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2089 REVISÃO CRÍTICA DA TEORIA POLÍTICO-ECONÔMICA NEOLIBERAL Critical review of neoliberal political-economic theory Gilmar Araújo Viana Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – Mestrado Endereço para correspondência: Rua Tupis, 85, bairro Melo – Montes Claros/MG – CEP 39401-068 email: [email protected] RESUMO O presente artigo tem como objeto de análise, através de uma revisão bibliográfica de caráter dedutivo, a crítica elaborada ao neoliberalismo enquanto fenômeno político-econômico. No decorrer do trabalho o neoliberalismo é analisado em diferentes momentos sócio-históricos no decorrer do século XX. A ausência de evidências de contribuição do neoliberalismo para a retomada do crescimento econômico de países que integravam a Organização para Cooperação e Desenvolvimento econômico (OCDE) entre as décadas de 1970 e 1980 revelam o fracasso decorrente da inversão especulativa causada pela desregulamentação financeira e, ao mesmo tempo, o mérito do neoliberalismo em si tornar, no plano internacional, uma ideologia capaz de, por seus paradigmas, controlar até mesmo o clamor popular através da crença de que não há solução político-econômica fora das virtudes do livre mercado e do Estado mínimo. À vista dis- so, é possível traçar uma crítica do movimento neoliberal a partir das próprias ideais originais do liberalismo clássico e das ideias reformistas do liberalismo social, o que nos propusemos a fazer. Palavras chaves: Ideologia neoliberal - Neoliberalismo – Crítica INTRODUÇÃO Com o término da Guerra Fria, o neoliberalismo emergiu como teoria de práticas políti- co-econômicas hegemônica no cenário mundial. O objetivo deste trabalho é revisar, em aspec- tos teóricos, conceitos e análises realizadas por autores críticos a essa corrente de pensamento. O neoliberalismo é um fenômeno ideológico político-econômico cujas bases foram lan- çadas já na metade do século XX. Nascido no final da Segunda Grande Guerra, suas raízes foram fixadas, inicialmente, na Europa e América do Norte.

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REVISÃO CRÍTICA DA TEORIA POLÍTICO-ECONÔMICA NEOLIBERAL

Critical review of neoliberal political-economic theory

Gilmar Araújo Viana

Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTESPrograma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – Mestrado

Endereço para correspondência: Rua Tupis, 85, bairro Melo – Montes Claros/MG – CEP 39401-068

email: [email protected]

RESUMOO presente artigo tem como objeto de análise, através de uma revisão bibliográfi ca de caráter dedutivo, a crítica elaborada ao neoliberalismo enquanto fenômeno político-econômico. No decorrer do trabalho o neoliberalismo é analisado em diferentes momentos sócio-históricos no decorrer do século XX. A ausência de evidências de contribuição do neoliberalismo para a retomada do crescimento econômico de países que integravam a Organização para Cooperação e Desenvolvimento econômico (OCDE) entre as décadas de 1970 e 1980 revelam o fracasso decorrente da inversão especulativa causada pela desregulamentação fi nanceira e, ao mesmo tempo, o mérito do neoliberalismo em si tornar, no plano internacional, uma ideologia capaz de, por seus paradigmas, controlar até mesmo o clamor popular através da crença de que não há solução político-econômica fora das virtudes do livre mercado e do Estado mínimo. À vista dis-so, é possível traçar uma crítica do movimento neoliberal a partir das próprias ideais originais do liberalismo clássico e das ideias reformistas do liberalismo social, o que nos propusemos a fazer.

Palavras chaves: Ideologia neoliberal - Neoliberalismo – Crítica

INTRODUÇÃO

Com o término da Guerra Fria, o neoliberalismo emergiu como teoria de práticas políti-co-econômicas hegemônica no cenário mundial. O objetivo deste trabalho é revisar, em aspec-tos teóricos, conceitos e análises realizadas por autores críticos a essa corrente de pensamento.

O neoliberalismo é um fenômeno ideológico político-econômico cujas bases foram lan-çadas já na metade do século XX. Nascido no fi nal da Segunda Grande Guerra, suas raízes foram fi xadas, inicialmente, na Europa e América do Norte.

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Como apontam seus críticos, o neoliberalismo foi um movimento teórico e político de reação veemente contra o Welfare State decorrente do pensamento keynesiano. A primeira obra teórica de sustentação do pensamento neoliberal foi escrita foi Friedrich Hayek em 1944, intitulada “O Caminho da Servidão”. Signifi ca dizer, a grosso modo, que Hayek entendia que o intervencionismo do Estado de bem-estar social limitava a liberdade dos indivíduos e minava as condições de livre-concorrência, a ponto de submeter os cidadãos a uma espécie de servidão moderna. Segundo Perry Anderson (1995, p. 09), a obra constituía “[...] um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade não somente econômica, mas também política.”

Milton Friedman, Karl Popper e Ludwig Von Mises, dentre outros notáveis teóricos do pensamento liberal moderno, juntaram-se a Hayek com o objetivo de estabelecer as bases de estabelecer as bases de uma organização internacional que, segundo seus fundadores, defen-desse a liberdade de expressão, o livre mercado e os valores políticos de uma sociedade aberta sob o ideário de um liberalismo renovado. Assim, apesar de não ter sede própria, a sociedade ali originada foi batizada com o nome da cidade na qual ocorreu sua conferência inaugural, na Suíça. (HARVEY, 2007). Nascia a Sociedade de Mont Pelerin,

“[...] uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesia-nismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro.” (ANDERSON, 1995, p. 07).

A sociedade de Mont Pelerin se afi rmava como um grupo de liberais cujo compromisso maior era a defesa dos ideais neoclássicos de liberdade individual. Adeptos de uma economía de livre mercado, a doutrina neoliberal se opunha profundamente ao intervencionismo estatal keynesiano. (HARVEY, 2007, pp. 25-26).

Para David Harvey (2005), o neoliberalismo seria, antes de tudo, uma teoria das prá-ticas político-econômicas cujo objetivo residia na promoção do bem-estar humano através do fortalecimento dos ideais de liberdade individual em uma forte consolidação dos conceitos de propriedade privada e livre mercado, sendo tarefa do Estado a criação e preservação de uma estrutura institucional apropriada a tais práticas. O discurso neoliberal acusaria a incapacidade do Estado de ler corretamente as informações e nuances do mercado e também a corrupção de grupos detentores do poder estatal, os quais utilizariam as intervenções do Estado em proveito de seus próprios interesses. O modelo neoliberal pregaria que o bem social é maximizado à medida em que se maximizam o alcance e a frequência das operações do mercado.

Foi pela fertilidade causada pela crise do modelo keynesiano na década de 1970 que as ideias ditas neoliberais começaram a ganhar corpo e, efetivamente, destaque no plano interna-cional, mormente nos Estados Unidos e países do norte da Europa.

Para David Harvey (2005), a paz e a tranquilidade do período pós Segunda Guerra Mun-dial foram asseguradas graças a um acordo entre as classes capitalista e trabalhadora, em que uma correta combinação de Estado, mercado e democracia fosse formatada a fi m de garantir a

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paz e a estabilidade. Havia, assim, a aceitação de que o Estado deveria ter por objetivo o bem-estar de seus cidadãos através do pleno emprego e do crescimento econômico, reservando-se o Estado no poder de intervir nos processos de mercado, nas políticas fi scais e monetárias.

Esta nova face do liberalismo – como se verá a seguir, liberalismo social – produziu altas taxas de crescimento econômico nas décadas de 1950 e 160, até que uma grave crise de acumulação começou a ruir o sistema. Então, as elites econômicas e políticas, devido à política econômica keynesiana, compensavam sua parcela menor da riqueza total com o crescimento econômico, passaram a temer por seus interesses quando esse crescimento estagnou-se e a apresentar indícios de recessão. Assim, o neoliberalismo foi, também, um projeto voltado à restauração do poder das elites. (HARVEY, 2005)

Os teóricos neoliberais, por sua vez, afi rmavam que a causa da crise derivava do poder excessivo dos sindicatos, que haviam deteriorado os fundamentos da acumulação capitalista com as demandas salariais e os movimentos em prol do aumento de garantias sociais para a classe trabalhadora, dizimando as condições necessárias ao lucro. Estes fatores, segundo eles, culminariam numa crise generalizada cujo cerne estaria no desencadeamento de processos in-fl acionários originados justamente na baixa das taxas de lucro das empresas capitalistas (AN-DERSON, 1995). Neste sentido,

O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de rom-per o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamen-tária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para que-brar os sindicatos. Ademais, reformas fi scais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso signifi cava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. Dessa forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas, então às voltas com uma estagfl ação, resultado direto dos legados combinados de Keynes e Beveridge, ou seja, a intervenção anticílica e a redistribuição social, as quais haviam tão desastrosa-mente deformado o curso normal da acumulação e do livre mercado. O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais houvessem sido restituídos. (ANDERSON, 1995, p. 11)

As soluções apresentadas pelos teóricos neoliberais começavam a delinear claramente as bases ideológicas dessa doutrina: enfraquecimento do movimento sindical, o que passaria pela criação de um exército de reserva de trabalho pela manutenção de uma taxa natural de de-semprego, estabilidade monetária, disciplina orçamentária, redução de gastos sociais e redução de impostos, receita que deveria ser seguida para se alcançar a retomada do crescimento econô-mico e, consequentemente, a prosperidade dos Estados e indivíduos.

Assim, a década de 1980 presenciou o início da emergência do neoliberalismo como doutrina hegemônica no plano internacional.

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EMERGÊNCIA COMO DOUTRINA HEGEMÔNICA NO PLANO INTERNACIONAL

Em 1979, Margareth Thatcher assumiu o governo parlamentar britânico e implantou a mais pura prática neoliberal.

Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fl uxos fi nanceiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram gre-ves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, fi nal-mente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado. (ANDERSON, 1995, p. 11)

Em 1981, Ronald Reagan iniciou seu período de oito anos como 40º Presidente dos Estados Unidos. O ideário neoliberal possuiu, desde seu início, um austero combate ao comu-nismo como fundamento doutrinário elementar. Esta contenda fortaleceu o alicerce político neoliberal, consolidando o predomínio da direita na Europa e, claro, nos Estados Unidos (AN-DERSON, 1995).

Devido a este aspecto político – o anticomunismo –, a variante neoliberal estadunidense foi fundamentalmente distinta da britânica, em função do bilateralismo ocasionado pela Guerra Fria.

Nos Estados Unidos, onde quase não existia um Estado de bem-estar do tipo euro-peu, a prioridade neoliberal era mais a competição militar com a União Soviética, concebida como uma estratégia para quebrar a economia soviética e, por esta via, derrubar o regime comunista na Rússia. Deve-se ressaltar que, na política interna, Reagan também reduziu os impostos em favor dos ricos, elevou as taxas de juros e aplastou a única greve séria de sua gestão. Mas, decididamente, não respeitou a disciplina orçamentária: ao contrário, lançou-se numa corrida armamentista sem pre-cedentes, envolvendo gastos militares enormes, que criaram um défi cit público muito maior do que qualquer outro presidente da história norte-americana Mas esse recurso a um keynesianismo militar disfarçado, decisivo para uma recuperação das economias capitalistas da Europa ocidental e da América do Norte, não foi imitado. Somente os Estados Unidos, por causa de seu peso na economia mundial, podiam dar-se ao luxo do défi cit massivo na balança de pagamentos que resultou de tal política. (ANDER-SON, 1995, p. 12)

Ainda que o sul da Europa tenha visto surgir uma espécie de contramovimento ao neoli-beralismo do norte do continente – através da eleição de governos de esquerda –, o euro-socia-lismo recém-chegado ao poder (François Miterrand, na França; Felipe González, na Espanha; Mário Soares, em Portugal; Bettino Craxi, na Itália; Andreas Papandreou, na Grécia) logo viu

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seu ideário progressista fracassar em virtude do cenário desenhado pelo neoliberalismo nos mercados fi nanceiros internacionais. Assim, mesmo os governos de esquerda se viram forçados a adotar procedimentos, na prática, adjuntos à agenda neoliberal, como empenho na estabili-dade monetária, redução de impostos, contenção do orçamento e abandono do pleno emprego (ANDERSON, 1995).

O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo neoliberalis-mo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a por em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se auto-proclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal. O neoliberalismo havia começado tomando a social-democracia como sua inimiga central, em países de capitalismo avançado, provocando uma hos-tilidade recíproca por parte da social-democracia. Depois, os governos social-demo-cratas se mostraram os mais resolutos em aplicar políticas neoliberais. (ANDERSON, 1995, p. 12)

O que se percebeu, contudo, foi que, levando-se consideração o aspecto formal do dis-curso de seus defensores, o resultado alcançado pela política neoliberal foi exitoso nos objeti-vos acessórios e fracassado no objetivo principal. Explicamos.

A taxa de infl ação dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE) caiu de 8,8% para 5,2% durante as décadas de 1970 e 1980. A taxa de lucro das indústrias desses mesmos países aumentou 4,7% na década de 1980. A queda drástica no número de greves durante a década de 1980 e a contenção dos salários representaram profundas derrotas do movimento sindical, o que também favoreceu o crescimento da taxa média de de-semprego dos países da OCDE, que duplicou na década de 1980 em comparação com os anos 1970. Por fi m, o grau de desigualdade sofreu considerável aumento, com cortes nos impostos sobre os salários mais altos na ordem média de 20% durante a década de 1980. (ANDERSON, 1995).

Assim, como dito, os objetivos acessórios da doutrina neoliberal foram alcançados com sucesso: enfraquecimento do movimento sindical, a criação de um exército de reserva de tra-balho pela manutenção de uma taxa natural de desemprego, estabilidade monetária, disciplina orçamentária e redução de impostos.

O que se pode dizer, então, os resultados relativos ao objetivo principal, qual seja, a retomada das taxas de crescimento econômico através da vivifi cação do capitalismo avançado mundial?

Nesse aspecto, no entanto, o quadro se mostrou absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE. Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma lembrança distante. Qual seria a razão deste resultado paradoxal? (ANDERSON, 1995, p. 14)

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Esse fracasso, segundo Perry Anderson (1995), foi resultante da inversão especulati-va, em lugar da produtiva, causada pela desregulamentação fi nanceira defendida pela agenda neoliberal. Além disso, ao contrário do que se esperava, houve um aumento de gastos sociais relativos ao desemprego e ao aumento demográfi co de idosos aposentados e pensionistas na população.

Por fi m, ironicamente, quando o capitalismo avançado entrou de novo numa profunda recessão, em 1991, a dívida pública de quase todos os países ocidentais começou a reassumir dimensões alarmantes, inclusive na Inglaterra e nos Estados Unidos, en-quanto o endividamento privado das famílias e das empresas chegava a níveis sem precedentes desde a II Guerra Mundial. [...] Nestas condições de crise muito aguda, pela lógica, era de se esperar uma forte reação contra o neoliberalismo nos anos 90. Isso aconteceu? Ao contrário, por estranho que pareça, o neoliberalismo ganhou um segundo alento, pelo menos em sua terra natal, a Europa. (ANDERSON, 1995, p. 15)

Se as condições da aguda crise econômica deveriam gerar uma forte reação popular contra o neoliberalismo – pois, seriam, em teses, os estamentos mais baixos da população a sofrerem os maiores impactos e possuírem menor capacidade de driblar os efeitos da recessão ou estagnação –, como explicar a resignação apresentada perante esse revés econômico? A resposta está na construção ideológica do mito neoliberal. Aí está o segredo da vitalidade da doutrina.

Nenhum modo de pensamento se torna dominante sem propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos. Sem bem-sucedido, esse aparato conceitual se incorpora a tal ponto ao senso comum que passa a ser tido por certo e livre de questionamento. As fi guras fundadoras do pensamen-to neoliberal consideravam fundamentais os ideais políticos da dignidade humana e da liberdade individual, tornando-os como “os valores central da civilização”. Assim agindo, fi zeram uma sábia escolha, porque esses certamente são ideais bem convin-centes e sedutores. (HARVEY, 2005, p. 15)

A hegemonia neoliberal se expressa igualmente no comportamento de partidos e go-vernos que formalmente se defi nem como seus opositores. A primeira prioridade do presidente Clinton, nos Estados Unidos, foi reduzir o défi cit orçamentário, e a se-gunda foi adotar uma legislação draconiana e regressiva contra a delinquência, lema principal também da nova liderança trabalhista na Inglaterra. O temário político se-gue sendo ditado pelos parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu momento de atuação econômica parece amplamente estéril ou desastroso. Como explicar seu segundo alento no mundo capitalista avançado. Uma de suas razões fundamentais foi claramente a vitória do neoliberalismo em outra área do mundo, ou seja, a queda do comunismo na Europa oriental e na União Soviética, de 89 a 91, exatamente no mo-mento em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente tornavam-se cada vez mais óbvios. Pois a vitória do Ocidente na guerra fria, com o colapso de seu adversário comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específi co liderado

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e simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80. (ANDERSON, 1995, p. 17)

É o controle ideológico que sustenta o neoliberalismo como doutrina hegemônica in-ternacional. E esse controle faz crer que não há solução político-econômica fora das virtudes do livre mercado, da livre iniciativa e do Estado mínimo. Porém, os críticos ao neoliberalismo vêm, aí, a ponto de contradição da ideologia.

O NEOLIBERALISMO COMO NEGAÇÃO DO LIBERALISMO

Wallerstein (2002, p. 167 apud PRADO, 2005) afi rma que o há uma contradição ine-rente ao ideário liberal, que pregava a igualdade entre todos os povos e indivíduos, mas que sustentava um sistema caracterizado por uma evidente desigualdade. Os liberais, por sua vez, não viam nesse ponto qualquer contradição, uma vez que a desigualdade seria, na verdade, meras diferenças entre os indivíduos. Eis, portanto, que estas diferenças estimulariam a livre concorrência que, em longo prazo, proporcionaria prosperidade a todos.

Eis que a economia de mercado [...] origina uma sociedade dinâmica, que, no curto prazo, premia uns – ou seja, aqueles que trabalham mais, poupam mais, têm mais competência, etc. – em relação a outros e que, no longo prazo, premia a todos porque a grande maioria melhora. Por isso, afi rmava, o aperfeiçoamento racional do sistema por meio da engenharia social, que opera aos poucos, corrige as distorções e abre no-vas oportunidades, gera, pelo menos como tendência, uma sociedade justa.Eis, porém, que isto não está mais no horizonte. (PRADO, 2005, p. 19)

A contradição do pensamento liberal ocorre na análise da aparência e da essência do capitalismo. Na superfície do modo de produção capitalista – ou seja, na livre circulação de mercadorias – trabalhadores e capitalistas fazem trocas equivalentes. Ambos são iguais, possui-dores de propriedade – uns dos meios de produção, outros da força de trabalho –, livres e racio-nais. Entretanto, a essência do sistema revela que trabalhadores e capitalistas são inerentemente desiguais, numa relação em que o trabalho morto se nutre pelo trabalho vivo – os capitalistas se apropriam da riqueza produzida pela classe dos trabalhadores –, numa reprodução cega e infi nita (PRADO, 2005).

O liberalismo clássico, portanto, ao defender que os interesses individuais e coletivos são coincidentes e que há um caráter benevolente no capitalismo, prega o lassez-faire como instrumento hábil a alcançar a prosperidade de todos justamente pela garantia da plena liberda-de econômica e, consequentemente, política. Por isso, seria necessário restringir-se ao máximo qualquer ação do Estado que interviesse na liberdade individual. O liberalismo clássico é, as-sim, uma

[...] ideologia que afi rma e acentua o aspecto positivo e superfi cial do modo de pro-dução capitalista (o seu primeiro momento) para bloquear uma compreensão pro-funda de sua natureza (ou de seu segundo momento). [...] Assim como o Estado, o

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pensamento político ideológico é imprescindível para a conservação do capitalismo; ambos, o primeiro no plano da ação coletiva concentrada e da violência preventiva e repressiva e o segundo no plano do bloqueio da formação da consciência crítica, têm como função conservar a identidade de uma totalidade social contraditória.Justamente porque são forças de conservação, o Estado capitalista e a ideologia liberal têm de acompanhar o próprio desenvolvimento contraditório do modo de produção capitalista, adaptando-se às mudanças mais profundas que ocorrem nas forças pro-dutivas e, assim, nas relações de produção e na correlação de força entre as classes. (PRADO, 2005, p. 20-21)

O surgimento do liberalismo social ocorre, portanto, quando a aparência do modo de produção se torna tão contraditória que é impossível manter o discurso de igualdade entre traba-lhadores e capitalistas. Em contrapartida, Estado precisou apresentar uma resposta às demandas sociais causadas pelo acirramento da exploração, e começou, então, a atuar como uma força de balanceamento do sistema. (PRADO, 2005).

É assim que o liberalismo clássico veio a ser modifi cado pelo liberalismo social, que se caracterizou, sobretudo, pela defesa prudente da regulação estatal na atividade eco-nômica.É certo que a intervenção do Estado é uma constante na história do capitalismo. A in-tervenção defendida pelo liberalismo social e praticada pelo estado regulador, porém, destaca-se por ser equilibradora, ou melhor, re-equilibradora. Ela concerne à regula-mentação da concorrência (para difi cultar a permanência no tempo dos lucros extraor-dinários), ao balanceamento das forças entre capitalistas e trabalhadores (para mode-rar os confl itos de classe e redistribuir os benefícios do crescimento), à suplementação das funções econômicas exercidas pelos capitais privados (o Estado transforma-se num agente econômico empreendedor). O princípio norteador do liberalismo social é que o mercado auto-regulável, deixado a si mesmo, é autodestrutivo e que, por isso, ele requer a regulação do Estado. O resultado histórico dessa forma de intervenção foi a constituição do que acabou sendo chamado de estado de bem-estar social. Nos países da periferia, em que faltavam as condições materiais de desenvolvimento para chegar rapidamente ao amortecimento das lutas de classes, o Estado tornou-se desen-volvimentista. O liberalismo social surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capi-talistas aferrarem-se à mera forma da relação social de produção, quando a conser-vação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais radicais. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social: ela precisa agora, de um certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação. (PRADO, 2005, p. 21)

A essência do modo de produção – a exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto – passa a ser apresentada não como exploração, mas como diferença, e a diferença passa a ocultar a contradição da essência: existem duas classes sociais inerentemente distintas entre si e cabe ao Estado ser a força compensatória dessa relação. (PRADO, 2005)

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A essência do capitalismo não aparece nessa visão política como exploração, mas como má repartição da renda e da riqueza, como diferença e desigualdade que o re-formismo pode modifi car. [...]O otimismo liberal clássico transforma-se no precavido liberalismo social: a mão in-visível do mercado – reconhece-se – precisa até certo ponto do braço poderoso do Estado. (PRADO, 2005, p. 22-23)

Assim, ao defender o papel ativo do Estado como regulador do modo de produção ca-pitalista, o liberalismo social é entendido como a primeira negação do liberalismo clássico. (PRADO, 2005).

O neoliberalismo surge quando parcela dos liberais começaram a creditar ao liberalismo social a responsabilidade pela crise econômica e a estagnação da década de 1970.

Não se pode conceber o neoliberalismo como uma reencarnação do liberalismo clássico. Se esta doutrina jamais poderia entender o Estado como agente econômico, aquela outorga ao Estado funções complementares ao ramo privado. É por isso que

O neoliberalismo não vem a ser a doutrina do estado mínimo. Ele não isenta o Estado das atividades de complementação econômica. Ao contrário, para ele, o Estado deve preencher ativamente os vazios da malha produtiva e fi nanceira, mas deve fazê-lo, porém, não por meio de empresas próprias, mas preferencialmente adjudicando as atividades econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, às empresas privadas. (PRADO, 2005, p. 24).

“O Estado para o liberalismo clássico deve ser economicamente passivo; para o libera-lismo social, ele deve regular ativamente a atividade econômica; já para o neoliberalismo, ele deve ser um agente econômico ativamente passivo.” (PRADO, 2005, p. 23)

Com o Estado comprometido a agir em prol da “[...] recuperação e manutenção da taxa de lucro num nível adequado para a continuidade do capitalismo [...] o neoliberalismo [...] vem a ser a segunda negação do liberalismo”. (PRADO, 2005, p. 24)

CONCLUSÃO

O domínio hegemônico da ideologia neoliberal apontado por Perry Anderson (1995) possui uma clara contradição, como afi rma Eleutério F. S. Prado: “[...] por um lado, o neolibe-ralismo promove um regime de social darwinismo em todas as esferas da sociedade. Por outro, requer um comportamento cooperativo de todas as pessoas da população. Em síntese: ele busca uma corrida de ratos cooperativa!”. (2005, p.24) A hegemonia ideológica do neoliberalismo reside, entretanto, em seu moto-perpétuo: se ainda não houve retomada do crescimento eco-nômico, é porque ainda há regulamentação excessiva do mercado, a estabilidade monetária é insufi ciente, os impostos ainda são muitos, o Estado não provê a taxa de lucro ideal, necessita-se de mais austeridade fi scal, num movimento em que fi m não há, e contra o qual não existe alternativa.

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De certo modo, pois, pode-se dizer que, com o advento da pós-grande indústria, o capitalismo tem de aparecer como capitalismo, quase francamente como um sistema baseado em dominação de classe. Ele surge como um sistema de relações sociais as-simétricas e polarizadas e que gera inerentemente exclusão, mas com o qual é preciso se conformar já que ele vem a ser o único que permite a liberdade e a democracia representativa. [...] O neoliberalismo é uma forma política totalitária em que a unidade social é imposta por uma ideologia abrangente (educação, alinhamento “voluntário”, propaganda, es-petáculo, etc.) sempre que possível, mas pela força (administração do medo, vigilân-cia do grande irmão, ações militares, terror de Estado, etc.) sempre que necessário.Conforme o neoliberalismo, o Estado deve atuar, sem qualquer vergonha, como agen-te que promove os interesses capitalistas. (PRADO, 2005, p. 25-26)

Afi nal, apesar do domínio ideológico que faz natimorta qualquer reação mais concreta ao neoliberalismo, há uma clara contradição no cerne dessa ideologia. A luta ideológica reside mesmo no esforço em, conscientes dessa contradição, ocultá-la sob quantas camadas se façam necessárias. Para isso, vale defender

[...] a agenda de um neoliberalismo possuído por um fervor religioso, que o leva a destruir o Estado precisamente quando se está avançando pelo caminho da democra-cia e a exaltar simultaneamente o mercado como a última garantia da liberdade e do progresso de nossas sociedades. (BORÓN, 2002, p. 186)

Para o neoliberalismo, a defesa de um Estado mínimo vai tão somente até o exato limite de conservação de seus interesses. “Em todo lugar, os Estados foram os vetores do estabele-cimento do neoliberalismo, tanto no plano nacional quanto no internacional.” (DUMENIL; LEVY, 2004, p. 03). O Estado, por sua vez, serve operando em prol de determinados interesses dominantes, controlando a mobilidade do trabalho e preservando os lucros do capital. (WOOD, 2014).

Resta claro, portanto, que se trata de um jogo no qual a ideologia neoliberal serve de instrumento de dominação para a classe dominante, utilizando-se do Estado na manutenção do status quo.

É, pois, como assevera Gérard Dumenil e Dominique Lévy (2004): trata-se de “[...] uma luta de classes de envergadura histórico-mundial” (p. 01). Quem tiver olhos, veja.

REFERÊNCIAS

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