cultura afro ed infantil

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  • BrasliaMinistrio da Educao

    2014

  • Realizao: Ministrio da Educao (MEC) e Universidade Federal de So Carlos (UFSCar)

    Cooperao: Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cultura e Cincia (UNESCO)

    Elaborao do texto final: Nilma Lino Gomes (UFMG) Coordenadora

    Cludia Lemos Vvio (Unifesp)

    Maurilane de Souza Biccas (USP)

    Shirley Aparecida de Miranda (UFMG)

    Reviso tcnica: Setor de Educao da Representao da UNESCO no Brasil

    Projeto grfico e reviso do texto: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes

    da Representao da UNESCO no Brasil

    Ilustraes: Estdio Amarelo

    Rafael Hildebrand

    Foto da capa: UNESCO/Mila Petrillo

    Tiragem: 150.000

    Equipe de colaboradoras: Andreza Mara da Fonseca

    Edilene Perptua Socorro

    Lisa Minelli

    Maria Aparecida Silva Bento

    Marlene Arajo

    Micheli Virgnia de Andrade Feital

    Rita de Cassia de Freitas Coelho

    Brasil. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso.

    Histria e cultura africana e afro-brasileira na educao infantil / Ministrio da

    Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso. --

    Braslia : MEC/SECADI, UFSCar, 2014.

    144 p.; il.

    Incl. Bibl.

    ISBN: 978-85-7994-083-5

    1. Educao infantil 2. Histria da frica 4. Histria afro-brasileira 5. Relaes tnico-raciais

    6. Cultura africana 7. Cultura afro-brasileira 8. Brasil 9. frica I. Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) II. Ttulo

    2014 Ministrio da Educao

    A reproduo desta publicao, na ntegra ou em parte, permitida desde que citada a fonte.

    Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica Internacional com o Ministrio

    da Educao no Brasil, o qual tem como objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de

    melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis

    pela escolha e pela apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so

    necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao

    longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica

    de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    Esclarecimento: o MEC e a UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo da igualdade de gnero, em todas suas atividades e aes. Devido especificidade da lngua portuguesa, adotam-se nesta publicao os termos no gnero

    masculino para facilitar a leitura, considerando as inmeras menes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam

    grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gnero feminino.

    Impresso no Brasil

  • SUMRIOAPRESENTAO ....................................................................................................... 7

    INTRODUO ........................................................................................................... 11Educao, frica e histria e cultura afro-brasileira ......................................................12Infncia e luta por direitos ............................................................................................................16

    A proposta do livro ............................................................................................................................19 Tecendo projetos, cruzando histrias ....................................................................................22 Como os projetos esto organizados? ..................................................................................25 Algumas recomendaes .............................................................................................................28 Bibliografia ..............................................................................................................................................30

    1 Projeto: Espao Gri ............................................................................................. 33 1.1 O que desenvolver no projeto? .........................................................................................39 1.2 O que aprender? .........................................................................................................................41 1.3 O que as crianas j sabem? ................................................................................................43 1.4 Com as mos na massa: Espao Gri para crianas de 0 a 3 anos ...............45

    Atividade 1: Ancestralidade ...........................................................................................45Atividade 2: Contao de histrias africanas .......................................................52

    1.5 Com as mos na massa: Espao Gri para crianas de 4 a 5 anos ...............59Atividade 1: Ancestralidade ...........................................................................................59Atividade 2: Contao de histrias africanas .......................................................67Atividade 3: A memria da palavra ...........................................................................73

    Bibliografia de material infantojuvenil ..............................................................................80 Bibliografia ..........................................................................................................................................83

    2 Projeto: Capoeira ................................................................................................. 85 2.1 Conhecendo um pouco a capoeira ................................................................................85

    2.1.1 Capoeira como resistncia ................................................................................882.1.2 Capoeira como esporte .......................................................................................902.1.3 Capoeira como contribuio aos processos de formao ............91

    2.2 O que vamos aprender no Projeto Capoeira? ..........................................................922.2.1 Corporeidade ..............................................................................................................922.2.2 Sociabilidade ...............................................................................................................942.2.3 Musicalidade ................................................................................................................97

  • 2.3. Eixos de trabalho com o Projeto Capoeira............................................................99Eixo 1: Construo de atitudes e valores ..............................................................99Eixo 2: Apropriao e utilizao de mltiplas linguagens (oral, musical, corporal e plstica) como forma de expresso.................101

    2.4 O que as crianas j sabem? ...........................................................................................103 2.5 Com as mos na massa: Projeto Capoeira para crianas de 0 a 3 anos ...104

    Atividade 1: Os sons da capoeira ........................................................................104Atividade 2: Os movimentos da capoeira .....................................................112

    2.6 Com as mos na massa: Projeto Capoeira para crianas de 4 a 5 anos .............................................................................................114

    Atividade 1: Os sons da capoeira ........................................................................115Atividade 2: Os movimentos da capoeira .....................................................122

    Bibliografia de material infantojuvenil .............................................................................124 Bibliografia .........................................................................................................................................124

    3 Quitanda ................................................................................................................1273.1 Livros..............................................................................................................................................1273.2 Colees ......................................................................................................................................1363.3 CDs, DVDs e canes ...........................................................................................................1393.4 Sites .................................................................................................................................................1413.5 Contao de histria............................................................................................................142

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    APRESENTAO

    A educao a arma mais forte que voc pode usar para mudar o mundo.

    Nelson Mandela

    O Ministrio da Educao (MEC), a Representao da UNESCO no Brasil e a Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), tm a satisfao de apresentar o livro Histria e cultura africana e afro-brasileira na educao infantil. A publicao objetiva contribuir com os sistemas de ensino para a insero de contedos que relacionem a histria e a cultura da frica e dos afro-brasileiros no currculo da educao bsica, para reforar o compromisso com o fortalecimento dos laos existentes entre o Brasil e a frica. O livro faz parte das aes realizadas no escopo do Programa Brasil-frica: Histrias Cruzadas, desenvolvido por meio da parceria entre a Representao da UNESCO no Brasil e o Ministrio da Educao, por intermdio da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (SECADI) e conta com a expertise da Universidade Federal de So Carlos.

    No Brasil, a partir da promulgao da Lei n 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, foi estabelecido um marco legal, poltico e pedaggico de reconhecimento e valorizao das influncias africanas na formao da sociedade brasileira e do protagonismo da populao afro-brasileira na formao social, poltica e econmica do pas. Foram criadas, ainda, formas efetivas para o enfrentamento e a eliminao do racismo e da discriminao nos contextos educacional e social. Desde ento, tanto o Ministrio da Educao quanto a Representao da UNESCO no Brasil tm concentrado esforos para produzir contedos e materiais pedaggicos voltados para a formao inicial e continuada de professores(as) vinculados(as) educao bsica.

    No que tange educao infantil, pesquisas realizadas a partir da dcada de 1980 tm demonstrado a existncia de comportamentos preconceituosos e de atitudes discriminatrias em relao s crianas pr-escolares e entre elas, alm de apontar que o cuidado e a educao destinados s crianas pequenas so desiguais, sendo essas desigualdades relacionadas, em sua maioria, aos seus pertencimentos tnico-

  • 8Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    raciais. Em se tratando de professores(as) que se ocupam da educao voltada a essa faixa etria, as posturas discriminatrias se evidenciam pela ausncia de reconhecimento das diferenas de origem, pelos maus-tratos e principalmente pelo silncio diante de situaes de discriminao vivenciadas pelas crianas negras no espao escolar.

    Nesse sentido, para as instituies parceiras, o livro ora apresentado se configura como uma ferramenta fundamental, porque disponibiliza tanto para os(as) professores(as) responsveis e compromissados(as) com a educao da primeira infncia, quanto para os interessados de modo geral em uma educao e em um pas justo e igualitrio, contedos slidos para a formao e o conhecimento sobre a riqueza, as diferenas e a diversidade da histria e da cultura africana e suas influncias na histria e na cultura do povo brasileiro, em especial, da populao afro-brasileira.

    Por meio dos projetos pedaggicos presentes na publicao, a educao infantil, os(as) professores(as), a comunidade e os demais profissionais envolvidos com a histria, a vida e a educao das crianas, podero construir atividades e desenvolver prticas pedaggicas promotoras da igualdade tnico-racial. Essas atividades contribuiro com a institucionalizao das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, e tambm com o desenvolvimento do Plano Nacional de Implementao dessas Diretrizes, que defendem que o papel da educao infantil

    significativo para o desenvolvimento humano, para a formao da personalidade e aprendizagem. Nos primeiros anos de vida, os espaos coletivos educacionais que a criana pequena frequenta so privilegiados para promover a eliminao de toda e qualquer forma de preconceito, discriminao e racismo. As crianas devero ser estimuladas desde muito pequenas a se envolverem em atividades que conheam, reconheam e valorizem a importncia dos diferentes grupos tnico-raciais na construo da histria e da cultura brasileiras (BRASIL, 2009b).

    As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil tambm sero atendidas na medida em que consta explicitamente em seu texto que o combate ao racismo e s discriminaes de gnero, socioeconmicas, tnico-raciais e religiosas deve ser objeto de constante reflexo e interveno no cotidiano da educao infantil (BRASIL, 2009, p. 10).

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    Nessa perspectiva, a publicao propiciar a construo de uma educao infantil que contemple a identidade tnico-racial e a diversidade cultural das crianas que frequentam os espaos infantis, e abrir caminhos para aqueles que buscam respostas de como fazer, no cotidiano, para construir uma sociedade livre da discriminao e do preconceito racial.

    Para todos comprometidos com o presente e o futuro do pas, boa leitura.

    Ministrio da Educao

    Representao da UNESCO no Brasil

    Universidade Federal de So Carlos

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    INTRODUO

    Este livro se inicia com um convite professora e ao professor da educao infantil de diferentes regies do Brasil, responsveis pela educao de crianas de 0 a 5 anos, a um dilogo em torno do trabalho pedaggico com a histria africana e as relaes raciais no Brasil.

    As autoras do texto final do presente livro, apesar de hoje atuarem no ensino superior, comearam suas atividades profissionais na educao bsica e atuaram na educao infantil como docentes ou formadoras de professores. Portanto, elas sabem as dores e as delcias de atuar como profissionais responsveis pela educao infantil.

    As trajetrias profissionais e polticas de cada uma levaram-nas a perceber temas, perspectivas e histrias omitidas, silenciadas ou tratadas de forma distorcida na escola bsica, tendo o seu incio na educao infantil, quer seja nas creches ou nas pr-escolas. A questo africana e afro-brasileira uma delas.

    Acompanharam, ao longo dos tempos, a luta dos movimentos sociais na denncia dessa lacuna junto ao poder pblico nacional, regional e local, e as vrias estratgias alternativas e paralelas construdas por esse movimento social, as quais foram acolhidas por alguns docentes, profissionais da educao infantil, gestores, formuladores de polticas educacionais, familiares e redes de ensino.

    A partir de 2003, aps a alterao da Lei n 9.394/1996 pela sano da Lei n 10.639/2003 e sua posterior regulamentao por meio do Parecer CNE/CP n 03/2004 e da Resoluo CNE/CP n 01/2004, foi estabelecida a obrigatoriedade do ensino de histria afro-brasileira e africana nas escolas pblicas e privadas da educao bsica. Mesmo que a educao infantil, como primeira etapa da educao bsica, no esteja contemplada inicialmente no texto da Lei n 10.639/2003, basta ler o Parecer, a Resoluo e o Plano Nacional dela decorrentes para se verificar como essa etapa da educao bsica foi paulatinamente incorporada, a ponto de a relao entre educao infantil e superao do racismo figurar, hoje, entre as orientaes das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil.

    Essa situao por si s provoca indagaes sobre o papel desempenhado pelas relaes tnico-raciais na educao infantil e as implicaes nas polticas educacionais brasileiras, e inclusive pode responder s indagaes de vrios docentes

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    da educao infantil nas cinco regies do pas. As perguntas mais frequentes so: com a traduo para o portugus dos oito volumes da coleo Histria geral da frica da UNESCO, as escolas da educao bsica sero pensadas como importantes instituies responsveis pela socializao desse conhecimento, ou somente os pesquisadores do ensino superior tero esse privilgio? Qual funo passar a ter a educao infantil, ao tornar a educao bsica um dos pontos de preocupao da produo de material didtico, a partir da traduo da referida coleo?

    Foram essas perguntas que motivaram e orientaram a produo do presente livro. A inteno que as pginas a seguir descortinem, apresentem, instiguem, desafiem e orientem o professor e a professora da educao infantil na realizao do trabalho pedaggico com a temtica africana e afro-brasileira para as crianas de 0 a 3 e de 4 a 5 anos.

    Trata-se de um desafio construdo por meio de projetos organizados, pedagogicamente orientados, e que tornaro aquilo que para alguns ainda visto como um sonho que se almeja no futuro da educao brasileira em uma ao pedaggica possvel no presente e, portanto, perfeitamente realizvel.

    Educao, frica e histria e cultura afro-brasileira

    Sabemos que h muito a se aprender sobre o continente africano e os processos de recriao de suas culturas, presentes em todos os lugares do mundo para os quais as diferentes etnias africanas foram dispersas, seja por processos comerciais, seja pela imigrao espontnea, seja pelo movimento violento do trfico negreiro.

    No Brasil, so incontveis os estudos que afirmam essa presena de elementos culturais africanos recriados em nosso contexto histrico, social e cultural. tambm notrio como tal movimento intercontinental, intercultural e intertnico permeia a vida, os modos de ser, os conhecimentos, as tecnologias, os costumes, a musicalidade e a corporeidade dos outros grupos tnico-raciais que conformam a nossa populao.

    Por mais que esse processo seja uma realidade, tambm fato que ele convive, no Brasil, com uma prtica e um imaginrio racistas. Esse racismo ambguo se faz presente em nossa estrutura de desigualdade, em nossas aes cotidianas e na produo do conhecimento. Vrios de ns, professores e professoras, temos histrias

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    para contar sobre o silenciamento a respeito da frica e sobre a questo afro-brasileira em nossos cursos de formao inicial. Carregamos marcas do tempo da educao bsica, quando docentes e colegas manifestavam preconceitos e realizavam prticas discriminatrias em relao aos negros. Convivemos e conhecemos literaturas, materiais didticos e de apoio pedaggico eivados de esteretipos raciais, sem a devida mediao pedaggica do professor e sem a necessria reviso e atualizao das editoras. Em outros momentos, ns mesmos podemos ter sido sujeitos realizadores ou destinatrios de tais prticas.

    Essas situaes tm sido sistematicamente denunciadas pelo Movimento Negro Brasileiro ao longo da sua histria e pelos demais parceiros na luta por uma educao antirracista. Em sua pauta de reivindicaes polticas, esse movimento social sempre incluiu a urgncia de uma escola democrtica que reconhea, valorize e trate de forma tica e profissional a diversidade tnico-racial. Uma escola que no reproduza em seu interior prticas de discriminao e preconceito racial, mas que, antes, eduque para e na diversidade. Uma escola que se realize, de fato, como direito social para todos, sem negar as diferenas.

    Essa trajetria de luta encontra lugar no direito educao no incio dos anos 2000. Em 2003, o ento presidente Luiz Incio Lula da Silva sancionou uma lei que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Trata-se da Lei n 10.639/2003.1 Foi a partir dela que o Conselho Nacional de Educao (CNE) estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, dispostas no Parecer CNE/CP n 03/2004 e na Resoluo CNE/CP n 01/2004, as quais devero orientar iniciativas de formao inicial e continuada e processos de gesto escolar. Em 2009, o Ministrio da Educao aprovou o Plano Nacional de Implementao da Lei n 10.639/2003, que define atribuies, metas e perodos de execuo para a implementao de toda essa legislao aos sistemas de ensino, aos governos federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, aos Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros, aos Fruns de Educao e Diversidade tnico-Racial, aos nveis e modalidades de ensino e educao em reas remanescentes de quilombos. So iniciativas e esforos governamentais importantes, que podem ser considerados marcos na efetivao da democracia, do direito educao e do respeito diversidade tnico-racial.

    No se trata apenas de um processo burocrtico-normativo. Trata-se de um processo histrico e poltico de lutas e reivindicaes expresso nos avanos da legislao

    1. Em 2008, a LDB foi novamente alterada pela Lei n 11.645, que introduziu, tambm, o estudo da histria e da cultura indgenas.

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    brasileira e na poltica educacional. Esse avano se realiza de forma gradual e complexa nas diferentes regies do pas, pois caminha lado a lado com a desigualdade social e regional, bem como com a luta pela efetiva democracia. Por isso, a primeira questo a ser compreendida pelas professoras e pelos professores que tiverem acesso a este livro o entendimento de que a traduo para o portugus dos oito volumes da coleo Histria geral da frica, da UNESCO, realizada em parceria com o MEC, faz parte do compromisso do Estado brasileiro no cumprimento do direito educao, na garantia do inciso XLII do artigo 5 da Constituio Federal, que reza que o racismo crime inafianvel e imprescritvel, e no cumprimento dos tratados internacionais de superao da discriminao racial dos quais o Brasil signatrio.

    Porm, ao estabelecermos contato com esse rico e complexo livro, duas perguntas se fazem urgentes: como essa publicao poder contribuir para a implementao de prticas pedaggicas que trabalhem o ensino da histria e da cultura afro-brasileira e africana, de acordo com a Resoluo CNE/CP n 01/2004? E como tornar acessvel, para docentes de todas as etapas e modalidades da educao bsica, um livro de tamanha densidade terica voltado para o campo da pesquisa cientfica?

    Na tentativa de responder a essas questes, a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (SECADI), do Ministrio da Educao, em cooperao com a UNESCO, produziu esta publicao, voltada ao docente da educao bsica, em parceria com um grupo de pesquisadoras de apoio pedaggico. E, como no poderia deixar de ser, o primeiro passo seria dialogar diretamente com um perodo forte em nossas vidas: a infncia. Portanto, aos profissionais que atuam na educao infantil que o presente livro se destina.

    De acordo com o Plano Nacional de Implementao da Lei n 10.639/2003,

    o papel da educao infantil significativo para o desenvolvimento humano, para a formao da personalidade e aprendizagem. Nos primeiros anos de vida, os espaos coletivos educacionais os quais a criana pequena frequenta so privilegiados para promover a eliminao de toda e qualquer forma de preconceito, discriminao e racismo. As crianas devero ser estimuladas desde muito pequenas a se envolverem em atividades que conheam, reconheam, valorizem a importncia dos diferentes grupos tnico-raciais na construo da histria e da cultura brasileiras (BRASIL. MEC, 2003).

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    O papel da professora e do professor da educao infantil nesse processo importantssimo. A esses profissionais cabe a realizao de prticas pedaggicas que objetivem ampliar o universo sociocultural das crianas e introduzi-las em um contexto no qual o educar e o cuidar no omitam a diversidade. Desde muito cedo, podemos ser educados a reconhecer a diferena como um trunfo e a diversidade como algo fascinante em nossa aventura humana. Desde muito cedo, podemos aprender e conhecer diferentes realidades e compreender que a experincia social do mundo muito maior do que a nossa experincia local, e que esse mesmo mundo constitudo e formado por civilizaes, histrias, grupos sociais e etnias ou raas diversas. tambm bem cedo em sua formao que as crianas podem ser reeducadas a lidar com os preconceitos aprendidos no ambiente familiar e nas relaes sociais mais amplas.

    Essas mesmas crianas tm o direito de ser e se sentir acolhidas e respeitadas nas suas diferenas, como sujeitos de direitos. Sua corporeidade, esttica, religio, gnero, raa/etnia ou deficincia devero ser respeitadas, no por um apelo moral, assistencialista ou religioso, mas sim porque essa a postura esperada da sociedade e da escola democrtica que zelam pela sua infncia. Por isso, as aes e o currculo da educao infantil devero se indagar sobre qual tem sido o trato pedaggico dado s crianas negras, brancas e de outros grupos tnico-raciais, bem como a suas famlias e histrias.

    No se trata de uma postura individual, mas de uma prtica coletiva. Sendo assim, as instituies que ofertam a educao infantil devero analisar criticamente, sob a perspectiva da diversidade, o material didtico selecionado, os brinquedos, a ornamentao das salas, as brincadeiras, as cantigas, a relao entre os professores e as crianas, e entre as prprias crianas, e indagar: as crianas tm sido pedagogicamente tratadas de forma digna? A presena negra componente importante da nossa formao social e histrica se faz presente na educao das crianas de 0 a 3 e de 4 a 5 anos? Como?

    Essas perguntas se aplicam a todo e qualquer professor da educao infantil, quer os que trabalham com crianas dos meios populares, quer os que atuam em instituies particulares de ensino. sempre bom lembrar que no preciso ter a presena fsica da populao negra entre ns para aprendermos e sabermos respeit-la. O respeito diferena no deve acontecer apenas no momento em que entramos em contato direto com o dito diferente. Ele deve ser um princpio, um eixo norteador de todo e qualquer currculo, ao pedaggica e prtica social.

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    Esse currculo se realiza no contexto de diversas instituies de educao infantil, ainda distribudas desigualmente nas cinco regies brasileiras. A luta pela ampliao da oferta da educao infantil tem sido uma constante. Ainda que a partir da LDB a educao infantil tenha se tornado a primeira etapa da educao bsica, sua plena realizao como direito ainda no foi alcanada por todos.

    na ao curricular que as prticas so realizadas e as crianas pequenas aprendem a conviver umas com as outras, tm contato mais direto com as diferenas, expressam e adquirem valores. Nesse contexto, os preconceitos raciais tambm so aprendidos e nem sempre so alvo de uma sria interveno pedaggica. Cada vez mais, os profissionais da educao infantil vm percebendo essa situao, observando que a necessidade de superao dessas prticas tem sido apontada por pesquisas e reconhecida nos documentos oficiais. Porm, ainda se faz presente de forma muito incipiente na formao inicial e continuada dos professores.

    nessa realidade que todos ns somos educados, inclusive as crianas pequenas. Sendo assim, ainda estamos muito distantes de poder dizer que as crianas no atribuem valores superiores aos traos fsicos de pessoas brancas e, inversamente, inferiores, aos dos negros (TRINIDAD, 2011, p. 164).

    Infncia e luta por direitos

    Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil, entre os eixos norteadores das prticas pedaggicas que compem o currculo da educao infantil, destaca-se a garantia de experincias que possibilitem vivncias ticas e estticas com outras crianas e grupos culturais, que alarguem seus padres de referncia e de identidades no dilogo e reconhecimento da diversidade (Resoluo CNE/CEB n 5/2009). No entanto, sabemos que o reconhecimento da diversidade no uma tarefa simples, pois requer a valorizao das diferentes culturas, ou seja, a compreenso dos meandros da construo cultural situados na dinmica das relaes sociais e polticas que constituem nossa sociedade.

    Atingir esse objetivo se torna uma tarefa complexa, sobretudo, quando se trata de culturas produzidas por grupos sociais e tnico-raciais, cuja participao social e poltica ainda pouco estudada e conhecida no campo educacional e em nossa

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    sociedade como todo , em decorrncia de um processo histrico de dominao e silenciamento. Esse o caso das culturas de matriz africana em diferentes partes do mundo e, em nosso caso especfico, no Brasil.

    Essa produo cultural dos descendentes de africanos escravizados no Brasil tem sido entendida de diferentes formas: cultura negra, cultura afro-brasileira, africanidades, entre outras. Todavia, quando analisamos a fundo o que sabemos sobre ela, chegamos concluso de que sabemos muito pouco, ou o pouco que conhecemos ainda est repleto de naturalizaes e vises estereotipadas. Fatalmente, quando somos desafiados a organizar um trabalho pedaggico na escola, principalmente na educao infantil, essas vises cristalizadas acabam orientando o nosso fazer e desencadeando atividades, projetos, relaes e comportamentos permeados por preconceitos e distores. Por isso, faz-se necessrio professora e ao professor da educao infantil conhecer mais a fundo o que as culturas de matriz africana significam, como elas esto presentes em nosso cotidiano e na vida dos estudantes, quer sejam negros, brancos ou de outros grupos tnico-raciais. Melhor seria se esses profissionais pudessem vivenciar de maneira mais prxima algumas experincias culturais que expressam publicamente a relao com essa matriz. Essas lacunas em nossa formao pessoal, profissional e poltica exigem mudanas de posturas e prticas. Por isso, faz-se necessrio recontar a histria, dar visibilidade aos sujeitos e suas prticas, e enfatizar a atuao protagonista da populao negra no Brasil e no mundo, seus elos com o continente africano e as diferentes culturas produzidas nesse complexo contexto.

    esse o entendimento que orienta a articulao entre a educao infantil e a histria e a cultura afro-brasileira e africana. Ele se funda na compreenso de que essa etapa da educao bsica um direito fundamental e, por isso, deve estar intrinsecamente vinculada aos direitos mais bsicos da infncia. nessa perspectiva que se torna possvel articular a concepo e as orientaes da educao infantil presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Para tal, importante que os profissionais da educao infantil conheam essa legislao e compreendam a sua radicalidade poltica e pedaggica.

    As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil explicitam em seu texto: O combate ao racismo e s discriminaes de gnero, socioeconmicas, tnico-raciais e religiosas deve ser objeto de constante reflexo e interveno no cotidiano da educao infantil (BRASIL, 2009a, p.10).

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    No se pode esquecer de que a garantia da vivncia digna da infncia e do seu direito educao infantil faz parte de um processo de lutas. Os movimentos sociais, particularmente o movimento de luta pr-creche, o movimento feminista e o movimento de mulheres negras, podem ser considerados os principais protagonistas nesse histrico. A exigncia de condies dignas de vida para as crianas, o direito ao lazer, cultura, dignidade, liberdade, convivncia familiar e comunitria, responsabilidade do Estado, da famlia e da sociedade de garantir que as crianas (e adolescentes) no estejam expostos a situaes de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso, constantes do artigo 227 da Constituio Federal de 1988 (BRASIL, 1988), fruto de uma longa e intensa luta social desencadeada por esses movimentos sociais. So eles, juntamente com as famlias, os principais defensores da garantia do direito infncia. Todo esse processo levou a uma importante mudana de concepo: atualmente, a criana compreendida como sujeito de direito infncia, como uma temporalidade forte na qual se constroem sentidos e significados. Portanto, a oferta de uma educao infantil plena, justa e acolhedora no mais vista como uma opo da instituio escolar. Ela um dever do Estado, da famlia e da escola, e um direito da criana. Como tal, deve ser ofertada dignamente a todas as crianas brasileiras, independentemente de classe social, raa, etnia, sexo, gnero, regio e religio.

    Conhecer como a educao infantil percorreu esse caminho, como ela se torna preocupao do Estado e ganha, a partir do incio deste sculo, um outro lugar nas polticas educacionais, desenvolvidas sobretudo pelos programas e aes do governo federal, uma postura necessria aos profissionais que lidam com a infncia. Como tratamos, aqui, de uma proposta de educao infantil que se articula com o ensino de histria afro-brasileira e africana, tambm importante saber que, ao longo desse caminho, outro tambm foi percorrido: a luta da populao negra pelo trato digno e respeitoso, e pelo direito diversidade e identidade tnico-racial de suas crianas. So histrias, tempos, trajetrias e vivncias intrinsicamente articulados, porm distintos.

    Essa presso dos movimentos sociais sobre o Estado desencadeou uma srie de garantias e regulamentaes na educao nacional. Embora nem todas sejam diretamente voltadas para a infncia, elas tocam nesse ciclo da vida, em seus sujeitos e na realidade dos adultos por eles responsveis. Assim, alm dos documentos especficos relacionados educao infantil e educao das relaes tnico-raciais j citados, sugere-se que as professoras e os professores da educao infantil conheam tambm: o Parecer CNE/CEB n 07/2010 e a Resoluo CNE/CEB n

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    04/2010, que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educao Bsica; o Parecer CNE/CEB n 14/1999 e a Resoluo CNE/CEB n 03/1999, que instituem a educao escolar indgena; a Poltica Nacional de Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva (2008); o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069/1990); o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (2007); o Plano Nacional de Promoo da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (2009); a Lei da Poltica Nacional de Educao Ambiental (Lei n 9.795/1999); e as Diretrizes Operacionais para a Educao Bsica nas Escolas do Campo (2002).

    Tal como nos alerta Silva Jr. (2002), para se compreender melhor a infncia e sua realizao como um direito, importante conhecer no somente os diferentes critrios que o sistema jurdico nacional considera para demarcar a diversidade da populao brasileira, mas tambm as declaraes e convenes internacionais das quais o pas signatrio: a Declarao Universal dos Direitos Humanos2, a Declarao sobre Raa e Preconceito Racial3 e a Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial4, entre outros.

    Esse contexto poder ajudar na construo de outra compreenso: os profissionais da educao infantil tambm so sujeitos de direitos. Assim, as condies de trabalho, o direito a um salrio digno e justo, o direito formao inicial e continuada e realizao profissional devero caminhar junto com o reconhecimento do direito das crianas. Se levarmos em considerao a presena significativa de mulheres e de mulheres negras nas creches, centros de educao infantil e escolas pblicas, tambm devemos considerar o direito vivncia e expresso digna da identidade tnico-racial.

    A proposta do livro

    Elegemos duas prticas culturais com as quais ser possvel realizar trabalhos pedaggicos que privilegiem a expresso africana e a realidade afro-brasileira. Essas prticas se expressam por meio de dois projetos pedaggicos: o Projeto Espao Gri e o Projeto Capoeira. Ambos os projetos trabalham com dimenses

    2. Adotada e proclamada pela Resoluo n 217-A (III) da Assembleia Geral das Naes Unidas, em 10 de dezembro de 1948.3. Aprovada e proclamada pela Conferncia Geral da UNESCO, reunida em Paris, em sua 20 reunio, em 27 de novembro de 1978.4. Adotada pela Resoluo n 2.106-A da Assembleia Geral das Naes Unidas, em 21 de dezembro de 1965. Aprovada pelo Decreto n 23, de 21/06/1967. Ratificada pelo Brasil em 27 de maro de 1968. Entrou em vigor no Brasil em 04/01/1969. Promulgada pelo Decreto n 65.810, de 8/12/1969. Publicada no Dirio Oficial em10/12/1969.

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    do desenvolvimento humano muito presentes na educao infantil: a oralidade, a corporeidade, a musicalidade, o ritmo e a sociabilidade.

    Tendo os gris (contadores de histrias) e a capoeira (arte do jogo e da luta) como motes principais, as professoras e os professores da educao infantil so convidados a motivar as crianas pequenininhas (0 a 3 anos) e as pequenas (4 a 5 anos) a explorar vrios sentidos da sua corporeidade, a conhecer cores, palavras, canes, texturas e histrias, a produzir desenhos, a participar de conversas informais e a estabelecer relaes entre si e com os adultos.

    As atividades propostas podero ser realizadas com crianas que frequentem instituies de educao infantil pblicas e privadas, de diferentes pertencimentos tnico-raciais, com idade de 0 a 5 anos, que residam nas zonas urbanas e rurais. Para tal, a professora e o professor da educao infantil devero considerar alguns elementos importantes da prtica pedaggica: a observao atenta das crianas com as quais trabalham, o conhecimento do seu contexto sociocultural e de suas famlias, a compreenso das suas reais condies materiais de existncia, a considerao do potencial imaginativo, criativo e instigante da infncia e a postura de escuta atenta s demandas das crianas.

    Para que esse trabalho se realize, h algo a superar: no se pode incorrer em prticas improvisadas. preciso planejar previamente as atividades, ter objetivos claros, preparar o espao fsico de forma confortvel, informar a famlia, explicar claramente s crianas o que ser feito (de acordo com a sua faixa etria), registrar e avaliar a atividade desenvolvida. So, na realidade, iniciativas que devero ser seguidas na realizao de toda e qualquer prtica pedaggica, mas, nesse caso, tematizando a questo afro-brasileira e africana na educao infantil.

    Ao reconhecer que essa questo ainda tratada de forma desigual em nossa sociedade, importante que tais prticas, expressas por meio de elementos culturais de matriz africana, no sejam realizad,as de maneira fragmentada e estereotipada, sob o risco de perderem o seu potencial histrico e formador. Lembremos que as crianas so curiosas e nos indagam cotidianamente desde muito pequenas. Por isso, importante que o conhecimento das dimenses histrica, cultural e social da tradio oral africana e da capoeira sejam de domnio terico e conceitual da professora e do professor da educao infantil, pois isso contribuir para que, na sua prtica, esses profissionais atuem de maneira a ampliar e enriquecer a sua prpria formao e a das crianas. certo que a forma de abordagem e o grau de aprofundamento das atividades propostas dependero da idade das crianas e dos

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    conhecimentos prvios que j possuem. Por isso, toda ao pedaggica dever partir do conhecimento que as crianas j construram, como elas expressam o que sabem, para que, a partir disso, os projetos se desenvolvam.

    No caso das crianas pequenininhas (0 a 3 anos), so elementos importantes o contato uns com os outros, o toque com carinho e afeto, o ambiente decorado de forma cuidadosa, composto de estmulos visuais e tteis, estmulos auditivos como msicas, alm da escuta e da ateno da professora e do professor. No caso da educao das relaes tnico-raciais, deve-se tomar cuidado para no incorrer em prticas preconceituosas j observadas em algumas escolas. A professora e o professor da educao infantil devero tomar cuidado para que o toque com carinho seja dirigido a todas as crianas, pois existem casos em que as profissionais se negam a tocar no corpo da criana negra pequenininha (0 a 3 anos), trocar suas fraldas e carreg-la; pesquisas mostraram situaes em que os docentes se negaram a cuidar dos cabelos crespos das crianas negras, rejeitaram receber sua famlia, atriburam xingamentos e apelidos pejorativos e foram agressivos. Tais atitudes no somente ferem princpios da tica profissional, mas tambm so casos de racismo e, portanto, devem ser punidos na forma da lei. Como profissionais da educao, somos responsveis pelas aes pedaggicas que realizamos e pelas marcas negativas que podemos imprimir na histria de vida e na autoestima dos estudantes.

    No se pode esquecer de que as crianas so diversas e possuem nveis distintos de desenvolvimento humano. Contudo, todas se desenvolvem. Nesse caso, importante atentar para a presena, no interior do espao infantil, de crianas com deficincia, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotao. Para cada atividade proposta, essa particularidade do humano deve ser considerada, e as propostas aqui apresentadas devem ser reorganizadas de forma a garantir o direito participao e aprendizagem dessas crianas. Para tal, importante que esse trabalho seja acompanhado pela implementao da Poltica Nacional de Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva.

    Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil:

    O olhar acolhedor de diversidades tambm se refere s crianas com deficincia, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotao. Tambm o direito dessas crianas liberdade e participao, tal como para as demais crianas, deve ser acolhido no planejamento das situaes de vivncia e aprendizagem na Educao Infantil (BRASIL, 2009a, p. 11).

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    O dilogo com a famlia tambm importante. Ela poder orientar a instituio educativa e seus profissionais sobre os gostos, as dificuldades e a trajetria de seus filhos e filhas. Caber instituio escolar dar continuidade ao processo de formao humana com intencionalidade pedaggica. quelas crianas cujas famlias e vidas encontram-se em situaes de profunda desigualdade e precariedade, essa responsabilidade e esse cuidado se tornam ainda maiores.

    Tecendo projetos, cruzando histrias

    Como j foi anunciado, o livro de apoio pedaggico aqui apresentado se organiza em torno de dois projetos destinados s crianas de 0 a 3 anos e s crianas de 4 a 5 anos. A seguir, procuramos esclarecer quais so as implicaes do tratamento de temas e aspectos voltados educao das relaes tnico-raciais por meio de projetos na educao infantil.

    Os projetos so formas de promover aprendizagens integradas e situadas para todos os envolvidos no processo educativo. No so um mtodo ou receita, mas um formato que ganha configuraes diversas para cada grupo, etapa de escolarizao, profissional da educao e familiar envolvido. Isso porque se relacionam diretamente com as experincias e os saberes de todas essas pessoas e daquelas com quem convivem em suas comunidades. E todas essas bagagens refletem-se nas indagaes, temas e problemticas abordadas nos projetos, tornando-se motores para a busca de solues, respostas e propostas, e para a apropriao e a produo de conhecimentos.

    Segundo Fernando Hernandez, pesquisador e educador espanhol que props essa pedagogia, o que faz os projetos terem vida na educao escolar o envolvimento do aprendiz naquilo que est aprendendo, conectando a comunidade escolar com o mundo vivido (HERNANDEZ, 2004). Esse formato proporciona a descoberta e o entendimento de relaes entre fenmenos pessoais, naturais e sociais e, assim, promove a compreenso do mundo em que as crianas vivem.

    O ponto de partida para a definio de um projeto a escolha de um tema ou de um problema motivador, em dilogo com as crianas. O tema pode advir de uma experincia do grupo, de um passeio, de um problema da comunidade, de

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    uma curiosidade de uma ou mais crianas, de um fato da atualidade, de questes de relacionamento entre as crianas, ou mesmo ser decorrente de outro projeto. Pode-se trabalhar com qualquer tema: o desafio como abord-lo de maneira dialogada e negociada em todas as etapas de seu desenvolvimento, considerando as crianas, mesmo as bem pequenas, como protagonistas desse processo e como corresponsveis pela sua realizao.

    No caso destes livros, o Projeto Espao Gri e o Projeto Capoeira tematizam as culturas afro-brasileira e africana na educao infantil. Ambos os temas podem ser enriquecidos a partir das experincias do professor e da professora da educao infantil, e do conhecimento de cada turma e demais integrantes da comunidade escolar.

    Conhecer as crianas, abarcando desde suas trajetrias socioculturais e familiares at suas caractersticas fsicas, socioeconmicas, afetivas e psicolgicas, e saber escutar e interpretar seus desejos, interesses e motivaes so aes fundamentais para a proposio dos projetos que apresentamos. Essas informaes, junto ao tema de cada projeto, configuram um mapa que orienta seu desenvolvimento, mas, como todo mapa, repleto de trilhas, locais de parada, rotas de fuga e retornos que dependem de decises e da experincia de todos. Os professores e as professoras da educao infantil tm um papel primordial na percepo de como percorrer esse mapa, considerando a necessidade de se deter por mais tempo diante de uma etapa, devido ao interesse das crianas, de mudar rumos e buscar novas motivaes para seguir viagem, de buscar novas alternativas para a participao de seu grupo em aes previstas etc. Apesar de os projetos sugerirem temas, atividades e etapas, alm de materiais para consulta e uso em propostas, cada um supe a formulao e a resoluo de problemas com base no diagnstico do que todos sabem. Os projetos prosseguem com o desenvolvimento das estratgias de busca de informaes, apoiando-se nas mais variadas prticas sociais de uso da linguagem, por exemplo, para acessar informaes especficas, para conhecer histrias, personagens e fatos de outros tempos, para registrar descobertas, para planejar aes, para acompanhar, integrar e avaliar aprendizagens. Nas palavras de Hernandez, um projeto no se constri a partir da certeza do que se sabe, mas da inquietao de quem tem e reconhece seu desejo de saber e de se conhecer (HERNANDEZ, 2004).

    Para alm das aprendizagens que esto previstas em cada projeto, essa forma de organizao promove o desenvolvimento e a ampliao de capacidades relacionadas autonomia para aprender. O desenvolvimento dessas capacidades pode levar as crianas, desde muito cedo, a compreender melhor os problemas de sua realidade

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    e a contribuir para a ampliao do conhecimento pessoal e do entorno. Para se desenvolver projetos, preciso a capacidade de justificar as razes do interesse ou da necessidade de desenvolver determinado projeto, e essa justificativa encontra-se na realidade local do grupo que dele toma parte e na pesquisa sobre o tema e os assuntos correlacionados.

    Como sujeitos ativos e participantes da aprendizagem, as crianas podem, com os projetos:

    demonstrar o que sabem (observando, comparando, testando, refletindo,sistematizando);

    trocarexperinciaserepertrioscomparceiroseinterlocutoresprivilegiados;

    buscar, de modo organizado, o que precisam para conseguir solucionarproblemas e/ou tomar parte das situaes;

    testarprocedimentoseaplicarnovosconhecimentos;

    ampliar,transformar,confirmaremodificararededeconhecimentos;e

    adquirirnovascompetnciaseaplic-lasemoutrassituaessociais.

    importante ainda considerar que um projeto no regido por contedos curriculares presumidos como importantes; o que se pretende envolver as crianas, as famlias, a comunidade, os professores e professoras num processo mltiplo de aprendizado, no qual o que importa o fascnio, a colaborao, o questionamento, a explorao, a descoberta, a criatividade e a reflexo (HERNANDEZ, 2004).

    Os Projetos Espao Gri e Capoeira so propostas fundamentadas nesses aspectos e pautam-se por uma perspectiva multicultural, levando em conta a diversidade social e tnico-racial que est presente nas escolas de educao infantil. Essa perspectiva tambm fundamentou a seleo dos temas dos projetos propostos, que visam educao das relaes tnico-raciais e abordagem da histria e da cultura afro-brasileira nessa modalidade de ensino. Cumprem, tambm com a funo de disseminar prticas pedaggicas fundadas em uma perspectiva da diversidade cultural e tnico-racial.

    Os projetos tomam por base fontes diversas, especialmente a coleo Histria geral da frica (UNESCO, 2010) e outros materiais didticos e paradidticos. Incluem personagens negros e de outros grupos tnico-raciais, valorizam a oralidade, a

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    corporeidade, a arte e as marcas da cultura de raiz africana. No se trata meramente da celebrao do pluralismo e do reconhecimento da diversidade, mas de trazer tona mltiplos olhares sobre a realidade, que, at pouqussimo tempo atrs, apresentavam-se como estveis e fixos, como algo que no poderia ser de outra maneira, como algo natural e necessrio, em vez de algo com a finalidade de assentar determinados grupos e valores e excluir outros. Incorporar essa perspectiva nos projetos supe:

    reconheceradiversidade, frente tendnciademostrarumpontodevista(pois existem outros, que veem as coisas de outra maneira);

    resgatar as vozes excludas da educao escolar, do conhecimento e docurrculo;

    tersemprepresentequenossosvaloresculturaisnosoosnicos,queoutrosindivduos, em nossa sociedade e em outras, tm valores culturais diferentes que tambm ajudam a dar sentido sua realidade;

    terconscinciadequealgunsdosproblemasexistentesnasrelaessociaisafetam diretamente as interrelaes pessoais nas escolas: a negao do outro por sua origem social, tnica, religiosa ou de gnero.

    A finalidade desses projetos que propomos que crianas aprendam desde muito cedo a tomar decises, a assumir responsabilidades e a no deixar que sua prpria voz seja silenciada pelos que falam mais alto ou projetam formas de excluso (HERNANDEZ, 2001).

    Como os projetos esto organizados?

    Os dois projetos, Espao Gri e Capoeira, foram produzidos para abarcar as especificidades de dois grupos etrios, de crianas de 0 a 3 anos e de crianas de 4 a 5 anos. Cada projeto encontra-se assim organizado:

    a) Com as mos na massa esta seo apresenta o projeto e, logo aps o ttulo, localiza o professor e a professora sobre o tema abordado. Nesta parte, prope-se um dilogo terico com as especificidades das culturas afro-brasileira e africana, com indicaes para a formulao de prticas pedaggicas na educao das relaes tnico-raciais na educao infantil;

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    b) O que se desenvolve no projeto esta seo trata das principais dimenses da formao humana que se pretende trabalhar nas atividades propostas;

    c) O que se aprende esta seo apresenta os objetivos de aprendizagem previstos no projeto, que podem ser incrementados pelo professor de cada turma e escola de educao infantil;

    d) O que as crianas j sabem esta seo apresenta os saberes construdos que as crianas podem ter sobre temas e assuntos tratados nos projetos, e tambm alerta sobre capacidades que elas possuem no ciclo de vida em que se encontram.

    e) Atividade esta seo apresenta o desenvolvimento do projeto. Cada projeto encontra-se organizado por grupo etrio e subdivide-se em atividades. Cada atividade proposta rene um conjunto de etapas com sugestes de propostas e orientaes didticas para o desenvolvimento dos projetos. Alm disso, em cada projeto h explicaes, informaes e dicas organizadas em caixas de texto.

    Projeto Espao Gri para crianas de 0 a 3 anosAtividades Etapas

    Ancestralidade

    Etapa 1: Quem ?Etapa 2: Minha famliaEtapa 3: Ouvindo vozes familiaresEtapa 4: Exposio das famlias

    Contao de histrias africanas

    Etapa 1: Bichos por toda parteEtapa 2: Ouvindo histriasEtapa 3: Histrias contadas pelas famliasEtapa 4: Festa dos bichos

    Projeto Espao Gri para crianas de 4 a 5 anosAtividades Etapas

    AncestralidadeEtapa 1: Com quem vivemos?Etapa 2: Quem so nossos ancestrais?Etapa 3: Nossas famliasEtapa 4: A rvore da vidaEtapa 5: Nossas origens

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    Contao de histrias africanas

    Etapa 1: Ouvindo histriasEtapa 2: Lendo histriasEtapa 3: Vozes e histrias das famliasEtapa 4: Mscaras de bichosEtapa 5: Pequenos gris e griotes

    A memria da palavra

    Etapa 1: Os nomes tm histrias e significadosEtapa 2: Palavras africanas na nossa lngua: de onde vieram?Etapa 3: Palavras africanas: quais conhecemos?Etapa 4: Um tesouro de palavras

    Projeto Capoeira para crianas de 0 a 3 anosAtividades Etapas

    Os sons da capoeiraEtapa 1: Quem conhece a capoeira?Etapa 2: Contao de histriasEtapa 3: Sons e msica

    Os movimentos da capoeiraEtapa 1: Quem sabe jogar capoeira?Etapa 2: Quem quer jogar capoeira?

    Projeto Capoeira para crianas de 4 a 5 anosAtividades Etapas

    Os sons da capoeiraEtapa 1: Quem conhece a capoeira?Etapa 2: Contao de histriasEtapa 3: Sons e msica

    Os movimentos da capoeiraEtapa 1: Quem sabe jogar capoeira?Etapa 2: Quem quer jogar capoeira?

    f ) Quitanda nesta seo, encontram-se muitos materiais para ajudar no desenvolvimento dos projetos. H sugestes de livros, sites, canes, entre outras fontes de consulta para professores e professoras.

    g) Referncias bibliogrficas ao final do livro, encontram-se organizadas todas as fontes de pesquisa utilizadas na construo desta publicao.

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    Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educao Infantil

    Algumas recomendaes

    Recomendamos que os dois projetos sejam trabalhados de maneira aberta e flexvel. No h uma ordem a ser seguida entre os Projetos Espao Gri e Capoeira. Sugerimos apenas uma organizao didtica de atividades e etapas, que podem ser transformadas e adequadas de acordo com a realidade de cada escola e dinmica das turmas. Trata-se de um material que deve ser construdo e reconstrudo. Espera-se que ele estimule a realizao de novas prticas, que seja enriquecido, aprofundado, extrapolado e transformado por meio da ao criativa dos profissionais que com ele trabalharo.

    Como j foi dito, as mltiplas dimenses da formao das crianas pequenininhas (0 a 3 anos) e das pequenas (4 a 5 anos) devero interagir com essa proposta. A ludicidade, a imaginao, a corporeidade, o ritmo, a sensibilidade, a emoo, a diversidade cultural e lingustica, os valores, os saberes, as leituras sobre si e sobre o mundo, as identidades de gnero, raa, etnia, entre outros, devem ser pensadas, considerando as especificidades das crianas pequenininhas e das pequenas. Garantir que a construo de prticas pedaggicas em educao infantil seja direcionada para que essa etapa da educao bsica se realize plenamente como direito educao, e as crianas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos.

    As atividades, propostas, sugestes de livros, CDs e DVDs podero e devero ser enriquecidas pelos profissionais da educao infantil que a elas tero acesso. Devero, tambm, sofrer adaptaes de acordo com realidade regional, condio social e econmica, infraestrutura das instituies de educao infantil, entre outras. Adaptaes podem significar delimitar tempos para desenvolver atividades e suas etapas, identificar espaos, materiais e recursos na escola e na comunidade para desenvolver propostas, transformar rotinas e ambientes, bem como diversificar o agrupamento de crianas. Essas so questes importantes sobre as quais somente professores e professoras informados pela experincia e conhecimento de suas crianas podem responder. Sabe-se que criatividade, fora e perseverana tm sido caractersticas dos profissionais que atuam na educao infantil deste pas, sobretudo nas instituies pblicas.

    Organizar processos de ensino e aprendizagem por meio de projetos como estes implica ainda o trabalho coletivo por parte de professores, professoras e equipes de gesto, pois demandam planejamento, estudo, tomada de deciso, busca de recursos, materiais e equipamentos e um sem-nmero de aes. Se essas tarefas

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    forem realizadas coletivamente e de modo colaborativo, tornam-se menos pesadas e transformam-se em oportunidades de autoformao docente. O trabalho em equipe colabora para a escuta atenta dos colegas, a resoluo de conflitos, a negociao e a construo de posicionamentos. Por meio dessas aes, desenvolvemos habilidades, como elaborar ideias e propostas, planejar, dividir tarefas, assumir responsabilidades, justificar opinies, comparar, aprofundar e contrastar diferentes pontos de vista, conceitos, noes e valores, explorar ideias e propostas com maior vigor, integrar e decidir, desenvolver ideias e propostas de outras pessoas, identificar os recursos com os quais cada um pode colaborar para empreender um projeto comum, entre tantas outras.

    Este livro tem o potencial de subsidiar reunies de estudos e de planejamento, j que para concretizar as propostas que o compem preciso que os professores e as professoras delas se apropriem e compreendam as implicaes de realiz-las no cotidiano da educao infantil. Nesse aspecto, a equipe de gesto e a coordenao pedaggica tm um papel fundamental: o de propiciar reunies sistemticas voltadas ao estudo, reflexo e proposio coletiva de prticas pedaggicas. Essa equipe responsabiliza-se pela formao docente contnua, anima e colabora para que os professores e as professoras possam planejar, estudar, pesquisar, propor, realizar e avaliar projetos, atividades e aprendizagens das crianas.

    Outra recomendao, no menos importante, diz respeito ao registro e preservao da memria do trabalho coletivo desenvolvido nas unidades de educao infantil. Isso fundamental por vrias razes. A primeira delas diz respeito ao fato de que, ao se registrar ideias, planos e propostas, pode-se observ-las de um outro ponto de vista. A escrita colabora para objetivar e fundamentar o fazer. Prticas pedaggicas que sero realizadas, se registradas podem ser lidas, comentadas, revistas e reelaboradas por quem as criou e por outros colegas. A escrita age como um guia das aes, pois o registro dos planos ordena atividades, tarefas e pessoas responsveis, permite entrever necessidades, recursos e possveis percalos que tero que ser enfrentados, entre outros. A segunda razo que, ao se registrar o qu e como se desenvolvem projetos e atividades, cria-se um banco de experincias educativas, que pode ser acessado por outros colegas, consultado, disseminado e servir de inspirao para novas ideias. Por fim, o registro e a memria do trabalho permitem um novo olhar para as aes e seus resultados, de outro lugar, e esse lugar permite a reflexo sobre as opes e procedimentos, a percepo das estratgias que deram certo ou que merecem ser revistas, das dvidas, angstias e hesitaes que acompanham o fazer docente, dos resultados atingidos e das aprendizagens que todos desenvolveram.

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    O desafio est colocado! Certamente sero somadas a essa proposta prticas educativas inovadoras j realizadas pelos profissionais da educao infantil nas instituies pblicas e privadas. Dessa forma, ela poder instigar e apontar caminhos para aqueles que ainda se indagam sobre como articular a educao infantil e o trabalho com a histria e a cultura afro-brasileira e africana.

    Bibliografia

    BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia: Senado Federal, 1988. Disponvel em: .

    BRASIL. Decreto n 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial. Dirio Oficial da Unio. Braslia, DF, 9 dez. 1969. Disponvel em: .

    BRASIL. Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispe sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio. Braslia, DF, 14 jul. 1990. Disponvel em: .

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    BRASIL. Lei n 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispe sobre a educao ambiental, institui a Poltica Nacional de Educao Ambiental e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio. Braslia, DF, 28 abr. 1999. Disponvel em: .

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    BRASIL. Lei n 11.645, 10 de maro de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes

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    e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira e Indgena. Dirio Oficial da Unio. Braslia, DF, 11 mar. 2008. Disponvel em: .

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Parecer CNE/CEB no 07/2010 e Resoluo CNE/CEB n 04/2010. Diretrizes curriculares nacionais gerais para a educao bsica, 2010. (mimeo).

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Parecer CNE/CEB n 14/1999 e Resoluo CNE/CEB n 03/1999. Diretrizes curriculares nacionais da educao escolar indgena, 1999. (mimeo).

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Parecer CNE/CEB n 20/2009 e Resoluo CNE/CEB n 05/2009. Diretrizes curriculares nacionais para a educao infantil, 2009a. (mimeo).

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Parecer CNE/CP n 03/2004, de 10 de maro de 2004, e Resoluo CNE/CP n 01, de 17 de junho de 2004.

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Diretrizes curriculares nacionais para a educao das relaes tnico-raciais e para o ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana. Braslia, 2004. Disponvel em: .

    BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Resoluo CNE/CEB n 1, de 3 de abril de 2002. Diretrizes operacionais para a educao bsica nas escolas do campo. Braslia, 2002. Disponvel em: .

    BRASIL. Ministrio da Educao. Diretrizes curriculares nacionais para a educao das relaes tnico-raciais e para o ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana. Braslia: MEC, jun. 2005.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Braslia, DF: MEC/SECAD; SEPPIR, jun. 2009b.

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    travestis e transexuais. Braslia: SEDH/PR, PNUD, 2009. Disponvel em:

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    CORONEL FABRICIANO. Secretaria de Educao e Cultura. Educao da infncia: proposta pedaggica da rede municipal de Coronel Fabriciano, v. 2. Coronel Fabriciano: Secretaria Municipal de Educao e Cultura, 2011b.

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    1. Projeto Espao Gri

    A palavra gri de origem francesa, e traduz o termo da lngua africana banaman dieli (jli ou djeli), que significa o

    sangue que circula. Essa lngua tem sua origem no antigo Imprio do Mali, hoje dividido em vrios pases do noroeste da frica1. A palavra gri designa os contadores de histrias, genealogistas2, mediadores polticos3, contadores, cantores e poetas populares que vivem em alguns pases africanos, no

    Sudo e em parte da zona guineense.

    Os gris so bibliotecas vivas da tradio oral de vrios povos africanos. No continente africano, um gri nasce gri, seu ofcio no escolhido, relaciona-se a uma herana e sua origem. Quando nasce um gri, a ele so atribudos direitos e deveres, ele responsvel por guardar e transmitir a histria do seu povo. Quando um gri morre, diz-se que uma biblioteca se foi, porque ele carrega consigo a sabedoria e as tradies desse povo.

    por meio da tradio oral que o gri transmite s novas geraes o que sabe, especialmente s crianas. Existem mulheres e homens que so gris e griotes. Alm das tradies de seu povo, essas pessoas conhecem o som dos animais, dos grandes aos pequenos, das cigarras aos elefantes.

    1 Disponvel em: .2 Um genealogista ocupa-se em estudar a origem de um indivduo ou famlia, a linhagem e a estirpe de sujeitos inseridos em determinados grupos e sociedades. Busca identificar o conjunto de antepassados de uma linhagem, por exemplo.3 Um mediador poltico aquele que atua no sentido de resolver conflitos e superar diferenas entre grupos, comunidades e sociedades. Ele colabora na tomada de decises que contemplem os interesses das partes envolvidas.

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    De acordo com Hampat B, os gris classificam-se em trs categorias:

    osgrismsicosque tocamqualquer instrumento (monocrdio,guitarra,cora, tant etc). Normalmente so excelentes cantores, preservadores, transmissores de msica antiga e, alm disso, compositores;

    os gris embaixadores e cortesos, responsveis pelamediao entre asgrandes famlias em caso de desavenas. Esto sempre ligados a uma famlia nobre ou real, s vezes a uma nica pessoa;

    osgrisgenealogistas,historiadoresoupoetas(ouostrsaomesmotempo),que, em geral, so igualmente contadores de histria e grandes viajantes, no necessariamente ligados a uma famlia (B, 2011, p.193).

    O autor ainda relata que a tradio confere aos gris um status especial e diferente dos nobres pois eles tm o direito inclusive de ser cnicos e gozam de grande liberdade de fala. Podem se manifestar livremente, at mesmo impunemente e, por vezes, chegam a zombar das coisas mais srias e sagradas, sem que isso lhes acarrete graves consequncias. Alm disso, podem contar mentiras e ningum as tomar no sentido prprio. Nesses casos, as pessoas podem at saber que no esto falando totalmente a verdade, mas aceitam como se o fosse e no se deixam enganar. Nesse ltimo caso, Hampat B adverte:

    importante considerar que nem todos os gris so necessariamente desavergonhados ou cnicos. Pelo contrrio, entre eles existem aqueles que so chamados de dieli-faama, ou seja, gris reis. Eles no so inferiores aos nobres no que se refere coragem, virtude e sabedoria e jamais abusam dos direitos que lhes foram concedidos por costume

    (B, 2011, p.195).

    Nas sociedades africanas, a oralidade um elemento central na produo e manuteno das mais diversas culturas, dos valores, conhecimentos, cincia, histria, modos de vida, formas de compreender a realidade, religiosidade, arte e ludicidade. A palavra falada, para os povos africanos, possui uma energia vital, capaz de criar e transformar o mundo e de preservar os ensinamentos. As narrativas orais so registros to complexos como os textos escritos. Essas narrativas se articulam musicalidade, entonao, ao ritmo, expresso corporal e interpretao. So guardadas e verbalizadas por narradores ou gris, treinados desde a infncia no ofcio da palavra oral. Eles se apropriam e transmitem crenas, lendas, lies de vida, segredos, saberes, e tm o compromisso com aquilo que dizem.

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    Segundo J. Vansina,

    nas sociedades africanas reconhece-se a fala no apenas como uma forma de comunicao cotidiana, mas tambm como uma forma de preservao da sabedoria, por meio daquilo que chamamos de tradio oral. A tradio, nesse caso, entendida como um testemunho transmitido verbalmente de uma gerao outra. Na maioria das civilizaes africanas, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. [...] as civilizaes africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte civilizaes da palavra falada. Isso acontecia at mesmo nos lugares onde havia a escrita, como na frica Ocidental a partir do sculo XVI, pois um nmero reduzido de pessoas sabia escrever. A escrita ficava relegada a um segundo plano em relao palavra falada. Todavia, o mesmo autor nos alerta para o fato de que seria um erro reduzir a civilizao da palavra falada a algo negativo, como uma ausncia da escrita e perpetuar os preconceitos sobre esses povos, suas histrias e costumes. Tal atitude seria uma demonstrao da total ignorncia em relao natureza dessas civilizaes orais. Inspirados pela tradio africana, no Brasil, h

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    pessoas que so denominadas e consideradas gris. So pessoas que trabalham com a cultura, arte e educao popular, reconhecidas pela prpria comunidade como mestres das artes, da cura, lderes religiosos de tradio oral, msicos que sabem tocar instrumentos tradicionais, contadores de histrias de suas comunidades que socializam as razes dos povos a que pertencem, so tambm cantores e poetas. Pessoas que, por meio da oralidade, das experincias vividas e da corporeidade, desenvolvem uma pedagogia que valoriza o poder das palavras (VANSINA, 2010, p. 139).

    O trabalho com o Projeto Espao Gri, inspirado na tradio oral africana, poder contribuir para que os professores da educao infantil compreendam um pouco mais sobre o poder da oralidade na sociedade africana e aprendam a explor-la no contexto brasileiro4 e naquele em que as instituies se encontram. Essa reflexo importan-

    te para a orientao da relao pedaggica com as crianas pequenas e suas famlias j que, nesta etapa da educao bsica, a oralidade se apresenta como uma forma marcante de expresso, comunicao, transmisso de valores e ensinamentos. A compreenso dessa relao entre a oralidade no contexto africano, brasileiro e na comunidade local poder no somente ajudar os docentes a superar preconceitos, como tambm a compreender o potencial da palavra falada, explorando-a de maneira intencional e pedaggica com as crianas e suas famlias.

    Se, na tradio africana, a oralidade considerada uma atitude diante da realidade e no implica a ausncia de capacidades relacionadas ao universo da cultura escrita, para crianas pequenas que vivem em sociedades letradas5, a oralidade constitui

    4 Considerando a questo da diversidade tnico-racial, pode-se mencionar que vrios povos, por exemplo os indgenas, tm a oralidade como

    um valor.5 Sociedades letradas so aquelas reguladas e ordenadas por meio da lngua escrita. Nessas sociedades possvel identificar variadas situaes

    Dica

    Os professores da educao infantil que trabalharo com o Projeto Espao Gri, focalizados e inspirados na tradio oral africana recriada no Brasil, devero compreender que h outra dinmica em civilizaes e grupos culturais em que a palavra falada e a escrita possuem valores e funes diferentes. No se trata de uma oposio entre lngua oral e escrita, mas do reconhecimento das especificidades de cada uma e dos usos que se produzem para dar conta de demandas sociais de cada grupo. Na coleo Histria geral da frica (UNESCO, 2010), encontramos informaes importantes para sabermos um pouco mais sobre os gris e a tradio oral em pases do continente africano.

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    um importante momento da formao humana, e para suas famlias um dos principais meios de interao. por meio da comunicao oral que famlias e grupos sociais brasileiros mantm a memria, educam novas geraes, transmitem valores, costumes e tradies, mesmo que seus integrantes sejam alfabetizados e usem a escrita cotidianamente. Bons exemplos so os famosos causos mineiros, os ditados populares, as poesias decoradas passadas de gerao em gerao, os repentes dos cantores nordestinos e, at mesmo, as narraes de contadores de histrias profissionais.

    A oralidade em sociedades como a brasileira tambm fundamental e adquire vrios sentidos, pois constitui as interaes das pessoas com o mundo e com o outro. por meio da palavra falada e dirigida a elas por sujeitos mais experientes, desde o nascimento, que estabelecem laos, interagem, inserem-se e se apropriam da cultura.

    Nas instituies de educao infantil, a oralidade precisa ser priorizada com uma intencionalidade, dando assim uma continuidade s prticas que j ocorrem na famlia e que devem ser desenvolvidas de maneira contextualizada e significativa. No se pode esquecer que nesse espao que milhes de crianas vo passar parte de sua infncia, portanto, convivendo e dialogando com outras crianas e com outros adultos. Uma das funes das instituies de educao infantil favorecer o desenvolvimento da linguagem que, por sua vez, depende do estabelecimento de situaes de dilogo, de fala e de escuta, assim como de instaurar a criana desde muito cedo como interlocutora, como capaz de produzir e se apropriar da linguagem. Essas situaes esto diretamente relacionadas vida das crianas e dos adultos, s suas motivaes para escutar e dizer, aos conhecimentos que se constroem, s funes e aos papis que desempenham. Tratam-se de interaes singulares, nas quais, cada qual com suas histrias, experincias e saberes comunica e atribui os sentidos nicos que essas falas possibilitam.

    Trabalhar com a oralidade, na relao educativa com as crianas pequenas, implica que os professores considerem as crianas como sujeitos sociais e de direitos, sendo compreendidas, educadas, respeitadas e tratadas como tal. Esse princpio

    nas quais a escrita necessria para agir ou para atribuir sentido ao que se faz. Exemplo disso so as leis e os documentos que regulam nossas aes, que incluem desde o registro de nascimento dos brasileiros, passando pelas escrituras de terrenos ou moradias, at a Constituio Brasileira. As prticas de uso da escrita so necessariamente plurais: sociedades diferentes e grupos sociais que as compem tm variadas formas de us-la. O letramento visto como formas de usar a lngua e dar sentido tanto fala como escrita, em contextos especficos, para

    determinados fins, com pessoas desempenhando papis diversificados, de acordo com a interao em curso.

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    fundamental para a superao de algumas concepes e prticas pedaggicas que ainda persistem em trat-las como adultos em miniatura. Destacamos que elas j so sujeitos, em toda a sua experincia social e de vida, e tm seus direitos assegurados na Constituio Federal, no Estatuto da Criana e do Adolescente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educao (Lei n 9.394/1996), entre outras legislaes.

    Objetivos do Projeto

    O objetivo do Projeto Espao Gri tomar a oralidade como objeto de aes planejadas e de aprendizagem. Crianas e professores constroem colaborativamente um espao social nas instituies de educao infantil, no qual podem contar e ouvir histrias, coment-las e produzir outras, ser escutados, compartilhar e conhecer a si mesmos, aos seus antepassados e aos outros. A linguagem oral abarca todas essas aes, por meio de cantigas, parlendas6, adivinhas7, frmulas de escolha8, lendas, contos, causos, provrbios, brincadeiras com palavras etc. Alm disso, a oralidade relaciona-se diretamente ao processo de apropriao da escrita. Aguar o ouvido, escutar atentamente e produzir textos com os recursos da fala, do corpo, da sonoridade, da imaginao e da poesia colaboram diretamente para a formao de futuros leitores e usurios plenos da lngua escrita. um espao que concentra um acervo de variados gneros orais e que propicia a participao em situaes variadas de fala e de escuta.

    As atividades propostas neste captulo integram o repertrio de experincias orais das crianas, ampliam e fortalecem a oralidade, sendo centradas na palavra e no dilogo entre as pessoas, em intercmbios, brincadeiras e trocas. Por esses motivos, d-se o nome a este espao de Gri, um lugar que retoma a ancestralidade africana do povo brasileiro, valoriza a oralidade e os modos populares de ser e de viver para compartilhar e produzir cultura por meio da palavra e guardar a memria.

    6 As parlendas so gneros da tradio oral, organizam-se em versos com rimas, e so recitadas durante brincadeiras infantis. Um exemplo de parlenda Hoje domingo / P de cachimbo / Cachimbo de ouro / Bate no touro / Touro valente / Machuca a gente / A gente fraco / Cai no buraco / Buraco fundo / Acabou-se o mundo. 7 Adivinhar a partir de enigmas no algo novo, na Antiguidade esta era uma prova de inteligncia. Atualmente, as adivinhas so formuladas por meio de perguntas desafiadoras, usadas por crianas em brincadeiras. Um exemplo de adivinha O que o que ? Tem escamas, mas no peixe. Tem coroa, mas no rei.8 As frmulas de escolha se assemelham s parlendas, so cantadas e usadas para escolher, num grupo de crianas, aquele que ser o pegador, por exemplo. Um exemplo desse gnero : L em cima do piano tem um copo de veneno, quem bebeu, morreu. O azar foi seu.

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    1.1. O que desenvolver no projeto?O Projeto Espao Gri, na educao infantil, envolve a organizao de um local para a expresso oral, em suas mltiplas formas, e de um acervo com variados gneros orais.9 Tem como objetivo favorecer o desenvolvimento da oralidade por meio da participao em eventos variados de produo de linguagem e ampliar o repertrio de experincias de comunicao oral e dos demais sentidos. Assim como os gris aprendem seu ofcio desde o nascimento, prope-se que as crianas, desde muito cedo, participem de situaes planejadas que focalizam a comunicao oral em suas mltiplas formas e variaes na educao infantil.

    Quando se toma a oralidade como objeto que se ensina e como meio primordial de interao humana, precisa-se ter algumas noes em mente.

    Todos nascem imersos num mundo de sons, gestos e palavras. Desde muito cedo, sujeitos mais experientes da cultura brasileira, mes, pais, irmos e responsveis, acompanham os mais novos nas mais diversas situaes, nas quais experimentam diferentes significados e sensaes. So vistos desde o nascimento como sujeitos capazes de estabelecer comunicao com os outros, como falantes e interlocutores.

    A interao com o mundo, por meio dos sentidos, tem incio na esfera familiar e se estende a outros espaos de convvio social como as instituies de educao infantil. Nessas, professores, crianas e demais profissionais da educao podem colaborar no sentido de ampliar o repertrio de experincias comunicativas por meio da oralidade. Situaes que favorecem essa ao incluem: que as crianas possam sentir, ouvir, ver as pessoas e falarem; que elas possam ser colocadas em situaes educativas que as estimulem a interagir por meio da emisso de sons diversos que no somente a palavra falada; que sejam compreendidas como algum que produz linguagem de vrias formas. tambm importante considerar que as crianas interpretam e podem obter respostas variadas na sua interao com os colegas e com o mundo adulto, por meio de vrias formas de manifestao oral de linguagem como: choro, balbucio, emisso de palavras ou sons que podem representar um desejo ou um desconforto etc.

    9 Gneros orais. Em interaes, sempre produzimos textos orais, escritos e aqueles que envolvem mltiplas linguagens. Esses textos so exemplares dos diversos gneros discursivos que existem e circulam em nosso tempo e sociedade. Os gneros funcionam como formas para aquilo que temos a dizer. Por isso, nas mais diversas circunstncias, adotamos modelos de como dizer de acordo com os parmetros que a situao impe aos que dela participam. Esses parmetros podem ser assim enumerados: o tema ou assunto (o que dizer), a inteno ou finalidade daquele que diz (para que), o pblico (para quem ele se dirige), o contexto ou local onde se produz e circula o texto, o estilo e composio do texto (como dizer), o registro (mais formal ou informal), entre outros. So esses elementos que entram em jogo na produo dos gneros orais, da fala e da performance que a integra. Os gneros escritos so aqueles constitudos por meio da lngua escrita e de outras modalidades, como imagens, sons, esquemas, grficos que tambm colaboram para a produo de sentidos pelos leitores.

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    Nesse sentido, todas as crianas devem ser estimuladas a participar de brincadeiras e jogos, os quais devem estar de acordo com sua idade e com seu desenvolvimento.

    Para tornar a oralidade objeto de uma ao didtica, preciso compreender o modo como ocorrem as mais diversas atividades com a linguagem oral em contextos muito variados. Rapidamente, associam-se as produes orais fala, mas no h como separar a fala da prosdia: da entonao, da acentuao e do ritmo. Sugere-se experimentar dizer a mesma expresso, por exemplo, Feche a porta, ao sair, mudando a entonao, a acentuao e o ritmo, e perceber que mudanas na forma de expresso podem transformar os sentidos do que se diz. Essa expresso, por exemplo, pode se tornar uma ordem ou um pedido, pode ter um tom triste ou enrgico.

    Esses so elementos fundamentais na comunicao com crianas pequenininhas (0 a 3 anos), porque grande parte dos significados construdos na interao com eles advm da melodia oral: da indicao de como comear ou terminar a dirigir-se a eles (entonao), da nfase que se d a certas partes das palavras (acentuao) e da produo de pausas e fluxos que do ritmo e musicalidade aos enunciados. Verbalizar algo de forma mais aguda e rpida pode sugerir alegria, ou de forma grave, com maior intensidade, pode sugerir raiva. Isso no quer dizer que se deva esquecer do toque, do tato e do olfato, os quais tambm so formas usuais de interao com com as crianas pequenininhas e destas com o contexto ao redor.

    Contudo, a comunicao oral envolve outros elementos como mmicas faciais, posturas, olhares, gestualidade e performance corporal daqueles que esto em interao. Todos esses elementos entram na composio da fala, de acordo com as situaes de interao que se compartilha. Por isso, o trabalho com a oralidade no pode desprezar a sua inter-relao com todo o desenvolvimento humano e suas diferentes formas de expresso. Ao levar essa questo em considerao, pode-se atingir todas as crianas na sua diversidade.

    So tambm objetivos importantes deste projeto a valorizao da cultura oral local e outros temas que se relacionem com a vida das crianas, e o contato com gneros orais. Estes remontam s tradies africanas do povo brasileiro, por meio da narrao e da dramatizao de contos e lendas africanas, das brincadeiras e dos jogos com palavras africanas que esto incorporadas no portugus do Brasil, das canes e da experimentao de ritmos, entre outros.

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    Para tanto, sugere-se que os professores desenvolvam variadas atividades e construam colees a partir desses textos que, tradicionalmente, eram passados de gerao a gerao por meio da tradio oral. Muitos deles encontram-se registrados e podem ser usados no Espao Gri. Outros podem ser obtidos por meio de um processo de coleta de patrimnios locais, por meio da participao de familiares e pessoas da comunidade, nas instituies de educao infantil. Para compor esse acervo, importante lembrar que as produes orais, assim como as escritas, circulam em diferentes suportes, tais como os vdeos, DVDs, CDs, gravadores, aparelhos multimdias etc.

    As famlias e os responsveis pelas crianas sero convidados e estimulados a participar deste projeto em vrios momentos e de diversas maneiras. Por isso, fundamental cham-los para uma reunio para apresentar-lhes o projeto, destacar os fundamentos, os objetivos e as atividades que sero realizadas, alm de como e quando podero se engajar no seu desenvolvimento. Este tambm pode ser um espao para acolher sugestes e crticas, possibilitando alteraes na proposta.

    1.2 O que aprender?No desenvolvimento deste projeto, necessrio lembrar que o trabalho ser feito com crianas em um momento importante da construo das suas identidades. Por isso, a realizao do projeto dever privilegiar:

    aconstruodevnculosafetivosedetrocaentreascrianasedelascomos adultos, fortalecendo sua autoestima e ampliando gradativamente suas possibilidades de comunicao e interao social;

    aampliaodasrelaessociais,paraqueascrianasaprendamaospoucosa articular seus interesses e pontos de vista com os demais, respeitando a diversidade tnico-racial, bem como a cultural, e desenvolvendo atitudes de ajuda e colaborao;

    a utilizao de diferentes linguagens (corporal, musical, plstica, oral eescrita) ajustadas s diferentes intenes e situaes de comunicao, de forma que elas compreendam e sejam compreendidas, expressem suas ideias, sentimentos, necessidades, desejos e avancem no seu processo de construo de significados e de sua identidade, enriquecendo cada vez mais sua capacidade expressiva;

    a promoo sistemtica da igualdade bsica da pessoa humana comosujeito de direitos, a compreenso de que a sociedade formada por pessoas

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    pertencentes a grupos tnico-raciais distintos, possuidores de cultura e histria prprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nao brasileira, sua histria;

    osmomentoseespaosparaqueascrianaspossamconhecerevalorizarahistria dos povos africanos e da cultura afro-brasileira na construo histrica da identidade cultural brasileira;

    o reconhecimento da identidade afro-brasileira para a valorizao dadiversidade tnico-racial.

    O desenvolvimento do Projeto Espao Gri contribuir para que as crianas possam ampliar seu repertrio comunicativo e expressivo, bem como desenvolver a linguagem oral. Propicia, por meio de situaes de intercmbios entre geraes, brincadeiras, rodas de conversa e de histria, a construo positiva da identidade cultural das crianas, a retomada de suas histrias de vida e familiares, de suas razes e ancestralidade. As crianas de 0 a 5 anos, respeitando suas especificidades, podero:

    aprenderasecolocarnocoletivo,escutandoatentamen