cristo e cultura de richard niebuhr

Upload: milka-larissa

Post on 22-Jul-2015

81 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

CRISTO E CULTURA Srie encontro e dilogos Volume 3. H. RICHARD NIEBUHR CRISTO E CULTURA Traduo de Jovelino Pereira Ramos

Paz e Terra Ttulo do original ingls Christ and culture Copyright 1951, by Harper & Brothers Desenho de capa: Thiago de Mello Distribuio exclusiva: Editora Civilizao Brasileira S. A. Rua 7 de Setembro, 97 Rio de Janeiro, GB, Brasil Direitos para a lngua portuguesa Cedidos pela HARPER & BROTHERS EDITORA PAZ E TERRA LTDA. Av. Rio Branco, 156 12o andar, s/ 1222 Rio de Janeiro que se reserva a propriedade desta traduo. 1967 Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

ndice Prefcio do Tradutor 9 Agradecimentos 11 Introduo 15 21 67

Captulo Primeiro O Problema Duradouro Captulo Segundo Cristo Contra a Cultura Captulo Terceiro O Cristo da Cultura Captulo Quarto Cristo Acima da Cultura

109 143 179 223

Captulo Quinto Cristo e Cultura em Paradoxo

Captulo Sexto Cristo, o Transformador da Cultura Captulo Stimo Um Ps-escrito no-cientfico e Conclusivo 267

PREFCIO DO TRADUTOR Fui aluno, na Escola de Teologia da Universidade de Yale, do Professor Richard Niebuhr, de quem recebi a autorizao para traduzir este livro. Aqui est a traduo. No foi sem um certo receio que a fiz. O autor expe com muita clareza as suas idias. Mas s vezes nos defrontamos com termos que envolvem nuances de significado que somente custa de muito esforo podem ser reproduzidas em nossa lngua. Ocorre ainda que o presente tratado tico-teolgico uma das melhores produes surgidas neste campo nos ltimos cinqenta anos, o que vem colocar nos ombros do tradutor uma sobrecarga de responsabilidade. E, se no contasse com o incentivo dos amigos, com o apoio decisivo de Waldo Csar, secretrio da Junta Latino-Americana de Igreja e Sociedade, com a ajuda preciosa da minha esposa no seu conhecimento do ingls sua lngua materna - e, acima de tudo, se no estivesse absolutamente convicto da importncia destas reflexes para a comunidade crist no Brasil em seu confronto com a presente situao cultural, dificilmente ousaria traduzilas. No se pode dizer que este trabalho expresse todo o pensamento de Richard Niebuhr. Mas os traos caractersticos da sua vida e da sua obra de grande pensador teolgico esto bem realados aqui. Certa vez ele mesmo afirmou que no tinha 9

um pensamento teolgico, mas sim um pensar teolgico (a theological thinking). E no Cristo e Cultura, de fato, o que vamos encontrar o cristo Richard Niebuhr pensando teologicamente. Em Richard Niebuhr no se encontram nem dogmas nem pretenses de resolver problemas insolveis, mas sim o esforo imenso e honesto de focalizar e de dar nova vida s questes passadas e presentes relativas ao por qu, ao como e ao para qu do encontro entre os cristos e o seu contexto cultural. E assim nos revela o que vai percebendo na Histria da Igreja e assinalando o que fundamental, caracterstico, e relativamente normativo da vida da comunidade crist em seu confronto com o mundo. Richard Niebuhr um ldimo representante da Igreja de Jesus Cristo, cuja histria interpreta como sendo a expresso real da vida de uma comunidade onde o passado, o presente e o futuro se desenvolvem sob a orientao soberana do Deus Trino e lanando luz sobre a natureza, sentido e propsito de todas as coisas. Com o leitor esta obra clssica da tica Crist. Ao public-la, a Editora PAZ E TERRA presta grande servio discusso ora em processo no Brasil sobre o sentido da cultura. JOVELINO PEREIRA RAMOS 10

AGRADECIMENTOS O presente ensaio sobre a constante luta que a Igreja enfrenta, em dois planos - com o seu Senhor e com a sociedade cultural (com que vive essencialmente associada) - representa parte do resultado de muitos anos de estudo, reflexo e magistrio. A oportunidade propcia para a organizao e composio por escrito desse material surgiu com um convite que me fez o Seminrio Teolgico Presbiteriano de Austin para apresentar e publicar uma srie de prelees sobre o assunto. Mas por trs dos esforos de condensar observaes e reflexes em cinco conferncias, para depois elabor-las, refin-las e revlas, pairam muitas outras tentativas de compreender e organizar certos dados altamente complexos. o que posso dizer, por exemplo, dos meus cursos sobre Histria e sobre os tipos de tica crist, ministrados na Escola de Teologia da Universidade de Yale, precursores imediatos deste trabalho. Quando o preparo de uma obra consome tanto tempo, as dvidas acumuladas pelo autor so to numerosas e to grandes que a pblica manifestao de agradecimento algo de embaraoso, visto que sempre revela falta de adequada gratido e deficiente habilidade na assimilao das contribuies que lhe so feitas. H, neste livro, reflexes que considero frutos do meu prprio trabalho, mas que, em ltima anlise, so, de fato, idias de outras pessoas, de que lancei mo. Alguns dos meus ex-alunos, ao lerem estas pginas, podero dizer, num ou noutro ponto: aqui est um fato ou uma interpretao para a qual chamei a ateno do meu professor; mas inutilmente procuraro uma nota ao p da pgina registrando o devido reconhecimento. Colegas que tm escrito sobre assuntos relacionados vo receber o mesmo tratamento. Contudo, sinto mais prazer do que embarao ao reconhecer esta dvida no assinalada para com os membros desta ampla comunidade, onde todos sabem que ningum possui coisa alguma que no 11

lhe tenha sido dada, e sabem tambm que assim como temos recebido de graa, de graa devemos dar. Certamente estou cnscio do quanto devo quele telogo e historiador que se preocupou, durante toda a sua vida, com o problema Igreja e cultura: Ernst Troeltsch. O presente livro de certo modo nada mais procura fazer do que, em parte suplementar, e em parte corrigir a sua obra sobre o Ensino Social das Igrejas Crists*. Troeltsch me ensinou a respeitar a multiformidade e a individualidade dos movimentos e dos homens da histria crist; a recusarme a forar esta rica variedade com moldes conceituais pr-fabricados; mas tambm a procurar o logos no mythos, a razo na histria, a essncia na existncia. Ajudou-me a aceitar - e a lucrar com tal aceitao - a relatividade no somente dos objetos histricos, mas tambm do sujeito histrico, do observador histrico e do Intrprete histrico. E, se considero o meu ensaio um esforo no sentido de corrigir a anlise de Troeltsch sobre os encontros da Igreja com o mundo, principalmente porque procuro entender este relativismo histrico luz do relativismo teolgico e teocntrico. Creio que uma aberrao da f e da razo o esforo por absolutizar o finito, mas creio tambm que toda esta histria relativa de homens e movimentos finitos est sob o governo de um Deus absoluto. Isaas 10, I Corntios 12 e a Cidade de Deus, de Agostinho, indicam o contexto em que as relatividades da histria ganham sentido. Para a anlise dos cinco tipos principais, que tomei em substituio aos trs de Troeltsch, tenho recebido muita ajuda da obra Razo e Revelao na Idade Mdia 1, do professor Etiene Gilson, bem como das frutferas sugestes de C. J. Jung no seu livro Tipos Psicolgicos.2 Na medida em que a complexidade dos dados e a habilidade do autor o permitiram, muitos colegas, parentes e amigos ajudaram com seus conselhos, crticas e incentivos no esforo de dar s minhas reflexes a unidade e a preciso exigidas pela comunicao por escrito. Registro um agradecimento especial aos meus colegas professores Paul Schubert e Raymond Morris; __________ (*) The Social Teachings of Christian Churches. 1. Reason and Revelation in the Middle Ages. 2. Psychological, Types. 12

minha irm e meu irmo, professores Hulda e Reinhold Niebuhr; ao senhor Dudley Zuver da Harper & Brothers, a quem devo a sugesto do ltimo captulo; minha filha e senhora Durothy Ansley que cuidaram da parte datilogrfica; ao professor Edwin Penick, que devotou meticulosa ateno s folhas de prova e preparou o ndice, e, enfim, minha esposa. Relembro com gratido a amvel acolhida que me foi dispensada, em Austin, pelo Presidente Stitt e seus colegas, bem como a parte que lhes coube em ajudar-me a dar a esta obra a presente e provisria concluso. New Haven, Connecticut H. RICHARD NIEBUHR 13

Introduo necessrio que tanto a semente como a palavra morra para que nos possam ser teis. A fora da boa nova, como fora de humanizao, pressupe, para sua eficcia, a destruio das estruturas que a contm. Odres velhos no resistem ao vinho novo. A revoluo, como renovao da vida humana, implica na destruio das estruturas de injustia e dominao, e a sua substituio por estruturas que atendam s necessidades e aspiraes humanas, favorecendo a libertao do homem. O SCULO PRESENTE assinala na histria da humanidade um perodo de transio de extraordinria importncia. Duas guerras mundiais, revolues sociais na Amrica, Europa, sia e frica - tirando a maioria da populao dos pases subdesenvolvidos da dominao do sistema colonial o extraordinrio desenvolvimento da tcnica, o surgimento da energia atmica como arma poltica, so fatos cujo significado pe em xeque toda viso conservadora e tradicional no encaminhamento 15

da soluo dos problemas humanos. Vivemos um perodo revolucionrio em todos os aspectos. Para os cristos o Sculo XX marcou o fim da cristandade, o fim da chamada. Era Constantiniana, ou seja, o perodo histrico iniciado pela ascenso de Constantino no Imprio Romano, quando a Igreja gozou de uma posio especial dentro da sociedade em geral e em relao ao Estado em particular. Do meio da crise da Igreja surge a nova realidade do movimento ecumnico e a irreprimvel tendncia secularizao, o que significa a libertao dos cristos de suas amarras culturais-religiosas com o passado, amarras que impedem um testemunho relevante e significativo no mundo de hoje. Neste sentido, a grande contribuio da teologia ecumnica contempornea consistiu em aprofundar a crtica religio feita por Karl Marx no Sculo XIX. Sofrendo o impacto do trabalho revolucionrio de Marx, Karl Barth, o conhecido e influente telogo suo, afirma que religio mesmo a mais alta expresso do pecado humano. Paul Tillich, telogo alemo refugiado de Hitler nos Estados Unidos, afirma que Jesus veio ao mundo para provar que a religio no compensa e que o Evangelho significa exatamente a libertao da canga da religio da lei e da lei da religio. Estas afirmaes ilustram certamente a necessidade de ganharmos maior preciso nos termos que usamos correntemente nessa rea. necessrio distinguir religio, canga e instrumento de dominao, de Evangelho mensagem de libertao dos cativos; distinguir entre f, resposta positiva ao ato de libertao, e cultura meio atravs do qual ela se deve expressar. necessrio superar definitivamente conceitos absurdos como o de uma f religiosa, pois f e religio so inconciliveis. Uma s pode subsistir com o sufocamento da outra. A f a semente frtil. A religio a semente esterilizada que pode servir para comer ou para o comrcio. A f o futuro. A religio o apego ao passado, segurana, 16

ao status quo, muitas vezes feita em nome do futuro, e quase sempre feita em benefcio dos comerciantes. A f o desapego dos que aguardam a madrugada e no perdem tempo olhando para trs. A f a loucura, a audcia. A religio a prudncia, o instinto de conservao. A grande traio da Igreja como instituio consiste em que, ao invs de constituir-se portadora e testemunha do Evangelho, ela se apresentou como defensora do Evangelho. Isto na prtica se refletiu num esforo de domesticar o Evangelho, a servio de determinada cultura e dos seus interesses arraigados. Como resultado, ao invs de seguir o caminho da f, a Igreja se colocou na defesa dos privilgios que lhe garantiam a segurana, na santificao do status quo, e a religio resultante dessa traio tornou-se a principal sustentao da ideologia das classes dominantes, da luta pela santificao dos objetos. No relacionamento dos cristos dentro do mundo moderno certamente a palavra de Dietrich Bonhoeffer, enforcado por Hitler nos ltimos dias da II Guerra, a que nos traz maior esclarecimento aos problemas levantados pela desintegrao da religio diante da cultura moderna. Falanos da chegada da humanidade idade adulta, onde o problema de Deus e da religio no tem mais relevncia ou interesse. Levanta a perspectiva aos cristos de viverem num mundo sem Deus e sem religio. Isto no lhe parece trgico ms, at mesmo um motivo de satisfao. Lembra-nos que mesmo Jesus no foi um homem religioso (o homem no foi feito por causa do sbado) e quando se ocupou da religio e dos religiosos foi para denunci-los (Ai de vs escribas e fariseus). Quais sero as conseqncias desta reformulao de conceitos e de posio no quadro brasileiro e latinoamericano-tradicionalmente religiosos? Custa a crer, na verdade, que os esforos de uma crtica ideolgica e estrutural da situao em que vivemos tenham sido 17

empreendidos sem um estudo srio das estruturas religiosas que herdamos da era colonial. Qualquer que tivesse lido Marx com o mnimo cuidado teria aprendido que a critica a religio o incio de toda a crtica. Possivelmente a influncia positivista nos tenha levado a uma atitude quase metafsica em relao ao problema, sem preocupao pelo estudo profundo e o exame concreto e objetivo da realidade religiosa nos seus relacionamentos histricos, sociais, estruturais e ideolgicos. Ao invs do conhecimento da realidade temos presenciado simplesmente a sua negao. (O anticatolicismo, entretanto, no substitui o conhecimento da teologia de So Toms). O primeiro resultado prtico desta impreciso a lamentvel falta de profundidade do trabalho poltico da maioria dos que tm tomado a iniciativa de conduzir as lutas sociais no Brasil e na Amrica Latina. Outra conseqncia prtica de uma atitude simplesmente anticatlica, foi que tanto o protestantismo como o marxismo oficial, sem adquirirem aquilo que de virtude poderia oferecer o catolicismo, aperfeioaram-se nos seus vcios. Historicamente se verifica que as atitudes sistemticas de negao (anticatolicismo, anticomunismo, etc.) tm sido usadas pelas foras de dominao social para estimular as divises no selo do povo que tem basicamente as mesmas necessidades e aspiraes. O fato que a iniciativa desta guerra tenha partido do anticomunismo e antiprotestantismo no exime as partes agredidas de atuarem inteligentemente e com profundo conhecimento da fora e natureza do agressor. Exatamente o contrrio verdade. Que o centro da luta ideolgica que se trava em defesa dos privilgios dominantes seja colocado em torno de uma civilizao chamada crist e ocidental testemunha claramente o fracasso, primeiramente dos cristos que no denunciaram efetivamente a falsidade dessa afirmao, e em segundo lugar dos revolucionrios em geral que no se aprofundaram na crtica ideolgica, no tendo 18

levado em conta as realidades culturais que servem de contexto luta poltica. Em termos histricos e culturais o surgimento do marxismo est estreitamente vinculado a culturas que serviram de bero ao protestantismo. A luta poltica de Marx teve como cenrio especialmente Alemanha e a Inglaterra fortemente influenciadas pela tradio reformada. Engels, Hegel, e o prprio Marx, formaram-se dentro do protestantismo. Como segunda etapa, o marxismo teve a sua primeira experincia histrica numa cultura dominada pela Igreja Ortodoxa, de cujos seminrios saram Stalin, Mikoyan e muitos outros de seus quadros de direo. Isto sem entrar no exame da influncia do judasmo que, atravs da contribuio de Trotsky e outros, pesou de forma notvel no triunfo da revoluo de outubro. Quanto ao catolicismo, a relao tem sido extremamente ambgua. nos pases catlicos da Europa que se encontram hoje os maiores partidos marxistas. Possivelmente contaminados pelo realismo existente nos seus meios culturais, estes partidos parecem extremamente cuidadosos evitando qualquer iniciativa que possa colocar em risco a parcela de influncia de que dispem atualmente. Em nenhum pas catlico o marxismo se constitui como instrumento das classes dominadas numa luta aberta pelo poder. O confronto at agora tem sido um misto de hostilidade e acomodao. O caso cubano confirma a regra. A secularizao, como abandono progressivo das formas de vida religiosa por parte dos cristos, obedece a duas razes: primeira, que na cultura que se vai formando numa sociedade em rpido processo de industrializao, a religio perde a sua importncia na soluo e explicao dos problemas humanos; segunda, que na compreenso mais profunda do Evangelho os cristos esto compreendendo que historicamente a religio tem sido o grande obstculo propagao do Evangelho. O tema da secularizao, pela sua importncia, dever ocupar o prprio centro dos debates ecumnicos.

19

Estes, por sua vez, carecero da contribuio dos no cristos, que tero que ser includos em qualquer crculo verdadeiramente ecumnico. Diante das questes levantadas, extremamente vlidas e urgentes para a situao brasileira, o livro de Richard Niebuhr assume importncia fundamental, tanto para os que esperam pela madrugada da revoluo brasileira, como para aqueles que buscam novas perspectivas para os cristos aprisionados dentro das estruturas fossilizadas das igrejas. O seu trabalho um instrumento bsico para o conhecimento dos relacionamentos que se tm processado historicamente entre o Evangelho e a cultura, ou as atitudes que os cristos tm mantido face ao problema do relacionamento do Evangelho com a cultura. As observaes que devem resultar de um livro como este tm importncia poltica fundamental. Quando constatamos que a atitude da maioria dos cristos em relao cultura nem sempre foi a que atualmente prevalece, est implcita a possibilidade de que esta atitude pode evolver ou mudar. Este , em si, um fato que nos interessa muitssimo num pas predominantemente catlico que vive as antevsperas de uma revoluo social e necessita estar preparado para viver plenamente a libertao esperada. O presente livro uma contribuio extraordinria sociologia do cristianismo, e nele se faz uma das mais importantes contribuies ao dilogo ecumnico, que certamente no ficar restrito s paredes emboloradas dos templos. 20

CAPTULO PRIMEIRO O PROBLEMA DURADOURO I. O PROBLEMA DESENVOLVE-SE nos nossos dias debate multiforme acerca das relaes entre Cristianismo e civilizao. Historiadores e telogos, estadistas e clrigos, catlicos e protestantes, cristos e anticristos participam dele. Publicamente o mesmo se manifesta nas atividades de faces rivais e, intimamente, nos conflitos de conscincia. Algumas vezes se concentra em questes especficas. Por exemplo, a que se refere ao papel da f crist dentro das diretrizes gerais da educao, ou importncia da tica crist para a vida econmica. s vezes envolve questes mais amplas, como a responsabilidade da Igreja para com a ordem social ou a necessidade de os seguidores de Cristo se separarem novamente do mundo. O debate to multiforme quanto confuso. Quando a questo parece ter sido claramente definida como situada entre os expoentes de uma civilizao crist e 21

os defensores no cristos de uma sociedade totalmente secularizada, novas perplexidades surgem, visto que crentes devotos parecem estar advogando a mesma causa dos secularistas, postulando, por exemplo, a eliminao da religio da rea da educao pblica ou o apoio do cristo a movimentos polticos aparentemente anticristos. Tantas vozes so ouvidas, tantas asseres confiantes ms divergentes so feitas a respeito da resposta crist ao problema social, tantas questes so levantadas, que o desnorteamento e a incerteza cercam a muitos cristos, de todos os lados. Ser bom lembrar, neste ponto, que a questo Cristianismo e civilizao no , de modo nenhum, nova; que nesta rea a perplexidade crist tem sido perene e que o problema tem atravessado os sculos da nossa era crist. bom recordar, tambm, que as repetidas lutas dos cristos com este problema no produziram uma resposta crist nica, exclusiva, mas apenas uma srie de respostas tpicas que, em seu conjunto, para a f, representam fases da estratgia da Igreja militante no mundo. Essa estratgia, contudo, por estar na mente do Capito, antes que nas dos tenentes, no est sob o controle dos ltimos. A resposta de Cristo ao problema da cultura humana uma coisa. As respostas crists so outra coisa; e os seguidores de Cristo esto convictos, de que ele usa as suas vrias obras para cumprir a Sua prpria. O propsito dos captulos seguintes apresentar respostas crists tpicas ao problema Cristo e cultura e assim contribuir para a compreenso mtua dos vrias vezes em conflito. A crena que paira atrs deste esforo , contudo, a convico de que Cristo, como senhor vivente, est respondendo a esta questo na totalidade da histria e da vida, de um modo que transcende a sabedoria de todos os seus intrpretes, utilizando-lhes, todavia, as percepes parciais e os inevitveis conflitos. O problema duradouro surgiu, evidentemente, nos dias da humanidade de Jesus Cristo quando ele, que 22

era um judeu e continuou sendo um judeu at o seu ltimo suspiro, 1 confrontou a cultura judaica com um desafio duro. O Rabi Klausner descreveu em termos modernos como pareceu aos fariseus e saduceus o problema Jesus e cultura; e ele defende o repdio destes ao Nazareno pelo fato de que ele punha em perigo a civilizao judaica. Embora Jesus fosse um produto daquela cultura, a tal ponto que no h uma s palavra de conselho tico ou religioso nos Evangelhos dos quais no se encontra paralelo nas escrituras judaicas -, todavia, diz Klausner, ele a ps em perigo pelo fato de haver abstrado religio e tica do resto da vida social, e assim aguardado o estabelecimento mediante poder divino apenas, de um reino no deste mundo. O judasmo, no entanto, no apenas uma religio e no apenas tica. a soma total de todas as necessidades de uma nao que tem a base religiosa como fundamento - Judasmo uma vida nacional, uma vida em que religio nacional e princpios ticos humanos se abraam ms no se engolfam um no outro. Jesus veio e ps de lado todas as exigncias da vida nacional. - Em seu lugar ele nada ps a no ser um sistema tico religioso ligado sua concepo de divindade2. Tivesse ele empreendido reformar a cultura religiosa e nacional, eliminando o que era arcaico na lei cerimonial e civil e teria sido, ento, mais um benfeitor da sua sociedade; mas ao invs de reformar a cultura ele a ignorou. Ele no veio para enriquecer o conhecimento, arte e cultura da sua nao, mas para abolir at mesmo a cultura que ela possua presa religio. Ele substituiu a justia civil pelo mandamento da no resistncia, o que deveria resultar na perda de toda ordem social, as leis sociais e a proteo da vida familiar, ele s substituiu pela proibio de todo divrcio e pelo louvor daqueles que se fizeram _____________ 1. Klausner, Joseph, Jesus of Nazareth, pg. 388. 2. Ibid. pg. 390. 23

eunucos por amor ao reino dos cus; ao invs de manifestar interesse pelo trabalho, pelas conquistas econmicas e polticas, recomendou a vida despreocupada como exemplificada nos pssaros e nos lrios; ignorou at os requisitos da justia distributiva vigente quando disse: Homem, quem me ps por juiz ou repartidor entre vs? Da - conclui Klausner - Jesus ignorou tudo o que dizia respeito civilizao material. Neste sentido ele no pertence civilizao.3 Portanto, seu povo o rejeitou, e os dois mil anos da cristandade no judaica tm provado que o povo judeu no errou.4 Nem todos os judeus dos seus dias rejeitaram Jesus em nome de sua cultura; e os dois mil anos de cristandade no judaica e de judasmo no cristo podem ser invocados para validar no s a proposio de que Jesus punha a cultura em perigo, como muitas outras. Mas evidente que esses dois milnios tm sido exatamente de lutas com este problema. No somente os judeus, mas tambm os gregos e os romanos, os medievais e os modernos, os ocidentais e os orientais tm rejeitado Jesus por verem nele uma ameaa sua cultura. Embora a histria do ataque da civilizao grecoromana ao Evangelho seja contada quase sempre apenas em termos de perseguio poltica, ela representa um dos captulos dramticos de qualquer histria da cultura ocidental e da Igreja. A animosidade popular baseada na piedade social, as polmicas literrias, as objees filosficas, a resistncia sacerdotal e, sem dvida, a defensiva econmica, desempenharam certo papel na rejeio de Cristo, pois o problema levantado por ele foi amplamente cultural e no somente poltico. De fato, o Estado foi menos apressado do que outras instituies e grupos em se armar contra ele e seus ___________ 3. Ibid., pgs. 373-375. 4. Ibid., pg. 391. 24

discpulos.5 Nos tempos modernos o conflito aberto surge de novo na medida em que no apenas os expoentes das sociedades comunistas e nacionalistas, mas tambm os ardorosos campees de civilizaes humansticas e democrticas, tm discernido em Jesus Cristo um inimigo dos interesses culturais. As situaes histricas e sociais em que tm ocorrido tais rejeies de Jesus Cristo so extremamente diversas. As motivaes pessoais e de grupos opositores tm sido de muitos tipos. As crenas filosficas e cientficas arregimentadas contra as convices crists, freqentemente se opem umas s outras mais severamente do que quelas convices propriamente ditas. Todavia, no que tange relao de Jesus Cristo com a cultura, certa unanimidade razovel pode ser encontrada entre esses crticos discrepantes. Espiritualistas antigos e materialistas modernos; romanos piedosos que acusaram o cristianismo de atesmo e ateus do sculo dezenove que condenaram a sua f testica; nacionalistas e humanistas, todos parecem estar ofendidos pelos mesmos elementos do Evangelho e usam argumentos semelhantes para defender a sua cultura contra ele. Entre os argumentos correntes destaca-se a acusao, como dizia Gibbon sobre o caso romano, de que os cristos so animados pelo descaso para com a presente existncia e pela confiana na imortalidade.6 __________ 5. A batalha do Cristianismo com a f interior das massas pags, com as convices dos espritos lderes, foi incomparavelmente mais difcil do que a luta com o poder do Estado Romano. A vitria da nova f, em conseqncia, foi uma conquista muito maior do que se pensava antigamente, de maneira motivada pelo menosprezo ao paganismo. Geffcken, Johannes, Der Ausgang, des Griechisch-Roemischen Heidentums, 1920, pg. 1. Para outras consideraes sobre o conflito ver Cambridge Ancient History, Vol. XIII, 1939, e Cochrane, C.N., Christianity and Classical Culture, 1940. 6. The Decline and Fall of the Roman Empire, Modern Library, Vol. I, pg. 402.

25

Esta f, com os seus dois gumes, tem frustrado e irritado os glorificadores da civilizao moderna bem como os defensores de Roma, os revolucionrios radicais e os preservadores da velha ordem, os crentes no progresso contnuo e os antecipadores desalentados do declnio da cultura. No uma atitude que pode ser atribuda a um corpo deficiente de discpulos, em salvaguarda do Mestre, de vez que as declaraes deste sobre a preocupao com bebida e comida, sobre a falta de importncia dos tesouros da terra e sobre o temor dos que podem tirar a vida, bem como a sua rejeio na vida e na morte do poder temporal, fazem dele a fonte inequvoca das convices dos seus seguidores. No se trata de atitude que se possa desprezar como caracterstica de alguns cristos apenas - aqueles que acreditam num fim iminente do mundo, ou os ultraespiritualistas. Ela est ligada a vrias concepes da histria e a vrias idias sobre esprito e matria. Trata-se de atitude desconcertante, pois vincula um aparente desprezo pela presente existncia a uma grande preocupao com os homens existentes; no se atemoriza frente s perspectivas de condenao de todas as obras do homem, e nem se perde em desesperos mas, antes, confia. O cristianismo parece ameaar a cultura, neste ponto, no tanto por profetizar que das realizaes humanas no ficar pedra sobre pedra, mas porque Cristo capacita os homens a considerar tamanho desastre com serenidade, dirigindo suas esperanas para o outro mundo, privando-os, portanto, de motivao para se envolverem no labor incessante de preservar a imensa mas insegura herana social. Celsus, portanto, passa de um ataque ao cristianismo a um apelo aos crentes no sentido de que no ponham em perigo o imprio ameaado pela sua ausncia nas responsabilidades pblicas de defesa e reconstruo. A mesma atitude crist, contudo, provoca a hostilidade de Marx e Lnin no sentido de que os cristos no se preocupam suficientemente com a existncia temporal, a ponto de se envolverem numa luta sem reservas visando a destruio 26

de uma velha ordem e a construo de uma nova. E conseguem explicar tal procedimento somente pela suposio de que a f crist um pio religioso usado pelos mais afortunados para entorpecer o povo que, por sua vez, deveria estar bem convicto de que no existe nenhuma vida alm da cultura. Outro argumento comum levantado contra Cristo, pelos seus antagonistas culturais de vrias pocas e tendncias, o de que ele induz os homens a confiarem na graa de Deus ao invs de convoc-los para as realizaes humanas. Que teria acontecido aos romanos, pergunta Celsus, se tivessem seguido o mandamento de confiar apenas em Deus? No teriam ficado na mesma situao dos judeus, sem um pedao de terra prpria e no seriam eles perseguidos como criminosos, como os cristos o foram? 7 Filsofos modernos da cultura, como Nikolai Hartmann, vem nesta confiana em Deus uma antinomia tica da cultura com a sua necessria concentrao no esforo do homem.8 Os marxistas, crendo que o homem faz a histria, consideram a confiana na graa de Deus como sendo um entorpecente to poderoso como a esperana do cu. Os reformadores humanistas e democratas da sociedade acusam os cristos de quietismo, enquanto a sabedoria popular expressa tolerante descrena a respeito da graa, dizendo que Deus ajuda queles que se ajudam e, ainda mais, que devemos viver em termos de f em Deus e p na tbua. Um terceiro ataque de ordem cultural a Jesus Cristo e sua Igreja, embora no muito freqente, o de que eles so intolerantes. No se tratando de objeo que uma crena intolerante levantaria contra outra, no ocorre ela de queixa dos comunistas. Trata-se, antes, da desaprovao com que a descrena enfrenta __________ 7. Orgenes, Contra Celsus, VIII, 1 (Ante-Nicene Fathers, Vol. IV, pg. 666). 8. Hartmann, Nikolai, Ethics, 1932, Vol. III, pgs.226 e segs. 27

a convico. Gibbon diz que a antiga civilizao romana foi forada a rejeitar o cristianismo exatamente porque Roma era tolerante. A sua cultura, com uma grande variedade de costumes e religies, sobreviveria somente se reverncia e assentimento fossem tributados s muitas e desordenadas tradies e cerimnias das naes que a constituam. Era de se esperar, portanto, que se unissem com indignao contra qualquer seita de pessoas que se separasse da comunho da humanidade, pretendendo ter a posse exclusiva do conhecimento divino e desdenhando toda forma de louvor, exceto a sua, como mpia e idlatra.9 A respeito dos judeus, que mantinham as mesmas convices dos cristos sobre os deuses e dolos, os romanos podiam ser mais tolerantes, pelo fato de eles constiturem numa nao distinta, com tradies antigas, e por se contentarem, na maioria dos casos, em permanecer fora da vida social. Os cristos, ao contrrio, eram membros da sociedade romana, e expressavam, implcita e explicitamente, no meio daquela sociedade, o seu escrnio pelas religies do povo. Pareciam, pois, traidores que dissolviam os sagrados laos de costume e educao, violando as instituies religiosas do seu pas, presunosamente desprezando aquilo que os seus pais criam como verdadeiro e reverenciavam como sagrado. 10 Precisamos acrescentar que a tolerncia romana, como a tolerncia democrtica moderna, tinha os seus limites exatamente no fato de ser mantida como poltica social, com vista manuteno da unidade. Qualquer que fosse a religio seguida pelo homem, a homenagem ao Csar era eventualmente requerida.11 Mas Cristo e os cristos ameaaram a unidade da cultura em ambos os pontos com o seu monotesmo radical, _____________ 9. Op. cit., Vol. I, pg. 446. 10. Ibid., pg. 448. 11. Cambridge Ancient History, Vol. XIII, pgs. 409 e seguintes; 356 e segs.; Cochrane, C. N., op. cit., pgs. 115 e seguintes. 28

a f em um Deus que era muito diferente daquele universalismo pago que procurava unificar muitas divindades e muitos cultos sob um monarca terreno ou celestial. O problema poltico que tal monotesmo apresenta aos expoentes de uma cultura nacional ou imperial tem sido enormemente obscurecido nos tempos modernos, mas se tornou muito evidente nos ataques anticristos e especialmente antijudaicos do nacionalsocialismo alemo.12 A divindade, ao que parece, no cria embarao apenas para reis mas tambm para outros smbolos do poder poltico; e o monotesmo os destitui de sua aura sagrada. O cristo que se recusa a adorar a Sat a fim de a ganhar os reinos do mundo seguido pelos cristos, que adoram somente a Cristo em unidade com o Senhor a quem ele serve. E isto intolervel a todos os defensores da sociedade que aceitam a adorao de muitos deuses, desde que a democracia, ou a Amrica, ou a Alemanha, ou o Imprio, receba a sua devida homenagem religiosa. O antagonismo que a tolerante cultura moderna faz a Cristo , de fato, freqentemente disfarado. Porque chamam de religiosas as suas prticas religiosas, mas reserva este termo para aplic-lo a certos ritos especficos ligados a instituies oficialmente reconhecidas como sagradas; e tambm porque considera o que chama de religio como sendo um dos muitos interesses que podem ser colocados ao lado da economia, da arte, da cincia, da poltica e das tcnicas. Disto resulta a objeo da cultura contra o monotesmo cristo em afirmaes tais como a de que a f crist deve aprender a se dar bem com outras religies. O que freqentemente se quer dizer com isto que no somente as pretenses de grupos religiosos, mas toda a considerao das reivindicaes de Cristo e de Deus devem ser banidas da esfera onde reinam outros deuses, chamados valores. A acusao implcita contra a f crist semelhante _________ 12. Ver Barth, Karl The Church and The Political Problem of Our Day, 1939; Hayes, Carlton J. H. Essays in Nationalism, 1933. 29

anterior: ela pe em perigo a sociedade por atacar a sua vida religiosa; destitui as instituies sociais do seu carter cultural e sagrado; e pela sua recusa em olvidar as supersties pias do politesmo tolerante, a f crist ameaa a unidade social. A acusao paira no apenas contra organizaes crists que usam meios coercivos para combater o que definem como religies falsas, mas se manifesta contra a prpria f. Outros pontos so freqentemente ressaltados nos ataques a Cristo e ao Cristianismo por aqueles que neles vem os inimigos da cultura. Diz-se que o perdo que Cristo pratica e ensina irreconcilivel com os reclamos da justia ou com o senso de responsabilidade moral do homem livre. As teses do sermo da montanha a respeito da ira e resistncia ao mal, dos jurados e do matrimnio, da angstia e da propriedade, so tidas como incompatveis com os deveres da vida em sociedade. A exaltao crist dos humildes ofende aristocratas e nietzscheanos, por um lado, e defensores do proletariado, por outro. A inacessibilidade da sabedoria de Cristo aos sbios e prudentes - e sua consecuo pelos simples e pelas crianas de peito - desnorteia os lideres da cultura ou provoca-lhes o escrnio. Embora esses ataques a Cristo e f crist sublinhem e tragam luz - s vezes em formas exticas - a natureza da questo, no a defesa contra eles que constitui o problema cristo. No apenas pagos que rejeitam Cristo, mas crentes que o aceitam acham difcil combinar as suas reivindicaes com as exigncias da sociedade em que vivem. Luta e pacificao, vitria e reconciliao vm tona no somente onde as partes que se consideram crists e anticrists se defrontam. Freqentemente o debate sobre Cristo e cultura existe entre os prprios cristos e nas profundezas escondidas da conscincia individual, no como luta e acomodao de crena com a descrena, mas como luta e reconciliao de f com f. A questo Cristo e cultura estava presente no apenas na luta de Paulo com os judaizantes e helenizadores do Evangelho, 30

mas tambm no seu esforo por traduzi-lo na linguagem e pensamento gregos. O problema aparece nas primeiras lutas da Igreja com o Imprio, com as religies e filosofias do mundo mediterrneo, nas suas rejeies e aceitaes de costumes, princpios morais, idias metafsicas e formas de organizao social em vigor. O acordo constantiniano, a formulao dos grandes credos, o soerguimento do papado, o movimento monstico, o platonismo agostiniano e o tomismo aristotlico, a Reforma e a Renascena, o reavivamento e o iluminismo, o liberalismo e o Evangelho social representam alguns dos muitos captulos na histria do problema permanente. Tem ele surgido em muitas formas e em todas as pocas, como problema de razo e revelao, de religio e cincia, de lei natural e lei divina, de Igreja e Estado, de no resistncia e coero entre protestantismo e capitalismo, pietismo e nacionalismo, puritanismo e democracia, catolicismo e romanismo ou anglicanismo, Cristianismo e progresso. Assim, no se trata essencialmente do problema de Cristianismo e civilizao. O Cristianismo, quer definido como Igreja, credo, tica ou forma de pensamento, se locomove entre os plos de Cristo e cultura. A relao destas duas autoridades constitui o seu problema. Quando o Cristianismo enfrenta a questo razo e revelao, o que realmente est em debate a relao da revelao em Cristo com a razo que prevalece na cultura. Quando se esfora para distinguir, contrastar ou combinar a tica racional com o seu conhecimento da vontade de Deus, est lidando com a compreenso do certo e do errado desenvolvida na cultura e com a do bem e do mal como iluminados por Cristo. Quando o problema da lealdade Igreja ou ao Estado levantado, Cristo e a sociedade cultural permanecem no background como os verdadeiros objetos de devoo. Da, antes de esboar e ilustrar as formas principais com que os cristos tm enfrentado o seu 31

problema permanente, devemos explicar o que queremos dizer com estes dois termos - Cristo e cultura. Ao faz-lo preciso tomar cuidado para no prejulgarmos a questo definindo um termo ou outro, ou ambos, de modo a que apenas uma das respostas crists fique parecendo legtima. II. POR UMA DEFINIO DE CRISTO Um cristo comumente definido como "aquele que cr em Jesus Cristo" ou como "um seguidor de Jesus Cristo". Ele poderia ser mais propriamente descrito como algum que se considera pertencente quela comunidade de homens para quem Jesus Cristo - sua vida, palavra, feitos e destino de suprema importncia como chave para a compreenso deles mesmos e do mundo em que vivem, como fonte principal do conhecimento Deus e do homem, do bem e do mal, como companheiro constante da conscincia, e como o esperado que os liberta do mal. To grande, porm, a variedade pessoal e comunal da crena em Jesus Cristo, to mltipla a interpretao de sua natureza essencial, que se deve levantar a questo sobre se o Cristo do Cristianismo , de fato, um s senhor. Para alguns cristos, e para algumas partes da comunidade crist, Jesus Cristo um grande mestre e legislador, o qual, pelo que disse de Deus e da lei moral, persuade tanto a mente como a vontade que desde ento jamais conseguem escapar dele. O Cristianismo , para eles, uma nova lei e uma nova religio proclamadas por Jesus, parecendo ser, em parte, uma causa escolhida por ele e, em parte, uma causa que os escolhe, forando o consentimento de suas mentes. Para outros, Jesus Cristo no tanto = mestre e revelador de verdades e leis quanto, em si mesmo, na sua encarnao, morte, ressurreio e viva presena, a revelao de Deus. Jesus Cristo, por ser 32

o que ele foi, pelo que ele sofreu, por ter sido derrotado na crucifixo e pelo seu retorno vitorioso da morte, torna evidente o ser e a natureza de Deus, exerce os direitos de Deus sobre a f humana, e, assim, levanta para uma nova vida os homens que ele encontra. Para outros, ainda, o Cristianismo no primariamente nem um ensinamento novo nem uma nova vida, mas uma nova comunidade: a Santa Igreja Catlica. E a obra de Cristo, que ocupa o centro de sua ateno, o encontro por eles desta nova sociedade que veicula a sua graa atravs da palavra e do sacramento. H muitas outras feies do que significa crer em Jesus Cristo. Todavia, esta variedade no Cristianismo no pode obscurecer a unidade fundamental que reforada pelo fato de que Jesus Cristo, com quem os homens esto relacionados de maneiras to diferentes, um carter definido e uma pessoa cujos ensinos, aes e sofrimentos so partes de uma s realidade. certo que o Cristo que exerce autoridade sobre os cristos, ou que os cristos aceitam como autoridade, o Jesus Cristo do Novo Testamento, e que esta uma pessoa com ensinos definidos, carter definido e um destino definido. Embora importantes, a questo outrora muito debatida sobre se Jesus "realmente" existiu e o problema ainda em pauta da credibilidade dos registros do Novo Testamento, como descries de fatos e de exemplos reais, no so de significao primria. Pois o Jesus Cristo do Novo Testamento est em nossa histria real, na histria que relembrarmos e vivemos, na medida em que ela forma a nossa f e ao do presente. E este Jesus Cristo uma pessoa definida, um e o mesmo, surja ele como homem de carne e sangue ou como o Senhor ressurrecto. Ele nunca pode ser confundido com um Scrates, com um Plato ou com um Aristteles, com um Gautama, com um Confcio ou com um Maom, e nem mesmo com um Ams ou com um Isaas. Interpretado por um monge, ele pode assumir caractersticas monsticas; delineado por um socialista, ele pode apresentar as marcas de um reformador radical; retratado por um Hoffmann, 33

ele pode assemelhar-se a um cavalheiro amvel. Permanecem, porm, sempre, os retratos originais - e com eles podem ser comparados todos os quadros posteriores e corrigidas todas as caricaturas. E nestes retratos originais ele reconhecidamente um e o mesmo. Seja qual for o papel que ele desempenha nas variedades da experincia crist, o mesmo Cristo que exerce esses vrios ofcios. O fundador da Igreja o mesmo Cristo que d a nova lei. O mestre das verdades sobre Deus o mesmo Cristo que em si mesmo a revelao da verdade. Os sacramentalistas no podem escapar ao fato de que aquele que d seu sangue e corpo tambm o doador dos novos mandamentos. O sectrio no pode deixar de ver na autoridade tica o perdoador de pecados. Aqueles que no mais conhecem um "Cristo segundo a carne" conhecem ainda o Senhor ressurrecto como aquele mesmo cujos feitos foram descritos pelos que desde o incio foram testemunhas oculares e ministros da palavra. Ainda que sejam grandes as variaes entre os cristos e a experincia e descrio da autoridade que Jesus Cristo tem sobre eles, tm isto em comum: Jesus Cristo a sua autoridade; e aquele que executa estas vrias modalidades de autoridade um e o mesmo Cristo. Naturalmente que to logo nos disponhamos a definir a essncia do Jesus Cristo, que um e o mesmo, ou a dizer o que lhe d as vrias espcies de autoridade, entramos no contnuo debate da comunidade crist. Aqui encontramos duas dificuldades em particular. A primeira a impossibilidade de se estabelecer adequadamente, por meio de conceitos e proposies, um princpio que se apresente na forma de uma pessoa. A segunda a impossibilidade de se dizer qualquer coisa a respeito desta pessoa que no seja tambm relativa a um ponto de vista particular na Igreja, histria e cultura de quem se dispe a descrevlo. Da surge a tentao de se falar redundantemente, afirmando-se simplesmente que "Jesus Cristo Jesus Cristo", ou de se aceitar o 34

mtodo do positivismo bblico, apontando-se para o Novo Testamento e renunciando toda interpretao. Contudo, no apenas desnecessrio mas tambm desagradvel nos confinarmos a tais gestos e asseres. Se nada podemos dizer adequadamente, algumas coisas podem dizer inadequadamente. Se no podemos apontar para o corao e essncia deste Cristo, podemos, pelo menos, apontar para alguns fenmenos em que a sua essncia aparece. Embora toda descrio seja uma interpretao, ela pode ser uma interpretao da realidade objetiva. Jesus Cristo, que a autoridade crist, pode ser descrito, embora toda descrio deixe muito a desejar e deva ser falha em satisfazer a outros que o tm encontrado. Para o propsito de tal descrio um moralista pode se permitir escolher o artifcio um tanto arbitrrio de assinalar e definir as virtudes de Jesus Cristo, embora se torne evidente que o retrato resultante precisa ser complementado por outras interpretaes do mesmo assunto, e que a descrio moral no pode chegar mais perto da essncia do que as descries metafsicas ou histricas. Pelas virtudes de Cristo podemos querer apontar as excelncias de carter, que, por um lado, ele exemplifica na sua prpria vida, e por outro comunica aos seus seguidores. Para alguns cristos elas so as virtudes que o seu exemplo e lei reclamam; para outros so os dons que ele concede atravs da regenerao, do morrer e do ressuscitar com ele, o primognito de muitos irmos. Mas, quer os cristos realcem a lei ou a graa, quer olhem para o Jesus da histria ou para o preexistente e ressurrecto senhor, as virtudes de Jesus Cristo so as mesmas. A virtude de Cristo que o liberalismo religioso tem exaltado acima de todas as outras o amor.13 O discernimento __________ 13. Ver Harnack, A., What is Christianity? 1901, pgs. 78 e segs. No apenas os liberais exaltam esta virtude. Reinhold Niebuhr, por exemplo, concorda com Harnack, considerando o amor como a chave da tica de Jesus. Ver An Interpretation of Christian Ethics, 1935, captulo II. 35

desta excelncia nele no constitui, seguramente, nenhuma aberrao da parte do pensamento liberal, levando-se em conta tudo o que se possa dizer sobre a escassez de referncias ao amor nos evangelhos sinticos. O resto do Novo Testamento, e o testemunho dos cristos em todas as pocas confirmam que o amor uma das grandes virtudes de Jesus Cristo, e que o que ele requer dos seus discpulos ou oferece a eles como possvel o amor. Todavia, quando examinamos o Novo Testamento, e estudamos nele o retrato de Jesus, comeamos a duvidar do valor descritivo de frases como "o absolutismo e perfeccionismo do amor tico de Jesus" 14 ou de declaraes como as seguintes:Aquilo que [Jesus] libertou de sua conexo com o egocentrismo e elementos rituais, e reconheceu como o princpio moral, ele reduz a uma s raiz e a um s motivo-amor. Ele no conhece nenhum outro princpio; e o amor em si, quer assuma a forma de amor ao prximo ou de amor aos inimigos, ou do amor do samaritano, de uma s espcie. Deve encher a alma completamente e o que resta quando a alma morre para si mesma.15

Em lugar nenhum Jesus exige amor pelo amor, e em parte nenhuma exibe aquele domnio completo dos sentimentos e emoes amveis sobre os agressivos, que parece indicado pela idia de que nele o amor "tem de encher a alma, completamente", ou de que a sua tica se caracteriza pelo "ideal de amor". A virtude do amor no carter e exigncia de Jesus a virtude do amor de Deus e do prximo em Deus, no a virtude do amor de amor. A unidade desta pessoa est na simplicidade e integridade do seu curso para Deus, quer seja em termos de amor, de f ou de medo. O amor, com toda _________ 14. Niebuhr, op. cit., pg. 39. 15. Harnack, op. cit., pg. 78. 36

certeza, se caracteriza em Jesus por um certo extremismo; mas tal extremismo no aquele de uma paixo irremovvel por outra paixo. Trata-se, antes, do extremismo da devoo a um Deus, sem compromisso com o amor de qualquer outro bem absoluto. Esta virtude nele desproporcional somente no sentido politestico-monotestico e no no sentido de no se fazer acompanhar de outras virtudes talvez igualmente grandes; nem o num sentido aristotlico, como se ela no se encontrasse, no meio, entre excesso e defeito, ou entre amabilidade e ira. Para Jesus no existe nenhum ser final digno de amor e nenhum outro objeto ltimo de devoo a no ser Deus. Ele o Pai; nenhum bem existe a no ser Deus; a ele somente se deve render graas; somente o seu reino deve ser buscado. Da que o amor de Deus no carter e ensino de Jesus no apenas seja compatvel com a ira, mas possa ser mesmo o seu motivo, como quando ele v a casa do Pai transformada em covil de salteadores ou os pequeninos do Pai ultrajados. Da ser correto e possvel salientar a significao desta virtude em Jesus, e ao mesmo tempo reconhecer que de acordo com os evangelhos sinticos ele deu nfase, na conduta e no ensino, s virtudes da f em Deus e humildade diante dele, muito mais do que ao amor. Se se quer entender a natureza desta virtude em Jesus, alguma ateno tem de ser dada sua teologia. A tendncia de se descrever Jesus totalmente em termos de amor est intimamente ligada disposio de se identificar Deus com amor. Paternidade considerada como sendo quase o nico atributo de Deus e, assim, quando Deus amado, o princpio de paternidade que realmente amado. 16 Ou ento Deus definido como a unidade final que transcende o caos do mundo, to seguramente quanto real o fato de ser ela bsica ordem do mundo. Esta "unidade de Deus no esttica, mas potente e criadora. Deus , portanto, amor. ___________ 16. Ibid., pgs. 63 e segs., 154 e segs. 37

Ele a benevolncia que a todos inclui. 17 Naturalmente, isto no representa a teologia de Jesus. Muito embora Deus seja amor, para ele o amor no Deus. O Deus que Cristo ama o "Senhor do cu e da terra"; ele o Deus de Abrao, Isac e Jac; ele o poder que causa a chuva e o sol, sem cuja vontade e conhecimento no morre um nico pardal, nenhuma cidade destruda, e nem ele mesmo crucificado. A grandeza e a estranheza do amor de Jesus para com Deus no aparece no seu amor pelo amor csmico, mas na sua lealdade para com o poder transcendente, esse poder que parece tudo para os homens de pequena f, menos o que de fato - o poder paternal. A palavra "Pai" nos lbios de Jesus maior, mais herica e mais fiel do que quando paternidade e divindade so identificadas. Contra esta interpretao da natureza nica da virtude do amor em Jesus Cristo como baseada na integridade de sua devoo a Deus, poder ser levantada a objeo de que ele pratica e ensina um amor duplo - para com o prximo e para com Deus - de modo que a sua tica ter dois focos: "Deus, o Pai e o valor infinito da alma humana".18 Tais afirmaes esquecem que o duplo mandamento, quer tenha sido originalmente estabelecido por Jesus ou simplesmente confirmado por ele, de modo nenhum coloca Deus e o prximo no mesmo nvel, como se ntegra devoo fosse devida a ambos. Deus somente que para ser amado com o corao, alma, mente e fora. O prximo colocado no mesmo nvel de valor que o eu ocupa. Alm disto, a idia de atribuir valor "intrnseco" ou "infinito" alma humana parece completamente estranha a Jesus. Ele no fala de valor, parte de Deus. O valor do homem, como o valor do pardal e da flor, o seu valor para __________ 17. Niebuhr, op. cit., pgs. 38, 49, 56. 18. Tambm Harnack, op. cit., pgs. 55, 68-76. Esta frase em suas mltiplas variaes tem se tornado coeficiente comum do protestantismo liberal. 38

Deus; a medida do verdadeiro gozo, em termos de valor, o gozo do cu. Porque o valor valor em relao a Deus, Jesus v o sagrado em toda a criao, e no apenas na humanidade, muito embora os seus discpulos encontrem conforto especial no fato de serem de mais valor para Deus do que os pssaros, que tambm so valiosos. A virtude do amor ao prximo nos ensinos e conduta de Jesus nunca poder ser pertinentemente descrita, se for tomada parte do amor a Deus, o qual de valor fundamental. Cristo ama o seu prximo no como a si mesmo, porm como Deus o ama. Da o quarto evangelho, percebendo que o postulado judeu "ama o teu prximo como a ti mesmo" no se coadunava adequadamente nem com as aes de Jesus nem com os seus preceitos, haver modificado o mandamento para "amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei".19 Alm disto, ficou bem claro para os discpulos que o amor de Jesus pelos homens no era apenas uma ilustrao da benevolncia universal, mas um ato decisivo do Agape divino. Pois temos de enfrentar o reconhecimento de que o que os primeiros cristos viram em Jesus Cristo (e o que devemos aceitar se atentarmos para ele e no para o que nos diz a nossa imaginao a respeito dele) no foi uma pessoa caracterizada pela benignidade universal, amando a Deus e ao homem. Seu amor para com Deus e seu amor para com o prximo so duas virtudes distintas que no tm nenhuma qualidade em comum, mas apenas uma fonte comum. Amor a Deus a adorao do nico bem verdadeiro; a gratido ao doador de todos os dons; regozijo pela santidade; "assentimento ao Ser". Mas o amor ao homem compassivo e no adorador; doador e perdoador sem ser gratido, sofrendo nos vcios e profanaes dessas atitudes e por elas, no as aceitando como so, mas chamando-as ao arrependimento. O amor a Deus o Eros no possessivo; o amor ao homem, puro Agape; __________ 19. Joo 13:34, 15:12. Conferir Marcos 12:28-34, Mateus 22: 34-40, Lucas 10:25-28. 39

o amor a Deus paixo; o amor ao homem, compaixo. H uma dualidade aqui, mas no a de um mesmo interesse em relao a dois grandes valores, Deus e o homem. Trata-se, antes, da dualidade do Filho do Homem e Filho de Deus, que ama a Deus como o homem deve am-lo, e ama ao homem como somente Deus pode am-lo, com poderosa compaixo por aqueles que tropeam. Parece, ento, no haver maneira mais adequada para se descrever a virtude do amor em Jesus, seno dizendo que o seu amor foi o amor do Filho de Deus. No era amor, mas Deus o que enchia a sua alma. Afirmaes semelhantes devem ser feitas sobre outras primazias que encontramos nele. Do liberalismo que exaltou o seu amor tm saldo interpretaes escatolgicas que o vem como o homem da esperana, e interpretaes formuladas por um existencialismo que o descreve como radicalmente obediente. Foi ele precedido de um protestantismo ortodoxo para quem Jesus era o modelo e o doador da virtude da f, e por um movimento monstico que esteve surpreso e maravilhado com a sua grande humildade. O Cristo do Novo Testamento possui ambas as virtudes; e cada uma delas se expressa de tal conduta e ensino, de maneira tal, que parece extrema e desproporcional para a sabedoria cultural e secular. Mas ele no as pratica, nem requer dos seus discpulos qualquer dessas virtudes, a no ser em relao com Deus. Porque essas virtudes so qualidades da conduta dos homens que esto sempre em confronto com o Todo Poderoso e Santo, elas parecem extremadas. E assim com a virtude da esperana. Os escatologistas, de quem Albert Schweitzer o mais conhecido expoente, tm tentado descrever Jesus Cristo como caracterizado somente pela esperana e no pelo amor. Ele esperava to intensamente - afirmam eles - a transformao da promessa messinica em realidade e a grande reviravolta na histria que venceria o mal e estabeleceria 40

o reino de Deus, que nada mais lhe importava, * no ser a preparao para este evento. "No , mesmo * priori, a nica opinio concebvel" - escreve Schweitzer - "que o comportamento de algum que guarda a sua parousia messinica num futuro prximo deve estar determinado por aquela expectativa?" 20 O ensino de Jesus, como o seu comportamento, explicado com referncia a esta esperana. "Se o pensamento da vinda escatolgica do reino o fator fundamental na pregao de Jesus, toda a sua teoria tica dever estar subordinada sua concepo de arrependimento como preparao para a vinda do Reino Arrependimento uma renovao moral, tendo em vista o cumprimento da perfeio universal no futuro A tica de Jesus completamente orientada pela esperada consumao sobrenatural". 21 O que Jesus comunicou aos seus discpulos, afirma o escatologista, foi essa expectativa, engrandecida agora pela convico de que nele o futuro messinico esteve muito perto. Da a tica do Cristianismo primitivo ser apresentada como a tica da grande esperana. Da mesma forma que a interpretao liberal de Jesus fazia dele um heri do amor, uma profunda verdade aqui se evidencia; o Cristianismo atual muito deve aos escatologistas o terem eles chamado ateno para esta virtude e o seu contexto em Jesus. Este fato tem ajudado muito a cumprir o desejo de Schweitzer: "pintar o retrato de Jesus em sua sobrepujante grandeza herica e imprimi-la sobre a teologia e poca modernas.22 Houve um extremismo na atitude de expectativa de Jesus que o distingue de todos os homens que esperam glrias menores, ou, mais freqentemente, no __________ 20. Schweitzer, A., The Quest of the Historical Jesus, 1926, pg. 349. 21. Schweitzer, A., The Mystery of the Kingdom of God, 1914, pgs. 94, 100. 22. Ibid., pg. 274. 41

esperam glria nenhuma. A moralidade mdia pressupe complacncia temperada com um pouco de cinismo, ou resignao qualificada como expectativa moderada do bem. A antecipao intensa do bem supremo deve resultar numa transformao da tica. Todavia, a urgncia na expectativa de Jesus inexplicvel; e o grau em que ele a comunica a discpulos, nas culturas distanciadas da Palestina do primeiro sculo, incompreensvel quando se esquece, como os escatologistas parecem faz-lo, que tal esperana estava em Deus e era por Deus. Eles parecem inclinados a dizer que aquilo em que Jesus esperava era dogma; aquilo por que ele esperava era uma metamorfose da natureza humana e no humana, uma transformao de toda forma terrena de existncia. Assim, Schweitzer define a interpretao escatolgica como "um exame crtico do elemento dogmtico na vida de Jesus Escatologia simplesmente histria dogmtica - histria moldada pelas crenas teolgicas Consideraes dogmticas guiadas pelas resolues de Jesus. 23 Decorre Da o pensamento de que ele ps a sua esperana naquilo que veio a ser uma crena errnea sobre a brevidade do tempo, e de ter procurado forar a marcha irredutvel dos eventos para conform-la ao seu padro dogmtico. Embora o Jesus descrito no Novo Testamento fosse, evidentemente, alimentado por uma intensa esperana, parece claro, tambm, que a realidade presente para ele, como o autor do futuro, no era um curso da histria dogmaticamente concebida. A sua maneira escatolgica de ver a histria no diferia da doutrina de progresso apenas pelo fato de considerar o tempo como prximo. Em primeiro lugar ele no estava absolutamente tratando com o problema da histria, mas com Deus, o Senhor do tempo e do espao. Ele esperava no Deus vivo pela mo de quem os demnios estavam sendo expulsos, e cujo perdo de pecados estava sendo manifesto. Os tempos estavam em Sua mo e, portanto, predies a respeito dos tempos e ___________ 23. Quest of the Historical Jesus, pgs. 248, 249, 257. 42

estaes estavam fora de ordem. E no foi mesmo o prprio Deus o objeto da intensa esperana de Jesus - a manifestao da glria e a revelao da retido divinas? O reino de Deus para Jesus menos um feliz estado de coisas, em primeiro lugar, do que Deus em seu evidente ato de reinar. Ele reina agora, mas o seu reino dever ser manifesto a todos. A tica de Jesus no parece depender de sua viso da histria mais do que esta parece depender daquela. Ambas so reflexos de sua f em Deus. Da ser uma violncia ao que diz o Novo Testamento, a tentativa de fazer da extrema esperana, com o arrependimento que ela envolve, a virtude chave do ensino e conduta de Jesus. Muitas das suas afirmaes mais radicais no esto vinculadas intimamente, de modo nenhum, com a expectativa da vinda do Reino, mas sim com a transformao em realidade concreta do presente reinar de Deus, no curso dos eventos naturais e cotidianos. Assim, no ensinamento a respeito da serenidade no h nenhuma referncia renovao e catstrofe futuras, mas ao cuidado de cada dia dispensado por Deus; e o ensino a respeito do perdo do inimigo est em conexo com a demonstrao ordinria e cotidiana da misericrdia de Deus, mandando chuva e sol sobre justos e injustos.24 O carter herico da esperana de Jesus no est s. Ele est unido ao amor herico e f herica. E tudo isto tem a sua fonte na relao dele com Deus, o qual aquele que no apenas Agora, mas tambm Ento. A chave da tica de Jesus no a escatologia, mas sua caracterstica de Filho de Deus. E no diferente o que ocorre com a obedincia de Cristo. Os existencialistas cristos do nosso tempo vem Jesus caracterizado pela virtude da obedincia radical, dispondo-se, como o fizeram os seus predecessores, a descrev-lo e a descrever seus ensinos em termos de uma grande excelncia. Bultmann escreve que s se pode entender a tica de Jesus e a sua proclamao da vontade de Deus como distinta do ideal grego de humanidade __________ 24. Mateus 6:25-34; 5:43-48. 43

e da presente tica de autonomia e teoria de valor se se notar a sua relao e distino com a piedade judaica. Ento se poder dizer com preciso que a tica de Jesus, exatamente como a judaica, uma tica de obedincia; e que a nica diferena fundamental que Jesus concebeu radicalmente a idia de obedincia.25 Bultmann justifica o que ele chama de radicalismo da obedincia de Jesus mostrando que para ele no houve autoridade mediata entre Deus e o homem, pois o obedincia radical s existe quando um homem assente intimamente ao que lhe requerido e quando a coisa ordenada intrinsecamente vista como sendo o mandamento de Deus.Na medida em que a obedincia apenas sujeio a uma autoridade que o homem no entende, no obedincia. Ainda mais, a obedincia radical quando o homem todo envolvido, de modo que no apenas faz alguma coisa obedientemente, mas essencialmente obediente, e, tendo de optar pr ou contra determinada situao, no mais procura uma posio neutra, mas aceita a responsabilidade da deciso entre o bem e o mal. 26 Novamente, como no caso de uma interpretao em termos de amor, devemos reconhecer a verdade evidente de tais declaraes. Jesus foi obediente, e radicalmente obediente - como os cristos o reconheceram desde o incio. Eles se impressionaram com a sua obedincia at a morte, e com a sua submisso na agonia e orao do Getsmane; viram que ele tinha descido do cu no para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou; eles se regozijaram em que mediante a obedincia de um muitos foram feitos justos; e foram consolados pelo pensamento de que tinham no cu um sumo-sacerdote que, sendo, embora, um Filho, tinha 27 aprendido a obedecer pelo que ele sofreu. Discerniram, pois, _________ 25. Bultmann, Rudolf, Jesus and the Word, 1934, pgs. 7273. 26. Ibid., pgs. 77, 78. 27. Filip. 2:8, Marcos 14:36, Joo 6:38, 15:10, Rom. 5:19, Hebreus 5:8. 44

que o radicalismo de sua obedincia estava ligado a um certo transcender da autoridade mediata da lei, dirigido ao homem todo, incluindo cada pensamento e motivo, bem como cada ato aberto, no havendo nenhuma escapatria da responsabilidade de obedincia. Todavia, algo est faltando no retrato existencialista da obedincia de Cristo. No apenas se fez de uma virtude a chave de todas as outras, mas essa virtude foi essencialmente abstrada da compreenso de Deus, compreenso que torna radicais todas as virtudes de Jesus Cristo. Este Jesus existencialista mais kantiano do que joanino, paulino ou marcano. Bultmann no pode encontrar nenhum contedo real na idia evanglica de obedincia. Diz ele que Jesus no tem nenhuma doutrina sobre o dever do bem. Basta ao homem saber que Deus o tem colocado sob a necessidade de deciso em cada situao concreta na vida, no aqui e no agora. E isto significa que ele mesmo deve saber o que lhe requerido. O homem no se defronta com a crise de deciso armado de um padro definido; ele no se ergue em nenhuma base firme, porm permanece sozinho no espao vazio. Ele v apenas o homem diante da vontade de Deus. Jesus no ensina nenhuma tica no sentido de uma teoria inteligvel, vlida para todos os homens, a respeito do que deveria e do que no deveria ser feito.28 Alm disto, muito embora Deus seja mencionado como aquele cuja vontade deve ser obedecida, a idia de Deus atribuda a Jesus to vazia e formal como a idia de obedincia. Assim como para o liberalismo Deus a contraparte do amor humano, tambm neste existencialismo ele se torna a mera contraparte da deciso moral. Ele o poder que constrange o homem deciso, aquele que o homem pode encontrar somente na compreenso real de sua prpria existncia; o prprio Deus deve desaparecer para o homem que no sabe que a essncia de sua prpria vida consiste __________ 28. Op. cit., pgs. 108, 85, 84. Cf. pgs. 87-88. 45

na plena liberdade de sua deciso.29 O nimo de tal existencialismo, contra as idias naturalistas e especulativas sobre Deus, pode ser entendido, mas atribuir a Jesus esta concepo de liberdade do sculo vinte resulta numa caricatura do Cristo do Novo Testamento. Pois o Jesus que radicalmente obediente sabe que a vontade de Deus a vontade do criador e governador de toda a natureza e de toda a histria; que h estrutura e contedo em Sua vontade; que Ele o autor dos dez mandamentos; que Ele quer misericrdia e no sacrifcio; que Ele requer no apenas obedincia a si mesmo, mas tambm amor e f, assim como amor ao prximo que Ele criou e ama. Este Jesus radicalmente obediente, mas Ele tambm sabe que somente f e amor tornam possvel a obedincia e que Deus o doador de todos estes dons. Sua obedincia uma relao com Deus, o que muito mais do que um No Condicionado encontrado no momento de deciso. O carter desta obedincia no , portanto, algo que existe per se, ou algo que se pode separar do amor, f e esperana radicais. Trata-se da obedincia de um Filho cujo carter filial no simplesmente definvel como obedincia a um princpio que constrange obedincia. Um exame da concentrao protestante na f que Jesus tinha e do interesse monstico pela sua grande humildade leva ao mesmo resultado. Ele, de fato, caracterizado por uma f extrema e por uma radical humildade. Mas f e humildade no so coisa alguma em si mesmas, sendo, antes, relaes de pessoas, ou hbitos de comportamento na presena de outrem. Agora, quando olhamos para Jesus do ponto de vista de sua f nos homens, ele nos parece um grande ctico, que acredita estar tratando com uma gerao adltera e m, com um povo que apedreja os seus profetas e depois lhes ergue monumentos. Ele no deposita nenhuma confiana _________ 29. Op. cit., pgs. 103, 154. 46

nas instituies e tradies prevalecentes de sua sociedade. Mostra pequena confiana nos seus discpulos, convencido de que eles se escandalizaro nele, e de que at o mais firme dentre eles ser incapaz de permanecer ao seu lado na hora da prova. Somente a fico romntica pode interpretar o Jesus do Novo Testamento como algum que acreditava na bondade dos homens e que, por isto, procurava trazer tona o que neles era bom. Todavia, a despeito deste ceticismo, ele admiravelmente livre de ansiedade. herico na sua f em Deus, chamando o Senhor do cu e da terra de Pai. Em sua existncia marcada pela pobreza, falta de famlia, alimentao e teto, ele confia naquele que d ao necessitado o po de cada dia. E no fim entrega o seu esprito a quem sabe responsvel pela sua morte vergonhosa e ignominiosa. A Ele tambm confia a sua nao, crendo que o necessrio ser dado aos que pem de lado a preocupao com a sua prpria defesa e buscam apenas o Reino de Deus. Tal f parecer sempre radical aos seres humanos com a sua profunda desconfiana do poder que os originou, que os sustenta e que ordena a sua morte. Trata-se da f que tem um Filho de Deus, a qual muito extrema para aqueles que se concebem como filhos da natureza, ou dos homens, ou de uma contingncia cega. A humildade de Jesus tambm irregular. Vive com pecadores e prias; lava os ps aos discpulos; aceita grosserias e afrontas dos sacerdotes e dos soldados. Quando reconhecido como o Senhor vivo e ressurrecto, a magnificncia de sua humildade causa assombro e pasmo aos que criam nele. Sendo, embora, rico, se tornou pobre para enriquecer a muitos; embora tendo existido na forma de Deus, tomara a forma de escravo; a palavra atravs da qual todas as coisas foram feitas tornou-se carne; a vida, que era a luz dos homens, penetrou nas trevas deles. H, de fato, alguma coisa de desproporcional na humildade de Jesus Cristo. No seria surpresa se uma nova escola de intrpretes surgisse no rastro dos existencialistas com a tentativa de entend-lo como o homem de humildade radical. Mas a humildade 47

de Jesus humildade diante de Deus, e s pode ser entendida como a humildade do Filho. Ele nunca expressou, nem ordenou, nem comunicou a humildade de sentimento de inferioridade diante dos outros homens. Diante dos fariseus, do sumo sacerdote, de Pilatos, e daquela raposa, Herodes, mostrou uma confiana que no tinha nenhum trao de auto-abnegao. Fosse qual fosse a verdade sobre a sua autoconscincia messinica, ele falou com autoridade e agiu cheio de confiana de poder. Quando repudiou o titulo de Bom Mestre no admitiu que outros rabis fossem melhores do que ele, mas disse: Ningum bom, seno Deus, somente. No houve nenhuma condescendncia em sua vida para com os pecadores, tal como um homem apologtico e inseguro pudesse notar. Sua humildade daquele tipo que desperta, para um Novo senso de dignidade e valor, aqueles que tm sido humilhados pelas pretenses defensivas do bom e do justo. Tratase de uma espcie de humildade orgulhosa e de um orgulho humilde, o que pode ser chamado de paradoxal somente no caso de no se levar em considerao, como fundamental, a relao com Deus. Se verdade que ela diferente de todas as modstias e deferncias que caracterizam os esforos humanos de acomodao aos seus sentimentos prprios e mtuos de superioridade, tambm certo que ela completamente diferente daquela sbia virtude grega, em decorrncia da qual os homens eram exortados a permanecer dentro dos seus prprios limites, para evitar que os deuses ciumentos os destrussem como rivais em potencial. A humildade de Cristo no a moderao pela qual algum conserva o seu lugar certo na escala do ser mas, antes, aquela dependncia e confiana absolutas em Deus, com a conseqente habilidade de remover montanhas. O segredo da mansido e brandura de Cristo est na sua relao com Deus. Assim, qualquer uma das virtudes de Jesus pode ser tomada como a chave para a compreenso de seu carter e ensino. Cada uma delas inteligvel, em seu radicalismo aparente, somente como uma relao com 48

Deus. melhor, por certo, no se tentar deline-lo pela descrio de uma de suas excelncias, mas, antes, tom-las em conjunto: aquelas a que nos temos referido e outras. Em ambos os casos, contudo, parece evidente que a estranheza, a estatura herica, o extremismo e sublimidade desta pessoa, considerada moralmente, so devidos quela nica devoo e integral confiana em Deus, o que no pode ser simbolizado melhor por nenhuma outra figura de linguagem seno por aquela que o chama de Filho de Deus. A crena que homens de diferentes culturas professam em Jesus Cristo significa, por conseguinte, crena em Deus. Ningum pode conhecer o Filho sem reconhecer o Pai. Estar relacionado com Jesus Cristo em devoo e obedincia estar relacionado com aquele para quem ele aponta constantemente. Como Filho de Deus, em meio aos muitos valores da vida social do homem, ele aponta para aquele que (e somente Ele) bom; em meio aos muitos poderes que os homens usam, e dos quais dependem, para aquele que o nico poderoso; em meio aos tempos e estaes da histria, com as suas esperanas e temores, para aquele que o Senhor de todos os tempos, e que o nico que deve ser temido, e o nico em quem se deve esperar; em meio a tudo que condicionado ele aponta para o No Condicionado. 'Ele no desvia a sua ateno deste mundo para o outro, mas de todos os mundos, presentes e futuros, materiais e espirituais, para aquele que cria todos os mundos, o qual o Outro de todos os mundos. Todavia isto apenas metade do significado de Cristo, considerado moralmente. A outra metade j foi indicada acima no que se disse a respeito do seu amor pelos homens, em relao ao seu amor para com Deus. Porque ele o Filho moral de Deus em seu amor, esperana, f, obedincia e humildade na presena de Deus, ele , igualmente, o mediador moral da vontade do Pai para os homens. Porque ele ama o Pai com a perfeio do eros humano, ele ama os homens com a perfeio do 49

agape divino, de vez que Deus agape. Porque ele obediente vontade do Pai, ele exerce autoridade sobre os homens, exigindo obedincia no sua prpria vontade, mas vontade de Deus. Porque ele confia integralmente em Deus, o qual fiel, ele digno de confiana em sua prpria fidelidade para com os homens. Porque ele exalta a Deus com perfeita humildade, ele humilha os homens, dandolhes boas ddivas alm de todos os seus mritos. De vez que o Pai de Jesus Cristo o que Ele , filiao a Ele envolve o Filho, no em um processo ambguo, mas em um processo ambivalente. Tal filiao envolve o duplo movimento: com o homem para Deus, e com Deus para o homem; do mundo para o Outro, e do Outro para o mundo; da obra para a Graa, e da Graa para a obra; do tempo para o Eterno, e do Eterno para o temporal. No seu carter de Filho moral de Deus, Jesus Cristo no uma figura mediana, metade Deus, metade homem. Ele uma nica pessoa, voltada totalmente, como homem, para Deus, e totalmente voltada, em sua unidade com o Pai, para os homens. Ele mediatrio, no mediano. Ele no um centro de que se irradia amor de Deus e dos homens, obedincia a Deus e a Csar, confiana em Deus e na natureza, esperana na ao divina e na ao humana. Ele, antes, existe como o ponto focal na contnua alternao de movimentos de Deus para o homem e do homem para Deus; e estes movimentos so qualitativamente to diferentes quanto o so agape e eros, autoridade e obedincia, promessa e esperana, humilhao e glorificao, fidelidade e confiana. Outras consideraes alm da de ordem moral devem ser aventadas, se se pretende descrever Jesus Cristo adequadamente. Contudo, como a histria da Igreja e suas teologias o indicam, cada uma dessas consideraes tende para a mesma questo. O poder e atrao que Jesus Cristo exerce sobre os homens nunca provm unicamente dele, mas dele como Filho do Pai. Provm dele, em seu carter de Filho, de dupla maneira: como homem vivendo para Deus, e como Deus vivendo com homens. 50

A crena nele e a lealdade sua causa envolvem homens no duplo movimento do mundo para Deus e de Deus para o mundo. Mesmo quando as teologias deixam de fazer justia a este fato, os cristos, vivendo com Cristo em suas culturas, esto cnscios dele. Pois esto sempre sendo desafiados a abandonar todas as coisas por amor a Deus; e esto sempre sendo enviados de volta ao mundo para ensinar e praticar todas as coisas que lhes tm sido ordenadas. III. POR UMA DEFINIO DE CULTURA Depois desta inadequada definio do significado de Cristo, nos voltamos agora para a tarefa de definir, igualmente em termos tnues, o significado de cultura. Que queremos dizer com o uso desta palavra, quando afirmamos que a igreja crist luta permanentemente com o problema Cristo e cultura? A definio dada ao termo por um telogo deve ser, num caso desta natureza, a definio de um leigo, de vez que ele no pode ter a pretenso de entrar nas questes levantadas por antropologistas profissionais. Todavia, ela deve tambm, pelo menos inicialmente, ser uma definio do fenmeno sem interpretao teolgica, pois que esta interpretao teolgica exatamente o ponto em questo entre os cristos. Para alguns dentre eles a cultura essencialmente atesta, no sentido puramente secular, e no mantm relaes nem positivas nem negativas com o Deus de Jesus Cristo; para outros ela atesta no sentido negativo, sendo uma realidade contra Deus, e, portanto, idlatra; para outros, ainda, ela parece estar solidamente baseada num conhecimento natural e racional de Deus ou Sua lei. A qualidade crist de desprendimento probe a adorao, pelo menos de incio, de qualquer uma destas avaliaes. 51

A cultura para a qual voltamos a nossa ateno no pode ser simplesmente a de uma sociedade particular tal como a greco-romana, a medieval ou a ocidental moderna. Alguns telogos, como tambm alguns antropologistas pensam, de fato, que a f crist intimamente relacionada com a cultura ocidental, quer seja este termo usado para designar uma sociedade histrica contnua, comeada a partir do primeiro sculo A.D., ou para se referir a uma srie de civilizaes associadas mas distintas, como no esquema de Toynbee. Assim Ernst Troeltsch cr que o cristianismo e a cultura ocidental so to inextricavelmente entrelaados que um cristo pouco pode dizer a respeito de sua f a membros de outras civilizaes, os quais, por sua vez, no podem encontrar a Cristo a no ser como um membro do mundo ocidental o faz.30 O prprio Troeltsch, contudo, est altamente cnscio da tenso entre Cristo e a cultura ocidental, de modo que mesmo para um ocidental Jesus Cristo nunca meramente um membro de sua sociedade cultural. Alm disto, os cristos no oriente e todos aqueles que aguardam a emergncia de uma nova civilizao, esto preocupados no somente com o Cristo ocidental, mas com aquele que tem de ser distinto da f ocidental nele, e que relevante vida em outras culturas. Portanto, a cultura, do modo em que a encaramos, no um fenmeno particular, mas geral, muito embora a coisa geral aparea apenas em formas particulares e a despeito de um cristo do oeste no poder pensar no problema a no ser em termos ocidentais. Nem podemos definir a cultura de uma maneira estreita, levando em considerao apenas alguma fase especial da organizao e realizao social do homem. E isto acontece quando o problema enunciado em termos da relao de Cristo com a cincia e a filosofia, ___________ 30. Troeltsch, Enst, Christian Thought, 1923, especialmente as pgs. 21-35; ver tambm De Absolutheit des Christentums, 1929 (3a.ed.) e Gesammelte Schriften, Vol. II, 1913, pgs 779 e seguintes. 52

como na questo revelao e razo, ou em termos de sua relao com a organizao poltica, como na questo Igreja e Estado. O mesmo acontece quando, como no caso de Jakob Burkhardt, "cultura" distinta tanto da religio como do Estado. Ele considera estes trs poderes - religio, Estado e cultura - como sendo "supremamente heterogneos entre si. Cultura, como ele a v, distinta dos outros dois poderes pelo seu carter no autoritrio. Ela a "smula de tudo quanto tem surgido espontaneamente com vistas ao avano da vida material e como expresso de vida moral e espiritual toda,s as relaes sociais, tecnologia, artes, literatura e cincias. o reino do varivel, do livre, do que no necessariamente universal, de tudo que no pode reivindicar autoridade compulsria.31 A ponta de lana de tal cultura linguagem, diz ele, e as mais altas expresses do seu esprito so encontradas nas artes. Sem dvida, a relao de Cristo com esses elementos na civilizao levanta problemas especiais, muito embora no possamos divisar nenhuma demarcao clara de limites entre eles e outros que surgem na sociedade poltica e religiosa. Tampouco so o autoritarismo e a liberdade distribudos como Burkhardt parece crer. confuso e arbitrrio definirmos a cultura como se ela exclusse a religio, e a ltima como se inclusse Cristo, de vez que os problemas com os quais nos ocupamos so muito mais difceis no reino da religio, onde temos de fazer perguntas sobre a conexo de Cristo com as nossas fs sociais. Ainda mais, a cultura ter uma definio um tanto estreita para os nossos propsitos se for distinta da civilizao, usando-se o ltimo termo para designar as formas de vida social mais avanadas, talvez mais urbanas, tcnicas e talvez envelhecidas.32 __________ 31. Force and Freedom, 1943, pg. 107; cf. 140 e seg. 32. Maliliowski, Bronislaw, artigo "Cultura", Encyclopedia of Social Sciences, Vol. IV, pgs. 621 e segs.; Dawson, Christopher, Religion and Culture, 1947, pg. 47, Spengler, Oswald, The Decline of the West, 1926, Vol. I, pgs. 31 e segs., 351 e segs. 53

O que temos em vista quando tratamos com Cristo e cultura aquele processo total da atividade humana e aquele resultado de tal atividade a que ora o nome cultura, ora o nome civilizao, aplicado em linguagem comum.33 Cultura o "ambiente artificial e secundrio" que o homem sobrepe ao natural. Ela abrange a linguagem, hbitos, idias, crenas, costumes, organizao social, artefatos herdados, processos tcnicos e valores.34 Esta "herana social", esta "realidade sui generis", que os escritores do Novo Testamento tinham sempre em mente quando falavam do "mundo", que representada em muitas formas, e a que os cristos como os demais homens esto inevitavelmente sujeitos, o que queremos significar quando falamos de cultura. Embora no possamos nos aventurar a definir a "essncia" desta cultura, podemos descrever algumas de suas caractersticas. De um certo modo ela inextricavelmente ligada vida do homem em sociedade: ela sempre social. "O fato essencial da cultura, como a vivemos e experimentamos, e como a observamos cientificamente", escreve Malinowsky, " a organizao de seres humanos dentro de grupos permanentes.35 Sendo este o fato essencial, ou no, ele uma parte essencial do fato. Indivduos podem usar a cultura sua prpria maneira; eles podem trocar elementos em sua cultura, mas o que eles usam e mudam social. 36 Cultura a herana social que eles recebem e transmitem. Aquilo que puramente particular, que no provm da vida __________ 33. Ver Robinson, James Harvey, artigo "Civilizao", Ency-clopedia Britannica, 14a edio, Vol. V, pg. 735; Brinkmann, Carl, artigo "Civilizao", Enciclopdia de Cincias Sociais, Vol. III, pgs. 525 e seguintes. 34. Malinowski, loc. cit. 35. Malinowski, A Scientific Theory of Culture and Other Essays, 1944, pg. 43. 36. Sobre o indivduo e a sociedade, em relao cultura, ver Benedict, Ruth, Pattens of Culture, 1934, captulos VII e VIII. 54

social nem a penetra, no parte da cultura. De igual modo, a vida social sempre cultural. A antropologia parece ter golpeado completamente a idia romntica de uma sociedade puramente natural, no caracterizada por hbitos, costumes, formas de organizao social, etc., altamente distintos e adquiridos. Cultura e existncia social caminham juntas. Em segundo lugar cultura realizao humana. Ns a distinguimos da natureza pelo fato de vermos nela evidncias de esforo e propsitos humanos. Um rio natureza, um canal cultura; uma pea bruta de quartzo natureza, uma flecha cultura; um gemido natural, uma palavra cultura. Cultura a obra de mentes e mos humanas. aquela poro de herana do homem em qualquer lugar ou tempo que nos foi legada intencional e laboriosamente por outros homens, e no o que nos tem vindo por intermdio de seres no humanos ou atravs de seres humanos que agiram sem inteno de resultados ou sem o controle do processo. Ela inclui, portanto, linguagem, educao, tradio, mito, cincia, arte, filosofia, governo, lei, rito, crena, invenes e tecnologia. Alm do mais, se uma das marcas da cultura o fato de ela ser o resultado de realizaes humanas passadas, a outra est no fato de que ningum pode se apoderar dela sem esforo e realizao de sua prpria parte. Os dons da natureza so recebidos como so comunicados, sem inteno ou esforo consciente do homem; mas os dons da cultura no podem ser possudos sem o empenho da parte do receptor. A linguagem deve ser laboriosamente adquirida; o governo no pode ser mantido sem esforo constante; o mtodo cientfico deve ser reencenado e reorientado em cada gerao. Mesmo os resultados materiais da atividade cultural so inteis, a no ser que sejam acompanhados de um processo de aprendizado que nos capacite a us-los com propriedade. Quer tentemos interpretar os sinais da cultura antiga ou resolver os problemas da civilizao contempornea, esta feio caracterstica sempre despertar a nossa ateno: estamos lidando com aquilo que o homem produziu intencionalmente 55

e com aquilo que o homem pode ou deve fazer. O mundo, na medida em que feito pelo homem e orientado pelo homem, o mundo da cultura. Estas realizaes humanas, em terceiro lugar, so destinadas a um fim ou a alguns fins. O mundo da cultura um mundo de valores. Se devemos, ou no, levantar questes de valor sobre a natureza, ou fazer juzos de valor a respeito das ocorrncias naturais, um caso em debate. Mas, com respeito aos fenmenos da cultura, este problema nunca surge. Temos de admitir que o que os homens tm feito e fazem se destina a um propsito; destina-se a servir ao bem. 37 E o mesmo nunca pode ser descrito sem referncia aos fins nas mentes de inventores e usufruturios. A arte primitiva nos interessa porque ela indica o interesse humano, ritmo, cor, significaes e smbolos; e porque estamos interessados nestas coisas. Fragmentos de vasos de barro so estudados com a esperana de que venham revelar aquilo que os homens do passado tinham em mente e quais os mtodos que divisaram para alcanar os seus fins. Sempre julgamos a cincia e a filosofia, a tecnologia e a educao, quer no passado, quer no presente, com referncia aos valores que foram seguidos por eles e aos valores que nos atraem. Naturalmente, os fins a que servem as realizaes humanas podem mudar. O que foi destinado utilidade pode ser preservado visando satisfao esttica ou harmonia social. Todavia, a relao de valor inegvel onde quer que encontremos cultura. Alm disto, os valores para os quais se voltam estas realizaes humanas so predominantemente os do bom para o homem. Filsofos, nas sociedades culturais, podem argumentar ou que os fins servidos pela cultura so ideais ou naturais, ou que eles so idias de valor dadas viso espiritual ou aos bens naturais, isto , que so fins que interessam ao homem como um ser __________ 37. Assim Malinowski faz uso de um conceito central em sua teoria de cultura: a idia de um sistema organizado de atividades propositais. A Scientific Theory of Culture, caps. V e VI. 56

biolgico. Tanto num caso como no outro, contudo, eles parecem concordar em que o homem deve servir ao seu prprio bem, e que ele a medida de todas as coisas.38 Ao definir os fins que suas atividades devem alcanar na cultura, o homem comea consigo mesmo como o principal valor e como fonte de todos os outros valores. O bom aquilo que bom para ele. Parece evidente, na cultura, que os animais devem ser ou domesticados ou aniquilados, uma vez tais medidas sirvam ao bem do homem; que Deus ou os deuses devem ser adorados tanto quanto for desejvel ou necessrio para a manuteno e desenvolvimento da vida humana; que idias e ideais devem ser servidos em favor da auto-realizao humana. Embora a busca do bom-para-o-homem seja dominante na obra da cultura, no evidente que este antropocentrismo seja exclusivista. no apenas concebvel que os homens devessem estar dispostos a trabalhar e produzir com vista ao bem-estar de algum outro ser, mas parece tambm certo que eles, de fato, em suas culturas, procuram sempre servir a causas que transcendem a existncia humana. Desde as sociedades totmicas at as sociedades modernas, eles se identificam com ordens de ser que incluem mais do que os homens. Eles se definem como representantes da ordem de seres racionais, e procuram realizar o que bom-para-a-razo. Eles tambm servem aos deuses. A tendncia pragmtica de fazer todas as coisas para o bem dos homens parece irrealizvel. Deve-se acrescentar, contudo, que nenhuma cultura realmente humanista num sentido mais lato, pois que somente culturas particulares existem de fato, e em cada uma delas uma sociedade particular ou uma classe em particular (naquela sociedade) tende a se considerar centro e fonte ___________ 38. A tica de Nikolai Hartman, 1932, que, de certo ponto de vista, uma grande filosofia da cultura, apresenta, a um s tempo, um forte argumento em favor do carter transcendente e objetivo dos valores e uma defesa do primado do valor humano. 57

de valor, procurando conseguir aquilo que bom para ela, justificando, embora, tal esforo pela pretenso de ter um status especial, como representante de algo universal. Ainda mais, a cultura em todas as suas formas e variedades est voltada para a concretizao material e temporal dos valores. No quer isto dizer que os bens que o esforo humano procura concretizar sejam necessariamente temporais ou materiais, ainda que o interesse que eles despertam faa parte de toda a aquisio cultural. falaz pensar-se em cultura como sendo [s] materialista, como se aquilo que o homem procurasse conseguir com o seu trabalho fosse sempre a satisfao de suas necessidades, como um ser fsico e temporal. Mesmo as interpretaes econmicas de cultura reconhecem que alm dos bens materiais - isto , dos valores relativos existncia fsica do homem, alm de comida, bebida, roupa, procriao e ordem econmica - os homens, na cultura, procuram valores menos tangveis. Mas mesmo os bens imateriais devem ser concretizados em forma temporal e material; mesmo o bompara-o-homem, como pessoa e mente, deve receber "uma habitao e nome locais". Prestgio e glria por um lado, beleza, verdade e bondade, por outro - para usarmos smbolos insatisfatrios da teoria de valor espiritual fazem-se presentes no sentimento, imaginao ou na viso intelectual. E o esforo humano insiste em incorporar em formas concretas, tangveis, visveis e audveis, o que tem sido discernido imaginativamente. A harmonia e proporo, a forma, ordem e ritmo, os significados e idias que os homens concebem e traam em seu confronto com a natureza, eventos sociais e o mundo dos sonhos, estes, por meio de infinito labor, eles tm de pintar em paredes e telas, de editar como sistema de filosofia e cincia, de esboar em pedra esculpida ou fundir em bronze, de cantar em balada, ode ou sinfonia. Vises de ordem e justia, e esperana de glria so, ao preo de muito sofrimento, incorporadas em 58

leis escritas, ritos dramticos, estruturas de governo, imprios e vidas ascticas. Porque todas estas concretizaes de propsitos so efetuadas em material instvel e perecvel, a atividade cultural quase to devotada conservao de valores quanto sua realizao. Muito da energia que os homens usam em qualquer poca em suas sociedades se presta a essa tarefa complicada de preservar o que eles herdaram e fizeram. Suas casas, escolas e templos, suas estradas e mquinas esto em constante necessidade de conserto. O deserto e o mato ameaam qualquer terreno cultivado. E maiores ainda so os perigos que circundam as conquistas menos materiais do passado. Os sistemas de leis e liberdades, os costumes de inter-relaes sociais, os mtodos de pensamento, as instituies de ensino e