critica introdução crítica ao processo penal fundamentos da instrumentalidade constitucional-

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335 Revista de Direito do Cesusc. N o 2. Jan/Jun 2007. Resenha Galli. As primeiras linhas da Introdução Crítica ao Processo Penal, ao avesso do que poderia representar um escrito meramente técnico acerca da relevante temática da persecução penal, evocam uma brisa de descoberta. A conformação de um Estado Democrático de Direito, a par de suas funções declaradas de garantir a fruição de direitos sociais e individuais, entre eles, a liberdade, volta-se, de fato, a acobertar uma lógica de crueldade: abona-se um procedi- mento formalmente garantista com o escopo de legitimar o utili- tarismo do direito penal máximo nos momentos anteriores e pos- teriores à formação do processo. A dialética entre instrumentali- dade garantista versus utilitarismo assume, portanto, operacionali- dade orbital dentro da obra do autor. Partindo da base teórica lançada por Luigi Ferrajoli, em seu magistral Direito e Razão, Lopes Jr. desvenda a engrenagem aco- bertada pelo discurso paliopositivista, mostrando que, para além de legitimar uma reprimenda justa, o processo penal dirige-se a punir mais e ‘melhor’, abrindo flancos sacralizados e anti-garantistas na execução das medidas impostas como punição ao imputado, sejam elas oriundas de uma prestação jurisdicional final ou disfar- çadamente cautelar (prisão preventiva e provisória). A apropria- ção do tempo, nessa esteira, acorrenta o eixo do debate, desnu- dando a prática involutiva do ambiente imanente à execução da pena, uma vez que, com a superação da Física Newtoniana, torna- se evidente a diferença entre o tempo transcorrido dentro e fora dos muros prisionais. Dez anos passados no cárcere, tendo em vista a aceleração do tempo social, representam, nesse contexto, uma defasagem potencializada. A relativização temporal, ao signi- ficar o rompimento conceitual com um tempo absoluto, contado pelo relógio e igual para todas as pessoas, acresce ao processo penal, aquém de sua fase executória, a dinâmica da incerteza e do risco, introduzindo o paradoxo existente entre sociedade de risco e sua gerência pelo Direito Penal em suas faces adjetivas e substan- tivas, redundando na ideologia do Estado Segurança. Ao apropriar-se do risco exógeno, intrínseco, em escalas dis- tintas, à estrutura histórica do desenvolvimento social, associado, na modernidade, a uma dinâmica imprevisível e sem concatena- ção causal imediata, o Estado Segurança vincula o saber produzi- do pelo senso comum, identificando incerteza e risco, à violência oriunda da criminalidade. Uma associação simples, pois, dado que os riscos e incertezas afetos à sociedade contemporânea advêm de atitudes ativas cujos autores são indeterminados (riscos ecológi- LOPES JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 297 pp. Joel Eliseu Galli

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Page 1: critica Introdução Crítica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional-

335Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Resenha Galli.

As primeiras linhas da Introdução Crítica ao Processo Penal, aoavesso do que poderia representar um escrito meramente técnicoacerca da relevante temática da persecução penal, evocam umabrisa de descoberta. A conformação de um Estado Democráticode Direito, a par de suas funções declaradas de garantir a fruiçãode direitos sociais e individuais, entre eles, a liberdade, volta-se, defato, a acobertar uma lógica de crueldade: abona-se um procedi-mento formalmente garantista com o escopo de legitimar o utili-tarismo do direito penal máximo nos momentos anteriores e pos-teriores à formação do processo. A dialética entre instrumentali-dade garantista versus utilitarismo assume, portanto, operacionali-dade orbital dentro da obra do autor.

Partindo da base teórica lançada por Luigi Ferrajoli, em seumagistral Direito e Razão, Lopes Jr. desvenda a engrenagem aco-bertada pelo discurso paliopositivista, mostrando que, para alémde legitimar uma reprimenda justa, o processo penal dirige-se apunir mais e ‘melhor’, abrindo flancos sacralizados e anti-garantistasna execução das medidas impostas como punição ao imputado,sejam elas oriundas de uma prestação jurisdicional final ou disfar-çadamente cautelar (prisão preventiva e provisória). A apropria-ção do tempo, nessa esteira, acorrenta o eixo do debate, desnu-dando a prática involutiva do ambiente imanente à execução dapena, uma vez que, com a superação da Física Newtoniana, torna-se evidente a diferença entre o tempo transcorrido dentro e forados muros prisionais. Dez anos passados no cárcere, tendo emvista a aceleração do tempo social, representam, nesse contexto,uma defasagem potencializada. A relativização temporal, ao signi-ficar o rompimento conceitual com um tempo absoluto, contadopelo relógio e igual para todas as pessoas, acresce ao processopenal, aquém de sua fase executória, a dinâmica da incerteza e dorisco, introduzindo o paradoxo existente entre sociedade de riscoe sua gerência pelo Direito Penal em suas faces adjetivas e substan-tivas, redundando na ideologia do Estado Segurança.

Ao apropriar-se do risco exógeno, intrínseco, em escalas dis-tintas, à estrutura histórica do desenvolvimento social, associado,na modernidade, a uma dinâmica imprevisível e sem concatena-ção causal imediata, o Estado Segurança vincula o saber produzi-do pelo senso comum, identificando incerteza e risco, à violênciaoriunda da criminalidade. Uma associação simples, pois, dado queos riscos e incertezas afetos à sociedade contemporânea advêm deatitudes ativas cujos autores são indeterminados (riscos ecológi-

LOPES JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal(Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2004. 297 pp.

Joel Eliseu Galli

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cos, biológicos e econômico-estruturais), sua imputação a elemen-tos ditos socialmente patológicos torna-se o meio útil a legitimarsua administração por intermédio do processo penal.

Lopes Jr. assinala, porém, que a incerteza e o risco contingen-te são elementos afetos à alteridade social, constituindo-se a or-dem, por conseguinte, em exceção à regra do caos. Dessa feita,inserir o processo penal na epistemologia da incerteza constitui fun-damento indeclinável na substituição do modelo operacional utili-tarista por um conjunto de garantias instrumentais voltadas a blin-dar o indivíduo em face da sanha repressora levada a cabo peloEstado Segurança. A temática de sua Introdução Crítica sobreleva,assim, a circunstancial análise doutrinária e objetiva de fatores decriminalização, inserindo-se na procura de uma justificativa à im-plementação das bases garantistas, legitimadas, por seu turno, naimprescindibilidade de limitar o alcance invasivo do policialescoente estatal através da constitucionalização do processo penal.

Os pressupostos, ou, como prefere o autor, os princípios fun-dantes da instrumentalidade garantista são apresentados e esmiuçadosno Capítulo II do livro. Nessa abordagem, a funcionalidade e a opera-tividade do Juiz Penal são as pedras de toque do sistema garantista.Novamente, a temática do tempo insere-se no discurso. Enquanto umjuiz utilitarista volta-se ao passado, abordando o evento trazido a suaapreciação por meio da análise de elementos pretéritos, a ação garan-tista do Juiz aponta para o futuro, instrumentalizando sua atuação comvista à eficácia das garantias do acusado, rompendo-se, desse modo, oquadro paranóico de dependência entre o julgador e aqueles que ansei-am por uma pretensa segurança canalizada na resposta penal punitiva.Vale dizer: a existência do processo penal não está fundada na punição,mas na necessidade de verificar se estão presentes os elementos autori-zadores da sanção penal.

A funcionalidade garantista do Juiz, apesar de relevante, nãose esgota, todavia, em sua ação instrumental. A imparcialidade doJuiz também deve estar presente; porém, desmistificada do sim-bolismo do Monte Olimpo, isto é, subjetiva e objetivamente veri-ficável. O processo penal garantista demanda um julgador huma-no e de olhos físicos e axiológicos bem abertos. A imparcialidadesubjetiva do julgador decorre de sua posição de terceiro em rela-ção às partes, evidenciando um estado anímico alheio aos interes-ses delas. Objetivamente, sua imparcialidade é verificável pelo dis-tanciamento da produção probatória. Sua função restringe-se aadministrar a colheita da prova e não à sua produção, uma vez queum juiz inquisidor é tão nefasto ao processo garantista como umjuiz comprometido com os interesses das partes.

Diretamente ligada à ingerência sobre a colheita da prova,sem, entretanto, contaminar-se com sua produção, surge para oJuiz garantista um novo dever constitucional. De nada adiantariasua imparcialidade objetiva se, no cotejo prático dos resultadospretendidos pelo processo, o acusado acabasse sendo submetido a

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um rito injustificadamente longo. Registra o autor, nessa senda, queprocesso também é pena e, muitas vezes, considerada a carga desofrimento moral e psicológico derivada do estigma processual,mais grave que eventual sanção aplicada em decorrência da viola-ção à norma implícita no tipo penal incriminador. Em função dis-so, a instrumentalidade jurisdicional garantista deve zelar por umprocesso penal livre de dilações indevidas, assistindo ao acusado odireito a um julgamento num prazo razoável, sem, todavia, repre-sentar atropelo às garantias. É o difícil dilema do equilíbrio dociclista: não correr demais para não atropelar as garantias fundamentais, e, aomesmo tempo, não ir muito devagar, para não cair.

Reconhecimento da relatividade temporal, gestão da provaalheia ao julgador, imparcialidade, duração razoável do processo.Mas para quem? A indagação se justifica pelo fato de que as garan-tias assim expressas não representam, em absoluto, a materializa-ção de uma mecânica processual cujo produto final esteja consubs-tanciado em julgamento constitucionalmente justo. Quem é o indi-víduo objetificado como réu na relação processual ? Esse outroque, de tão estranho ao processo penal, não pode nele se fazerpresente sem a devida representação processual, apresenta-se aojuiz utilitarista como sendo um indivíduo com sérias carências moraise personalidade deformada. Assim, o processo penal constituir-se-á, apenas e tão somente, em percalço a ser superado, com vista àcondenação à pena privativa de liberdade, remédio absoluto paratodos os seus males. Na prisão, o réu, prostrado pela reprimenda,irá convalescer socialmente e, após, devolvido, limpo e regenerado,ao saudável paraíso social.

Aos olhos, porém, do julgador garantista, dotado e impreg-nado por sua instrumentalidade, o réu se apresenta, apenas e tãosomente, como parte processual contra a qual foi deduzida umaacusação formal por suposta correspondência de sua conduta atipo penal descritivo. A diferença é abissal. O debate se enriquece.Não se trata mais de superar o processo para punir, mas de supe-rar o processo em busca da desqualificação de uma garantia pecu-liar ao Estado Democrático de Direito: a presunção da inocência.O processo penal, nesse norte, é época de dúvida sadia. E dúvidaem favor do imputado, ao contrário do que acontece no processopenal utilitarista, no qual, como sarcasticamente registrado por Aury,vige o princípio na dúvida, pau no réu.

A neutralização desqualificadora da presunção da inocência,decorrência, aliás, de mandamento constitucional explícito, requera observância de outros tantos princípios nela integrados. Subtrairtal status exige a observância estrita ao direito defensivo expressono contraditório e na ampla defesa, cuja incidência é especialmenteprejudicada nos pontos extremos do processo penal. Portanto,impende reconhecer a necessidade de expor o inquérito policial e aexecução penal a uma crescente imersão no ambiente constitucio-nalizado. Lastreado em farta legislação estrangeira, o autor defende

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Resumos/Abstracts.

a transposição do contraditório e da ampla-defesa ao inquéritopolicial, uma vez que esse, via de regra, irá compor os autos doprocesso penal, porventura instaurado em desfavor do indiciado,prestando-se, muitas vezes, a arrimar a sentença penal condenató-ria exarada com base na prova judicial cotejada com a do inquéri-to. Torna-se evidente, portanto, que, para além de justificar a pro-positura da ação penal, o inquérito policial constitui-se, no discursojudiciário utilitarista e a despeito de seu caráter inquisitivo, em fontede prova, contaminando o ato decisório, razão pela qual Lopes Jr.defende, de lege ferenda, sua exclusão física dos autos do processopenal, restringindo sua funcionalidade à formação do convenci-mento do órgão acusador.

No outro extremo, a deficiência garantista na execução penalprovém de fonte diversa. Apesar da possibilidade de peticionardiretamente ao juiz, falta ao condenado, no mais das vezes, a com-plementaridade da defesa técnica. É como se o indivíduo, até en-tão tutelado, atingisse, por meio de uma engenharia jurídica falaci-osa, a maioridade processual. Não se deve esquecer, entretanto,que o momento executório comporta diversos incidentes que exi-gem a presença efetiva da defesa técnica, tanto mais quando severifica a supressão de garantias com base em pretensa periculosi-dade do condenado, atestada em laudos criminológicos, destruin-do-se o contraditório e a ampla defesa por intermédio do discur-so psiquiátrico. Lopes Jr. pontua que o perigo dessa prática resideem seu subjetivismo irrefutável, estabelecendo-se a ditadura domodelo clínico. Dessarte, surge a contingência da constitucionaliza-ção da execução penal, substituindo o modelo vigente, de notastipicamente utilitaristas, por um processo executório que conservenas mãos do condenado todos os direitos que não foram suprimi-dos pela sentença penal condenatória, entre eles o contraditório e acapacidade defensiva plena, englobando defesa pessoal e técnica.

Arrematando, ciente de que a grandeza da obra reside noacabamento refinado, Aury Lopes Jr. registra a imprescindibilida-de da motivação racional nos atos decisórios, identificando o pro-cesso garantista e a eficácia dos direitos que lhe são afetos com aprevalência do saber sobre o poder, sem, todavia, que isso impli-que no endeusamento de uma razão cartesiana, pois não existeracionalidade sem emoção. Dessa maneira, o juiz garantista deve sepor a pensar e a sentir, afastando o mito de sua pretensa neutrali-dade, assumindo, ainda que contra uma suposta vontade da maio-ria materializada na lei, a função constitucional da tutela do indiví-duo acusado, operando sobre uma base principiológica que ultra-passe o mero exercício exegeta de subsunção do fato à norma. Seo Direito cria um universo destemporalizado, incumbe ao juiz ga-rantista, precipuamente, promover sua adequação à realidade soci-al, pensando, sentindo e garantindo um processo penal constituci-onalmente justo.