harvey,david. espaços de esperança

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I DAVID HARVEY .. 1 . ESPAÇOS DE ESPERANÇA TRADUÇÃO Adail Ubirajara Sobral Mari,l Stela G0l1çaluf5 I . .. Capítulo 8 Os espaços de utopia Um mapa do mundo que não inclua Utopia não merece ncm mesmo uma espiada (Oscar Wilde). 1. A história de Baltimore V lVI EM Baltimore a maior parte de minha vida adulta. Considero-a minha cidade natal e acumulei um imenso tesouro de afeição pelo lugar e seu povo. Baltimore no entanto, em quase todos os aspectos, é uma confusão. Não o tipo de confusão atraente que faz das cidades fascinantes lugares a ser explorados, mas uma terrível confusão. E parece bem pior agora do que quando a conheci, em 1969. Ou talvez continue a ser a mesma confusão de sempre (ver a Tabela 8.1), diferindo da Baltimore da época porque muitas pessoas pensavam então que era possível tomar alguma providência. Hoje, os problemas pare- cem insolúveis. Um número demasiado de detalhes dessa confusão pode- ria sobrecarregar. Mas vale a pena indicar algumas de suas ca- racterísticas. cerca de 40 mil casas vazias e em sua maioria abandonadas (Ilustração 8.1) para um número total de residên- cias de mais ou menos 300 mil unidades no perímetro urbano (havia 7 mil em 1970). Ai3 concentrações de pessoas sem mora- dia (apesar de todas essas casas vazias), de desempregados e, o que tem mais relevância, de pobres empregados (que tentam

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Page 1: HARVEY,David. Espaços de Esperança

I ~

DAVID HARVEY

1

ESPACcedilOS DE ESPERANCcedilA

TRADUCcedilAtildeO

Adail Ubirajara Sobral Maril Stela G0l1ccedilaluf5

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Capiacutetulo 8

Os espaccedilos de utopia

Um mapa do mundo que natildeo inclua Utopia natildeo merece ncm mesmo uma espiada (Oscar Wilde)

1 A histoacuteria de Baltimore

VlVI EM Baltimore a maior parte de minha vida adulta Considero-a minha cidade natal e acumulei um imenso tesouro de afeiccedilatildeo pelo lugar e seu povo Baltimore no

entanto em quase todos os aspectos eacute uma confusatildeo Natildeo o tipo de confusatildeo atraente que faz das cidades fascinantes lugares a ser explorados mas uma terriacutevel confusatildeo E parece bem pior agora do que quando a conheci em 1969 Ou talvez continue a ser a mesma confusatildeo de sempre (ver a Tabela 81) diferindo da Baltimore da eacutepoca porque muitas pessoas pensavam entatildeo que era possiacutevel tomar alguma providecircncia Hoje os problemas pareshycem insoluacuteveis

Um nuacutemero demasiado de detalhes dessa confusatildeo podeshyria sobrecarregar Mas vale a pena indicar algumas de suas cashyracteriacutesticas Haacute cerca de 40 mil casas vazias e em sua maioria abandonadas (Ilustraccedilatildeo 81) para um nuacutemero total de residecircnshycias de mais ou menos 300 mil unidades no periacutemetro urbano (havia 7 mil em 1970) Ai3 concentraccedilotildees de pessoas sem morashydia (apesar de todas essas casas vazias) de desempregados e o que tem mais relevacircncia de pobres empregados (que tentam

o MOMENTO UTOacutePICO

Tabela 81 Dois momentos no tempo de um bairro do centro de Baltimore

1966 1988

Dados econocircmicos (em porcentagem)

Taxa de desemprego de adultos 70 170 Famfliacuteas que recebem assistecircncia social 280 300 Famiacutelias com renda inferior a 10000 doacutelares (doacutelares de 1988) 410 470 Famflias com renda inferior a 20000 doacutelares (doacutelares de 1988) 160 180 Adultos que concluiacuteram o ensino meacutedio 100 490 Famiacutelias em que ao menos um membro tem automoacutevel 230 360 Porcentagem de empregados como trabalhadores 430 80 Porcentagem dos empregados no setor de serviccedilos l0 300

FlllJliacutelias e estrutura familiar

Tamanho meacutedio das residecircncias 29 19 Porcentagem de aposentados 130 300 Porcentagem da populaccedilatildeo com menos de 18 anos de idade 450 340 Porcentagem de farru1ias com um adulto homem 560 430 Porcentagem de pessoas sozinhas 160 310 Porcentagem de famiacutelias com cinco ou mais pessoas 300 120

Ohairro

Bom aspecto mais citado as pessuas

Queixa mais comum dlOgascrimishynulidade

Porcentagem de residentes que pagam aluguel 850 780 Porcentagem de adultos que vivem no bairro haacute mais de 10 anos 480 600

Porcentagem de pessoas que acham que o bairro estaacute melhorando 140na

Os daJns acimaforam compiladnsporpesquisas encomendadaspelo Baltimore Urban Renewal and Housing Agency [Oacutergatildeo de Habitaifio e ReTllJVaCcedilatildeo Urbarw de Bahinwre] repetidas pelo Baltimore SWl em abril de 1988 O foro eacute o bairro mais afetado pelas manifestaccedilotildees popu1ores que se seguiram ao assassirwto de Martin Luther King Foram puhlicados pelo Baltimore SWl (4 de abril de 1988) por orosiatildeo do vigeacutesimo aniversaacuterW desse evento Com a exceccedilatildeo das taxas de conclusatildeo do curso meacutedw da propriedade de automoacutevel e do nuacutemero excessivo de pessoas por residecircncia os dados indicam na melhor das hipoacuteteses a estabilizaccedilatildeo e em alguns casos a pwra das condiccedilotildees sociais e econocircmicas no bairro Embora parte disso se deva agrave tendecircncia de envelhecimento da populaccedilatildeo eacute evidente a falta de oportunidades de emprego A catastroacutefica queda do emprego industrial e o aushymento do nuacutemero de empregados em serviccedilos oculta uma radical rruulanccedila das oportunishydades de emprego que passaram a favorecer as mulheres em detrimento dos homens Isso tem correlaccedilatildeo com niacuteveis bem mais altos de educaatildeo meacutedia e com a queda da presenccedila de adultos homens nas famiacutelias Dados compilados durante a deacutecada de 1990 para bairshyros de peifiJ semelluuuacutee niio trazem eacutevuacute1ecircncias de reversatildeo dessas tendecircncias

(Fonte HARVEY 1988 p 238)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 81 Abandono da cidade casario de Baltimore Havia em 1970 cerca de 7 mil casas abandonadas na cidade de Baltimore Por volta de 1998 esse nuacutemero passou a algo em torno de 40 mil num universo de pouco mais de 300 mil unidades O efeito disso em bairros inteiros foi catastroacutefico A poliacutetica da cidade se volta agora para a demoliccedilatildeo em larga escala (entre 1966 e 1999 foram demolidas 4 mil haacute planos de demolir mais 11 mil) A esperanccedila oficial eacute de que isso expulse da cidade os pobres e a suhclasse A ideacuteia de recuperar bairros mais antigos _ particularmente os que apresentam um grarule nuacutemero de habitaccedilotildees de boa qualidashyde - foi deixada de lado embora isso pudesse fazer bem mais sentido econocircmico e ambiental

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o MOMENTO UTOacutePICO

viver com menos de 200 doacutelares por semana sem benefiacutecios) estatildeo agrave vista de todos As filas agrave porta das instituiccedilotildees que distribuem refeiccedilotildees (o Estashydo de Maryland contava em 1980 com 60 delas agora haacute 900) vatildeo ficando cada vez maiores (30 por cento de seus usuaacuterios segundo vaacuterias pesquisas informais estatildeo empregados) e as missotildees de caridade de muitas Igrejas no centro da cidade chegaram a uma situaccedilatildeo natildeo-administraacutevel (Ilustrashyccedilatildeo 82) As desigualdades - tanto de oportunidades como de padratildeo de vida aumentam com rapidez Os amplos recursos educacionais desse

centro urbano (a cidade de Baltimore tem algumas das melhores escolas do paiacutes mas todas satildeo particulares) satildeo negados agrave maioria das crianccedilas que ali vivem As instituiccedilotildees educacionais puacuteblicas se acham em condiccedilatildeo deploshyraacutevel (segundo exames recentes com um atraso de dois anos e meio em habilidades de leitura com referecircncia agrave meacutedia nacional)

A pobreza crocircnica e todo tipo de sinais de tensatildeo social (Ilustraccedilatildeo 83) reinam agrave sombra de algumas das mais sofisticadas instituiccedilotildees meacutedishycas e de sauacutede puacuteblica do mundo inacessiacuteveis agraves populaccedilotildees locais (a natildeo ser para quem tem o privileacutegio de limpar as alas de tratamento da AIDS por uma remuneraccedilatildeo inferior ao salaacuterio vital direito aos serviccedilos de assistecircncia Medicare ou Medicaid ou entatildeo uma doenccedila rara que inteshyresse agrave elite dos pesquisadores da aacuterea de medicina) A expectativa de vida no entorno imediato dessas instituiccedilotildees hospitalares de reputaccedilatildeo internacional estaacute entre as menores dos Estados Unidos sendo comparaacuteshyvel agrave de muitos dos paiacuteses mais pobres do mundo (63 anos para home~s e 732 para mulheres) A taxa de transmissatildeo da siacutefilis eacute a maior de todas as cidades do mundo desenvolvido (de acordo com estatiacutesticas da Organizashyccedilatildeo Mundial de Sauacutede) e tem havido uma explosatildeo de doenccedilas respiratoacuteshyrias (que mais do que duplicaram em todas as categorias da cidade entre 1986 e 1996 de acordo com dados da Environmental Protection Agency [o oacutergatildeo de proteccedilatildeo ambiental dos Estados Unidos]) mas liderada por um impressionante aumento dos casos de asma (que passaram de uma taxa de cerca de 8 para 170 por 10 mil habitantes) O uacutenico sucesso notaacutevel no campo da sauacutede puacuteblica registrado na cidade foi a dramaacutetica contenccedilatildeo da tuberculose Isso ocorreu devido agrave accedilatildeo de um secretaacuterio municipal de Sauacutede que tendo tido experiecircncia meacutedica militar no Vietnatilde julgou adequado adaptar a ideacuteia comunista chinesa dos meacutedicos de peacutes descalccedilos agrave zona urbana de Baltimore e assim baixar a taxa de infecccedilatildeo por tuberculose da cidade em uma deacutecada da posiccedilatildeo nada invejaacutevel de pior do paiacutes para algo abaixo da taxa nacional

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 82 Caridade na cidade Our Daily Bread [O Patildeo Nosso de Cada Dia no centro de BaUacuteimore A Our Daily Bread instituiccedilatildeo dirigida pela entidade filantroacutepica Catholic Charities alimenta diariamente cerca de 900pessoas Visitada pelo papa ela tem sido haacute muito tempo o carro-chefe do atendimento aos pobres do centro da cidade Mas em 1998 a Downtown Partnership digirida por Peter Angelos o multimilionaacuterio dono do Baltimore Orioles (com um orccedilamento anual de salaacuterios para jogadores de beisebol de 90 milhotildees) comeccedilou uma campanha contra a circulaccedilatildeo de pobres na aacuterea central da cidade porque eles supostamente promcrvem o

crime desvalorizam as propriedades e impedem o redesenvolvimento A Partnership instou a cidade a criar um campus de assistecircncia social para os pobres longe da aacuterea urbana central Solicitou-se agrave Catholic Charities que procurasse uma sede menos central Em abril de 1999 foi anunciado que a Our Daily Bread iria se transferir para uma edificaccedilatildeo reformada doada por Angelos simbolicamente situada atraacutes da cadeia municipal num bairro empobrecido Quando os residentes locais se queixashyram a Catholic Charities abandonou o lugar e comeccedilou a procurar outra sede A burguesia como alegou Engels tem para os problemas sociais uma uacutenica soluccedilatildeo afastaacute-los das vistas enquanto culpa precisamente os que tecircm menos condiccedilotildees de arcar com o )nus

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o MOMENTO UTOacutePICO

lUacuteUJtrafatildeo 83 Pobre~a na cidade agrave sombra do hospital Johns Hopkins O hospital Johns Hopkins e a Escola de Sauacutede Puacuteblica associada figuram entre os melhores do mundo Mas a expectativa de vida da cidade eacute abissalmente baixa e as estatiacutesticas de sauacutede no entorno imediato dessas instituiccedilotildees contam uma estarrecedora histoacuteria de empobrecimento de marginalizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de negligecircncia Os

estabelecimentos de agiotas as fachadas em ruiacutenas das igrejas os advogados de porta de cadeia nas adjacecircncias do hospital - tudo isso revela a tensatildeo social Poshyreacutem um mural em ruiacutenas que exprime o desejo de Subir a Escada de Jacoacute sair da miseacuteria para uma condiccedilatildeo de auto-aceitaccedilatildeo e de confULnccedila em si mesmo oferece

um vislumbre de desejo ut6pico A campanha emfavor do salaacuterio vital na cidade e na Johns Hopkiru (com seu lema Subindo a Escada de Jac6 traz a esperanccedila de que se

suba ao menos um degrau dessa escada

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Os abastados (negros e brancos) continuam a sair da cidade em granshy~

des grupos (a uma taxa liacutequida de mais de mil por mecircs nos uacuteltimos cinco sect~

anos de acordo com o Censo) buscando tranquumlilidade seguranccedila e emshypregos nos subuacuterbios (a populaccedilatildeo da aacuterea central da cidade estava perto de 1 milhatildeo quando cheguei e hoje caiu para pouco mais de 600 mil) Os subuacuterbios as cidades-dormitoacuterio e as ex-urbes proliferam (com a ajuda de amplos subsiacutedios puacuteblicos para o transporte e para a construccedilatildeo de habitaccedilotildees para pessoas de alta renda por meio da isenccedilatildeo fiscal dos juros hipotecaacuterios) num crescimento suburbano desordenado extraordinariashymente antiecoloacutegico (Ilustraccedilatildeo 84) - longas horas de deslocamento graves concentraccedilotildees de ozocircnio no veratildeo (o que quase certamente tem relaccedilatildeo com a espiral ascendente de problemas respiratoacuterios) Os empreshysaacuterios do desenvolvimento habitacional oferecem esses grandes focos doentios de conformidade suburbana segura (claro que atenuados por cishytaccedilotildees arquitetocircnicas de villas italianizadas e colunas goacuteticas) como uma panaceacuteia para curar o colapso e a desintegraccedilatildeo da urbanidade primeiro no centro das cidades e mais tarde quando o foco mortal se dissemina no centro dos subuacuterbios E eacute aiacute nesse mundo insiacutepido e indistinto que a maioria da populaccedilatildeo metropolitana tal como a maioria dos norte-amerishycanos que nunca se sentiu tatildeo bem alegremente vive Residir nessa utoshypia burguesa (como a denomina Robert FISHMAN 1989) comercializada fundamenta a peculiar mistura de conservadorismo poliacutetico e libertarismo social que constitui a marca da Ameacuterica do Norte contemporacircnea

Tem havido uma espeacutecie de esforccedilo de reversatildeo de tendecircncias na cidade Iniciado no comeccedilo da deacutecada de 1970 sob a eacutegide de um prefeito dedicado e autoritaacuterio (William Donald Schaeffer) esse esforccedilo envolveu a formaccedilatildeo de uma parceria entre o poder puacuteblico e a iniciativa privada para investir na revitalizaccedilatildeo do centro da cidade e da regiatildeo de Inner Harbor (Ilustraccedilatildeo 85) a fim de atrair serviccedilos financeiros o turismo e as chamadas funccedilotildees de hospitalidade para o centro Foram necessaacuterios muitos gastos puacuteblicos para manter o projeto em andamento Uma vez que dispushynha dos hoteacuteis (o Hyatt conseguiu um hotel de 35 milhotildees de doacutelares para um gasto proacuteprio de apenas meio milhatildeo no comeccedilo dos anos 1980) a parceria precisava construir um centro de convenccedilotildees para ocupar os hoshyteacuteis e conseguir parte do que se avalia ser uma induacutestria de eventos de83 bilhotildees de doacutelares Para manter o conjunto competitivo eram necessaacuterios mais 150 milhotildees de doacutelares para construir um centro de convenccedilotildees -

o MOMENTO UlocircPtco

Ilustraccedilatildeo 84~ burguesa crescimento suburbano desordenado Gonw muitas ozuras rtfiiiacuteiin metropolitanas dos Estados UnUacuteUacuteJs Baltinwre sofreu uma exploshysatildeo centrifuga _Titnw acelerado (ver a Ilustraccedilatildeo 31 agrave p 71)lmpelUacuteUacuteJ por uma complexa mist_ enwres da cidmle associada com o racisnw e o preconceito de classe o colap1Iiu infra-estruturas puacuteblicas em muitas partes das cidmle e atraiacutedo pelo desejo utoacutem6arguecircs de tranquumlilos confortos isolados e protegidos o efeito desse individualisnw~ na propriedade criou uma paisagem notavelmente repetitiva de crescimento ~ associado com a total dependecircncia do autoTnOacutel)el Os imshypactos ecoloacutegicra altamente negativos e os custos sociais e econocircmicos do traacutefego congestionado e instalaccedilatildeo de infra-estrutura estatildeo aumentando com rapidez

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 85 Utopia dos incorporadores a renoroccedilatildeo de Inner Harbor de Baltimore Quase tudo o que se vecirc no atual horizonte de lnner Harbor de BaltimoreJoi construiacutedo a partir de mais ou menos 1970 As edificaccedilotildees em segundo plano satildeo espaccedilos para escritoacuterios e hoteacuteis com preacutedios de apartamentos com muitiacutesshysimos andares (foi muito diflcil vendecirc-los antes de se concederem descontos) proteshygendo cada flanco O alto preacutedio agrave esquerda foi constnaacutedo em terrenos valiosos e dado aos incorporadores em troca de promessas de ajuda em outros locais que nunca se concretizaram Estatildeo no primeiro plano as atividades de lazer e turiacutesticas que se concentram na parte frontal do porto (os investimentos da Rouse numa seacuterie de teatros de arena ocupam a parte central do porto) Financiada por uma parceria puacuteblico-privada boa parte do desenvolvimento tem tido uma histoacuteria de altos e baishyxos O Hyatt Regency Hotel (parte central superior) deu a Hyatt um hotel de 35 milhotildees para um investimento de meros 500 mil doacutelares (o restantefoi dinheiro puacuteblishy

-co) Embora esses investimelllos tenham acobado por trazer beneficios para a cidade o Golumbus Science Genter (o preacutedio da parte central inferior com teto branco irregushylar) custou 147 milhotildees agrave iniciativa privada com garantia puacuteblica mas sua principal funccedilatildeo a de Pavilhatildeo de Exploraccedilatildeofoiforccedilada a ser illlerrompida em 1997 depois de nove meses defuncionamento Resgatado dafalecircncia por uma operaccedilatildeo do Estashydo opreacutedio eacute agora administrado pela University ofMaryland tendo conw principal locador um celllro de biotecnologia marinha

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o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

bull

Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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bull-I ~ ~

Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

II 1 i

Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

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A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 2: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Tabela 81 Dois momentos no tempo de um bairro do centro de Baltimore

1966 1988

Dados econocircmicos (em porcentagem)

Taxa de desemprego de adultos 70 170 Famfliacuteas que recebem assistecircncia social 280 300 Famiacutelias com renda inferior a 10000 doacutelares (doacutelares de 1988) 410 470 Famflias com renda inferior a 20000 doacutelares (doacutelares de 1988) 160 180 Adultos que concluiacuteram o ensino meacutedio 100 490 Famiacutelias em que ao menos um membro tem automoacutevel 230 360 Porcentagem de empregados como trabalhadores 430 80 Porcentagem dos empregados no setor de serviccedilos l0 300

FlllJliacutelias e estrutura familiar

Tamanho meacutedio das residecircncias 29 19 Porcentagem de aposentados 130 300 Porcentagem da populaccedilatildeo com menos de 18 anos de idade 450 340 Porcentagem de farru1ias com um adulto homem 560 430 Porcentagem de pessoas sozinhas 160 310 Porcentagem de famiacutelias com cinco ou mais pessoas 300 120

Ohairro

Bom aspecto mais citado as pessuas

Queixa mais comum dlOgascrimishynulidade

Porcentagem de residentes que pagam aluguel 850 780 Porcentagem de adultos que vivem no bairro haacute mais de 10 anos 480 600

Porcentagem de pessoas que acham que o bairro estaacute melhorando 140na

Os daJns acimaforam compiladnsporpesquisas encomendadaspelo Baltimore Urban Renewal and Housing Agency [Oacutergatildeo de Habitaifio e ReTllJVaCcedilatildeo Urbarw de Bahinwre] repetidas pelo Baltimore SWl em abril de 1988 O foro eacute o bairro mais afetado pelas manifestaccedilotildees popu1ores que se seguiram ao assassirwto de Martin Luther King Foram puhlicados pelo Baltimore SWl (4 de abril de 1988) por orosiatildeo do vigeacutesimo aniversaacuterW desse evento Com a exceccedilatildeo das taxas de conclusatildeo do curso meacutedw da propriedade de automoacutevel e do nuacutemero excessivo de pessoas por residecircncia os dados indicam na melhor das hipoacuteteses a estabilizaccedilatildeo e em alguns casos a pwra das condiccedilotildees sociais e econocircmicas no bairro Embora parte disso se deva agrave tendecircncia de envelhecimento da populaccedilatildeo eacute evidente a falta de oportunidades de emprego A catastroacutefica queda do emprego industrial e o aushymento do nuacutemero de empregados em serviccedilos oculta uma radical rruulanccedila das oportunishydades de emprego que passaram a favorecer as mulheres em detrimento dos homens Isso tem correlaccedilatildeo com niacuteveis bem mais altos de educaatildeo meacutedia e com a queda da presenccedila de adultos homens nas famiacutelias Dados compilados durante a deacutecada de 1990 para bairshyros de peifiJ semelluuuacutee niio trazem eacutevuacute1ecircncias de reversatildeo dessas tendecircncias

(Fonte HARVEY 1988 p 238)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 81 Abandono da cidade casario de Baltimore Havia em 1970 cerca de 7 mil casas abandonadas na cidade de Baltimore Por volta de 1998 esse nuacutemero passou a algo em torno de 40 mil num universo de pouco mais de 300 mil unidades O efeito disso em bairros inteiros foi catastroacutefico A poliacutetica da cidade se volta agora para a demoliccedilatildeo em larga escala (entre 1966 e 1999 foram demolidas 4 mil haacute planos de demolir mais 11 mil) A esperanccedila oficial eacute de que isso expulse da cidade os pobres e a suhclasse A ideacuteia de recuperar bairros mais antigos _ particularmente os que apresentam um grarule nuacutemero de habitaccedilotildees de boa qualidashyde - foi deixada de lado embora isso pudesse fazer bem mais sentido econocircmico e ambiental

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o MOMENTO UTOacutePICO

viver com menos de 200 doacutelares por semana sem benefiacutecios) estatildeo agrave vista de todos As filas agrave porta das instituiccedilotildees que distribuem refeiccedilotildees (o Estashydo de Maryland contava em 1980 com 60 delas agora haacute 900) vatildeo ficando cada vez maiores (30 por cento de seus usuaacuterios segundo vaacuterias pesquisas informais estatildeo empregados) e as missotildees de caridade de muitas Igrejas no centro da cidade chegaram a uma situaccedilatildeo natildeo-administraacutevel (Ilustrashyccedilatildeo 82) As desigualdades - tanto de oportunidades como de padratildeo de vida aumentam com rapidez Os amplos recursos educacionais desse

centro urbano (a cidade de Baltimore tem algumas das melhores escolas do paiacutes mas todas satildeo particulares) satildeo negados agrave maioria das crianccedilas que ali vivem As instituiccedilotildees educacionais puacuteblicas se acham em condiccedilatildeo deploshyraacutevel (segundo exames recentes com um atraso de dois anos e meio em habilidades de leitura com referecircncia agrave meacutedia nacional)

A pobreza crocircnica e todo tipo de sinais de tensatildeo social (Ilustraccedilatildeo 83) reinam agrave sombra de algumas das mais sofisticadas instituiccedilotildees meacutedishycas e de sauacutede puacuteblica do mundo inacessiacuteveis agraves populaccedilotildees locais (a natildeo ser para quem tem o privileacutegio de limpar as alas de tratamento da AIDS por uma remuneraccedilatildeo inferior ao salaacuterio vital direito aos serviccedilos de assistecircncia Medicare ou Medicaid ou entatildeo uma doenccedila rara que inteshyresse agrave elite dos pesquisadores da aacuterea de medicina) A expectativa de vida no entorno imediato dessas instituiccedilotildees hospitalares de reputaccedilatildeo internacional estaacute entre as menores dos Estados Unidos sendo comparaacuteshyvel agrave de muitos dos paiacuteses mais pobres do mundo (63 anos para home~s e 732 para mulheres) A taxa de transmissatildeo da siacutefilis eacute a maior de todas as cidades do mundo desenvolvido (de acordo com estatiacutesticas da Organizashyccedilatildeo Mundial de Sauacutede) e tem havido uma explosatildeo de doenccedilas respiratoacuteshyrias (que mais do que duplicaram em todas as categorias da cidade entre 1986 e 1996 de acordo com dados da Environmental Protection Agency [o oacutergatildeo de proteccedilatildeo ambiental dos Estados Unidos]) mas liderada por um impressionante aumento dos casos de asma (que passaram de uma taxa de cerca de 8 para 170 por 10 mil habitantes) O uacutenico sucesso notaacutevel no campo da sauacutede puacuteblica registrado na cidade foi a dramaacutetica contenccedilatildeo da tuberculose Isso ocorreu devido agrave accedilatildeo de um secretaacuterio municipal de Sauacutede que tendo tido experiecircncia meacutedica militar no Vietnatilde julgou adequado adaptar a ideacuteia comunista chinesa dos meacutedicos de peacutes descalccedilos agrave zona urbana de Baltimore e assim baixar a taxa de infecccedilatildeo por tuberculose da cidade em uma deacutecada da posiccedilatildeo nada invejaacutevel de pior do paiacutes para algo abaixo da taxa nacional

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 82 Caridade na cidade Our Daily Bread [O Patildeo Nosso de Cada Dia no centro de BaUacuteimore A Our Daily Bread instituiccedilatildeo dirigida pela entidade filantroacutepica Catholic Charities alimenta diariamente cerca de 900pessoas Visitada pelo papa ela tem sido haacute muito tempo o carro-chefe do atendimento aos pobres do centro da cidade Mas em 1998 a Downtown Partnership digirida por Peter Angelos o multimilionaacuterio dono do Baltimore Orioles (com um orccedilamento anual de salaacuterios para jogadores de beisebol de 90 milhotildees) comeccedilou uma campanha contra a circulaccedilatildeo de pobres na aacuterea central da cidade porque eles supostamente promcrvem o

crime desvalorizam as propriedades e impedem o redesenvolvimento A Partnership instou a cidade a criar um campus de assistecircncia social para os pobres longe da aacuterea urbana central Solicitou-se agrave Catholic Charities que procurasse uma sede menos central Em abril de 1999 foi anunciado que a Our Daily Bread iria se transferir para uma edificaccedilatildeo reformada doada por Angelos simbolicamente situada atraacutes da cadeia municipal num bairro empobrecido Quando os residentes locais se queixashyram a Catholic Charities abandonou o lugar e comeccedilou a procurar outra sede A burguesia como alegou Engels tem para os problemas sociais uma uacutenica soluccedilatildeo afastaacute-los das vistas enquanto culpa precisamente os que tecircm menos condiccedilotildees de arcar com o )nus

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o MOMENTO UTOacutePICO

lUacuteUJtrafatildeo 83 Pobre~a na cidade agrave sombra do hospital Johns Hopkins O hospital Johns Hopkins e a Escola de Sauacutede Puacuteblica associada figuram entre os melhores do mundo Mas a expectativa de vida da cidade eacute abissalmente baixa e as estatiacutesticas de sauacutede no entorno imediato dessas instituiccedilotildees contam uma estarrecedora histoacuteria de empobrecimento de marginalizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de negligecircncia Os

estabelecimentos de agiotas as fachadas em ruiacutenas das igrejas os advogados de porta de cadeia nas adjacecircncias do hospital - tudo isso revela a tensatildeo social Poshyreacutem um mural em ruiacutenas que exprime o desejo de Subir a Escada de Jacoacute sair da miseacuteria para uma condiccedilatildeo de auto-aceitaccedilatildeo e de confULnccedila em si mesmo oferece

um vislumbre de desejo ut6pico A campanha emfavor do salaacuterio vital na cidade e na Johns Hopkiru (com seu lema Subindo a Escada de Jac6 traz a esperanccedila de que se

suba ao menos um degrau dessa escada

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Os abastados (negros e brancos) continuam a sair da cidade em granshy~

des grupos (a uma taxa liacutequida de mais de mil por mecircs nos uacuteltimos cinco sect~

anos de acordo com o Censo) buscando tranquumlilidade seguranccedila e emshypregos nos subuacuterbios (a populaccedilatildeo da aacuterea central da cidade estava perto de 1 milhatildeo quando cheguei e hoje caiu para pouco mais de 600 mil) Os subuacuterbios as cidades-dormitoacuterio e as ex-urbes proliferam (com a ajuda de amplos subsiacutedios puacuteblicos para o transporte e para a construccedilatildeo de habitaccedilotildees para pessoas de alta renda por meio da isenccedilatildeo fiscal dos juros hipotecaacuterios) num crescimento suburbano desordenado extraordinariashymente antiecoloacutegico (Ilustraccedilatildeo 84) - longas horas de deslocamento graves concentraccedilotildees de ozocircnio no veratildeo (o que quase certamente tem relaccedilatildeo com a espiral ascendente de problemas respiratoacuterios) Os empreshysaacuterios do desenvolvimento habitacional oferecem esses grandes focos doentios de conformidade suburbana segura (claro que atenuados por cishytaccedilotildees arquitetocircnicas de villas italianizadas e colunas goacuteticas) como uma panaceacuteia para curar o colapso e a desintegraccedilatildeo da urbanidade primeiro no centro das cidades e mais tarde quando o foco mortal se dissemina no centro dos subuacuterbios E eacute aiacute nesse mundo insiacutepido e indistinto que a maioria da populaccedilatildeo metropolitana tal como a maioria dos norte-amerishycanos que nunca se sentiu tatildeo bem alegremente vive Residir nessa utoshypia burguesa (como a denomina Robert FISHMAN 1989) comercializada fundamenta a peculiar mistura de conservadorismo poliacutetico e libertarismo social que constitui a marca da Ameacuterica do Norte contemporacircnea

Tem havido uma espeacutecie de esforccedilo de reversatildeo de tendecircncias na cidade Iniciado no comeccedilo da deacutecada de 1970 sob a eacutegide de um prefeito dedicado e autoritaacuterio (William Donald Schaeffer) esse esforccedilo envolveu a formaccedilatildeo de uma parceria entre o poder puacuteblico e a iniciativa privada para investir na revitalizaccedilatildeo do centro da cidade e da regiatildeo de Inner Harbor (Ilustraccedilatildeo 85) a fim de atrair serviccedilos financeiros o turismo e as chamadas funccedilotildees de hospitalidade para o centro Foram necessaacuterios muitos gastos puacuteblicos para manter o projeto em andamento Uma vez que dispushynha dos hoteacuteis (o Hyatt conseguiu um hotel de 35 milhotildees de doacutelares para um gasto proacuteprio de apenas meio milhatildeo no comeccedilo dos anos 1980) a parceria precisava construir um centro de convenccedilotildees para ocupar os hoshyteacuteis e conseguir parte do que se avalia ser uma induacutestria de eventos de83 bilhotildees de doacutelares Para manter o conjunto competitivo eram necessaacuterios mais 150 milhotildees de doacutelares para construir um centro de convenccedilotildees -

o MOMENTO UlocircPtco

Ilustraccedilatildeo 84~ burguesa crescimento suburbano desordenado Gonw muitas ozuras rtfiiiacuteiin metropolitanas dos Estados UnUacuteUacuteJs Baltinwre sofreu uma exploshysatildeo centrifuga _Titnw acelerado (ver a Ilustraccedilatildeo 31 agrave p 71)lmpelUacuteUacuteJ por uma complexa mist_ enwres da cidmle associada com o racisnw e o preconceito de classe o colap1Iiu infra-estruturas puacuteblicas em muitas partes das cidmle e atraiacutedo pelo desejo utoacutem6arguecircs de tranquumlilos confortos isolados e protegidos o efeito desse individualisnw~ na propriedade criou uma paisagem notavelmente repetitiva de crescimento ~ associado com a total dependecircncia do autoTnOacutel)el Os imshypactos ecoloacutegicra altamente negativos e os custos sociais e econocircmicos do traacutefego congestionado e instalaccedilatildeo de infra-estrutura estatildeo aumentando com rapidez

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 85 Utopia dos incorporadores a renoroccedilatildeo de Inner Harbor de Baltimore Quase tudo o que se vecirc no atual horizonte de lnner Harbor de BaltimoreJoi construiacutedo a partir de mais ou menos 1970 As edificaccedilotildees em segundo plano satildeo espaccedilos para escritoacuterios e hoteacuteis com preacutedios de apartamentos com muitiacutesshysimos andares (foi muito diflcil vendecirc-los antes de se concederem descontos) proteshygendo cada flanco O alto preacutedio agrave esquerda foi constnaacutedo em terrenos valiosos e dado aos incorporadores em troca de promessas de ajuda em outros locais que nunca se concretizaram Estatildeo no primeiro plano as atividades de lazer e turiacutesticas que se concentram na parte frontal do porto (os investimentos da Rouse numa seacuterie de teatros de arena ocupam a parte central do porto) Financiada por uma parceria puacuteblico-privada boa parte do desenvolvimento tem tido uma histoacuteria de altos e baishyxos O Hyatt Regency Hotel (parte central superior) deu a Hyatt um hotel de 35 milhotildees para um investimento de meros 500 mil doacutelares (o restantefoi dinheiro puacuteblishy

-co) Embora esses investimelllos tenham acobado por trazer beneficios para a cidade o Golumbus Science Genter (o preacutedio da parte central inferior com teto branco irregushylar) custou 147 milhotildees agrave iniciativa privada com garantia puacuteblica mas sua principal funccedilatildeo a de Pavilhatildeo de Exploraccedilatildeofoiforccedilada a ser illlerrompida em 1997 depois de nove meses defuncionamento Resgatado dafalecircncia por uma operaccedilatildeo do Estashydo opreacutedio eacute agora administrado pela University ofMaryland tendo conw principal locador um celllro de biotecnologia marinha

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o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

bull

Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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bull-I ~ ~

Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

II 1 i

Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

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A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 3: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

viver com menos de 200 doacutelares por semana sem benefiacutecios) estatildeo agrave vista de todos As filas agrave porta das instituiccedilotildees que distribuem refeiccedilotildees (o Estashydo de Maryland contava em 1980 com 60 delas agora haacute 900) vatildeo ficando cada vez maiores (30 por cento de seus usuaacuterios segundo vaacuterias pesquisas informais estatildeo empregados) e as missotildees de caridade de muitas Igrejas no centro da cidade chegaram a uma situaccedilatildeo natildeo-administraacutevel (Ilustrashyccedilatildeo 82) As desigualdades - tanto de oportunidades como de padratildeo de vida aumentam com rapidez Os amplos recursos educacionais desse

centro urbano (a cidade de Baltimore tem algumas das melhores escolas do paiacutes mas todas satildeo particulares) satildeo negados agrave maioria das crianccedilas que ali vivem As instituiccedilotildees educacionais puacuteblicas se acham em condiccedilatildeo deploshyraacutevel (segundo exames recentes com um atraso de dois anos e meio em habilidades de leitura com referecircncia agrave meacutedia nacional)

A pobreza crocircnica e todo tipo de sinais de tensatildeo social (Ilustraccedilatildeo 83) reinam agrave sombra de algumas das mais sofisticadas instituiccedilotildees meacutedishycas e de sauacutede puacuteblica do mundo inacessiacuteveis agraves populaccedilotildees locais (a natildeo ser para quem tem o privileacutegio de limpar as alas de tratamento da AIDS por uma remuneraccedilatildeo inferior ao salaacuterio vital direito aos serviccedilos de assistecircncia Medicare ou Medicaid ou entatildeo uma doenccedila rara que inteshyresse agrave elite dos pesquisadores da aacuterea de medicina) A expectativa de vida no entorno imediato dessas instituiccedilotildees hospitalares de reputaccedilatildeo internacional estaacute entre as menores dos Estados Unidos sendo comparaacuteshyvel agrave de muitos dos paiacuteses mais pobres do mundo (63 anos para home~s e 732 para mulheres) A taxa de transmissatildeo da siacutefilis eacute a maior de todas as cidades do mundo desenvolvido (de acordo com estatiacutesticas da Organizashyccedilatildeo Mundial de Sauacutede) e tem havido uma explosatildeo de doenccedilas respiratoacuteshyrias (que mais do que duplicaram em todas as categorias da cidade entre 1986 e 1996 de acordo com dados da Environmental Protection Agency [o oacutergatildeo de proteccedilatildeo ambiental dos Estados Unidos]) mas liderada por um impressionante aumento dos casos de asma (que passaram de uma taxa de cerca de 8 para 170 por 10 mil habitantes) O uacutenico sucesso notaacutevel no campo da sauacutede puacuteblica registrado na cidade foi a dramaacutetica contenccedilatildeo da tuberculose Isso ocorreu devido agrave accedilatildeo de um secretaacuterio municipal de Sauacutede que tendo tido experiecircncia meacutedica militar no Vietnatilde julgou adequado adaptar a ideacuteia comunista chinesa dos meacutedicos de peacutes descalccedilos agrave zona urbana de Baltimore e assim baixar a taxa de infecccedilatildeo por tuberculose da cidade em uma deacutecada da posiccedilatildeo nada invejaacutevel de pior do paiacutes para algo abaixo da taxa nacional

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 82 Caridade na cidade Our Daily Bread [O Patildeo Nosso de Cada Dia no centro de BaUacuteimore A Our Daily Bread instituiccedilatildeo dirigida pela entidade filantroacutepica Catholic Charities alimenta diariamente cerca de 900pessoas Visitada pelo papa ela tem sido haacute muito tempo o carro-chefe do atendimento aos pobres do centro da cidade Mas em 1998 a Downtown Partnership digirida por Peter Angelos o multimilionaacuterio dono do Baltimore Orioles (com um orccedilamento anual de salaacuterios para jogadores de beisebol de 90 milhotildees) comeccedilou uma campanha contra a circulaccedilatildeo de pobres na aacuterea central da cidade porque eles supostamente promcrvem o

crime desvalorizam as propriedades e impedem o redesenvolvimento A Partnership instou a cidade a criar um campus de assistecircncia social para os pobres longe da aacuterea urbana central Solicitou-se agrave Catholic Charities que procurasse uma sede menos central Em abril de 1999 foi anunciado que a Our Daily Bread iria se transferir para uma edificaccedilatildeo reformada doada por Angelos simbolicamente situada atraacutes da cadeia municipal num bairro empobrecido Quando os residentes locais se queixashyram a Catholic Charities abandonou o lugar e comeccedilou a procurar outra sede A burguesia como alegou Engels tem para os problemas sociais uma uacutenica soluccedilatildeo afastaacute-los das vistas enquanto culpa precisamente os que tecircm menos condiccedilotildees de arcar com o )nus

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o MOMENTO UTOacutePICO

lUacuteUJtrafatildeo 83 Pobre~a na cidade agrave sombra do hospital Johns Hopkins O hospital Johns Hopkins e a Escola de Sauacutede Puacuteblica associada figuram entre os melhores do mundo Mas a expectativa de vida da cidade eacute abissalmente baixa e as estatiacutesticas de sauacutede no entorno imediato dessas instituiccedilotildees contam uma estarrecedora histoacuteria de empobrecimento de marginalizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de negligecircncia Os

estabelecimentos de agiotas as fachadas em ruiacutenas das igrejas os advogados de porta de cadeia nas adjacecircncias do hospital - tudo isso revela a tensatildeo social Poshyreacutem um mural em ruiacutenas que exprime o desejo de Subir a Escada de Jacoacute sair da miseacuteria para uma condiccedilatildeo de auto-aceitaccedilatildeo e de confULnccedila em si mesmo oferece

um vislumbre de desejo ut6pico A campanha emfavor do salaacuterio vital na cidade e na Johns Hopkiru (com seu lema Subindo a Escada de Jac6 traz a esperanccedila de que se

suba ao menos um degrau dessa escada

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Os abastados (negros e brancos) continuam a sair da cidade em granshy~

des grupos (a uma taxa liacutequida de mais de mil por mecircs nos uacuteltimos cinco sect~

anos de acordo com o Censo) buscando tranquumlilidade seguranccedila e emshypregos nos subuacuterbios (a populaccedilatildeo da aacuterea central da cidade estava perto de 1 milhatildeo quando cheguei e hoje caiu para pouco mais de 600 mil) Os subuacuterbios as cidades-dormitoacuterio e as ex-urbes proliferam (com a ajuda de amplos subsiacutedios puacuteblicos para o transporte e para a construccedilatildeo de habitaccedilotildees para pessoas de alta renda por meio da isenccedilatildeo fiscal dos juros hipotecaacuterios) num crescimento suburbano desordenado extraordinariashymente antiecoloacutegico (Ilustraccedilatildeo 84) - longas horas de deslocamento graves concentraccedilotildees de ozocircnio no veratildeo (o que quase certamente tem relaccedilatildeo com a espiral ascendente de problemas respiratoacuterios) Os empreshysaacuterios do desenvolvimento habitacional oferecem esses grandes focos doentios de conformidade suburbana segura (claro que atenuados por cishytaccedilotildees arquitetocircnicas de villas italianizadas e colunas goacuteticas) como uma panaceacuteia para curar o colapso e a desintegraccedilatildeo da urbanidade primeiro no centro das cidades e mais tarde quando o foco mortal se dissemina no centro dos subuacuterbios E eacute aiacute nesse mundo insiacutepido e indistinto que a maioria da populaccedilatildeo metropolitana tal como a maioria dos norte-amerishycanos que nunca se sentiu tatildeo bem alegremente vive Residir nessa utoshypia burguesa (como a denomina Robert FISHMAN 1989) comercializada fundamenta a peculiar mistura de conservadorismo poliacutetico e libertarismo social que constitui a marca da Ameacuterica do Norte contemporacircnea

Tem havido uma espeacutecie de esforccedilo de reversatildeo de tendecircncias na cidade Iniciado no comeccedilo da deacutecada de 1970 sob a eacutegide de um prefeito dedicado e autoritaacuterio (William Donald Schaeffer) esse esforccedilo envolveu a formaccedilatildeo de uma parceria entre o poder puacuteblico e a iniciativa privada para investir na revitalizaccedilatildeo do centro da cidade e da regiatildeo de Inner Harbor (Ilustraccedilatildeo 85) a fim de atrair serviccedilos financeiros o turismo e as chamadas funccedilotildees de hospitalidade para o centro Foram necessaacuterios muitos gastos puacuteblicos para manter o projeto em andamento Uma vez que dispushynha dos hoteacuteis (o Hyatt conseguiu um hotel de 35 milhotildees de doacutelares para um gasto proacuteprio de apenas meio milhatildeo no comeccedilo dos anos 1980) a parceria precisava construir um centro de convenccedilotildees para ocupar os hoshyteacuteis e conseguir parte do que se avalia ser uma induacutestria de eventos de83 bilhotildees de doacutelares Para manter o conjunto competitivo eram necessaacuterios mais 150 milhotildees de doacutelares para construir um centro de convenccedilotildees -

o MOMENTO UlocircPtco

Ilustraccedilatildeo 84~ burguesa crescimento suburbano desordenado Gonw muitas ozuras rtfiiiacuteiin metropolitanas dos Estados UnUacuteUacuteJs Baltinwre sofreu uma exploshysatildeo centrifuga _Titnw acelerado (ver a Ilustraccedilatildeo 31 agrave p 71)lmpelUacuteUacuteJ por uma complexa mist_ enwres da cidmle associada com o racisnw e o preconceito de classe o colap1Iiu infra-estruturas puacuteblicas em muitas partes das cidmle e atraiacutedo pelo desejo utoacutem6arguecircs de tranquumlilos confortos isolados e protegidos o efeito desse individualisnw~ na propriedade criou uma paisagem notavelmente repetitiva de crescimento ~ associado com a total dependecircncia do autoTnOacutel)el Os imshypactos ecoloacutegicra altamente negativos e os custos sociais e econocircmicos do traacutefego congestionado e instalaccedilatildeo de infra-estrutura estatildeo aumentando com rapidez

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 85 Utopia dos incorporadores a renoroccedilatildeo de Inner Harbor de Baltimore Quase tudo o que se vecirc no atual horizonte de lnner Harbor de BaltimoreJoi construiacutedo a partir de mais ou menos 1970 As edificaccedilotildees em segundo plano satildeo espaccedilos para escritoacuterios e hoteacuteis com preacutedios de apartamentos com muitiacutesshysimos andares (foi muito diflcil vendecirc-los antes de se concederem descontos) proteshygendo cada flanco O alto preacutedio agrave esquerda foi constnaacutedo em terrenos valiosos e dado aos incorporadores em troca de promessas de ajuda em outros locais que nunca se concretizaram Estatildeo no primeiro plano as atividades de lazer e turiacutesticas que se concentram na parte frontal do porto (os investimentos da Rouse numa seacuterie de teatros de arena ocupam a parte central do porto) Financiada por uma parceria puacuteblico-privada boa parte do desenvolvimento tem tido uma histoacuteria de altos e baishyxos O Hyatt Regency Hotel (parte central superior) deu a Hyatt um hotel de 35 milhotildees para um investimento de meros 500 mil doacutelares (o restantefoi dinheiro puacuteblishy

-co) Embora esses investimelllos tenham acobado por trazer beneficios para a cidade o Golumbus Science Genter (o preacutedio da parte central inferior com teto branco irregushylar) custou 147 milhotildees agrave iniciativa privada com garantia puacuteblica mas sua principal funccedilatildeo a de Pavilhatildeo de Exploraccedilatildeofoiforccedilada a ser illlerrompida em 1997 depois de nove meses defuncionamento Resgatado dafalecircncia por uma operaccedilatildeo do Estashydo opreacutedio eacute agora administrado pela University ofMaryland tendo conw principal locador um celllro de biotecnologia marinha

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o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

bull

Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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bull-I ~ ~

Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

II 1 i

Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

7000 1500

180 220 240 550 247 350 325

1500 225 210

4000 150 150 600

3500

A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

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tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

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lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

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dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

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e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 4: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

lUacuteUJtrafatildeo 83 Pobre~a na cidade agrave sombra do hospital Johns Hopkins O hospital Johns Hopkins e a Escola de Sauacutede Puacuteblica associada figuram entre os melhores do mundo Mas a expectativa de vida da cidade eacute abissalmente baixa e as estatiacutesticas de sauacutede no entorno imediato dessas instituiccedilotildees contam uma estarrecedora histoacuteria de empobrecimento de marginalizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de negligecircncia Os

estabelecimentos de agiotas as fachadas em ruiacutenas das igrejas os advogados de porta de cadeia nas adjacecircncias do hospital - tudo isso revela a tensatildeo social Poshyreacutem um mural em ruiacutenas que exprime o desejo de Subir a Escada de Jacoacute sair da miseacuteria para uma condiccedilatildeo de auto-aceitaccedilatildeo e de confULnccedila em si mesmo oferece

um vislumbre de desejo ut6pico A campanha emfavor do salaacuterio vital na cidade e na Johns Hopkiru (com seu lema Subindo a Escada de Jac6 traz a esperanccedila de que se

suba ao menos um degrau dessa escada

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Os abastados (negros e brancos) continuam a sair da cidade em granshy~

des grupos (a uma taxa liacutequida de mais de mil por mecircs nos uacuteltimos cinco sect~

anos de acordo com o Censo) buscando tranquumlilidade seguranccedila e emshypregos nos subuacuterbios (a populaccedilatildeo da aacuterea central da cidade estava perto de 1 milhatildeo quando cheguei e hoje caiu para pouco mais de 600 mil) Os subuacuterbios as cidades-dormitoacuterio e as ex-urbes proliferam (com a ajuda de amplos subsiacutedios puacuteblicos para o transporte e para a construccedilatildeo de habitaccedilotildees para pessoas de alta renda por meio da isenccedilatildeo fiscal dos juros hipotecaacuterios) num crescimento suburbano desordenado extraordinariashymente antiecoloacutegico (Ilustraccedilatildeo 84) - longas horas de deslocamento graves concentraccedilotildees de ozocircnio no veratildeo (o que quase certamente tem relaccedilatildeo com a espiral ascendente de problemas respiratoacuterios) Os empreshysaacuterios do desenvolvimento habitacional oferecem esses grandes focos doentios de conformidade suburbana segura (claro que atenuados por cishytaccedilotildees arquitetocircnicas de villas italianizadas e colunas goacuteticas) como uma panaceacuteia para curar o colapso e a desintegraccedilatildeo da urbanidade primeiro no centro das cidades e mais tarde quando o foco mortal se dissemina no centro dos subuacuterbios E eacute aiacute nesse mundo insiacutepido e indistinto que a maioria da populaccedilatildeo metropolitana tal como a maioria dos norte-amerishycanos que nunca se sentiu tatildeo bem alegremente vive Residir nessa utoshypia burguesa (como a denomina Robert FISHMAN 1989) comercializada fundamenta a peculiar mistura de conservadorismo poliacutetico e libertarismo social que constitui a marca da Ameacuterica do Norte contemporacircnea

Tem havido uma espeacutecie de esforccedilo de reversatildeo de tendecircncias na cidade Iniciado no comeccedilo da deacutecada de 1970 sob a eacutegide de um prefeito dedicado e autoritaacuterio (William Donald Schaeffer) esse esforccedilo envolveu a formaccedilatildeo de uma parceria entre o poder puacuteblico e a iniciativa privada para investir na revitalizaccedilatildeo do centro da cidade e da regiatildeo de Inner Harbor (Ilustraccedilatildeo 85) a fim de atrair serviccedilos financeiros o turismo e as chamadas funccedilotildees de hospitalidade para o centro Foram necessaacuterios muitos gastos puacuteblicos para manter o projeto em andamento Uma vez que dispushynha dos hoteacuteis (o Hyatt conseguiu um hotel de 35 milhotildees de doacutelares para um gasto proacuteprio de apenas meio milhatildeo no comeccedilo dos anos 1980) a parceria precisava construir um centro de convenccedilotildees para ocupar os hoshyteacuteis e conseguir parte do que se avalia ser uma induacutestria de eventos de83 bilhotildees de doacutelares Para manter o conjunto competitivo eram necessaacuterios mais 150 milhotildees de doacutelares para construir um centro de convenccedilotildees -

o MOMENTO UlocircPtco

Ilustraccedilatildeo 84~ burguesa crescimento suburbano desordenado Gonw muitas ozuras rtfiiiacuteiin metropolitanas dos Estados UnUacuteUacuteJs Baltinwre sofreu uma exploshysatildeo centrifuga _Titnw acelerado (ver a Ilustraccedilatildeo 31 agrave p 71)lmpelUacuteUacuteJ por uma complexa mist_ enwres da cidmle associada com o racisnw e o preconceito de classe o colap1Iiu infra-estruturas puacuteblicas em muitas partes das cidmle e atraiacutedo pelo desejo utoacutem6arguecircs de tranquumlilos confortos isolados e protegidos o efeito desse individualisnw~ na propriedade criou uma paisagem notavelmente repetitiva de crescimento ~ associado com a total dependecircncia do autoTnOacutel)el Os imshypactos ecoloacutegicra altamente negativos e os custos sociais e econocircmicos do traacutefego congestionado e instalaccedilatildeo de infra-estrutura estatildeo aumentando com rapidez

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 85 Utopia dos incorporadores a renoroccedilatildeo de Inner Harbor de Baltimore Quase tudo o que se vecirc no atual horizonte de lnner Harbor de BaltimoreJoi construiacutedo a partir de mais ou menos 1970 As edificaccedilotildees em segundo plano satildeo espaccedilos para escritoacuterios e hoteacuteis com preacutedios de apartamentos com muitiacutesshysimos andares (foi muito diflcil vendecirc-los antes de se concederem descontos) proteshygendo cada flanco O alto preacutedio agrave esquerda foi constnaacutedo em terrenos valiosos e dado aos incorporadores em troca de promessas de ajuda em outros locais que nunca se concretizaram Estatildeo no primeiro plano as atividades de lazer e turiacutesticas que se concentram na parte frontal do porto (os investimentos da Rouse numa seacuterie de teatros de arena ocupam a parte central do porto) Financiada por uma parceria puacuteblico-privada boa parte do desenvolvimento tem tido uma histoacuteria de altos e baishyxos O Hyatt Regency Hotel (parte central superior) deu a Hyatt um hotel de 35 milhotildees para um investimento de meros 500 mil doacutelares (o restantefoi dinheiro puacuteblishy

-co) Embora esses investimelllos tenham acobado por trazer beneficios para a cidade o Golumbus Science Genter (o preacutedio da parte central inferior com teto branco irregushylar) custou 147 milhotildees agrave iniciativa privada com garantia puacuteblica mas sua principal funccedilatildeo a de Pavilhatildeo de Exploraccedilatildeofoiforccedilada a ser illlerrompida em 1997 depois de nove meses defuncionamento Resgatado dafalecircncia por uma operaccedilatildeo do Estashydo opreacutedio eacute agora administrado pela University ofMaryland tendo conw principal locador um celllro de biotecnologia marinha

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o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

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Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

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bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

7000 1500

180 220 240 550 247 350 325

1500 225 210

4000 150 150 600

3500

A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

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rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

-

o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 5: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UlocircPtco

Ilustraccedilatildeo 84~ burguesa crescimento suburbano desordenado Gonw muitas ozuras rtfiiiacuteiin metropolitanas dos Estados UnUacuteUacuteJs Baltinwre sofreu uma exploshysatildeo centrifuga _Titnw acelerado (ver a Ilustraccedilatildeo 31 agrave p 71)lmpelUacuteUacuteJ por uma complexa mist_ enwres da cidmle associada com o racisnw e o preconceito de classe o colap1Iiu infra-estruturas puacuteblicas em muitas partes das cidmle e atraiacutedo pelo desejo utoacutem6arguecircs de tranquumlilos confortos isolados e protegidos o efeito desse individualisnw~ na propriedade criou uma paisagem notavelmente repetitiva de crescimento ~ associado com a total dependecircncia do autoTnOacutel)el Os imshypactos ecoloacutegicra altamente negativos e os custos sociais e econocircmicos do traacutefego congestionado e instalaccedilatildeo de infra-estrutura estatildeo aumentando com rapidez

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 85 Utopia dos incorporadores a renoroccedilatildeo de Inner Harbor de Baltimore Quase tudo o que se vecirc no atual horizonte de lnner Harbor de BaltimoreJoi construiacutedo a partir de mais ou menos 1970 As edificaccedilotildees em segundo plano satildeo espaccedilos para escritoacuterios e hoteacuteis com preacutedios de apartamentos com muitiacutesshysimos andares (foi muito diflcil vendecirc-los antes de se concederem descontos) proteshygendo cada flanco O alto preacutedio agrave esquerda foi constnaacutedo em terrenos valiosos e dado aos incorporadores em troca de promessas de ajuda em outros locais que nunca se concretizaram Estatildeo no primeiro plano as atividades de lazer e turiacutesticas que se concentram na parte frontal do porto (os investimentos da Rouse numa seacuterie de teatros de arena ocupam a parte central do porto) Financiada por uma parceria puacuteblico-privada boa parte do desenvolvimento tem tido uma histoacuteria de altos e baishyxos O Hyatt Regency Hotel (parte central superior) deu a Hyatt um hotel de 35 milhotildees para um investimento de meros 500 mil doacutelares (o restantefoi dinheiro puacuteblishy

-co) Embora esses investimelllos tenham acobado por trazer beneficios para a cidade o Golumbus Science Genter (o preacutedio da parte central inferior com teto branco irregushylar) custou 147 milhotildees agrave iniciativa privada com garantia puacuteblica mas sua principal funccedilatildeo a de Pavilhatildeo de Exploraccedilatildeofoiforccedilada a ser illlerrompida em 1997 depois de nove meses defuncionamento Resgatado dafalecircncia por uma operaccedilatildeo do Estashydo opreacutedio eacute agora administrado pela University ofMaryland tendo conw principal locador um celllro de biotecnologia marinha

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o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

bull

Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

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Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

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180 220 240 550 247 350 325

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A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

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rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

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mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

-

o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 6: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

ainda maior a fim de atrair as grandes convenccedilotildees Teme-se agora que todos esses investimentos natildeo venham a ser lucrativos sem um grande

central que tamheacutem vai requerer amplos subsiacutedios puacuteblicos (talshyvez 50 milhotildees) E para melhorar a imagem da cidade quase meio bilhatildeo de d6lares foram gastos na construccedilatildeo de ginaacutesios de esportes (Ilustraccedilatildeo 86) para equipes (uma delas atraiacuteda de Cleveland) que pagam vaacuterios milhotildees anuais aos astros assistidos por fatildes que pagam ingressos a um preccedilo exorbitante Essa eacute uma histoacuteria bem banal por todos os Estados Unidos (a National FootbaU League - merecedora de benefiacutecios sociais

calcula que entre 1992 e 2002 cerca de 38 bilhotildees de d61ares princishypalmente dinheiro puacuteblico seratildeo despejados em seus novos estaacutedios de futebol) O Estado gasta 5 milhotildees para construir um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano

Eacute isso que recebe o nome de alimentar o monstro do centro da cidashyde Para tomar compensadora cada leva de investimentos puacuteblicos fazshyse necessaacuteria mais uma leva A parceria entre o poder puacuteblico e a iniciashytiva privada significa que o poder puacuteblico entra com os riscos e a iniciatishyva privada fica com os lucros Os cidadatildeos ficam agrave espera de benefiacutecios que nunca chegam Vaacuterios dos projetos puacuteblicos malogram e um compleshyxo de preacutedios para pessoas de alta renda que fica de frente para o rio (Ilustraccedilatildeo 87) tem um desempenho tatildeo ruim que recebe 2 milhotildees em incentivos para evitar a falecircncia enquanto a classe trahalhadora empobrecida - perto da falecircncia se natildeo tecnicamente nela nada obshyteacutem Temos de ser competitivos diz o prefeito Se eles fracassarem ningueacutem mais vai querer investir - esquecendo-se aparentemente de que a carga fiscal mais elevada com que arcamos (incluindo os que poshydem ter valorizadas suas propriedades) tambeacutem satildeo um incentivo ao ecircxodo da cidade rumo aos subuacuterbios que haacute muito vem acontecendo

Claro que haacute um lado bom no esforccedilo de revitalizaccedilatildeo Muitas pesshysoas vatildeo visitar Inner Harbor Haacute ateacute mesmo a convivecircncia racial no lugar As pessoas evidentemente gostam muito de simplesmente observar umas agraves outras E haacute um crescente reconhecimento de que a cidade para ser vibrante tem de funcionar 24 horas por dia e de que as megalivrarias e um Hard Rock Cafe tecircm tanto a oferecer quanto a Benetton e a Banana Republic (Ilustraccedilatildeoacute 88) Uma consideraacutevel dose de controle social eacute necessaacuteria para tornar viaacuteveis essas atividades e sinais desse controle satildeo onipresentes (Ilustraccedilatildeo 89) O desejo de estar no centro dos aconte-

Os eSPAccedilos DE UTOPIA

bull

Iludraccedilatildeo 86 Investimentos puacuteblicos na cidade estaacutedios e um centro de convenccedilotildees para os abastados Durante a deacutecada de 1990 cerca de 1 bilhatildeo de doacutelares foram gastos em dois ginaacutesios de esportes financiados por gastos puacuteblicos (500 milhotildees) uma extensatildeo do Centro de Convenccedilotildees (150 milhotildees) e outros granshydes projetos para o centro da cidade (por exemplo o acreacutescimo de um paacutera-raios especial para um estaacutedio que natildeo vai ser usado mais de 30 dias por ano a um custo de 5 milhotildees) O argumento emfavor desses investimentos eacute que criam empregos e geram renda Mas uma cuidadosa anaacutelise de custobeneficio realizada por dois respeitados economistas (HAMILTON KAHN 1997) mostrou uma perda liacutequida do investimento no estaacutedio de beisebol da ordem de 24 milhotildees por ano Entrementesfecharam-se biblioshytecas reduziram-se os seroiccedilos urbanos e investiu-se o miacutenirno em escolas municipais

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o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

II 1 i

Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

7000 1500

180 220 240 550 247 350 325

1500 225 210

4000 150 150 600

3500

A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

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lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

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dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

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e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 7: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

cimentos leva alguns jovens profissionais (os que natildeo tecircm filhos) a voltar para o centro da cidade E quando a gentrificaccedilatildeo no sentido claacutessico bull de expulsatildeo de populaccedilotildees de baixa renda ocorreu (o que afetou princishypalmente as cercanias do porto) ao menos houve a contrapartida de revitalizaccedilatildeo fiacutesica de partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono (Ilustraccedilatildeo 810) Algumas edificaccedilotildees puacuteblicas mais decadentes foram implodidas para dar lugar a habitaccedilotildees de melhor quashylidade em ambientes mais bem cuidados (Ilustraccedilatildeo 811) Aqui e ali

1

bairros se uniram e desenvolveram um sentido especial de comunidashyde que proporciona uma vida mais segura e saudaacutevel sem degenerar em exclusatildeo raivosa Em alguns desses bairros foram lanccedilados grandes projetos que utilizam uma gama de recursos puacuteblicos e privados com vistas a revitalizarcomunidades empobrecidas (Ilustraccedilatildeo 812) Mas nada disso afeta as raizes dos problemas de Baltimore

Uma das raiacutezes desses problemas estaacute na raacutepida transiccedilatildeo das oporshytunidades de emprego Os empregos industriais tiveram acelerado seu deslocamento (principalmente na direccedilatildeo sul e para o estrangeiro) duranshyte a primeira recessatildeo grave do poacutes-guerra em 1973-1975 e desde entatildeo natildeo pararam de sair (ver a Tabela 82) Os estaleiros por exemplo pratishycamente se aproximaram do desaparecimento e as induacutestrias que permashyneceram reduziram os empregos A Bethlehem Steel (Ilustraccedilatildeo 813) tishynha 30 mil funcionaacuterios em 1970 hoje menos de 5 mil produzem pratishycamente a mesma quantidade de accedilo graccedilas a sucessivas levas de invesshytimentos em alta tecnologia tendo a uacuteltima recebido um subsiacutedio estashydual de 5 milhotildees de doacutelares A General Motors - outro merecedor de assistecircncia social recebeu amplos recursos de uma Urban Development Action Grant no comeccedilo dos anos 1980 a fim de manter em funcionashymento sua faacutebrica local e agora ameaccedila interromper a fabricaccedilatildeo de cashyminhotildees Representantes do municiacutepio e do estado estatildeo se esforccedilando freneticamente para compor um pacote suficientemente lucrativo que manshytenha esses produtores na cidade O uso de contecircineres nas operaccedilotildees portuaacuterias e o carregamento automatizado de navios (Ilustraccedilatildeo 813) reshyduziram o nuacutemero de empregos portuaacuterios a urna sombra da importacircncia que um dia tiveram

Surgiram empregos no setor de serviccedilos para substituir as cerca de 250 ~il vagas perdidas nas operaccedilotildees industriais e portuaacuterias No inteshyrior da cidade muitos desses cargos pagam baixas remuneraccedilotildees (com

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 87 Subsidios puacuteblicos e lucros privados a histoacuteria de Harborview Depois que o estaleiro Key Highway Shipyard feclwu em 1982 (causanshydo a perda de 2 mil empregos) o local vago (no alto) tornou-se objeto de uma longa controveacutersia Acabou-se por dar permissatildeo em 1987 para construir ali uma seacuterie de arranha-ceacuteus enfrentando-se umaforte oposiccedilatildeo local decorrente dofato de a mera envergadura do projeto ameaccedilar a intimidade dos bairros existentes e porque iria impedir a visatildeo do rio Os recursos para o projeto de iniacutecio imersos na confusatildeo causashyda pelo bloqueio das garantias de uma hipoteca e por muacuteltiplas transferecircncias de direitos de incorporaccedilatildeojoram nofinal fornecidos (abruptamente) pelo Sudeste Asiaacuteshytico (a Parkway Associates na eacutepoca com dinheiro sobrandoforneceu o dinheiro sem discussotildees porque o local lembrava seu representante de Hong Kong) Oprojeto passou imediatamente por problemas financeiros decorrentes da crise de outubro de 1987 e parece que nunca gerou lucros desde a bombaacutestica (um novo estilo de vida urbana) inauguraccedilatildeo da primeira torre em 1993 (coberturas comercializados por 15 milhatildeo de doacutelares) Eventualmente salvos por um pacote de isenccedilotildeesfiscais que alcanccedilaram 2 milhiies de doacutelares os incorporadores suaram para encontrar meios de tomar o lugar mais lucrativo Entre as propostas estava a construccedilatildeo de mais trecircs torres para tomar a primeira mais viaacutevel Em 1999 comeccedilou a construccedilatildeo de luxuosas casas e casas do canal tendo-se encaixado um modesto preacutedio alto do lado da terra Eacutepossiacutevel que se construa mais uma torre

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

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Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

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180 220 240 550 247 350 325

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A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

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rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

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mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

-

o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

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tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 8: HARVEY,David. Espaços de Esperança

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~ o MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 88 Utopia degenerada na cidade - o espetaacuteculo urbano como mercadoria Na esteira da agitaccedilatildeo urbana que abalou a cidade lUIS anos 1960 uma influente elite de fimcionaacuterios do governo e liacutederes empresariais tentou resgatar os investimentos feitos em benefiacutecio do centro da cidade por meio da promoshyccedilatildeo do consumismo e do turismo Considera-se Iwje que o espetaacuteculo urbano construiacutedo no entorno de [nner Barbar atrai mais visitantes para Baltimore do que a Disneylacircndia Os teatros de arena da Rouse em Barbor Place (na parte superior direita) oferecem a acircncora mas a cena geral do consumismo associado com o lazer tem seus elementos institucionais (o National Aquarium e o Maryland Science Center) sua versatildeo inteshyrior (a Gallery da Rouse em Barbar Place agrave esquerda) e seus siacutembolos eternos acresshycentados mais recentemente como o Hard Rock Cafe uma ESPN Zone e o Planet

Hollywood (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 89 UtolJia degenerada na cidade - espetaacuteculo e controle social no Maryland Science Cellter OMaryland Science Center apresenta duas faces do mundo Com a parte frontal voltada para o comercialismo do porto interior o Center nos convida como um espaccedilo amigaacutevel em que podemos aprender e jaacute que estamos laacute vivenciar (mediante pagamento) a Videotopia Poreacutem a parte posterior do preacutedio conta outra hist6ria O ediftcio foi inaugurado em 1976 como um dos primeiros projetos de revitalizaccedilatildeo do porto interior Parece uma fortaleza quando visto pela retaguarda No comeccedilo natildeo tinha entrada do lado da comunidade ou mesmo da rua Foi projetado na esteira das manifestaccedilotildees de descontentamento de 1968 que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King A comunidade afroshyamericana que na eacutepoca habitava as cercanias (e que desde entatildeo foi sendo expulsa pela cons~atildeo da via expressa e pela gentrificaccedilatildeo) foi percebida COmo uma ameashyccedila Assim oformato de fortaleza foi deliberado Pretendia repelir o descontentamento social e fimcionar como posto avanccedilado (ao estilo de um bunker) na extremidade sul do porto interior a fim de proteger os investimentos a ser feitos

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Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

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Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

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Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

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Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

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4000 150 150 600

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A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

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rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

lt~1

de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

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tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 9: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 810 Utopia yuppie expulsatildeo dos pobres e renovaccedilatildeo no bairro Canton de Baltimore A bem-sucedida reciclagem de antigos preacutedios indutriais (American Can agrave esquerda) e as novas casas urbanas na margem do rio pr6xima dali (na parte superior direita) abriu caminho para a raacutepida gentrificaccedilatildeo do bairro de Canton na parte leste da cidade Situada no periacutemetro do centro da cidade afaixa que vai de Canton ao centro propriamente dito margeando o porto eacute conhecida como The Gold Coast [Costa Dourada] devido ao seu potencial de redesenvolvimento para pessoas de alta renda O efeito disso nas moradias mais antigas de Canton foi impressionante Agravefalta de outros espaccedilos para expansatildeo os proprietaacuterios das antigas casas estreitas todas iguaizinhas competem entre si mediante a construccedilatildeo de cobershytas bizarramente ostentosas com vista para o porto (na parte inferior direita)

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 811 Mudar a moradia dos pobres As edificaccedilotildees habitacionais puacuteblicas (em cima) constrniacutedas quase majoritariamente nas deacutecadas de 1950 e 1960 precisavam de reforma e afora isso vinham sendo cada vez mais acuadas de ser um ambiente negativo que promovia a criminalidaJe e outras formas de comportamento anti-social Implodidas na deacutecada de 1990joram substituiacutedas por uma arquitetura de estilo suburbano para pessoas de baixa renda numa comunidade cercada por mushyros e portotildees no periacutemetro do centro da cidade Amiddot Pleasant Vurw Gardens Jardins de Paisagem Agradaacutevel] (embaixo) eacute hoje considerada um exemplo do novo urbashynismo - um espaccedilo fechado em estilo de vila num ambiente de centro da cidade -

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

7000 1500

180 220 240 550 247 350 325

1500 225 210

4000 150 150 600

3500

A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

-

o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 10: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 812 Revitalizaccedilatildeo de espaccedilos SandtOUln-Winchester e o pashyradoxo de Janws Rouse A renovaccedilatildeo comunitaacuteria em larga escala que combioou recursos puacuteblicos com recursos privados foi objeto de uma tentativa em SandwwnshyWinchester A pattir de vigorosas manifestaccedilotildees de uma organizaccedilatildeomiddot comunitaacuteria (a BUILD) logo se veio a reconhecer que afalta de empregos e os bairos salaacuterios ocupashyvam o centro da degradaccedilatildeo da comunidade A campanha pelo salaacuterio vital (ver capiacutetulo 7) foi uma das decorrecircncias do esforccedilo de Sandtvwn-Winchester James Rouse participou do esforccedilo de Sandwwn-Winchester por meio de ~ua Enterprise Foundation (criada depois de sua aposentadoria para auxiliar na revitalizaccedilatildeo de bairros poshybres) Tendo ajudado a acabar com a viabilidade da vida 00 centro da cidade por meio de suas atividades principalmente como grande promotor comercial e suburbashy00 ele voltou depois da aposentadoria para tentar revIacutelalizar aacutereas que suas proacuteprias atividades tanto tinhamfeito para destruir A obra de Rouse eacute agora comemorada por um controverso mural em Sandtown-Winchester que daacute delea imagem de um patriarshyca benevolente numa plantaccedilatildeo afro-americana

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Tabela 82 Para onde foram os empregos Baltimore 1980-1985

Niiacutenj de postos Empresa Ranlo de negoacuteci08 de trabalho perdido

Aeme Markets Airco Welding Allied Chemical Bethlehem Steel Bethlehem Steel Shipyard Brager-Gutman Cooks United Esskay General Electrie General Motors Korvettes Maryland Glass Maryland Shipping and Dry Doek Max Rubins Misly Harbor Raineoat Pantry Pride Plus Discount Stores Two Guys Vectra Western Electric

Cadeia dc mercearias Fios de solda Cromo Accedilo Reparo de embarcaccedilotildees Varejista Lojas de descontos Enpacotamento de earne Produtos eleacutetricos Peccedilas de automoacuteveis Lojas de dcpaltamentos Glass Reparo de embarcaccedilotildees Vestuaacuterio Roupas para chuva Cadeia de mercearias Lojas de descontos Lojas de descontos Fibras e fios Produccedilatildeo de eletricidade

1200 150 145

7000 1500

180 220 240 550 247 350 325

1500 225 210

4000 150 150 600

3500

A recessatildeo de 1980-1985 provocou outra leva de perda de empregos agrave regiatildeo de Baltimore como uumlustra essa relaccedilatildeo de cortes A relaccedilatildeo eacute adaptada de um quadro publicado pelo Baltimore Sun em 21 de marccedilo de 1985 Empresas marcadas por asterisco encerraram por completo o funcionamento No caso desses fecharnentos vishynha ocorrendo em aoos anteriores uma gradativa reduccedilatildeo da forccedila de trabalho Os empregos perdidos 00 varejo vieram a ser recuperados mas os que ocorreram na proshyduccedilatildeo foram uma perda total Para dar um exemplo nesse periacuteodo a conslTufatildeo e o reparo de embarcaccedilotildees deixaram de ser uma atividade essencial da ecooomia de Baltimore (Fonte HARVEY 1988 p 236)

poucos benefiacutecios) satildeo temporaacuterios natildeo-sindicalizados e femininos (Ilusshytraccedilatildeo 814) O maacuteximo a que muitas famiacutelias podem aspirar eacute manter a renda estaacutevel por meio do trabalho de duas pessoas durante mais horas com uma remuneraccedilatildeo individual menor A ausecircncia geral de instalaccedilotildees adequadas e acessiacuteveis de cuidado iruanti1 significa que natildeo satildeo boas as perspectivas para as crianccedilas em tal situaccedilatildeo A pobreza envolve e se perpetua apesar da campanha pelo salaacuterio vital que luta para melhoshy

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

-

o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

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tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 11: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

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llastraccedilatildeo 813 A desindustriaUzaccedilatildeo de Baltimore Baltimore perdeu dois terccedilos de seus empregos industriais a partir de 1960 (uma perda liacutequida de cerca de 100 mil postos de trabalho) Na Segunda Guerra Mundial por exemplo a cidade construiu cerca de 500 Liberty Ships mas o uacutenico sinal residual dessa atividade eacute hoje a manutenccedilatildeo de uns poucos naviosfora de serviccedilo ativo (no meio agrave esquerda) Instalaccedilotildees industriais degradadas estragam a paisagem agrave espera de reutilizaccedilatildeo (a faacutebrica de bebidas abandonada no meio agrave direita) As empresas industriais que permanecem como a Bethlehem Steel (embaixo agrave esquerda e agrave direita) oferecem um nuacutemero bem menor de oportunidades de emprego A empresa que jaacute empregou 30 mil pessoas nos anos 1970 hoje tem menos de 5 mil funcionaacuterios deixando para as gaivotas os estacionamentos vazios O uso de contecircineres (parte superior agrave direita) e a automaccedilatildeo do porto (carregamento de caroatildeo parte superior agrave esquerda) tambeacutem

reduziram os postos de trabalho da cidade

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

rar a sorte dos trabalhadores pobres e proteger os vaacuterios milhares que atualmente estatildeo sendo expulsos da assistecircncia social e jogados num mercado de trabalho em estagnaccedilatildeo (ver capiacutetulo 7) A conversatildeo de anshytigas instalaccedilotildees industriais aqui e ali proporciona novas fonnas de gashynhar a vida que oferecem algum apoio para a revitalizaccedilatildeo de bairros

As disparidades geograacuteficas em termos de riqueza e de poder aushymentam dando agrave cidade o perfil de um universo metropolitano de crocircnico desenvolvimento geograacutefico desigual Por um curto periacuteodo os subuacuterbios metropolitanos drenaram riqueza da partecentral da cidade mas agora tambeacutem eles tecircm problemas ainda que seja neles quando isso aconteshyce que surge a maioria dos novos empregos Assim a riqueza se movishymenta seja se afastando ainda mais da cidade rumo a ex-urbes que exshycluem explicitamente os pobres os desprivilegiados e os marginalizados seja se fechando por traacutes de altos muros em privatopias suburbanas ou comunidades fechadas na aacuterea urbana (llustraccedilatildeo 815) Os ricos forshymam guetos de opulecircncia (suas utopias burguesas) e solapam conceishytos de cidadania de pertinecircncia social e de apoio muacutetuo Seis milhotildees deles vivem hoje nos Estados Unidos em comunidades fechadas para 1 milhatildeo haacute dez anos (BLKELY 1997) E quando natildeo estatildeo cercadas por muros as comunidades satildeo cada vez mais instaladas em linhas de exclushysatildeo de modo que os niacuteveis de segregaccedilatildeo (primordialmente de classe mas tambeacutem com uma forte tendecircncia racial) alcanccedilaram o pior niacutevel de toda a histoacuteria de Baltimore

A segunda fonte relevante da confusatildeo estaacute na fragmentaccedilatildeo e no colapso institucionais A Prefeitura presa a uma engessadora poliacutetica de austeridade fiscal alimentada pela crenccedila de que um governo mais enshyxuto eacute sempre o melhor meio para uma cidade competitiva reduz os serviccedilos (enquanto aumenta a concessatildeo de subsiacutedios a corporaccedilotildees) seshyjam eles necessaacuterios ou natildeo O potencial de cooperaccedilatildeo com as aacutereas suburbanas eacute sobrepujado por pressotildees competitivas no sentido de manshyter baixo o niacutevel de impostos de manter longe os empobrecidos e margishynalizados e de proteger os agravebastados e estaacuteveis O governo federal desshycentraliza e o estado agora dominado por interesses suburbanos e rurais daacute as costas agrave cidade Pipocam por toda parte oacutergatildeos especiais de avaliashyccedilatildeo das contribuiccedilotildees fiscais destinados a levar os bairros a oferecer serviccedilos extra de acordo com seus recursos Como os recursos variam o efeito eacute a divisatildeo do espaccedilo urbano numa colcha de retalhos formada por -

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

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tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 12: HARVEY,David. Espaços de Esperança

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Ilustraccedilatildeo 814 O trabalhador temporaacuterio A perda de empregos industriais e de postos de traballw em categorias sindicalizadas tem sido compensada por uma crescente conshytrataccedilatildeo no setor de seroiccedilos (como a assistecircncia meacutedica que fez do Johns Hopkins System o maior empregador privado do Estado de Maryland) no setor financeiro de seguros e imobishyliaacuterio aumentada pelo forte crescishymento da induacutestria da hospitalidashyde associada ao comeacutercio de conshyvenccedilotildees de negoacutecios e ao turismo Poreacutem muitos dos novos empregos satildeo temporaacuterios de baixa remuneraccedilatildeo e com quase nenhum benefiacutecio assoshyciado E haacute uma grande demanda por mulheres para essas funccedilotildees

ilhas de relativa opulecircncia que lutam para se manter num mar de podrishydatildeo e decadecircncia disseminadas O efeito geral eacute a divisatildeo e a fragmentashyccedilatildeo do espaccedilo metropolitano uma perda da sociabilidade em meio agrave dishyversidade e uma postura defensiva localizada com relaccedilatildeo ao resto da cidade que se torna politicamente fracionada se natildeo completamente disfuncional

Para ficar num exemplo a Downtown Paltnership eacute dirigida por Peter Angelos o mais rico advogado do estado e proprietaacuterio da equipe dos Baltimore Orioles (Ele comeccedilou a carreira como advogado dos operaacuterios das aciarias agraves voltas com problemas de sauacutede e seguranccedila ocupacionais e ganhou milhotildees com as causas vinculadas com o amianto aquelas que leshyvaram agrave falecircncia muitas corporaccedilotildees importantes ao lado de muitos noshymes do Uoyds de Londres que cometeram a tolice de fazer o seu seguro) A Partnership estaacute se apoderando do centro da cidade buscando levar os sem-teto - e as entidades filantroacutepicas (particulannente a Our Daily Bread - Ilustraccedilatildeo 82) que os atraem - a deixar a cidade e ir para alguma zona perifeacuterica Propotildee ateacute mesmo um campus para os sem-teto ao estilo de um gueto em algum lugar fora da cidade A Prefeitura eacute solidaacuteria com isso e tem procurado promover demoliccedilotildees em massa de grandes concentraccedilotildees

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

-

o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 13: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO lfTOacutePICO

de residecircncias de pessoas de baixa renda esperando com isso fazer os poshybres ir para os subuacuterbios accedilatildeo perfeitamente compatiacutevel com a observaccedilatildeo de Engels segundo a qual a uacutenica soluccedilatildeo que a burguesia consegue enconshytrar para seus problemas eacute afastaacute-los das vistas

Parecem iacutenfimas as perspectivas de reforma institucional Uma emashyranhada combinaccedilatildeo entre inflexibilidades burocraacuteticas e legais e arranshyjos poliacuteticos institucionais riacutegidos cria um governo local ossificado O comunitarismo excludente estreitos interesses inconfessaacuteveis (em geral sob o manto de vaacuterios tipos de poliacuteticas de identidade - predominanteshymente racial em termos populistas embora haja em Baltimore uma boa dose de rivalidade eacutetnica compondo o quadro) a acircnsia de lucros das corporaccedilotildees a miopia financeira e a ganacircncia dos empresaacuterios desenvolvimentistas satildeo elementos que contribuem para as dificuldades Satildeo introduzidos na paisagem fiacutesica poliacutetica e social da regiatildeo metroposhylitana novos recursos destinados a exacerbar tanto as desigualdades como a fragmentaccedilatildeo (mais particulannente as de raccedila) Natildeo haacute ao que parece alternativa aleacutem do enriquecimento progressivo dos jaacute ricos e do emposhybrecimento regressivo dos jaacute pobres (em sua maioria negros) Se estes se comportarem mal sempre se pode segregaacute-los em outro lugar que tem merecido amplos investimentos puacuteblicos o novo estabelecimento correcional da cidade (Ilustraccedilatildeo 816)

Em meio a toda essa espiral de desigualdade os grandes interesses corporativos e financeiros florescentes (incluindo os meios de comunicashyccedilatildeo) promovem sua proacutepria versatildeo de poliacutetica da identidade lanccedilando grande nuacutemero de manifestos em favor do comportamento politicamente correto Sua mensagem central repetida de modo incessante eacute que toda contestaccedilatildeo agraves gloacuterias do livre mercado (de preferecircncia com nichos asseshygurados por decreto monopolizado e subsidiado pelo Estado na praacutetica) tem de ser impiedosamente combatida ou desqualificada ateacute desaparecer Suspeito que a forccedila dessas ideacuteias estaacute na base de nossa atnal sensaccedilatildeo de impotecircncia Natildeo haacute alternativa disse Margaret Thatcher em seu auge E ateacute Gorbachov concordou Os meios de comunicaccedilatildeo corporashytivizados repetem incansaacutevel e interminavelmente esse refratildeo FOi criada uma configuraccedilatildeo ideoloacutegica avassaladora de forccedilas que natildeo admite oposhysiccedilatildeo Quem deteacutem o poder do dinheiro dispotildee de liberdade para escolher

~e mereadorias untuosas (incluindo locai de prestigio adequada-

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

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Rustraccedilatildeo 816 InvestimemoJl puacuteblicos na cidade instalaccedilotildees correcionais (comunidades fechadas) para os pobres O uacutenico investimento de interesse dishyreto para os pobres da cidade eacute a ampliaccedilatildeo das instituiccedilotildees correcionais O investishymento puacuteblico em prisotildees passou por um grande crescimento na economia dos Estados Unidos na deacutecada de 1990 (havendo atualmente mais de 1 milhatildeo de presidiaacuterios) Ao mesmo tempo todas as outras formas de serviccedilos de bem-estar social sofreram profundos cortes (o que retirou 14 mil pessoas da relaccedilatildeo de beneficiaacuterios soacute na cidade de Baltimore) O custo anual de manutenccedilatildeo de cada presidiaacuterio eacute 25 mil doacutelarel

mente protegidos cercados por muros e portotildees e com todos os serviccedilos) mas aos cidadatildeos como um todo eacute negada toda escolha coletiva de sisteshyma poliacutetico de formas de relacionamento social ou de meios de produccedilatildeo de consumo e de troca Se parece impossiacutevel alterar essa confusatildeo eacute porshyque simplesmente de fato natildeo haacute alternativa Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que natildeo seja o mercado E todas as instituiccedilotildees que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou - com algumas notaacuteveis exceshyccedilotildees como a Igreja - reduzidas agrave submissatildeo Noacutes o povo natildeo temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar

Mas como chegamos a nos convencer de que natildeo haacute alternativa Por que nas palavras de Roberto Unger (1987 a p 37) parecemos com frequumlecircncia impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginatishyvos que habitamos Eacute simplesmente porque nos faltam a vontade a coshy

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

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de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 14: HARVEY,David. Espaços de Esperança

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o MOMENTO UTOacutePICO

ragem e a perspicaacutecia para propor alternativas e buscar ativamente pocirc-las em praacutetica ~ haacute aiacute algo mais em accedilatildeo Natildeo haacute duacutevida de que o motivo natildeo pode ser falta de imaginaccedilatildeo A academia por exemplo estaacute cheia de exploraccedilotildees do imaginaacuterio Na fiacutesica a exploraccedilatildeo de mundos possiacuteveis eacute antes a norma do que a exceccedilatildeo Nas humanidades eacute evidente em toda parte o fasciacutenio por aquilo que recebe o nome de imaginaacuterio E o mundo

dos meios de comunicaccedilatildeo que hoje estaacute agrave nossa disposiccedilatildeo nunca antes se viu tatildeo repleto de fantasias e possibilidlides de comunicaccedilatildeo coletiva sobre mundos alternativos Natildeo obstante nada disso parece influenciar a terriacutevel trajet6ria que a vida diaacuteria assume no mundo material que nos cerca Parecemos estar como diz Unger (1987a p 331) divididos entre

sonhos que parecem irrealizaacuteveis e perspectivas que mal parecem imporshyserade iacuteato uma opccedilao entre - Dreamwor s k [a raacutebli rica de son htar os

de Spielberg] ou nada Eacute certo que a ideologia e as praacuteticas do neoliberalismo competitivo fashy

zem seu trabalho discretamente eficaz e insidioso no acircmbito das principais instituiccedilotildees -os meios de comunicaccedilatildeo e as universidades - que moldam

o contexto imaginativo no qual vivemos Elas o fazem sem que praticamente ningueacutem se decirc conta disso O politicamente COrI-eto imposto pela forccedila bruta do dinheiro (associado agrave loacutegica da competiccedilatildeo no mercado) tem feito muito

mais para censurar a opiniatildeo no interior dessas instituiccedilotildees do que a represshysatildeo direta do macarthismo A possibilidade natildeo tem tido uma boa imagem observa Ernst Bloch (1988 p 7) acrescentando que haacute um interesse bem claro que tem evitado que o mundo seja transformado no possiacutevel Eacute digno

de nota que Bloch tenha associado essa condiccedilatildeo com a del1uumlta a difamaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo de todas as formas de pensamento utoacutepico Isso tem se tradushyzido de acordo com ele na perda da esperanccedila - e sem esperanccedila toma-se impossiacutevel uma politica alternativa Seraacute entatildeo possiacutevel que uma revitalizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ut6pica venha a nos trazer formas de refletir sobre a possibilidade de reais alternativas Bloch julgava clanunente que sim

Perto do centro de Baltimore na Walters Art Gallery pende da pareshyde um quadro chamado View ofan Ideal City [conhecido como A cidade

ideal] (Ilustraccedilatildeo 817) Ele retrata a ideacuteia de uma forma perfeita de cidashyde haacute muito sonhada atribuiacuteda talvez apropriadamente nas circunstacircnshycias a um artista italiano desconhecido do final do seacuteculo Xv Gosto de

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

pensar que o quadro foi pilltado quando Colombo se preparava para inishyciar sua fatiacutedica viagem Embora sua forma e seu estilo estejam vinculashydos a uma eacutepoca remota quando as esperanccedilas os temores e as possibishylidades eram outras seu espiacuterito ainda brilha majestoso no coraccedilatildeo de Baltimore como um comentaacuterio reprovador natildeo apenas sobre a desolaccedilatildeo urbana no exterior da galeria mas tambeacutem sobre a carecircncia de ideais visionaacuterios com que combater essa desolaccedilatildeo

2 A ttgura da cidade

As figuras da cidade e de Utopia haacute muito se acham entrelaccediladas (ver por exemplo FISHM-i 1982 HALL 1988) Em suas primeiras encarnaccedilotildees as utopias de modo geral recebiam uma forma distintivashymente urbana e boa parte daquilo que passa por planejamento urbano ou

lt~1

de cidades tem sido infectada (alguns prefeririam inspirada) por modashylidades utoacutepicas de pensamento Essa ligaccedilatildeo precede em muito a prishymeira aventura de Sir Thomas More com o gecircnero utoacutepico em 1516 Platatildeo vinculou formas ideais de glwerno com sua repuacuteblica fechada de maneira a entrelaccedilar os conceitos dt cidade e de cidadatildeo e a cidade-estado de Faeacutecia descrita na Odisseacuteia de Homero exibe muitas das caracteriacutesticas a que More mais tarde aludiu A tradiccedilatildeo judeu-cristatilde definiu o Pmuacuteso como um lugar peculiar para o qual vatildeo todas as boas almas depois de suas provaccedilotildees e tribulaccedilotildees no mundo temporal Derivou-se disso todo tipo de metaacuteforas a cidade celestial a cidade de Deus a cidade eterna a cidade flamejante na colina (metaacutefora adorada pelo presidente Reagan) Se o ceacuteu eacute um lugar feliz o outro lugar o inferno o lugar do outro maleacutevolo natildeo pode estar muito longe A figura da cidade como fulcro da desordem social do colapso moral e do mal irredimido - da Babilocircnia e de Sodoma e Gomorra a Cotham City - tambeacutem tem seu lugar no conshyjunto de sentidos metafoacutericos que a palavra cidade presentifica em nosso universo cultural Distopias ocolTidas na forma urbana como as de Admishyraacutevel mundo nQVo de Huxley ou 1984 de Orwell A palavra policia vem do termo grego polis que significa cidade Se Karl Popper tinha razatildeo ao descrever Platatildeo como um dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta as utopias que Platatildeo inspirou podem ser considera_ das com a mesma facilidade tanto infernos opressivos e totalitaacuterios como ceacuteus emancipat6rios e felizes

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

L

CWN C11Y AND auau NlT THf TIkf IIIIlaquolNff

WAAb A)ln CENUIl Qf vIJ)fN Cln

Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 15: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 817 Paisagem da cidade ideal da Walters Art Gallery Baltimore Este fJlUJdro aTlOcircnimo [atribuiacutedo a Luciano Laurana da escola de pinshytura da parte ceItlnUuml da Itaacutelia criada por volta do final do seacuteculo Xv apresenta uma concepccedilatildeo de ciAtildeDM ideal no contexto da eacutepoca O quadro atualmente decora a Walters

Art Gallery na JiOlUllli-rnon Place perto do c~ntra de Baltimore a cidade em que os ideais foram aniquilados e em que parece natildeo haver alternatita

Eacute difiacutecil distinguir aqui as prosaicas praacuteticas e os discursos cotidiashynos que afetam 8 vida urbana dos grandiosos sentidos metafoacutericos que se mesclam tatildeo facilmente com emoccedilotildees e crenccedilas acerca da vida boa e da forma urbana Vale notar com que frequumlecircncia eacute na escala geograacutefica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizashyccedilotildees sociais utoacutepicas Platatildeo estabeleceu como populaccedilatildeo maacutexima 5 mil pessoas e a Atenas democraacutetica provavelmente natildeo contava em seu auge com mais de 6 mil cidadatildeos participantes (natildeo se incluindo entre eles com efeito mulheres ou os muitos escravos) Natildeo posso fazer aqui a distinccedilatildeo de todos esses sentidos metafoacutericos e simboacutelicos Eacute natildeo obstante necessaacuterio reconhecermos sua forccedila emotiva Uns poucos viacutenculos ilustrativos podem ajudar a consolidar a ideacuteia de que a poliacutetica urbana se acha eivada de emoccedilotildees e paixotildees poliacuteticas profundamente sustentadas mas com frequumlecircncia subterracircneas nas quais tecircm um lugar particular soshynhos utoacutepicos

O ar da cidade liberta afirmou-se um dia Essa ideacuteia tomou forma agrave medida que os servos escapavam dos grilhotildees que os atavam a fim de reivindicar liberdades pessoais e poliacuteticas no acircmbito das entidades legais autogeridas das cidades medievais A associaccedilatildeo entre a vida citadina e as liberdades pessoais incluindo a de explorm inventar criar e definir novos modos de vida tem uma longa e intricada histoacuteria Geraccedilotildees de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

migrantes tecircm buscado a cidade como um porto seguro contra as represshysotildees rurais No acircmbito dessa formulaccedilatildeo se entrelaccedilim perfeitamente cidade e cidadatildeo Mas a cidade eacute tambeacutem lugar de ansiedade e de anomia Eacute o lugar do estranho anocircnimo da subclasse (ou como preferiam nossos predecessores das classes perigosas) espaccedilo de uma incomshypreensiacutevel alteridade (imigrantes gays pessoas mentalmente perturshybadas pessoas diferentes em termos culturais os que trazem uma dada marca racial) o terreno da poluiccedilatildeo (tanto fiacutesica como moral) e de terriacuteshyveis corrupccedilotildees o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados o que torna cidade e cidadatildeo politicamente opostos na imaginaccedilatildeo puacuteblica na medida mesma de sua ligaccedilatildeo etimoloacutegica

Essa polarizaccedilatildeo entre imagens positivas e negativas tem sua geoshygrafia Tradicionalmente essa polarizaccedilatildeo toma a forma de uma separashyccedilatildeo entre o espaccedilo sagrado e o secular no interior da cidade Mais tarde as supostas virtudes do campo e da cidade pequena foram com frequumlecircnshycia contrastadas com os males da cidade Quando por exemplo o exeacutercishyto rural de reaccedilatildeo foi organizado nas fronteiras de Paris em 1871 com vistas a se envolver na selvagem carnificina que custou a vida de 30 mil membros da comunidade seus participantes foram primeiro persuadidos de que sua missatildeo era resgatar a cidade das forccedilas satacircnicas Quando o presidente Ford negou ajuda agrave cidade de Nova York em 1975 por ocashysiatildeo de sua crise fiscal (Ford diz agrave Cidade Morra clamava a famosa manchete de jornal) foram ouvidos em toda parte seus partidaacuterios morashydores da Ameacuterica das pequenas cidades virtuosas e tementes a Deus Nos Estados Unidos contemporacircneos a imagem dos respeitaacuteveis subuacuterbios tementes a Deus (predominantemente brancos e de classe meacutedia) funcioshyna em contraposiccedilatildeo ao centro da cidade visto como um ciacuterculo do infershyno em que estatildeo apropriadamente confinados todos os malditos (caracteshyrizaccedilatildeo a que natildeo falta uma boa dose de codificaccedilatildeo racial de subclasse) Imagens como essas cobram um terriacutevel preccedilo Quando por exemplo foi apresentada a proposiccedilatildeo de dispersar cerca de 200 famiacutelias do centro de Baltimore pelos subuacuterbios como parte de um Movimento pelas Oportushynidades os suburbanos se sublevaram tomados pela ira para que o programa fosse interrompido e fizeram uso de uma linguagem que soava como se representantes do democircnio estivessem prestes a ser libertados de sua prisatildeo no centro da cidade e deixados agrave solta como forccedila corruptora em seu meio Claro que a religiatildeo nem sempre tem de se manifestar dessa

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o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 16: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

maneira Ela tambeacutem eacute a forccedila motriz de muitas organizaccedilotildees (como a BUILD) que buscam defender os pobres promover a melloria das comushynidades e estabilizar a vida familiar nos centros decadentes das cidades

Nenhum desses imaginaacuterios eacute inocente Nem se deveria esperar que o fossem A mesma casa que edificamos eacute a casa que nos edifica eacute um ditado que remonta aos gregos Essa ideacuteia foi hem entendida por Rohert Park (1967 p 3) uma figura fundadora da sociologia urbana [da chamashyda Escola de Chicago] ao afirmar

Eacute no ambiente urbano - num mundo criado pelo proacuteprio homem - que a humanidade vivenciou pela primeira vez a vida intelectual e adquiriu as caracteriacutesticas que mais a diferenciam dos animais inferiores e do homem primitivo Porque a cidade e o ambiente urbano representam a tentativa mais coerente e de modo geral mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive de maneira mais compatiacutevel com o que deseja seu coraccedilatildeo Mas se eacute o mundo que o homem criou a cidade eacute o mundo no qual ele estaacute doravante condenado a viver Por conseguinte de forma indireta e sem nenhum sentido claro do caraacuteter de sua tarefa ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo

Embora possamos alimentar razoavelmente a aspiraccedilatildeo de intervir nesse processo de refeitura de noacutes mesmos e quem sabe ateacute adquirir um sentido claro do caraacuteter de [nossa] tarefa natildeo podemos dar um salto para aleacutem da dialeacutetica e imaginar que natildeo estamos imersos nos mundos institucionais e ambientes construiacutedos que jaacute foram obra nossa - e limishytados por eles Natildeo obstante tambeacutem natildeo podemos fugir agrave questatildeo da imaginaccedilatildeo pois como o observou Marx (ed 1976 p 283-284) - numa afirmaccedilatildeo fundadora que adiante vamos examinar com bem mais profunshydidade ~ o que distingue o trabalho humano e o pior dos arquitetos da melhor abelha eacute que os arquitetos primeiro erigem uma estrutura na imashyginaccedilatildeo para depois realizaacute-la em termos materiais Quando portanto contemplamos futuros urbanos temos sempre de combater uma ampla gama de sentidos emotivos e simboacutelicos que tanto informam como conshyfundem nosso sentido do caraacuteter de [nossa] tarefa Ao produzirmos coshyletivamente nossas cidades produzimos coletivamente a noacutes mesmos Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades satildeo em consequumlecircncia projetos referentes a possibilidades humanas a quem queshyremos ou o que talvez seja mais pertinente a quem natildeo queremos vir a ser Cada um de noacutes sem exceccedilatildeo tem algo a pensar a dizer e a fazer no

OS ESPACcedilOS DE UTOPIA

tocante a isso A maneira como nossa imaginaccedilatildeo individual e coletiva funciona eacute portanto crucial para definir o trabalho da urbanizaccedilatildeo A refleshyxatildeo criacutetica sobre nosso imaginaacuterio envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como ressuscitaacute-lo a fim de agir como arquitetos de nosshyso proacuteprio destino em vez de como impotentes marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos Se como diz Unger (1987b p 8) aceitamos que a sociedade eacute construiacuteda e imaginada podemos tambeacutem crer que ela pode ser reconstruiacuteda e reimaginada

3 O utopismo como livre oJganizaccedilatildeo espacial

Todo projeto de revitalizaccedilatildeo do utopismo precisa considerar de que modo e com que consequumlecircncias ele agiu como forccedila tanto construtiva como destrutiva de mudanccedila em nossa geografia histoacuterica

Pensemos na Utopia de Sir Thomas More O objetivo de More e isso eacute caracteriacutestico era a harmonia e a estabilidade sociais (em contraste com o caoacutetico estado de coisas da Inglaterra da eacutepoca) Com esse fim ele excluiu as forccedilas potencialmente disruptivas do dinheiro da propriedade privada do trabalho assalariado da exploraccedilatildeo (a jornada de trabalho eacute de seis horas) a troca interna (mas natildeo externa) de mercadorias a acushymulaccedilatildeo do capital e o processo do mercado (ainda que natildeo o mercado) A feliz perfeiccedilatildeo da ordem social e moral depende dessas exclusotildees Tudo isso eacute assegurado como o assinalam Lukerman e Porter (1976) por meio de uma forma espacial rigorosamente organizada (llustraccedilatildeo 818) Utoshypia eacute uma ilha artificialmente criada que funciona como uma economia isolada coerentemente organizada e em larga medida de espaccedilo fechado (embora sejam postuladas relaccedilotildees estritamente monitoradas com o munshydo exterior) A organizaccedilatildeo espacial interna da ilha regula de maneira estrita um processo estabilizado e imutaacutevel Para dizer de modo direto a forma espacial controla a temporalidade uma geografia imaginada conshytrola a possibilidade da mudanccedila social e da histoacuteria

Nem todas as formas de temporalidade satildeo apagadas O tempo do eterno retomo do ritual recorrente eacute preservado Esse tempo ciacuteclico como o observa Could (1988) exprime a imanecircncia um conjunto de princiacutepios tatildeo geral que estes existem fora do tempo e registram um caraacuteshyter universal um viacutenculo comum entre todas as ricas particularidades da

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o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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WAAb A)ln CENUIl Qf vIJ)fN Cln

Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 17: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 818 Utopia de Thomas More um exerciacutecio de Uvro organishyzaccedilatildeo espacial O Fronstispiacutecio criashyM por llolbein para Utopia de More capshy

tura parte da estrutura espacial e de seu consequumlente controle espacial sobre a orshy

oi ~-st - iacuteiii -dem moral e poliacutetica

natureza incluindo-se aiacute no caso especiacutefico os habitantes de Utopia O que eacute reprimido eacute a dialeacutetica do processo social A seta do tempo o grande princiacutepio da histoacuteria eacute excluiacuteda em favor da pexpetuaccedilatildeo de uma feliz condiccedilatildeo estacionaacuteria Natildeo haacute necessidade de conceber um futuro porque a condiccedilatildeo desejada jaacute foi conseguida Na Nova Atlacircntida de Bacon texto utoacutepico escrito pouco depois do de More o rei decide que a sociedade atingiu um tal estado de perfeiccedilatildeo que natildeo satildeo mais necessaacuteshyrias mudanccedilas sociais ulteriores No caso de Bacon a mudanccedila tecnoloacutegica e os novos conhecimentos satildeo natildeo soacute considerados possiacuteveis como tamshybeacutem ativamente buscados Poreacutem sua implantaccedilatildeo eacute rigorosamente conshytrolada pelos saacutebios da Casa de Salomatildeo (instituiccedilatildeo interpretada como precursora da Royal Society [a academia inglesa de ciecircncias]) O efeito disso eacute progredir na direccedilatildeo da perfeiccedilatildeo tecnoloacutegica e acadecircmica de uma ordem social jaacute perfeiacuteta More em contraste evoca a nostalgia de um passado mitoloacutegico uma Idade do Ouro perfeita da vida nas cidades peshyquenas uma ordem moral em estado estacionaacuterio e uma forma hieraacuterquishyca de relacionamento social marcada pela ausecircncia de conflito e pela harmonia Esse vieacutes nostaacutelgico eacute caracteriacutestica de boa parte do pensa-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

mento utoacutepico mesmo quando haacute a projeccedilatildeo para o futuro e a incorporashyccedilatildeo de tecnologias futuristas Como veremos isso traz importantes conseshyquumlecircncias pela maneira como esses esquemas satildeo quando satildeo traduzidos em fatos materiais

Haacute muitas maneiras de entender o texto de More e os numerosos esquemas utoacutepicos produzidos depois dele (como os de Bacon e de Campanella) Isolo aqui apenas um aspecto a relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo entre geografia e histoacuteria neles proposta Todas essas formas de utopia podem ser caracterizadas como utopias da forma espacial pois a temporalidade dos processos sociais a dialeacutetica da mudanccedila socialshya histoacuteria real - satildeo suprimidas ao passo que a estabilidade social eacute garantida por uma forma espacial fixa Louis Marin (1984) considera a Utopia de More uma espeacutecie de livre organizaccedilatildeo espacial More seleshyciona com efeito uma entre muitas possibilidades de organizaccedilatildeo espashycial como recurso de representar e fixar uma ordem moral particular Essa natildeo eacute um ideacuteia peculiar Robert Park (1967) por exemplo escreveu em 1925 um catimnte ensaio sobre a cidade como um padratildeo espacial e uma ordem moral tendo insistido na ligaccedilatildeo intriacutenseca entre os dois Mas aquilo que Marin potildee agrave nossa disposiccedilatildeo eacute a ideacuteia de que o livre fluxo da imaginaccedilatildeo o utoacutepico como livre organizaccedilatildeo espacial se tomou com a iniciativa de More um feacutertil recurso de exploraccedilatildeo e expressatildeo de uma ampla gama de ideacuteias concorrentes sobre relaccedilotildees sociais organizashyccedilotildees morais sistemas poliacutetico-econocircmicos e coisas desse gecircnero

A infinita gama de organizaccedilotildees espaciais possiacuteveis traz a perspectishyva de um conjunto sem fim de mundos sociais possiacuteveis O que haacute de notaacutevel nos planos utoacutepicos subsequumlentes quando considerados em conshyjunto eacute sua variedade As utopias feministas do seacuteculo XIX (HAYDEN 1981) parecem diferentes das concebidas com vistas a facilitar a promoshyccedilatildeo de uma vida mais faacutecil e mais saudaacutevel para a classe trabalhadora e todo tipo de alternativas anarquistas ecologicamente sensiacuteveis religioshysas e outras definem e asseguram seus objetivos morais por meio do reshycurs~ a atguma ordem espacial (Ilustraccedilotildees 819 820 e 821) O especshytro de propostas - e de espacialidades - comprova a capacidade da imaginaccedilatildeo humana no sentido de explorar alternativas socioespaciais (ver por exemplo BLOCH 1988 KUMAR 1987 1991 LEVITAS 1990 SANDERCOCK 1998) A noccedilatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial de Marin

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o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

-

o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 18: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

captura magistralmente o livre fluxo da imaginaccedilatildeo nos esquemas utoacutepishycos A reversatildeo a esse modo utoacutepico de ver as coisas parece oferecer uma saiacuteda ao dilema de Unger

Na realidade as coisas natildeo satildeo tatildeo simples o livre fluxo da imaginashyccedilatildeo estaacute inextricavelmente ligado agrave existecircnciada autoridade e de formas restritivas de governanccedila Aquilo que Foucault considera um efeito panoacuteptico proveniente da criaccedilatildeo de sistemas espaciais de vigilacircncia e controle (polis = poliacutecia) tambeacutem eacute incorpoacuterado aos esquemas utoacutepicos Essa dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e a autoridade e o controshyle traz seacuterios problemas A rejeiccedilatildeo em eacutepoca recente do utopismo bashyseia-se em parte na aguda consciecircncia de sua ligaccedilatildeo intriacutenseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira) Mas a rejeiccedilatildeo do utopismo a partir disso tambeacutem tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginaccedilatildeo na busca de alshyternativas Por conseguinte enfrentar essa relaccedilatildeo entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo eacute a tarefa que tem de estar no cerne de toda poliacutetica regeneradora que tente ressuscitar ideais utoacutepicos Na tentativa de consecuccedilatildeo desse objetivo eacute uacutetil examinar a histoacuteria das formas de materializaccedilatildeo das utopias por meio de praacuteticas poliacutetico-econocircmicas eacute aiacute que a dialeacutetica entre o livre fluxo da imaginaccedilatildeo e o autoritarismo vem agrave existecircncia como um dilema fundamental dos assuntos humanos

4 Materializaccedilotildees de utopias da forma espacial

Todos os grandes planejadores urbanos engenheiros e arquitetos do seacuteculo XX dedicaram-se a suas tarefas combinando um intenso imaginaacuterio de algum mundo alternativo (tanto fiacutesico como social) com uma preocupashyccedilatildeo praacutetica com a engenharia e a reengenharia de espaccedilos urbanos e regioshynais de acordo por projetos radicalmente novos Enquanto alguns como Ebenezer Howard (Ilustraccedilatildeo 822) Le Corbusier (Ilustraccedilatildeo 823) e Frank Doyd Wright (llustraccedilatildeo 824) instauraram o contexto imaginativo uma multiplicidade de praticantes dedicou-se a realizar esses sonhos em tijolos e cimento vias expressas e torres cidades e subuacuterbios erigindo versotildees da VilIes Radieuse ou da Broadacre City (Ilustraccedilatildeo 824) construindo

I cidades inteiras 8 partir do nada comunidades em escala iacutentima aldeias

~_ ou coi do gecircnero Mesmo quando os atacavam cuacuteticos do

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Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 819 Projeto paraNew Hannony [Nova HannoniaJ de Robert Owen Robert Owen um dos mais proliacuteficos e fecundos autores e ativistas utoacutepicos britacircnicos da primeira metade do seacuteculo XIX chegou defato a pocircr em praacutetica alguns de seus esquemas Stedman Whitewell propocircs o projeto acima para o assentamento de Nova Harmonia de Owen nos Estados Unidos

Ilustraccedilatildeo 820 A cidade ideal de Fourier Fourier inspirou-se na planta de Versailles quando formulou seu projeto de uma sociedade industrial comunista coletishyvamente organizada sociedade dominada pela produccedilatildeo comunal e por uma organishyzaccedilatildeo comunal da vida

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

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Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 19: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

Ilustraccedilatildeo 821 Edward Chamshyblcss Roadtown OS 1OVQS sistemas

de transporte levaram muitos projetisshytas a romper com o motivo circular trashydicional em favor de organizaccedilotildees lishyneares orientadas para a promoccedilatildeo de graru1es ligaccedilotildees comunicativas Neste projeto dois niacuteveis de residecircncias coleshytivamente cuidadas que ocupam todo o espaccedilo disponiacutevel tecircm na parte infeshyrior uma linhafeacuterrea de trilho uacutenico e trem inaudiacutevel e satildeo encimadas por um amplo calccediladatildeo aberto Esse proshyjeto criado por Edward Chamblessem 1910 despertou consideraacutevel interesse nas revistas femininas da eacutepoca

autoritarismo e da impassibilidade desses sonhos utoacutepicos realizados o faziam contrastando com eles sua versatildeo favorita de livre organizaccedilatildeo esshypacial com as organizaccedilotildees espaciais que os outros haviam alcanccedilado

Quando por exemplo Jane Jacobs (1961) lanccedilou sua famosa criacutetica aos processos modernistas de planejamento de cidades e de renovaccedilatildeo urbana (amaldiccediloando como o fez Le CorbusieI a Carta de Atenas Robert Moses e a grande influecircncia maligna da estupidezl de que e seus ac6litos revestiram as cidades no p6s-guerra) ela na realidade apresenshytou sua versatildeo preferida de livre organizaccedilatildeo espacial por meio do recurso a uma concepccedilatildeo nostaacutelgica de um ambiente iacutentimo e etnicamente divershysificado em que predominavam formas artesanais de atividade empreenshydedora e de emprego bem como formas interativas de relacionamento social direto Jacobs foi agrave sua proacutepria maneira tatildeo utoacutepica quanto o utopismo que atacou Ela se propocircs a organizar livremente o espaccedilo de uma outra maneira mais iacutentima (de escala menos ampla) a fim de alcanccedilar um prop6sito moral distinto Sua versatildeo de livre organizaccedilatildeo espacial trazia

1 Mantivemos para essa expressatildeo por julgaacute-1a mais adequada a traduccedilatildeo usada por noacutes em Condiccedilatildeo paacutes-moderna do proacuteprio David Harvey publicado pela Loyola em 1992 muito antes de o livro de Jane Jacobs ser traduzido e publicado no Brasil (NT)

Os esPACcedilOS DE UTOPIA

L

CWN C11Y AND auau NlT THf TIkf IIIIlaquolNff

WAAb A)ln CENUIl Qf vIJ)fN Cln

Ilustraccedilatildeo 822 Ebenezer Howard de ideais espacUacuteJis a novas cidades Ebenezer Howard inspirado pela leitura de Looking Backward [Olhando para traacutes romance utoacutepico de Edward Bellamy empreendeu a tarefa de elaborar todo um 1OVQ

contexto para a vida urbana em seusfamosos textos de 1898 e 1902 O movimento

das 1WVas cidades por ele desencadeado foi ao que se diz uma das mais influentes tendecircncias de planejamento urbano ao longo do seacuteculo XX

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io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 20: HARVEY,David. Espaços de Esperança

io MOMENTO UTOacutePICO Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ibutmccedilotildeo 83 O sonlw de cidade ideal de Le Corbusier teoria e pnJuacute ca O Sonho para Paris de Le Corbusier concebido nos anos 1920 tomou-se a base da teoria bana depois incorporada agrave tatildeo influente Carta de Atenas Esse sonha parece amplammle realizado no projeto final de Stuyvesant Town Nova York

Ilustraccedilatildeo 824 O projeto de Broadacre City de Frank Lloyd Wriglzt Preshyocupado com os efeitos do colapso social dos anos 1930 e influenciado pela aburulacircnshy

cia de terras do Oeste dos Estados Unidos particularmente 00 regiatildeo do Meio-Oeste Frank Lloyd Wright prop(Js uma organizaccedilatildeo alternativa do espaccedilo qlte permitia graus bem maiores de independecircncia pessoal e ao mesmo tempo mantinha canais de comunishycaccedilatildeo A paisagem que ele propocircs tem um certo grau de semelhanccedila corrompida com o crescimento suburbano desordenado (ver llustrardo 84) que iacutencorpora todos os aspecshytos negativos do projeto de Wright sem dar sustentaccedilatildeo a nenhum dos positivos

em si seu proacuteprio autoritarismo oculto na noccedilatildeo orgacircnica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social O aparato de vigilacircncia e de controle que ao ver dela eacute tatildeo benevolente pois proporcioshyna uma seguranccedila tatildeo necessaacuteria causou em outras pessoas como Sennet (1970) a sensaccedilatildeo de algo opressivo e degradante E ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade eacutetnica soacute mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera A busca da realizaccedilatildeo dos objetivos de Jacobs poderia facilshymente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitaacuterios excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o territoacuterio dos Estados Unidos

Isso nos leva ao que talvez seja a mais curiosa categoria de Marin a das utopias degeneradas O exemplo que Marin usou foi a Disneylacircndia um espaccedilo supostamente feliz harmonioso e sem conflitos apartado do mundo real laacute fora com o objetivo de aliviar e tranquumlilizar de divershytir de inventar a histoacuteria e de cultivar sentimentos nostaacutelgicos por algum

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

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lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

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dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

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e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

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ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 21: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

passado miacutetico antes de perpetuar o fetichismo da cultura da mercadoria do que de criticaacute-lo A Disneylacircndii elimina os transtornos das viagens reais ao reunir o resto do mundo adequadamente higienizado e mitologizado num espaccedilo de pura fantasia composto de muacuteltiplas ordens espaciais A dialeacutetica eacute reprimida e a estabilidade e a harmonia satildeo asseshyguradas mediante uma intensa atividade de vigilacircncia e de controle A organizaccedilatildeo espacial interna e formas hieraacuterquicas de autoridade a ela associadas impedem o conflito ou o desvio (le uma dada norma social E em suas encarnaccedilotildees ulteriores como o Epcot Center ela oferece uma utopia futurista de pureza tecnoloacutegica e do poder humano invenciacutevel de controlar o mundo (Disney por assim dizer inspirou-se tanto em More como em Bacon) Tudo isso eacute degenerado ao ver de Marin porque natildeo oferece uma criacutetica ao estado de coisas vigente no mundo laacute fora Trata-se de mera perpetuaccedilatildeo do fetichismo da cultura da mercadoria e da prestishydigitaccedilatildeo tecnoloacutegica em forma pura higienizada e a-histoacuterica Contudo e eacute nesse ponto que a ideacuteia de Marin fica problemaacutetica a Disneylacircndia eacute um ambiente construiacutedo real em vez de um lugar imaginado do tipo que More e Bacon produziram Isso levanta de imediato a questatildeo seraacute possiacuteshyvel que algum utopismo da forma espacial possa ser algo mais do que degenerado no sentido que Marin tem em mente Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma Se assim eacute isso afeta profunshydamente o modo como todo utopismo da forma espacial pode funcionar como forccedila social praacutetica no acircmbito da vida poliacutetico-social

Generalizando-se a partir de Marin pode-se alegar que estamos cershycados por hostes de utopias degeneradas de que a Disneylacircndia eacute somenshyte o espeacutecime mais espetacular Quando a megashoppinizaccedilatildeo [malling] da Ameacuterica se tornou a moda pioneiros como James Rouse (Ilustraccedilotildees 88 e 812) que por acaso construiu o protoacutetipo do megashopping num subuacuterbio de Baltimore e depois voltou para construir os teatros de arena que satildeo a acircncora da renovaccedilatildeo de Inner Harbor reconheceram explicitashymente que Disney tinha inventado uma foacutermula para a bem-sucedida venda direta ao consumidor O segredo do sucesso comercial do shopping estava na construccedilatildeo de ambientes protegidos seguros bem organizados de faacuteshycil acesso e sobretudo agradaacuteveis relaxantes e isentos de conflito O mall foi concebido como um mundo de fantasia em que a mercadoria reina suprema E se os velhos sem-teto comeccedilaram a consideraacute-lo um

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

lugar quente em que se abrigar os jovens viram nele um excelente local de conviacutevio e os agitadores comeccedilaram a distribuir nele seus panfletos o aparato de vigilacircncia e controle (com cacircmeras ocultas e funcionaacuterios da seguranccedila) assegurava que nada de improprio aconteceria (Ilustraccedilatildeo 89)

Como observou Benjamin (1969) acerca das atcadas parisienses do seacuteculo XIX todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a consciecircncia criacutetica E muitas outras instituiccedilotildees culturais _ museus e organizaccedilotildees de proteccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico arenas para espetaacuteculos exposiccedilotildees e festivais - parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia a produccedilatildeo de memoacuterias coletivas higienizadas a promoccedilatildeo de sensibilidades esteacuteticas acriacuteticas e a absorccedilatildeo de possibilidades futushyras numa arena natildeo-conflituosa eternamente presente Os contiacutenuos esshypetaacuteculos da cultura da mercadoria incluindo a transformaccedilatildeo do proacuteprio espetaacuteculo em mercadoria desempenham seu papel do fomento da indishyferenccedila poliacutetica Um nirvana estupidificado ou uma atitude totalmente blaseacute (a fonte de toda indiferenccedila) - eis o objetivo pretendido (SIMMEL [1971 ] haacute muito assinalou que a atitude blaseacute eacute uma das reaccedilotildees ao exshycesso de estiacutemulos no ambiente urbano) As muacuteltiplas utopias degenerashydas que hoje nos circundam - e os shopping malls e as utopias burgueshysas comercializadas dos subuacuterbios satildeo paradigmaacuteticos _ assinalam o fim da histoacuteria tanto quanto o Muro de Berlim o fez Eles antes exemplificam do que criticam a ideacuteia de que natildeo haacute alternativa a natildeo ser as advindas da conjunccedilatildeo entre as fantasias tecnoloacutegicas a cultura da mercadoria e a acumulaccedilatildeo interminaacutevel do capital (Ilustraccedilatildeo 88)

James Rouse a propoacutesito numa dessa ironias locais que fazem a discreta fama de Baltimore voltou ao centro da cidade depois de aposenshytado e se tornou por meio de sua Enterprise Foundation um participante ativo de um programa de revitalizaccedilatildeo de bairros numa comunidade de nome Sandtown Winchester Ali suas atividades foram registradas (Ilusshytraccedilatildeo 812) na eacutepoca em que ele buscava paternalisticamente ajudar a reconstruir uma comunidade solapada em parte pelos proacuteprios processos de sub urbanizaccedilatildeo e comercializaccedilatildeo que ele em sua encarnaccedilatildeo como homem de negoacutecios tanto fizera para promover

Mas como ocorre de a forccedila criacutetica e de oposiccedilatildeo trazida por esqueshymas utoacutepicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materializaccedilatildeo em obediecircncia agrave ordem vigente Creio haver para essa pergunta duas

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o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 22: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

respostas baacutesicas Permitam-me revelaacute-las por meio de um exame mais detido daquilo que hoje eacute tido como um dos principais candidatos a agenshyte de transformaccedilatildeo de nossos futuros urbanos o movimento denominado

novo urbanismo Duany (1997) um de seus principais luminares tem a forte imshy

pressatildeo de que o urbanismo se natildeo a arquitetura pode afetar a sociedashyde A correta livre organizaccedilatildeo espacial agrave maneira proposta pelo novo urbanismo vai de acordo com ele ajudar a corrigir as coisas Suas proshypostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-amerishycanas seu soacutelido sentido de comunidade suas instituiccedilotildees seus usos diversificados da terra sua alta coesatildeo e seus ideoacutelogos (como Raymond Unwin) Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano a qualishydade material e da vida social urbana sofreraacute uma incomensuraacutevel melhoria Esse argumento eacute sustentado pelo recurso a uma longa seacuterie de comentaacuterios criticos (KUNSTLER 1993 1996) acerca da de-localizaccedilatildeo fplacelessness] e da falta de autenticidade das cidades norte-americashynas (subuacuterbios sem alma em crescimento desordenado irracionais cidashydes-dormitoacuterio e nuacutecleos urbanos entrando em colapso e em fragmentashyccedilatildeo satildeo os componentes dessa dispeacuteptica concepccedilatildeo) O novo urbanismo combate de fato essas monstruosas deformidades (KA1Z 1994) Como reshycuperar a histoacuteria a tradiccedilatildeo a memoacuteria coletiva e o concomitante sentishydo de pertinecircncia e de identidade que as acompanha eis os componenshytes do Santo Graal desse novo urbanismo Natildeo falta a esse movimento por

conseguinte um aspecto utoacutepico criacutetico O novo urbanismo oferece algo tanto positivo como nostaacutelgico Ele

combate de fato os saberes convencionais aquartelados numa variedade de instituiccedilotildees (empresaacuterios do desenvolvimento banqueiros governos interesses do setor de transportes etc) Seguindo a tradiccedilatildeo de Munford o novo urbanismo deseja pensar as regiotildees como um todo e buscar a reashylizaccedilatildeo de um ideal bem mais holiacutestico e orgacircnico com respeito ao caraacuteter que podem ter cidades e regiotildees Ele rejeita a inclinaccedilatildeo poacutes-moderna para a fragmentaccedilatildeo Tenta instaurar formas de desenvolvimento iacutentimas e integradas que vatildeo aleacutem da concepccedilatildeo tatildeo estupefaciente da cidade horizontalmente zoneada e fundada na repeticcedilatildeo em larga escala de pashydrotildees imutaacuteveis IssoJibera um interesse pela rua e pela arquitetura ciacutevishyca como arenas de sociabilidade Tambeacutem enseja novos modos de pensar a relaccedilatildeo entre o trabalho e o viver facilitando uma dimensatildeo ecoloacutegica

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

dos projetos urbanos que ultrapassa a qualidade ambiental superior como bem de consumo O novo urbanismo daacute atenccedilatildeo ao espinhoso problema do que fazer com a incontrolaacutevel necessidade de combustiacuteveis da forma de urbanizaccedilatildeo e suburbanizaccedilatildeo fundada no automoacutevel que tem predoshyminado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Alguns o vecircem como uma verdadeira forccedila revolucionaacuteria de mudanccedila urbana nos Estados Unidos de hoje

Haacute natildeo obstante dificuldades na materializaccedilatildeo dessa visatildeo utoacutepica O movimento presume que os Estados Unidos estatildeo repletos de pessoas que anseiam por viver em comunidades reais mas que soacute tecircm uma ideacuteia sobremodo difusa sobre o que isso significa em termos de projeto fiacutesico (KUNSTLER 1996) A comunidade vai nos resgatar do mundo entorpecente da dissoluccedilatildeo social do materialismo aquisitivo e da ganacircncia egoiacutesta individualizada orientada para o mercado Mas a que tipo de comunidashyde se faz referecircncia Retomar sofregamente a um passado mitoloacutegico das pequenas cidades norte-americanas traz seu proacuteprio ocircnus perigoso O novo urbanismo se vincula a um esforccedilo leviano contemporacircneo de transshyformar cidades grandes e hipelpopuladas aparentemente bastante fora de controle numa rede interligada de aldeias urbanas nas quais acreshydita-se cada cidadatildeo poderaacute relacionar-se democraacutetica e cordialmente com todos os outros Na Inglaterra o priacutencipe Charles liderou essa emoshycional adoccedilatildeo da aldeia urbana como o loeus da regeneraccedilatildeo da cidade Leon Krier filho dileto frequumlentemente citado do novo urbanismo eacute um de seus principais precursores no campo da arquitetura E essa ideacuteia eacute atraente obtendo apoio de populaccedilotildees eacutetnicas marginalizadas de comushynidades da classe trabalhadora empobrecidas e em peacute de guerra que se vecircem abandonadas e despojadas pela desindustrializaccedilatildeo bem como de saudosos membros das classes meacutedias e altas que a vecircem como uma forshyma civilizada de desenvolvimento imobiliaacuterio que incorpora calccediladotildees com cafeacutes locais de circulaccedilatildeo de pedestres e lojas Laura Ashley

O lado mais sombrio desse comunitarismo permanece omitido O espiacuterito de comunidade vem sendo haacute muito tempo considerado um antiacuteshydoto para ameaccedilas de desordem social de luta de classes e de violecircncia revolucionaacuteria (More foi um pioneiro desse pensamento) Comunidades bem fundadas o mais das vezes excluem os forasteiros se autodefinem em contraposiccedilatildeo a eles erigem todo tipo de sinais de afastem-se (quanshydo natildeo tangiacuteveis muros) intemalizando a vigilacircncia os controles sociais

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 23: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

e a repressatildeo A comunidade tem sido antes uma barreira agrave mudanccedila social do que um facilitador A ideologia fundadora do novo urbanismo eacute tanto utoacutepica quanto profundamente instaacutevel Em sua materializaccedilatildeo praacuteshytica o novo urbanismo constr6i uma imagem de comunidade e uma retoacuteshyrica de consciecircncia e orgulho ciacutevicos pam quem natildeo precisa ao mesmo tempo que abandona quem precisa a sua proacutepria sorte de subclasse A maioria dos projetos materializados consiste na criaccedilatildeo de jardins para os abastados (incluindo eacute claro o proacuteprio laquo(mpreendimento de construshyccedilatildeo de Poundbury em Dorset Ilustraccedilatildeo 825) Esses projetos ajudam a tornar os subuacuterbios ou as ex-urbes em melhores lugares para viver (UliGDON 1994) Mas pouco ou nada fazem para ajudar a recuperar os centroacutees decadentes das cidades Scully (1994) um aliado ceacutetico do movimento duvida de que o novo urbanismo possa algum dia atingir o cerne do empobrecimento e da decadecircncia urbanos Comentando Seaside [F1oacuterida EUA] o grande iacutecone do novo urbanismo ele observa que o projeto alcanccedilou um sucesso que ultrapassa toda outra obm arquitetocircnica de nossa eacutepoca [ ] ao criar uma imagem de comunidade um siacutembolo do lugar da cultura humana na vastidatildeo da natureza (o mesmo se diz agora a propoacutesito da Poundbury do priacutencipe Charles) Natildeo obstante continua Scully

soacute se pode esperar que as liccedilotildees de Seasiacutede e das outras novas cidades que ora tomam fonna possam ser aplicadas ao problema da moradia dos poshybres Eacute nesse acircmbito que a comunidade eacute mais necessaacuteria e eacute nele que tem ocorrido a mais desastrosa destruiccedilatildeo Eacute inegaacutevel que seria necessaacuterio deshycompor a parte central das cidades em seus bairros intriacutensecos para que isso pudesse ocorrer dentro dela Infelizmente tudo isso teria sido bem mais faacutecil antes do Redesenvolvimento quando ainda estava de peacute a estrushytura baacutesica dos bairros [ ] Logo uma duacutevida concreta se refere a saber se o centro das cidades tal como o conhecemos poderaacute algum dia ser moldado como o tipo de lugar em que a maioria dos norte-americanos deshyseja viver (p 229)

O pressuposto aqui eacute o de que os baiITOS trazem em si alguma coisa intriacutenseca que a fonoa proacutepria das cidades eacute alguma estrutura baacutesica dos bairros que baiITo equivale a comunidade e que coshymunidade eacute o lugar que a maioria dos norte-americanos deseja e de que

i precisa (quer o saibam ou natildeo) Supotildee-se ainda que a accedilatildeo na escala I

~nida pelo novo mbaniSIDO eacute efim e suficiente paro resolve prohle-

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Ilustraccedilatildeo 825 Nosta1gia utoacutepica Poundbllry Dorset Opriacutencipe Charles liderou um movimento que clama pela construccedilatildeo de aldeias urbanas conw solushyccedilatildeo para o problema das grandes metroacutepoles Ele pocircs em praacutetica esses ideais em suas propriedades pessoais proacuteximas de Dorchester tendo construiacutedo um bairro de alta densidade que evoca a nostalgia dos estilos ingleses e da intimidade das pequenas cidades que supotildee terem sido as caracteriacutesticas de uma era perdida no tempo

mas existentes em todas as outras escalas Volta a aflorar a inclinaccedilatildeo nostaacutelgica e espacialmente limitada do sonho utoacutepico

Tudo isso OCOITe porque o novo urbanismo tem de enquadrar seus projetos caso pretenda tomar fonoa concreta num conjunto restritivo de processos sociais O projetista Duany (1997) por exemplo declara natildeo ter interesse em criar projetos que natildeo venham a ser implantados Sua preocupaccedilatildeo com as populaccedilotildees de baixa renda eacute limitada pelo preccedilo miacutenimo das novas unidades habitacionais em locais como Kentlands (Ilusshytraccedilatildeo 826) natildeo muito distante de Baltimore que alcanccedila 150 mil doacutelashyres (quase dez vezes a renda [anual] meacutedia de Baltimore) Seu interesse pelos subuacuterbios surgiu simplesmente porque neles eacute que se pode materiashylizar a maioria dos novos projetos O desenvolvimento suburbano alega ele eacute o modo norte-americano profundamente arraigado em nossa cultura e em nossa tradiccedilatildeo e ainda que rejeite enfaticamente a acusashy

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o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

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o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 24: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

lbutraccedilacirco B26 Nostalgia utoacutepica o IWVO urbanismo comercializado de Kentlands Jlaryland (entlands projetada por Andreacutes Duany e Elizabeth PlatershyZyberk eacute considuada uma abordagem revolucionaacuteria do IWVO urbanismo Assentada no interior de um tecnobuacuterbio[tecnohurb] (quc abriga a National Bureau ofStandards a IBM e vaacuterias outras empresas de alta tecnologia) o lugar (erece um planejamento urbano agrave rnotla antiga com altas densidades calccediladotildees e o encanto das cidades pequenas Pnhima de Washington e natildeo muito distante de Baltimore Kentlands eacute considerada o eumplo estelar do IWVO urbanismo em accedilatildeo oferecendo acomodaccedilotildees para mais de 5 mil pessoas num terreno totalmente planejado de 144 mil hectares O preccedilo das ctU6S grandes comeccedila em 400 mil doacutelares o das resideuroncias meacutedias em 250 mil e as Imidades destinadas a populaccedilotildees de baixa renda em condomiacutenios residenciais natildeo ficam abaixo de 150 mil doacutelares O projeto de alta densidade de ocupaccedilatildeo oforlaquoe principalmente um ecletismo de estilos arquitetocircnicos e de cercas de estacas bralllXU quefazem eco ao estranho mundo de Veludo azul de David Linch Os

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

ccedilatildeo de ser cuacutemplice de estruturas de poder e de que eacute alcoviteiro do gosto popular ele tambeacutem insiste em que tudo o que faz estaacute voltado para a criaccedilatildeo de projetos espetaculares que superem todos os outros em tershymos comerciais Isso significa aprovaccedilatildeo mais raacutepida custo menor e vendas mais raacutepidas A versatildeo do novo urbanismo seguida por Duany opera estritamente no acircmbito desses paracircmetros

A quem cabe a culpa nesse caso Ao projetista Duany ou agraves condishyccedilotildees do processo social que define os paracircmetros de seus projetos Na praacutetica a maioria das utopias da forma espacial tecircm sido realizadas por meio da accedilatildeo do Estado ou da acumulaccedilatildeo do capital sendo o normal a accedilatildeo conjunta dos dois (isso se aplica tanto a Cingapura e agrave Coreacuteia como agrave

Gratilde-Bretanha agrave Sueacutecia agrave Franccedila e agrave Austraacutelia) A opccedilatildeo a isso eacute colocarshyse fora da corrente principal dos processos sociais (comoparecia possiacuteshyvel ao menos no seacuteculo XIX quando os Estados Unidos eram o alvo favoshyrito de idealistas utoacutepicos como Cabet Robert Owen e muacuteltiplos movimenshytos religiosos) Mas quem seguiu-esse caminho dissidente foi de modo geshyral viacutetima de uma espeacutecie de dissoluccedilatildeo de seus princiacutepios tendo sido absorvido pela corrente principal da acumulaccedilatildeo do capital e do Estado

desenvolvimentista (algo semelhante aconteceu com o kibutz de Israel) O fracasso das utopias da forma espacial que se materializam pode

ser razoavelmente atribuiacutedo tanto aos processos mobilizados para sua reashy

lizaccedilatildeo como a deficiecircncias da forma espacial per se Eacute esse elemento que como argumenta com tanta coerecircncia Thfuri (1976) toma um utopismo arquitetocircnico nas atuais condiccedilotildees uma tatildeo grande impossibilidade Haacute

carros (em sua maioria veiacuteculos utilitaacuterios esportivos bebedores de combustiacutevel) ficam abrigados em condiccedilotildees melJwres do que dois terccedilos da populaccedilatildeo mundial e faz-se um gesto de benevolecircncia ecoloacutegica por meio da manutenccedilatildeo de um lago da preservaccedilatildeo de uns poucos trec1ws de mata nativa e da atribuiccedilatildeo do nome Rachei Carson agrave escola elementar locaP O lugar eacute atendido por um shopping suburbano padratildeo cujos funcionaacuterios com toda a certeza natildeo tem recursos para viver na comunishydade a que servem Embora illf)fJ(lOacuteora no tocante ao padratildeo de crescimento suburbashyno descontrolado Kentlands vende a nostalgia da cidade pequena num ambiente suburbano a uma clientela sobremodo abastada

2 Ratildechel Carson americana da Pensilvacircnia comeccedilou a escrever sobre preservashyccedilatildeo amhiental jaacute em 1937 sendo considerada a fundadora do movimento ambiental contemporacircneo (NT)

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 25: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

contudo agindo aqui uma contradiccedilatildeo mais fundamentaL As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processhysos que tecircm de ser mobilizados para virem a se concretizar Logo no proacuteshyprio ato de realizaccedilatildeo dessas utopias o processo social toma as reacutedeas da forma espacial com que se pretende controlaacute-lo Essa contradiccedilatildeo exige

um exame mais detido

5 Sobre o ulopismo do processo social

Se as utopias materializadas deram errado por causa dos processos sociais mobilizados em sua construccedilatildeo o foco passa a ser questotildees acerca do processo Seraacute possiacutevel pensar num utopismo do processo em vez de num utopismo da forma espacial Satildeo abundantes os esquemas idealizashydos do processo Todavia natildeo costumamos referir-nos a eles por meio da designaccedilatildeo utoacutepicos Desejo romper ao lado de uns poucos comentadores seletos como Polanyi essa convenccedilatildeo e passar a considerar o utopismo do processo temporal ao lado do utopismo da forma espacial

O uso do lermo utoacutepico pode parecer estranho nesse contexto pois a palavra Utopia costuma ser associada a um lugar que eacute tanto um natildeoshylugar como um lugar feliz As qualidades do lugar (o que se poderia chashymar de em-localizaccedilatildeo [placefolness]) satildeo importantes e envolvem a evocaccedilatildeo da e a atenccedilatildeo meticulosa agrave forma espacial entendida como continente de processos sociais e expressatildeo de alguma ordem moral As versotildees idealizadas dos processos sociais em contrapartida costumam exprimir-se em termos puramente temporais Satildeo de modo geral literalshymente desvinculadas de todo e qualquer lugar e tipicamente se exprishymem totalmente fora das constriccedilotildees da espacialidade As qualidades esshy

paciais e temporais satildeo completamente ignoradas Podemos identificar uma rica e complicada histoacuteria das utoacutepicas

como desdobmmentos temporais divergentes Um candidato oacutebvio eacute Hegel cujo espiacuterito-guia se materializa e concretiza mediante uma dialeacutetica da transcendecircncia (dialeacutetica que se desdobra segundo a loacutegica do tantoshyisso-corno-aquilo) As coisas-em-si movem a histoacuteria ao se tomar coishysas-para-si O Estado uacuteltimo da histoacuteria eacute expresso sugestivamente por uma metaacutefora espacializada O Estado eacutetico ou esteacutetico eacute o ponto final da realizaccedilatildeo do Espiacuterito do Mundo Marx por vezes seguiu essa linha de

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

raciociacutenio ainda que natildeo fosse o Espiacuterito do Mundo mas a luta de classes ativa que assumia o papel de ~a As classes-em-si ao se transformar em classes-para-si movem a histoacuteria na direccedilatildeo do Estado aprimorado da sociedade comunista poacutes-revolucionaacuteria sem classes - em que o proacuteprio Estado acaba por desmanchar-se no ar Em ambos os-casos (e obviamente estou simplificando) a condiccedilatildeo estacionaacuteria uacuteltima como forma espacial (que natildeo pode ser especificada de antematildeo) eacute alcanccedilada atraveacutes de uma concepccedilatildeo particular do processo histoacuterico Enquanto More nos fornece a

1 forma espacial mas natildeo o processo Hegel e Marx oferecem suas versotildees distintas do processo temporal poreacutem natildeo a forma espacial uacuteltima

Haacute naturalmente muitos objetos possiacuteveis de protesto nessas teleologias sem lugar Tanto William Blake como Kierkegaard por exemshyplo insistiram que a dialeacutetica deveria ser entendida como ou-isso-oushyaquilo e natildeo como tanto-isso-como-aquilo O efeito eacute fazer da histoacuteria uma sucessatildeo de escolhas existenciais ou poliacuteticas que natildeo dispotildeem de uma loacutegica orientadora necessaacuteria nem de algum ponto uacuteltimo claramenshyte identificaacutevel (CLARK 1991) Dito de outra maneira (e este eacute um aspecto vital a que vou voltar) as utopias do processo social tecircm o haacutebito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca tecircm de chegar a um ponto conclusivo (no espaccedilo e no lugar)

No niacutevel dos detalhes vemos Marx em suas histoacuterias poliacuteticas e escritos ulteriores sempre atraiacutedo antes por uma dialeacutetica do ou-issoshyou-aquilo do que por uma dialeacutetica do tanto-isso-como-aquilo da transcendecircncia hegeliana A hesitaccedilatildeo que Marx revelou em dar apoio agrave Comuna de Paris a partir da ideacuteia de que o momento ainda natildeo era propiacuteshycio e sua suacutebita decisatildeo de apoiaacute-la a todo custo tiveram tudo a ver com seu duplo sentido de uma dialeacutetica que poderia ser ou-isso-ou-aquilo ou tanto-isso-como-aquilo Marx reconhece claramente as consequumlecircnshycias potenciais de fazer ou natildeo uma revoluccedilatildeo num dado lugar e num dado tempo e com isso a teleologia cede lugar a um sentido bem mais contingente de realizaccedilatildeo da histoacuteria ainda que o motor da histoacuteria pershymaneccedila sendo a luta de classes Como ele escreveu em sua ceacutelebre carta a Kugelmann a esse respeito

Seria com efeito bem faacutecil fazer a histoacuteria do mundo se soacute lutaacutessemos em condiccedilotildees infalivelmente favoraacuteveis Por outro lado seria sobremodo miacutestica a situaccedilatildeo caso natildeo ocorressem acidentes (MARx LENIN 1940 p 87) -

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 26: HARVEY,David. Espaços de Esperança

~~- ~--1shy

o MOMENTO UTOacutePICO

Aleacutem disso o fato de a Comuna estar ocorrendo em Paris emprestava

qualidades definidas (t~to forccedilas como fraquezas tangiacuteveis) ao movimento

ao tempo que evocava a interrogaccedilatildeo sobre se e como o movimento revoshy

lucionaacuterio poderia expandir-se para aleacutem desse epicentro a fim de engolfar toda a Franccedila e mesmo a Europa A distinccedilatildeo entre a dialeacutetica de um

tanto-isso-como-aquilo de final abe110 e o fechamento pressuposto pelo

ou-isso-ou-aquilo natildeo eacute como veremos uma questatildeo trivial Para sustentar suas concepccedilotildees Man teve de desconstruir um

utopismo do processo que diferia do seu e que mesmo na eacutepoca era domishy

nante utop~smo que se fundava nas atividades racionais do homem ecoshynocircmico num contexto de mercados perfeitos Como esse tem sido de lonshyge o mais potente utopismo do processo por toda a histoacuteria do capitalismo

temos de lhe dedicar cuidadosa atenccedilatildeo Adam Smith articulou o argushymento de modo bem preciso em A riqueza das naccedilotildees cuja primeira edishyccedilatildeo eacute de 1776 Sua reflexatildeo sobre a teoria dos sentimentos morais - ele era em primeira instacircncia antes filoacutesofo moral do que economista o levou a propor um utopismo do processo no qual os desejos individuais a

avareza a ambiccedilatildeo os impulsos a criatividade etc poderiam ser mobilishyzados pela matildeo invisiacutevel do mercado perfeito em benefiacutecio de todos A

partir disso Smith e os economistas poliacuteticos derivaram um programa poliacutetico destinado a eliminar as intervenccedilotildees e regulaccedilotildees do Estado (exshyceccedilatildeo feita agraves que favoreciam as instituiccedilotildees do livre mercado) e prevenir

o poder de monopoacutelio O laissez-faire o livre comeacutercio e mercados adeshyquadamente constituiacutedos tornaram-se os mantras dos economistas poliacutetishycos do seacuteculo XIX Permita-se que os livres mercados floresccedilam e tudo no mundo vai ficar bem E esta eacute naturalmente a ideologia que se tornou tatildeo

dominante em certos paiacuteses capitalistas avanccedilados (de modo mais espeshycial na Inglaterra e nos Estados Unidos) nos uacuteltimos vinte anos Trata-se do sistema para o qual dizem-nos repetidas vezes natildeo haacute alternativa

Marx organizou em O capital um devastador ataque a esse utopismo

do processo No segundo capiacutetulo ele admite com relutacircncia a ficccedilatildeo smithiana do mercado perfeito Em seguida com uma loacutegica inexoraacutevel e

irrefutaacutevel mostra suas inevitaacuteveis consequumlecircncias Um capitalismo de livre mercado desregulado prova ele soacute pode sobreviver se sugar as fontes originais de toda riqueza - o solo e o trabalhador o que torna a destruiccedilatildeo e degradaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a natureza tatildeo importantes quanshy

to a desvalorizaccedilatildeo e a depreciaccedilatildeo do trabalhador Aleacutem disso

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

Agrave medida que se acumulao capital piora por via de consequumlecircncia a situashyccedilatildeo do trabalhador seja ela mais ou menos razoaacutevel [ ] A acumulaccedilatildeo de riqueza num poacutelo eacute ao mesmo tempo portanto acumulaccedilatildeo de miseacuteria dos tormentos do trabalho da escravidatildeo da ignoracircncia do embrutecimento e da degradaccedilatildeo moral no poacutelo oposto ( ] (ed 197( p 799)

A brilhante desconstruccedilatildeo por Marx do utopismo do livre mercado se

acha amplamente suprimida em tempos recentes Polanyi (que escrevia

nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial com as nuvens

da Guerra Fria jaacute toldando o horizonte) compreendeu muito bem o ponto

de vista de Marx tendo-o desenvolvido (sem dar o creacutedito) nos seguintes

termos

Eacute nossa tese que a utopia do mercado auto-regulado traz impliacutecita em si uma completa utopia Tal instituiccedilatildeo natildeo poderia persistir por nenhum inshytervalo de tempo sem aniquilar a substacircncia humana e natural da sociedashyde ela teria destruiacutedo fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto A sociedade tomou inevitavelmente medidas para protegershyse mas todas as medidas que tomou prejudicaram a auto-regulaccedilatildeo do mercado desorganizaram a vida industrial e por conseguinte puseram em risco a sociedade de uma outra maneira Foi esse dilema que forccedilou o deshysenvolvimento do sistema de mercado a seguir um determinado curso e por fim fazer ruir a organizaccedilatildeo social nele baseada (POLANYl 1957 p 3-4)

Natildeo obstante a ascensatildeo do neoliberalismo como ideologia dominanshy

te nos anos Thatcher-Reagan (e sua exportaccedilatildeo para grande parte do munshy

do por meio de uma combinaccedilatildeo entre persuasatildeo e poder econocircmico) afasshy

tou do caminho essas objeccedilotildees O monstro do livre mercado com seus

mantras de responsabilidade privada e pessoal e de iniciativa desregulaccedilatildeo

privatizaccedilatildeo liberalizaccedilatildeo dos mercados livre comeacutercio reduccedilatildeo do escoshy

po das estruturas de governo cortes draconianos no Estado do bem-estar

social e em suas proteccedilotildees varreu tudo agrave sua passagem Haacute mais de vinte

anos estamos sendo forccedilados e persuadidos de modo quase incessante a

aceitar o utopismo do processo que Smith sonhou ser a soluccedilatildeo de todas as

nossas dificuldades Temos ainda testemunhado um ataque em todas as

frentes agraves instituiccedilotildees - os sindicatos e os governos em especial- capashy

zes de se contrapor a esse projeto Margaret Thatcher proclamou que a

sociedade eacute algo que natildeo existe existem apenas os indiviacuteduos e suas famiacuteshy

lias E se dedicou ao desmantelamento das instituiccedilotildees - dos sindicatos

-

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

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o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 27: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

aos governos locais - que pudessem ser empecilhos agrave sua visatildeo utoacutepica Com a queda do Muro de Berlim Fukuyama passou nisso tudo um verniz hegeliano Estamos agora no fim da histoacuteria O capitalismo e o livre mercashydo triunfaram no mundo inteiro O fim da histoacuteria chegou (uma triste ideacuteia

se tomarmos Baltimore como paradigma) Pode parecer estranho ver gente como Thatcher e Gingrich como

hegelianos mas o triunfalismo do livre mercado que eles esposaram natildeo foi senatildeo o utopismo do processo de Smith associado a um tipo bem hegeliano de teleologia (o progresso eacute inevitaacutevel e natildeo haacute alternativa) Em muitos aspectos assinala Frankel (1987) os mais eficazes utopistas em eacutepocas recentes tecircm sido os de persuasatildeo direitista que tecircm adotado primordialmente antes um utopismo do processo do que um utopismo da forma espacial O estranho tem sido no entanto o fato de natildeo se ter pespegado os epiacutetetos negativos utoacutepico e teleoloacutegico nesse ataque direitista agrave ordem social Soacute recentemente um pensador da corrente doshyminante como John Gray procurou reabilitar Polanyi e atacar a destrushytividade inerente ao utopismo do livre mercado A espetacular perda de poder e influecircncia tanto de Thatcher como de Gingrich prova sua

vulnerabilidade precisamente nesse ponto Porque as consequumlecircncias de seu utopismo quando materializado se

aproximam daquelas que a desconstruccedilatildeo feita por Marx descreve As desigualdades de renda aumentaram rapidamente em todos os paiacuteses que se entregaram com maior sofreguidatildeo ao utopismo do mercado (ver o cashypiacutetulo 3) Essa polarizaccedilatildeo em termos de renda e de riqueza tambeacutem tem suas formas geograacuteficas de expressatildeo uma espiral de desigualdades intershyregionais bem como a escalada dos contrastes entre zonas residenciais opulentas e empobrecidas favelas ou no caso dos Estados Unidos entre os centros empobrecidos das cidades e os subuacuterbios opulentos e excludentes Desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em aceleraccedilatildeo o solapamento de todas as modalidades de coesatildeo social e de poderes do Estado a destruiccedilatildeo de culturas inteiras e das estruturas de sentimento que proporcionam um soacutelido fundamento agrave vida de todos os dias e o que talvez seja o fator mais problemaacutetico a degradaccedilatildeo de grandes parcelas do ambiente que atinge tal dimensatildeo que toma inabitaacutevel boa parcela da superfiacutecie da terra - eis alguns dos efeitos que Gray (1998 p 207) descreve com acerto Como decorrecircncia escreve ele estamos prestes

111middotmiddot~

I ~

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

a entrar natildeo na era de abundacircncia projetada pelos advogados do livre comeacutercio mas numa eacutepoca traacutegica em que as forccedilas anaacuterquicas domershy

t cado e a reduccedilatildeo da disponibilidade de recursos naturais lanccedilam Estados f

soberanos em rivalidades ainda mais perigosas Essas satildeo insisto preshycisamente as forccedilas que agem na degradaccedilatildeo de Baltimore Assim qual o motivo de haver resultados tatildeo traacutegicos de um processo supostamente tatildeo benevolente

A resposta reside em termos amplos no que sucede quando o utopismo do processo desce geograficamente agrave terra Porque toda materializaccedilatildeo do utopismo do livre mercado requer que o processo asshysente raiacutezes em algum lugar que ele produza para si alguma espeacutecie de espaccedilo no qual possa funcionar O modo como ele vem a ser espacialmenshyte circunscrito e sua maneira de produzir espaccedilo tomam-se facetas esshysenciais de sua realizaccedilatildeo tangiacutevel Boa parte de meus proacuteprios estudos nos uacuteltimos vinte anos (HARVEY 1982 1989) tem sido um esforccedilo de mapear com exatidatildeo tal processo compreender as formas pelas quais o capital constroacutei uma paisagem geograacutefica agrave sua proacutepria imagem num dado moshymento do tempo simplesmente para ter de destruiacute-la adiante a fim de acomodar sua proacutepria dinacircmica de interminaacutevel acumulaccedilatildeo do capital amplas mudanccedilas tecnoloacutegicas e implacaacuteveis formas de luta de classes A histoacuteria da destruiccedilatildeo criativa e do desenvolvimento geograacutefico desigual na era burguesa eacute simplesmente de estarrecer Grande parcela da extraorshydinaacuteria transformaccedilatildeo da superfiacutecie da terra nos uacuteltimos duzentos anos reflete precisamente a materializaccedilatildeo da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e suas incansaacuteveis e perpeacutetuas reorganizaccedilotildees de formas espaciais

Mas as condiccedilotildees e o modo especiacutefico de ocorrecircncia dessa mateshyrializaccedilatildeo espacial tecircm todo tipo de consequumlecircncias A acumulaccedilatildeo do cashypital fundada no livre mercado em sua incidecircncia sobre um variegado terreno geograacutefico de dotaccedilotildees de recursos histoacuterias culturais possibilishydades de comunicaccedilatildeo quantidades e qualidades de trabalho (terreno geograacutefico que eacute cada vez mais um produto diferenciado de investimentos de capital em infra-estruturas em capital humano e ambientes consshytruiacutedos) produz ao mesmo tempo a intensificaccedilatildeo do desenvolvimento geograacutefico desigual em termos de padratildeo e de perspectivas de vida Reshygiotildees ricas tomam-se mais ricas deixando regiotildees pobres ainda mais poshybres (Baltimore fornece um dramaacutetico exemplo desse desenvolvimento -

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 28: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO lfTOacutePICO

geograacutefico desigual na escala metropolitana) A causaccedilatildeo circular e cumushylativa intriacutenseca a esse utopismo do processo de mercado produz crescenshytes diferenciaccedilotildees geograacuteficas em tennos de riqueza e de podeI em vez de um gradual progresso na direccedilatildeo da homogeneidade e da igualdade Como diz o ditado natildeo haacute nada mais desigual do que o tratamento igualitaacuterio de desiguais sendo precisamente nesse ponto que o igualitarismo e a democratizaccedilatildeo impliacutecitos nos mercados de funcionamento livre a longo prazo antes aumenta do que reduz a desigualdade

O poder da comunidade eou do Estad~ tem estado na vanguarda do esforccedilo de contrabalanccedilar algumas das consequumlecircncias mais danosas do utopismo do livre mercado (a espiral das desigualdades de renda os desenshyvolvimentos geograacuteficos desiguais os efeitos das externalidades sobre o ambiente e assim por diante) Haacute poreacutem um paradoxo mais profundo disshysimulado nesse fenocircmeno para funcionar o livre mercado precisa de uma multiplicidade de arranjos e regras institucionais que soacute podem ser asseshygurados por algo semelhante ao poder do Estado A liberdade de mercado tem de ser garantida pela lei pela autoridade pela forccedila e in extremis pela violecircncia Como o poder do Estado eacute de modo geral entendido como o monopoacutelio das forccedilas da violecircncia o livre mercado requer aquele ou alguma instituiccedilatildeo cognata para poder funcionar Em resumo os livres mercados natildeo satildeo algo que simplesmente acontece Nem satildeo eles antagocircshynicos ao poder do Estado ainda que possam eacute claro ser antagocircnicos a certas maneiras pelas quais o poder do Estado pode ser empregado para regulaacute-los

O jogo do utopismo do livre mercado soacute pode ser garantido se como assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista o Estado (e temos de incluir hoje o estado local nessa detenninaccedilatildeo) se toma o comitecirc execushytivo da burguesia A descolonizaccedilatildeo a partir de 1945 ao lado da internacionalizaccedilatildeo e da liberalizaccedilatildeo subsequumlentes dos mercados gloshybais aproximou bem mais o mundo dessa nonna ainda que o ritmo desishygual em que isso ocorreu (produto das lutas sociais e poliacuteticas em que o apelo a solidariedades tradicionais e a tradiccedilotildees desempenhou um imporshytante papel) tem afetado a maneira como o utopismo do processo vem se materializando em diferentes locais e eacutepocas As lutas geopoliacuteticas entre lugares e de modo ainda mais destrutivo entre Estados ou alianccedilas de Estados tecircm sido parte integrante do problema

Os ESPACcedilOS DE lfTOPIA

O resultado desse argumento eacute que a pureza de todo utopismo do processo eacute inevitavelmente prejudicada por seu modo de espacializaccedilatildeo Da exata maneira como as materializaccedilotildees das utopias espaciais se vecircem agraves voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-Ias o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construccedilatildeo de lugares necessaacuterias agrave sua materializaccedilatildeo Curiosamente Adam Smith viu o problema Era difiacuteshycil escreve ele prever a combinaccedilatildeo de benefiacutecios e prejuiacutezos que a exshytensatildeo da troca de mercado poderia trazer agrave diferentes partes do mundo Natildeo obstante ele tinha a esperanccedila de que

Ao unir em alguma medida as mais distantes partes do mundo ao permishytir que atendessem mutuamente agraves suas respectivas necessidades ao auacuteshymentar as satisfaccedilotildees umas das outras e ao estimular suas respectivas inshyduacutestrias Sua tendecircncia geral venha a ser beneacutefica Para as populaccedilotildees nacionais no entanto tanto das Iacutendias Orientais como das Iacutendias Ocidenshytais todos os henefiacutecios comerciais que possam ter resultado desses evenshytos se desfizeram e se perderam nos tenebrosos infortuacutenios que ocasionashyram Poreacutem esses inf0l1uacutenios parecem ter decorrido antes de acidentes do que da natureza dos proacuteprios eventos Na eacutepoca especiacutefica em que Ocorreshyram essas descobel1as aconteceu de a superioridade da forccedila pender tanto para o lado dos europeus que lhes permitiu cometer com impunidade todo gecircnero de injusticcedila contra esses paiacuteses Thlvez a partir de agora as populashyccedilotildees nacionais se fortaleccedilam ou as da Europa se enfraqueccedilam e os habishytantes de todos os diversos recantos do mundo possam alcanccedilar a igualdashyde de coragem e de forccedila que ao inspirar o temor reciacuteproco eacute o uacutenico fator capaz de transformar a injusticcedila das naccedilotildees independentes em alguma esshypeacutecie de respeito pelos direitos umas das outras Nada contudo parece ter mais probabilidades de estabelecer essa igualdade de forccedilas do que a coshymunicaccedilatildeo muacutetua de conhecimento e todo tipo de melhorias que um intenshyso comeacutercio a partir de todos os paiacuteses para todos os outros traz consigo naturalmente ou melhOl necessariamente (Adam SMITH cito em ARRIGHI 1994 p 19)

Os efeitos de modo algum tiveram o caraacuteter acidental ou transitoacuterio que a visatildeo utoacutepica de Smith supunha Nem poderia sua resposta-padratildeo - encontradiccedila imediatamente em escritos de entatildeo e de agora segundo a qual o problema da desigualdade surge porque a peneiccedilatildeo do mercado ainda natildeo foi plenamente realizada - ter peso e credibilidade passados dois seacuteculos de dura experiecircncia

-

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 29: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

6 Alicerccedilar processos sociais em formas espaciais

As utopias da forma espacial vecircem pervertidos seus nobres objetishyvos por terem de firmar um compromisso com os processos sociais que pretendem controlar Vemos tambeacutem em nosSOS dias que as utopias do processo social materializadas tecircm de negociar com a espacialidade e a geografia do lugar e ao fazecirc-lo perdem igualmente seu caraacuteter ideal produzindo resultados que em muitos casos satildeo o exato oposto dos preshy

iacute

tendidos (por exemplo aumento do autoritarismo e da desigualdade em vez de maior democracia e igualdade) Examinemos mais detidamente qual a exata maneira como acontece semelhante inversatildeo no caso de

processos sociais idealizados Haacute dois pontos fundamentais nos quais tem de haver uma negociashy

ccedilatildeo da espacialidade quando da materializaccedilatildeo de todo utopismo do proshycesso social A consideraccedilatildeo desses pontos mostra como e por que os efeitos que Smith lamentou natildeo podem de maneira alguma ser concebishydos como acidentais ou transitoacuterios Os livres mercados tecircm como ponto de apoio como vimos o poder do Estado O desenvolvimento de livre mercados depende de modo crucial tanto da extensatildeo como da intensifishycaccedilatildeo de formas especiacuteficas de poder do Estado Opondo-se agrave crenccedila popular os processos de mercado natildeo levam a um esvaziamento do Esshytado envolvendo em vez disso um aprofundamento do controle pelo Estashydo de certas facetas dos processos sociais embora este seja afastado do desempenho de algumas de suas funccedilotildees mais tradicionais e populistas Aleacutem disso na medida em que o proacuteprio Estado precisa de legitimidade para executar com maior eficaacutecia sua funccedilatildeo sentimentos populistas nacionalistas e imperialistas tecircm de ser mobilizados em seu apoio o que toma a extensatildeo do livre mercado uma cruzada poliacutetica ou de forma mais marcada geopoliacutetica Os britacircnicos promoveram os processos de mercashydo por todo o mundo no seacuteculo XIX usando a diplomacia dos vasos de guerra a conquista imperial e todo um conjunto de noccedilotildees acerca da superioridade social o fardo do homem branco e convicccedilotildees acerca de sua missatildeo civilizatoacuteria em seu iacutempeto de abertura do mundo ao comeacutershycio Os norte-americanos tecircm buscado uma nova ordem mundial do livre mercado associado com um capitalismo supostamente democraacutetico a partir de 1945 usando todos os meios de persuasatildeo e de violecircncia de que disshypotildeem Nos uacuteltimos vinte anos a globalizaccedilatildeo e a liberdade de comeacutercio

Os ESPACcedilOS DE UTOPIA

tomaram-se tema de uma cruzada na poliacutetica externa norte-americana indicando mais uma vez que o poder hegemocircnico do Estado eacute essencial a mercados de livre funcionamento Num niacutevel mais local Margareth Thatcher soacute pocircde materializar sua filosofia do livre mercado no acircmbito da Gratilde-Bretanha mediante o uso implacaacutevel dos poderes do Estado (porexemshypIo violecircncia policial contra greves supervisatildeo estrita da pesquisa unishyversitaacuteria) e por meio do apelo a sentimentos nacionalistas (criando este uacuteltimo o paradoxo que levou agrave sua queda no momento em que ela recusou a integraccedilatildeo poliacutetica com a Europa que a liberdade de mercado requeria verdadeira e logicamente)

Isso aponta para uma contradiccedilatildeo fundamental A preservaccedilatildeo e a extensatildeo do poder do Estado satildeo cruciais para o funcionamento do livre mercado Se seguindo sua tendecircncia solaparem os poderes do Estado os livre mercados estaratildeo destruindo as condiccedilotildees de seu proacuteprio funcionashymento Inversamente se o poder do Estado eacute vital para o funcionamento do livre mercado a preservaccedilatildeo desse poder requer a perversatildeo dos mershycados de funcionamento livre Trata-se como Polanyi esboccedila com muita clltlleza da contradiccedilatildeo central alojada no proacuteprio cerne da economia poshyliacutetica neoliberal Essa contradiccedilatildeo explica por que grande parcela do pashydratildeo de desenvolvimento de uma cidade como Baltimore eacute justificada pelo apelo agrave retoacuterica da competiccedilatildeo no livre mercado quando se apoacuteia na praacutetica em subsiacutedios estatais e monopoacutelios Explica ainda por que as granshydes eacutepocas de globalizaccedilatildeo e de comeacutercio internacional mais livre tecircm sido aquelas nas quais uma uacutenica potecircncia (como a Inglaterra no seacuteculo XIX e os Estados Unidos a partir de 1945) tem condiccedilotildees de preencher os requisitos poliacuteticos institucionais e militares para que prevaleccedilam as lishyberdades de mercado

Um verniz superficial de capitalismo competitivo depende por conshyseguinte de um substrato profundo de cooperaccedilotildees e colaboraccedilotildees obrigashytoacuterias a fim de assegurar uma base ao livre mercado e ao livre comeacutercio

O segundo ponto fundamental de negociaccedilatildeo do utopismo do livre mercado com a espacialidade se acha fundado mais diretamente na consshytruccedilatildeo de ambientes fiacutesicos artificiais como complexos de recursos em que assentar a atividade comercial Em suas formas mais crassas isso permite a formulaccedilatildeo do tipo de utopismo comercializado que levou alshygueacutem como Margareth Thatcher a instituir corporaccedilotildees de desenvolvishymento urbano para revitalizar aacutereas urbanas (sendo o grande exemplo -

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar

Page 30: HARVEY,David. Espaços de Esperança

o MOMENTO UTOacutePICO

disso as Docklands de Londres3) Mas os investimentos em infra-estrutushyras sempre geram distorccedilotildees geograacuteficas e desenvolvimentos geograacuteficos desiguais e estes atraem ainda mais desenvolvimento como parte da sinergia que adveacutem inevitavelmente quando as atividades do livre mercashydo se envolvem na produccedilatildeo do espaccedilo A venda de um lugar como Baltimore passa entatildeo a ser ela mesma parte da arte da apresentaccedilatildeo utoacutepica E eacute nesse momento que ondas retoacutericas extraiacutedas de utopias da forma espacial se combinam com ondas reLoacutericas referentes ao utopismo do processo para gerar as formas utoacutepicas degeneradas e comercializadas

que nos cercam por todos os lados O resultado dessas contradiccedilotildees eacute antes o aprofundamento do que a

atenuaccedilatildeo dos desenvolvimentos geograacuteficos desiguais em suas dimenshysotildees tanto poliacuteticas como econocircmicas A extensatildeo de todo tipo de sistema de dominaccedilatildeo pelo Estado reduz zonas inteiras do globo e vaacuterios estratos de populaccedilatildeo que ali vivem a condiccedilotildees proacuteximas da escravidatildeo E a conshycentraccedilatildeo de recursos principalmente puacuteblicos no espaccedilo produz uma espiral de desigualdades geograacuteficas em todas as escalas E tudo isso no interesse da preservaccedilatildeo das fontes poliacutetico-econocircmicas do poder do Esshytado que garantem o funcionamento dos livre mercados Os paradoxos e contradiccedilotildees se evidenciam em toda parte Mas a retoacuterica utoacutepica da lishyberdade de escolha de accedilatildeo e de mercado as oculta com tamanha eficaacuteshycia que com frequumlecircncia temos dificuldades para articular o padratildeo oculto de colaboraccedilotildees forccediladas que em outros aspectos salta de modo tatildeo flashy

grante aos nossos olhos

3 Aacuterea de 22 km2 do porto de Londres transfonnada em complexo turiacutestico graccedilas ao esforccedilo iniciado em 1981 pela LDDC (London Docklands Development Corporation)

(NT)

Capiacutetulo 9

Utopismo dialeacutetico

1 Para um utopismo espaccedilo-temporal

DIANTE DOS defeitos e dificuldades das utopias tanto da forma espacial como do processo social a alternatishyva mais oacutebvia (afora o total abandono de toda e qualshy

quer pretensatildeo de utopismo) eacute a constlUccedilatildeo de um utopismo explicitamente espaccedilo-temporal Faz hoje muitos anos que Einstein nos ensinou que natildeo eacute possiacutevel separar de modo coeshyrente o tempo e o espaccedilo Haacute no acircmbito das ciecircncias sociais mais do que meros indiacutecios de que a separaccedilatildeo entre o tempo e o espaccedilo embora tenha sua utilidade em alguns casos pode com frequumlecircncia levar a enganos (ver HARVEY 1996 Parte IlI) E se virmos o espaccedilo e o tempo como constIUccedilotildees sociais (o que implica a rejeiccedilatildeo das teorias absolutas do espaccedilo e do tempo atribuiacuteveis a Newton e Descartcs) a produccedilatildeo do espaccedilo e do tempo teratildeo se ser incorporadas ao pensamento utoacutepico Logo busea-se aquilo que chamarei de utopismo dialeacutetico

As liccedilotildees a aprender das histoacuterias separadas do utopismo da forma espacial e do utopismo do processo temporal natildeo deshyvem contudo ser abandonadas Na realidade haacute hem mais a extrair de uma anaacutelise mais detida deles Do primeiro a ideacuteia da livre disposiccedilatildeo espacial imaginativa destinada a alcanccedilar