cândido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

Upload: hercules-benicio

Post on 11-Feb-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    1/363

    A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO3 edio revista e atualizada Cndido R. Dinamarco

    1 " edio, 1987 - 2 edio, 1990

    Direitos reservados desta edio por:MALHEIROS EDITORES L TDA.

    Rua Libero Badar, 377 - conjunto 2.306CEP 01074-900 - So Paulo - SP

    TEL: 37-8505 - 36-1781- FAX. 239-1938

    Fotocomposio, Paginao e Filmes:Helvtica Editorial Ltda.

    Capa:Nadia Basso

    Impresso no Brasil

    Laise aos nossos trs

    Printed in Brazil02 - 1993

    SUMRIO

    MINHAPROPOSTA. ........... ............. 11NOVOS RUMOS DO INSTRUMENTALISMO. . . . . . . . . . . . 13Parte IPREMISSAS METODOLGICAS E CONCEITUAISI - PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS DODIREITO PROCESSUAL1. Sincretismo, autonomia e instrumentalidade. . . . . 17

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    2/363

    2. O processo e a ordem constitucional. . . . . . . . . . 243. O processo e a ordem constitucional(mutaes) ............................... 304. O processo como instrumento de mutaes naordem constitucional e legal........... . ..... 39

    5. Perspectiva publicista do processo..... . ..... 44II - A TEORIA GERAL DO PROCESSO6. O papel da teoria geral do processo..... ...... 587. Sua extenso metodologicamente til (asdiversas espcies de processos). ......... ..... 638. Cont.(processo e poder).... . ......... .... 67III - JURISDIO E PODER9. A jurisdio (poder) ao centro da teoriaprocessual ................................ 7710. Jurisdio e deciso no quadro da polticae do poder .............................. 8211. Jurisdio e deciso ........ . ......... ..... 8912. Cont.(imunizao) ......... .......... ...... 9113. Cont.(imperatividade). .......... . ...... .. 9514. Jurisdio e poder do ponto-de-vista do direitoprocessual ... ...... . .... . . ......... .. 9814.1 Jurisdio, podere comportamento...... . 9914.2 Jurisdio, sano, coero, coercibilidade. 104I4.3 Jurisdio e influncia - a jurisprudnciae seu valor .......................... 10814.4 Participao no processo decisrio... .... 112

    8 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    14.5 Jurisdio (poder) e dinmica do poder. . .I5. Perspectiva funcional da jurisdio. . . . . . . . . . .

    15 .1 Unidade da jurisdio . . . . . . . . . . . . . . . .15.2 Jurisdio voluntria . . . . . . . . . . . . . . . . .

    16. Processo, procedimento e contraditrio. . . . . . . .17. Legitimidade ..................... .. ......

    Parte II

    A INSTRUMENTALIDADE DO SISTEMA PROCESSUAL

    113114119121

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    3/363

    126137

    IV - ESCOPOS DA JURISDIO EINSTRUMENTALIDADE18. Processo, escopos, instrumentalidade. . . . . . . . . 14919. Os escopos da jurisdio. . . . . . . . . . . . . . . . . . I5020. Relatividade social e poltica. . . . . . . . . . . . . . . 155

    V - ESCOPOS SOCIAIS21. Pacificarcomjustia ......... ..... ..... ... 15922. Educao ........................ ........ 16223. Escopos sociais e tcnica processual. . ....... 164VI - ESCOPOS POLITICOS24. Os escopos polticos ............ ... ..... .. 16825. Escopos polticos e tcnica processual....... .. 172VII - O ESCOPO JURIDICO26. O problema .... ............... .. ........ 17727. Colocaes introspectivas ........ .. ..... .. 17828. O processo e o direito ..................... 18128.1 Pontos de estrangulamento.... .. ...... 18328.2 Entre a teoria unitria e a dualista........ 18928.30 juiz e o processo.. . . ..... .... .... 19528.4 Os nus processuais e a conduta daspartes ...... .............. .. .... ... 20128.5 Suficincia do direito substancial. .... ... 20629. Atuao da vontade concreta do direito...... . 20929.1 Crticas e confrontos.......... . ...... 21330. Escopo jurdico e tcnica processual.. ... .... 219VIII - ESCOPOS DO PROCESSO E TCNICAPROCESSUAL31. Atcnicaeosescopos ........ .... . ...... 224

    SUMRIO

    32. Equilbrio de exigricias conflitantes......... ..33. Certez2t; probabilidade e risco em direitoprocessual.33.1 No processo de conhecimento............33.2 Cont.(especialmente quanto ao valor donus da prova) .....................33.3 No processo de execuo. . .......... ..33.4 No processo cautelar ............... . ..

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    4/363

    IX - A INSTRUMENTALIDADE E SEU DUPLOSENTIDO34. Proposies metodolgicas. . . . . . . . . . . . . . . . .35. O aspecto negativo da instrumentalidade. . . . . . .

    36. O aspecto positivo e a efetividade do processo. .36.1 Admissoemjuzo ................... ..36.2 O modo-de-ser do processo. . . . . . . . . . . . . .36.3 Justia nas decises . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36.4 Utilidade das decises. . . . . . . . . . . . . . . . .37. Instrumentalidade e acesso justia. . . . . . . . . . .38. Temas fundamentais do processo civilmoderno. .............. . . ..............9

    229236243247255260

    265267270274283293297303

    305

    CONCLUSES......... .................. ........... . 309BIBLIOGRAFIA .. . .......... . . .............. ..... 323

    MINHA PROPOSTA

    O objetivo central desta obra levar aos estudiosos do processo ci-vil a minha proposta de reviso do modo como encaram a sua cinciae os institutos integrantes do universo de suas investigaes. tempo

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    5/363

    de integrao da cincia processual no quadro das instituies sociais,do poder e do Estado, com a preocupao de definir funes e medira operatividade do sistema em face da misso que Ihe reservada. Jno basta aprimorar conceitos e burilar requiztes de uma estrutura muitobem engendrada, muito lgica e coerente em si mesma, mas isolada e

    insensvel realidade do mundo em que deve estar inserida. Da a pro-posta de colocar o prprio sistema processual como objeto de examea ser feito pelo ngulo externo, ou seja, a partir da prvia fixao dosobjetivos a perseguir e dos resultados com os quais ele h de estar per-manentemente comprometido. a proposta de uma nova perspectiva.

    Por imposio do seu prprio modo de ser, o direito processual so-fre da natural propenso ao formalismo e ao isolamento. Ele no vaidiretamente realidade da vida, nem fala a linguagem do homem co-mum. O homem comum o ignora, o prprio jurista o desdenha e os pro-fissionais do foro lamentam as suas imperfeies, sem atinar com meiospara melhor-lo. A descrena de todos na Justia efeito das mazelasde um sistema acomodado no tradicional mtodo introspectivo, que noinclui a crtica do sistema mesmo e dos resultados que ele capaz deoferecer aos consumidores finais do seu servio -, ou seja, aos mem-bros da populao.

    A nova perspectiva aqui proposta constitui motivo para a aberturado sistema processual aos influxos do pensamento publicista e solidaris-ta vindo da poltica e da sociologia do direito. Pelo fio da instrumenta-lidade, o processo h de receber as lies que durante sculos negou-sea ouvir e sentir as crticas que jamais soube racionalizar. Racionalizando-as e aprendendo quais so os bices atuais plena realizao da missorecebida, ele ter dado um passo enorme em direo ao desejado aper-feioamento.

    Este estudo no tem a pretenso de inovar por inteiro e, transgre-dindo regras, princpios e mtodos, chegar a solues de absoluta origi-nalidade. Como a natureza, tambm as cincias do pensamento no cos-tumam dar saltos muito bruscos. O que se pretende aqui reconstruir

    12 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    o pensamento dos processualistas modernos e interpretar os rumos atuaisde sua cincia, propondo algum passo em continuao marcha e nalinha da direo adotada, para concluir com uma enftica mensagemao esprito de todos quantos manipulam o instrumental da Justia.

    Na verdade, uma srie de mensagens, ligadas entre si pelo ncleocomum da instrumentalidade do processo ao direito e do sistema jurdi-co aos valores sociais e polticos da nao. Prope-se a desmitificaodas regras do processo e de suas formas e a correspondente otimizaodo sistema, para a busca da alcandorada efetividade do processo. Sotemas que de algumas dcadas para c vm freqentando as pginas dos

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    6/363

    escritos especializados e o momento chegado para que, com a cons-cincia dos defeitos do sistema e viso dos caminhos a trilhar, uma no-va mentalidade se forme entre os cultores do processo. preciso pensarde acordo com os tempos.

    Espero que, revelando as tendncias da atualidade e destacando os

    objetivos a realizar, o presente estudo seja capaz de alguma contribui-o trazer formao do novo pensamento preconizado e conseqenteaperfeioamento do prprio mecanismo prccessual - porque o proces-so e as suas teorias e a sua tcnica tm a sua dignidade e o seu valordimensionados pela capacidade, que tenham, de propiciar a pacificaosocial, educar para o exerccio e respeito aos direitos, garantir as liber-dades e servir de canal para a participao democrtica.

    So Paulo, janeiro de 1986

    NOVOS RUMOS DO INSTRUMENTALISMO

    Este estudo pretendeu ser uma sntese das novas tendncias meto-dolgicas representadas pela bandeira da efetividade do processo, pelodestaque ao seu carter instrumental e pela exaltao de sua misso re-levantssima perante a sociedade - e no mais apenas perante o direitomaterial, como se acreditava antes. Alm de minhas reflexes pessoaise propostas levantadas ao longo da exposio, rene informaes sobreo pensamento de doutrinadores de escol, empenhados nessas novastendncias.

    Fiquei muito gratificado, como no podia deixar de ser, pelo su-cesso obtido no concurso ctedra de direito processual civil em minhaFaculdade, onde A instrumentalidade do processo foi a tese defendida.Muito feliz, ainda, com a boa aceitao que duas edies da obra j vie-ram a ter.

    Mas o compromisso no termina ali. Definidas as linhas do instru-mentalismo processual e o sentido vetorial da presso sofrida pela agili-zao do sistema como algo destinado a pacificar pessoas, preciso agoratraduzir tudo isso em resultados prticos. preciso, em outras palavras,retornar dogmtica processual, agora com o esprito esclarecido pelaviso dos objetivos a conquistar.

    A novssima tendncia do instrumentalismo processual, agora queele j foi capaz de se definir de modo consistente e implantar-se em de-finitivo no plano terico, volta-se para o estudo de certos grandes te-mas, em suas perspectivas teleolgicas e com vistas ao aprimoramentodo sistema processual. Eis por que, nesta terceira edio, procuro des-tacar alguns desses temas fundamentais, numa proposta de seu reestu-do e reformulao. Convido o leitor interessado a refletir e questionaras solues que envolvem temas clssicos como o da legitimidade ad cau-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    7/363

    sam e o dos limites subjetivos da coisa julgaja (infra, n. 38), com a co-ragem de afrontar dogmas, a prudncia em no expor os litigantes a in-seguranas e a esperana de dotar a sociedade de instrumentos mais geispara a realizao da justia.

    Na sesso de encerramento do IX Congresso Internacional de Di-

    reito Processual, em Lisboa aos 30 de agosto de 1991, discursando co-mo orador oficial, o Prof. Jos Carlos Barbosa Moreira deu nfase necessidade de revisitar a tcnica processual. Sugere que a disciplina dos

    14 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    velhos institutos e a soluo de antigos problemas sejam orientadas como aporte das conquistas dos recentes Congressos. essa mesma a utili-dade que este livro pretende ter, ou seja, a de servir de motivo para re-flexes acerca da tcnica processual, indispensvel realizao da justia.

    PARTE PRIMEIRA

    .PREMISSAS METODOLOGICAS

    E CONCEITUAIS

    I

    PERSP ECT Iv AS ME7ODOLGICAS ATUAISDO DIREITO PROCESSUAL

    l. Sincretismo, autonomia e instrumentalidade; 2. Oprocesso e a ordem cons-titucional' 3. O processo e a ordem constitucional (mutaes); 4. O processocomo instrumento de mutaes na ordem constituciona! e legal,' 5. Perspecti-va publicista do processo.

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    8/363

    l. Sincretismo, autonomia e instrumentalidade

    Chegou-se idia do direito processual como cincia, mediante umiter de desligamento das matrizes conceituais e funcionais antes situa-das no direito material e cuja inadequao somente principiou a ser sen-

    tida conscientemente a partir da metade d sculo passado. O influxoracionalista do "sculo das luzes" haveria de permitir, tambm nessecampo, a viso de fenmenos que durante todo o curso da Histria dasinstituies permaneceram ocultos percepo dos juristas.l As trans-formaes polticas e sociais havidas na Europa desde o sculo anteriortinham sido capazes de alterar a frmula das relaes entre o Estadoe o indivduo, com a ruptura de velhas estruturasz - e isso foi respon-svel pelas primeiras preocupaes em definir os fenmenos do proces-so, onde assoma a figura do juiz como agente estatal, a partir de pre-

    1. Cfr. Liebman, "Ai lettori brasiliani" (apresentao da edio brasileira do seu Ma-nua! de direito processual civi, p. IX.

    2. Cfr. Jellinek, Allgemeine Staatslehre, p.188, o qual, aps destacar o trinmio emque se expressa a vida do Estado (conservar-ordenar-ajudar), fala da evoluo das relaessociais no sentido de uma crescente solidariedade; e "quanto maior o interesse solidrio,maior a responsabilidade do Estado pela sua satisfao' '. A idia central essa, do acrs-cimo de interesses comuns na sociedade gerando responsabilidades maiores a cargo do Es-tado e essas responsabilidades conduzindo a um intervencionismo mais ou menos acentua-do, como requisito indispensvel para o cumprimento das crescentes atribuies; o Estadofaz-se responsvel pela realizao integral da condio humana de cada um, assumindo oencargo de criar condies para isso e tornando-se, nesse sentido, "a providncia do seupovo" (cfr. Ferreira Filho, "Conjuntura poltica nacioaal - o Poder Executivo", p. 6).

    t

    18 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    missas e conceitos antes no revelados cincia dos estudiosos que se de-bruavam sobre o "direito judicirio civil" (meraprocdure). Tinha-se,at ento a remanosa tranqilidade de uma viso plana do ordenamen-tojuridico, onde a ao era definida como o direito subjetivo lesado (ou:o resultado da leso ao direito subjetivo), a jurisdio como sistema detutela aos direitos, o processo como mera sucesso de atos (procedimen-to); incluam a ao no sistema de exerccio dos direitos (jus quod sibidebeatur, judicio persequendi) e o processo era tido como conjunto deformas para esse exerccio, sob a conduo pouco participativa do juiz.Era o campo mais aberto, como se sabe, prevalncia do princpio dis-positivo e ao da plena disponibilidade das situaes jurdico-processuais

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    9/363

    -, que so diretos descendentes jurdicos do liberalismo poltico entovigorante (laissez ,Iaire, laissez passer et !e monde va de lui mme).

    Foi esse sincretismo jurdico, caracterizado pela confuso entre osplanos substancial e processual do ordenamento estatal, que no sculoXIX principiou a ruir. Primeiro, questionou-se o tradicional conceito

    civilista de ao e afirmou-se a sua grande diferena, seja no plano con-ceitual ou funcional, em face da actio romana: ela no (como esta)instituto de direito material, mas processua:; no se dirige ao advers-rio, mas ao juiz; no tem por objeto o bem litigioso, mas a prestaojurisdicional.3 A celeuma provocada por essas afirmaes revolucion-rias (hoje, to naturais aos olhos do jurista moderno) acabou gerandoreaes em cadeia, que chegaram at plena conscincia da autonomiano s da ao, mas dela e dos demais institutos processuais. A primei-ra dessas repercusses foi a tomada de conscincia para a autonomiada relao jurdica processual; que se distingue da de direito substancialpelos seus sujeitos, seus pressupostos, seu objeto.4 Com a descoberta

    3. Na obra revolucionria de Bernhard Windscheid (Die "actio" des rmischen Zi-vilrechts vom Standpunkt des heutingen Rechts), ponto inicial da famosa polmica tantasvezes lembrada nos estudos dos processualistas, um dos propsitos fundamentais foi ode afastar o paralelismo entre a actio romana e a ao do direito moderno, a partir daobservao de que o sistema romano foi um sistema de actiones, no de direitos; ao queos romanos designavam por actio, disse, corresponde o que hoje se chamapretenso (Ans-pruch), ou seja, a "faculdade de impor a prpria vontade por via judiciria" (cfr. Puglie-se, "Introduzione" ao volume Polemica intorno all'actio; Betti, "Ragione e azione", esp.p.106, p. 3). Na resposta polmica de Theodor Muther a esse escrito, onde se sustentoua prioridade do direito com referncia ao tambm no direito romano (defendida, pois,a reaproximao dos conceitos de actio e ao), foram ditas aquelas coisas indicadas notexto, sobre a natureza da ao (direito tutela jurdica) e sua titularidade passiva (o ma-gistrado, no o adversrio). Essa histrica polmica foi o marco inicial do inconformismodo jurista moderno em face das colocaes tradicionais, e isso como reflexo do Iluminis-mo sobre a cincia processual secularmente dcil s tradies privatistas. Ela principioutodo um movimento de acomodao do processo ao modo-de-ser da conjuntura poltico-social em que se insere.

    4. Von BOlow, na verdade, no criou a idia da relao jurdica processual e suaconfigurao trplice: ele apenas a racionalizou e desenvolveu, propondo desdobramen-PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 19

    da autonomia da ao e do processo, institutos que tradicionalmenteocupavam com exclsividade a primeira linha das investigaes dosprocessualistas, pde ser proposta desde logo a renovao dos estudosde direito processual, surgindo ele como cincia em si mesma, dotadade objeto prprio e ento esboada a definio de seu prprio m-todo.5

    Essa postura autonomista transpareceu, ainda a partir do sculo pas-sado, nas investigaes em torno do conceito da ao, permitindo che-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    10/363

    gar at afirmao de seu carter abstrato, o que constitui o mais ele-vado grau de proclamao de sua autonomia. Alm disso, permitiu tam-bm toda a explorao desse campo fertilssimo e pouco conhecido atento, que o dos fatos e situaes jurdicas do processo: surgiram osgrandes tratados e importantssimas monografias que so do conheci-

    mento geral e serviram para possibilitar o uso adequado do instrumen-tal que o direito processual oferece.6

    tos. Antes dele, j dissera Blgaro que judicium est actus trium personarum, judicis, ac-toris, rei; as Ordenaes do Reino diziam que "trs pessoas so por Direito necessriasem qualquer Juzo, Juiz que julgue, autor que demande e ru que se defenda" (L. III,XXX, pr.); na obra de Bethmann-Holweg, que o prprio Von Billow refere na sua, igual-mente havia aluso relao jurdica processual. A inovao racionalizadora teve pormritoprincipal o destaque dos dois planos do prprio ordenamento jurdico, a partir da visoda relao jurdica processual e da relao de direito privado como duas realidadesdistintas.

    5. Se o mtodo "processo ordenatrio da razo" (Miguel Reale, Filosofia do di-reito, I, n.16, p. 72) e justifica-se por oferecer a "certeza dosresultados" das investiga-es mediante juzos coerentes e adequados ao real (id. , ib.); e se a realidade que a cinciaprocessual examina apresenta suas caractersticas prprias, natural que ela disponha doprprio mtodo, caracterizado por premissas bem definidas e conscientizadas. E era na-tural a fragilidade metodolgica e portanto cientfica do direito processual, nos temposem que se acreditava ser a ao um instituto de direito privado. Dizia-se, v. g.: "aoe exerccio da ao exprimem noes distintas. A ao pertence ao direito civil ou comer-cial, conforme for a matria de que se trate com relao lei; o exerccio da ao de-manda propriamente dita, a qual j ento pertence ao regime judicirio'' (Paula Baptista,Compndio, 5, p. 12). Disse-se tambm que o direito processual vivia de crdito, aotraar suas elaboraes em torno da ao, instituto de direito privado e dajurisdio, dedireito constitucional (Wetzell, apud Liebman, Manual de direito processua! civil, n. 21,esp. nota 3, p. 40 trad.). Hoje a situao no essa e o objeto material especfico do direi-to processual est perfeitamente identificado nos seus institutos sobejamente conhecidos(especialmente, nos quatro "institutos fundamentais": cfr. Dinamarco, Fundamentos doprocesso civil moderno, cap. 3, nn. 27-42, pp. 38 ss.). Mas as grandes premissas metodo-lgicas do direito processual vo sendo substitudas nas ltimas dcadas como neste estu-do salientado. quelas que correspondem introspeco do sistema vo se acrescendoou em certa medida sucedendo outras, reveladoras de uma viso exterior. a tal proble-mtica metodolgica, em sntese, que se dedicam as presentes investigaes.

    6. Foram os tempos da grande escalada da tcnicaprocessual, em que gradualmentemas em breve tempo os institutos do processo foram-se revelando e foram sendo desco-bertas as relaes entre eles. Bastante expressivo dessa idia tcnica o ensaio de Carnaci-ni, "Tutela giurisdizionale e tecnica del processo", em que se toma por ponto de partidaaquele bastante tradicional, do processo visto do ponto-de-vista do autor, para depois en-

    22 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    11/363

    quadra da cincia processual, pr ao centro das investigaes a polmi-ca em torno da natureza privada, concreta ou abstrata da ao; ou assutis diferenas entre a jurisdio e as demais funes estatais, ou ainda

    a precisa configurao conceitual do jus excepcionis e sua suposta assi-milao idia de ao.11 O que conceitualmente sabemos dos institu-tos fundamentais deste ramo jurdico j constitui suporte suficiente pa-ra o que queremos, ou seja, para a construo de um sistema jurdico-processual apto a conduzir aos resultados p:ticos desejados. Assoma,nesse contexto, o chamado aspecto tico do processo, a sua conotaodeontolgica. lz

    A negao da natureza e objetivo puramente tcnicos do sistemaprocessual ao mesmo tempo afirmao de sua permeabilidade aos va-lores tutelados na ordem poltico-constitucional e jurdico-material (osquais buscam efetividade atravs dele) e reconhecimento de sua inser-o no universo axiolgico da sociedade a que se destina. As premissasculturais e poltico-jurdicas da atualidade repelem, v. g. , a distino daeficcia probatria do testemunho, a partir do status societatis de quemo presta; repelem tambm o valor das provas legais de fundo supersti-cioso, que nos soam como pitoresca reminiscncia do obscurantismo me-dieval;l3 de palpitante atualidade a questo das provas obtidas pormeio ilcito, que a preservao das liberdades constitucionalmente asse-guradas levou o Constituinte a proibir que sejam acolhidas no proces-

    colocao que neste trabalho proposta, na linha da tendncia da processualstica moder-na, reside em primeiro lugar no abandono de uma atitude puramente gnosiolgica, quequer interpretar o processo sem descobrir meios de transform-lo para melhor ("os fil-sofos no fizeram mais que interpretar o mundo, trata-se porm de transform-lo'' : apudBazarian. Oproblema da verdade, p. 21); ou, na palavla autorizada de Mauro Cappellet-ti, "de contestar radicalmente um mtodo de estuo tipicamente escolstico, dogmticoe formalista, endereado busca de um cincia `pura' e ideologicamente neutra, mtodoque foi e, em certa medida, ainda predominante na doutrina jurdica do nosso pas' '(Pro-cesso e ideologr'e, `premessa", p. VII). Sabe-se que "nenhuma ao transformadora po-der ser bem sucedida se ignorarmos a natureza das coisas com que lidamos" (id., ib.),mas sem a viso ntida dos objetivos e inconformismo com os resultados que tem sidopossvel obter, o imobilismo inevitvel. Toda tomada de deciso inclui a "fase crtica"consistente na definio de bjetivos (Deutsch, Poktica e governo, p. 185) e por isso que, para essa atitude "funcionalista", que se nega "a dar prevalncia s estruturas orga-nizativas do Estado" (cfr. Denti, Processo civile e giustizia sociale, p. 13), a questo te-leolgica muito importante e se associa ao mtodo instrumental proposto.

    11. Por isso que, da jurisdio, aqui se apresenta somente uma "perspectiva fun-cional" (infra, n. 15), com a explcita inteno de aproxim-la das demais funes esta-tais, minimizando distines. O conceito deprocesso, que em si mesmo bastante funcio-nal, merece ateno compatvel com as premissas metodolgicas aceitas.

    12. Bagolini: "si intenda per definizioni deontologiche quelle in base alle quali la

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    12/363

    rilevanza giuridica di una norma o di un ordinamento sia indicata come dipendente dallaconformit a un valore e a un `dover essere' (giustizia, libert, bene comune, ecc.)" (Vi-sioni della giustizia e senso comune, pp. 179-180).

    13. Cfr. Cappelletti, Processo e ideologie, pp. 6-7.

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 23

    so.l4 Na experincia brasileira mais recente temos o modo como os tri-bunais vieram a replffsar o princpio da demanda e o da fidelidade daliquidao sentena liqizidanda: foi preciso, sem ultrajar substancial-mente esses princpios, repudiar a interpretao nominalista da deman-da civil de contedo pecunirio, bem como da sentena que a acolhe -,para permitir a atualizao dos valores monetrios e defender o credoreficazmente do mal inflacionrio.5 Outra relevantssima ilustrao daafirmada infiltrao de valores na vida dos processos dada pelo modoprudente como os tribunais brasileiros dimensionaram o efeito da reve-lia: nem mesmo a inteno manifesta do legislador, em preceitos trazi-dos ao ordenamento positivo no corpo do Cdigo de Processo Civil, foicapaz de determinar a aplicao rgida dessa rigorosssima sano pro-cessual, com as injustias e distores a que daria causa e sem o fiel cum-primento dos propsitos a que institucionalmente voltado o processo eo exerccio da jurisdio.

    Tudo isso e muito mais so manifestaes dapostura instrumenta-lista que envolve a cincia processual, neste terceiro momento metodo-lgico. a instrumentalidade o ncleo e a sntese dos movimentos peloaprimoramento do sistema processual,l6 sendo consciente ou inconscien-temente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento davia de acesso ao Judicirio e eliminao das diferenas de oportunida-des em funo da situao econmica dos ujeitos, nos estudos e pro-postas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade doprocesso, nas preocupaes pela garantia da ampla defesa no processocriminal ou pela igualdade em qualquer processo, no aumento da parti-cipao do juiz na instruo da causa e da sua liberdade na apreciaodo resultado da instruo.

    A viso instrumental que est no esprito do processualista moder-no transparece tambm, de modo bastante visvel, nas preocupaes dolegislador brasileiro da atualidade, como se v na Lei das Pequenas Cau-sas,i na Lei da Ao Civil Pblica,s no Cdigo de Defesa do Consu-

    14. Const., art. 5, inc. LVI. Cfr. Ada P. Grinover, Liberdadespblicas eprocessopenal, n. 3.2.5.5, esp. p. 267.

    15. Cfr. Dinamarco, Fundamentos doprocesso civilmoderno, cap.11, esp. n.158,pp. 297 ss.; no fundo, isso constitui uma interpretao evolutiva dos princpios, que noos menospreza ou enfraquece, mas os vivifica com a legitimidade decorrente sua inte-grao ao pensamento da sociedade contempornea (cfr. Dinamarco, "Princpios e crit-rios no processo das pequenas causas", n. 1, pp. 102-103).

    16. Ela "la porta maestra, attraverso la quale le ideologie penetrano nel proces-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    13/363

    so"; Mauro Cappelletti, com essas palavras, alude "s ideologias que esto base do di-reito substancial, pblico e privado, bem como dos seus institutos" (cfr. Processo e ideo-logie, p. 6).

    17. Lei n. 7.244, de 7 de novembro de 1984.18. Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985.

    24 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    midorl9 e no Cdigo de Defesa da Criana e do Adolescente2o (medi-das destinadas efetividade do processo).21 indispensvel que tam-bm o intrprete fique imbudo desse novo mtodo depensamento e se-jam os juzes capazes de dar ao seu instrumento de trabalho a dimensoque os tempos exigem.

    Aprimorar o servio jurisdicional prestado atravs do processo, dan-do efetividade aos seus princpios formativos (lgico, jurdico, poltico,econmico), uma tendncia universal, hoje. E justamente a instru-mentalidade que vale de suficiente justificao lgico-jurdica para essaindispensvel dinmica do sistema e permeabilidade s presses axiol-gicas exteriores: tivesse ele seus prprios objetivos e justificao auto-su-ficiente, razo inexistiria, ou fundamento, ara p-lo merc das mu-taes polticas, constitucionais, sociais, econmicas e jurdico-subs-tanciais da sociedade.

    2. O processo e a ordem constitucional

    Generoso aporte ao aprimoramento do processo em face dos seusobjetivos tem sido trazido, nestas ltimas dcadas, pela colocao me-todolgica a que se denominou direito processual constitucional e queconsiste na "condensao metodolgica e sistemtica dos princpios cons-titucionais do processo''. t A idia-sntese que est base dessa moder-na viso metodolgica consiste na preocupao pelos valores consagra-dos constitucionalmente, especialmente a liberdade e a igualdade, que

    19. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990.20. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990.21. Sobre a efetividade do processo, especialmente no que diz respeito s leis referi-

    das, v. infra, n. 36.1 ("Admisso em juzo").Sobre a volta dogmtica processual, agora com a tcnica direcionada efetividade

    do processo e amplo acesso justia, v. infra, n. 38.1. Cfr. Cintra-Grinover-Dinamarco, Teoriageraldoprocesso, n. 33, p. 73. "No

    se trata de um ramo autnomo do direito processual" (est dito ali), como das palavraspoderia parecer -, "mas sim de uma colocao cientfica, de um ponto-de-vista metodo-lgico e sistemtico, do qual se pode examinar o processo em suas relaes com a Consti-tuio" (cfr. ainda Grinover, Osprincipios constitucionais e o Cdigo de Processo Civil,n. 3, p. 7). O direito processual constitucional, antes considerado na obra de Calamandrei

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    14/363

    e de Liebman, hoje de grande moda entre os processualistas italianos, destacando-seMauro Cappelletti, Vincenzo Vigoriti, Luigi Paolo Comoglio, Vittorio Denti, Nicol Tro-cker, Giuseppe Tarzia, Giovanni Giacobbe. No Brasil, sem contar a antecipao desse pen-samento constitucionalista em passagem de Joo Mendes Jr., ele foi implantado por JosFrederico Marques e extraordinariamente desenvolvido por Ada Pellegrini Grinover, Jo-

    s Carlos Barbosa Moreira, Kazuo Watanabe. No quadro sul-americano, assoma o nomede Eduardo Juan Couture, predecessor de Adolfo Gelsi Bidart e Dante Barrios de ngelis(Uruguai), dos atuantes processualistas de La Plata (Augusto Mario Morello, Carlos Al-berto Nogueira, Juan Carlos Hitters, Roberto Omar Berizonce); do quadro processual-constitucional a nvel latino-americano, preocupou-se, no Mxico, Hector Fix-Zamudio.

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 25

    afinal so manifestaes de algo dotado de maior espectro e significa-o transcendente: o;alor justia. O conceito significado e dimensesdesses e de outros valores fundamentais so, em ltima anlise, aquelesque resultam da ordem constitucional e da maneira como a sociedadecontempornea ao texto supremo interpreta as suas palavras - sendonatural, portanto, a intensa infiltrao dessa carga axiolgica no siste-ma do processo (o que, como foi dito, justificado pela instrumentali-dade).2-3

    A viso analtica das relaes entre processo e Constituio revela aoestudioso dois sentidos vetoriais em que elas se desenvolvem, a saber: a)no sentido Constituio-processo, tem-se tutela constitucional deste e dosprincpios que devem reg-lo, alados a nvel constitucional; b) no senti-do processo-Constituio, a chamadajurisdio constitucional, voltadaao controle da constitucionalidade das leis e atos administrativos e pre-servao de garantias oferecidas pela Constituio ("jurisdio consti-tucional das liberdades"), mais toda a idia de instrumentalidade pro-cessual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabeleci-do para a realizao da ordem jurdica, constitucional inclusive.

    A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo deassegurar a conformao dos institutos do direito processual e o seu fun-cionamento aos princpios que descendem da prpria ordem constitu-cional. No campo do processo civil, v-se a garantia da inafastabilidadeda tutela jurisdicional; no do penal, o da ampla defesa, sendo rigorosa-mente indispensvel a celebrao do processo, como condio para aimposio da pena (nulla poena sine judicio); todo processo h de serfeito em contraditrio, respeitada a igualdade entre as partes peranteo juiz natural e observadas as garantias inerentes clusula dueprocessoflaw. O processualista moderno adquiriu a conscincia de que, comoinstrumento a servio da ordem constitucional, o processo precisa refle-tir as bases do regime democrtico, nela proclamados; ele , por assimdizer, o microcosmos democrtico do Estado-de-direito, com as cono-taes da liberdade, igualdade e participao (contraditrio), em climade legalidade e responsabilidade.4 A evoluo do sistema de garantias

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    15/363

    2. Cfr. supra, n. 1. nota 13.3. A perspectiva constitucionalista no postula, nem se postula neste estudo, a subs-

    tituio da tcnica processual pela orientao proposta, mas o emprego do raciocnio cons-

    titucionalista em benefcio da melhor tcnica e adequada utilidade social e poltica do sis-tema processual (definir propsitos). Quer-se por essa via, organizar melhor a realidadeprocessual a partir de grandes premissas colhidas na ordem constitucional e conscientiza-das pelo processualista -, sabido que "a perspectiva no distorce mas organiza a realida-de" (Celso Lafer, O Brasil e a crise mundial, p. 20).

    4. "Nel processo si riflettono, come in uno specchio, i grandi temi della libert edella giustizia, i fondamentali problemi della convivenza sociale e internazionale" (Cap-pelletti, Processo e ideologie).

    26 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    constitucionais dos princpios do processo e da organizao judiciria,a partir do conhecido art. 39 da Magna Charta Libertatum (Joo-Sem-Terra,1215) e atravs dos aprimoramentos creditados s Constituies,bills of rights, tribunais e doutrinadores, vai caminhando nos temposatuais para a conscientizao generalizada entre os usurios dos meca-nismos processuais.5

    Na jurisprudncia brasileira recente, conhecem-se situaes em que,independentemente de lei especfica a consagrar certos princpios cons-titucionais do processo, tm eles sido lembrados e impostos em casosconcretos e mediante suas aplicaes especficas. o caso, v.g. , da rei-terada orientao no sentido de ser nulo o interrogatrio do acusadosem a presena do defensor, por violao ao princpio constitucional daampla defesa;6 ou de julgado que repeliu a aplicao rgida de regrasdo Cdigo de Processo Civil sobre o valor da causa, porque a exagera-da elevao deste para fins de adiantamento de custas representa incons-titucional entrave ao acesso Justia e violao ao princpio constitu-cional da inafastabilidade do controle jurisdicional (por anlogo fun-damento, a Corte constitucional italiana declarou inconstitucional a exi-gncia de cautio pro expensis, que tambm viola a garantia constitucio-nal da igualdade);s-9 ou, ainda, de vrios posicionamentos em prol daabertura da legitimatio ad causam, seja para dar um elastrio maior aosignificado da locuo "direito individual", contida na garantia da ina-fastabilidade do controle jurisdicional, seja repudiando o individualis-mo da regra da legitimao individual.lo

    5. Cfr. Grinover, Osprincpios costitucionais, n. 4, p. 8: "o antecedente histricodas garantias constitucionais do processo constitudo pelo art. 39 da Magna Charta";continha a garantia do devido processo legal, embora sem empregar a locuo hoje con-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    16/363

    sagrada (falava em !aw of the land), a qual surgiu pela primeira vez no sculo seguinte(rei Eduardo III, estatuto de 1534).

    6. Cfr. Cintra-Grinover-Dinamarco, Teoria geral do processo, n.199, esp. p. 309.7. Cfr. TJSP,1 C. Civ., agr. instr. n. 61.427-1, j. 15.10.85, rel. Rangel Dinamar-

    co, v. u.

    8. Cfr. Liebman, Manual, I, n. 65, p. 133.9. Em funo da garantia do contraditrio, cheguei a suspeitar da inconstitucionali-dade dos incs. I e III do art. 17 do Cdigo de Processo Civil, em sua redao primitiva:ambos limitavam excepcionalmente a defesa e sancionavam a resistncia oposta sem con-vico ou mediante culposa suposio de situaes inexistentes (cfr. Dinamarco, Direitoprocessual civil, n. 6, esp. p. 10). Como destacou Liebman, "se cada litigante pode con-tar, para vencer, apenas com a prpria capacidade de explorar os elementos e os argu-mentos favorveis, no se pode pretender que fornea tambm os que lhe so desfavor-veis e poderiam favorecer o adversrio" (Manual, I, n. 60, esp. p.124); e o Cdigo chega-va a considerar litigante de m-f aquele que omitisse fatos desfavorveis (art. 17, inc.III), o que evidentemente tolhia a liberdade de participao contraditria (v. tambm Barbi,Comentrios, I, n.160, p.178). Uma lei posterior substituiu a redao do inc. I por outraaceitvel e suprimiu a hiptese do inc. III (lei n. 6.771, de 27.3.80).

    10. Cfr. Const., art. 5, inc. XXXV, CPC, arc. 6. A garantia da ao no seofere-ce somente nos casos de leso ("leso", elemento civilista sobrevivo em pelo menos dois

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 27

    Fala-se najurisdio constitucional, pensando-se agora diretamen-te na instrumentalidae do sistema processual ordem social econmicae poltica representada pela Constituio e leis ordinrias: o processo "meio, no s para chegar ao fim prximo, que o julgamento, comoao fim remoto, que a segurana constitucional dos direitos e da execu-o das leis".1 No mbito dela (que tambm leva o nome dejustia cons-titucional), alm dos mecanismos destinados verificao da constitu-cionalidade das leis ` ` alguns pases adotaram tambm um arsenal de pro-cessos especiais destinados a assegurar a certos direitos fundamentais dohomem uma tutela jurisdicional particularmente forte e diferenciada''. 2

    Entende-se que os mecanismos e institutos integrantes da jurisdi-o constitucional guardam estreita relao funcional com a ateno doconstituinte ao equilbrio entre poder e liberdade e ao reconhecimentode que a lei, os estatutos e o contrato s se legitimam na medida em quecompatveis com os valores guardados superiormente na Constituioe no, simplesmente, porque tenham em si prprios a razo de sua exis-tncia e eficcia (jus quiajussum): preciso assegurar, inclusive mediantea predisposio de formas adequadas rpidas e enrgicas para o exerc-cio da jurisdio, a prevalncia normativa da vontade oriunda da maiselevada fonte de poder no Estado, ou seja, assegurar a supremacia daConstituio. Essa uma premissa bsica do Estado-de-direito, onde no

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    17/363

    basta a proclamao do intuito de agir "segundo o direito e no segun-do o arbtrio",3 sendo indispensvel a oferta de canais para o juzo do

    dispositivos vigentes no direito brasileiro: cfr. Dinamarco, "Institutos fundamentais", inFundamentos do processo civil moderno, n. 29, esp. p. 46); a frmula constitucional, ut

    verba sonant, apresenta-se demasiadamente estreita (cfr. Barbosa Moreira, "Notas sobreo problema da `efetividade' do processo", n. 4. esp. p. 83) e, na realidade, bem mais am-pla a garantia da inafastabilidade do controle jurisdiional em matria civil (cfr.Wata-nabe, Controlejurisdicional, n. 14, esp. p. 35, para quem a garantia constitucional doart. 5, inc. XXV, bastante ampla e visa "efetiva realizao judicial do direito"-frmula com que supera eventuais restries ao caso de leso). Na realidade, alis, a ga-rantia da ao civil vai ao ponto de abrir as portas do Judicirio, tambm, para situaescaracterizadas como interesse legitimo e no autntico direito subjetivo: cfr. TJSP,1C.Civ. emb. infr. n. 32.204-1, rel. Rangel Dinamarco, m. v. (tratava-se de vizinho que emgrau de apelao havia sido julgado carente de ao ao demandar condenao do proprie-trio ao lado a demolir construo feita sem observncia de regras edilcias sobre o recuofrontal); Ada P. Grinover, todavia (Osprincpios, n. 6, esp. nota 39, p.17), apia Barbina excluso dos interesses legtimos (mas cfr. Barbi, Do mandado de segurana, n. 78,pp. 86 ss.). O repdio legitimao exclusivamente individual constitui tendncia moder-na em prol da "efetividade do processo": v. infra, n. 36.1 ("Admisso em juzo").

    11. Palavras de Joo Mendes Jr. Da ser "inegvel o paralelo entre a disciplina doprocesso e o regime constitucional em que o processo se desenvolve" (Cintra-Grinover-Di-namarco, Teoria geral do processo, n. 32, p. 72).

    12. Cfr. Cappelletti, "Appunti per una fenomenologia della giustizia nel XX seco-lo", 2, a, esp. p.158. Ele que fala emjustia constitucional, no "jurisdio" constitu-cional: tero natureza jurisdicional as atividades que a caracterizam? v. infra, n. 15.

    13. Agir segundo o direito e no arbitrariamente constitui, segundo Trocker, carac-terstica formal do Estado-de-direito (Processo civile e cosiituzione, p. 96): o Estado-de-di-

    28 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    bem ou do mal em casos concretos, ou seja, para o reconhecimento dodireito e banimento do arbtrio.

    No contexto da jurisdio constitucional, indispensvel no Esta-do-de-direito, a primeira ordem de mecanismos que a doutrina traz colao a dos destinados ao controle da constitucionalidade das leis.O constituinte tem por premissa a falibilidade do legislador e pe empe-nho em fazer valer em sua feio atual o binmio lei-liberdade, assimestruturado:4 "no mais direitos de liberdade na medida das leis, masleis na medida dos direitos de liberdade'' 15 (esse o sugestivo aforismorepresentativo da moderna escalada "do princpio da legalidade ao daconstitucionalidade"). Indica-se o controle da constitucionalidade dasleis como o mais moderno entre os instrumentos destinados a tornar efe-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    18/363

    tivo o princpio da supremacia constitucional, pouco importando se ele feito por rgo especfico (as cortes constitucionais europias) ou seconstitui controle "difuso" a ser feito pelo Poder Judicirio, como nosistema norte-americano, que no Brasil se adota; o que tem relevncia tratar-se de controle ` `inter-rgos'', feito por instituio diversa da

    responsvel pela elaborao da norma. I No sistema difuso que prati-camos, a possibilidade do controle incidenter tantum ativa a instrumen-talidade do prprio processo jurisdicional ordem constitucional, sema necessidade da ciso do julgamento da causa (nos sistemas europeus,o rgo judicirio somente "deliba" a questo constitucional e enviao julgamento corte competente).1

    Vm depois os institutos de controle da constitucionalidade e inte-grantes do bloco a que se denomina jurisdio constitucional das liber-dades. O mandado de segurana e o habeas corpus brasileiros tm suasfunes bem definidas e aquele serve para a proteo das liberdades p-blicas ("direito lquido e certo") somente enquanto no tuteladas pelosegundo, o qual, por sua vez, destinado ao zelo pela liberdade corpo-ral do indivduo. So captulos conhecidos na doutrina brasileira a ori-gem do mandado de segurana no juicio de amparo dos mexicanos e

    reito substancialmente, hoje, Estado social, e a problemtica poltica "verdadeira" con-siste em "buscar o sistema (e meios) para realizar efetivamente esses programas" (os pro-gramas de ao assumidos pelo Estado social) (ib., p. 118).

    14. Cfr. Trocker, ib., p. 127.15. Cfr. Trocker, ib., p.126, dizendo ainda: "...ou, mais geralmente, no mais le-

    galidade da Constituio, mas constitucionalidade das leis".16. Cfr. Trocker, ib., p.127; sobre o controle externo ("inter-rgos") e o seu sig-

    nificado poltico, cfr. Loewenstein, Verfassungslehre, cap. VIII, pp. 294 ss. trad. (comespecial destaque aos "controles inter-rgos dos tribunais perante o governo e o Parla-mento").

    17. Cfr. Liebman, Manual, I, n.13, pp.18-19; Dinamarco, nota 21, ib. (considera-es sobre o direito brasileiro).

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 29

    a da proteo liberdade de locomoo, no habeas corpus de formaoanglo-saxnica.

    A Verfassungsbeschwerde introduzida na Alemanha federativa porlei ordinria autorizada no Grundgesetz e depois elevada dignidadeconstitucional ambivalente, estendendo-se "no somente liberdadepessoal, mas a todos os direitos individuais e sociais proclamados pelaConstituio de Bonn".ls Esse remdio potenciado, da competncia daCorte constitucional federal, destina-se em primeiro lugar efetividadedos chamados direitos fundamentais (Grundrechte) ou seja, direitos de-correntes de preceitos constitucionais. A nosa ao popular, se bem no

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    19/363

    destinada a tutelar somente a observncia da Constituio nos atos ad-ministrativos (prende-se ao binmio ilegalidade-lesividade), tambm,como os dois remdios precedentes, oferecida pela Constituio em nor-ma programtica, ou de "eficcia contida" (e depois explicitada em leiordinria). Instrumentalidade mais especificamente ligada ordem cons-

    titucional tem-se no seu homnimo germnico (a Popularklage, da Cons-tituio da Bavria), pertinente tambm a quisquis depopulo para a re-pulsa "contra as violaes do bill ofrights contido na Constituio da-quele Land, perpetradas pelas autoridades pblicas deste'' ,19

    A nossa ao direta de inconstitucionalidade passou a integrar a ju-risdio constitucional das liberdades a partir de quando a legitimidadeativa deixou de ser exclusiva do Procurador-Geral da Repblica eestendeu-se a diversas entidades representativas do povo, com possibili-dade de liminar que beneficiar pessoas ou categorias.2o

    Em todo o campo coberto pela jurisdiFo constitucional das liber-dades v-se, pois, a obsecada preocupao em dar efetividade s garan-tias que a Constituio oferece, para que no fiquem em mera promes-sa. Isso substancialmente assim tambm nos mecanismos de controlede constitucionalidade das leis e atos normativos da Administrao, on-de se trata de impedir que prevaleam se e quando em conflito com aordem constitucional. Conclui-se, portanto, que toda ajurisdio cons-titucional se caracteriza como conjunto de remdios processuais ofere-cidos pela Constituio, para a prevalncia dos valores que ela prpriaabriga. Eis ento, de modo visvel, a relao de instrumentalidade des-ses remdios para com a Constituio. lcito concluir, ainda, que to-do o direito processual constitucional constitui uma postura instrumen-talista -, seja nessa instituio de remdios destinados ao zelo pela or-

    18. Cfr. Cappelletti, "Appunti per una fenomenologia della giustizia nel XX seco-lo", 2, esp. p. 159; v. tambm Trocker, Processo civile e costituzione, p. 148.

    19. Cfr. Cappelletti, ib.; homonmia referida no corresponde, como se v, equi-valncia funcional entre a Popularklage e a ao popular brasileira.

    20. Cfr. Const., art. 103.

    30 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    dem constitucional, seja na oferta de garantias aos princpios do pro-cesso, para que ele possa cumprir adequadamente a sua funo e con-duzir a resultados jurdico-substanciais desejados pela prpria Consti-tuio e pela lei ordinria (tutela constitucional do processo).

    Fora do campo do direito processual constitucional, tem-se a ins-trumentalidade do processo, pelas vias ordinrias, ordem constitucio-nal enquanto integrante da ordem jurdica nacional globalmente consi-derada. Sempre que d efetividade a algum preceito contido em lei ordi-nria, indiretamente o processo est servindo Constituio, na medi-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    20/363

    da em que aquele necessariamente irradiao de preceitos e princpiosconstitucionais.

    3. O processo e a ordem constitucional (mutaes)

    natural que, como instrumento, o sistema processual guarde pe-rene correspondncia com a ordem constitucional a que serve, inclusiveacompanhando-a nas mutaes por que ela passa. Em princpio, o pro-cesso acompanha as opes polticas do constituinte, as grandes linhasideolgicas abrigadas sob o plio constitucional. "Os sistemas polticosse refletem na norma constitucional e tm um efeito direto sobre as ba-ses do direito processual".1 Compreende-se, pois, que o processo do Es-tado Iiberal no possa sobreviver nos regimes socialistas, nem esteja maispresente no Estado ocidental contemporneo, de cunho social. O pro-cesso que nos serve hoje h de ser o espelho e salvaguarda dos valoresindividuais e coletivos que a ordem constitucional vigente entende de cul-tuar. Os princpios que ela inclui no podem ter no presente a mesmaextenso e significado de outros tempos e regimes polticos, apesar deeventualmente inalterada a formulao verbal.2 O que h de perene nosprincpios a idia-mestra que cada um contm; e eles so sujeitos avariaes histrico-culturais e polticas no tempo e no espao, no tocan-te sua extenso e interpretao que merecem dentro de cada sistemaconstitucional. A instabilidade histrica das estruturas e instituies so-

    1. Cfr. Habscheid, "As bases do direito processual civil", n.1., esp. p.119. Essaafirmao muito significativa, especialmente pela sua colocao num relatrio de con-gresso internacional, onde a comparao jurdica tnica destacada (cfr. supra, n.1, no-ta 7) e pela insero em rubrica com a sugestiva indicao "oprocesso civi! enquanto ins-tituio do Estado"; as instituies do Estado ho de ter, necessariamente, o feitio doEstado a que pertencem.

    2. Cfr. ainda, Habscheid, op. loc. cits.: "freqentemente a terminologia jurdica a mesma, mas o significado dos termos diverso". Essa uma observao elementarmas indispensvel em direito comparado; em suas aulas de "direito constitucional italia-no e comparado", na Faculdade de Cincias Polticas da Universidade de Milo, o prof.Paolo Biscaretti di Ruffia observava a semelhana verbal das Constituies sabidamenteintegradas em sistemas polticos dos mais diferentes matizes e dizia que, para sentir a dife-rena, "bisogna andar sulposto".

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 31

    ciais atinge tambm os princpios constitucionais do processo, que as-sim no podem ser rirosamente considerados sub specie aeternitatis.3

    Pois o Estado social contemporneo, que repudia a filosofia polti-ca dos "fins limitados do Estado", pretende chegar ao valor homematravs do culto justia e sabe que, para isso, indispensvel dar ao

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    21/363

    conceito de "justia" um contedo substancial e efetivo. preciso re-duzir as diferenas sociais e econmicas tanto quanto possvel, gerandooportunidades. preciso assegurar a fruio, por todos, dos bens ma-teriais e imateriais que integram o patrimnio comum da nao. pre-ciso criar efetivas condies para a mobilidade scio-econmica, inclu-

    sive mediante a liberdade de associao. E o Estado, ento, pretenden-do ser "a providncia do seu povo",4 sente que o bem-estar coletivo de-pende intimamente da sua participao efetiva nos destinos da popula-o. Ele , por isso, declaradamente intervencionista, agindo sobre a or-dem econmica e social e buscando a sua modelagem segundo os objeti-vos da ideologia aceita. O "pacto social" refletido na nova ordem cons-titucional, inclui o traado de diretrizes nesse sentido da integrao so-cial e econmica da populao.

    3. Trata-se de princpios "gerais", ou "fundamentais", mutveis por sua prprianatureza porque associados sempre a opes tomadas fora do sistema processual e lana-das sobre ele; os princpios "informativos" (ou "formativos"), que so diretamente liga-dos tcnica processual, no recebem reflexos das mutaes polticas, nem direta nemnecessariamente (cfr. supra n. 1, nota 9, com especiai ateno ao pensamento de Men-dona Lima). A reCatividade histrica dos princpios gerais do processo reflete-se na di-menso da garantia constitucional da ao (cfr. Calamandrei: "Relativit del concetto diazione" na "magnitude" da jurisdio, no modo como se estabelece a cooperao entreos sujeitos processuais, etc.: referem-se a propsito, na literatura processual, os ensaiosde Calamandrei ("Relativit del concetto di azione") e de Pekelis ("Azione - teoria mo-derna"), ambos escritos sobre a a'o provavelmente porque o processualista latino doseu tempo estava inteiramente condicionado idia da ao como centro do sistema (cfr.Dinamarco, "Os institutos fundamentais", in Fundamentos do processo civil moderno,n. 36. pp. 62 ss.; v. infra, n. 9).

    4. Entre aspas, palavras j citadas de Manoel Gonalves Ferreira Filho (supra n.1, nota 2). O ilustre constitucionalista disse-as no contexto de exposio acerca do Welfa-re State, que Dalmo Dallari distingue do Estado social, neste estudo considerado porqueo bem-estar, que o caracteriza, no tem toda a dignidade do bem comum (cfr. Elementosde teoria geraldo Estado, n. 50, p. 92). No repdio aos "fins limitados" do Estado, Dal-lari observa que, perante essa concepo, "se h ou no injustias isso fica em plano se-cundrio, interessando apenas a obedincia aos preceitos que so formalmente jurdicos"(ib., esp. p. 93). Na "lei fundamental de Bonn" (Constituio da Repblica FederativaAlem), est proclamado o "Estado... democrtico e social" e a propsito o processua-lista Nicol Trocker desenvolve agudas consideraes, sempre associando as idias de Es-tado social e Estado-de-direito (cfr. Processo civile e costituzione, pp. 96 ss.). Os dois as-pectos, social e jurdico, considerados por Trocker remontam a um significado polticoque os unifica: o Estado , realmente, uma "pirmide de trs faces", como foi dito suges-tivamente por Miguel Reale ao referir o aspecto social, o jurdico e o poltico da sua teoria(cfr. Reale, Teoria do direito e do Estado, p. 108).

    32 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    22/363

    Por outro lado, o Estado contemporneo tende a ser Estado-de-di-reito, onde assoma a garantia da legalidade e a abertura do Poder Judi-cirio como guarda ltimo da Constituio e dos valores e garantias que

    ela abriga e oferece. Os sucessivos movimentos poltico-sociais da Hu-manidade nos ltimos duzentos anos, com a Revoluo Francesa, e aindustrial, gerando a ascenso da burguesia e do proletariado e a uni-versalizao do voto mais a urbanizao da populao e notvel expan-so dos meios de comunicao de massa, so fatores da crescente cons-cientizao cvico-poltica das populaes (no Brasil, o movimento"diretas-j" e mesmo a explorao publicitria do drama da molstiae morte do presidente eleito acabaram cumprindo esse importante papelde provocar um processo de despertar da populao adormecida, paraos valores cvicos da nao). Pois, nesse quadro, constitui verdadeiratrend universal, apoiada em sentimentos mais ou menos conscientiza-dos pelas populaes, a observncia dos padres de legalidade e bani-mento do arbtrio, como prprio do Estado-de-direito.5

    Por isso que o processo nos Estados ocidentais de hoje, marcadospelo cunho social e legalista, h de oferecer tambm em si mesmo a ga-rantia da legalidade processual (seria estranho o juiz, rgo estatal, agircom arbtrio no exerccio da sua funo de controlador da legalidade)e ser dotado de meios aptos a promover a igualdade e garantir a liberda-de. A maneira como diante da escala axiolgica da sociedade contem-pornea so interpretadas as garantias constitucionais de igualdade subs-tancial entre as pessoas (e entre as partes), da inafastabilidade do con-trole jurisdicional, da ampla defesa e do contraditrio, do devido pro-cesso legal - todos eles endereados efetividade do processo em suafuno de instrumento a servio da ordem constitucional e legal -,6conduz existncia de um processo acessvel a todos e a todas as suascausas (por mais humildes que sejam aqueles e menor expresso econ-mica tenham estas), gil e simplificado, aberto participao efetiva dos

    5. Falar em Estado-de-direito falar na "face jurdica" do Estado (v. nota ant.),considerando em primeiro lugar a legalidade a que submetido o exerccio do poder. En-quanto tal e considerada isoladamente, esta nada tem a ver com os postulados liberal-de-mocrticos, sabido que o jurdico superficial e serve a qualquer infra-estrutura sociale poltica. No absurdo, v. g., que nos regimes totalitrios o princpio da legalidade sejaafirmado e cultuado, como sucedia na URSS. Quando se apercebeu da fragilidade dasposies marxistas radicais contra o direito e o prprio Estado, em 1936 disse Stalin enfa-ticamente: "agora, mais importante do que nunca a estabilidade das leis" (cfr. SantaPinter, Sistema del derecho sovitico, pp. 3-10, esp. p. 5). A legalidade dos regimes direi-tistas (como o nosso dos vinte-e-um anos recm-findos) , em si mesma, to neutra comoa sovitica e nenhuma delas oferece resguardo aos valores democrticos da liberdade, daigualdade e da participao nos destinos do Estado. Por isso que, com Trocker, na rela-tividade das opes polticas do Ocidente, segundo as tendncias do tempo, de todo acerto

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    23/363

    aproximar os conceitos de Estado-de-direito e Estado social.6. Sobre a "efetividade do processo", infra, n. 36.

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 33

    sujeitos interessados e contando com a atenta vigilncia do juiz sobrea instruo e sua inrferncia at ao ponto em que no atinja a pr-pria liberdade dos litigantes. A Lei das Pequenas Causas e o Cdigode Defesa do Consumidor so ilustraes desses reflexos processuaisdas opes scio-polticas contidas na ordem constitucional: o novoprocesso Que institui (no mero procedimento novo) apresenta um "con-junto de idias"s que constitui resposta adequada e moderna s exi-gncias contidas nos princpios constitucionais do processo (processoacessvel, aberto, gratuito em primeiro grau de jurisdio, gil, sim-ples e concentrado, permevel a um grau elevadssimo de participaodas partes e do juiz). E a Lei da Ao Civil Pblica, disciplinandoa legitimatio do Ministrio Pblico e associaes para demandas deproteo judiciria ao consumidor e ao patrimnio paisagstico e am-biental, outro reflexo da ordem constitucional vigente, sensvel re-levncia scio-cultural de valores dessa ordem e necessidade de ofe-recer efetivas garantias de sua preservao e fruio geral (inafastabili-dade do controle jurisdicional em relao aos interesses difusos; v.tambm art. 129, inc. III).9

    No contexto da sensibilidade do sistema processual aos influxos emutaes da ordem constitucional que se situam as propostas e as "on-das" renovatrias do processo, pois natural que o instrumento se alte-re e adapte s mutantes necessidades funcionais decorrentes da variaodos objetivos substanciais a perseguir.o Todo esse discurso envolven-

    7. Fala Gelsi Bidart na "universalizao e adequao do processo" (cfr. "Procesoy poca de cambio", pp. 442-443); ele quer um sistema aberto e um processo "comunit-rio" (p. 444), tendo os seus sujeitos "maior proximidade e possibilidade de colaboraomais adequada ao preparo dos elementos editados para a prolao do julgado". E FritzBaur chega a sustentar que a atividade judicial (ou juiisdicional?) inclui uma assistnciajudicia! spartes, cabendo ao juiz "sugerir-lhes que requeiram as providncias necess-rias e ministrem material de fato suplementar, bem como introduzir no processo as pro-vas que as partes desconheam ou lhes sejam inacessveis"; em seguida, diz que "namaioriados casos o juiz consegue evitar o perigo" de envolver-se demasiadamente no conflito eperder a imparcialidade (cfr. Baur, ` `Transformaes do processo civil em nosso tempo'',I, p. 59). Essa constitui tpica manifestao do Estado intervencionista, inconcebvel numclima de liberalismo (o tema associa-se "efetividade do processo", esp. quanto ao item"o modo de ser do processo": v. infra, n. 36.2).

    8. Lei n. 7.244, de 7 de novembro de 1984, e lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990.Cfr. Dinamarco, "Princpios e critrios no processo das pequenas causas", n.1, esp. pp.105-106 (as palavras entre aspas so freqentemente empregadas por Watanabe, em ex-posies orais sobre o tema).

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    24/363

    9. Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985.10. Diz-se, em sociologia, que os sistemas sociais tm certas "funes bsicas em

    comum", sendo autorizadamente indicadas quatro: a) manter seus modelos bsicos; b)adaptar-se s condies variveis; c) integrar suas prprias tarefas e funes; d) atingiros seus prprios objetivos (cfr. Deutsch, Poltica e governo, p. 154). Pois na tarefa de

    adaptao v-se manifestao da dinmica social, que dinmica do prprio Estado en-

    34 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    do a correspondncia do instrumento aos objetivos e a afirmao do pro-cesso como microcosmos tem valor relativo, porm, quando sujeito aocrivo de uma apreciao fenomenolgica (a correspondncia deveria serconstante e absoluta, mas no ).

    Quando se d a ruptura revolucionria da ordem constitucional, sen-do radical e brusca a mudana de rumos polticos, toda a ordem jurdi-ca tende a mostrar-se desde logo manifestamente imprestvel e tambma reforma das instituies processuais faz-se urgente e indispensvel. Sen-do a prpria revoluo antijurdica perante a ordem precedente, antiju-rdica passam a ser, perante a nova ordem criada (na medida do rep-dio ordem jurdica afastada), as instituies com ela incompatveis.ilPor isso que, passada a fase de conflito entre a ordem preexistente ea revolucionria e a de institucionalizao fundamental da revoluo,chega o momento em que toda a nova ordem jurdica vem a ser com-posta, inclusive no plano das instituies processuaisl2 (implantada a

    quanto sociedade. O Estado, em certas situaes, v-se obrigado ou entende convenientemudar de objetivos (como, no Brasil, a mudana obcecada em direo segurana nacio-nal, a partir do ano de 1968) ou autotransformar-se (v. g., do liberalismo poltico ao Esta-do social contemporneo). E natural que essa dinmica se acentue nos tempos moder-nos, dadas as rpidas transformaes a que presenciamus: "o mundo paroquial de peque-nos grupos se converteu em grande sociedade num prazo relativamente curto", do queresultou uma "brecha entre o passado e o futuro que, segundo Hannah Arendt, se tradu-ziu pelo esfacelamento dos padres morais e das categorias polticas que compunham acontinuidade histrica da tradio ocidental" (cfr. Jos Eduardo Faria, Poder e legitimi-dade, pp.15-16). Ora, com os novos padres morais e polticos em cena, entende-se queo direito, que instrumento da poltica e das instiruies sociais, precisa passar por umprocesso de afeioamento a essa ordem instituda. Quanto ao processo, nessa poca demudana, tambm chamado a alterar-se para poder "cumprir, de acordo com os tem-pos, sua meta de realizar a justia positiva no caso concreto com verdadeira eficcia"-dados que faro com que "a sociedade o aceite como tal, o incorpore adequadamenteao seu desenvolvimento" (cfr. Gelsi Bidart, "Proceso y poca de cambio", VII, A, p.441); e o ideal, dificilmente atingvel, seria o da evoluo do sistema processual ao mesmoritmo das instituies polticas, sociais ejurdico-substanciais (a sua acelerao, ou "rapi-dao": cfr. Gelsi, op. cit., I, C, nota 1, p. 422).

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    25/363

    11. Esse contraste menos sensvel nas falsas revolues latino-americanas, ondepouco mais se tem do que enrijecimento das relaes entre Estado e indivduo (no pas-sando de "auto-golpes", aplicados pelos prprios detentores do poder; ex.: Brasil,1968)ou alterao subjetiva de governantes (Gelsi Bidart: "mera" revoluo). Karl Deutsch:"em sistemas polticos, uma autotransformao violenta, dizendo respeito a uma parte

    significativa da sociedade, chamada de revoluo, e distinta dos coups d'tat ou das re-volues palacianas, que to-somente trocam aspessoas que esto no poder ou as leis emvigor, sem, no entanto, mudarem os fundamentos do modo de viver na sociedade" (Poli-tica e governo, p. I58).

    12. Segundo Gelsi Bidart, "revoluo e direito... encontram-se fundamentalmenteem trs momentos": a) contraste entre a ordem revolucionria em vias de implantaoe a ordem precedente; b) imposio da "ordem jurdica revolucionria", de transio;c) institucionalizao da nova ordem, estvel ("Proceso y poca de cambio", II, C, p.427; rubrica "proceso y revolucin"). Alcal-Zamora, ao repelir a idia da pseudoju-PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 35

    Revoluo Francesa e a proletria, sobrevieram desde logo os cdigosde Napoleo e o sotico). Em caso de mutaes revolucionrias brus-cas e radicais na ordem constitucional, portanto efmero o descom-passo entre o processual e o substancial, seno menos provvel que dure.

    Mas a ordem processual mostra-se ordinariamente mais lenta quea Constituio, na sua evoluo gradual segundo a interpretao din-mica (sociolgica) dos textos. A causa mais aguda desse retardamento o preconceito consistente em considerar o processo como mero instru-mento tcnico e o direito processual como cincia neutra em face dasopes axiolgicas do Estado.13 Essa neutralidade ideolgica , na rea-lidade, sobrecapa de posturas ou intuitos conservadores. Disse-se, at,que ela "incorpora e perpetua o liberalismo do sculo XIX",' o que

    risdio revolucionria (o processo seria "um ato anti-revolucionrio, de tal modo quejuzo e revoluo viriam a ser ngulos opostos pelo vrtice", porque a parcialidade ine-rente aos julgamentos revolucionrios), diz que as revolues de verdade "supem o le-vante contra uma situao caracterizada por sua flagrante e insuportvel injustia polti-ca, econmica ou social e, correlativamente, pelo desejo de instaurar um novo regime li-vre dos vcios do antigo"; mas admite as arbitrariedades praticadas pelos tribunais revo-lucionrios e chega a dizer que "a justia de Villa ou Zapata teve, realmente, muito dorespectivo caudilho e pouco ou nada de justia" ("Justicia y revolucin", nn.1, 2 e 11,pp. 20 e 28). Entende-se que o autor se refere aos perodos de implantao da revoluo,do seu direito e da sua justia; e que, na passagem da para o perodo da revoluo institu-cionalizada e mesmo da por diante a "imparcialidade" do juiz no equivalha a uma su-posta indiferena poltica, que seria a negao da prpria ordem revolucionria.

    13. Se houvesse a conscincia arraigada da identidade ideolgica entre processo edireito substancial, sentir-se-ia mais rapidamente e de modo mais firme a necessidade deatualizao do sistema processual. Mas este tende a manter-se retardado com relao aosprogressos do direito material e isso "se deve no tanto natureza prpria de suas nor-mas, como maior ateno que sepresta s substantivas, porque, seguramente e medi-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    26/363

    da que (historicamente) se separa e d maior importncia ao direito substantivo sobre oprocessual, preponderantemente aquele que se destina a afetar a vida humana em rela-o" (Gelsi Bidart, "Processo y poca de cambio", V, A, p. 433). O processo, afinal, instrumento manipulado somente pelos profissionais do foro e (especialmente o proces-so civil) no integra o acervo de conhecimentos do homem comum (cfr. Dinamarco, Fun-

    damentos, n. 34, esp. p. 57: "o processo no um fato da vida cotidiana do leigo").14. Cfr. Denti, Processo civile e giustizia sociale, p.17 (esp. nota 10, em que trans-creve o dito acima), destacando o liberalismo poltico que se projetou na "ideologia jur-dica que dominou a cincia do processo em toda a primeira metade do sculo e que trans-pareceu nas grandes obras sistemticas bem conhecidas de todos os estudiosos". Ele falade "uma cincia aparentemente neutra", preocupada com os princpios e garantias quecompem a estrutura interna do direito processual. E conclui: "na realidade, a `neutrali-dade' dessas construes conceituais era apenas aparente, pois elas correspondiam em cheio ideologia conservadora da qual a cincia jurdica havia colhido os seus princpios infor-madores". To intensa e generalizada , hoje, a afirmao do carter tico do processo(ou carter deontolgico: comportamentos pautados segundo os valores escolhidos) quequase se torna um lugar-comum a sua reafirmao. Justifica-se, porm, pela necessidadede passar da teoria prtica e promover, alm das alteraes legislativas indispensveis,acima de tudo uma verdadeira mudana de mentalidade quanto ao processo e o modode trat-lo: sublima Mauro Cappelletti o carter genuinamente revolucionrio das novas

    36 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    talvez constitua um exagero mas seguramente denuncia a sobrevivnciade nveis intolerveis de prevalncia do princpio dispositivo, em plenoEstado intervencionista. A mesma preocupao que leva a opor cuida-dosas ressalvas ao prprio emprego do vocbulo ideologia em cinciapoltica transparece nesse outro preconceito, pelo temor de que, tangi-do por ideais polticos de colorao marxista, pudesse o juiz trair o seudever de imparcialidade e a sua condio de agente estatal do regimecapitalista.5 O erro consiste em esquecer que o juiz membro da so-ciedade em que vive e participa do seu acervo cultural e dos problemasque a envolvem, advindo da as escolhas que, atravs dele, a prpria so-ciedade vem a fazer no processo.l6

    Um dos grandes servios que o processualista prestou ao direito e justia nas ltimas dcadas foi a enrgica afirmao do comprometi-mento axiolgico das instituies processuais: ele repensou o significa-do e a medida da "indiferena inicial" a que obrigado o juiz, o qualna realidade precisa estar iluminado pela viso dos resultados scio-econmicos e polticos a que a sua deciso poder conduzir. Na Lei

    colocaes processuais (refere-se especificamente ao acesso Justia), com o qual se pre-tende, mais do que os resultados imediatos e peculiares s propostas feitas, a instituiode um novo mtodo de anlisejurrrlica (cfr. Cappelletti, "Acesso alla giustizia come pro-gramma di riforma e come metodo di pensiero", n. 5, pp. 75-76). Na literatura processual

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    27/363

    sovitica, compreensivelmente preocupada com as projees polticas do direito econfrontoentre o seu regime socialista e o capitalismo ocidental, foi destacado que a tarefa da cin-cia do direito processual "consiste em desmascarar o carter `apoltico' das teorias bur-guesas do processo civil e pr a calva a sua essncia reacionria" (cfr. Gurvich, Derecho

    procesalsovitico, 6, p. 25). Todas essas afirmaes tm o grande valormetodolgicoda insero do processo num contexto social e poltico, com o rompimento da supostabarreira entre o jurdico e essa ordem mais ampla.

    15. Refiro-me ao repdio que a doutrina da Escola Superior de Guerra vota ideo-logia como tal, sem distinguir "ideologias"; em coletnea organizada para os seus esta-girios no ano de 1975, reuniu, entre outros estudos, uma pesquisa do des. Antonio deArruda sobre "como a ESG tem focalizado as ideologias" (cfr. Realidades contempor-neas - ideologia, distribuio interna). Percebe-se, especialmente conhecendo-se a linhapoltica da ESG, que a sua preocupao mesmo, como est no texto, pela infiltraomarxista, o que a leva a repudiar a prpria idia de ideologia, como expresso da falsida-de de dogmas e pensamento. As ideologias a que se mostram permeveis os sistemas pro-cessuais so ` `razes e condicionamentos sociais e culturais que em determinado contextohistrico situam-se e atuam na norma e no instituto, na lei e no ordenamento, assim comona interpretao e, em geral, na atividade dos juzes e dos juristas" (cfr. Cappelletti, Pro-ceso e ideologie, "premessa", p. IX). E, sobre o tema, dissera Mannheim: "embora omarxismo tenha contribudo grandemente para a formulao original do problema, tantoa palavra como o seu significado so muito mais antigos do que o marxismo, e, depoisque apareceu esse movimento, o termo se viu enriquecido por novos sentidos, concebidosindependentemente dele" (cfr. Ideologia e utopia, II, n. 1).

    16. Sobre as relaes entre direito e processo, incluindo o exame da funo do juiznesse contexto, v. infra, nn. 28.2, 28.3 e 28.5.

    17. Imparcialidade no significa indiferena axiolgica; "iseno do magistrado nosignifica insensibilidade" (cfr. 1" TACSP, JTtl 74/243). Esse pensamento transpareceu

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 37

    das Pequenas Causas, v-se pattica recomendao ao juiz, para que nose retraia, para que,participe da instruo, para que s se satisfaa como resultado da experincia probatria quando o seu senso de justia es-tiver tranqilizado e para que d aos textos legais a interpretao queseja capaz de fazer justia no caso concreto.ls Tal a postura instru-mentalista esperada de todos os juzes. E, embora o Poder Judicirioseja uma estrutura muito volumosa e pesada, dotada de elevado graude inrcia que no lhe permite evolues muito geis ou imprudentes(at porque o retrocesso sobremaneira difcil e sempre desaconselh-vel), o juiz moderno vai-se libertando do preconceito conservador. NaItlia, movimentos internos da prpria categoria dos magistrados h v-rias dcadas vm pondo em polmica a postura poltica do juiz.l9 No

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    28/363

    tambm em dissertao para mestrado, apresentada Faculdade de Direito da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul pelo magistrado Ruy Portanova, um dos chamadosjurzes alternativos daquele estado (e de cuja banca tive a honra de participar, no ano de1991). A "indiferena inicial" do cientista, qual se assimilou a postura psquica do juiz,chega somente at ao ponto de refletir a sua imparcialidade (cfr. Liebman, Manual, I,

    n. 3, nota 5, p. 9): no se confunde nem inclui a indiferena quanto aos valores sociaise polticos da sociedade. A tradicional postura introspectiva do sistema, que levava aoexame das normas, princpios e categorias processuais em si mesmos e no mximo permi-tia que fossem examinados em sua conexo com o direito substancial constitui fator dedescompasso entre o processo e o direito substancial e permite que as atividades proces-suais conduzam a situaes discrepantes dos desgnios daquele e do conceito de justiavigente na sociedade. Essa "neutralidade" foi que permitiu um desvio "em direo po-tencialmente autoritria" (Denti, Processo civile e giustizia socr'ale, p. 17). Pelo que elatem de manifestao do positivismo jurdico, para o qual "lei lei", merece a crtica,a este dirigida, de "haver deixado indefesa a cincia jurdica - e conseqilentemente a ad-ministrao da justia alem - contra os horrores e arbtrios do nazismo" (cfr. BagoliniVisioni della giustizia e senso comune, pp. 127-128). Assim, "o escopo do processo civilliberto de toda ideologia, no sentido de sua determinao formalista, ou ento emprica,no oferece, assim, proteo alguma contra um abuso pohtico do direito processual ci-vil" (cfr. Habscheid, "As bases do direito processual civil", n. 2, b, p. 123). Do ponto-de-vista metodolgico, essas consideraes reforam a ldia instrumental do processo ci-vil e a da insuficincia da determinao do seu escopo jurdico. Ele um instrumento,sim, mas no a servio exclusivamente do direito substancial; sua misso mais elevada a que tem perante a sociedade, para a pacificao segundo critrios vigentes de justiae para a estabilidade das instituies (v. infra, nn. 19 ss.).

    18. Cfr. lei n. 7.244, de 7 de novembro de 1984, arts. 4 e 5"; v. Dinamarco, Ma-nual das pequenas causas, n. 4, pp. 5 ss.

    19. Os juzes que comungam das posies polticas mais "avanadas" propugnam,como se compreende, por posies menos legalistas e portanto mais criativas, com o juizmais participante (cfr. Moriondo, L'ideologr'a della magistratura italiana, p. 35); a "neu-tralidade", como foi dito, caracteriza os conservadores, interessados em conter as evolu-es sociais e polticas (supra, nota 14). No contexto italiano de hoje, o grupo Magistratu-ra democratica o de posies mais esquerdizantes; Unit per la costituzione (Unicost) de centro-esquerda e as posies mais conservadoras ficam por conta de Magistraturaindipendente. Pelo que se v dos escritos italianos recentes, tambm na doutrina h muitapreocupao pela posio do juiz, sua independncia, forma do recrutamente de juzesetc., tudo a partir da percepo de que a participao do julgador na produo dos resul-

    38 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

    Brasil, ainda que sem a colocao sistemtica do problema, v-se emmuitos julgados ntida opo poltica, como em conhecida linha juris-prudencial instalada no Tribunal de Alada Criminal de So Paulo e co-mo nos exemplos, j referidos, dos julgados sobre a atualizao de cr-ditos, sobre o efeito da revelia, sobre os crditos do Sistema Financeiro

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    29/363

    da Habitao etc.Mas tal lavor interpretativo no seria to estritamente indispens-

    vel, se a lei do processo acompanhasse rigorosamente a evoluo daquelesrumos, ditando solues processuais novas a cada momento que a Cons-tituio se alterasse (na letra ou no esprito). Isso no se d, nem seria

    aconselhvel que se desse. No Brasil, ns temos um sistema processualcivil implantado pelo Estado Novo autoritrio e que sobreviveu rede-mocratizao de I946 e ao movimento militar de I964, permanecendona nova ordem constituicional (o Cdigo de Processo Penal o mesmoe o de Processo Civil vigente traz as mesmas caractersticas do prece-dente). Salvo o que pde acontecer por fora de leis especiais, o signifi-cado maior da evoluo havida de 1939 para c, de ser creditado aotrabalho da doutrina (especialmente, dos processual-constitucionalistas,em sua atitude rigorosamente instrumentalistu) e ao bom senso dos juzes.

    Outro aspecto dos descompassos entre o processo e a ordem cons-titucional teve-se durante os vinte anos de regime autoritrio que vive-mos e principalmente no perodo em que maior foi a represso e a res-trio aos direitos e liberdades pblicas. Muito pouco se alterou o siste-ma processual, nesse tempo. No processo penal, pouco mais se teve doque a supresso do habeas corpus quando a constrio viesse sob o fun-damento da prtica de crime pblico, ou contra a segurana nacionaletc.;2o no civil, a impossibilidade jurdica das demandas de apreciaojudiciria de certos atos "revolucionrios".21 Outras restries s viasde acesso tutela jurisdicional no houve. O nvel de livre participaodos sujeitos processuais, em contraditrio e com igualdade, no se alte-rou; nem os juzes e tribunais se curvaram, nem se fizeram agentes dopoder de fato ilegitimamente instalado. A bem da verdade, atentadosde maior gravidade no perpetraram os autocratas contra o Poder Judi-cirio. O mal maior que o regime excepcional causou ao equilbrio entreo instrumento processual e a ordem jurdica servida por ele foi a relati-va conteno da evoluo instrumentalista. Em primeiro lugar, porque

    tados do processo muito grande e suas premissas culturais no podem ser desprezadas(cfr. Vigoriti "A favore del giudice onorario elettivo: spunti e proposte per una rifor-ma' ', passim). Antes de estabelecer como se julga e deve-se julgar, lcito fixar bem quemdeve julgar.

    20. Cfr. AI-5, art. 10".21. Cfr. a propsito, Grinover, Direito de ago, n. 47, pp.137 ss.; emenda constitu-

    cional n.11 de 13 de outubro de 1978, art. 3"; v. ainda AI-5, art. 4 5" e art. I 1;antes,j o art. 181 (Const. 67), com redao dada pela emenda n. I, de 1969.

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 39

    a suspenso das garantias constitucionais dos juzes foi sempre um fa-tor de insegurana pessoal de cada um e, conseqentemente, de reduodo nvel de independncia (e a postura "ideolgica" do juiz sempre

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    30/363

    vista com temores anti-marxistas, como se sabe). Depois, porque climano havia para uma escalada de significativas inovaes legislativas emsede processual (nem substancial), no sentido das grandes conquistas easpiraes sociais.22

    Feitos esses descontos, todavia, o modelo processual manteve-se n-tegro e o processo, como instrumento ou "microcosmos" do Estado,

    acabou permanecendo com caractersticas democrticas que este mes-mo no apresentava. A razo fundamental desse descompasso consen-tido que na realidade no houve autntica revoluo no Brasil, comorevolues no so as tomadas do poder que com freqncia se do nosEstados latino-americanos. A estrutura de sujeio ao poder e as rela-es sociais e econmicas entre as pessoas permanecem fundamental-mente tal e qual, no chegando a ser sequer sentida qualquer necessida-de de alterao no sistema do processo.

    4. O processo como instrumento de mutaes na ordemconstitucional e legal

    Apesar da separao dos "Poderes" do Estado (no competindoao juiz legislar ou mesmo complementar a lei ou Constituio) e no-obstante a aplicao do exerccio da funo jurisdicional exclusivamen-te a casos concretos, a interpretao judicial tem sido apontada comoinstrumento de mutao constitucional (inclui-se, com isso, entre os "pro-cessos informais de mudana da Constituio' ').1 Exercendo o poder

    22. Mas so desse perodo a Lei da Ao Popular (lei n. 4.717, de 29.6.65) e a daspequenas causas pei n. 7.244, de 7.11.84); a da Ao Civil Pblica (lei n. 7.347 de 24.7.85),embora promulgada depois, originou-se de mensagem do ltimo Ministro da Justia doregime extinto.

    1. Cfr. Anna Cndida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudana da Cons-tituio, esp. pp.102 ss. O tema, muito interessante, diz respeito "continuao" do tra-balho do constituinte pela via da interpretao constitucional. As constituies rgidas ten-deriam a tornar-se obsoletas, no fora essa permanente dinmica que lhes assegura a ade-rncia realidade dos tempos e aos mutantes valores da sociedade. No pretendo abriraqui a discusso em torno da precisa funo que o juiz desempenha perante o direito subs-tancial, se cria ou no cria (sempre o confronto entre a teoria unitria e a dualista do or-denamento jurdico; cfr. infra, nn. 28.2, etc.). Alis, mesmo quem afirma a criatividadepelo juiz nega-se a assimil-lo ao legislador, como se v do prprio ttulo polmico darecentssima obra de Mauro Cappelletti, Giudici legislatori? Ele diz: "... os juzes so cha-mados a interpretar e por isso, inevitavelmente, a aclarar, integrar, plasmar e transformaro direito -, e no raramente a cri-lo ex novo. Mas isso no significa que eles sejam legis-ladores"; e passa a falar das "virtudes passivas" do juiz, que o caracterizam como tal,pondo a tnica na referncia de sua atividade a "cases and controversies" na imparciali-dade, com sua colocao superpartes, no contraditrio, na inrcia inicial ("ubi non est

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    31/363

    A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSOnacional em nome do Estado, o juiz dita decises que so providas deimperatividade (provimento)2 e que, por mais de um modo, podem in-fluir no contedo da Constituio ou das leis, ou no significado dos tex-

    tos, ou mesmo nas diretrizes polticas do Estado.Diversos fatores so indicados pela doutrina constitucionalista, co-mo criadores de clima propcio recepo dessa influncia, sendo al-guns inerentes prpria Constituio (deficincia de linguagem, seu ca-rter sinttico, lacunas e omisses) e outros, vindos do mundo exterior(evoluo dos valores, mutaes sociais etc.);3 e o que de comum em

    actio, non est jurisdictio"): cfr. op. cit., n. 11, pp. 63 ss. Da funo complementar dojuiz perante a legislao, fala a doutrina do "direito jurisprudencial", ou Richterrecht,como em obra tambm recente de Giovanni Orr: "nos setores mais avisados da cincia

    jurdica, chegou-se a uma convergncia quase unnime ao reconhecimento de que o atojudicial, como interveno decisiva sobre a norma, enuanto fase da prpria vida

    dela, sempre criativo", porque, "em virtude do carter incompleto, equvoco e antinmicodos enunciados legislativos, qualquer corpusjuris, por mais aperfeioado que possa ser,

    no tem condies para eliminar aquelas margens de liberdade inventiva, escolha pessoale criatividade do intrprete, indispensveis para realizar a sntese dinmica entre a nature-

    za abstrata da norma e o carter concreto da situao histrica a ser juridicamente quali-ficada" (cfr. Richterrecht, cap. I, n.1, p.12). Esse zlegantssimo problema, contudo, no

    se confunde com o da jurisprudncia como fonte do direito, ainda que ambos sejam bas-tante prximos. O autor citado fala da "fora vinculativa da jurisprudncia consolida-da" ainda que para dizer que "pode ter natureza simplesmente ftica, ou ao mesmo tem-po ftica e axiolgica" (cap. II, n. 3, p. 71), passando a considerar depois o dever dojuiz em observar os precedentes (n. 4, p. 74). Uma coisa, todavia, a complementaoda norma no caso concreto e outra a descoberta de normas j pr-estabelecidas median-te o concurso da legislao com a jurisprudncia reiterada. No primeiro caso, haja ou noa suposta criatividade, trata-se sempre de positivao do poder e seguramente o ato vin-culante nos limites estabelecidos pela dogmtica proce,;sual; mas a "fora" da jurispru-dncia, projetada para casos futuros, se bem no possa ser negada, poder no nem posi-tivao dele, mas mera influncia, que com o poder no se confunde: cfr. infra, n.14.3.

    2. Cfr. infra, n. 13.3. Cfr. Cunha Ferraz, Processos informais, cit., p.125. Cfr. ainda Lwenstein: ideal

    seria uma Constituio que disciplinasse o processo poltico com pei'eita previso das fu-turas evolues da comunidade; mas, como esta evolui segundo determinantes histricasque nunca podem ser previstas (e quantas mutaes no so deveras surpreendentes!), danecessidade de aderncia da Constituio realidade social deriva a plasticidade dela pr-pria, a qual se mostra, assim, como "um organismo vivo, sempre em movimento comoa prria vida" (cfr. Verfassungslehre, p.164 trad.). Para o discurso desenvolvido no pre-sente item da obra, so esses fatores externos que suscitam maior interesse (fala-se de "mu-taes"). A esse propsito, tem pertinncia o relato das decises da Suprema Corte norte-americana acerca da segregao de negros em escolas pblicas. Sem alterao constitucio-

  • 7/23/2019 cndido rangel dinamarco - a instrumentalidade do processo (1993)

    32/363

    nal formal acerca do alcance da garantia da igualdade, estabeleceu-se inicialmente a dou-trina "separada mas igual" (Plessy vs. Ferguson,1897), "segundo a qual as escolas pbli-cas separadas para crianas negras eram legais, tendo, porm, que ser iguais... s escolaspara crianas brancas"; meio sculo aps, reconheceu a Suprema Corte que "no havia,de fato, igualdade possvel para as crianas negras em escolas segregadas" (Brown vs.

    Boardof Education of Topeka,1954): cfr. Deutsch, Pohica e governo, p.198, com essa mxi-ma: "a reviso judicial proporciona uma oportunidade suplementar de compensar os ci-dados cujas necessidades e direitos, como indivdaos ou membros de grupos minorit-rios, no encontraram uma resposta adequada no processo legislativo". A mesma idia,

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS ATUAIS 41

    todas essas situaes se v a premissa consistente na interao entreConstituio e procrsso, somada ao exerccio do poder pelo juiz (o mes-mo poder que exercido pelo constituinte e pelo legislador). A Consti-tuio age sobre o processo, garantindo-Ihe os princpios bsicos, paraque o processo possa, depois, atuar convenientemente os preceitos e ga-rantias que ela prpria contm e que projeta sobre todo o ordenamentojurdico.4 A bipolaridade dessas influncias associa-se, naturalmente, aoreconhecimento do poder que os juzes exercem, como guardas da Cons-tituio e responsveis pela sua interpretao fiel e cumprimento estri-to. Assim inserido nas estruturas estatais do exerccio do poder, o juiz legtimo canal atravs de que o universo axiolgico da sociedade im-pe as suas presses destinadas a definir e precisar o sentido dos textos,a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evoluo do contedosubstancial das normas constitucionais.5 Apesar de os provimentos ju-risdicionais terem eficcia limitada concretamente ao objeto de cada pro-cesso,mostrando-se destitudos de qualquer vocao generalidade evinculando somente nos limites do decisum (como se sabe, os motivosno podem ficar cobertos pela autoridade da coisa julgada) -, forada repetio a interpretao atribuda pelos tribunais a dado texto aca-ba por gerar a convico de que o seu contedo aquele indicado najurisprudncia estabelecida.

    Isso no significa, todavia, que a funo jurisdicional seja consti-tutiva de direitos, nem que a jurisprudncia seja fonte normativa.

    Negar q