bracarense Mário Escoto, simbolicamente intitulado “Sonho de uma noite de lua cheia”, editado pela Apenas Livros na coleção “Literatralhas NOBELizáveis”. Chegado aos escaparates em outubro passado, vai o autor apresentá-lo agora, com a colaboração do jornalista Pedro Antunes Vieira, ao público minhoto no próximo sábado, 13 de abril, na Casa da Botica, Póvoa de Lanhoso.Em rigor, não se trata de um conto, de uma novela ou de um romance. Esta obra é, antes, uma pequena mas sedutora nar-rativa de cordel, simultaneamente pícara e epopeica, a fazer lembrar as medievas aventuras de “cavalaria”, ainda que, proposi-tadamente, centrada num cenário tempo-ral quinhentista: num século de aventuras marítimas e... amorosas!Arrotim, personagem principal desta obra de Mário Escoto, aventureiro mestre-de--armas e quixotesco “pinga-amor”, tenta afogar no álcool das tascas lisboetas a mágoa (e o remorso) provocada pelo suicídio da sua amada Anna Godim, uma bela jovem que não resistiu à desilusão das incumpridas promessas do “herói” beirão. Redime-o dessa mágoa o navegador João Gonçalves Zarco, que por volta de 1418 ha-via descoberto a Madeira com Tristão Vaz Teixeira. Agora, cinco anos após essa des-coberta de “Lenhame” (lenho, madeira...), Zarco quer fugir do lamacento e corrupto espetro social em que se move Lisboa, e pretende refugiar-se na Ilha, povoando-a e promovendo uma organização social as-sente nos pilares da justiça, da responsabi-lidade e da igualdade. E como necessita de um mestre-de-armas, convida Arrotim para o acompanhar nessa nova aventura. Este, não sendo “homem de sossegar”, aceita o desafi o, ciente de que só assim poderá “resgatar-se” de si, da hipocrisia da capital e do frustrado amor de Anna Godim.

Mário Escoto (pseudónimo literário de Mário Joaquim Fernandes Malheiro) é licenciado em Filosofi a e pós-graduado em Arquivos e Bibliotecas. Atualmente, exerce funções de técnico bibliotecário na Faculdade de Teologia (Braga). Até hoje publicou as obras O Batedor, O Corvo de Wotan, Vernária e, agora, Sonho de uma noite de lua cheia.

Partindo desde leitmotiv, a nova aventura de Arrotim tranforma-se numa quixotesca viagem, onde a utopia e o mito do eterno retorno se fundem (e se confundem) para nos fazer refletir sobre a fragilidade e a complexidade das relações humanas, sobre a irracionalidade das paixões e, sobretudo, sobre a impossibilidade de se vivenciar o

amor em situações de solidão, de afasta-mento absoluto da estrutura social.Arrotim, o quixotesco mas também ulissia-no herói desta potente e “sôfrega” narrativa de Mário Escoto, é ainda um mitológico Sísifo que leva “o amor às costas”, pesadís-simo fardo da condição humana (no que à paixão diz respeito) – e que, chegado ao

paradisíaco cume da plenitude amorosa se vê projetado, de novo, no abismo do começo, encetando uma nova e dolorosa ascensão, pois sabe que a felicidade não se prolonga no isolamento, e menos ainda na quietude da existência, sob pena de se “morrer de melan-colia”, como aliás acontecera a dois amantes ingleses que, em 1414, se haviam refugiado na ilha da Madeira para viverem felizes para sempre, e que depressa morreram por não suportarem o isolamento...

É breve esta narrativa de Mário Escoto (tem apenas 26 págs), mas é também tematicamente muito densa e demasiado profunda para ser encarada como uma singela “história de cordel”. Ela refl ete (e faz refl etir sobre) a complexidade das re-lações amorosas e, particularmente, sobre as antagónicas “forças” do destino que o amor desencadeia no espírito humano – “forças” essas que enredam a alma numa teia da qual é muito difícil libertarmo-nos – porque desencadeia um rol de tensões, sonhos, angústias e remorsos... –, da qual não é possível fugir (a não ser, porventura, regressando às origens da viagem...).Acresce à densidade temática desta obra uma escrita eivada de ímpar dinamismo (quase diríamos: cinematográfi ca!), que seduz o leitor do princípio ao fi m. Tanto mais que o autor consegue, com ele-vado índice de sucesso, “desmontar” as habituais categorias narrativas para lhes dar uma nova roupagem literária, bem patente na polifonia de vozes e nos re-gistos espácio-temporais – tudo isto sem, contudo, enfadar o leitor, que fi ca preso à estória como se estivesse a ouvi-la di-retamente dos lábios de Sherazade (das Mil e Uma Noite) ou da boca do astuto Ulisses (contando à fi el Penélope as suas aventuras na ilha de Eana...).

Miguel de Mello

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CulturaCultura IIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013

Resumo: Esta comunicação inten-de mostrar, em toda a sua amplitu-de, a “explicação” do verso: O meu projecto de morrer é o meu ofício. Usando a palavra lâmina, como tópico de leitura, fi xamo-nos na Trilogia poética: “Explicação das árvores e de outros animais” (1998), “Homens que são como lugares mal situados” (1998) e “Dos líquidos” (2000); e em “O livro do Joaquim” (2007). A morte é lumi-nosa e polémica, como a lâmina; pronuncia o nome de “uma pes-soa” que se vai descortinando. Não deparamos com um signifi cado doloroso, ou mesmo sacrifi cial, da morte, ou do “sangue”, mas, pelo contrário, de comunhão jubilosa, de vida, de encontro defi nitivo com Cristo, o “Verbo / Tão inteiro que se fez espelho”. A morte, em última análise, “abre passagem”, é sinónimo de “páscoa”. A fulguração da morte é a Ressurreição.

* Ao morrer, noviço beneditino do Mosteiro de Singeverga, aos 28 anos de idade, em 1999, Daniel Faria não era, propriamente, um

desconhecido. Publicara cinco livros de poesia e deixara outro, na sua cela, quase pronto. Ganhara prémios em concursos poéticos (de muito limitada notoriedade, no entanto); o seu estilo de ser e de escrever a ninguém deixava insensível; acreditava-se, depois da publicação dos seus dois últimos livros, ambos de 1998, que era uma voz inovadora da poesia por-tuguesa. E a sua projecção tornou--se universal, quando veio à luz, no ano 2000, o volume Dos líqui-dos; em 2003, Poesia, reunida e completa, com alguns inéditos, a cargo de Vera Vouga e, em 2007, O livro do Joaquim, redigido numa escrita “nas suas mais diversas vertentes”, como afi rma o editor e prefaciador Francisco Saraiva Fino. Actualmente, dispomos de uma publicação, Poesia, saída em 2012, exactamente igual ao volume, Poesia, de 2003. Espera-se que a Comissão de Edição de Daniel Fa-ria, lance, com rigor e celeridade, o que falta conhecer da herança do Poeta, “tão fabulosa quão delicada de gerir” (Vera Vouga, 9).

Como tentar “explicar” o seu “tra-balho” de poeta: “O meu projecto de morrer é o meu ofício” (E, 85)? “Explicação” é uma palavra cara a Daniel Faria, mas não signifi ca esclarecer racionalmente. Etimo-logicamente, “explicar” signifi ca “estender”, como se estende, por exemplo, uma toalha sobre a mesa. Mas porque se trata de uma “iluminação”, inesperada e surpre-endente, como um relâmpago, “rigor explosivo” (H, 172), “círculo que resiste à forma da palavra” (E, 67), uso a palavra fulguração. Ful-guração tem a ver com o fulgor de Maria Gabriela Llansol? Gostaria, um dia, de compreender melhor esta “aproximação” que, por ago-ra, fi ca em suspenso. Tem a ver, sobretudo, com o sentido bíbli-co de “revelação”, “glória”, “peso”, “nome”. Fulguração torna presente “uma palavra pessoa / Uma pala-vra pregada ao silêncio de dizer-se como nunca fora ouvida“ (H, 191), “a palavra / Em carne viva. Verbo / Tão inteiro que se fez espelho” (H, 194).Pretendo, em três focos de “lei-tura” da Obra de Daniel Faria, dar

A fulguração da morteA fulguração da morte

na obra literária dena obra literária de

Daniel FariaDaniel Faria

10.04.197110.04.1971

09.06.199909.06.1999**

POR

PROF. DOUTOR

MÁRIO GARCIA, SJ

FACULDADE DE FILOSOFIA

UNIVERSIDADE CATÓLICA – BRAGA

[email protected]

Completa-se hoje (10 de Abril) mais um aniversário do nascimento de Daniel Faria – um noviço Completa-se hoje (10 de Abril) mais um aniversário do nascimento de Daniel Faria – um noviço beneditino do Mosteiro de Singeverga (Santo Tirso) que nos deixou uma obra poética ímpar. beneditino do Mosteiro de Singeverga (Santo Tirso) que nos deixou uma obra poética ímpar. Falecido prematuramente (aos 28 anos de idade), a sua obra tem sido objecto de vários estudos. Falecido prematuramente (aos 28 anos de idade), a sua obra tem sido objecto de vários estudos. O Prof. Doutor Mário Garcia, da Universidade Católica, tem sido um dos investigadores que lhe O Prof. Doutor Mário Garcia, da Universidade Católica, tem sido um dos investigadores que lhe têm dedicado especial atenção. Publicamos hoje, por isso, com a devida vénia, um texto da têm dedicado especial atenção. Publicamos hoje, por isso, com a devida vénia, um texto da autoria deste Professor – texto esse que apresentou no Congresso Internacional “Do Reino das autoria deste Professor – texto esse que apresentou no Congresso Internacional “Do Reino das Sombras. Fulgurações da Morte”, realizado na Faculdade de Filosofi a de Braga em 25 de Outubro Sombras. Fulgurações da Morte”, realizado na Faculdade de Filosofi a de Braga em 25 de Outubro de 2012 (e que foi publicado, em primeira instância, na revista “Brotéria” de Janeiro deste ano).de 2012 (e que foi publicado, em primeira instância, na revista “Brotéria” de Janeiro deste ano).

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IV Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013CulturaCultura

a ver o seu “projecto de morrer”, servindo-me da palavra lâmina. A Trilogia: Explicação das árvores e de outros animais (E), Homens que são como lugares mal situados (H) e Dos Líquidos (D), bem como O livro do Joaquim (L), constituem o “lugar”em que, particularmente, irei situar-me. Os três focos de leitura são versos de Daniel Faria. Pertencem ao livro Dos líquidos e os dois primeiros estão no mesmo poema.

1. “Ainda não sei ouvira lâmina” (D, 272)

A análise de uma palavra, no léxico de um poeta, traz, em primeiro lugar, à evidência, a sua situação material, isto é, o lugar que ocupa no interior da Obra. Lâmina com-parece, sintomaticamente, em “Explicação do poeta”, o poema central da última secção, “Últimas explicações”, de Explicação das árvores e de outros animais, entre “Explicação da gravidade” e “Expli-cação da escuta”:

Pousa devagar a enxada [sobre o ombroJá cavou muito silêncio

Como punhal brilha [em suas costasA lâmina contra o cansaço (E, 101)

No poema anterior, escreveu: “Só o pássaro vive para o voo. / Quan-do pousa é igual ao homem que se senta / Para pensar” (E, 100); e no poema seguinte: “Escuto o calcanhar do pássaro / Sobre a fl or / E não respondo” (E, 102). O pássaro e a enxada encontram-se, como a lâmina com o trabalho. As dimensões de altura e profundi-dade, voar/cavar, unifi cam-se. Não se extrai, do punhal e da lâmina, qualquer semântica dolorosa. Antes, parece-me, o não saber “responder” ao silêncio. Como se, de repente, um relâmpago calasse fundo no interior da terra, e nos deixasse sem palavra.

Ao denominar-se cavador de silêncio, o Poeta está “ligeiramen-te acima do que morre” (E, 39), recriando ou fazendo vir à super-fície tudo quanto existe: “Anun-cio e pereço. / Pedra redonda / Removida e / Redonda / Semente após a morte. Depois da mão do homem” (E, 47). O seu instrumento de trabalho também corta a água: “Caminho como um remo que se afunda” (E, 84); também abre para dentro, porta de uma “casa mártir” (E, 56), onde “a luz entra sempre de noite” (E, 57). Não se trata de sofrimento, mas do testemunho luminoso de quem trabalha contra

a morte, porque a ela se entrega, sem descanso:

Ele que é agora o que nunca [repousouO que nunca encontrará [o sítio do sossegoA não ser que haja o equilíbrio [na vertigemUma luz parada no meio [da voragem. (E, 76)

Ao falar do “nome” como “arma” – “O nome é a arma contra mim. O maior perigo. / Com os teus lábios podes destruir-me” (E, 77) – o Poeta repete a situação da lâmina contra o cansaço, mas invertendo, neste caso, o sentido. Ao pronun-ciar-se pelo peso da enxada no ombro, ou do punhal nas costas, encontra uma luz que brilha como lâmina, diz o seu “nome”, isto é, o seu trabalho de poeta. Ao afi rmar “que nunca encontrará o sítio do sossego” está a dizer o mesmo, desta vez contra a “luz parada” que

acabaria o caminho da procura, o seu “ofício”, o seu “projecto de morrer” (E, 85).

O primeiro livro da Trilogia aponta, como seta de fogo, para a vida universal, escondida, que brota da terra; lava que explode, do interior da morte, como “as casas vomitam a luz pela janela” (E, 96), desvelamento fulgurante, activo. Talvez venha ao caso sublinhar de O livro do Joaquim, estas duas citações que resumem o “ofício” de quem trabalha contra a morte: “A minha poesia é um punhal contra si mesma. Durará o tempo de um corpo ao derramar-se” (L, 67); “Não cumpras todas as promessas / É um modo muito triste de morrer” (L, 80). O Poeta identifi ca a poesia

com a vida futura; faz equivaler a morte, triste, ao cumprimento do que já se conquistou. A boca não cessa de caminhar: “Depois da fome o sabor do pão / Depois da sede o correr da água” (E, 114).

O livro de Daniel Faria, Explicação das árvores e de outros animais, poder-se-ia sintetizar nestas palavras sublimes do Cântico das criaturas de S. Francisco de Assis: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal”. Ou no lema beneditino ora et labora: a oração (abertura da boca Àquele que o nosso coração procura) e o trabalho (abertura da mão ao mundo que Ele criou para continua-rmos a criá-lo). A esta luz, compre-ende-se o verso: “Estranho é o sono que não te devolve” (E, 78). 2. “A lâmina abre passagem”(D, 272)

O ainda-não-saber explica, no

Poeta, a procura de um signifi -cado universal. Há que abrir-se ao dom da palavra, na escuta do seu silêncio fecundo. O sentido transfere-se, assim, para o objecto procurado que “abre passagem”. No segundo livro da Trilogia, Ho-mens que são como lugares mal situados, quase a meio da secção central, “Se fores pelo centro de ti mesmo”, encontramos o poema “Eliseu (1Rs 19, 19-21)”:

Preparou a refeição com a lenha [do aradoPara ser sulco na terra e resistir

Preparou a refeição com a lenha [do aradoPara ser fogo a propagar a luz

Preparou a refeição com a lenha [do aradoPorque tinha fome e o coração [em chamas

Preparou o coração com a lenha [do arado

Para ser a lâmina do arado [e o aradoA palavra em seu gume [a ferir e a gerar (H, 154)

O chamamento do Profeta implica despedida e seguimento de al-guém. Elias “lançou o seu manto” sobre Eliseu, que imediatamente deixou a junta de bois com que estava a lavrar, correu a pedir-lhe licença para se despedir da família, imolou a junta de bois, cozeu as carnes, deu de comer à sua gente, “e seguiu Elias para o servir” (1 Rs 19, 21). Daniel Faria imola o seu “coração em chamas”, juntamente “com a lenha do arado”. A matéria da imolação não é, propriamente,

a “lenha”, mas ele mesmo, numa espécie de prolepse do poema “Do sacrifício de Isaac” em Dos líquidos: “Queimará o monte, o fi lho, a lenha / A morte, as areias, a viagem / O deserto, a túnica, as estrelas // Nunca será bastante o incêndio” (D, 229). Aqui, na voca-ção de Eliseu, não se trata ainda de um holocausto. “A lâmina do arado e o arado / A palavra em seu gume” continuam “a ferir e a gerar”, abrindo passagem.

Neste segundo livro da Trilogia, inicia-se um acompanhamento de Cristo que culmina na “Cruz, rosa / Dos ventos sem direcção que não seja o centro. Coluna / Sustenta-da pelos braços como um amigo que chega” (H, 194). “Alguma coisa

trazida na palavra para dentro / Do poema – e havia uma força cega / No poema: / Era um verbo de sangue para o silêncio arder” (H, 177), sustenta todo o percurso “narrativo”. Da explicação, passa--se para a salvação; do “examinar” para o “incorporar”; dos “lugares mal situados” para o único Lugar que situa bem o Homem, porque o identifi ca com o Verbo, “palavra pessoa” (H, 191). Sem Cristo, sem a narrativa bíblica que n’Ele culmi-na, este livro não se compreende. Coloca, esta base, alguma que-bra à poesia? De modo nenhum. Universaliza-a, humanizando-a, sem nunca perder o mistério, “fon-te contínua de deslumbramento” (Vera Vouga, 9).

Se “és agora uma máquina mon-tada para a morte” (H, 138), não é em virtude de qualquer pré-determinismo – “Há um cadáver nos olhos do acaso” (H, 123)– mas em virtude de uma eleição de amor: “É um motor. E fi co a traba-lhar no mecanismo secreto / Do amor. // Sei que estou em viagem na palavra que se move” (H, 132). O centro de atracção do amor é “uma pedra nupcial” (H, 171), “uma ferida que se cura” (H, 172).

A lâmina produz a ferida, porque gera; sulca, como o amor, ”pala-vra que se move”, “à espera / De um companheiro possível para o diálogo interior” (H, 126) e “a sua espera / É a fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” (H, 128). Principia um regresso a casa, à casa verdadei-ramente nossa, porque será “uma aliança / Com o que respira” (H, 173), “uma mãe a chamar o fi lho” (H, 177). Por isso, “fi zeste-me passagem / (…) / Para me encontrares” (H, 166). Talvez nada melhor traduza esta lâmina que trespassa o coração, do que o poema “Charles de Foucauld”:

Pensa que morrerás mártir. [Entre talhasAo cair ressoará o teu corpo [sobre o bojo.

Pensa que morrerásEsta tarde. Com o sangue no [peito a marcar o umbralDa tua morada. Nu morrerásE desconhecido. Na terra [só o adornoPossui o reconhecimento

Pensa que morrerásNo chão

À tua porta.E nunca mais acabarásDe regressar (H, 167)

Quando, em O livro do Joaquim,

Ao denominar-secavador de silêncio,

o Poeta está“ligeiramente acima

do que morre”

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CulturaCultura VDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013

Daniel Faria fala da morte, traduz, em termos mais analíticos, mas não menos expressivos, esta mes-ma experiência de “querer mor-rer”, mártir (“Agora, como nunca me aconteceu, sinto-me mártir”, L, 80), perplexo, mas desprendido e livre: “Se eu um dia me suicidar, não há-de ser pela infelicidade da minha vida, mas pela felicidade da morte. Nada, como a morte às vezes, me é tão sedutor. Não é dor, nem medo, nem ausência, nem peso. É apenas essa estranha leveza de não-ser e de tão pouco ser isso. Se eu um dia me suicidar, não o farei como quem nega, mas como quem confi rma. Na sua aparente traição, será ainda gesto infi nitamente grato de quem nun-ca mereceu até o mínimo e mais desatento cuidado. Desprender--se – essa liberdade, não a maior… embora! mas liberdade – para o nada, o absurdo, ou (se houver perdão) para o mais além” (L, 73).

Não terá sido assim a morte de Cristo na Cruz? “De anunciares em silêncio / O nada que salva a minha mão perdida / Remo à superfície teimando contra / O peso âncora de fechar os olhos / E inclinar / O corpo afogado” (H, 189).

3. “Desatadopela diária lâmina” (D, 307)

Dos líquidos, a plenitude do cres-cendo que é a Trilogia, constitui um dos livros mais sedutores da poesia portuguesa contemporâ-nea. Não podemos desligá-lo dos outros dois, mas, superando-os, engloba-os, abrindo-os para o Defi nitivo. A sua organização, em sete secções, exprime, como os sete sacramentos, a plenitude da Vida Espiritual, a iniciação inces-sante para dentro de um universo sem fi m.

Na primeira secção, “Das nas-centes”, no poema “Do Livro dos Solilóquios 1”:

Que eu oiçaA tua voz desde o interior da [lâmina – ó pastorQue escutas o meu balir [no interior do rebanho.Tu és fermento que engrandece [o meu pãoEu fui-te a esponja erguida [de vinagreE ardo vivo por ser-te [o alimento.(D, 213-214)

“O interior da lâmina” explica-se por várias ocorrências convergen-tes. Cito três, nos poemas imedia-tamente anteriores: “Do Livro dos Actos dos Apóstolos”: “A luz de

Damasco golpeia. É circuncisão / Que abre, limpa” (D, 210). “Do Li-vro do Apocalipse”: “Ele sabe que o cordeiro é uma pedra que está ferida” (D, 211). “Das Instruções de São Columbano, Abade”, texto inspirado no Ofício de Leitura da Liturgia das Horas: “Quem dera que o lume / Descesse como a candeia dos que recebem quem chega / O clarão mais cortante” (D, 212).

Golpe, ferida, corte, “o interior da lâmina” (D, 213), “clarão” (D, 212), “chaga nupcial de dentro / E de fora / (…) / palavra / Trespassadora – mais do que toda a espada ta-lhante” (D, 213). Falamos do Amor, “ – um imenso motor em chama / Nos mecanismos da viagem ardente // A princípio não se sente / O amor – a humidade amanhe-cendo / O coração ressequido” (D, 221). Quando o Poeta escreve: “Deus vem com o cinzel / Silen-cioso” (D, 225) ou fala da “fenda / Voluntária” (D, 227), inspirando-se em textos de S. João da Cruz e de Santa Teresa do Menino Je-sus, não está a falar de si, mas d’Aquele de quem falam a Bíblia e os Santos, “as nascentes / No rochedo liso, no deserto impre-visto” (D, 201), onde “É quente o silêncio. É quieto de uma clarida-de / Atenta” (D, 201). O Espírito de Deus é, por assim dizer, decifrado no texto Dos líquidos, pelos textos sagrados. Como poderia não ser a morte o princípio da Vida?

Com quem se fala? Na última secção do livro, o Poeta convoca o “leitor” para lhe “explicar” que a verdade é “maior / E mais bonita do que a palavra” (D, 338), e para o convidar a aproximar-se d’Aquele que é a Verdade: “aproxima / A tua mão da paisagem que resta / Como se fora o lado do verbo que en-carnou” (D, 344), numa alusão ao gesto de Cristo que incita Tomé a meter a mão no Seu Lado (Jo 20, 27); e também a contemplá-l’O, na cena do perdão à mulher adúltera (Jo 8, 6-8): “Debruça-te como ele quando escreveu no chão” (D, 345).

Quem é, realmente, o interlocutor, com quem se dialoga?

Começa no verbo o que escrevo. [A palavraQue deixo na pequena pedra [branca Do fermento. O pão que cresce [ignorado

Começo devagar a meda rítmicaNo eixo que corta dos dois ladosE fere – os pulsos primeiro [e a língua

Porque trabalho com os dedos [e as veiasAbertas a lama onde sou terra [e água

Começa nele a primeira fonte. [AssimA pedra cresceCom seu sangue derramado. [Lâmina que deixaA sede em ambos os lábios. [ComeçaAssim levedaA meda de água. E o que escrevo [é a fonteTransformada (D, 270)

Se mais dúvidas houvesse em identifi car “a fonte”, “o lugar do golpe” (D, 282) “a semente” que “está poisada no lugar de padecer” (D, 284), bastaria a clara alusão que se segue, aos Evangelhos deS. João (Jo 10, 1-16; 19, 31-37) e de S. Lucas (Lc 15, 4-7), para vermos que se trata de Cristo: “a dolorosa / / Chaga do pastor / Que abriu o redil no próprio corpo e sai / Ao encontro da ovelha separada” (D, 285).

Daí, a força que assume a expres-são: “Desatado pela diária lâmina / Na condição da luz encarcerada no astro / Para ser nas viagens sinal” (D, 307). No mesmo poe-ma, na mesma página, fala-se do “Gume / Invejando o relâmpago / Rápido” e “Do amor” “Que não deixa o corpo por um pouco / De-sejar // Qualquer coisa diferente de morrer” (D, 307). Que será esse desejo de morrer, que o amor não só não suprime, mas impele e es-timula, senão já, em sacramento, “a mesa da aliança” (D, 286), essa “diária lâmina” que nos desata?

A Fulguração da Ressurreição de Cristo e nossa?

O livro do Joaquim vai na mes-ma linha, ao afi rmar, com lugar e data, Porto, 27 de Novembro de 1993: “Não recuses nenhum dos teus limites, só eles dizem a grandeza do que tens” (L, 78). O maior limite que nós temos, é a morte. Não recusar a morte é um sinal de amor. No diálogo poético entre os Meninos e a Amada, “Bal-tar, há bastante tempo”, o lugar da infância aparece numa antiquís-sima idade, antes de haver tem-po ou para além dele. A Amada anseia pelo “vento” e pergunta aos Meninos se viram “Os ramos no seu agitar / E o galope de um ca-valo branco / Uma sombra e seu cavaleiro” (L, 82). “Morro de dor e saudade / E dentro dos meus ou-vidos / Estala um grito de sangue”; “Morro de dor e desgosto / Meu corpo trespassarei / No fi o destas ameias” (L, 83). Pede aos Meninos que peçam ao vento “Alento para esperar / (…) / Alento para morrer” (L, 84). O Cântico dos Cânticos, na voz da Amada, entrara, fulgurante, em Dos Líquidos, secção terceira, “Do inesgotável”:

Enquanto tenho o lume corroEnquanto sou a labareda [e a força de queimar

Ao meio-dia – diz-me ó que vais [descendo – ondeTe apascentasPara que também eu coma, [para que também eu corraEnquanto as folhas estão [orvalhadas

Enquanto o sol marca [na sombra da horaA transumância. EnquantoA corrida me abrasa (D, 254)

Conclusão

Alguns dos maiores poetas do Ocidente foram grandes “espiritu-ais”: Homero, Virgílio, Dante,S. João da Cruz… E nem por isso, ou talvez por causa disso, a sua Obra nunca cessou de fulgurar. Daniel Faria pode colocar-se, pequenino, aos ombros desses Gigantes, como o Menino Jesus às cavalitas de S. Cristóvão...

“A videira testamentária – mãe / Bíblica no eixo da casa” (D, 339), é a chave de leitura da sua Obra. Os três últimos livros formam uma Trilogia, que não pode ser sepa-rada. Uma Trindade indivisível. A Economia da Salvação, ou, como diria Gil Vicente, um Breve Sumá-rio da História de Deus. Desde o

Princípio até ao Fim, desde o Gé-nesis ao Apocalipse, tudo se resu-me na Encarnação do Verbo. Não insiste na “via dolorosa”, como se poderia pensar pela frequência da palavra “sangue”, interpretada como sinónimo de sofrimento. “Sangue”, na Obra de Daniel Faria, como na Bíblia, signifi ca “vida”. Equivale mais à “via gloriosa”: a vida oferecida pela salvação do mundo, a plenitude da alegria e do amor. Por isso, a palavra do Poeta pretende a fulguração de Cristo, o Homem-Deus-crucifi ca-do-e-ressuscitado.

Daniel Faria fala com Ele e d’Ele, “na transumância dos animais que buscam os pastos mesmo quan-do morrem” (D, 301). A “transu-mância” é a páscoa de Cristo, a Sua Ressurreição, “o relâmpago / Rápido” (D, 307), “o clarão mais cortante” (D, 212), a “diária lâmina” (D, 307) que trespassa o “coração paralítico” (D, 212). É Ele “a ferida incendiária / (…) / a lâmpada / Sempre acesa para nunca se que-brar. / (…) / A corrente // O amor que as águas não podem apagar” (D, 212):

Amo-te na carne que tomaste [do chão que aplainoCom as mãosCom as palavras que escrevo [e apagoNa areia, no cérebro.Amo-te com o cérebro em feridaPensando-teRemédio que derramas em mim [a tua medicina, a morteNo meu corpo. Até que repouse [como enfermoNo teu leito. Amo febrilmente [amo o diaEm que disseres: LargaA tua enxerga! – E ande (D, 246) ◗

Referências:

FARIA, Daniel, Poesia, edição de Vera Vouga, Assírio & Alvim, docu-menta poetica/ 144, Porto Editora, 2012. Esta edição integra todos os livros de poesia já publicados e alguns poemas inéditos. Cito a página, com a letra inicial assinalada do livro: E (Explicação das árvores e de ou-tros animais, 1ª ed. 1998);H (Homens que são como lugares mal situados, 1ª ed. 1998); D (Dos líquidos, 1ª ed. 2000).

Faria, Daniel, O livro do Joaquim, edição e prefácio de Francisco Saraiva Fino, 1ª ed., Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2007.Cito com a letra L, indicando a respectiva página.

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VI Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013CulturaCultura

Rua CentralRua Central– novo livro de José Bento Silva – novo livro de José Bento Silva sobre a Póvoa de Lanhososobre a Póvoa de Lanhoso

POR

EDUARDO JORGE

MADUREIRA LOPES

Trazer uma inscrição dramática, visível num campo de concentra-ção nazi, para o início da apresen-tação de um livro sobre as ruas de um município português pode, talvez, parecer pouco propositado. A verdade é que a recordação des-sas palavras, gravadas no campo de Bergen Belsen, na Alemanha, se foi impondo à medida em que ia avançando a leitura desta Rua Central, de José Bento Silva. Elas encontram-se reproduzidas em As Rosas de Atacama, um livro de Luis Sepúlveda. Conta o escritor chileno que, numa extremidade do campo e muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de uma pedra, viu que «alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou de um prego, o mais dramático dos apelos: ‘Eu estive aqui e ninguém contará a minha história’».Afi rma Sepúlveda que terá lido uns mil livros, mas nunca um texto lhe pareceu “tão duro, tão enigmático, tão belo e ao mesmo tempo tão dilacerante como aquele escrito sobre uma pedra”. O escritor diz não saber se a frase foi escrita por quem pensava “na sua saga pessoal, única e irrepetível” ou “em nome de todos aqueles que não

aparecem nos noticiários, que não têm biografi as, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida”. A dúvida acabaria por se transformar numa evidência que impôs ao escritor a necessidade de salvar do anonimato diversas pessoas, o que foi feito relatando as suas histórias em As Rosas de Atacama.

Salvar os anónimosdo esquecimento

José Bento Silva faz exactamente o mesmo. Impelido por razões distintas, mas sob idêntico impera-tivo ético, salva do anonimato um incontável número de povoenses e essa generosidade é um dos pri-meiros méritos do livro Rua Cen-tral, que merece ser devidamente reconhecido. A tarefa impôs, como bem se compreenderá, um imenso labor. Foi imprescindível percor-rer as ruas, claro. Andar e ver. Foi necessário ler muito. Foi preci-so, por exemplo, folhear muitos jornais para aí colher pequenas notícias anódinas publicadas ao longo dos anos, conferindo-lhes uma segunda vida, uma inespe-rada actualidade. E foi igualmente imperioso ouvir pessoas. Este livro testemunha, com eloquência, a escuta de muita gente, de mulhe-res e de homens que falam de si e de quem os precedeu. E talvez não seja ilegítimo imaginar que não faltarão os que talvez tenham tido,

pela primeira vez, a oportunidade de evocar os seus com tempo e orgulho.

Em Rua Central, abundam pro-tagonistas, heróis e vítimas de pequenas histórias de todo o género, de casos de encontros e desencontros, de cenas de amo-res e desamores, de episódios de pancadaria ou de generosidade. E quantos deles com alcunhas que se revelam, por si só, como igni-ção sufi ciente da imaginação. “‘Ah, falta dizer que a alcunha ‘mordica’ nos vem de um antepassado que, nas festas e romarias, gostava de mordiscar as raparigas’”, revela João Mordica ao autor.Em algumas ocasiões, José Bento toma de empréstimo um proce-dimento literário usado por José Saramago e, aconselhado pelo narrador de Memorial do Conven-to que diz: “Já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os no-mes escritos, é essa a nossa obri-gação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí fi cam, se de nós depende”, regista no-mes que lhe foram sendo falados. Deste modo, livra do esquecimen-to tanta gente que, para, de novo, usar as palavras de Sepúlveda, não aparece nos noticiários, não tem biografi a, mas apenas uma rapida-mente esquecida passagem “pelas ruas da vida”. Pelas ruas da Póvoa de Lanhoso.

José Bento Silva não esquece os anónimos. Gente, todavia, com alma, escreve o autor. “Uma alma tão grande que lá do alto da Bela abraçava a vila toda; zés-ninguéns duma sociedade que a imprensa local destacava com os epítetos de pés-descalços (os da patuleia), ralé, populares, descamisados”. Mas, como é de regra num livro sobre ruas, evoca também os que tiveram nome e obra na Póvoa de Lanhoso e fora dela.

Figuras da História de Portugalnas ruas da Póvoa de Lanhoso

Por vezes, ao longo dos anos, foi a comoção de um momento histórico que guiou as escolhas toponímicas.Serpa Pinto teve direito a um largo. Conta José Bento: “Deu-se o Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890 e Portugal levantou-se patrioticamente contra “a infame Inglaterra. E a vila da Póvoa não fi cou atrás nessa maré de indigna-ção e fervor patriótico”. Como Ser-pa Pinto “era o herói do momento”, por iniciativa da Liga Democrática da Póvoa de Lanhoso, o presidente da Câmara propôs, um mês de-pois, que o major desse o nome ao Largo da Fonte.No início do século XX, mal co-meçado o mês Outubro de 1910, um doente mental com a fobia da perseguição assassinou o psiquiatra Miguel Bombarda, que

tinha feito o curso com uma tese sobre o Delírio das Perseguições. Implantada a República, a Póvoa de Lanhoso exara “um voto de profundo sentimento pelo faleci-mento do avalizado médico psi-quiatra Doutor Miguel Bombarda” e atribui-lhe o nome de uma rua. Outro chorado herói republicano, Cândido dos Reis, que se tinha suicidado por julgar derrotado o golpe para depor a monarquia, empresta o nome a um largo da vila, que também se afi rma con-doída com o desaparecimento do almirante.Quando o século XX se enca-minhava para o fi m, no dia 4 de Dezembro de 1980, um acidente de aviação, ainda hoje envolto em polémica, provoca a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e do ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa. Ambos serão, por essa outra trágica cir-cunstância, nome de ruas.Quem pretender estudar a re-cepção que os grandes aconteci-mentos históricos tiveram no que ainda se continua a designar por província, adianta muito trabalho lendo este livro. Algumas pas-sagens de Rua Central ajudam a compreender certos períodos da História de Portugal, no que tiveram de mais mesquinho ou de mais nobre.Como ainda há não muito tempo se recordou na iniciativa “Póvoa de Lanhoso e a sua herança”, não

“Outro opositor do sacerdote e político [padre José Dias], sendo, contudo, seu amigo, foi Adolfo João de Figueiredo, outro nome de rua. Em 1934, apresentou-se na pia do baptismo com quatro fi lhos para baptizar, duas meninas – a Liberdade Armanda e a República Isolina – e dois rapazes – o Armando Lenine e o Bento Staline. Armando Lenine contou a José Bento que, contra o que pode parecer ób-vio, o pai tinha feito uma pequena cedência ao padre José Dias, ao escolher os segundos nomes das raparigas – Armanda e Isolina – e os primeiros nomes dos rapazes – Armando e Bento.”

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CulturaCultura VIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013

faltaram aqui fi guras históricas e personalidades exemplares. José Bento evoca-as com justeza, do-cumentando o essencial daquilo que fi zeram para serem credoras da admiração e estima povoense.

Protagonistas de tensõese confl itos políticos

Mas a vila também teve prota-gonistas de tensões e confl itos. Muitas vezes, por razões políticas. Antes de 25 de Abril de 1974, não se conseguia escapar à infl uência do padre José Dias, pároco da Póvoa de Lanhoso e presidente da Câmara Municipal. Chegou à Póvoa de Lanhoso no dia 19 de Março de 1925 e, passados alguns anos, já era proprietário de uma parte substantiva dos campos de Valdemil. Comenta José Bento que “é o que se chama a magia da multiplicação dos campos”. Admirado e detestado, para usar termos do autor, encontramo-lo omnipresente neste livro, embora não tenha o nome em qualquer rua, ao contrário de, por exemplo, João Augusto Ribeiro de Car-valho, um dos que se lhe opôs. O antagonismo era, aliás, de tal monta que João Carvalho, res-ponsável, em 1901, pelo reinício da publicação do semanário Maria da Fonte, deixou uma “Carta de Consciência” para ser aberta após a sua morte. Nela, como conta José Bento, impunha um enterro civil, por não querer, “por princí-pio algum”, que o cadáver fosse acompanhado ao cemitério pelo padre José Dias.Outro opositor do sacerdote e político, sendo, contudo, seu ami-go, foi Adolfo João de Figueiredo, outro nome de rua. Em 1934, apresentou-se na pia do baptismo com quatro fi lhos para baptizar, duas meninas – a Liberdade Armanda e a República Isolina – e dois rapazes – o Armando Leni-ne e o Bento Staline. Armando Lenine contou a José Bento que,

contra o que pode parecer óbvio, o pai tinha feito uma pequena cedência ao padre José Dias, ao escolher os segundos nomes das raparigas – Armanda e Isolina – e os primeiros nomes dos rapazes – Armando e Bento.

Os protagonistasque são vítimas

Rua Central permite traçar um mapa das zonas de risco. Os pro-tagonistas têm, aqui, o estatuto de vítimas. Entre os locais mais peri-gosos do século XIX, encontrava--se a Rua do Castelo. Aí, no dia 9 de Julho de 1885, o marceneiro Joaquim António Ferraz fi cou na penúria porque lhe arrombaram a casa e roubaram os instrumentos de ofício. No dia 18 de Maio de 1890, foi o caseiro de João Baptis-ta Antunes Guimarães que viu a casa assaltada, tendo fi cado sem alguma roupa e lenços de lã e de seda, no valor de 12 mil réis. Uma outra notícia recolhida por José Bento informa-nos que, na mes-ma rua, no dia 29 de Janeiro de 1888, um rapaz, chamado António Joaquim Cláudio, bateu na mãe, Maria Cláudia.José Bento não se limita a trans-crever “faits divers” noticiados pela imprensa. Interroga-os também, para mostrar a ideologia que através deles se transporta. Refe-rindo que, em 1906, a imprensa local mostrava o lado mais per-verso das peculiaridades da vida no Lugar da Portela, num bairro dominado pela pobreza e pela marginalização social, o autor desconstrói com ironia uma no-tícia sobre uma cena de pugilato que ali tivera lugar, fazendo notar o exagero da comparação entre o Lugar da Portela povoense e a Mouraria lisboeta; o delírio hiper-bólico na caracterização do lugar (“ali, onde a devassidão campeia infame, mais impudicamente que o vício nos bacanais da Roma antiga”); ou o excesso de uso do

dicionário (“o sangue espadanou, o insulto referveu, as blasfémias uivaram”). As voltas e a lógicada toponímia

Rua Central é um livro sobre to-ponímia. José Bento verifi ca com rigor as explicações para certos nomes. Por vezes, tem de as rejei-tar. “Fantasias românticas, etimo-logias simplistas que não devem corresponder a nada”, escreve

«Este livro, diz José Bento [na foto ao lado], “é uma deambulação, inte-ressada e apaixonada, pelos caminhos da vila e freguesia da Póvoa de Lanhoso”. Poder usufruir de uma visita guiada de um modo tão fascinante, durante a qual nos são mostrados lugares encantadores e nos é apresen-tada tanta gente inesquecível, é um privilégio para qualquer leitor.»

uma vez, quando escasseavam as pistas para esclarecer o topónimo Alto da Bela ou Laje da Bela. Em outras ocasiões, impõe-se censu-rar as inconstâncias toponímicas. “À política toponímica da Póvoa de Lanhoso bem pode aplicar-se o velho ditado de ‘cada cabeça cada sentença’, variando os crité-rios de comissão para comissão, ou de vereador para vereador”, escreve José Bento sobre o facto de haver ruas de novas urbaniza-ções sem nome próprio. Também

pode ocorrer a necessidade de lembrar o mais elementar. Citan-do Zilda Cardoso, autora de Rua Paraíso, faz-se notar que “‘é essa a lógica da toponímia… que a rua dos ferradores se chame Rua dos Ferradores’”.

O povo num país rural

Como fez em outros livros, José Bento escolhe um tema e ensina-nos muito, não só sobre a Póvoa de Lanhoso e o Minho, mas

«“Às vezes até penso que a vila da Póvoa era uma terra envergonhada da sua própria condição e natureza. Os campos, as hortas e os quintais eram a sua essência, a sua retaguarda, o seu sustento. Os campos faziam parte da sua identidade, do seu próprio nome (campo das Lourenças, campo do Lameirão, campo Barbosa e Castro, campo do Amparo, campo da Feira). Mas detestava o povo, sacrifi cava-o no trabalho, explorava o seu suor, mantinha-o analfabeto, desonrava as suas fi lhas, maltratava as criadas, humilhava-o nas repartições públicas, embebedava-o nas tabernas escuras e mal cheirosas, mantinha-o a broa e a caldo de couves sem azeite, enfi m, tinha nojo dele”.»

Castelo da Póvoa de Lanhoso e Capela de Nossa Senhora do Pilar

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VIII Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 10 de abril de 2013CulturaCultura

também sobre Portugal. O povo e o país rural dos séculos passados e de até há pouco encontra-se aqui muito bem retratado.Retratado, analisado e denuncia-do, como sucede neste extracto: “Às vezes até penso que a vila da Póvoa era uma terra envergo-nhada da sua própria condição e natureza. Os campos, as hortas e os quintais eram a sua essência, a sua retaguarda, o seu sustento. Os campos faziam parte da sua identidade, do seu próprio nome (campo das Lourenças, campo do Lameirão, campo Barbosa e Castro, campo do Amparo, campo da Feira). Mas detestava o povo, sacrifi cava-o no trabalho, explora-va o seu suor, mantinha-o anal-fabeto, desonrava as suas fi lhas, maltratava as criadas, humilhava-o nas repartições públicas, embe-bedava-o nas tabernas escuras e mal cheirosas, mantinha-o a broa e a caldo de couves sem azeite, enfi m, tinha nojo dele”.

Os brasileiros e os comerciantesda Póvoa de Lanhoso

A Póvoa de Lanhoso foi também obra de quem do campo emi-grou. Para o Brasil, como António Ferreira Lopes, em 1857. Para regressar benemérito. Afi rma José Bento que é consensual ter sido ele “o grande impulsionador do urbanismo moderno da Póvoa de Lanhoso”.Do generoso legado de António Ferreira Lopes, dá boa conta Rua Central. “O hospital foi porven-tura a obra mais importante para António Lopes, à qual ele devotou mais amor, mais entusiasmo e mais carinho”, mas, para usar o

exemplo que para aqui mais inte-ressa, pode-se reter que, em 1927, em testamento, “deixou duzentos contos para construir um prédio em condições modernas e higié-nicas, onde pudessem funcionar conjuntamente as escolas primá-rias para rapazes e raparigas”.Tendo, igualmente, enriquecido no Brasil, e embora não sendo povoense, Joaquim Ferreira dos Santos, o Conde de Ferreira, conhecido pelo hospital que ofereceu à cidade do Porto, legou, em 1866, mil e duzentos réis para a edifi cação de uma escola de instrução primaria na Póvoa de Lanhoso.A vila fez-se ainda de comer-ciantes. A vasta informação sobre a vida comercial povoense suscita, aqui e ali, espanto. É que, no século XIX, havia lojas com produtos que apenas con-sultando o dicionário (ou nem assim) se descobrirá o que são. Em 1897, no Largo do Amparo, havia uma loja de fazendas e mercearias. “Chamava-se a Loja do Povo e era do comerciante José da Paixão Bastos”. Nela, havia “fazendas, casimiras [pano de lã fi no e entrançado], chevio-tes [tecido inglês de lã], picoti-lhos [variedade de picote menos grosso. Picote – 1. pano gros-seiro de lã ou burel; 2. ponto de renda], mercearia e arroz”. Um dos produtos com o nome mais enigmático era o “caspolbento”, um remédio santo contra a cas-pa e a queda de cabelo, vendido na Loja dos Tabelados, no Largo de António Ferreira Lopes.Motivo de espanto é, igualmen-te, saber que apenas se tornou possível aprender a conduzir

numa escola da Póvoa de La-nhoso a partir de 1984, ano em que começou a funcionar a escola de instrução de condu-ção automóvel “Maria da Fonte”. A estupefacção é tanto maior quanto sabemos que Amândio de Oliveira foi um dos “pioneiros do transporte público em Portu-gal”, ao apresentar, em 1926, no dia 28 de Março, em Garfe, onde nascera, o seu primeiro veículo motorizado de transporte colec-tivo de passageiros.Rua Central revela-nos anúncios simples e, com certeza, efi cazes. Não abusavam, como agora, do vício parolo de os sobrecarregar com palavras e expressões de língua inglesa. O Barateiro da Póvoa dizia ser “a casa que mais barato vendia e melhor sortido apresentava”; e a Casa das No-vidades, “uma casa nova com experiência antiga, para honrar o comércio da Póvoa”.Alguns registos que José Bento reproduz evidenciam a existência de actividades comerciais na Rua da Feira e Largo da Feira desde o início do século XVIII. A importân-cia de que a feira se revestia é tes-temunhada pela abundante docu-mentação fotográfi ca apresentada (e sendo impossível referir tudo o que nesta obra é apreciá-vel, aproveite-se o pretexto para referir a mais-valia que representa a abundante inclusão de fotogra-fi as do autor e de arquivos).Em Rua Central – mais um mérito a acrescentar à já longa lista – apren-de-se muito sobre, por exemplo, a arquitectura doméstica, o urba-nismo, os ofícios, o comércio, os serviços, a vida quotidiana, as festas ou a religiosidade.

Milagres, clamorese peregrinações

A rotina povoense é, obviamente, quebrada em momentos espe-ciais. São de natureza religiosa algumas dessas ocasiões em que o tempo entra numa medida diferente da do quotidiano, tam-bém ele muito impregnado de religiosidade.No dia 13 de Setembro de 1951, a Póvoa de Lanhoso recebe a ima-gem peregrina de Nossa Senhora de Fátima. “Milhares de luzes bri-lhavam na terra como as estrelas no céu”, diz o relato recuperado por José Bento. Na despedida, no dia seguinte, houve “lágrimas, pre-ces e aclamações”. E “milhares de lenços a acenar”. O protagonismo é da multidão, mas, pouco tempo depois, um novo relato tem um protagonista individual: “O meni-no – António Martins dos Reis, de 8 anos de idade, fi lho de Bernardi-no dos Reis e de Maria Joaquina Martins, da Portela – depois da Bênção dos Doentes, foi para casa de seus pais, com muleta, e, passado pouco tempo, deixou-as em casa e foi passear pelo lugar e pela vila, causando admiração a todos os que o conheciam, desde criança, agarrado às muletas. […] Toda a gente o viu, toda a gente o vê”.Momentos especiais eram, com certeza, os clamores, que se realizavam muitas vezes na antiga capela do Amparo. Os clamores, explica José Bento, eram orações, procissões ou peregrinações que se realizavam em honra de um santo ou santa, ou como forma de penitência e para rogar ajuda em momentos

de afl ição, doença ou calami-dade. “Mas havia clamores que eram obrigatórios e se realiza-vam em dias calendarizados”. Na Póvoa, em 1874, “‘era de anti-quíssimo e imemorial uso e cos-tume efectuarem-se anualmente quatro clamores”, em honra da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, em comemoração do Anjo Custódio, em reverência de S. Francisco de Borja, e em devoção do Patrocínio de Nossa Senhora.Outras práticas devocionais, associadas a outros lugares, podiam ser citadas, como, por exemplo, as peregrinações à Senhora do Pilar. E poderia continuar-se o percurso que nos leva dos hagiotopónimos, como o lugar de S. Brás, bispo e mártir em 316, que se celebra a 3 de Fevereiro, na “romaria dos poses”, até a ruas com nomes únicos, como a Rua do Ferro de Engomar, assim designada por causa de um edifício de 1902 que se assemelha a um ferro de engomar. Podería-mos continuar, mas é tarefa im-possível sinalizar tudo o que faz a imensa variedade de Rua Central.

Este livro, diz José Bento, “é uma deambulação, interessada e apaixonada, pelos caminhos da vila e freguesia da Póvoa de Lanhoso”. Poder usufruir de uma visita guiada de um modo tão fascinante, durante a qual nos são mostrados lugares encantadores e nos é apresentada tanta gente inesquecível, é um privilégio para qualquer leitor. ◗

[Este texto serviu para apresentação do livro Rua Central, de José Bento Silva,

numa sessão realizada no dia 25 de Janeiro, na Póvoa de Lanhoso]

Maria Eugénia é autora de dois opúsculos cujas vendas se destinam, parcialmente, a finalidades solidárias. O primeiro volume intitula--se “Surpresa Silenciosa” e

Dois opúsculos de Maria Eugénia com fi ns solidários

é composto por mais de meia centena de textos poéticos; o segundo, intitulado “Vamos con-seguir neste mundo insensível”, foi escrito, segundo afirma a própria autora, para “mostrar os problemas que as mulheres têm para engravidar e durante o pe-ríodo de gestação”. É composto por um conjunto de textos em prosa poética, nos quais Maria Eu-génia explora, com grande realismo, as difi culdades e as angústias – mas também as alegrias – de quem ota por ser mãe. Uma parte substancial das re-ceitas destes dois volumes, que

já estiveram expostos no edifício do Turismo, em Braga, revertem a favor de instituições que apoiam doentes crónicos, nomeadamen-te nas áreas da paramiloidose e da insufi ciência renal (sujeitos a hemodiálise).Apesar de ter uma profissão que em nada se relaciona com a arte literária, Maria Eugénia tem-se de-dicado à escrita e também à pintura (neste última componente já expôs no Turismo e na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva). O grande talento que demonstra na pintura também reverteu efeitos nos dois opúsculos, já que as capas dos mesmos repro-

duzem quadros da autora.Muito mais do que se tornar co-nhecida como escritora ou pin-tora, Maria Eugénia (a ausência de sobrenomes é prova disto mesmo...) pretende contribuir para ajudar as pessoas que se encontram em difi culdades, par-ticularmente aquelas que, em razão das doenças acima referidas, “sofrem caladas”.Os textos destes dois volumes apresentam-se ao leitor como uma torrente de sentimentos, onde o quotidiano é presença per-manente e a esperança é caminho apontado ao futuro. M.M. ◗

Maria Eugénia,a autora dos opúsculos solidários