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CRISTO E CULTURA Série encontro e diálogos Volume 3. H. RICHARD NIEBUHR CRISTO E CULTURA Tradução de Jovelino Pereira Ramos Paz e Terra Título do original inglês Christ and culture Copyright 1951, by Harper & Brothers Desenho de capa: Thiago de Mello Distribuição exclusiva: Editora Civilização Brasileira S. A. Rua 7 de Setembro, 97 Rio de Janeiro, GB, Brasil Direitos para a língua portuguesa Cedidos pela HARPER & BROTHERS À EDITORA PAZ E TERRA LTDA. Av. Rio Branco, 156 – 12 o andar, s/ 1222 – Rio de Janeiro que se reserva a propriedade desta tradução. 1967 Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

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CRISTO E CULTURA

Série encontro e diálogosVolume 3.

H. RICHARD NIEBUHR

CRISTO E CULTURA

Tradução de Jovelino Pereira Ramos

Paz e Terra

Título do original inglêsChrist and cultureCopyright 1951, by Harper & Brothers

Desenho de capa:Thiago de Mello

Distribuição exclusiva:Editora Civilização Brasileira S. A.Rua 7 de Setembro, 97Rio de Janeiro, GB, Brasil

Direitos para a língua portuguesaCedidos pela HARPER & BROTHERSÀ EDITORA PAZ E TERRA LTDA.Av. Rio Branco, 156 – 12o andar, s/ 1222 – Rio de Janeiroque se reserva a propriedade desta tradução.1967Impresso nos Estados Unidos do BrasilPrinted in the United States of Brazil

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Índice

Prefácio do Tradutor 9

Agradecimentos 11

Introdução 15

Capítulo Primeiro – O Problema Duradouro 21

Capítulo Segundo – Cristo Contra a Cultura 67

Capítulo Terceiro – O Cristo da Cultura 109

Capítulo Quarto – Cristo Acima da Cultura 143

Capítulo Quinto – Cristo e Cultura em Paradoxo 179

Capítulo Sexto – Cristo, o Transformador da Cultura 223

Capítulo Sétimo – Um “Pós-escrito não-científico eConclusivo” 267

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PREFÁCIO DO TRADUTOR

Fui aluno, na Escola de Teologia da Universidade deYale, do Professor Richard Niebuhr, de quem recebi aautorização para traduzir este livro. Aqui está atradução. Não foi sem um certo receio que a fiz. O autorexpõe com muita clareza as suas idéias. Mas às vezes nosdefrontamos com termos que envolvem nuances de significadoque somente à custa de muito esforço podem serreproduzidas em nossa língua. Ocorre ainda que o presentetratado ético-teológico é uma das melhores produçõessurgidas neste campo nos últimos cinqüenta anos, o que vemcolocar nos ombros do tradutor uma sobrecarga deresponsabilidade. E, se não contasse com o incentivo dosamigos, com o apoio decisivo de Waldo César, secretário daJunta Latino-Americana de Igreja e Sociedade, com a ajudapreciosa da minha esposa no seu conhecimento do inglês -sua língua materna - e, acima de tudo, se não estivesseabsolutamente convicto da importância destas reflexõespara a comunidade cristã no Brasil em seu confronto com apresente situação cultural, dificilmente ousaria traduzi-las.

Não se pode dizer que este trabalho expresse todo opensamento de Richard Niebuhr. Mas os traçoscaracterísticos da sua vida e da sua obra de grandepensador teológico estão bem realçados aqui. Certa vez elemesmo afirmou que não tinha

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um pensamento teológico, mas sim um pensar teológico (atheological thinking). E no Cristo e Cultura, de fato, oque vamos encontrar é o cristão Richard Niebuhr pensandoteologicamente.

Em Richard Niebuhr não se encontram nem dogmas nempretensões de resolver problemas insolúveis, mas sim oesforço imenso e honesto de focalizar e de dar nova vidaàs questões passadas e presentes relativas ao por quê, aocomo e ao para quê do encontro entre os cristãos e o seucontexto cultural. E assim nos revela o que vai percebendona História da Igreja e assinalando o que é fundamental,característico, e relativamente normativo da vida dacomunidade cristã em seu confronto com o mundo.

Richard Niebuhr é um lídimo representante da Igreja deJesus Cristo, cuja história interpreta como sendo aexpressão real da vida de uma comunidade onde o passado, opresente e o futuro se desenvolvem sob a orientaçãosoberana do Deus Trino e lançando luz sobre a natureza,sentido e propósito de todas as coisas.

Com o leitor esta obra clássica da Ética Cristã. Aopublicá-la, a Editora PAZ E TERRA presta grande serviço àdiscussão ora em processo no Brasil sobre o sentido dacultura.

JOVELINO PEREIRA RAMOS10

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AGRADECIMENTOS

O presente ensaio sobre a constante luta que a Igrejaenfrenta, em dois planos - com o seu Senhor e com asociedade cultural (com que vive essencialmente associada)- representa parte do resultado de muitos anos de estudo,reflexão e magistério. A oportunidade propícia para aorganização e composição por escrito desse material surgiucom um convite que me fez o Seminário TeológicoPresbiteriano de Austin para apresentar e publicar umasérie de preleções sobre o assunto. Mas por trás dosesforços de condensar observações e reflexões em cincoconferências, para depois elaborá-las, refiná-las e revê-las, pairam muitas outras tentativas de compreender eorganizar certos dados altamente complexos. É o que possodizer, por exemplo, dos meus cursos sobre História e sobreos tipos de ética cristã, ministrados na Escola deTeologia da Universidade de Yale, precursores imediatosdeste trabalho.

Quando o preparo de uma obra consome tanto tempo, asdívidas acumuladas pelo autor são tão numerosas e tãograndes que a pública manifestação de agradecimento é algode embaraçoso, visto que sempre revela falta de adequadagratidão e deficiente habilidade na assimilação dascontribuições que lhe são feitas. Há, neste livro,reflexões que considero frutos do meu próprio trabalho,mas que, em última análise, são, de fato, idéias de outraspessoas, de que lancei mão. Alguns dos meus ex-alunos, aolerem estas páginas, poderão dizer, num ou noutro ponto:“aqui está um fato ou uma interpretação para a qual chameia atenção do meu professor”; mas inutilmente procurarãouma nota ao pé da página registrando o devidoreconhecimento. Colegas que têm escrito sobre assuntosrelacionados vão receber o mesmo tratamento. Contudo,sinto mais prazer do que embaraço ao reconhecer estadívida não assinalada para com os membros desta amplacomunidade, onde todos sabem que ninguém possui coisaalguma que não

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lhe tenha sido dada, e sabem também que assim como temosrecebido de graça, de graça devemos dar.

Certamente estou cônscio do quanto devo àquele teólogoe historiador que se preocupou, durante toda a sua vida,com o problema Igreja e cultura: Ernst Troeltsch. Opresente livro de certo modo nada mais procura fazer doque, em parte suplementar, e em parte corrigir a sua obrasobre o Ensino Social das Igrejas Cristãs*. Troeltsch meensinou a respeitar a multiformidade e a individualidadedos movimentos e dos homens da história cristã; a recusar-me a forçar esta rica variedade com moldes conceituaispré-fabricados; mas também a procurar o logos no mythos, arazão na história, a essência na existência. Ajudou-me aaceitar - e a lucrar com tal aceitação - a relatividadenão somente dos objetos históricos, mas também do sujeitohistórico, do observador histórico e do Intérpretehistórico. E, se considero o meu ensaio um esforço nosentido de corrigir a análise de Troeltsch sobre osencontros da Igreja com o mundo, é principalmente porqueprocuro entender este relativismo histórico à luz dorelativismo teológico e teocêntrico. Creio que é umaaberração da fé e da razão o esforço por absolutizar ofinito, mas creio também que toda esta história relativade homens e movimentos finitos está sob o governo de umDeus absoluto. Isaías 10, I Coríntios 12 e a Cidade deDeus, de Agostinho, indicam o contexto em que asrelatividades da história ganham sentido. Para a análisedos cinco tipos principais, que tomei em substituição aostrês de Troeltsch, tenho recebido muita ajuda da obraRazão e Revelação na Idade Média1, do professor EtieneGilson, bem como das frutíferas sugestões de C. J. Jung noseu livro Tipos Psicológicos.2

Na medida em que a complexidade dos dados e ahabilidade do autor o permitiram, muitos colegas, parentese amigos ajudaram com seus conselhos, críticas eincentivos no esforço de dar às minhas reflexões a unidadee a precisão exigidas pela comunicação por escrito.Registro um agradecimento especial aos meus colegasprofessores Paul Schubert e Raymond Morris; à__________(*) The Social Teachings of Christian Churches.1. Reason and Revelation in the Middle Ages.2. Psychological, Types.

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minha irmã e meu irmão, professores Hulda e ReinholdNiebuhr; ao senhor Dudley Zuver da Harper & Brothers, aquem devo a sugestão do último capítulo; à minha filha e àsenhora Durothy Ansley que cuidaram da partedatilográfica; ao professor Edwin Penick, que devotoumeticulosa atenção às folhas de prova e preparou o índice,e, enfim, à minha esposa. Relembro com gratidão a amávelacolhida que me foi dispensada, em Austin, pelo PresidenteStitt e seus colegas, bem como a parte que lhes coube emajudar-me a dar a esta obra a presente e provisóriaconclusão.

New Haven, Connecticut

H. RICHARD NIEBUHR13

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Introdução

É necessário que tanto a semente como a palavramorra para que nos possam ser úteis. A força daboa nova, como força de humanização, pressupõe,para sua eficácia, a destruição das estruturasque a contém. Odres velhos não resistem ao vinhonovo. A revolução, como renovação da vida humana,implica na destruição das estruturas de injustiçae dominação, e a sua substituição por estruturasque atendam às necessidades e aspirações humanas,favorecendo a libertação do homem.

O SÉCULO PRESENTE assinala na história da humanidadeum período de transição de extraordinária importância.Duas guerras mundiais, revoluções sociais na América,Europa, Ásia e África - tirando a maioria da população dospaíses subdesenvolvidos da dominação do sistema colonial -o extraordinário desenvolvimento da técnica, o surgimentoda energia atômica como arma política, são fatos cujosignificado põe em xeque toda visão conservadora etradicional no encaminhamento

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da solução dos problemas humanos. Vivemos um períodorevolucionário em todos os aspectos. Para os cristãos oSéculo XX marcou o fim da cristandade, o fim da chamada.“Era Constantiniana”, ou seja, o período históricoiniciado pela ascensão de Constantino no Império Romano,quando a Igreja gozou de uma posição especial dentro dasociedade em geral e em relação ao Estado em particular.Do meio da crise da Igreja surge a nova realidade domovimento ecumênico e a irreprimível tendência àsecularização, o que significa a libertação dos cristãosde suas amarras culturais-religiosas com o passado,amarras que impedem um testemunho relevante esignificativo no mundo de hoje. Neste sentido, a grandecontribuição da teologia ecumênica contemporânea consistiuem aprofundar a crítica à religião feita por Karl Marx noSéculo XIX.

Sofrendo o impacto do trabalho revolucionário de Marx,Karl Barth, o conhecido e influente teólogo suíço, afirmaque religião é mesmo a mais alta expressão do pecadohumano. Paul Tillich, teólogo alemão refugiado de Hitlernos Estados Unidos, afirma que Jesus veio ao mundo paraprovar que a religião não compensa e que o Evangelhosignifica exatamente a libertação da canga da religião dalei e da lei da religião. Estas afirmações ilustramcertamente a necessidade de ganharmos maior precisão nostermos que usamos correntemente nessa área.

É necessário distinguir religião, canga e instrumentode dominação, de Evangelho – mensagem de libertação doscativos; distinguir entre fé, resposta positiva ao ato delibertação, e cultura – meio através do qual ela se deveexpressar. É necessário superar definitivamente conceitosabsurdos como o de uma ‘fé religiosa’, pois fé e religiãosão inconciliáveis. Uma só pode subsistir com osufocamento da outra. A fé é a semente fértil. A religiãoé a semente esterilizada que pode servir para comer oupara o comércio. A fé é o futuro. A religião é o apego aopassado, à segurança,

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ao status quo, muitas vezes feita em nome do futuro, equase sempre feita em benefício dos comerciantes. A fé é odesapego dos que aguardam a madrugada e não perdem tempoolhando para trás. A fé é a loucura, a audácia. A religiãoé a prudência, o instinto de conservação.

A grande traição da Igreja como instituição consisteem que, ao invés de constituir-se portadora e testemunhado Evangelho, ela se apresentou como “defensora” doEvangelho. Isto na prática se refletiu num esforço dedomesticar o Evangelho, a serviço de determinada cultura edos seus interesses arraigados. Como resultado, ao invésde seguir o caminho da fé, a Igreja se colocou na defesados privilégios que lhe garantiam a segurança, nasantificação do status quo, e a religião resultante dessatraição tornou-se a principal sustentação da ideologia dasclasses dominantes, da luta pela santificação dos objetos.

No relacionamento dos cristãos dentro do mundo modernoé certamente a palavra de Dietrich Bonhoeffer, enforcadopor Hitler nos últimos dias da II Guerra, a que nos trazmaior esclarecimento aos problemas levantados peladesintegração da religião diante da cultura moderna. Fala-nos da chegada da humanidade à idade adulta, onde oproblema de Deus e da religião não tem mais relevância ouinteresse. Levanta a perspectiva aos cristãos de viveremnum mundo sem Deus e sem religião. Isto não lhe parecetrágico más, até mesmo um motivo de satisfação. Lembra-nosque mesmo Jesus não foi um homem religioso (o homem nãofoi feito por causa do sábado…) e quando se ocupou dareligião e dos religiosos foi para denunciá-los (Ai de vósescribas e fariseus…).

Quais serão as conseqüências desta reformulação deconceitos e de posição no quadro brasileiro e latino-americano-tradicionalmente religiosos? Custa a crer, naverdade, que os esforços de uma crítica ideológica eestrutural da situação em que vivemos tenham sido

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empreendidos sem um estudo sério das estruturas religiosasque herdamos da era colonial.

Qualquer que tivesse lido Marx com o mínimo cuidadoteria aprendido que “a critica a religião é o início detoda a crítica”. Possivelmente a influência positivistanos tenha levado a uma atitude quase metafísica em relaçãoao problema, sem preocupação pelo estudo profundo e oexame concreto e objetivo da realidade religiosa nos seusrelacionamentos históricos, sociais, estruturais eideológicos. Ao invés do conhecimento da realidade temospresenciado simplesmente a sua negação. (Oanticatolicismo, entretanto, não substitui o conhecimentoda teologia de São Tomás). O primeiro resultado práticodesta imprecisão é a lamentável falta de profundidade dotrabalho político da maioria dos que têm tomado ainiciativa de conduzir as lutas sociais no Brasil e naAmérica Latina.

Outra conseqüência prática de uma atitude simplesmenteanticatólica, foi que tanto o protestantismo como omarxismo oficial, sem adquirirem aquilo que de virtudepoderia oferecer o catolicismo, aperfeiçoaram-se nos seusvícios. Historicamente se verifica que as atitudessistemáticas de negação (anticatolicismo, anticomunismo,etc.) têm sido usadas pelas forças de dominação socialpara estimular as divisões no selo do povo que tembasicamente as mesmas necessidades e aspirações. O fatoque a iniciativa desta guerra tenha partido doanticomunismo e antiprotestantismo não exime as partesagredidas de atuarem inteligentemente e com profundoconhecimento da força e natureza do agressor. Exatamente ocontrário é verdade. Que o centro da luta ideológica quese trava em defesa dos privilégios dominantes sejacolocado em torno de uma civilização chamada cristã eocidental testemunha claramente o fracasso, primeiramentedos cristãos que não denunciaram efetivamente a falsidadedessa afirmação, e em segundo lugar dos revolucionários emgeral que não se aprofundaram na crítica ideológica, nãotendo

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levado em conta as realidades culturais que servem decontexto à luta política.

Em termos históricos e culturais o surgimento domarxismo está estreitamente vinculado a culturas queserviram de berço ao protestantismo. A luta política deMarx teve como cenário especialmente Alemanha e aInglaterra fortemente influenciadas pela tradiçãoreformada. Engels, Hegel, e o próprio Marx, formaram-sedentro do protestantismo. Como segunda etapa, o marxismoteve a sua primeira experiência histórica numa culturadominada pela Igreja Ortodoxa, de cujos seminários saíramStalin, Mikoyan e muitos outros de seus quadros dedireção. Isto sem entrar no exame da influência dojudaísmo que, através da contribuição de Trotsky e outros,pesou de forma notável no triunfo da revolução de outubro.Quanto ao catolicismo, a relação tem sido extremamenteambígua. É nos países católicos da Europa que se encontramhoje os maiores partidos marxistas. Possivelmentecontaminados pelo “realismo” existente nos seus meiosculturais, estes partidos parecem extremamente cuidadososevitando qualquer iniciativa que possa colocar em risco aparcela de influência de que dispõem atualmente. Em nenhumpaís católico o marxismo se constitui como instrumento dasclasses dominadas numa luta aberta pelo poder. O confrontoaté agora tem sido um misto de hostilidade e acomodação. Ocaso cubano confirma a regra.

A secularização, como abandono progressivo das formasde vida religiosa por parte dos cristãos, obedece a duasrazões: primeira, que na cultura que se vai formando numasociedade em rápido processo de industrialização, areligião perde a sua importância na solução e explicaçãodos problemas humanos; segunda, que na compreensão maisprofunda do Evangelho os cristãos estão compreendendo quehistoricamente a religião tem sido o grande obstáculo àpropagação do Evangelho.

O tema da secularização, pela sua importância, deveráocupar o próprio centro dos debates ecumênicos.

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Estes, por sua vez, carecerão da contribuição dos nãocristãos, que terão que ser incluídos em qualquer círculoverdadeiramente ecumênico.

Diante das questões levantadas, extremamente válidas eurgentes para a situação brasileira, o livro de RichardNiebuhr assume importância fundamental, tanto para os queesperam pela madrugada da revolução brasileira, como paraaqueles que buscam novas perspectivas para os cristãosaprisionados dentro das estruturas fossilizadas dasigrejas. O seu trabalho é um instrumento básico para oconhecimento dos relacionamentos que se têm processadohistoricamente entre o Evangelho e a cultura, ou asatitudes que os cristãos têm mantido face ao problema dorelacionamento do Evangelho com a cultura. As observaçõesque devem resultar de um livro como este têm importânciapolítica fundamental. Quando constatamos que a atitude damaioria dos cristãos em relação à cultura nem sempre foi aque atualmente prevalece, está implícita a possibilidadede que esta atitude pode evolver ou mudar. Este é, em si,um fato que nos interessa muitíssimo num paíspredominantemente católico que vive as antevésperas de umarevolução social e necessita estar preparado para viverplenamente a libertação esperada.

O presente livro é uma contribuição extraordinária àsociologia do cristianismo, e nele se faz uma das maisimportantes contribuições ao diálogo ecumênico, quecertamente não ficará restrito às paredes emboloradas dostemplos.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

O PROBLEMA DURADOURO

I. O PROBLEMA

DESENVOLVE-SE nos nossos dias debate multiforme acercadas relações entre Cristianismo e civilização.Historiadores e teólogos, estadistas e clérigos, católicose protestantes, cristãos e anticristãos participam dele.Publicamente o mesmo se manifesta nas atividades defacções rivais e, intimamente, nos conflitos deconsciência. Algumas vezes se concentra em questõesespecíficas. Por exemplo, a que se refere ao papel da fécristã dentro das diretrizes gerais da educação, ou àimportância da ética cristã para a vida econômica. Àsvezes envolve questões mais amplas, como aresponsabilidade da Igreja para com a ordem social ou anecessidade de os seguidores de Cristo se separaremnovamente do mundo.

O debate é tão multiforme quanto confuso. Quando aquestão parece ter sido claramente definida como situadaentre os expoentes de uma civilização cristã e

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os defensores não cristãos de uma sociedade totalmentesecularizada, novas perplexidades surgem, visto quecrentes devotos parecem estar advogando a mesma causa dossecularistas, postulando, por exemplo, a eliminação dareligião da área da educação pública ou o apoio do cristãoa movimentos políticos aparentemente anticristãos. Tantasvozes são ouvidas, tantas asserções confiantes másdivergentes são feitas a respeito da resposta cristã aoproblema social, tantas questões são levantadas, que odesnorteamento e a incerteza cercam a muitos cristãos, detodos os lados.

Será bom lembrar, neste ponto, que a questãoCristianismo e civilização não é, de modo nenhum, nova;que nesta área a perplexidade cristã tem sido perene e queo problema tem atravessado os séculos da nossa era cristã.É bom recordar, também, que as repetidas lutas doscristãos com este problema não produziram uma respostacristã única, exclusiva, mas apenas uma série de respostastípicas que, em seu conjunto, para a fé, representamfases da estratégia da Igreja militante no mundo. Essaestratégia, contudo, por estar na mente do Capitão, antesque nas dos tenentes, não está sob o controle dos últimos.A resposta de Cristo ao problema da cultura humana é umacoisa. As respostas cristãs são outra coisa; e osseguidores de Cristo estão convictos, de que ele usa assuas várias obras para cumprir a Sua própria. O propósitodos capítulos seguintes é apresentar respostas cristãstípicas ao problema Cristo e cultura e assim contribuirpara a compreensão mútua dos várias vezes em conflito. Acrença que paira atrás deste esforço é, contudo, aconvicção de que Cristo, como senhor vivente, estárespondendo a esta questão na totalidade da história e davida, de um modo que transcende a sabedoria de todos osseus intérpretes, utilizando-lhes, todavia, as percepçõesparciais e os inevitáveis conflitos.

O problema duradouro surgiu, evidentemente, nos diasda humanidade de Jesus Cristo quando ele, que

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“era um judeu e… continuou sendo um judeu até o seu últimosuspiro”,1 confrontou a cultura judaica com um desafioduro. O Rabi Klausner descreveu em termos modernos comopareceu aos fariseus e saduceus o problema Jesus ecultura; e ele defende o repúdio destes ao Nazareno pelofato de que ele punha em perigo a civilização judaica.Embora Jesus fosse um produto daquela cultura, a tal pontoque não há uma só palavra de conselho ético ou religiosonos Evangelhos dos quais não se encontra paralelo nasescrituras judaicas -, todavia, diz Klausner, ele a pôs emperigo pelo fato de haver abstraído religião e ética doresto da vida social, e assim aguardado o estabelecimentomediante poder divino apenas, de um “reino não destemundo”. “O judaísmo, no entanto, não é apenas uma religiãoe não é apenas ética. É a soma total de todas asnecessidades de uma nação que tem a base religiosa comofundamento - Judaísmo é uma vida nacional, uma vida em quereligião nacional e princípios éticos humanos se abraçammás não se engolfam um no outro. Jesus veio e pôs de ladotodas as exigências da vida nacional. - …Em seu lugar elenada pôs a não ser um sistema ético religioso ligado à suaconcepção de divindade”2. Tivesse ele empreendido reformara cultura religiosa e nacional, eliminando o que eraarcaico na lei cerimonial e civil e teria sido, então,mais um benfeitor da sua sociedade; mas ao invés dereformar a cultura ele a ignorou. “Ele não veio paraenriquecer o conhecimento, arte e cultura da sua nação,mas para abolir até mesmo a cultura que ela possuía presaà religião”. Ele substituiu a justiça civil pelomandamento da não resistência, o que deveria resultar naperda de toda ordem social, as leis sociais e a proteçãoda vida familiar, ele às substituiu pela proibição de tododivórcio e pelo louvor daqueles que “se fizeram -

_____________1. Klausner, Joseph, Jesus of Nazareth, pág. 388.2. Ibid. pág. 390.

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eunucos por amor ao reino dos céus”; ao invés demanifestar interesse pelo trabalho, pelas conquistaseconômicas e políticas, recomendou a vida despreocupadacomo exemplificada nos pássaros e nos lírios; ignorou atéos requisitos da justiça distributiva vigente quandodisse: “Homem, quem me pôs por juiz ou repartidor entrevós? Daí - conclui Klausner - “Jesus ignorou tudo o quedizia respeito à civilização material. Neste sentido elenão pertence à civilização”.3 Portanto, seu povo orejeitou, e os “dois mil anos da cristandade não judaicatêm provado que o povo judeu não errou”.4

Nem todos os judeus dos seus dias rejeitaram Jesus emnome de sua cultura; e os dois mil anos de cristandade nãojudaica e de judaísmo não cristão podem ser invocados paravalidar não só a proposição de que Jesus punha a culturaem perigo, como muitas outras. Mas é evidente que essesdois milênios têm sido exatamente de lutas com esteproblema. Não somente os judeus, mas também os gregos e osromanos, os medievais e os modernos, os ocidentais e osorientais têm rejeitado Jesus por verem nele uma ameaça àsua cultura.

Embora a história do ataque da civilização greco-romana ao Evangelho seja contada quase sempre apenas emtermos de perseguição política, ela representa um doscapítulos dramáticos de qualquer história da culturaocidental e da Igreja. A animosidade popular baseada napiedade social, as polêmicas literárias, as objeçõesfilosóficas, a resistência sacerdotal e, sem dúvida, adefensiva econômica, desempenharam certo papel na rejeiçãode Cristo, pois o problema levantado por ele foiamplamente cultural e não somente político. De fato, oEstado foi menos apressado do que outras instituições egrupos em se armar contra ele e seus___________3. Ibid., págs. 373-375.4. Ibid., pág. 391.

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discípulos.5 Nos tempos modernos o conflito aberto surge denovo na medida em que não apenas os expoentes dassociedades comunistas e nacionalistas, mas também osardorosos campeões de civilizações humanísticas edemocráticas, têm discernido em Jesus Cristo um inimigodos interesses culturais.

As situações históricas e sociais em que têm ocorridotais rejeições de Jesus Cristo são extremamente diversas.As motivações pessoais e de grupos opositores têm sido demuitos tipos. As crenças filosóficas e científicasarregimentadas contra as convicções cristãs,freqüentemente se opõem umas às outras mais severamente doque àquelas convicções propriamente ditas. Todavia, no quetange à relação de Jesus Cristo com a cultura, certaunanimidade razoável pode ser encontrada entre essescríticos discrepantes. Espiritualistas antigos ematerialistas modernos; romanos piedosos que acusaram ocristianismo de ateísmo e ateus do século dezenove quecondenaram a sua fé teística; nacionalistas e humanistas,todos parecem estar ofendidos pelos mesmos elementos doEvangelho e usam argumentos semelhantes para defender asua cultura contra ele.

Entre os argumentos correntes destaca-se a acusação,como dizia Gibbon sobre o caso romano, de que os cristãossão “animados pelo descaso para com a presente existênciae pela confiança na imortalidade”.6

__________5. “A batalha do Cristianismo com a fé interior das massaspagãs, com as convicções dos espíritos líderes, foiincomparavelmente mais difícil do que a luta com o poderdo Estado Romano. A vitória da nova fé, em conseqüência,foi uma conquista muito maior do que se pensavaantigamente, de maneira motivada pelo menosprezo aopaganismo”. Geffcken, Johannes, Der Ausgang, des Gri-echisch-Roemischen Heidentums, 1920, pág. 1. Para outrasconsiderações sobre o conflito ver Cambridge AncientHistory, Vol. XIII, 1939, e Cochrane, C.N., Christianityand Classical Culture, 1940.6. The Decline and Fall of the Roman Empire, Modern Li-brary, Vol. I, pág. 402.

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Esta fé, com os seus dois gumes, tem frustrado e irritadoos glorificadores da civilização moderna bem como osdefensores de Roma, os revolucionários radicais e ospreservadores da velha ordem, os crentes no progressocontínuo e os antecipadores desalentados do declínio dacultura. Não é uma atitude que pode ser atribuída a umcorpo deficiente de discípulos, em salvaguarda do Mestre,de vez que as declarações deste sobre a preocupação combebida e comida, sobre a falta de importância dos tesourosda terra e sobre o temor dos que podem tirar a vida, bemcomo a sua rejeição na vida e na morte do poder temporal,fazem dele a fonte inequívoca das convicções dos seusseguidores. Não se trata de atitude que se possa desprezarcomo característica de alguns cristãos apenas - aquelesque acreditam num fim iminente do mundo, ou os ultra-espiritualistas. Ela está ligada a várias concepções dahistória e a várias idéias sobre espírito e matéria.Trata-se de atitude desconcertante, pois vincula umaparente desprezo pela presente existência a uma grandepreocupação com os homens existentes; não se atemorizafrente às perspectivas de condenação de todas as obras dohomem, e nem se perde em desesperos mas, antes, confia. Ocristianismo parece ameaçar a cultura, neste ponto, nãotanto por profetizar que das realizações humanas nãoficará pedra sobre pedra, mas porque Cristo capacita oshomens a considerar tamanho desastre com serenidade,dirigindo suas esperanças para o outro mundo, privando-os,portanto, de motivação para se envolverem no laborincessante de preservar a imensa mas insegura herançasocial. Celsus, portanto, passa de um ataque aocristianismo a um apelo aos crentes no sentido de que nãoponham em perigo o império ameaçado pela sua ausência nasresponsabilidades públicas de defesa e reconstrução. Amesma atitude cristã, contudo, provoca a hostilidade deMarx e Lênin no sentido de que os cristãos não sepreocupam suficientemente com a existência temporal, aponto de se envolverem numa luta sem reservas visando adestruição

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de uma velha ordem e a construção de uma nova. E conseguemexplicar tal procedimento somente pela suposição de que afé cristã é um ópio religioso usado pelos mais afortunadospara entorpecer o povo que, por sua vez, deveria estar bemconvicto de que não existe nenhuma vida além da cultura.

Outro argumento comum levantado contra Cristo, pelosseus antagonistas culturais de várias épocas e tendências,é o de que ele induz os homens a confiarem na graça deDeus ao invés de convocá-los para as realizações humanas.Que teria acontecido aos romanos, pergunta Celsus, setivessem seguido o mandamento de confiar apenas em Deus?Não teriam ficado na mesma situação dos judeus, sem umpedaço de terra própria e não seriam eles perseguidos comocriminosos, como os cristãos o foram?7 Filósofos modernosda cultura, como Nikolai Hartmann, vêem nesta confiança emDeus uma antinomia à ética da cultura com a sua necessáriaconcentração no esforço do homem.8 Os marxistas, crendo queo homem faz a história, consideram a confiança na graça deDeus como sendo um entorpecente tão poderoso como aesperança do céu. Os reformadores humanistas e democratasda sociedade acusam os cristãos de “quietismo”, enquanto asabedoria popular expressa tolerante descrença a respeitoda graça, dizendo que Deus ajuda àqueles que se ajudam e,ainda mais, que devemos viver em termos de “fé em Deus epé na tábua”.

Um terceiro ataque de ordem cultural a Jesus Cristo esua Igreja, embora não muito freqüente, é o de que elessão intolerantes. Não se tratando de objeção que umacrença intolerante levantaria contra outra, não ocorre elade queixa dos comunistas. Trata-se, antes, da desaprovaçãocom que a descrença enfrenta__________7. Orígenes, Contra Celsus, VIII, 1 (Ante-Nicene Fathers,Vol. IV, pág. 666).8. Hartmann, Nikolai, Ethics, 1932, Vol. III, págs.226 esegs.

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a convicção. Gibbon diz que a antiga civilização romanafoi forçada a rejeitar o cristianismo exatamente porqueRoma era tolerante. A sua cultura, com uma grandevariedade de costumes e religiões, sobreviveria somente sereverência e assentimento fossem tributados às muitas edesordenadas tradições e cerimônias das nações que aconstituíam. Era de se esperar, portanto, “que se unissemcom indignação contra qualquer seita de pessoas que seseparasse da comunhão da humanidade, pretendendo ter aposse exclusiva do conhecimento divino e desdenhando todaforma de louvor, exceto a sua, como ímpia e idólatra”.9 Arespeito dos judeus, que mantinham as mesmas convicçõesdos cristãos sobre os deuses e ídolos, os romanos podiamser mais tolerantes, pelo fato de eles constituírem numanação distinta, com tradições antigas, e por secontentarem, na maioria dos casos, em permanecer fora davida social. Os cristãos, ao contrário, eram membros dasociedade romana, e expressavam, implícita eexplicitamente, no meio daquela sociedade, o seu escárniopelas religiões do povo. Pareciam, pois, traidores quedissolviam os sagrados laços de costume e educação,violando as instituições religiosas do seu país,presunçosamente desprezando aquilo que os seus pais criamcomo verdadeiro e reverenciavam como sagrado.10 Precisamosacrescentar que a tolerância romana, como a tolerânciademocrática moderna, tinha os seus limites exatamente nofato de ser mantida como política social, com vista àmanutenção da unidade. Qualquer que fosse a religiãoseguida pelo homem, a homenagem ao César era eventualmenterequerida.11 Mas Cristo e os cristãos ameaçaram a unidadeda cultura em ambos os pontos com o seu monoteísmoradical,_____________9. Op. cit., Vol. I, pág. 446.10. Ibid., pág. 448.11. Cambridge Ancient History, Vol. XIII, págs. 409 eseguintes; 356 e segs.; Cochrane, C. N., op. cit., págs.115 e seguintes.

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a fé em um Deus que era muito diferente daqueleuniversalismo pagão que procurava unificar muitasdivindades e muitos cultos sob um monarca terreno oucelestial. O problema político que tal monoteísmoapresenta aos expoentes de uma cultura nacional ouimperial tem sido enormemente obscurecido nos temposmodernos, mas se tornou muito evidente nos ataquesanticristãos e especialmente antijudaicos do nacional-socialismo alemão.12 A divindade, ao que parece, não criaembaraço apenas para reis mas também para outros símbolosdo poder político; e o monoteísmo os destitui de sua aurasagrada. O cristo que se recusa a adorar a Satã a fim de aganhar os reinos do mundo é seguido pelos cristãos, queadoram somente a Cristo em unidade com o Senhor a quem eleserve. E isto é intolerável a todos os defensores dasociedade que aceitam a adoração de muitos deuses, desdeque a democracia, ou a América, ou a Alemanha, ou oImpério, receba a sua devida homenagem religiosa. Oantagonismo que a tolerante cultura moderna faz a Cristoé, de fato, freqüentemente disfarçado. Porque chamam dereligiosas as suas práticas religiosas, mas reserva estetermo para aplicá-lo a certos ritos específicos ligados ainstituições oficialmente reconhecidas como sagradas; etambém porque considera o que chama de religião como sendoum dos muitos interesses que podem ser colocados ao ladoda economia, da arte, da ciência, da política e dastécnicas. Disto resulta a objeção da cultura contra omonoteísmo cristão em afirmações tais como a de que a fécristã deve aprender a se dar bem com outras religiões. Oque freqüentemente se quer dizer com isto é que nãosomente as pretensões de grupos religiosos, mas toda aconsideração das reivindicações de Cristo e de Deus devemser banidas da esfera onde reinam outros deuses, chamadosvalores. A acusação implícita contra a fé cristã ésemelhante_________12. Ver Barth, Karl The Church and The Political Problemof Our Day, 1939; Hayes, Carlton J. H. Essays in National-ism, 1933.

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à anterior: ela põe em perigo a sociedade por atacar a suavida religiosa; destitui as instituições sociais do seucaráter cultural e sagrado; e pela sua recusa em olvidaras superstições pias do politeísmo tolerante, a fé cristãameaça a unidade social. A acusação paira não apenascontra organizações cristãs que usam meios coercivos paracombater o que definem como religiões falsas, mas semanifesta contra a própria fé.

Outros pontos são freqüentemente ressaltados nosataques a Cristo e ao Cristianismo por aqueles que nelesvêem os inimigos da cultura. Diz-se que o perdão queCristo pratica e ensina é irreconciliável com os reclamosda justiça ou com o senso de responsabilidade moral dohomem livre. As teses do sermão da montanha a respeito daira e resistência ao mal, dos jurados e do matrimônio, daangústia e da propriedade, são tidas como incompatíveiscom os deveres da vida em sociedade. A exaltação cristãdos humildes ofende aristocratas e nietzscheanos, por umlado, e defensores do proletariado, por outro. Ainacessibilidade da sabedoria de Cristo aos sábios eprudentes - e sua consecução pelos simples e pelascrianças de peito - desnorteia os lideres da cultura ouprovoca-lhes o escárnio.

Embora esses ataques a Cristo e à fé cristã sublinheme tragam à luz - às vezes em formas exóticas - a naturezada questão, não é a defesa contra eles que constitui oproblema cristão. Não apenas pagãos que rejeitam Cristo,mas crentes que o aceitam acham difícil combinar as suasreivindicações com as exigências da sociedade em quevivem. Luta e pacificação, vitória e reconciliação vêm àtona não somente onde as partes que se consideram cristãse anticristãs se defrontam. Freqüentemente o debate sobreCristo e cultura existe entre os próprios cristãos e nasprofundezas escondidas da consciência individual, não comoluta e acomodação de crença com a descrença, mas como lutae reconciliação de fé com fé. A questão Cristo e culturaestava presente não apenas na luta de Paulo com osjudaizantes e helenizadores do Evangelho,

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mas também no seu esforço por traduzi-lo na linguagem epensamento gregos. O problema aparece nas primeiras lutasda Igreja com o Império, com as religiões e filosofias domundo mediterrâneo, nas suas rejeições e aceitações decostumes, princípios morais, idéias metafísicas e formasde organização social em vigor. O acordo constantiniano, aformulação dos grandes credos, o soerguimento do papado, omovimento monástico, o platonismo agostiniano e o tomismoaristotélico, a Reforma e a Renascença, o reavivamento e oiluminismo, o liberalismo e o Evangelho social –representam alguns dos muitos capítulos na história doproblema permanente. Tem ele surgido em muitas formas e emtodas as épocas, como problema de razão e revelação, dereligião e ciência, de lei natural e lei divina, de Igrejae Estado, de não resistência e coerção entreprotestantismo e capitalismo, pietismo e nacionalismo,puritanismo e democracia, catolicismo e romanismo ouanglicanismo, Cristianismo e progresso.

Assim, não se trata essencialmente do problema deCristianismo e civilização. O Cristianismo, quer definidocomo Igreja, credo, ética ou forma de pensamento, selocomove entre os pólos de Cristo e cultura. A relaçãodestas duas autoridades constitui o seu problema. Quando oCristianismo enfrenta a questão razão e revelação, o querealmente está em debate é a relação da revelação emCristo com a razão que prevalece na cultura. Quando seesforça para distinguir, contrastar ou combinar a éticaracional com o seu conhecimento da vontade de Deus, estálidando com a compreensão do certo e do erradodesenvolvida na cultura e com a do bem e do mal comoiluminados por Cristo.

Quando o problema da lealdade à Igreja ou ao Estado élevantado, Cristo e a sociedade cultural permanecem nobackground como os verdadeiros objetos de devoção. Daí,antes de esboçar e ilustrar as formas principais com queos cristãos têm enfrentado o seu

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problema permanente, devemos explicar o que queremos dizercom estes dois termos - Cristo e cultura. Ao fazê-lo épreciso tomar cuidado para não prejulgarmos a questãodefinindo um termo ou outro, ou ambos, de modo a queapenas uma das respostas cristãs fique parecendo legítima.

II. POR UMA DEFINIÇÃO DE CRISTO

Um cristão é comumente definido como "aquele que crêem Jesus Cristo" ou como "um seguidor de Jesus Cristo".Ele poderia ser mais propriamente descrito como alguém quese considera pertencente àquela comunidade de homens paraquem Jesus Cristo - sua vida, palavra, feitos e destino -é de suprema importância como chave para a compreensãodeles mesmos e do mundo em que vivem, como fonte principaldo conhecimento Deus e do homem, do bem e do mal, comocompanheiro constante da consciência, e como o esperadoque os liberta do mal. Tão grande, porém, é a variedadepessoal e comunal da “crença em Jesus Cristo”, tãomúltipla a interpretação de sua natureza essencial, que sedeve levantar a questão sobre se o Cristo do Cristianismoé, de fato, um só senhor. Para alguns cristãos, e paraalgumas partes da comunidade cristã, Jesus Cristo é umgrande mestre e legislador, o qual, pelo que disse de Deuse da lei moral, persuade tanto a mente como a vontade -que desde então jamais conseguem escapar dele. OCristianismo é, para eles, uma nova lei e uma novareligião proclamadas por Jesus, parecendo ser, em parte,uma causa escolhida por ele e, em parte, uma causa que osescolhe, forçando o consentimento de suas mentes. Paraoutros, Jesus Cristo não é tanto = mestre e revelador deverdades e leis quanto, em si mesmo, na sua encarnação,morte, ressurreição e viva presença, a revelação de Deus.Jesus Cristo, por ser

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o que ele foi, pelo que ele sofreu, por ter sido derrotadona crucifixão e pelo seu retorno vitorioso da morte, tornaevidente o ser e a natureza de Deus, exerce os direitos deDeus sobre a fé humana, e, assim, levanta para uma novavida os homens que ele encontra. Para outros, ainda, oCristianismo não é primariamente nem um ensinamento novonem uma nova vida, mas uma nova comunidade: a Santa IgrejaCatólica. E a obra de Cristo, que ocupa o centro de suaatenção, é o encontro por eles desta nova sociedade queveicula a sua graça através da palavra e do sacramento.

Há muitas outras feições do que significa “crer emJesus Cristo”. Todavia, esta variedade no Cristianismo nãopode obscurecer a unidade fundamental que é reforçada pelofato de que Jesus Cristo, com quem os homens estãorelacionados de maneiras tão diferentes, é um caráterdefinido e uma pessoa cujos ensinos, ações e sofrimentossão partes de uma só realidade. É certo que o Cristo queexerce autoridade sobre os cristãos, ou que os cristãosaceitam como autoridade, é o Jesus Cristo do NovoTestamento, e que esta é uma pessoa com ensinos definidos,caráter definido e um destino definido. Emboraimportantes, a questão outrora muito debatida sobre seJesus "realmente" existiu e o problema ainda em pauta dacredibilidade dos registros do Novo Testamento, comodescrições de fatos e de exemplos reais, não são designificação primária. Pois o Jesus Cristo do NovoTestamento está em nossa história real, na história querelembrarmos e vivemos, na medida em que ela forma a nossafé e ação do presente. E este Jesus Cristo é uma pessoadefinida, um e o mesmo, surja ele como homem de carne esangue ou como o Senhor ressurrecto. Ele nunca pode serconfundido com um Sócrates, com um Platão ou com umAristóteles, com um Gautama, com um Confúcio ou com umMaomé, e nem mesmo com um Amós ou com um Isaías.Interpretado por um monge, ele pode assumircaracterísticas monásticas; delineado por um socialista,ele pode apresentar as marcas de um reformador radical;retratado por um Hoffmann,

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ele pode assemelhar-se a um cavalheiro amável. Permanecem,porém, sempre, os retratos originais - e com eles podemser comparados todos os quadros posteriores e corrigidastodas as caricaturas. E nestes retratos originais ele éreconhecidamente um e o mesmo. Seja qual for o papel queele desempenha nas variedades da experiência cristã, é omesmo Cristo que exerce esses vários ofícios. O fundadorda Igreja é o mesmo Cristo que dá a nova lei. O mestre dasverdades sobre Deus é o mesmo Cristo que em si mesmo é arevelação da verdade. Os sacramentalistas não podemescapar ao fato de que aquele que dá seu sangue e corpo étambém o doador dos novos mandamentos. O sectário não podedeixar de ver na autoridade ética o perdoador de pecados.Aqueles que não mais conhecem um "Cristo segundo a carne"conhecem ainda o Senhor ressurrecto como aquele mesmocujos feitos foram descritos pelos que “desde o inícioforam testemunhas oculares e ministros da palavra”. Aindaque sejam grandes as variações entre os cristãos e aexperiência e descrição da autoridade que Jesus Cristo temsobre eles, têm isto em comum: Jesus Cristo é a suaautoridade; e aquele que executa estas várias modalidadesde autoridade é um e o mesmo Cristo.

Naturalmente que tão logo nos disponhamos a definir aessência do Jesus Cristo, que é um e o mesmo, ou a dizer oque lhe dá as várias espécies de autoridade, entramos nocontínuo debate da comunidade cristã. Aqui encontramosduas dificuldades em particular. A primeira é aimpossibilidade de se estabelecer adequadamente, por meiode conceitos e proposições, um princípio que se apresentena forma de uma pessoa. A segunda é a impossibilidade dese dizer qualquer coisa a respeito desta pessoa que nãoseja também relativa a um ponto de vista particular naIgreja, história e cultura de quem se dispõe a descrevê-lo. Daí surge a tentação de se falar redundantemente,afirmando-se simplesmente que "Jesus Cristo é JesusCristo", ou de se aceitar o

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método do positivismo bíblico, apontando-se para o NovoTestamento e renunciando toda interpretação.

Contudo, é não apenas desnecessário mas tambémdesagradável nos confinarmos a tais gestos e asserções. Senada podemos dizer adequadamente, algumas coisas podemdizer inadequadamente. Se não podemos apontar para ocoração e essência deste Cristo, podemos, pelo menos,apontar para alguns fenômenos em que a sua essênciaaparece. Embora toda descrição seja uma interpretação, elapode ser uma interpretação da realidade objetiva. JesusCristo, que é a autoridade cristã, pode ser descrito,embora toda descrição deixe muito a desejar e deva serfalha em satisfazer a outros que o têm encontrado.

Para o propósito de tal descrição um moralista pode sepermitir escolher o artifício um tanto arbitrário deassinalar e definir as virtudes de Jesus Cristo, embora setorne evidente que o retrato resultante precisa sercomplementado por outras interpretações do mesmo assunto,e que a descrição moral não pode chegar mais perto daessência do que as descrições metafísicas ou históricas.Pelas virtudes de Cristo podemos querer apontar asexcelências de caráter, que, por um lado, ele exemplificana sua própria vida, e por outro comunica aos seusseguidores. Para alguns cristãos elas são as virtudes queo seu exemplo e lei reclamam; para outros são os dons queele concede através da regeneração, do morrer e doressuscitar com ele, o primogênito de muitos irmãos. Mas,quer os cristãos realcem a lei ou a graça, quer olhem parao Jesus da história ou para o preexistente e ressurrectosenhor, as virtudes de Jesus Cristo são as mesmas.

A virtude de Cristo que o liberalismo religioso temexaltado acima de todas as outras é o amor.13 Odiscernimento__________13. Ver Harnack, A., What is Christianity? 1901, págs. 78e segs. Não apenas os liberais exaltam esta virtude.Reinhold Niebuhr, por exemplo, concorda com Harnack,considerando o amor como a chave da ética de Jesus. Ver AnInterpretation of Christian Ethics, 1935, capítulo II.

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desta excelência nele não constitui, seguramente, nenhumaaberração da parte do pensamento liberal, levando-se emconta tudo o que se possa dizer sobre a escassez dereferências ao amor nos evangelhos sinóticos. O resto doNovo Testamento, e o testemunho dos cristãos em todas asépocas confirmam que o amor é uma das grandes virtudes deJesus Cristo, e que o que ele requer dos seus discípulosou oferece a eles como possível é o amor. Todavia, quandoexaminamos o Novo Testamento, e estudamos nele o retratode Jesus, começamos a duvidar do valor descritivo defrases como "o absolutismo e perfeccionismo do amor éticode Jesus"14 ou de declarações como as seguintes:

Aquilo que [Jesus] libertou de sua conexão com o egocentrismo eelementos rituais, e reconheceu como o princípio moral, ele reduz auma só raiz e a um só motivo-amor. Ele não conhece nenhum outroprincípio; e o amor em si, quer assuma a forma de amor ao próximo oude amor aos inimigos, ou do amor do samaritano, é de uma só espécie.Deve encher a alma completamente e é o que resta quando a alma morrepara si mesma.15

Em lugar nenhum Jesus exige amor pelo amor, e em partenenhuma exibe aquele domínio completo dos sentimentos eemoções amáveis sobre os agressivos, que parece indicadopela idéia de que nele o amor "tem de encher a alma,completamente", ou de que a sua ética se caracteriza pelo"ideal de amor". A virtude do amor no caráter e exigênciade Jesus é a virtude do amor de Deus e do próximo em Deus,não a virtude do amor de amor. A unidade desta pessoa estána simplicidade e integridade do seu curso para Deus, querseja em termos de amor, de fé ou de medo. O amor, com toda_________14. Niebuhr, op. cit., pág. 39.15. Harnack, op. cit., pág. 78.

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certeza, se caracteriza em Jesus por um certo extremismo;mas tal extremismo não é aquele de uma paixão irremovívelpor outra paixão. Trata-se, antes, do extremismo dadevoção a um Deus, sem compromisso com o amor de qualqueroutro bem absoluto. Esta virtude nele é desproporcionalsomente no sentido politeístico-monoteístico e não nosentido de não se fazer acompanhar de outras virtudestalvez igualmente grandes; nem o é num sentidoaristotélico, como se ela não se encontrasse, no meio,entre excesso e defeito, ou entre amabilidade e ira. ParaJesus não existe nenhum ser final digno de amor e nenhumoutro objeto último de devoção a não ser Deus. Ele é oPai; nenhum bem existe a não ser Deus; a ele somente sedeve render graças; somente o seu reino deve ser buscado.Daí que o amor de Deus no caráter e ensino de Jesus nãoapenas seja compatível com a ira, mas possa ser mesmo oseu motivo, como quando ele vê a casa do Pai transformadaem covil de salteadores ou os pequeninos do Paiultrajados. Daí ser correto e possível salientar asignificação desta virtude em Jesus, e ao mesmo temporeconhecer que de acordo com os evangelhos sinóticos eledeu ênfase, na conduta e no ensino, às virtudes da fé emDeus e humildade diante dele, muito mais do que ao amor.

Se se quer entender a natureza desta virtude em Jesus,alguma atenção tem de ser dada à sua teologia. A tendênciade se descrever Jesus totalmente em termos de amor estáintimamente ligada à disposição de se identificar Deus comamor. Paternidade é considerada como sendo quase o únicoatributo de Deus e, assim, quando Deus é amado, é oprincípio de paternidade que é realmente amado.16 Ou entãoDeus é definido como “a unidade final que transcende ocaos do mundo, tão seguramente quanto é real o fato de serela básica à ordem do mundo”. Esta "unidade de Deus não éestática, mas potente e criadora. Deus é, portanto, amor”.

___________16. Ibid., págs. 63 e segs., 154 e segs.

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Ele é a benevolência que a todos inclui.17 Naturalmente,isto não representa a teologia de Jesus. Muito embora Deusseja amor, para ele o amor não é Deus. O Deus que Cristoama é o "Senhor do céu e da terra"; ele é o Deus deAbraão, Isac e Jacó; ele é o poder que causa a chuva e osol, sem cuja vontade e conhecimento não morre um únicopardal, nenhuma cidade é destruída, e nem ele mesmo écrucificado. A grandeza e a estranheza do amor de Jesuspara com Deus não aparece no seu amor pelo amor cósmico,mas na sua lealdade para com o poder transcendente, essepoder que parece tudo para os homens de pequena fé, menoso que de fato é - o poder paternal. A palavra "Pai" noslábios de Jesus é maior, mais heróica e mais fiel do quequando paternidade e divindade são identificadas.

Contra esta interpretação da natureza única da virtudedo amor em Jesus Cristo como baseada na integridade de suadevoção a Deus, poderá ser levantada a objeção de que elepratica e ensina um amor duplo - para com o próximo e paracom Deus - de modo que a sua ética terá dois focos: "Deus,o Pai e o valor infinito da alma humana".18 Tais afirmaçõesesquecem que o duplo mandamento, quer tenha sidooriginalmente estabelecido por Jesus ou simplesmenteconfirmado por ele, de modo nenhum coloca Deus e o próximono mesmo nível, como se íntegra devoção fosse devida aambos. É Deus somente que é para ser amado com o coração,alma, mente e força. O próximo é colocado no mesmo nívelde valor que o eu ocupa. Além disto, a idéia de atribuirvalor "intrínseco" ou "infinito" à alma humana parececompletamente estranha a Jesus. Ele não fala de valor, àparte de Deus. O valor do homem, como o valor do pardal eda flor, é o seu valor para__________17. Niebuhr, op. cit., págs. 38, 49, 56.18. Também Harnack, op. cit., págs. 55, 68-76. Esta fraseem suas múltiplas variações tem se tornado coeficientecomum do protestantismo liberal.

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Deus; a medida do verdadeiro gozo, em termos de valor, é ogozo do céu. Porque o valor é valor em relação a Deus,Jesus vê o sagrado em toda a criação, e não apenas nahumanidade, muito embora os seus discípulos encontremconforto especial no fato de serem de mais valor para Deusdo que os pássaros, que também são valiosos. A virtude doamor ao próximo nos ensinos e conduta de Jesus nuncapoderá ser pertinentemente descrita, se for tomada à partedo amor a Deus, o qual é de valor fundamental. Cristo amao seu próximo não como a si mesmo, porém como Deus o ama.Daí o quarto evangelho, percebendo que o postulado judeu"ama o teu próximo como a ti mesmo" não se coadunavaadequadamente nem com as ações de Jesus nem com os seuspreceitos, haver modificado o mandamento para "amai-vosuns aos outros assim como eu vos amei".19 Além disto, ficoubem claro para os discípulos que o amor de Jesus peloshomens não era apenas uma ilustração da benevolênciauniversal, mas um ato decisivo do Agape divino. Pois temosde enfrentar o reconhecimento de que o que os primeiroscristãos viram em Jesus Cristo (e é o que devemos aceitarse atentarmos para ele e não para o que nos diz a nossaimaginação a respeito dele) não foi uma pessoacaracterizada pela benignidade universal, amando a Deus eao homem. Seu amor para com Deus e seu amor para com opróximo são duas virtudes distintas que não têm nenhumaqualidade em comum, mas apenas uma fonte comum. Amor aDeus é a adoração do único bem verdadeiro; é a gratidão aodoador de todos os dons; é regozijo pela santidade; é"assentimento ao Ser". Mas o amor ao homem é compassivo enão adorador; é doador e perdoador sem ser gratidão,sofrendo nos vícios e profanações dessas atitudes e porelas, não as aceitando como são, mas chamando-as aoarrependimento. O amor a Deus é o Eros não possessivo; oamor ao homem, puro Agape;__________19. João 13:34, 15:12. Conferir Marcos 12:28-34, Mateus22: 34-40, Lucas 10:25-28.

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o amor a Deus é paixão; o amor ao homem, compaixão. Há umadualidade aqui, mas não a de um mesmo interesse em relaçãoa dois grandes valores, Deus e o homem. Trata-se, antes,da dualidade do Filho do Homem e Filho de Deus, que ama aDeus como o homem deve amá-lo, e ama ao homem como somenteDeus pode amá-lo, com poderosa compaixão por aqueles quetropeçam.

Parece, então, não haver maneira mais adequada para sedescrever a virtude do amor em Jesus, senão dizendo que oseu amor foi o amor do Filho de Deus. Não era amor, masDeus o que enchia a sua alma.

Afirmações semelhantes devem ser feitas sobre outrasprimazias que encontramos nele. Do liberalismo que exaltouo seu amor têm saldo interpretações escatológicas que ovêem como o homem da esperança, e interpretaçõesformuladas por um existencialismo que o descreve comoradicalmente obediente. Foi ele precedido de umprotestantismo ortodoxo para quem Jesus era o modelo e odoador da virtude da fé, e por um movimento monástico queesteve surpreso e maravilhado com a sua grande humildade.O Cristo do Novo Testamento possui ambas as virtudes; ecada uma delas se expressa de tal conduta e ensino, demaneira tal, que parece extrema e desproporcional para asabedoria cultural e secular. Mas ele não as pratica, nemrequer dos seus discípulos qualquer dessas virtudes, a nãoser em relação com Deus. Porque essas virtudes sãoqualidades da conduta dos homens que estão sempre emconfronto com o Todo Poderoso e Santo, elas parecemextremadas.

E é assim com a virtude da esperança. Osescatologistas, de quem Albert Schweitzer é o maisconhecido expoente, têm tentado descrever Jesus Cristocomo caracterizado somente pela esperança e não pelo amor.Ele esperava tão intensamente - afirmam eles - atransformação da promessa messiânica em realidade e agrande reviravolta na história que venceria o mal eestabeleceria

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o reino de Deus, que nada mais lhe importava, * não ser apreparação para este evento. "Não é, mesmo * priori, aúnica opinião concebível" - escreve Schweitzer - "que ocomportamento de alguém que guarda a sua ‘parousia’messiânica num futuro próximo deve estar determinado poraquela expectativa?"20 O ensino de Jesus, como o seucomportamento, é explicado com referência a estaesperança. "Se o pensamento da vinda escatológica do reinoé o fator fundamental na pregação de Jesus, toda a suateoria ética deverá estar subordinada à sua concepção dearrependimento como preparação para a vinda do Reino…Arrependimento é uma renovação moral, tendo em vista ocumprimento da perfeição universal no futuro… A ética deJesus… é completamente orientada pela esperada consumaçãosobrenatural".21 O que Jesus comunicou aos seus discípulos,afirma o escatologista, foi essa expectativa, engrandecidaagora pela convicção de que nele o futuro messiânicoesteve muito perto. Daí a ética do Cristianismo primitivoser apresentada como a ética da grande esperança.

Da mesma forma que a interpretação liberal de Jesusfazia dele um herói do amor, uma profunda verdade aqui seevidencia; o Cristianismo atual muito deve aosescatologistas o terem eles chamado atenção para estavirtude e o seu contexto em Jesus. Este fato tem ajudadomuito a cumprir o desejo de Schweitzer: "pintar o retratode Jesus em sua sobrepujante grandeza heróica e imprimi-lasobre a teologia e época modernas”.22 Houve um extremismona atitude de expectativa de Jesus que o distingue detodos os homens que esperam glórias menores, ou, maisfreqüentemente, não__________20. Schweitzer, A., The Quest of the Historical Jesus,1926, pág. 349.21. Schweitzer, A., The Mystery of the Kingdom of God,1914, págs. 94, 100.22. Ibid., pág. 274.

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esperam glória nenhuma. A moralidade média pressupõecomplacência temperada com um pouco de cinismo, ouresignação qualificada como expectativa moderada do bem. Aantecipação intensa do bem supremo deve resultar numatransformação da ética.

Todavia, a urgência na expectativa de Jesus éinexplicável; e o grau em que ele a comunica a discípulos,nas culturas distanciadas da Palestina do primeiro século,é incompreensível quando se esquece, como osescatologistas parecem fazê-lo, que tal esperança estavaem Deus e era por Deus. Eles parecem inclinados a dizerque aquilo em que Jesus esperava era dogma; aquilo por queele esperava era uma metamorfose da natureza humana e nãohumana, uma transformação de toda forma terrena deexistência. Assim, Schweitzer define a interpretaçãoescatológica como "um exame crítico do elemento dogmáticona vida de Jesus… Escatologia é simplesmente ‘históriadogmática’ - história moldada pelas crenças teológicas…Considerações dogmáticas… guiadas pelas resoluções deJesus”.23 Decorre Daí o pensamento de que ele pôs a suaesperança naquilo que veio a ser uma crença errônea sobrea brevidade do tempo, e de ter procurado forçar a marchairredutível dos eventos para conformá-la ao seu padrãodogmático. Embora o Jesus descrito no Novo Testamentofosse, evidentemente, alimentado por uma intensaesperança, parece claro, também, que a realidade presentepara ele, como o autor do futuro, não era um curso dahistória dogmaticamente concebida. A sua maneiraescatológica de ver a história não diferia da doutrina deprogresso apenas pelo fato de considerar o tempo comopróximo. Em primeiro lugar ele não estava absolutamentetratando com o problema da história, mas com Deus, oSenhor do tempo e do espaço. Ele esperava no Deus vivopela mão de quem os demônios estavam sendo expulsos, ecujo perdão de pecados estava sendo manifesto. Os temposestavam em Sua mão e, portanto, predições a respeito dostempos e___________23. Quest of the Historical Jesus, págs. 248, 249, 257.

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estações estavam fora de ordem. E não foi mesmo o próprioDeus o objeto da intensa esperança de Jesus - amanifestação da glória e a revelação da retidão divinas? Oreino de Deus para Jesus é menos um feliz estado decoisas, em primeiro lugar, do que Deus em seu evidente atode reinar. Ele reina agora, mas o seu reino deverá sermanifesto a todos. A ética de Jesus não parece depender desua visão da história mais do que esta parece dependerdaquela. Ambas são reflexos de sua fé em Deus. Daí ser umaviolência ao que diz o Novo Testamento, a tentativa defazer da extrema esperança, com o arrependimento que elaenvolve, a virtude chave do ensino e conduta de Jesus.Muitas das suas afirmações mais radicais não estãovinculadas intimamente, de modo nenhum, com a expectativada vinda do Reino, mas sim com a transformação emrealidade concreta do presente reinar de Deus, no cursodos eventos naturais e cotidianos. Assim, no ensinamento arespeito da serenidade não há nenhuma referência àrenovação e catástrofe futuras, mas ao cuidado de cada diadispensado por Deus; e o ensino a respeito do perdão doinimigo está em conexão com a demonstração ordinária ecotidiana da misericórdia de Deus, mandando chuva e solsobre justos e injustos.24 O caráter heróico da esperançade Jesus não está só. Ele está unido ao amor heróico e àfé heróica. E tudo isto tem a sua fonte na relação delecom Deus, o qual é aquele que é não apenas Agora, mastambém Então. A chave da ética de Jesus não é aescatologia, mas sua característica de Filho de Deus.

E não é diferente o que ocorre com a obediência deCristo. Os existencialistas cristãos do nosso tempo vêemJesus caracterizado pela virtude da obediência radical,dispondo-se, como o fizeram os seus predecessores, adescrevê-lo e a descrever seus ensinos em termos de umagrande excelência. Bultmann escreve que só se podeentender a ética de Jesus e a sua proclamação da vontadede Deus como distinta do ideal grego de humanidade__________24. Mateus 6:25-34; 5:43-48.

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e da presente ética de autonomia e teoria de valor se senotar a sua relação e distinção com a piedade judaica.Então se poderá dizer com precisão que a “ética de Jesus,exatamente como a judaica, é uma ética de obediência; eque a única diferença fundamental é que Jesus concebeuradicalmente a idéia de obediência”.25 Bultmann justifica oque ele chama de radicalismo da obediência de Jesusmostrando que para ele não houve autoridade mediata entreDeus e o homem, pois o “obediência radical só existequando um homem assente intimamente ao que lhe é requeridoe quando a coisa ordenada é intrinsecamente vista comosendo o mandamento de Deus.…Na medida em que a obediênciaé apenas sujeição a uma autoridade que o homem nãoentende, não é obediência”. Ainda mais, a obediência éradical quando o homem todo é envolvido, de modo que “nãoapenas faz alguma coisa obedientemente, mas éessencialmente obediente”, e, tendo de optar pró ou contradeterminada situação, não mais procura uma posição neutra,mas aceita a responsabilidade da decisão entre o bem e omal.26

Novamente, como no caso de uma interpretação em termosde amor, devemos reconhecer a verdade evidente de taisdeclarações. Jesus foi obediente, e radicalmente obediente- como os cristãos o reconheceram desde o início. Eles seimpressionaram com a sua obediência até a morte, e com asua submissão na agonia e oração do Getsêmane; viram queele tinha descido do céu não para fazer a sua vontade, masa vontade daquele que o enviou; eles se regozijaram em quemediante a obediência de um muitos foram feitos justos; eforam consolados pelo pensamento de que tinham no céu umsumo-sacerdote que, sendo, embora, um Filho, tinhaaprendido a obedecer pelo que ele sofreu.27 Discerniram,pois,_________25. Bultmann, Rudolf, Jesus and the Word, 1934, págs. 72-73.26. Ibid., págs. 77, 78.27. Filip. 2:8, Marcos 14:36, João 6:38, 15:10, Rom. 5:19,Hebreus 5:8.

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que o radicalismo de sua obediência estava ligado a umcerto transcender da autoridade mediata da lei, dirigidoao homem todo, incluindo cada pensamento e motivo, bemcomo cada ato aberto, não havendo nenhuma escapatória daresponsabilidade de obediência.

Todavia, algo está faltando no retrato existencialistada obediência de Cristo. Não apenas se fez de uma virtudea chave de todas as outras, mas essa virtude foiessencialmente abstraída da compreensão de Deus,compreensão que torna radicais todas as virtudes de JesusCristo. Este Jesus existencialista é mais kantiano do quejoanino, paulino ou marcano. Bultmann não pode encontrarnenhum conteúdo real na idéia evangélica de obediência.Diz ele que Jesus não tem nenhuma doutrina “sobre o deverdo bem. Basta ao homem saber que Deus o tem colocado sob anecessidade de decisão em cada situação concreta na vida,no aqui e no agora. E isto significa que ele mesmo devesaber o que lhe é requerido. …O homem não se defronta coma crise de decisão armado de um padrão definido; ele nãose ergue em nenhuma base firme, porém permanece sozinho noespaço vazio. Ele vê apenas o homem diante da vontade deDeus. …Jesus não ensina nenhuma ética no sentido de umateoria inteligível, válida para todos os homens, arespeito do que deveria e do que não deveria ser feito”.28

Além disto, muito embora Deus seja mencionado como aquelecuja vontade deve ser obedecida, a idéia de Deus atribuídaa Jesus é tão vazia e formal como a idéia de obediência.Assim como para o liberalismo Deus é a contraparte do amorhumano, também neste existencialismo ele se torna a meracontraparte da decisão moral. Ele é “o poder queconstrange o homem à decisão”, aquele que o homem podeencontrar “somente na compreensão real de sua própriaexistência”; “o próprio Deus deve desaparecer para o homemque não sabe que a essência de sua própria vida consiste__________28. Op. cit., págs. 108, 85, 84. Cf. págs. 87-88.

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na plena liberdade de sua decisão”.29 O ânimo de talexistencialismo, contra as idéias naturalistas eespeculativas sobre Deus, pode ser entendido, mas atribuira Jesus esta concepção de liberdade do século vinteresulta numa caricatura do Cristo do Novo Testamento. Poiso Jesus que é radicalmente obediente sabe que a vontade deDeus é a vontade do criador e governador de toda anatureza e de toda a história; que há estrutura e conteúdoem Sua vontade; que Ele é o autor dos dez mandamentos; queEle quer misericórdia e não sacrifício; que Ele requer nãoapenas obediência a si mesmo, mas também amor e fé, assimcomo amor ao próximo que Ele criou e ama. Este Jesus éradicalmente obediente, mas Ele também sabe que somente fée amor tornam possível a obediência e que Deus é o doadorde todos estes dons. Sua obediência é uma relação comDeus, o que é muito mais do que um “Não Condicionado”encontrado no momento de decisão. O caráter destaobediência não é, portanto, algo que existe per se, oualgo que se pode separar do amor, fé e esperança radicais.Trata-se da obediência de um Filho cujo caráter filial nãoé simplesmente definível como obediência a um princípioque constrange à obediência.

Um exame da concentração protestante na fé que Jesustinha e do interesse monástico pela sua grande humildadeleva ao mesmo resultado. Ele, de fato, é caracterizado poruma fé extrema e por uma radical humildade. Mas fé ehumildade não são coisa alguma em si mesmas, sendo, antes,relações de pessoas, ou hábitos de comportamento napresença de outrem. Agora, quando olhamos para Jesus doponto de vista de sua fé nos homens, ele nos parece umgrande cético, que acredita estar tratando com uma geraçãoadúltera e má, com um povo que apedreja os seus profetas edepois lhes ergue monumentos. Ele não deposita nenhumaconfiança_________29. Op. cit., págs. 103, 154.

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nas instituições e tradições prevalecentes de suasociedade. Mostra pequena confiança nos seus discípulos,convencido de que eles se escandalizarão nele, e de queaté o mais firme dentre eles será incapaz de permanecer aoseu lado na hora da prova. Somente a ficção romântica podeinterpretar o Jesus do Novo Testamento como alguém queacreditava na bondade dos homens e que, por isto,procurava trazer à tona o que neles era bom. Todavia, adespeito deste ceticismo, ele é admiravelmente livre deansiedade. É heróico na sua fé em Deus, chamando o Senhordo céu e da terra de Pai. Em sua existência marcada pelapobreza, falta de família, alimentação e teto, ele confianaquele que dá ao necessitado o pão de cada dia. E no fimentrega o seu espírito a quem sabe responsável pela suamorte vergonhosa e ignominiosa. A Ele também confia a suanação, crendo que o necessário será dado aos que põem delado a preocupação com a sua própria defesa e buscamapenas o Reino de Deus. Tal fé parecerá sempre radical aosseres humanos com a sua profunda desconfiança do poder queos originou, que os sustenta e que ordena a sua morte.Trata-se da fé que tem um Filho de Deus, a qual é muitoextrema para aqueles que se concebem como filhos danatureza, ou dos homens, ou de uma contingência cega.

A humildade de Jesus é também irregular. Vive compecadores e párias; lava os pés aos discípulos; aceitagrosserias e afrontas dos sacerdotes e dos soldados.Quando é reconhecido como o Senhor vivo e ressurrecto, amagnificência de sua humildade causa assombro e pasmo aosque criam nele. Sendo, embora, rico, se tornou pobre paraenriquecer a muitos; embora tendo existido na forma deDeus, tomara a forma de escravo; a palavra através da qualtodas as coisas foram feitas tornou-se carne; a vida, queera a luz dos homens, penetrou nas trevas deles. Há, defato, alguma coisa de desproporcional na humildade deJesus Cristo. Não seria surpresa se uma nova escola deintérpretes surgisse no rastro dos existencialistas com atentativa de entendê-lo como o homem de humildade radical.Mas a humildade

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de Jesus é humildade diante de Deus, e só pode serentendida como a humildade do Filho. Ele nunca expressou,nem ordenou, nem comunicou a humildade de sentimento deinferioridade diante dos outros homens. Diante dosfariseus, do sumo sacerdote, de Pilatos, e “daquelaraposa”, Herodes, mostrou uma confiança que não tinhanenhum traço de auto-abnegação. Fosse qual fosse a verdadesobre a sua autoconsciência messiânica, ele falou comautoridade e agiu cheio de confiança de poder. Quandorepudiou o titulo de “Bom Mestre” não admitiu que outrosrabis fossem melhores do que ele, mas disse: “Ninguém ébom, senão Deus, somente”. Não houve nenhumacondescendência em sua vida para com os pecadores, talcomo um homem apologético e inseguro pudesse notar. Suahumildade é daquele tipo que desperta, para um Novo sensode dignidade e valor, aqueles que têm sido humilhadospelas pretensões defensivas do “bom” e do “justo”. Trata-se de uma espécie de humildade orgulhosa e de um orgulhohumilde, o que pode ser chamado de paradoxal somente nocaso de não se levar em consideração, como fundamental, arelação com Deus. Se é verdade que ela é diferente detodas as modéstias e deferências que caracterizam osesforços humanos de acomodação aos seus sentimentospróprios e mútuos de superioridade, é também certo que elaé completamente diferente daquela sábia virtude grega, emdecorrência da qual os homens eram exortados a permanecerdentro dos seus próprios limites, para evitar que osdeuses ciumentos os destruíssem como rivais em potencial.A humildade de Cristo não é a moderação pela qual alguémconserva o seu lugar certo na escala do ser mas, antes,aquela dependência e confiança absolutas em Deus, com aconseqüente habilidade de remover montanhas. O segredo damansidão e brandura de Cristo está na sua relação comDeus.

Assim, qualquer uma das virtudes de Jesus pode sertomada como a chave para a compreensão de seu caráter eensino. Cada uma delas é inteligível, em seu radicalismoaparente, somente como uma relação com

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Deus. É melhor, por certo, não se tentar delineá-lo peladescrição de uma de suas excelências, mas, antes, tomá-lasem conjunto: aquelas a que nos temos referido e outras. Emambos os casos, contudo, parece evidente que a estranheza,a estatura heróica, o extremismo e sublimidade destapessoa, considerada moralmente, são devidos àquela únicadevoção e integral confiança em Deus, o que não pode sersimbolizado melhor por nenhuma outra figura de linguagemsenão por aquela que o chama de Filho de Deus.

A crença que homens de diferentes culturas professamem Jesus Cristo significa, por conseguinte, crença emDeus. Ninguém pode conhecer o Filho sem reconhecer o Pai.Estar relacionado com Jesus Cristo em devoção e obediênciaé estar relacionado com aquele para quem ele apontaconstantemente. Como Filho de Deus, em meio aos muitosvalores da vida social do homem, ele aponta para aqueleque (e somente Ele) é bom; em meio aos muitos poderes queos homens usam, e dos quais dependem, para aquele que é oúnico poderoso; em meio aos tempos e estações da história,com as suas esperanças e temores, para aquele que é oSenhor de todos os tempos, e que é o único que deve sertemido, e o único em quem se deve esperar; em meio a tudoque é condicionado ele aponta para o Não Condicionado.'Ele não desvia a sua atenção deste mundo para o outro,mas de todos os mundos, presentes e futuros, materiais eespirituais, para aquele que cria todos os mundos, o qualé o Outro de todos os mundos.

Todavia isto é apenas metade do significado de Cristo,considerado moralmente. A outra metade já foi indicadaacima no que se disse a respeito do seu amor pelos homens,em relação ao seu amor para com Deus. Porque ele é o Filhomoral de Deus em seu amor, esperança, fé, obediência ehumildade na presença de Deus, ele é, igualmente, omediador moral da vontade do Pai para os homens. Porqueele ama o Pai com a perfeição do eros humano, ele ama oshomens com a perfeição do

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agape divino, de vez que Deus é agape. Porque ele éobediente à vontade do Pai, ele exerce autoridade sobre oshomens, exigindo obediência não à sua própria vontade, masà vontade de Deus. Porque ele confia integralmente emDeus, o qual é fiel, ele é digno de confiança em suaprópria fidelidade para com os homens. Porque ele exalta aDeus com perfeita humildade, ele humilha os homens, dando-lhes boas dádivas além de todos os seus méritos. De vezque o Pai de Jesus Cristo é o que Ele é, filiação a Eleenvolve o Filho, não em um processo ambíguo, mas em umprocesso ambivalente. Tal filiação envolve o duplomovimento: com o homem para Deus, e com Deus para o homem;do mundo para o Outro, e do Outro para o mundo; da obrapara a Graça, e da Graça para a obra; do tempo para oEterno, e do Eterno para o temporal. No seu caráter deFilho moral de Deus, Jesus Cristo não é uma figuramediana, metade Deus, metade homem. Ele é uma únicapessoa, voltada totalmente, como homem, para Deus, etotalmente voltada, em sua unidade com o Pai, para oshomens. Ele é mediatário, não mediano. Ele não é um centrode que se irradia amor de Deus e dos homens, obediência aDeus e a César, confiança em Deus e na natureza, esperançana ação divina e na ação humana. Ele, antes, existe como oponto focal na contínua alternação de movimentos de Deuspara o homem e do homem para Deus; e estes movimentos sãoqualitativamente tão diferentes quanto o são agape e eros,autoridade e obediência, promessa e esperança, humilhaçãoe glorificação, fidelidade e confiança.

Outras considerações além da de ordem moral devem seraventadas, se se pretende descrever Jesus Cristoadequadamente. Contudo, como a história da Igreja e suasteologias o indicam, cada uma dessas considerações tendepara a mesma questão. O poder e atração que Jesus Cristoexerce sobre os homens nunca provêm unicamente dele, masdele como Filho do Pai. Provêm dele, em seu caráter deFilho, de dupla maneira: como homem vivendo para Deus, ecomo Deus vivendo com homens.

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A crença nele e a lealdade à sua causa envolvem homensno duplo movimento do mundo para Deus e de Deus para omundo. Mesmo quando as teologias deixam de fazer justiça aeste fato, os cristãos, vivendo com Cristo em suasculturas, estão cônscios dele. Pois estão sempre sendodesafiados a abandonar todas as coisas por amor a Deus; eestão sempre sendo enviados de volta ao mundo para ensinare praticar todas as coisas que lhes têm sido ordenadas.

III. POR UMA DEFINIÇÃO DE CULTURA

Depois desta inadequada definição do significado deCristo, nos voltamos agora para a tarefa de definir,igualmente em termos tênues, o significado de cultura. Quequeremos dizer com o uso desta palavra, quando afirmamosque a igreja cristã luta permanentemente com o problemaCristo e cultura?

A definição dada ao termo por um teólogo deve ser, numcaso desta natureza, a definição de um leigo, de vez queele não pode ter a pretensão de entrar nas questõeslevantadas por antropologistas profissionais. Todavia, eladeve também, pelo menos inicialmente, ser uma definição dofenômeno sem interpretação teológica, pois que estainterpretação teológica é exatamente o ponto em questãoentre os cristãos. Para alguns dentre eles a cultura éessencialmente ateísta, no sentido puramente secular, enão mantém relações nem positivas nem negativas com o Deusde Jesus Cristo; para outros ela é ateísta no sentidonegativo, sendo uma realidade contra Deus, e, portanto,idólatra; para outros, ainda, ela parece estar solidamentebaseada num conhecimento natural e racional de Deus ou Sualei. A qualidade cristã de desprendimento proíbe aadoração, pelo menos de início, de qualquer uma destasavaliações.

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A cultura para a qual voltamos a nossa atenção nãopode ser simplesmente a de uma sociedade particular talcomo a greco-romana, a medieval ou a ocidental moderna.Alguns teólogos, como também alguns antropologistaspensam, de fato, que a fé cristã é intimamente relacionadacom a cultura ocidental, quer seja este termo usado paradesignar uma sociedade histórica contínua, começada apartir do primeiro século A.D., ou para se referir a umasérie de civilizações associadas mas distintas, como noesquema de Toynbee. Assim Ernst Troeltsch crê que ocristianismo e a cultura ocidental são tãoinextricavelmente entrelaçados que um cristão pouco podedizer a respeito de sua fé a membros de outrascivilizações, os quais, por sua vez, não podem encontrar aCristo a não ser como um membro do mundo ocidental o faz.30

O próprio Troeltsch, contudo, está altamente cônscio datensão entre Cristo e a cultura ocidental, de modo quemesmo para um ocidental Jesus Cristo nunca é meramente ummembro de sua sociedade cultural. Além disto, os cristãosno oriente e todos aqueles que aguardam a emergência deuma nova civilização, estão preocupados não somente com oCristo ocidental, mas com aquele que tem de ser distintoda fé ocidental nele, e que é relevante à vida em outrasculturas. Portanto, a cultura, do modo em que a encaramos,não é um fenômeno particular, mas geral, muito embora acoisa geral apareça apenas em formas particulares e adespeito de um cristão do oeste não poder pensar noproblema a não ser em termos ocidentais.

Nem podemos definir a cultura de uma maneira estreita,levando em consideração apenas alguma fase especial daorganização e realização social do homem. E isto acontecequando o problema é enunciado em termos da relação deCristo com a ciência e a filosofia,___________30. Troeltsch, Enst, Christian Thought, 1923, especial-mente as págs. 21-35; ver também Díe Absolutheit desChristentums, 1929 (3a.ed.) e Gesammelte Schriften, Vol.II, 1913, págs 779 e seguintes.

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como na questão revelação e razão, ou em termos de suarelação com a organização política, como na questão Igrejae Estado. O mesmo acontece quando, como no caso de JakobBurkhardt, "cultura" é distinta tanto da religião como doEstado. Ele considera estes três poderes - religião,Estado e cultura - como sendo "supremamente heterogêneosentre si”. Cultura, como ele a vê, é distinta dos outrosdois poderes pelo seu caráter não autoritário. Ela é a"súmula de tudo quanto tem surgido espontaneamente comvistas ao avanço da vida material e como expressão de vidamoral e espiritual - toda,s as relações sociais,tecnologia, artes, literatura e ciências. É o reino dovariável, do livre, do que não é necessariamenteuniversal, de tudo que não pode reivindicar autoridadecompulsória”.31 A ponta de lança de tal cultura élinguagem, diz ele, e as mais altas expressões do seuespírito são encontradas nas artes. Sem dúvida, a relaçãode Cristo com esses elementos na civilização levantaproblemas especiais, muito embora não possamos divisarnenhuma demarcação clara de limites entre eles e outrosque surgem na sociedade política e religiosa. Tampouco sãoo autoritarismo e a liberdade distribuídos como Burkhardtparece crer. É confuso e arbitrário definirmos a culturacomo se ela excluísse a religião, e a última como seincluísse Cristo, de vez que os problemas com os quais nosocupamos são muito mais difíceis no reino da religião,onde temos de fazer perguntas sobre a conexão de Cristocom as nossas “fés” sociais. Ainda mais, a cultura teráuma definição um tanto estreita para os nossos propósitosse for distinta da civilização, usando-se o último termopara designar as formas de vida social mais avançadas,talvez mais urbanas, técnicas e talvez envelhecidas.32

__________31. Force and Freedom, 1943, pág. 107; cf. 140 e seg.32. Maliliowski, Bronislaw, artigo "Cultura", Encyclopediaof Social Sciences, Vol. IV, págs. 621 e segs.; Dawson,Christopher, Religion and Culture, 1947, pág. 47, Speng-ler, Oswald, The Decline of the West, 1926, Vol. I, págs.31 e segs., 351 e segs.

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O que temos em vista quando tratamos com Cristo ecultura é aquele processo total da atividade humana eaquele resultado de tal atividade a que ora o nomecultura, ora o nome civilização, é aplicado em linguagemcomum.33 Cultura é o "ambiente artificial e secundário" queo homem sobrepõe ao natural. Ela abrange a linguagem,hábitos, idéias, crenças, costumes, organização social,artefatos herdados, processos técnicos e valores.34 Esta"herança social", esta "realidade sui generis", que osescritores do Novo Testamento tinham sempre em mentequando falavam do "mundo", que é representada em muitasformas, e a que os cristãos como os demais homens estãoinevitavelmente sujeitos, é o que queremos significarquando falamos de cultura. Embora não possamos nosaventurar a definir a "essência" desta cultura, podemosdescrever algumas de suas características. De um certomodo ela é inextricavelmente ligada à vida do homem emsociedade: ela é sempre social. "O fato essencial dacultura, como a vivemos e experimentamos, e como aobservamos cientificamente", escreve Malinowsky, "é aorganização de seres humanos dentro de grupospermanentes”.35 Sendo este o fato essencial, ou não, é eleuma parte essencial do fato. Indivíduos podem usar acultura à sua própria maneira; eles podem trocarelementos em sua cultura, mas o que eles usam e mudam ésocial.36 Cultura é a herança social que eles recebem etransmitem. Aquilo que é puramente particular, que nãoprovém da vida__________33. Ver Robinson, James Harvey, artigo "Civilização",Ency-clopedia Britannica, 14a edição, Vol. V, pág. 735;Brinkmann, Carl, artigo "Civilização", Enciclopédia deCiências Sociais, Vol. III, págs. 525 e seguintes.34. Malinowski, loc. cit.35. Malinowski, A Scientific Theory of Culture and OtherEssays, 1944, pág. 43.36. Sobre o indivíduo e a sociedade, em relação à cultura,ver Benedict, Ruth, Pattens of Culture, 1934, capítulosVII e VIII.

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social nem a penetra, não é parte da cultura. De igualmodo, a vida social é sempre cultural. A antropologiaparece ter golpeado completamente a idéia romântica deuma sociedade puramente natural, não caracterizada porhábitos, costumes, formas de organização social, etc.,altamente distintos e adquiridos. Cultura e existênciasocial caminham juntas.

Em segundo lugar cultura é realização humana. Nós adistinguimos da natureza pelo fato de vermos nelaevidências de esforço e propósitos humanos. Um rio énatureza, um canal é cultura; uma peça bruta de quartzo énatureza, uma flecha é cultura; um gemido é natural, umapalavra é cultura. Cultura é a obra de mentes e mãoshumanas. É aquela porção de herança do homem em qualquerlugar ou tempo que nos foi legada intencional elaboriosamente por outros homens, e não o que nos temvindo por intermédio de seres não humanos ou através deseres humanos que agiram sem intenção de resultados ousem o controle do processo. Ela inclui, portanto,linguagem, educação, tradição, mito, ciência, arte,filosofia, governo, lei, rito, crença, invenções etecnologia. Além do mais, se uma das marcas da cultura é ofato de ela ser o resultado de realizações humanaspassadas, a outra está no fato de que ninguém pode seapoderar dela sem esforço e realização de sua própriaparte. Os dons da natureza são recebidos como sãocomunicados, sem intenção ou esforço consciente do homem;mas os dons da cultura não podem ser possuídos sem oempenho da parte do receptor. A linguagem deve serlaboriosamente adquirida; o governo não pode ser mantidosem esforço constante; o método científico deve ser re-encenado e reorientado em cada geração. Mesmo osresultados materiais da atividade cultural são inúteis, anão ser que sejam acompanhados de um processo deaprendizado que nos capacite a usá-los com propriedade.Quer tentemos interpretar os sinais da cultura antiga ouresolver os problemas da civilização contemporânea, estafeição característica sempre despertará a nossa atenção:estamos lidando com aquilo que o homem produziuintencionalmente

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e com aquilo que o homem pode ou deve fazer. O mundo, namedida em que é feito pelo homem e orientado pelo homem, éo mundo da cultura.

Estas realizações humanas, em terceiro lugar, sãodestinadas a um fim ou a alguns fins. O mundo da cultura éum mundo de valores. Se devemos, ou não, levantar questõesde valor sobre a natureza, ou fazer juízos de valor arespeito das ocorrências naturais, é um caso em debate.Mas, com respeito aos fenômenos da cultura, este problemanunca surge. Temos de admitir que o que os homens têmfeito e fazem se destina a um propósito; destina-se aservir ao bem.37 E o mesmo nunca pode ser descrito semreferência aos fins nas mentes de inventores eusufrutuários. A arte primitiva nos interessa porque elaindica o interesse humano, ritmo, cor, significações esímbolos; e porque estamos interessados nestas coisas.Fragmentos de vasos de barro são estudados com a esperançade que venham revelar aquilo que os homens do passadotinham em mente e quais os métodos que divisaram paraalcançar os seus fins. Sempre julgamos a ciência e afilosofia, a tecnologia e a educação, quer no passado,quer no presente, com referência aos valores que foramseguidos por eles e aos valores que nos atraem.Naturalmente, os fins a que servem as realizações humanaspodem mudar. O que foi destinado à utilidade pode serpreservado visando à satisfação estética ou à harmoniasocial. Todavia, a relação de valor é inegável onde querque encontremos cultura.

Além disto, os valores para os quais se voltam estasrealizações humanas são predominantemente os do bom para ohomem. Filósofos, nas sociedades culturais, podemargumentar ou que os fins servidos pela cultura são ideaisou naturais, ou que eles são idéias de valor dadas à visãoespiritual ou aos bens naturais, isto é, que são fins queinteressam ao homem como um ser__________37. Assim Malinowski faz uso de um conceito central em suateoria de cultura: a idéia de “um sistema organizado deatividades propositais”. A Scientific Theory of Culture,caps. V e VI.

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biológico. Tanto num caso como no outro, contudo, elesparecem concordar em que o homem deve servir ao seupróprio bem, e que ele é a medida de todas as coisas.38 Aodefinir os fins que suas atividades devem alcançar nacultura, o homem começa consigo mesmo como o principalvalor e como fonte de todos os outros valores. O bom éaquilo que é bom para ele. Parece evidente, na cultura,que os animais devem ser ou domesticados ou aniquilados,uma vez tais medidas sirvam ao bem do homem; que Deus ouos deuses devem ser adorados tanto quanto for desejável ounecessário para a manutenção e desenvolvimento da vidahumana; que idéias e ideais devem ser servidos em favor daauto-realização humana. Embora a busca do bom-para-o-homemseja dominante na obra da cultura, não é evidente que esteantropocentrismo seja exclusivista. É não apenasconcebível que os homens devessem estar dispostos atrabalhar e produzir com vista ao bem-estar de algum outroser, mas parece também certo que eles, de fato, em suasculturas, procuram sempre servir a causas que transcendema existência humana. Desde as sociedades totêmicas até associedades modernas, eles se identificam com ordens de serque incluem mais do que os homens. Eles se definem comorepresentantes da ordem de seres racionais, e procuramrealizar o que é bom-para-a-razão. Eles também servem aosdeuses. A tendência pragmática de fazer todas as coisaspara o bem dos homens parece irrealizável. Deve-seacrescentar, contudo, que nenhuma cultura é realmentehumanista num sentido mais lato, pois que somente culturasparticulares existem de fato, e em cada uma delas umasociedade particular ou uma classe em particular (naquelasociedade) tende a se considerar centro e fonte

___________38. A Ética de Nikolai Hartman, 1932, que, de certo pontode vista, é uma grande filosofia da cultura, apresenta, aum só tempo, um forte argumento em favor do carátertranscendente e objetivo dos valores e uma defesa doprimado do valor humano.

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de valor, procurando conseguir aquilo que é bom para ela,justificando, embora, tal esforço pela pretensão de ter umstatus especial, como representante de algo universal.

Ainda mais, a cultura em todas as suas formas evariedades está voltada para a concretização material etemporal dos valores. Não quer isto dizer que os bens queo esforço humano procura concretizar sejam necessariamentetemporais ou materiais, ainda que o interesse que elesdespertam faça parte de toda a aquisição cultural. É falazpensar-se em cultura como sendo [só] materialista, como seaquilo que o homem procurasse conseguir com o seu trabalhofosse sempre a satisfação de suas necessidades, como umser físico e temporal. Mesmo as interpretações econômicasde cultura reconhecem que além dos bens materiais - istoé, dos valores relativos à existência física do homem,além de comida, bebida, roupa, procriação e ordemeconômica - os homens, na cultura, procuram valores menostangíveis. Mas mesmo os bens imateriais devem serconcretizados em forma temporal e material; mesmo o bom-para-o-homem, como pessoa e mente, deve receber "umahabitação e nome locais". Prestígio e glória por um lado,beleza, verdade e bondade, por outro - para usarmossímbolos insatisfatórios da teoria de valor espiritual -fazem-se presentes no sentimento, imaginação ou na visãointelectual. E o esforço humano insiste em incorporar emformas concretas, tangíveis, visíveis e audíveis, o quetem sido discernido imaginativamente. A harmonia eproporção, a forma, ordem e ritmo, os significados eidéias que os homens concebem e traçam em seu confrontocom a natureza, eventos sociais e o mundo dos sonhos,estes, por meio de infinito labor, eles têm de pintar emparedes e telas, de editar como sistema de filosofia eciência, de esboçar em pedra esculpida ou fundir embronze, de cantar em balada, ode ou sinfonia. Visões deordem e justiça, e esperança de glória são, ao preço demuito sofrimento, incorporadas em

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leis escritas, ritos dramáticos, estruturas de governo,impérios e vidas ascéticas.

Porque todas estas concretizações de propósitos sãoefetuadas em material instável e perecível, a atividadecultural é quase tão devotada à conservação de valoresquanto à sua realização. Muito da energia que os homensusam em qualquer época em suas sociedades se presta a essatarefa complicada de preservar o que eles herdaram efizeram. Suas casas, escolas e templos, suas estradas emáquinas estão em constante necessidade de conserto. Odeserto e o mato ameaçam qualquer terreno cultivado. Emaiores ainda são os perigos que circundam as conquistasmenos materiais do passado. Os sistemas de leis eliberdades, os costumes de inter-relações sociais, osmétodos de pensamento, as instituições de ensino ereligião, e as técnicas de arte, de linguagem e demoralidade, não podem ser preservados por simplesmanutenção, mediante conserto das paredes e documentos quesão seus símbolos. Em cada geração eles têm de serescritos de Novo "nas tábuas do coração". Se a educação eo aprendizado forem negligenciados por uma geração, cairáem ruínas toda a grandiosa estrutura das conquistas dopassado. Cultura e tradição social que deve ser conservadamediante dolorosa luta, não tanto contra as forçasdesumanas naturais, quanto contra os poderesrevolucionários e críticos na vida e razão humanas.39 Mas,quer estejam em questão os costumes ou os artefatos, acultura não pode ser mantida, a não ser que os homensdevotem uma grande parte dos seus esforços à obra deconservação.

Finalmente, deve-se dar atenção ao pluralismocaracterístico de toda cultura. Os valores que uma cultura__________39. Henri Bergson em As Duas Pontes de Moralidade e Re-ligião, 1935, oferece uma Interpretação persuasiva eesclarecedora do papel do conservantismo na cultura. Vercapítulos I e II. Ver também Lecomte du Nuoy, HumanDestiny, 1947, caps. IX e X.

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procura concretizar em qualquer tempo ou lugar são muitosem número. Nenhuma sociedade pode nem mesmo tentar arealização de todas as suas múltiplas possibilidades, poiscada uma destas é altamente complexa e constituída demuitas instituições com muitos propósitos e interferentesinteresses.40 Os valores são muitos, em parte porque oshomens são muitos. A cultura se dedica ao que é bom paraos sexos masculino e feminino, para criança e adulto, paragovernantes e governados; ao que é bom para homens emvocações e grupos especiais, de acordo com as noçõescostumeiras de tal concepção do bom. Além disto, todos osindivíduos têm exigências e interesses especiais; e cadaum, em sua individualidade, é um ser complexo, com desejosdo corpo e da mente, dotado de senso de auto-respeito e deoutros motivos, nas suas relações com outros homens, com anatureza e com seres sobrenaturais. Mesmo que prevaleçamas interpretações econômicas e biológicas de cultura, tudoo que se pode afirmar é que valores econômicos oubiológicos são fundamentais, embora a vasta superestruturade outros interesses deva ser reconhecida.41 Mas na culturaem que nos encontramos e vivemos, nem mesmo tal unidade,advogada por estas interpretações, é reconhecível. Osvalores que procuramos em nossas sociedades, e queencontramos representados no seu comportamentoinstitucional são muitos, desiguais e freqüentementeincomparáveis, de modo que elas estão sempre envolvidasnum esforço mais ou menos laborioso para manter juntos,num conflito tolerável, os muitos esforços de muitoshomens em muitos grupos; para conseguir e conservar muitosbens. As culturas sempre estão procurando combinar paz comprosperidade, justiça com ordem, liberdade com bem-__________40. Ver Benedict, Ruth, Patterns of Culture, 1934, cap.II; Malinowski, B., A Scientific The", etc., caps. X e XI.41. Ver, por exemplo, a afirmação de Frederico Engelssobre a relativa Independência da superestrutura, em suacarta de 21 de setembro de 1890 a Joseph Bloch. AdoratskyV., Karl Marx, Selected Works, vol. I, pag. 381.

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-estar, verdade com beleza, verdade científica com bemmoral, capacidade técnica com sabedoria prática, santidadecom vida, e tudo isto com o restante. Entre os muitosvalores, o Reino de Deus pode ser incluído - emboradificilmente - como uma pérola de grande preço. JesusCristo e Deus, o Pai, o evangelho, a Igreja, e a vidaeterna podem encontrar lugares no complexo cultural, massomente como elementos no meio do grande pluralismo.

Estas são algumas das características óbvias daquelacultura que impõe as suas exigências sobre qualquercristão, pois que este vive também sob a autoridade dela,quando vive sob a autoridade de Jesus Cristo. Muito emboraàs vezes enunciemos o problema humano fundamental comosendo o de graça e natureza, na existência humana nãoconhecemos uma natureza à parte da cultura. De qualquerforma não podemos nos escapar mais prontamente da culturado que da natureza, pois "o homem da natureza, oNaturmensch, não existe,"42 e “nenhum homem jamais olhapara o mundo com priscos olhos”.43

IV. AS RESPOSTAS TÍPICAS

Em face destas duas complexas realidades - Cristo ecultura - um diálogo infinito deve se desenvolver naconsciência cristã e na comunidade cristã. Em sua integraorientação rumo a Deus, Cristo desvia os homens datemporalidade e do pluralismo da cultura. Com o seuinteresse pela conservação dos muitos valores do__________42. Malinowski em Encyclopedia of Social Sciences, Vol.IV, pág. 621.43. Ruth Benedict, op. cit., pág. 2.

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passado, a cultura rejeita o Cristo que pede aos homensque confiem na graça. Todavia, o Filho de Deus é a mesmofilho de uma cultura religiosa, que envia seus discípulospara cuidarem dos seus cordeiros e ovelhas, os quais nãopodem ser protegidos sem obra cultural. O diálogo continuacom negações e afirmações, reconstruções, compromissos enovas negações. Nem o indivíduo nem a Igreja podem chegara um lugar de parada na infinda busca de uma resposta quenão provoque uma nova réplica.

Contudo, é possível discernir-se alguma ordem nestamultiplicidade - como se o diálogo parasse, mesmo, emcertos pontos - e chegar-se à definição de respostasparciais e típicas, que reaparecem freqüentemente emdiferentes eras e sociedades, e que parecem ser produtomenos do condicionamento histórico do que da próprianatureza do problema e da significação dos seus termos.Assim, o curso da grande conversa a respeito de Cristo ecultura pode ser mais inteligentemente seguido, e algunsdos frutos da discussão podem ser classificados. Noscapítulos seguintes tais respostas típicas deverão serapresentadas e ilustradas com referência a cristãos comoJoão e Paulo, Tertuliano e Agostinho, Tomás de Aquino eLutero, Ritschl e Tolstoi. Neste ponto será oferecida umadescrição breve e sumária dessas respostas típicas comoguia para o que se segue. Distinguimos cinco tipos derespostas, das quais três estão mútua e intimamenterelacionadas como pertencentes àquela espécie média em quetanto Cristo como a cultura são realçados e afirmados.Todavia, a semelhança de famílias estranhas pode seridentificada em toda a escala.

Respostas do primeiro tipo realçam a oposição entreCristo e cultura. Sejam quais forem os costumes dasociedade em que o cristão vive e as realizações humanasque ela conserva, Cristo é visto como oposto a eles, demodo que ele confronta os homens com o desafio de umadecisão, em termos de "ou um ou outro”. No períodoprimitivo da história da Igreja a rejeição judaica deJesus, defendida por Klausner, teve a sua contrapartida

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no antagonismo cristão para com a cultura judaica,enquanto que a proscrição romana da nova fé foi respondidapelos cristãos com as suas atitudes de fuga da civilizaçãogreco-romana e de ataque a ela. Nos tempos medievais,ordens monásticas e movimentos sectários apelavam aoscrentes que viviam numa cultura que tinha a intenção deser cristã para que abandonassem o "mundo" e para que"saíssem do meio deles e permanecessem separados". Noperíodo moderno, respostas deste tipo estão sendo dadaspelos missionários que exigem dos seus convertidos queabandonem por completo os costumes e instituições daschamadas sociedades "pagãs"; por pequenos grupos deretirantes cristãos na civilização ocidental ou"cristianizada", e por aqueles que realçam o antagonismoda fé cristã para com o capitalismo e o comunismo, paracom o industrialismo e o nacionalismo, para com ocatolicismo e o protestantismo.

O reconhecimento de um acordo fundamental entre Cristoe cultura é típico das respostas oferecidas por um segundogrupo. Nelas Jesus sempre aparece como um grande herói dahistória da cultura humana; sua vida e ensinos sãoconsiderados como a maior realização humana; crê-se quenele as aspirações humanas com referência aos seus valoresalcançam o seu ponto culminante; ele confirma o melhor dopassado e guia o processo da civilização ao seu alvopróprio. Além disto, ele é uma parte da cultura, nosentido de que ele mesmo é parte da herança social quedeve ser transmitida e conservada. Em nosso temporespostas deste tipo são dadas pelos cristãos que notam aíntima relação entre Cristianismo e civilização ocidental,entre os ensinos de ou sobre Jesus e instituiçõesdemocráticas. No entanto, há interpretações ocasionais queressaltam o acordo entre Cristo e a cultura oriental, bemcomo outras que pretendem identificá-lo com o espírito dasociedade marxista. Em tempos idos as soluções do problemapropostas nestes termos eram simuitaneamente oferecidascom

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as soluções do primeiro tipo, ou seja, "Cristo-contra-cultura".

Três outras respostas típicas apresentam mútuo acordoao procurarem manter as grandes diferenças entre os doisprincípios e sustentá-los juntos em certa unidade. Elas sedistinguem entre si, pelo modo em que cada qual procuracombinar m duas autoridades. Uma delas, o nosso terceirotipo, entende a relação entre Cristo e cultura mais oumenos como os homens do segundo grupo: ele é o cumprimentodas aspirações culturais e o restaurador das instituiçõesda verdadeira sociedade. Contudo, há nele algo que nemprovém diretamente da cultura nem contribui diretamentepara ela. Ele é ao mesmo tempo descontínuo e contínuo coma vida e cultura sociais. A última, de fato, leva oshomens a Cristo, mas o faz apenas de um modo tãopreliminar que um grande salto é necessário para que oalcancem, ou, ainda melhor, a verdadeira cultura não épossível, a menos que além de todas as realizaçõeshumanas, toda busca humana de valores, toda sociedadehumana, Cristo proceda de cima e penetre na vida, trazendodons que a aspiração humana não antevê e que o esforçohumano não pode atingir, a não ser quando relaciona oshomens com uma sociedade sobrenatural e com um Novo centrode valor. Cristo é, de fato, um Cristo da cultura, mas é,também, um Cristo acima da cultura. Este tipo de síntese émelhor representado por Tomás de Aquino e seus seguidores,mas conta com muitos outros representantes tanto nopassado como nos tempos modernos.

Um outro grupo de respostas medianas constitui o nossoquarto tipo. Nestas, a dualidade e a inescapávelautoridade tanto de Cristo como da cultura sãoreconhecidos, mas a oposição entre eles é, também, aceita.Aos que respondem à questão desta maneira, parece que oscristãos, em toda a sua vida, estão sujeitos à tensão queacompanha a obediência a duas autoridades que nãoconcordam entre si e contudo têm de ser obedecidas. Elesse recusam a acomodar os preceitos de Cristo

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aos da sociedade secular como o fazem, de acordo com o seuraciocínio, os homens do segundo e terceiro grupos. Assimeles são como os crentes do tipo "Cristo-contra-cultura",mas diferem deles pela convicção de que a obediência aDeus requer obediência às instituições da sociedade elealdade aos seus membros, bem como obediência a um Cristoque julga esta mesma sociedade. Daí o homem é visto comosujeito a duas moralidades, e como um cidadão de doismundos que não são apenas descontínuos mas intensamente seopõem.

Na polaridade e tensão de Cristo e cultura, a vidadeve ser vivida precária e pecaminosamente, na esperançade uma justificação que paira além da história. Luteropode ser considerado como o maior representante destetipo, mas, por outro lado, muitos cristãos, que não sãoluteranos, se vêem forçados a resolver o problema nestestermos.

Finalmente, como o quinto tipo na série geral e como aterceira das respostas de termo médio, há a soluçãoconversionista. Os que a propõem entendem com os membrosdo primeiro e quarto grupos que a natureza humana édecaída e pervertida, e que esta perversão não apenasaparece na cultura, mas é transmitida por ela. Daí aoposição entre Cristo e todas as instituições e costumeshumanos, que deve ser reconhecida. Todavia, a antítese nãoleva nem às separações do cristão em relação ao mundo,como no caso do primeiro grupo, nem a uma mera constânciana expectativa de uma salvação trans-histórica, como nocaso do quarto. Cristo é visto como o convertedor do homemna sua cultura e sociedade, e não à parte destas, pois nãoexiste nenhuma natureza sem cultura e nenhum ponto deconversão dos homens, do eu e dos ídolos, a Deus, excetona sociedade. É em Agostinho que os grandes esquemas destaresposta parecem ser propostos. João Calvino faz este tipoexplícito, e muitas pessoas se associam a ambos.

Quando as respostas ao problema duradouro sãoapresentadas desta maneira, fica parecendo que estamos

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diante de uma construção que é parcialmente artificial. Umtipo é sempre algo de construído, mesmo que não tenha sidoconstruído antes de um longo estudo de muitos indivíduos emovimentos históricos. Quando nos voltamos de esquemashipotéticos para a rica complexidade de eventosindividuais, fica evidente que nenhuma pessoa ou grupo seconforma completamente a um tipo.44 Cada figura históricaserá vista como portadora de características que são maisreminiscentes de alguma outra família que não aquela queentão lhe estará dando nome, ou surgirão traços queparecerão com-pletamente únicos e individuais. Contudo, ométodo de tipologia, embora historicamente inadequado, tema vantagem de chamar a atenção para a continuidade esignificação dos grandes motivos que aparecem e reaparecemno longo embate dos cristãos com o seu problema duradouro.Por conseguinte ele poderá também ajudar-nos a conseguirorientação, na medida em que, em nosso tempo, procuramosresponder a questão Cristo e cultura.___________44. O Psychological Types de C.J. Jung, 1924, é sugestivoe esclarecedor como um exemplo do método psicológico.Sobre a aplicabilidade a indivíduos das descrições detipo, ver especialmente as págs. 10 e segs. e 412 e segs.

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Capítulo Segundo

CRISTO CONTRA A CULTURA

I. O POVO NOVO E "O MUNDO"

A PRIMEIRA resposta à questão Cristo e cultura queconsideraremos é a que afirma sem meios termos a exclusivaautoridade de Cristo sobre o cristão e resolutamenterejeita as exigências de lealdade à cultura. Lógica ecronologicamente esta resposta parece merecer a primeiraposição: logicamente, porque ela parece provir diretamentedo princípio comum da Soberania de Jesus Cristo, e,cronologicamente, porque é amplamente aceito que ela foi aatitude típica dos primeiros cristãos. Embora ambas aspretensões possam ser questionadas, deve-se admitir quetal resposta foi dada bem cedo na história da Igreja, eque, à primeira vista, ela parece logicamente maisconsistente do que as outras posições.Enquanto vários trechos do Novo Testamento evidenciam algodesta atitude, nenhum deles a apresenta sem qualificação.O primeiro evangelho contrasta a nova lei com a velha, mascontém declarações muito explícitas sobre a obrigação deserem os cristãos obedientes

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não apenas ao código de Moisés, mas também aos preceitosdos lideres da sociedade judaica.1 O livro do Apocalipse éradical na sua rejeição do "mundo", mas aqui o problema écomplicado pela situação de perseguição em que os cristãosse encontravam. Entre os outros escritos, a primeira cartade João contém a apresentação menos ambígua deste ponto devista.

Esta pequena obra clássica de devoção e teologia temsido entesourada pelos cristãos devido à sua profundacompreensão e maravilhosa exposição da doutrina do amor.Ela chega à súmula simples da teologia cristã: "Deus éamor", e à formulação ética cristã e concisa: "Amai-vosuns aos outros”. Ela apresenta os três temas do amor,dispostos à maneira de uma fuga e em sua relaçãoinseparável: o amor de Deus pelo homem, e do homem a Deus,e do irmão ao irmão. "Nisto consiste o amor, não em quenós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou. …Nósamamos porque ele nos amou primeiro. …Amados, se Deus detal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aosoutros. …Se alguém disser: ‘Amo a Deus’ e odiar seu irmão,é mentiroso. …Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos unsaos outros, Deus permanece em nós e o seu amor é em nósaperfeiçoado. … Aquele que não ama seu irmão, a quem vê,não pode amar a Deus, a quem não vê”.2 O interesse centraldo escritor, contudo, é quase tanto a soberania de Cristoquanto a sua idéia de amor, pois "nisto se manifestou oamor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu filhounigênito ao mundo, para vivermos por meio dele", e "nistoconhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nós; edevemos dar nossa vida pelos irmãos”.3 Cristo tornapossível o amor do homem a Deus e ao próximo pela suademonstração de grandeza do amor de Deus_________1 Mateus 5:21-48, 5:17-20; 23:1-3.2. 1 João 4, vs. 10-12 combinados com os vs. 19-203. Ibid., 4:9; 3:16.

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pelo homem, o Cristo que ama os homens a ponto de dar asua vida por eles e que é o seu advogado no céu, é tambémaquele que requer aquilo que ele tem tornado possível. Oescritor de 1 João insiste na obediência ao mandamento deCristo não menos do que na confiança no amor de Deus.4 Oevangelho e a nova lei estão aqui integralmente unidos.5

Daí Deus requerer duas coisas: "O seu mandamento é este,que creiamos em o nome de seu Filho Jesus Cristo, e nosamemos uns aos outros, segundo o mandamento que nosordenou”.6 O duplo mandamento de amor a Deus e ao próximo,que o escritor conhece bem,7 sofre aqui uma certatransformação como resultado do reconhecimento de que oprimeiro movimento do amor não é do homem para Deus, masde Deus para o homem, e de que a primeira exigência davida cristã é, portanto, uma fé em Deus que é inseparávelda confiante aceitação de Jesus Cristo como seu filho. Éimensamente importante para a Primeira Epístola de Joãoque os cristãos sejam leais não a um Cristo meramenteespiritual, mas a um visível e tangível Jesus Cristo dahistória, o qual é, contudo, não apenas o Jesus dahistória, mas o Filho de Deus, inseparavelmente unido como invisível Pai em amor, retidão, e em poder para executare autoridade para ordenar”. Com estes dois temas de amor efé em Jesus Cristo, outras idéias tais como as do perdãodo pecado, do dom do Espírito e da vida eterna, estãointimamente relacionadas; não obstante, estes dois definema vida cristã, e ninguém poderá ser membro da comunidadecristã se não reconhecer Jesus como o Cristo e o Filho deDeus e se não amar os irmãos em obediência ao Senhor.__________4. Ibid., 2:3-11; 3:4-10, 21-24; 4:21; 5:2-3.5. Dodd, C. H., The Johannine Epistles, 1946, pág. xxxi.6. 1 João 3:23.7. Ibid., 4:21.8. Ver Ibid., 1:1-3; 2:1-2; 2:22-24; 3:8b; 4:2-3, 9-10,14-15; 5:1-5; ver também Dodd, op. cit., págs. xxx-xxxvi;1-6; 55-58.

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Esta declaração sucinta do sentido positivo do Cris-tianismo se faz, contudo, acompanhar de uma negaçãoigualmente enfática. A contrapartida da lealdade a Cristoe aos irmãos é a rejeição da sociedade cultural. Uma linhaclara de separação é traçada entre a fraternidade dosfilhos de Deus e o mundo. Com a exceção de dois casos,9 apalavra "mundo" significa evidentemente para o escritordesta carta o todo da sociedade fora da igreja, onde,entretanto, os crentes vivem.10 A injunção aos cristãos é:"Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Sealguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele”.11 Essemundo aparece como um reino sob o poder do mal; é a regiãodas trevas na qual os cidadãos do reino da luz não devempenetrar; caracterizado a permanência nele de mentiras,ódio e assassínios; é ele o herdeiro de Caim.12 Trata-se deuma sociedade secular dominada pela "concupiscência dacarne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida",ou, como o Prof. Dodd traduz essas frases, ele é a"sociedade pagã, com a sua sensualidade, superficialidadee pretensões, seu materialismo e seu egoísmo”.13 É umacultura que está voltada para os valores temporais epassageiros, enquanto Cristo tem palavras de vida eterna;é uma ordem a um tempo moribunda e assassina, pois "omundo passa e com ele a sua concupiscência”.14 É elamoribunda, contudo, não somente porque está voltada paraos bens temporais e porque contém as contradições internasde ódio e mentira, mas também porque Cristo velo paradestruir as obras do diabo e porque a fé nele é a vitóriaque vence o mundo__________9. I João 2:2; 4:14.10. Ver Dodd, Op. cit., págs. 27, 39-4511. 1 João 2:15.12. Ibid., 5:19; 1.'6; 2:8-9,11; 3:11-1513. Op. cit., pág. 42.14. I João 2,17; ver 2;8.

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do.15 Daí ser a lealdade do crente dirigida inteiramenterumo à nova ordem, à nova sociedade e seu Senhor.

A posição "Cristo-contra-cultura" não está apresentadaaqui na sua forma mais radical. Embora o amor ao próximotenha sido interpretado como significando amor ao irmão -isto é, ao companheiro crente - admite-se que Jesus Cristotenha vindo para expiar os pecados do mundo, o queprovavelmente significa, em I João, a expiação dos pecadosde todos os homens, considerados mais ou menosindividualmente. Embora não haja aqui nem uma declaraçãode que o cristão seja obrigado a participar na obra dasinstituições sociais, a sustentá-las ou convertê-las, nãohá também nem uma expressa rejeição do Estado ou dapropriedade como tais. Sem dúvida o fim do "mundo" pareciatão perto para o escritor, que ele não encontrou tempopara dar conselhos quanto a estes pontos. Tudo quanto seexigia dentro das circunstâncias era lealdade a JesusCristo e à fra-ternidade, sem preocupações pela culturatransitória.

Semelhantes expressões, embora menos profundas, damesma atitude podem ser encontradas em outros escritoscristãos do segundo século, sendo que Tertuliano apostulava de um modo radical. Os livros mais queridos daépoca, tais como O Ensino dos Doze, O Pastor de Hermes, AEpístola de Barnabé, e a Primeira Epístola de Clemente,apresentam o Cristianismo como uma maneira de vivercompletamente separada da cultura. Alguns deles são maislegalistas do que 1 João, apresentando o significado daSoberania de Cristo quase que exclusivamente em termos dasleis dadas por ele ou pela,s Escrituras, e considerando anova vida sob a divina misericórdia mais como umarecompensa a ser conquistada pela obediência do que comoum livre dom e como uma realidade presente.16 Mas, querseja a graça_________15. Ibid., 3:8; 5:4-5.16. Ver Lietzmann, H., The Beginnings of the ChristianChurch, 1937, págs. 261-273.

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quer seja a lei a realidade a receber ênfase como essênciada vida cristã, de qualquer forma esta é a vida em umacomunidade nova e separada. A idéia comum a este tipo dearrazoado do segundo século é a convicção de que osCristãos constituíam um Novo povo, uma terceira "raça"além dos judeus e dos gentios. Assim escreve Clemente:"Deus, que vê todas as coisas e que é o chefe de todos osespíritos e o Senhor de toda carne …escolheu Nosso SenhorJesus Cristo e nos escolheu também, através dele, parasermos um povo especial”. "I Como nos diz Harnack em seuresumo das crenças desses primeiros cristãos, eles estavampersuadidos de que “1) o nosso povo é mais velho do que omundo; 2) o mundo foi criado por causa de nós; 3) o mundocontinua existindo por nossa causa; 4) nós retardamos ojulgamento do mundo; 5) tudo no mundo, o princípio, ocurso e o fim da história nos está revelado e étransparente aos nossos olhos; 6) nós tomaremos parte nojulgamento do mundo e nós mesmos gozaremos a eterna bem-aventurança”.18 A convicção fundamental, contudo, era aidéia de que esta nova sociedade, raça, ou povo, tinhasido estabelecida por Jesus Cristo, o qual era o seulegislador e Rei. O corolário de toda a concepção era opensamento de que quem não pertence à comunidade de Cristoestá sob o governo do mal. Isto veio a se expressar nadoutrina dos dois caminhos: "há dois caminhos: um da vidae outro da morte, mas há__________17. 1 Clement lxiv, 1; ver Epistle of Barnabas, xiii-xiv.18. Harnack, A., Mission and Expansion of Christianity inthe First Three Centuries, 1904, vol. 1, pág. 302; verGavin, Frank, Church and Society in the Second Century,1934, que apresenta um retrato da vida cristã primitiva -especialmente à base da Apostolic Tradition de Hippolytus- como dominada pelo senso de sua "qualidade social e cor-porativa". "Era como se se dissesse que a jactância maisorgulhosa do crente era o ser ele um "membro". A suaqualidade mais essencial era o fato de que ele‘pertencia’”. P. 3 ver págs. 5, 8.

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uma grande diferença entre os dois”.19 O caminho da vidaera o cristão. Ele era indicado pela narração dosmandamentos da nova lei, tais como os mandamentos de amara Deus e ao próximo, a Regra de Ouro, os conselhos de amoraos inimigos e de não resistência ao mal, sendo quealgumas injunções extraídas do Velho Testamento eram,contudo, incluídas. O caminho da morte era descritosimplesmente como o curso vicioso da vida, de modo que aalternativa clara era ser um cristão ou um homem mau.Parece não haver nesta ética cristã o reconhecimento dofato de que em uma sociedade em que as regras do evangelhonão são reconhecidas há, não obstante, algumas outrasregras em vigor; e que como há virtudes e vícios nodomínio de Cristo, assim também há virtudes e víciosrelativos aos padrões da cultura não-cristã. A linha foiincisivamente traçada entre o Novo povo e a velhasociedade, entre obediência à lei de Cristo e simplesanarquia, embora alguma concessão à presença do governodivino nas instituições culturais e sobre elas sejaencontrada na oração de Clemente "que sejamos obedientesao teu nome plenipotente e glorioso, e aos nossos chefes egovernadores sobre a terra”. Ele, na medida em queprossegue, reconhece que "Tu, Senhor, lhes tens dado opoder de soberania mediante o teu poder excelente eindizível, para que possamos conhecer a glória e honradada a eles por ti, e nos sujeitemos a eles, em nadaresistindo a tua vontade”.20

O maior e o mais explícito representante do tipo "Cristo-contra-cultura" no Cristianismo dos primeiros tempos foi,sem dúvida, à parte os escritores do Novo Testamento,Tertuliano. Deve-se dizer sem delongas que ele não seenquadra completamente dentro do nosso padrão hipotético,mas demonstra traços que o relacionam com outras famíliase tipos. Ele é um trinitariano

19. The Teaching of the Twelve Apostles, i, 1; ver Barn-abas, xix-xx; Shepherd of Hermas, Mand, 6,i.20. I Clement ix, 4-lxi, 1.

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que entende que o Deus que se revela em Jesus Cristo é oCriador e o Espírito também; mas dentro desse contexto elereafirma a absoluta autoridade de Jesus Cristo, "o supremoCabeça e Senhor da graça e disciplina (prometidas porDeus), o iluminador e Instrutor da raça humana, o próprioFilho de Deus”.21 A lealdade de Tertuliano a Cristo podeser expressa em termos tão radicais como os seguintes:"Cristo Jesus Nosso Senhor (que ele seja paciente comigopor falar assim!), seja ele quem for, seja qual for o Deusde que ele é o Filho, seja qual for a substância de queele é homem e Deus, seja qual for a fé que ele ensina, e arecompensa que ele promete, declarou, enquanto vivia naterra, o que ele era, o que tinha sido, qual era a vontadedo Pai que ele estava ministrando, qual era o dever dohomem que ele estava prescrevendo”.22 EM toda,s as questõesos cristãos se referem primariamente a Cristo "como oPoder de Deus e o Espírito de Deus, como a Palavra, aRazão, a Sabedoria e o Filho de Deus," e a confissãocristã é: "Nós dizemos, e diante de todos os homens odizemos, e dilacerados e enxangue(sic) debaixo de…torturas, clamamos: ‘Nós adoramos a Deus através deCristo’”.23 Com esta concentração na Soberania de JesusCristo, Tertuliano combina uma rigorosa moralidade deobediência aos seus mandamentos, incluindo não apenas amoraos irmãos mas aos inimigos, não resistência ao mal,proibições de ira e de olhar cobiçoso. Como se pode verele é um severo puritano em sua interpretação do que a fécristã ordena em matéria de comportamento.24 Ele substituia ética positiva e cálida do amor que caracteriza aPrimeira Carta de João por uma__________21. Apology, cap. xxi. Este e o trecho seguinte foramtirados da tradução das obras de Tertuliano in Ante-NicenePathers, vols. 111 e IV.22. The Prescription Against Hereties, cap. xx. 23. Apol-ogy, xxiii, xx.24. Ver Apelogy, xxxix, xlv; De Spectaculis; De Corona; OnRepentance.

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moralidade altamente negativa: fuga ao pecado e temerosopreparo para o iminente dia do juízo parecem maisimportantes do que a grata aceitação da graça de Deus nodom de seu Filho.

A rejeição por Tertuliano dos preceitos da cultura é,da mesma forma, incisiva. O conflito do crente não é com anatureza mas com a cultura, pois é especialmente nacultura que o pecado reside. Tertuliano chega bem perto dopensamento de que o pecado original é transmitido pelasociedade, e que se não fossem os costumes viciosos quecercam uma criança a partir do seu nascimento, e a suaeducação artificial, a sua alma permaneceria boa. Ouniverso e a alma são naturalmente bons, pois Deus é quemos faz, mas "nós não devemos considerar apenas por quemtodas as coisas foram feitas, mas também por quem elas têmsido pervertidas", e que "há uma grande diferença entre oestado corrompido e aquela pureza primeva”.25 O quanto decorrupção e civilização são coincidentes no pensamento deTertuliano é em parte indicado na reflexão de que Cristoveio não para trazer "camponeses rústicos e selvagens… àcivilização… ; mas como alguém que tencionava iluminar oshomens já civilizados, e debaixo da.s ilusões de suaprópria cultura, para que eles viessem ao conhecimento daverdade”.26

Tudo fica mais claro quando notamos quais são osvícios que ele condena e qual é o mundanismo que o cristãotem de desprezar. A coisa mais viciosa é, por certo, areligião social pagã, com seu politeísmo e idolatria, suascrenças e ritos e sua comercialização.27 Tal religião,contudo, está inter-relacionada com todas__________25. A citação é de De Spectaculis, li. Sobre a doutrina dabondade natural da alma, ver Apology, xvii, The SoullsTestimony, e A Treatise on the Soul, o cap. xxxix fala dacorrupção da alma pelos costumes; conferir cap. xii.26. Apology, xxi.27. On Idolatry; Apology, x-xv.

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as outras atividades e instituições da sociedade, de mo-do que o Cristão está em constante perigo de compro- metera sua lealdade ao Senhor. Tertuliano, é bem verdade,rejeita a acusação de que os cristãos são "Inúteis nos quefazeres da vida", pois ele diz: "nós residimostemporariamente convosco no mundo, não desprezando nemfórum, nem açougue, nem banho, nem taverna, nem o mercadosemanal, nem qualquer outro lugar de comércio”. E ele atéacrescenta: "Nós navegamos convosco, lutamos ao vosso ladoe carpimos convosco o solo; e por semelhante modo nosunimos a vós em vosso tráfico - e até mesmo no campo demuitas artes nós publicamos as nossas obras para o vossobenefício.28 Isto, contudo, é dito como defesa. Quando eleadmoesta os crentes, seu conselho é para que eles seretirem dos muitos encontros e muitas ocupações, nãosomente porque estas coisas estão corrompidas por causa desua relação com a fé pagã, mas porque elas requerem ummodo de vida contrário ao espírito e à lei de Cristo.

Assim, a vida política deve ser evitada. "Como aquelesem quem todo ardor de busca de honra e glória está morto",escreve Tertuliano, ainda em defesa, "nada nos induzprementemente a participar de vossas reuniões públicas nemhá algo mais inteiramente estranho para nós do que aslides do Estado”. 29 Há uma contradição intima entre oexercício do poder político e a fé cristã. O serviçomilitar deve ser evitado porque envolve participação emritos religiosos pagãos e um juramento a César, eespecialmente porque ele viola a lei de Cristo, que "aodesarmar Pedro, desarmou a todo soldado”. Como "irá ofilho da paz participar na batalha quando não lhe convémnem mesmo instaurar processo__________28. Apology, xlii.29. Ibid., xxxviii. Em um outro lugar, no cap. xxi,Tertuliano observa que "Os Césares também teriam crido emCristo, se não tivessem sido necessários ao mundo, ou seos cristãos tivessem sido Césares”.

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legal?"30 o comércio não pode ser proibido com igual rigor,podendo até haver alguma justiça nesta prática, ainda queela seja só com muita restrição "adequada para um servo deDeus", pois a não ser a cobiça, que é um tipo deidolatria, não há motivo real para as aquisições.31

Quando Tertuliano se volta para a filosofia e as artesele é até mais drástico do que o fora no caso da profissãode soldado, na verberação de suas proibições. Ele não temnenhuma simpatia para com os esforços de alguns cristãosdo seu tempo de assinalar conexões positivas entre a suafé e as idéias dos filósofos gregos. "Fora!" exclama ele,"com todas as tentativas de produzir um cristianismomosqueado de composição estóica, platônica e dialética.Depois de termos Jesus Cristo não precisaremos de nenhumadisputa curiosa. …Tendo a fé que temos, não precisarmos denenhuma outra crença”.32 No Daímon de Sócrates ele descobreum demônio mau; os discípulos da Grécia não lhe parecemter coisa alguma em comum com "os discípulos do céu"; elescorrompem a verdade, eles estão a procura de sua própriafama, eles são meros palradores e não praticantes. Equando ele faz concessão, admitindo a presença de algumaverdade nestes pensadores não cristãos, crê que derivaramas suas percepções das Escrituras. A mancha da corrupçãoatinge as artes também. A erudição literária, é bemverdade, não pode ser completamente evitada; portanto,"aprender literatura é permissível aos crentes"; mas o seuensino deve ser desencorajado, pois é impossível quealguém seja um professor de literatura sem recomendar esem afirmar os louvores de ídolos espalhados dentrodela”.33 Quanto ao teatro, não apenas os jogos com sualeviandade e_________30. on idolatry, xix; De Corona, xi.31. on Idolatry, xi.32. Prescription Against Heretics, vii: Apology, xivi33. On Idolatry, x.

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brutalidade, mas a tragédia e mesmo a música são ministrosdo pecado. Tertuliano parece deleitar-se em sua visão dojuízo final, quando os ilustres monarcas que têm sidodeificados pelos homens, os sábios homens do mundo, Osfilósofos, os poetas, os trágicos, ao lado de atores elutadores, se angustiarão nas mais densas trevas ou serãolançados nas chamas ardentes, enquanto o filho docarpinteiro que eles desprezaram estará exaltado emglória.34

O grande teólogo norte-africano parece apresentar,então, a epítome da posição "Cristo-contra-cultura".Todavia ele se nos afigura mais radical e mais consistentedo que realmente o foi.35 Como teremos ocasião de observar,ele não pôde, de fato, emancipar a si mesmo e a igreja daconfiança e participação na cultura, embora esta fossepagã. No entanto, ele permanece como uma das maisexpressivas ilustrações do movimento anticultural nahistória da igreja.

II. A REJEIÇÃO DA CULTURA POR TOLSTOI

Não nos ocuparemos em descrever como este motif doCristianismo dos primeiros tempos se desenvolveu emmovimento monástico, com a retirada dos cristãos dasinstituições e sociedades da civilização, da família e doEstado, da escola e da Igreja socialmente estabelecida, docomércio e da indústria. Eventualmente, por certo, muitostipos de vida monástica surgiram e algumas das__________34. De Spectaculis, xxx.35. Conferir Cochrane, C.N., Christianity and ClassicalCulture, 1940, págs. 222 e segs. 227 e segs., 245 e segs.Para outras discussões da ética de Tertuliano verGuignebert, Charles, Tertullien. Étude sur ses Sentimentsa l'Égard de I’Empire et de la Societé Civile, 1901, eBrandt, Theodor, Tertulians Ethik, 1929.

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variedades ocuparam posições muito distintas das deTertuliano e da.Primeira Carta de João. Todavia, acorrente principal do movimento, como a representada pelaRegra de São Benedito, por exemplo, permaneceu na tradiçãode exclusiva cristandade. Seja qual for a contribuição queela trouxe à cultura, inclusive a reconhecida religiãosocial, esta foi acidental, um subproduto que não surgiuintencionalmente. Sua intenção era a consecução de umavida cristã, fora da civilização, em obediência às leis deCristo, e em busca de uma perfeição completamente distintados objetivos que os homens perseguem em política eeconomia, nas ciências e nas artes. O sectarismoprotestante - para usarmos o termo em seu sentidoestreito, sociológico - tem dado o mesmo tipo de respostaà questão Cristo e cultura. Das muitas seitas que surgiramnos séculos dezesseis e dezessete, protestando contra aigreja mundana, tanto Católica quanto Protestante, eprocurando viver unicamente sob a soberania de JesusCristo, apenas algumas poucas sobrevivem. Os Menonitaschegaram a representar mais puramente esta atitude, de vezque eles não apenas renunciam toda participação napolítica, e se recusam a prestar serviço militar, comoainda seguem os seus próprios costumes e regulamentosdistin- tivos na economia e na educação. A Sociedade dosAmigos, que não é tão radical, representa menosadequadamente este tipo, embora semelhanças de famíliapossam ser notadas, especialmente em conexão com a práticado amor fraternal e da abstenção do serviço militar. De ummodo geral os Quakers modernos manifestam maior afinidadecom a atitude oposta no Cristianismo, a saber, a queconsidera Cristo como o repre-sentante da Cultura.36

Centenas de outros grupos, muitos dos quais evanescentes,e milhares de indivíduos,__________36. A melhor discussão, dentro de uma só obra, da ética dosectarismo medieval e moderno pode ser encontrada emTroeltsch, E., The Social Teachings of the ChristianChurches, 1931, págs. 328 e segs., 691 e segs.

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pela sua lealdade a Cristo, têm-se sentido compelidos a seausentar da cultura e a deixar de lado todaresponsabilidade para com o mundo. Nós os encontramos emtodos os tempos e em muitas terras. No século dezenove enos primórdios do século vinte eles não atraíram muitaatenção, pois muitos cristãos pareciam crer que outraresposta ao seu problema tinha sido finalmenteestabelecida. Mas houve um homem que, à sua própriamaneira, e sob as circunstâncias de seu próprio tempo elugar, expôs a posição radical tão veemente econsistentemente como Tertuliano. Este homem foi LeonTolstoi. Ele é digno da nossa atenção especial por causada maneira grande e dramática em que apresentou as suasconvicções em sua vida e arte, e por causa da irradiaçãode sua influência no Leste e no Oeste, no Cristianismo efora dele.

A grande crise com que se defrontou Tolstoi pelosmeados de sua vida foi solucionada, depois de muitas epenosas lutas, quando ele aceitou o Jesus Cristo dosEvangelhos como a sua autoridade única e explícita. Nobrepor nascimento, rico por herança, e famoso pelas suasrealizações como autor de Guerra e Paz e Ana Karenina, elese achou, contudo, ameaçado em sua própria vida pela faltade sentido da existência e pelo disfarce ridículo de todosos valores que a sua sociedade prezava. Ele não pôde sairdeste desespero para a tranqüilidade e da completaparalisação da vida para nova atividade, antes dereconhecer a falibilidade de todas as outras autoridades ede aceitar o ensino de Jesus como uma verdade inescapávele fundamentada na realidade.37 Jesus Cristo sempre foi paraTolstoi o grande legislador, cujos mandamentos estavam deacordo com a verdadeira natureza do homem e com asdemandas__________37. Conferir o Prefácio de The Christian Teaching's, vol.XII, págs. 209 e segs. de The Toistoy Centenary Edition,London, 1923-37. (Esta edição será citada daqui por diantecomo Works). Conferir também "Uma Confissão", Works, Vol.XI, págs. 3 e segs.; "O Que Creio", Vol. XI, págs. 307 esegs.

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da razão incorrupta. Sua conversão se centralizou nacompreensão de que o que Jesus tinha realmente feito eradar aos homens uma nova lei, sendo que esta lei estavabaseada na verdadeira natureza das coisas. "Eu tenhocompreendido", escreve ele, descrevendo a grande mudançade sua vida, "o ensino de Cristo nos seus mandamentos evejo que o seu cumprimento oferece felicidade a mim e atodos os homens. Tenho compreendido que a prática destesmandamentos é da vontade daquela Fonte de tudo, de ondesaiu a minha vida. … Neste cumprimento está a únicapossibilidade de salvação. …E tendo entendido isto,entendi e cri que Jesus não é apenas o Messias, o Cristo,mas é realmente o salvador do mundo. Eu sei que não háoutra saída, nem para mim, nem para todos aqueles que comoeu estão atormentados nesta vida. Eu sei que para todos epara mim juntamente com eles não há outra maneira deescapar a não ser pelo cumprimento destes mandamentos deCristo que oferecem a toda humanidade o mais alto bem-estar que eu posso conceber".38 O sentido literal em queTolstoi interpretava a nova lei, especialmente como vistano capitulo cinco do evangelho segundo S. Mateus, e origorismo de sua obediência a ela fizeram de sua conversãoum evento muito radical. No pequeno livro intitulado O QueCreio ou Minha Religião, ele relata a história de seuesforço para entender o Novo Testamento, e de sualibertação da luta quando ele finalmente descobriu que aspalavras de Jesus deviam ser literalmente interpretadascom a eliminação do texto de todos os escólioseclesiásticos. Então ficou claro que os mandamentos deCristo eram uma afirmação da lei eterna de Deus, que eletinha abolido a lei de Moisés, e não tinha vindo, como aIgreja se inclinava a dizer, para reforçar a velha lei oupara ensinar que ele era a segunda pessoa da Trindade.39

Tolstoi acreditava estar interpretando fielmente_________38. "O Que Creio", Works, Vol. XI, págs. 447, 448.39. Ibid., págs. 353 e segs., 370 e segs.

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o evangelho quando se dispôs a resumir esta nova lei emquatro injunções definidas. O primeiro mandamento era:"Vive em paz com todos os homens e jamais consideresjustificada a tua ira contra alguém… Procura o quantoantes destruir toda inimizade entre ti e os outros paraque esta não se inflame e te destrua”. O segundo: "Nãotransformes em diversão o desejo de relações sexuais. Quecada homem tenha uma mulher e cada mulher um esposo e queo esposo tenha apenas uma mulher e cada mulher apenas umesposo, e sob nenhum pretexto seja desrespeitada a uniãosexual de um com o outro”. O "definido e praticávelterceiro mandamento é claramente expresso: Nunca jurar aalguém, em qualquer lugar, a respeito do que quer queseja. Todo juramento pode ser extorquido para mauspropósitos”. O quarto mandamento destrói a ordem social"estúpida e má" em que os homens vivem, pois ele dizsimples e claramente: "Não resistas ao malfeitor pelaforça; não respondas à violência com violência. Se tegolpearem, suporta com paciência; se tomam os teus bensdeixa que estes se vão; se te forçam a trabalhar,trabalha; e se desejam tomar de ti o que consideras teu,abandona-o”. Tolstoi entendeu o mandamento final, querequer amor ao inimigo como "regra definida, importante epraticável… : não fazer distinções entre a sua e as outrasnações e não praticar todas as coisas que resultam do fatode tais distinções serem feitas; não manter inimizades emrelação a nações estrangeiras; não fazer guerra, nemparticipar dela; não nos armemos para a guerra, mastenhamos diante de todos os homens, seja qual for a suaraça, o mesmo comportamento que temos para com o nossopróprio povo!”40 Tolstoi acreditava que mediante apromulgação destas cinco leis, Cristo tinha estabelecido oreino de Deus, embora admitindo ser a lei da nãoresistência a chave principal.__________40. Ibid., págs. 376 e segs., 386, 390, 392 e segs., 398,404. Conferir "The Gospel in Brief", Works, Vol. XI, págs.163-167.

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Como no caso de outros exemplos deste tipo que temosconsiderado, o outro lado de tal devoção aos mandamentosde Jesus Cristo é uma total oposição às instituições dacultura. Para Tolstoi estas instituições parecem estaralicerçadas sobre uma base complexa de erros, inclusive aaceitação da inevitabilidade do mal na presente vida dohomem, a crença de que a vida é governada por leisexternas de modo que os homens, por seus própriosesforços, não podem alcançar a bem-aventurança, o medo damorte, a identificação da vida verdadeira com a existênciapessoal, e, acima de tudo, a prática da violência e crençanela. Ainda menos que Tertuliano, pensa ele que acorrupção humana reside na natureza do homem. Para ele omal com que os homens contendem está na sua cultura,apenas. Além disso, Tolstoi parece compreender muito poucoa extensão e profundeza da penetração da cultura nanatureza humana. Daí poder ele dirigir o seu ataque contraa crença consciente, contra as instituições tangíveis econtra os costumes plausíveis da sociedade. Ele não secontenta em retirasse desta situação e em levar uma vidamonástica, apenas, mas se transforma também em umbatalhador contra a cultura, sob o estandarte da lei deCristo.

Há um libelo contra cada fase da cultura. Embora oEstado, a Igreja e o sistema de propriedade sejamcidadelas do mal, a filosofia, as ciências e as artestambém incorrem em condenação. Para Tolstoi não existe talcoisa como um bom governo. "Os revolucionários dizem:‘Aorganização governamental é má neste ou naquele ponto,devendo ser destruída e substituída por isto ou poraquilo’. Mas um cristão diz leu nada sei sobre organizaçãogovernamental, ou sobre o quanto de bem ou de mal existenela, e por isto não quero sustentá-la’. …Todas asobrigações estatais estão contra a consciência de umcristão: o voto de fidelidade,

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impostos, as transações legais e o serviço militar”.41 OEstado e a fé cristã são simplesmente incompatíveis, poiso Estado se baseia no amor do poder e no exercício daviolência, enquanto que o amor, a humildade, o perdão e anão-resistência conduzem a vida cristã para fora dasinstituições e medidas políticas. O Cristianismo nãoapenas considera o Estado como algo desnecessário, masainda solapa os seus fundamentos e o destrói por dentro. Oargumento de cristãos como Paulo, de que o Estado exerceuma função na restrição do mal, não convence Tolstoi, poisele vê o Estado como o principal ofensor da vida.42 Contrao mal que ele traz não há nenhuma defesa, exceto a recusade participação na sua vida, e o esforço não violentovisando a converter todos os homens ao Cristianismopacífico e anárquico.

Embora as igrejas se chamem de cristãs, elas estãomuito longe do Cristianismo de Jesus. Tolstoi as consideracomo organizações centralizadas em si mesmas, que insistemem sua própria infalibilidade. São elas servas do Estado,defensoras de um regime de violência e privilégio, dedesigualdade e de propriedade, obscurecendo e falsificandoo evangelho. "As igrejas, como igrejas, são instituiçõesanticristãs", completamente hostis em seu "orgulho,violência, auto-afirmação, imobilidade e morte" à"humildade, penitência, mansidão, progresso e vida" doCristianismo.43 Como no caso dos Estados, a reforma de taisinstituições é completamente inadequada. Cristo não asfundou e, portanto, a compreensão de sua doutrina não vaireformar, mas sim "destruir as igrejas e o que elassignificam".44 A este te- ma, como à crítica do Estado,Tolstoi vem constantemente de volta. A igreja é umainvenção do diabo;

41. "The Kingdoni of God Is Within You, Warks, Vol. XX,págs. 275 e segs.42. Ibid., págs. 231 e segs.43. Ibid., pág. 82.44. Ibid., págs. 69, 101.

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nenhum homem honesto, crendo no evangelho, pode continuarsendo um padre ou um pregador; todas as igrejas sãosemelhantes em sua traição à lei de Cristo; igrejas eEstados, juntos, representam a institucionalização daviolência e da fraude.45

O ataque de Tolstoi às instituições econômicas éigualmente intransigente. Seu próprio esforço de renunciarà propriedade, permanecendo, porém, com alguma parcela deresponsabilidade em sua administração, constitui parte desua tragédia pessoal. Ele acreditava que as pretensões dapropriedade estavam alicerçadas no roubo e eram mantidaspela violência. Com maior radicalismo do que os cristãosradicais do segundo século, e do que muitos monges, ele sevoltou até contra a subdivisão do trabalho na sociedadeeconômica. Isto lhe parecia um meio usado por pessoasprivilegiadas, como os artistas, intelectuais e outros damesma espécie, para absorver o labor de outros,justificando-se pela crença de serem seres de uma ordemsuperior à dos operários, ou pretendendo que a suacontribuição à sociedade era tão grande que compensava omal que praticavam contra os que se dedicavam a trabalhosmanuais, mediante as suas exigências. Para Tolstoi, aprimeira suposição tem sido bombardeada pelo ensinocristão a respeito da igualdade humana; e a contribuiçãofeita à sociedade pelos privilegiados lhe parece dúbiaquando não é nociva. Daí insistir ele com os homens dasociedade, os intelectuais, bem como os militares e ossenhores donos__________45. Conferir "The Restoration of Hell", uma fábula pequenae maravilhosa em que o estabelecimento do reino do mal naterra depois da vitória de Cristo é explicadoparticularmente pela invenção da Igreja. O diabo que ainventou explica a Belzebu: "Eu arranjei isto para que oshomens não creiam nos ensinamentos de Cristo, mas nosmeus, os quais eles atribuem a ele (which they call by hisname)”. Works, Vol. XII, págs. 309 e segs. Conferir também"Religion and Morality", "What is Religion?", "Church andState", "An Appeal to the Clergy", no mesmo volume.

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da terra, para que deixem de ser iludidos por si mesmos erenunciem a sua tendência de auto justificação, suasvantagens e suas distinções, passando a trabalhar com todoo seu poder para sustentar-se a si mesmo e sustentar,também, aqueles que se dedicam ao labor manual. Seguindoos seus próprios princípios ele tentou ser o seu próprioalfaiate e sapateiro, e teria apreciado ser o seu própriojardineiro e cozinheiro.46

Como Tertuliano, Tolstoi se voltou, também, contra asfilosofias, ciências e artes de que ele se alimentara. Asduas primeiras são não apenas inúteis, porque falham emresponder às questões fundamentais do homem a respeito dosentido da vida e do comportamento, mas também porque elasse baseiam em falsidades. As ciências experimentaisdevotam grandes energias para confirmar um dogma que tornafalso todo o seu esforço, especialmente o dogma de que"matéria e energia existem", enquanto nada fazem paramelhorar a vida concreta e real do homem. "Eu estouconvencido", diz Tolstoi, "de que dentro de alguns séculosa chamada atividade ‘científica’ dos nossos laureadosrecentes séculos de humanidade européia propiciará umfundo inextinguível de gracejos e piedade às futurasgerações”.47 A filosofia não nos leva muito além doreconhecimento de que tudo é vaidade; mas "o que estáoculto para os sábios e prudentes está revelado aospequeninos”. O simples camponês que segue o sermão damontanha sabe aquilo que os grandes e sábios não podementender. "Talentos especiais e dons intelectuais sãonecessários não para o conhecimento e exposição daverdade, mas para a invenção e exposição da falsidade”.48

_________46. "What Then Must We Do?", Works, Vol. XIV, págs. 209 eSegs., 296 e segs., 311 e segs.47. "Waht I Believe", Works, Vol. XI, pág. 420; conf. "AConfession", Vol XI, págs. 23 e segs.; "On Life", Vol.XII, págs. 12 e segs.

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O artista Tolstoi não pôde romper por completo com asartes. Ele pelo menos fez uma distinção entre a arte boa emá. Na última categoria, enquadrou todas as suas obras dosprimeiros tempos, com a exceção de duas pequenashistórias, toda arte "dócil" destinada às classesprivilegiadas, e mesmo Hamlet e a Nona Sinfonia. Masadmitiu lugar para uma arte que fosse uma sinceraexpressão e comunicação de sentimento, que tivesse apelouniversal, que fosse compreendida pelas massas, e queestivesse de acordo com a consciência moral cristã.49

Assim, quando ele não devotava o seu grande talentoliterário a escrever homilias e tratados sobre não-resistência e sobre a verdadeira religião, ele produziaparábolas e histórias tais como "Onde Existe Amor Ali estáDeus" e "Mestre e Homem”.

Tolstoi naturalmente não se enquadra completamentedentro do nosso tipo, da mesma forma em que nenhum grandeindivíduo se enquadra dentro de um padrão. Ele é como oautor de I João em seu louvor do amor e em sua rejeição da"concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e doorgulho da vida”. Ele é como Tertuliano na veemência deseu ataque às instituições sociais. Ele é como os mongesem seu retiro pessoal para uma vida de pobreza. Mas em suarelação pessoal com Cristo ele difere de todos estes, poisneles se pode achar uma devoção pessoal a Cristo quesurpreendente-mente está faltando em Tolstoi. Para ele alei de Cristo é muito mais significativa do que a pessoado legislador. Máximo Górki observou que quando Tolstoifalava de Cristo não havia "em suas palavras nenhumentusiasmo, nenhum sentimento, e nenhuma centelha real deFogo”.50 Os seus escritos de maneira__________48. "Reason and Religion", Works, Vol. XII, pág. 202;conf. "A Confession", Vol. XI, págs. 56 e segs., 73 esegs.49. "What Is Art? Works, Vol. XVIII págs. 231 e segs.50. Górki, Máximo, Reminiscences of Leo NikolaevichTolstoy, 1920, pág. S.

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geral dão base a este juízo. Além disto, Tolstoi manifestapouca compreensão do sentido da graça de Deus revelada emJesus Cristo, da natureza histórica da revelação cristã,da profundidade psicológica, moral e espiritual tanto dacorrupção como da salvação. Por isto mesmo ele foi maislegalista do que o próprio Tertuliano. Todavia, nahistória moderna e sob as condições da cultura moderna, deque em parte ele foi um produto, Tolstoi permanece como umclaro exemplo do Cristianismo anticultural.51

Seria fácil multiplicar as ilustrações deste tipo.Descritas umas após outras elas constituiriam um grupomuito diversificado, incluindo católicos do oriente e deocidente, ortodoxos e protestantes sectários, milenaristase místicos, cristãos antigos, medievais e modernos.Todavia, a sua unidade de espírito se faria evidente noseu reconhecimento comum da autoridade exclusiva de JesusCristo, e na sua rejeição comum da cultura corrente. Nãoimporta se essa cultura é auto-intitulada cristã ou não,porque para estes homens ela é sempre pagã e corrupta. Nemé de grande significação se estes cristãos pensam emtermos místicos ou apocalípticos. Como apocalípticos, elesprofetizarão o fim iminente da velha sociedade e apenetração na história de uma nova ordem divina. Comomísticos, eles experimentarão e anunciarão a realidade deuma ordem eterna, oculta às aparências do temporal e docenário cultural. A pergunta importante a ser levantada arespeito destes cristãos não é sobre se eles pensamhistórica ou misticamente a respeito do reino de Deus, masse eles estão convencidos de que ele está próximo, e sãogovernados por esta convicção, ou se pensam sobre ele comoalgo relativamente remoto no tempo e no espaço erelativamente deficiente quanto ao seu poder. Nem sãodecisivas as diferenças entre protestantes e católicos__________51. Para uma completa descrição da vida e obras de Tolstoiver a obra de Aylmer Maude Life of Tolstoy e a de ErnestJ. Simmon Leo Tolstoy.

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As características monásticas ressurgem entre osprotestantes sectários, e um Kierkegaard ;ataca oCristianismo da cultura pós-Reforma com a mesmaintransigência que caracteriza o arrojo de um Wiclifcontra a fé social da Idade Média. Ainda que estes homense movimentos sejam muitos e diversificados, eles dão umaresposta comum e reconhecível ao problema de Cristo, eCultura.

III. UMA POSIÇÃO NECESSÁRIA E INADEQUADA

É fácil levantar objeções a esta solução do dilemacristão. Todavia, cristãos inteligentes, que não assumemesta posição, reconhecerão a sinceridade de muitos dosseus expoentes, sua importância histórica e suanecessidade no encontro total de Igreja e mundo.

Homens parvos e medíocres abundam no movimentoanticultural como em qualquer outro lugar, e, sem dúvida,a hipocrisia floresce aqui também. Contudo, a integridadee sinceridade dos grandes representantes figuram entre assuas mais atraentes qualidades. Tem havido uma espécie de"reduplicação" kierkegaardiana em suas vidas, pois elesexpressaram em ações o que disseram em palavras. Eles nãotrilharam caminhos fáceis na profissão de sua aliança aCristo. Eles suportaram sofrimentos físicos e mentais emsua disposição de abandonar lares, propriedades e aproteção do governo, por amor a esta causa. Eles aceitaramo escárnio e a animosidade que a sociedade inflige aosinconformistas. Desde a perseguição dos cristãos no tempode Domiciano até a prisão das Testemunhas de Jeová daAlemanha nacional-socialista e na América democrática,tais pessoas têm estado sujeitas ao martírio. Para ospacifistas cristãos de nosso tempo, que

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pertencem a este grupo - e não é o caso de todos ospacifistas - os seus sofrimentos lhes parecerão, eparecerão a outros, ser mais evidentemente devidos àobediência a Jesus Cristo do que os de um soldado cristãoque sofre e morre. Parte do apelo da resposta "Cristo-contra-cultura" está nesta evidente reduplicarão no seucomportamento daquilo que eles professam. Quando nósagimos assim parece que provamos para nós mesmos e para osoutros que acreditamos profundamente no que dizemos aoafirmarmos que Jesus Cristo é o nosso Senhor.

Estas fugas e rejeições cristãs das instituições dasociedade têm sido, na história, de grande importância,tanto para a Igreja como para a cultura. Elas têm mantidoa distinção entre Cristo e César, entre revelação e razão,entre a vontade de Deus e a vontade do homem. Elas têmprovocado reformas tanto na Igreja como no mundo, muitoembora não fosse este o seu propósito. Eis porque homens emovimentos desta espécie são sempre celebrados pelo seuheróico papel na história de uma cultura que elesrejeitaram. O que Montalembert disse de Bento de Núrsia seaplica de uma maneira ou de outra a quase todos os grandesrepresentantes do Cristianismo exclusivista: "Oshistoriadores têm rivalizado em louvar o seu gênio e a suaclarividência; eles têm imaginado que ele tencionavaregenerar a Europa, pôr termo à dissolução da sociedade,preparar a reconstituição da ordem política, restabelecera educação pública e preservar a literatura e as artes.…Eu creio firmemente que ele nunca sonhou em regenerarcoisa alguma, a não ser exclusivamente a sua alma e asalmas dos seus irmãos, os monges".51 Sem dúvida o idealindividualista da regeneração da alma não é uma chaveadequada para a atitude do cristão radical; mas nem__________52. De Montalembert, The Monks of the West, 1896, Vol. 1,pág. 436.

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o é a esperança de reforma social. Eles cumprem em termosde reforma social o que não intencionavam. Os crentes dosegundo século, que não mostravam nenhum interesse paracom o governo do César, prepararam o caminho para otriunfo social da Igreja e para a conversão do mundo pagãoem uma civilização cristã. O sistema monástico tornou-se,eventualmente, um dos grandes preservadores etransmissores da tradição cultural; treinava ele muitoslíderes eclesiásticos e políticos da sociedade; fortaleciaele as instituições de que se haviam retirado os seusfundadores. Os sectários protestantes fizeram umaimportante contribuição a costumes políticos e tradições,tais como os que garantem liberdade religiosa a todos osmembros de uma sociedade. Quakers e tolstoístas,pretendendo apenas abolir todos os métodos de coerção, têmajudado a reformar prisões, a limitar armamentos e aestabelecer organizações internacionais para a manutençãoda paz mediante a coerção.

Agora que temos reconhecido a importância do papeldesempenhado pelos cristãos anticulturais na reforma dacultura, devemos, imediatamente ‘assinalar que eles nuncaatingiram esses resultados sozinhos ou diretamente, masapenas através de crentes que deram uma resposta diferenteà questão fundamental. Não foi com Tertuilano mas sim comOrígenes, Clemente de Alexandria, Ambrósio e Agostinho quese iniciou a reforma da cultura romana. A reformamedieval, tantas vezes atribuída a Bento de Núrsia, não seconsumou com ele mas com Francisco, Domingos e Bernardo deClairvaux. Não com George Fox, mas com William Penn e JohnWoolman, dá-se a mudança das instituições sociais naInglaterra e na América. E em cada caso os seguidores nãopropriamente comprometeram os ensinos dos radicais, masseguiram outra inspiração, diferente daquela derivada deuma exclusiva lealdade a um Cristo exclusivo.

Todavia a resposta radical cristã ao problema dacultura precisava ter sido dada no passado, e sem

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dúvida precisa ser dada agora. Ela tem de ser dada emfavor de si mesma, e porque sem ela outros grupos cristãosperdem o seu equilíbrio. A relação da autoridade de JesusCristo com a autoridade da cultura é tal que cada cristãodeve sentir-se freqüentemente convocado pelo Senhor arejeitar o mundo com os seus reinos, com seu pluralismo etemporalismo, seus compromissos paliativos de muitosinteresses, sua obsessão hipnótica pelo amor da vida etemor da morte. O movimento de abandono e renúncia é umelemento necessário em cada vida cristã, mesmo quando sefaz acompanhar de um movimento igualmente necessário deenvolvimento em tarefas culturais. Onde falta isto, a fécristã rapidamente se degenera em um artifício utilitáriode consecução de prosperidade pessoal ou de paz pública; ealgum ídolo, então inventado, toma o lugar de JesusCristo, o Senhor, chamando-se pelo seu nome. Aquilo que sefaz necessário na vida individual é requerido também naexistência da Igreja. Quando Romanos 13 não écontrabalançado por I João, a Igreja se transforma eminstrumento do Estado, incapaz de apresentar aos homens oseu destino e lealdade que pairam além da política;incapaz também de se envolver em tarefas políticas a nãoser como um grupo a mais de homens famintos de poder ou embusca de segurança. Em face de Jesus Cristo, com suaautoridade, a resposta radical é inevitável, não somentequando os homens estão em desespero a respeito de suacivilização, mas também quando eles estão complacentes emrelação a ela; não somente quando esperam por um reina deDeus, mas também quando se se encostam às paredescambaleantes das sociedades temporais por amor aos homensque poderiam vir a ser soterrados pelas suas ruínas. Devez que a eternidade não pode ser traduzia em termostemporais, nem o tempo em eternidade; de vez que Cristo eCultura não podem ser amalgamados, a resposta radical éinevitável na Igreja.

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Ela é uma resposta inevitável, mas é tambéminadequada, como os membros de outros grupos na Igrejapodem facilmente verificar. Ela é inadequada porque afirmacom palavras o que nega na prática, a saber, apossibilidade de dependência somente de Jesus Cristo, coma exclusão da cultura. Cristo não chama homem algum comoum ser puramente natural, mas sempre como alguém que sefez humano dentro de uma cultura, alguém que não existeapenas na cultura, sendo, contudo, alguém em quem acultura tem penetrado. O homem não apenas fala, mas tambémpensa com a ajuda da linguagem da cultura. Não apenas temo mundo objetivo em volta dele sido modificado porrealizações humanas, mas as próprias formas e atitudes desua mente, que lhe permitem perceber o sentido de mundoobjetivo, lhe têm sido dadas pela cultura. Ele não podedesprezar a filosofia e ciência de sua sociedade, como seestas fossem externas a ele. Elas estão nele, embora emformas diferentes daquelas que aparecem nos líderes dacultura. Ele não pode se livrar das crenças políticas edos costumes econômicos pela rejeição das instituiçõesmais ou menos externas, pois estes costumes e crenças têmestabelecido residência na sua mente. Se os cristãos nãose apresentam a Cristo com a linguagem, padrões depensamento, e disciplina moral do judaísmo, eles o farãocom os de Roma; se não for com os de Roma poderá ser comos da Alemanha, da Inglaterra, Rússia, América ou China.Daí estarem os cristãos radicais sempre fazendo uso dacultura ou de partes da cultura que eles rejeitamostensivamente. O escritor de 1 João usa os termos daquelafisolofia gnóstica cujo uso pagão ele não aprova.53

Clemente de Roma usa idéias semi-estóicas. Em quase toda asua maneira de falar Tertuliano deixa evidente que ele éromano, tão bem educado na tradição legal e tão dependenteda filosofia, que não pode expor a questão cristã sem__________53. Conf. Dodd, C.H. Op. cit.xx, xlii, et passim.

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a sua ajuda.54 Tolstoi se torna inteligível quandointerpretado como um russo do século dezenove, queparticipa, tanto conscientemente quanto nas profundezas desua alma inconsciente, dos movimentos culturais do seutempo e do senso místico de comunidade dos russos, com oshomens e com a natureza. E isto acontece com todos osmembros de grupo radical cristão. Quando eles se encontramcom Cristo, o fazem como herdeiros de uma cultura que nãopodem rejeitar por ser parte deles. Eles podem se retirarde suas expressões e instituições mais óbvias, mas, namaioria dos casos, podem apenas selecionar - e modificar,sob a autoridade de Cristo - algo que receberam porintermédio da sociedade.

A conservação, seleção e conversão das realizaçõesculturais não são apenas um fato. São também uma exigênciamoralmente inescapável, com que o cristão exclusivista temque se defrontar por ser uni cristão e um homem. Se elevai confessar Jesus Cristo diante dos homens, terá defazê-lo por meio de palavras e idéias derivadas dacultura, embora uma mudança de sentido se faça tambémnecessária. Ele deve usar palavras tais como "Cristo" ou"Messias" ou "Kyrios" ou “Filho de Deus" ou "Logos”. Seele vai dizer o que significa "amor", terá de escolherentre palavras tais como “Eros”, “filantropia" e "agape",ou "caridade", "lealdade" e "amor", procurando a que maisse aproxime do significado de Jesus Cristo, e modificando-a pelo uso no contexto. Estas coisas ele terá de fazer,não somente para que possa comunicar, mas para que elemesmo conheça o que (e em quem) ele crê. Quando se dispõea cumprir os preceitos de Jesus Cristo, ele se vê, emparte, sob a necessidade de traduzir em termos de suaprópria cultura o que foi ordenado em termos de outra, e,em parte, sob a exigência de dar precisão e sentido aos___________54. Conf. Shortt, C. De Lisle, The Influence of Philosophyon the Mind of Tertugian, e Beck, Alexander, RoemischesRecht bei Terlullian und cyprian.

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princípios gerais, adotando regras especificas que sejamrelevantes à sua vida social. Qual é o sentido dasdeclarações de Jesus a respeito do sábado, em umasociedade que não guarda tal dia? Devem tais declaraçõesser introduzias e modificadas, ou deixadas de lado comoparte de uma cultura alheia e não cristã? Qual é o sentidode orarmos a um Pai no céu, em uma cultura com umacosmologia que difere radicalmente daquela da Palestina doprimeiro século? Como serão os demônios expulsos onde nãose aceita que eles existem? Não há jeito de escaparmos dacultura aqui. A alternativa parece estar entre o esforçode reproduzir a cultura em que Jesus viveu, ou o detraduzir suas palavras na de outra ordem social. Alémdisto, o mandamento de amor ao próximo não pode serobedecido, exceto em termos específicos que envolvem acompreensão cultural da natureza do próximo, e exceto ematos específicos dirigidos a ele, como um ser que tem umlugar na cultura, como membro da família ou da comunidadereligiosa, como amigo ou inimigo nacional, como rico oupobre. Em seu esforço de ser obediente a Cristo, o cristãoradical re-introduz, portanto, idéias e regras da culturanão-cristã em duas áreas: no governo da comunidade cristãque se retirou, e na regulamentação do comportamentocristão com referência ao mundo que está fora.

A tendência do Cristianismo exclusivista é a deconfinar os mandamentos de lealdade a Cristo, de amor aDeus e ao próximo, dentro dos limites da comunidadecristã. Aqui também as outras exigências do evangelhodevem ser impostas. Mas, como Martin Dibelius, entremuitos outros, tem observado, "as palavras de Jesus nãoforam propostas como regras éticas para uma cultura cristãe, mesmo que fossem assim aplicadas, não seriamsuficientes para prover uma resposta a todas

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as questões da vida cotidiana”.55 Outras ajudas se fizeramnecessárias, e foram encontradas pelos cristãos dosprimeiros tempos na ética popular judaica e judaico-helenística. É admirável o quanto a ética do Cristianismodo segundo século - como sintetizada, por exemplo, noEnsino dos Doze e na Epístola de Barnabé - contém dematerial estranho ao Novo Testamento. Estes cristãos quepensavam a respeito de si mesmos como sendo uma nova"raça", distinta de judeus e gentios, buscaram nas leis ecostumes de que se tinham separado aquilo de que elesnecessitavam para a vida comum, mas não tinham recebido desua própria autoridade. A situação é semelhante no casodas regras monásticas. Bento de Núrsia busca baseespiritual para todas as suas regulamentações e conselhos,mas o Novo Testamento não é suficiente para ele, e nem aBíblia como um todo. E ele deve encontram em velhasreflexões sobre a experiência humana na vida social, asregras por meio das quais vai ser governada a novacomunidade. O espírito em que as regulamentações tantoescriturísticas como não escriturísticas são apresentadastambém mostra quão impossível é ser-se apenas um cristãosem referência à cultura. Quando Tertuliano recomendamodéstia e paciência, os semitons estóicos estão semprepresentes. E quando Tolstoi fala de não-resistência, asidéias rousseauístas estão no contexto. Mesmo quando nãose fez uso algum de outra herança, a não ser a que veio deJesus Cristo, as necessidades da comunidade retirantelevam ao desenvolvimento de uma nova cultura. Invenção,realização humana, realização temporal de valor,organização da vida comum - tudo deve entrar. Quando osdogmas e ritos da religião social têm sido abandonados, umNovo dogma e um Novo ritual devem ser desenvolvidos, se aprática religiosa se destina a ter seqüência. Portanto, osmonges elaboram os seus próprios rituais em seusmosteiros, os silêncios quakers__________55. Dibelius, Martin, A Presh Approach to the New Test-ment, pág. 219.

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se tornam tão formalizados como massas, e os dogmas deTolstoi são tão confiantemente proclamados como os daIgreja russa. Quando o Estado foi rejeitado, a comunidadecristã exclusivista desenvolveu alguma organizaçãopolítica própria e o fez com ajuda de idéias que não foramas que procediam da injunção de que o primeiro será servode todos. Ela tem chamado os seus líderes de profetas ouabades, e suas assembléias governantes de reuniõestrimestrais ou congregações. Ela tem, por meio da opiniãopopular, imposto a uniformidade e o expediente de expulsãoda sociedade. De qualquer maneira ela tem mantido umaordem interna, não de um modo geral, mas dentro de um modoespecífico de vida. As instituições de propriedadevigentes foram postas de lado, mas alguma coisa além doconselho de vender tudo e dar aos pobres se feznecessária, de vez que mesmo em estado de pobreza oshomens tinham de se alimentar, de se vestir e de seabrigar. Portanto, as vias e os meios de aquisição edistribuição de bens foram descobertos e uma nova culturaeconômica foi estabelecida.

No trato com a sociedade que considera pagã, mas daqual nunca consegue se separar totalmente, o cristãoradical também tem sempre sido solicitado a recorrer aprincípios que ele não conseguiu derivar diretamente desua convicção da soberania de Cristo. O seu problema aquitem sido o de viver em um intervalo. Quer sejam oscristãos exclusivistas escatologistas ou espiritualistas,em ambos, os casos eles têm de levar em conta o "porenquanto", o intervalo entre a aurora de uma nova ordem devida e sua vitória, o período em que a temporal e omaterial não têm sido transformados ainda em espiritual.Eles não podem, portanto, se separar completamente domundo da cultura que está ao redor deles, nem daquelasnecessidades deles mesmos que tornam esta culturaindispensável. Embora o mundo esteja em trevas, distinçõesentre o que é

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relativamente certo e errado têm de ser feitas neste mesmomundo, e nas relações cristãs com ele. Assim, Tertuliano,ao escrever para a sua mulher, aconselhada a permanecerviúva no caso de ele morrer primeiro. Ele renuncia aqualquer motivo de ciúme ou de posse, pois tais motivoscarnais serão eliminados na ressurreição, e "não haveránaquele dia nenhum reinício da desgraça voluptuosa entrenós”. Ela deve permanecer viúva porque a lei cristãpermite apenas um casamento, e porque a virgindade émelhor do que o casamento. O casamento não é realmentebom, mas apenas não é um mal. Na verdade, quando Jesusdiz: "’Eles estavam casando-se e comprando’, ele assinalaaquilo que é o principal dos vícios da carne e do mundo,aquilo que mais desvia o homem da disciplina divina”.Portanto, Tertuliano aconselha sua mulher a aceitar a suamorte como o chamado de Deus para o grande bem de uma vidade continência. Mas depois disto ele escreveu uma segundacarta em que ele deu o "próximo melhor conselho," nosentido de que, se ela sentisse necessidade de casar-seoutra vez, ela, pelo menos, deveria "casar-se no Senhor",isto é, casar-se com um cristão e não com um não-crente.56

Pode-se encontrar, no fim, em Tertuliano, toda uma escalade bens e males reativos, em sua estimativa das ordens davida sexual do homem no intervalo antes da ressurreição:um único casamento na vida é relativamente bom quandocomparado com um segundo casamento; todavia se o mal dosegundo casamento ocorrer, o casamento com um crente érelativamente bom. Se Tertuliano tivesse insistido nestaquestão, talvez tivesse admitido que no caso de havercasa- mento com não-crente, um casamento monógamo seriauma perversidade melhor do que um casamento polígamo, emesmo que um mundo desordenado de poligamia seriarelativamente bom comparado com as relações sexuaistotalmente irresponsáveis.__________56. "To His Wife" (Ante-Nicene Fathers, Vol. IV); ver tam-bém On Monogarny"; “On Exhortation to Chastity”.

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Outras ilustrações da necessidade de reconhecimentodas leis relativas ao tempo do intervalo e à existência deuma sociedade pagã podem ser achadas na história dosAmigos *, que se preocupavam com o fato de que, desde queexistisse uma viciosa instituição de escravidão, osescravos deveriam ser tratados "com justiça"; e uma vezhavendo compra e venda, um tabelamento de preço deveriavigorar. Pensemos, também, nos pacifistas cristãos, que,tendo rejeitado as instituições e práticas da guerra comocompletamente más, procuram, contudo, manter armamentoslimitados e certas armas proibidas. A filha do condeTolstoi contou a história da tragédia do seu pai, que foi,pelo menos em parte, a tragédia de um cristãoexclusivista, cujas responsabilidades não lhe permitiamescapar aos problemas do "por enquanto". Para si mesmo elepodia escolher a vida de pobreza, mas não para a suamulher e filhos, que não participavam de suas convicções.Ele não queria a proteção da policia, e não precisavadela, mas era membro de uma família que exigia a proteçãoda força. Assim o pobre homem vivia, em sua rica situação,uma responsabilidade que era ambígua e contrária à suavontade. O não resistente esteve protegido contra motinsaté a sua morte. A condessa Alexandra relata a históriaque apresenta dramaticamente o problema, e indica que atémesmo Tolstoi teve de reconhecer que a consciência e aregra do direito apresenta suas exigências ao homem nomeio das más instituições. De vez que ele tinha renunciadoao direito de propriedade, mas permaneceu ligado à suafamília, a responsabilidade da direção de tudo ficou comsua mulher, que não estava preparada para tanto. Sob suasupervisão inadequada, mordomos incompetentes oudesonestos deixaram que a propriedade caísse em desordemgeral. Um horrível__________* Friends – “ …o nome adotado por um grupo de cristãos,que legalmente e de um modo geral, são comumente chamadosQuakers”. Encyclopaedia Britânica, 1950, vol. 9, pág. 849.(Nota do Tradutor) .

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acidente ocorreu em conseqüência da má administração: umcamponês foi enterrado vivo em um areai abandonado. "Euraramente vi meu pai tão sobressaltado", escreve suafilha. “‘Tais coisas não podem acontecer, elas não podemacontecer’, ele esteve dizendo à minha mãe. 'Se vocêdeseja uma propriedade você tem de dirigi-la bem, ou entãoabandoná-la por completo’”.57

Casos deste tipo, que ilustram os ajustamentos decristãos radicais a uma cultura rejeitada e má, poréminescapável, podem ser multiplicados. E eles deleitam. osseus críticos. Mas sem dúvida o deleite é prematuro e semfundamento, pois casos como estes apenas reavivam o dilemacristão que é comum. A diferença entre os radicais e osoutros grupos é, freqüentemente, apenas esta: os radicaisfalham em reconhecer o que estão fazendo, e continuam afalar como se estivessem separados do mundo. Algumas vezesas contradições são muito explícitas, em seus escritos,como no caso de Tertuliano, que parece argumentar contrasi mesmo, em assuntos como o valor da filosofia e dogoverno. Freqüentemente são implícitas e se expressamapenas no comportamento contraditório. Em ambos os casos,o cristão radical confessa que não tem o problema Cristo ecultura, como um problema resolvido, mas apenas estáprocurando uma solução em termos de uma certa linha.

IV. PROBLEMAS TEOLÓGICOS

Há indicações no movimento Cristo-contra-cultura deque as dificuldades com que se defronta o cristão, namedida em que trata do seu dilema, não são apenas__________57. Tolstoi, Condessa Alexandra, The tragedy of Count Tol-stoy, 1933, pág. 65; conf. págs. 161-165, e Simmons, op.cit., págs. 631 e segs., 628 e segs. et passim.

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éticas, mas teológicas; e que as soluções éticas dependem,em muito, da compreensão teológica e vice-versa. Questõesa respeito da natureza divina e humana, acerca da ação deDeus e do homem, surgem a cada instante, na medida em queo cristão radical se dispõe a separar-se da sociedadecultural, e na medida em que se envolve em debate commembros de outros grupos cristãos. Quatro destas questõescom suas respostas radicais podem ser brevemente esboçadasaqui.

A primeira delas é o problema razão e revelação, Háuma tendência no movimento radical no sentido de usar apalavra "razão" para designar os métodos e o conteúdo doconhecimento a serem encontrados na sociedade cultural, e"revelação" para indicar aquele conhecimento cristão deDeus e do dever que é derivado de Jesus Cristo e quereside na sociedade cristã. Estas definições são, então,ligadas à minimização da razão e à exaltação darevelação.58 Mesmo em I João, o menos extremo dos nossosexemplos, algo deste contraste aparece, na oposição domundo das trevas ao reino da luz em que os cristãos andam.E é dito dos cristãos que eles sabem todas as coisas,porque foram ungidos por Aquele que é Santo. Tertuliano é,naturalmente, o exemplo mais rico na história da posiçãoque substitui a razão pela revelação. Embora ele nãodissesse "eu creio porque é absurdo", no sentido em queesta declaração lhe é freqüentemente atribuída, ele, defato, escreveu: "Vós não sereis ‘sábios’ a não ser que vostorneis um ‘tolo’ para o mundo, por crerdes nas ‘coisastolas de Deus’. …O Filho de Deus foi crucificado; eu nãoestou envergonhado pelo fato de os_________58. A mútua oposição de razão e revelação desta maneira,não está, naturalmente, confinada aos membros do movimentoCristo-contra-cultura. Cristãos que adotam outras posiçõesdiferentes da radical em assuntos políticos e econômicos,podem adotar a atitude exclusivista ao tratarem doproblema do conhecimento.

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homens terem de se envergonhar disto. O Filho de Deusmorreu; isto é para ser crido por todos os meios porque éabsurdo (prorsus credibile est, quia ineptum est). E elefoi sepultado e, de Novo, ressurgiu; o fato é certo,porque é impossível”.59 Mas não é tanto o vigor destaconfissão de crença na doutrina cristã comum que faz deleo grande expoente da defesa anti-racional da revelação,quanto os ataques à filosofia e sabedoria cultural a quenos referimos previamente. Uma atitude semelhante para coma razão cultural pode ser encontrada em muitos adeptos davida monástica, nos primitivos quakers e em outrosprotestantes sectários. Ela é característica de Tolstoi. Arazão humana, como floresce na cultura, é, para esteshomens, não apenas inadequada porque não leva aoconhecimento de Deus e da verdade necessária à salvação,mas é, também, errônea e ilusória. Todavia, é verdade queapenas alguns poucos dentre eles acham suficiente arejeição da razão e a colocação da revelação no lugardesta. Com Tertuliano e Tolstoi eles distinguem entre oconhecimento "natural", simples, que a alma incorrupta dohomem possui, e a compreensão viciada que se podeencontrar na cultura. Além disto, eles tendem a fazer umadistinção entre a revelação dada pelo Espírito, a luzinterior, e a que é historicamente dada e transmitidaatravés das Escrituras. Eles não podem resolver o problemaCristo e cultura sem reconhecer que distinções têm de serfeitas, tanto com respeito ao exercício da razão que seprocessa fora da esfera cristã, como quanto aoconhecimento que se faz presente nele.

Em segundo lugar, a questão acerca da natureza eprevalência do pecado está envolvida na resposta à questãoCristo-contra-cultura. A resposta lógica do radical pareceser a de que o pecado abunda na cultura, mas que oscristãos têm passado das trevas para a luz, e que umarazão fundamental para a sua separação_________59. On the Flesh of Christ, cap. V.

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do mundo é a preservação da corrupção da comunidade santa.Alguns deles, por exemplo, alguns Amigos e Tolstoi,consideram a própria doutrina do pecado original como umamedida por meio da qual um Cristianismo comprometedor sejustifica. A tendência é - e aqui estes homens fazem umaimportante contribuição à teologia - a de explicar emtermos sociais a herança do pecado entre os homens. Acorrupção da cultura em que uma criança é criada, não acorrupção de sua natureza inculta, é responsável pelalonga história do pecado. Contudo esta solução do problemado pecado e santidade é tida, pelos próprios cristãosexclusivistas, como inadequada. Pois as exigências deCristo sobre a santidade de vida encontram resistência nopróprio cristão, não por ter herdado a cultura, mas porser portador de uma certa natureza. As práticas ascéticasdos radicais, de Tertuliano a Tolstoi, com respeito aosexo, alimento e jejum, ira, e mesmo sono, indicam suagrande consciência de que a tentação do pecado surge danatureza, tanto quanto da cultura. Mais significativaainda é a sua compreensão de que uma das distinções entreCristianismo e secularismo é justamente esta: o cristãoenfrenta a realidade de sua pecaminosidade. "Se dissermosque não cometemos pecado", escreve João, "enganamo-nos anós mesmos e não há verdade em nós”. Tolstoi se aproximada mesma idéia fundamental, quando se dirige aos donos daterra, juizes, sacerdotes e soldados, pedindo-lhes parafazerem uma coisa acima de tudo, isto é, pedindo-lhes quese recusassem a reconhecer a legalidade de seus crimes.Abandonar a terra e renunciar todas as vantagens é um atoheróico, "mas pode acontecer, como é mais provável, quenão tereis força para tanto… Porém reconhecer a verdadecomo verdade, e evitar mentir com respeito a ela, é umacoisa que sempre podeis fazer”. A verdade que eles devemconfessar é a de que eles não estão servindo

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ao bem comum.60 Se o maior pecado é a recusa aoreconhecimento da pecaminosidade própria, torna-se, então,impossível fazer com que a linha divisória entre asantidade de Cristo e a pecaminosidade humana coincida coma que se traça entre o cristão e o mundo. O pecado estánele, e não fora de sua alma e corpo. Se o pecado temraízes mais profundas e é mais extensivo do que o indica aprimeira resposta do cristianismo radical, então aestratégia da fé cristã, para conseguir uma vitória sobreo mundo, precisa incluir outras táticas além da retiradada cultura e da defesa da santidade recém-conquistada.

Intimamente ligada a estes problemas está a questãosobre as relações de lei e graça. Oponentes do tipoexclusivista freqüentemente acusam os seus representantesde legalismo e de negligenciarem a significação da graçapara a vida e pensamento cristãos, ou de ressaltarem ocaráter do Cristianismo como uma nova lei para umacomunidade selecionada, a ponto de se esquecerem de que oEvangelho é para todo o mundo; se bem que é verdade quetodos eles insistem na importância da manifestação da fécristã no comportamento cotidiano. Como pode um seguidorde Jesus Cristo saber que é um dos seus discípulos, se oseu comportamento em amor para com os irmãos, em ato- -negação, em modéstia, em não-resistência, não o distinguedos outros homens? A ênfase sobre o comportamento podelevar à definição de regras precisas, de zelo pelaconformidade de vida a tais regras e de concentração sobrea vontade própria (e não sobre a obra graciosa de Deus).Como já temos observado, I João combina a graça e a lei, edá ênfase ao primado daquele amor divino que é exclusivoem capacitar os homens, em resposta à sua grande atração,para amarem

_________60. "The Kingdom of God Is Within You", Works, Vol. XX,pág. 442.

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tanto a Deus como ao próximo. Tertuliano, porém, em tudo epor tudo, tem uma mentalidade mais legalista, e com elemuitos que se dedicam à vida monástica, sendo que osprotestantes levantam objeção contra as suas "obras dejustificação". Tolstoi representa o extremo, sendo quepara ele Jesus Cristo é apenas o instrutor da nova lei, devez que esta lei é estável em mandamentos precisos, e devez que o problema de obediência pode ser resolvidoapelando-se ao poder de boa vontade que existe dentro decada pessoa. Ao lado de tais propensões ao legalismo,podem ser encontradas em Tertuliano, nos adeptos da vidamonástica, nos sectários, e mesmo em Tolstoi, reflexões deque os cristãos são exatamente como os outros homens; queprecisam confiar totalmente no gracioso perdão dos seuspecados por Deus-em-Cristo; que Cristo não é, de modoalgum, o fundador de uma nova comunidade fechada com umanova lei, mas o expiador dos pecados de todo o mundo; quea única diferença entre cristãos e não-cristãos está noespírito com que os cristãos fazem as mesmas coisas que osnão-cristãos. "Alimentando-se com os mesmos alimentos,vestindo as mesmas vestes, tendo os mesmos hábitos, sob amesma necessidade de existência", navegando juntos, arandojuntos a terra, mantendo propriedade juntos, e junto, ejuntos lutando, o cristão faz tudo com uma certadiferença, não porque ele tem uma lei diferente, masporque ele conhece a graça e portanto reflete graça; nãoporque ele deve se distinguir, mas porque ele não tem quese distinguir.61

O problema teológico mais intrincado levantado pelomovimento Cristo-contra-cultura é o da relação de JesusCristo com o Criador da natureza e Governador da história,bem como com o Espírito imanente na criação e nacomunidade cristã. Alguns expoentes do Cristianismoradical, tais como certos sectários e Tolstoi,

_________61. Tertuliano, Apology, xiii; conf. Tolstoi, "Kingdom ofGod", Works, Vol. XX págs. 452 e segs.

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consideram que a doutrina da Trindade não tem nenhumsentido ético, sendo uma invenção corrupta de uma Igrejacorrupta. Mas eles não podem fugir ao problema e tentamresolvê-lo como lhes convém. Outros, como o autor de IJoão e Tertuliano, estão entre os fundadores da doutrinaortodoxa. O interesse positivo e negativo destes cristãosfortemente éticos e práticos com referência ao problema esua solução indica que o Trinitarismo não é, de modoalgum, uma posição muito especulativa e sem importânciapara o comportamento ético, como se tem dito muitas vezes.Praticamente o problema surge para os cristãos radicais,quando, em sua concentração sobre a soberania de Cristo,procuram defender-lhe a autoridade, definir o conteúdo deseu mandamento, e relacionar sua lei ou reinado com aquelepoder que governa a natureza e preside os destinos doshomens em suas sociedades seculares. Os radicais sedefrontam com uma extrema tentação ao tratarem destasquestões, qual seja, a de converterem o seu dualismo éticoem uma bifurcação ontológica da realidade. Pode-secombinar facilmente a sua rejeição da cultura com umadesconfiança com relação à natureza propriamente dita e ànatureza de Deus. Sua confiança em Cristo muitas vezes éconvertida em confiança no Espírito imanente nele e nocrente. Em última análise, eles são tentados a dividir omundo em um reino material, governado por um princípiooposto a Cristo, e outro reino espiritual guiado pelo Deusespiritual. Tais tendências são evidentes no Montanismo deTertuliano, no Franciscanismo espiritual na luz interiorda doutrina dos quakers, e no espiritualismo de Tolstoi. Amargem do movimento radical, a heresia maniqueísta estásempre se desenvolvendo. Se por um lado esta tendêncialeva o Cristianismo exclusivista a obscurecer a relação deJesus Cristo com a natureza e com o Autor da natureza,ela, por outro, leva à perda de contato com o Jesus Cristoda história, que é substituído por um princípioespiritual. Daí estar a reforma radical, de George Fox -de um Cristianismo que, para ele, tinha feito um acordo

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com o mundo - ligada a uma ênfase sobre o espírito, o queprovocou em algumas partes do seu movimento o abandonovirtual das Escrituras e do Jesus Cristo escriturística, ea entronização da consciência individual como a supremaautoridade do homem. Tolstoi substitui o Jesus Cristo dahistória pelo espírito imanente de Buda em Jesus, emConfúcio, e nele mesmo. É muito difícil compreendermosporque os cristãos radicais estejam tão sujeitos àtentação de um espiritualismo que os desvia do princípiode que partem, a saber, da autoridade de Cristo. É talvez,para indicar, que Cristo não pode ser seguidoisoladamente, como isoladamente não pode ser adorado, eque o Cristianismo radical, importante como é, por ser ummovimento na Igreja, não pode existir por si mesmo, sem ocontra-peso de outros tipos de Cristianismo.

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Capítulo Terceiro

O CRISTO DA CULTURA

1. ACOMODAÇÃO A CULTURA NO GNOSTICISMO E EM ABELARDO

Em TODA CULTURA onde chega o Evangelho há homens quesaúdam Jesus Cristo como o Messias de sua sociedade, ocumpridor de suas esperanças e aspirações, o aperfeiçoadorde sua fé verdadeira, a fonte do seu mais sagradoespírito. Na comunidade cristã eles parecem colocar-se emoposição direta aos radicais, que rejeitam as instituiçõessociais por amor a Cristo. Mas eles estão muito longedaqueles "cultos entre os desprezadores" da fé cristã, osquais rejeitam Cristo por amor à sua civilização. Esteshomens são cristãos não somente no sentido de que seconsideram crentes no Senhor, mas também no sentido de queprocuram manter-se em comunhão com todos os outroscrentes. Todavia, eles se sentem igualmente em casa nacomunidade da cultura. Eles não sentem nenhuma tensãoentre Igreja e mundo, entre as leis sociais e o Evangelho,entre as operações da divina graça e o

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esforço humano, entre a ética de salvação e as éticas depreservação ou progresso. Por um lado, eles interpretam acultura através de Jesus Cristo, considerando como os seuselementos mais importantes àqueles que estão mais deacordo com a sua obra e pessoa; e, por outro lado, elesentendem Cristo através da cultura, selecionando de seuensino e ação, bem como da doutrina cristã a respeitodele, os pontos que parecem concordar com o que há demelhor na civilização. Assim, harmonizam Cristo e cultura,naturalmente não sem dano para os aspectosirredutivelmente discordantes do Novo Testamento e doscostumes sociais. Eles não buscam, necessariamente, asanção cristã para toda a cultura prevalecente, mas apenaspara aquilo que consideram como real na cultura atual. Nocaso de Cristo, eles procuram desembaraçar o racional e opermanente do histórico e do acidental. Embora o seuinteresse fundamental seja por aquilo que se relaciona comeste mundo (this worldly), eles não rejeitam aquilo quetranscende este nível (other-worldliness), mas procuramentender o reino transcendente como contínuo em tempo ouem caráter à presente vida. Portanto, a grande obra deCristo pode ser concebida como o preparo de homens em suapresente existência social para uma vida melhor que estápor vir. Freqüentemente ele é considerado como o grandeeducador, e algumas vezes como o grande filósofo oureformador. Assim como o golfo entre os mundos é ligado,assim também outras diferenças entre Cristo e a cultura,que são vistas como verdadeiros abismos para os cristãosradicais e para os anticristãos, são facilmente vencidaspor estes homens. Algumas vezes elas são ignoradas, eoutras vezes são corrigidas, mediante o uso de materialconveniente, derivado de escavações históricas ou dedemolições de velhas estruturas de pensamento. Taiscristãos têm sido descritos psicologicamente por F. W.Newman e William James como constituindo a companhia"daqueles que nasceram uma vez" (orce born) e dos "sadiosde mente" (healthy-minded).

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Sociologicamente, eles podem ser interpretados como osnão-revolucionários, que não vêem nenhuma necessidade depostular "rupturas no tempo": queda e encarnação,julgamento e ressurreição. Na história moderna este tipo ébem conhecido, de vez que por muitas gerações tem sidodominante em grandes áreas do Protestantismo.Inadequadamente defini-do por termos tais como "liberal" e"liberalismo", ele é mais propriamente chamadoProtestantismo Cultural (Culture-Protestantism)1, mas seusaspectos não se confinam aos limites do mundo moderno nemàs Igrejas da Reforma.

Houve movimentos desta espécie nos primeiros dias doCristianismo, na medida em que este se despertou no meioda sociedade judaica, e foi depois levado ao mundo greco-romano por Paulo e outros missionários, tornando-seenvolvido nas interações complexas de muitos ingredientesculturais que fermentavam na panela do Mediterrâneo. Entreos cristãos judeus apareceram, sem dúvida, todas asvariações que encontramos entre os cristãos gentios,antigos e modernos, na medida em que se defrontaram com oproblema Cristo-cultura. O conflito de Paulo com osjudaizantes e as referências posteriores aos nazarenos eebionitas indicam que houve grupos ou movimentos que erammais judeus do que cristãos, ou que, para pôr a coisa emtermos melhores, procuravam manter sua lealdade a JesusCristo sem abandonar qualquer parte importante da tradiçãojudaica ou sem deixar de lado as principais esperançasmessiânicas do povo escolhido.2 Jesus era, para eles, não oMessias prometido, mas o Messias da promessa, conforme eraentendido em sua sociedade.__________1. Karl Barth, creio eu, inventou o termo. Verespecialmente o seu Protestantische Theologie im 19.Jahrhundert, 1947, cap. III.2. Sobre o Cristianismo judaico ver Lietzmann, H., The Be-ginnings of the Christian Church, págs 235 e segs.; Weiss,J., History of Primitive Christianity, Vol. II, págs. 707e segs.

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No Cristianismo gentio dos primeiros tempos muitasmodificações do tema Cristo-cultura combinavam interessemais ou menos positivo pela cultura com lealdadefundamental a Jesus. Em tempos posteriores os cristãosradicais têm-se inclinado a relegar todas elas, semdistinções, ao limbo do Cristianismo comprometido ouapóstata. A atitude extrema, que interpreta Cristototalmente em termos culturais e tende a eliminar todo osenso de tensão entre ele e a crença ou costumes sociaisfoi representada no mundo helenístico pelos cristãosgnósticos. Estes homens - Basilides, Valentinus, o autorde Pistis Sophia, e outros semelhantes - são hereges aosolhos do corpo principal da Igreja, bem como aos olhos doscristãos radicais. Mas parece que eles pensaram a respeitode si mesmos como crentes leais. Eles "partiram de idéiascristãs; eles estiveram tentando formular uma teoriacristã de Deus e do homem; a contenda entre católicos egnósticos foi uma luta entre pessoas que se consideravamcristãs, e não entre cristãos e pagãos”.3

O prof. Burkitt tem argumentado persuasivamente que nopensamento de tais gnósticos "a figura de Jesus éessencial, e sem Jesus os seus sistemas se desfariam empedaços", que o que eles procuravam fazer era reconciliaro Evangelho com a ciência e filosofia do seu tempo. Assimcomo os defensores da fé no século dezenove tentaram expora doutrina de Jesus Cristo em termos de evolução, assimtambém estes homens se esforçaram para interpretá-la à luzdas idéias fascinantes que tinham sido sugerias às mentesesclarecidas pela astronomia ptolomaica e pela psicologiado dia com a sua deixa soma-sema, e sua teoria de que__________3. Burkitt, F.C., Church and Gnosis, 1932, pág. 8; conf.também Cambridge Ancient History, Vol. XII, págs. 467 esegs.; McGiffert, A. C., History of Christian Thought,Vol. I, págs. 45 e segs.

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o corpo era o túmulo da alma.4 Nada é mais evanescente nahistória do que as teorias pansóficas que floresceramentre os iluminados de todos os tempos sob a luz clara dosol das últimas descobertas científicas. E nada pode sercom mais facilidade posto de lado como simplesespeculação. Mas bem podemos admitir que os gnósticos nãoeram mais propensos a fantasias do que as pessoas do nossotempo, que descobrem na psiquiatria a chave para acompreensão de Cristo, e na desintegração nuclear aresposta aos problemas de escatologia. Eles tentaramdesimpedir o evangelho de seu envolvimento em noçõesjudaicas superadas sobre Deus e história, e erguer oCristianismo do nível da crença ao do conhecimentointeligente, para aumentar, assim, a sua atração e o seupoder.5 Emancipados que estavam das formas grosseiras depoliteísmo e idolatria, e reconhecendo a profundeza real eespiritual do ser, eles estabeleceram uma doutrina deacordo com a qual Jesus Cristo era um salvador cósmico dealmas aprisionadas no mundo caldo e material; o reveladorda verdadeira sabedoria redentora, o restaurador doconhecimento certo a respeito do abismo do ser e comreferência à ascensão e descida do homem.6 Este é oelemento mais óbvio no esforço dos gnósticos visando aacomodar o Cristianismo à cultura dos seus dias: a suainterpretação "científica" e "filosófica" da pessoa e obrade Cristo. O que é menos óbvio é que esta tentativaensejou a sua naturalização no todo da civilização. OCristianismo assim interpretado ficou sendo um sistemareligioso e filosófico, sem dúvida considerado como omelhor e o único verdadeiro, sendo, contudo, um entremuitos.__________4. Burkitt, op. cit., págs. 29-35; 48, 51, 57 f, 87-91.5. Ehrhard, Albert, Die Kirche der Maertyrer, 1932, pág.130.6. Conf. Burkitt, op. cit., págs. 89 e segs. O pensamentodos gnósticos parecerá menos alheio e estranho aopensamento dos estudantes modernos de Teologia que estãofamiliarizados com as idéias de Nicolai Berdiaev, que sechama a si mesmo de um cristão gnóstico. Ver especialmentesua obra Freedom and the Spirit, 1935.

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Como uma religião da alma ele não apresentava nenhumaexigência imperiosa com relação à vida total do homem.Jesus Cristo era um salvador espiritual e não o Senhor davida; o seu Pai não era a fonte de todas as coisas nem oseu Governador. A Igreja, o Novo povo, foi substituída poruma associação de esclarecidos que podia viver na culturacomo quem procurava um destino além-cultura, sem, noentanto, estar em tensão com ela. Participação na vida dacultura era, agora, algo indiferente, não envolvendograndes problemas. Um gnóstico não tinha nenhuma razãopara recusar homenagem ao César ou participação na guerra,embora não tendo, também, nenhum motivo premente, a nãoser a pressão social, para aceder aos costumes e às leis.Se ele era esclarecido o ponto de ver a seriedade do cultopopular e oficial a ídolos, era, também, esclarecido paranão fazer questão de sua rejeição, pois ele menosprezava omartírio. "Na versão gnóstica, o conhecimento de JesusCristo era uma questão individual e espiritual quemantinha o seu lugar na vida da cultura como o pontoculminante da realização humana. Era algo que somente asalmas desenvolvidas podiam conseguir; era a conquistaavançada e religiosa de tais almas. Sem dúvida ele sevinculava à ética - às vezes rigorosíssima em matéria decomportamento moral, às vezes indulgente, e, às vezes,licenciosa - mas a ética não se baseava nem no mandamentode Cristo nem na lealdade do crente à nova comunidade. Elaera, antes, a ética da aspiração individual em busca de umdestino altamente exaltado acima do mundo material esocial, e, ao mesmo tempo, uma ética de ajustamentoindividual a este mundo indiferente. Do ponto de vista doproblema da cultura, o esforço do gnóstico no sentido dereconciliar Cristo com a ciência e a filosofia dos seusdias não era um fim, mas um meio. O que ele conseguia______7. Irenaeus, Against Heretics, IV, xxxiii, 9; conf.Ehrhard, op. cit., págs. 162, 170 e segs.

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para si mesmo - hábil e propositalmente, ou não - como ocorolário deste esforço, era o abrandamento de todas astensões entre a nova fé e o velho mundo. O quanto doEvangelho ele retinha era uma outra questão, embora devaser observado que o gnóstico era seletivo tanto comreferência à cultura, como em relação a Cristo. Elerejeitava, ao menos para si mesmo, aquilo que lhe pareciaignóbil nela, e cultivava o que parecia ser mais religiosoe mais cristão.8

O movimento representado pelo Gnosticismo tem sido umdos mais poderosos na história cristã, apesar do fato deque os seus representantes extremados têm sido condenadospela Igreja. A sua tendência é a de interpretar oCristianismo como uma religião e não como uma Igreja, e deinterpretar a Igreja como uma associação religiosa e nãocomo uma nova sociedade. Ele vê em Jesus Cristo não apenaso revelador de verdades religiosas, mas um deus, o objetoda adoração religiosa; mas não o Senhor de toda a vida, enão o Filho do Pai que é o presente Criador e Governadorde todas as coisas. Isto quer dizer que o Gnosticismoretém a religião e lança fora a ética do Cristianismo. Aaceitação dos termos "religião" e "ética" comocaracterísticos do Cristianismo já é em si uma aceitação,do ponto de vista cultural, de uma concepção pluralísticade vida, em que atividade se faz seguir de atividade. Adificuldade envolvida surge, em parte, no fato de que (oque é evidente no caso dos gnósticos), quando o que sechama religião se separa da ética, a mesma fica sendocoisa muito diferente do que ela realmente é na Igreja, asaber: ela será, então, uma espécie de metafísica, umaGnosis, um culto de mistério, e não uma fé governando todaa vida._________8. Outro tipo de Cristianismo cultural dos primeirostempos é representado por Lactantius e por aquelesteólogos e declarações que no tempo do acordoconstantiniano procuraram amalgamar o romanismo e a novafé. E isto foi excelentemente descrito por Cochrane na suaobra Christianity and Classical Culture, Parte II,especialmente cap. V.

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Os problemas levantados pelo Gnosticismo a respeitodas relações de Cristo com a religião e da religião com acultura se tornaram mais, e não menos agudos com odesenvolvimento da chamada civilização cristã. Todavia, aquestão sobre se Cristo era o senhor da cultura não érespondida pela referência à preeminência da instituiçãoreligiosa dentro dela, nem pela referência à preeminênciade Cristo naquela instituição. Nesta sociedade religiosasurgiram os mesmos problemas sobre Cristo e cultura quedeixaram perplexos os cristãos na Roma pagã, e,semelhantemente, apareceram esforços diferentes em buscada solução. Se, então, algumas variedades de vidamonástica e algumas seitas medievais seguiram Tertuliano,agora, em um Abelardo, podemos discernir a tentativa, deresponder a questão mais ou menos como os cristãosgnósticos a responderam no segundo século. Embora oconteúdo do pensamento de Abelardo seja muito diferente doapresentado pelos gnósticos, ele é muito achegado a elesem espírito. Abelardo parece voltar-se apenas contra amaneira da Igreja, expor a sua crença, e isto porque estaimpede os judeus e outros não cristãos, especialmenteaqueles que reverenciam e seguem os filósofos gregos, deaceitar aquilo com que intimamente estão de acordo.9 Mas aoexpor a fé - sua crença a respeito de Deus e Cristo, eseus preceitos sobre o comportamento moral - ele a reduzàquilo que se conforma :ao que há de melhor na cultura.Ela se torna um conhecimento filosófico a respeito darealidade e uma ética de progresso de vida. A teoria moralde expiação é oferecida como uma alternativa não tanto auma doutrina que é difícil para os cristãos como cristãos,mas a toda concepção do ato de redenção como tendo sidorealizado de uma-vez-por-todas. Jesus Cristo velo a serpara Abelardo o grande mestre de moral que "em tudo o quefez na carne… tinha a_________9. Conf. McCallum, J.R., Abelard's Christian Theology,1948, pág. 90.

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intenção de nos instruir",10 fazendo em nível mais elevadoo que Sócrates e Platão tinham feito antes dele. Dosfilósofos ele diz que "em seu cuidado pelo Estado e seuscidadãos… em vida e doutrina, deram mostra de umaperfeição evangélica e apostólica e chegaram bem perto dareligião cristã. De fato, eles se juntaram a nós com estezelo comum pelas realizações morais”.11 Tal observação érevelatória não apenas de um espírito aberto e caridosocom relação aos não cristãos, mas (o que ainda é maissignificativo) de uma compreensão peculiar do Evangelhoevidentemente distinta daquela sustentada pelos cristãosradicais. A ética de Abelardo revela a mesma atitude.Procura-se em vão em sua obra Scito te Ipsum umreconhecimento dos rigorosos preceitos que o Sermão damontanha apresenta aos cristãos. O que se oferece aqui éuma amável orientação liberal às pessoas boas que desejemfazer o que é certo e aos seus guias espirituais.12 Todo oconflito entre Cristo e a cultura desaparece a tensão queexiste entre Igreja e mundo é realmente ocasionada. deacordo com Abelardo, pelo fato de a Igreja não compreendercorretamente a Cristo.

2. "O PROTESTANTISMO CULTURAL" E A. RITSHCL

Na cultura medieval Abelardo foi uma figurarelativamente solitária; mas desde o século 18 seus segui-dores têm sido numerosos, e o que foi heresia veio a_________10. Ibid., pág. 84.11. Ibid., pág. 62; De Wulf, Maurice, History of MedicalPhilosophy, 1925, Vol. 1, págs. 161-166.12. McCallum, J. R., Abelard’s Ethics, 1935.

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ser ortodoxia. Milhares de variações sobre o tema Cristo-da-cultura têm sido formuladas por grandes e pequenospensadores no mundo ocidental, por líderes da sociedade eda Igreja, por teólogos e filósofos. Surge ele em versõesracionalistas e românticas, conservadoras e liberais,sendo que luteranos, calvinistas, sectários e católicos-romanos reproduzem as suas formas próprias. Do ponto devista do nosso problema as palavras chaves "racionalismo","liberalismo", "fundamentalismo", etc., não são muitoimportantes. Elas indicam as linhas de divisão existentesdentro de uma sociedade cultural, mas obscurecem a unidadefundamental que se consegue entre os homens queinterpretam Cristo como um herói de uma culturamultiforme.

Pode-se nomear, entre estes muitos homens emovimentos, um John Locke para quem a Razoabilidade doCristianismo se recomendava a todos os que não apenasusavam a sua razão, mas o faziam à moda "razoável" de umacultura inglesa que procurava uni termo médio entre todosos extremos. Leibnitz pode ser situado aqui, e tambémKant, com a sua tradução do Evangelho em uma ReligiãoDentro dos Limites da Razão, pois também neste caso apalavra "razão" significa o exercício particular dacapacidade analítica do homem e do poder sintético eintelectual característico da melhor cultura do tempo.Thomas Jefferson é um dos que pertencem a este grupo. "Eusou um cristão" declarou ele, "no único sentido em que ele(Jesus Cristo) desejou que cada pessoa o fosse", mas elefez esta declaração depois de ter extraído cuidadosamentedo Novo Testamento os dizeres em que Jesus se referia a simesmo. Embora as doutrinas de Jesus na sabedoria dojulgamento de Monticello tenham chegado até nós, nãoapenas em forma corrompida e mutilada mas aindadefeituosas em seu pronunciamento original, todavia, "nãoobstante estas desvantagens, um sistema nos é apresentado,o qual, se preenchido pelo estilo e espírito dos ricosfragmentos que ele nos deixou, será o mais perfeito esublime de todos os que têm sido

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ministrados pelo homem”. Cristo fez duas coisas: "1)corrigiu o deísmo dos judeus, confirmando-os em sua fé noúnico Deus, e dando-lhes noções mais justas de seusatributos e governo. 2) Suas doutrinas morais relacionandoparentes e amigos foram mais puras e perfeitas do que asdo mais correto filósofo, e muito mais do que as dosjudeus; e elas foram muito além no inculcar da filantropiauniversal, não apenas entre amigos e parentes, entrevizinhos e compatrícios, mas em toda a humanidade,reunindo todos em uma família, sob os laços da caridade,paz, necessidades comuns e mútua ajuda”.13 Os filósofos,estadistas, reformadores, poetas e romancistas, queaclamam Cristo com Jefferson, todos repetem o mesmo tema:Jesus Cristo é o grande iluminador, o grande professor,aquele que dirige todos os homens na cultura rumo àconquista de sabedoria, perfeição moral e paz. Algumasvezes ele é saudado como o grande utilitarista, algumasvezes como o grande idealista, outras vezes como o homemda razão, e outras como o homem de sentimento. Mas, sejamquais forem as categorias pelas quais ele é entendido, ascoisas pelas quais ele se bate são fundamentalmente asmesmas - uma sociedade cooperativa e pacifica, realizadapelo preparo moral.

Muitos dos proeminentes teólogos da Igreja do séculodezenove se ligaram ao movimento. O Schleiermacher dosDiscursos sobre Religião participou dele embora não orepresente tão evidentemente em seus escritos sobre A FéCristã. No caso da primeira destas obras, uma expressãojovial é caracteristicamente dirigida a "os cultos entreos desprezadores da religião" (the cultured among thedespisers of religion). Embora a palavra "cultura"signifique aqui as realizações__________13. De uma carta ao Dr. Benjamin Rush, 21 de abril de1803; em Foner, P.S., Basic Writings of Thomas Jelferson,págs. 660-662. Conf. também Thomas Jefferson, The Life andMorals of Jesus of Nazareth, extracted textually from theGospels.

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do grupo mais intelectual, seguro de si e estético dasociedade, sabe-se, todavia, que Schleiermacher está sedirigindo, como os gnósticos e Abelardo antes dele, aosrepresentantes da cultura em um sentido bem vasto. Comoeles, também ele crê que o que eles acham ofensivo não éCristo, mas a Igreja com os seus ensinos e cerimônias; ede Novo ele se conforma ao padrão geral, tratando Cristoem termos de religião. Pois Cristo é, nesta apresentação,menos o Jesus Cristo do Novo Testamento do que o princípiode mediação entre finito e infinito. Cristo pertence àcultura, porque a cultura em si mesma, sem "sentido egosto pelo infinito", sem uma "santa música" acompanhandotoda a sua obra, se torna estéril e corrupta. Este Cristoda religião não chama os homens a deixarem lares eparentes por amor a ele; ele entra em seus lares e emtodas as suas associações como a graciosa presença queacrescenta uma aura de significado infinito a todas mtarefas temporais.14

Karl Barth, em apreciação e críticas brilhantes,realça a dualidade e unidade dos dois interesses deSchleiermacher: ele estava decidido a ser tanto um teólogoCristo-cêntrico como um homem moderno, participandointegralmente na obra da cultura, no desenvolvimento daciência, na manutenção do Estado, no cultivo da arte, noenobrecimento da vida familiar e no avanço da filosofia. Eele desenvolveu esta dupla tarefa sem um senso de tensão,sem perceber que servia a dois senhores. Talvez Barthesteja vendo muito de Schleiermacher como de uma peça só,mas, com toda a certeza, nos Discursos Sobre Religião, bemcomo nos seus escritos sobre ética, ele é um lídimorepresentante daqueles que acomodam Cristo à cultura e

__________14. On Religion. Traduzido nor John Oman, 1893; conf.págs. 246, 249, 178 et passim.

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que selecionam da cultura aquilo que mais prontamente seconforme a Cristo.15

Na medida em que o século dezenove se movimentava deKant, Jefferson, e Schleiermacher em direção a Hegel,Emerson e Ritsehl, da religião dentro dos limites da razãoà religião da humanidade, o tema Cristo-da-cultura se fezouvir mais e mais, em muitas variações, sendo denunciadopelos oponentes radicais de Cristo e pelos cristãosradicais, e tendo-se unido a outras respostas queprocuravam manter a distinção entre Cristo e civilização,ainda que prestando fidelidade a ambos. Hoje estamosinclinados a considerar todo aquele período como o tempodo Protestantismo cultural, embora, na medida em que ofazemos, criticamos suas tendências com a ajuda deteólogos do século dezenove, tais como Kierkegaard e F. D.Maurice. O movimento com vista à identificação de Cristocom a cultura alcançou, sem dúvida, o seu clímax, no finalda segunda metade do século, e o teólogo maisrepresentativo daquele tempo, Albert Ritschl, pode sertomado como a melhor ilustração moderna do tipo Cristo-da-cultura. Diferente de Jefferson e Kant, Ritschl se mantémperto do Jesus Cristo do Novo Testamento. De fato ele é,em parte, responsável pela grande concentração do esforçomoderno de pesquisa sobre o estudo dos Evangelhos e sobrea história da Igreja dos primeiros tempos. Ele participado credo da Igreja muito mais do que os cultos veneradoresde Cristo e desprezadores da Igreja. Ele próprio se contacomo membro da comunidade cristã, e crê que somente em seucontexto se pode falar significativamente de peca-__________15. Barth, X., Die Protestantische Theologie im 19. Jahr-hundert, 1947, págs. 387 e segs.; conf. também de Barth,K., "Schleiermacher" em seu Die Theologie und die Kirche,1928, págs. 136 e segs.; Brandt, Richard B., The Philoso-phy of Schleiermacher, 1941, págs. 166 e segs. A unidadeda ética filosófica e cristã é inequivocamente afirmadaDor Schleiermacher em seu ensaio "On the PhilosophicalTreatment of the Idea of Virtue", em Saemmtliche Werke(Reimer), Parte III, Vol. II, págs. 350 e segs.

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do e salvação. Todavia, ele também leva a sério a suaresponsabilidade na comunidade da cultura, e se coloca noextremo oposto ao de seu contemporâneo Tolstoi, em suaatitude para com a ciência e Estado, vida econômica etecnologia.

A teologia de Ritschl tem duas pedras fundamentais:não-revelação e razão, mas Cristo e cultura. Eleresolutamente rejeitou a idéia de que devemos ou podemoscomeçar a nossa autocrítica cristã com a busca de algumaverdade última da razão evidente para todos, ou pelaaceitação do pronunciamento dogmático de algumainstituição religiosa, ou, ainda, com a procura dentro denossa própria experiência de algum sentimento ou percepçãopersuasiva da realidade. "A teologia", escreveu ele "quedeve estabelecer o conteúdo autêntico da religião cristã,tem de extrair o seu conteúdo do Novo Testamento, e denenhuma outra fonte”. 16 O dogma protestante da autoridadedas Escrituras verifica, mas não estabelece, a base paraesta necessidade; a Igreja não é o fundamento de Cristomas Cristo é o fundador da Igreja. "A pessoa do seufundador é… a chave da maneira cristã de ver o mundo, opadrão do autojulgamento e esforço moral dos cristãos",bem como o padrão que mostra como devem ser observadoscertos atos especificamente religiosos, como a oração.17

Assim Ritschl começa resolutamente a sua tarefa teológicacomo um membro da comunidade cristã, a qual não tem nenhumcomeço a não ser Jesus Cristo, tal como apresentado noNovo Testamento.

Na verdade, porém, ele tinha um outro ponto de partidana comunidade da cultura, a qual tem por princípio avontade do homem de dominar a natureza. Como um homemmoderno, e como um seguidor de__________16. Ritschl, A., Rechtfertigung und Versoehnung, 3a. ed.,1889, Vol. II, pág. 18.17. Ritschl, A., The Christian Doctrine of Justificationand Reconciliation: The Positive Development of the Doc-trine, 1900, pág. 202.

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Kant, Ritschl entende a situação humana fundamentalmenteem termos do conflito do homem com a natureza. Opensamento popular festeja como a maior conquista humana avitória da ciência e da tecnologia aplicada à dominaçãodas forças naturais. Sem dúvida Ritschl também estavaimpressionado com estas conquistas, mas o que mais lheinteressava como um pensador moral e como um seguidor deKant era * esforço da razão ética de impor à naturezahumana * lei interna da consciência; o esforço de dirigira vida individual e social rumo ao alvo ideal daexistência virtuosa em uma sociedade de pessoas livres,interdependentes e virtuosas. No domínio ético o homem sedefronta com um problema duplo: ele precisa não apenassubjugar a sua própria natureza, mas também vencer odesespero que resulta da sua compreensão da indiferença domundo natural e externo aos seus elevados interesses. Oque Ritschl aceita como um dado é a "auto-distinção dohomem, da natureza, e seus esforços por se manter contraou acima da mesma”.18 O homem deve considerar a vidapessoal, quer para si mesmo, quer para outrem, como umfim. Toda a obra da cultura tem a sua fonte no conflitocom a natureza, e o seu alvo na vitória da existênciapessoal e moral, na conquista, para usar os termoskantianos, do reino dos fins, ou - na frase do NovoTestamento - do reino de Deus.

Com estes dois pontos de partida, Ritschl poderia ter-se tornado um cristão do tipo mediano, que procuracombinar dois princípios distintos, mediante a aceitaçãode tensões polares, dos graus de existência, ou de outrasorte. Pode haver aqui ou ali, nos seus escritos,indicações de tendências rumo a tais soluções. Mas, notodo, ele não encontrou nenhum problema. As dificuldadesque os outros cristãos encontravam lhe pareciam serdevidas às interpretações errôneas de Deus, de Cristo, eda vida cristã. Elas eram devidas, por exemplo,_________18. Idib., pág. 219; conf. págs 222 e segs.

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ao uso de idéias metafísicas ao invés de métodos críticos,que capacitassem os homens a entender a verdadeiradoutrina de Deus e o verdadeiro sentido do perdão. É certoque, de acordo com a sua própria opinião, havia dualidadesmas não conflitos reais, exceto entre cultura e natureza.O próprio Cristianismo devia ser considerado como umaelipse com dois focos, e não como um círculo com umcentro. Um foco seria a justificação ou o perdão dospecados; o outro, o esforço ético visando à consecução daperfeita sociedade de pessoas. Mas nenhum conflito existeentre estas idéias, pois o perdão significa a companhiadivina que capacita o pecador a se pôr de pé, depois decada fracasso, para reassumir a sua atividade na tarefaética. Havia a dualidade da Igreja e comunidade cultural,mas aqui também Ritschl não encontrou conflito algum,tendo atacado muito incisivamente as práticas pietistas emonásticas por separarem a Igreja do mundo.19 Se a Igrejacristã era a comunidade em que tudo era atribuído a JesusCristo, ela era também a verdadeira forma de sociedadeética, em que os membros de diferentes nações seriamconjuntamente combinados em mútuo amor, pela realização doreino universal de Deus.20 Há a dualidade do chamadocristão e vocação cristã, mas apenas o catolicismomedieval vê conflito aqui. O cristão pode cumprir o seuchamado de busca do reino de Deus, se, motivado pelo amorao próximo, ele realiza o seu trabalho nas comunidadesmorais da família e da vida econômica, nacional epolítica. Na verdade a "família, a propriedade privada, aindependência e honra pessoais (em obediência àautoridade)" são bens essenciais à saúde moral e àformação do caráter. Somente mediante o engajamento naobra cívica, por amor ao bem comum, pela fidelidade aochamado__________19. Conf. a sua obra Geschichte des Pietismus, 3 vols.1880- 1886.

20. Unterricht in der christlichen Religion, 1895, pág. 5;Justification and Reconciliation, págs. 133 e segs.

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social, se faz possível a lealdade ao verdadeiro exemplode Cristo.21 Há, no pensamento de Ritschl, a dualidadeentre a obra de Deus e a obra do homem, mas esta nãovalida, de modo algum, a censura dos expoentes nãocristãos da cultura à confiança do cristão em Deus e nãonos seus esforços pessoais. Pois Deus e o homem têm, emcomum, a tarefa da realização do reino; e Deus operadentro da comunidade humana através de Cristo e daconsciência e não por cima e fora dela. Há, finalmente, adualidade no próprio Cristo, pois ele é, a um só tempo,sacerdote e profeta, pertencendo tanto à comunidadesacramental daqueles que oram e dependem da graça, como àcomunidade cultural, que através do esforço ético emmuitas instituições trabalha pela vitória dos homenslivres sobre a natureza. Mas aqui também não encontramosconflitos ou tensões, pois se o sacerdote veicula perdão épara que a obra ideal do profeta possa ser realizada; e ofundador da comunidade cristã é, também, o herói moral quemarca um grande avanço na história da cultura.22

É principalmente através da idéia do reino de Deus queRitschl conseguiu a completa reconciliação de Cristianismoe cultura. Quando atentamos para o sentido que ele dá aotermo, nos tornamos cônscios do quanto ele interpretouJesus como um Cristo da cultura em dois aspectos: como umguia dos homens em seus esforços para realizar e conservaros seus valores, e como o Cristo que é entendido medianteas idéias culturais do século dezenove. "A idéia cristã doReino de Deus", escreve Ritschl, "denota a associação dahumanidade - uma associação que tanto extensiva quantointensivamente é a mais completa possível - através darecíproca ação moral dos seus membros, ação que transcendetodas as considerações meramente naturais e__________21. Unterricht in der christlichen Religion, págs. 53 esegs.; Justification Reconciliation, págs. 661 e segs.22. Justification and Reconciliation, cap. VI.

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particulares”.23 Se a esperança escatológica de Jesus namanifestação de Deus está faltando aqui, também o está asua fé não-escatológica no governo atual do transcendenteSenhor do céu e da terra. Todas as referências se dirigemao homem e à obra do homem. A palavra "Deus" parece umaintrusão, reconhecida, talvez, mais tarde, pelosRitschlianos, que substituíram a frase "reino de Deus"pela frase "fraternidade do homem”. Esta declaração de quea finalidade do esforço humano se encontra dentro daatividade cultural, está, além disto, de acordo com alinha de pensamento do século dezenove. Como temos jáobservado, o conceito de reino de Deus que Ritschl atribuia Jesus Cristo é praticamente a mesma idéia de Kant doreino dos fins. Está ele intimamente relacionado àesperança de Jefferson de uma humanidade reunida em umafamília "sob os laços da caridade, paz, necessidadescomuns e mútua ajuda"; em seus aspectos políticos ele é "OParlamento do Homem e a Federação do Mundo" de Tennyson;ele é a síntese dos grandes valores apreciados pelacultura democrática: a liberdade e valor intrínseco dosindivíduos, a cooperação social e a paz universal.

Deve-se dizer, contudo, fazendo-se justiça a Ritschl,que, se é verdade que ele interpretava Cristo através dacultura, é verdade também que ele selecionava da culturaaqueles elementos mais compatíveis com Cristo. Muitosoutros movimentos estiveram presentes na florescentecivilização da última parte do século dezenove além doelevado idealismo ético kantiano, que era para Ritschl achave da cultura. Ele não encontrou, nem procurou, comooutros o fizeram, estabelecer contato entre Jesus Cristo eas tendências capitalistas, nacionalistas ou materialistasda época. Se é certo que ele usou o Cristianismo como ummeio para um fim, é certo, também, que ele escolheu um fimmais compatível com o Cristianismo do que os muitos outrosalvos da cultura__________23. Ibid., pág. 284.

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contemporânea. Se for certo que ele selecionou entre osatributos de Jesus Cristo uma qualidade do amor, sem levarem conta os seus atributos de poder e justiça, é tambémcerto que a teologia resultante, embora fosse umacaricatura, era reconhecivelmente cristã. Além disto,Ritschl procurou fazer justiça ao fato de que Cristocumpriu umas tantas coisas para os homens, coisas que elespor si mesmos não poderiam cumprir dentro da cultura,mesmo pela imitação do exemplo histórico. Ele comunicou ecomunica o perdão de pecado; e ele traz à luz aimortalidade que o labor e a sabedoria humana não podemalcançar. A soberania do homem sobre o mundo tem os seuslimites. O homem é limitado pela sua própria naturezacorporal e pela multidão de forças naturais que ele nãopode domesticar, "bem como pela multidão de empecilhos daparte daqueles cujo apoio ele leva em consideração”.Embora se "identifique com as forças avançadas dacivilização humana", ele não pode esperar conquistar peloseu trabalho o sistema da natureza que se opõe a ele.Nesta situação, a religião e Jesus Cristo como umprofessor de alta religião dá ao homem a certeza de estarperto do Deus supramundano; e lhe concedem a garantia deque ele está destinado a um alvo supramundano.24

Naturalmente, também, isto soa mais como o Evangelho de S.Imanuel do que como o Evangelho segundo S. Mateus ou S.Paulo.

Não é necessário que desenvolvamos em outrospormenores a solução de Ritschl para o problema Cristo ecultura, mostrando como a lealdade a Jesus leva àparticipação ativa em toda a obra cultural, e zelando pelaconservação de todas as grandes instituições. Os esquemasgerais são familiares aos cristãos mais modernos,especialmente aos protestantes, tenham ou não tenhamouvido a respeito de Ritschl, para nada dizermos dos_________24. Ibid., págs. 609 e segs.

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que leram as suas obras. Em parte por causa da suainfluência, e mais ainda porque ele foi um homemrepresentativo, que tornou explícitas as idéias dispersasmas profundamente enraizadas no mundo de antes dasguerras, a sua compreensão de Cristo e cultura tem sidoreproduzia em essência por dezenas de eminentes teólogos eclérigos. Walter Rauschenbusch com o seu evangelho socialapresenta a mesma interpretação de Cristo e do evangelho,embora com maior força moral e menos profundidade. Harnackna Alemanha, Garvie na Ingla- terra, Shailer Matthews e D.C. Macintosh na América, Ragaz na Suíça, e muitos outros,cada qual à sua maneira, encontram em Jesus o grandeexpoente da cultura religiosa e ética do homem. A teologiapopular condensa todo o pensamento cristão na fórmula: APaternidade de Deus e a Fraternidade do Homem.

Atrás de todas estas cristologias e doutrinas desalvação está uma noção comum que é parte do clima deopiniões geralmente aceitas e não questionadas. Trata-seda idéia de que a situação humana é fundamentalmentecaracterizada pelo conflito do homem com a natureza. Ohomem, o ser moral, o espírito intelectual, confronta asforças impessoais e naturais na maioria dos casos fora,mas parcialmente, também, dentro de si mesmo. Quando aquestão em vida se concebe desta forma, é quase inevitávelque Jesus seja abordado e compreendido como o grande líderda causa espiritual e cultural, da luta do homem parasubjugar a natureza e de suas aspirações para transcendê-las. Que a situação fundamental do homem não é de conflitocom a natureza, mas com Deus, e que Jesus Cristo está nocentro deste conflito como vítima e mediador - pensamentocaracterístico da Igreja como um todo - é coisa que parecenão ser aceita pela teologia cultural. Para esta teologia,os cristãos que assim entendem o dilema humano e as suassoluções são obscurantistas quanto à vida cultural dohomem e pervertedores do Evangelho do reino.

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III. EM DEFESA DA FÉ CULTURAL

A grande reação contra o protestantismo cultural donosso tempo tende a obscurecer a importância das respostasdeste tipo ao problema de Cristo-e-cultura. Mas nós somosalertados contra o tratamento altivo de tal posição aorefletirmos sobre o fato de que alguns dos críticos maisseveros participam da atitude geral que eles tencionamrejeitar, e ao reconhecermos que, como um movimentoperene, a aculturação de Cristo é tanto inevitável quantoprofundamente significativa na extensão de seu reino.

O quanto o ataque fundamentalista ao chamadoliberalismo - termo pelo qual se pretende designar oprotestantismo cultural - é, em si mesmo, uma expressão deuma lealdade cultural, é indicado por um número deinteresses fundamentalistas. Nem todos, mas muitos destesantiliberais se preocupam muito mais com a conservação dasnoções cosmológicas e biológicas de culturas mais velhasdo que com a própria, soberania de Jesus Cristo. O testede lealdade a ele é encontrado na aceitação de velhasidéias culturais sobre o como da criação e da destruiçãoda terra. Mas significativo ainda é o fato dos costumesque eles associam com Cristo terem tão pouca relação com oNovo Testamento e tanta conexão com os hábitos sociaiscomo os de seus oponentes. O movimento que identificaobediência a Jesus Cristo com as práticas da lei seca ecom a manutenção da antiga organização social da América éum tipo de Cristianismo cultural, embora a cultura que elepretende conservar seja distinta daquela honrada pelo seurival. A mesma coisa é verdade quanto à crítica marxista-cristã do "Cristianismo burguês", do liberalismodemocrático e individualista. De Novo, a reação católico-romana contra o protestantismo dos séculos vinte edezenove parece, freqüentemente, ser animada por um desejode volta à cultura do século treze, a instituiçõeseconômicas, religiosas e políticas e a idéias filosóficas

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de outra civilização que não a nossa. Na medida em que oataque ao protestantismo cultural se desenvolve destaforma, o que temos é uma querela de família entre pessoasque estão essencialmente de acordo nos pontos principais,a saber, em que Cristo é o Cristo da cultura e em que amaior tarefa do homem é manter a sua melhor cultura. Nadano movimento cristão é tão semelhante, tanto noprotestantismo cultural como no catolicismo cultural; nadaé mais consangüíneo ao Cristianismo germânico do que oCristianismo americano, ou mais semelhante a uma igreja daclasse média do que uma igreja de operários. Os termosdiferem, mas a lógica é sempre a mesma: Cristo estáidentificado com aquilo que os homens concebem como sendoos seus mais altos ideais, as suas instituições maisnobres e a sua melhor filosofia.

Como acontece no caso da resposta radical, há valoresnesta posição que estão escondidos para os seus oponentes.Não se pode duvidar de que a aculturação de Jesus Cristotem contribuído muito na história para a extensão do seupoder sobre os homens. A afirmação de que o sangue dosmártires é a sementeira da Igreja é uma meia verdade. Emtempos antigos os homens estavam impressionados pelaconstância dos cristãos que se recusavam a ceder ante aexigência oficial e popular de conformação aos costumes.Mas eles eram também atraídos pela harmonia da mensagemcristã, pela filosofia moral e religiosa dos seus melhoresmestres, e pelo fato de estar o comportamento dos cristãosem linha com o dos seus heróis exemplares.25 Nesteparticular a cultura tem também os seus mártires, tantoquanto a Igreja, e os seus cemitérios têm também sido asementeira de movimentos regeneradores na sociedade. Oshelenistas conseguiram ver certas semelhanças_________25. A dualidade de atração do Cristianismo para os pagãosdo segundo século foi bem descrita pelo prof. H. Lietzmannem sua obra The Founding of the Church Universal, 1938,págs, 193 e segs. Conf. também Nock, A.D., Conversion1933.

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entre Jesus e Sócrates, como os hinduístas em nosso tempodiscernem alguma semelhança entre a morte de Cristo e a deGandhi. Embora o objetivo de muitos que interpretam Cristocomo o Messias da cultura seja a salvação ou a reformadesta mesma cultura e não tanto a extensão do poder deCristo, eles contribuem grandemente para o último caso aoajudar os homens a entenderem o seu Evangelho em suaprópria linguagem, o seu caráter por meio das suas imagenspróprias, e a sua revelação de Deus com a ajuda de suaprópria filosofia. Eles dificilmente conseguem fazer isto- se o conseguem - por si mesmos, pois outros cristãos àsvoltas com o problema Cristo-e-cultura, à parte dosradicais que rejeitam a cultura, arcam com a maior parcelade responsabilidade neste empreendimento. Todavia, oscristãos culturais dão um forte impulso nesta direção. Quea tradução do Evangelho em "língua vulgar" tem os seusperigos é evidente pelas aberrações deste grupo, mas étambém claro que evitar tais perigos, deixando, paratanto, o evangelho sem ser traduzido, é incorrer no perigode deixá-lo sepultado na linguagem morta de uma sociedadealheia. Os críticos do protestantismo cultural queinsistem na volta à maneira bíblica de pensar às vezes seesquecem de que muitas culturas estão representadas naBíblia, e de que não existe apenas uma linguagem bíblica,nem apenas uma cosmologia ou psicologia, bíblica. Apalavra de Deus revelada aos homens vem em palavrashumanas; e as palavras humanas são coisas culturais,juntamente com os conceitos a que estão associadas. Se osescritores do Novo Testamento precisaram usar taispalavras como "Messias", "Senhor", e "Espírito" para falarde Jesus, o Filho de Deus, os seus intérpretes e osintérpretes do próprio Jesus Cristo servem à mesma causausando palavras como "Razão", "Sabedoria", "Emancipador" e"Encarnação”.

Uma contribuição para a extensão do reino de JesusCristo, que fazem os cristãos culturais, é reconhecida, demá vontade, quando o é, por aqueles que transformam

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o apelo de Cristo aos humildes em uma fonte de orgulho. Oscristãos culturais tendem a se dirigir aos gruposdirigentes de uma sociedade; eles falam aos cultos entreos desprezadores da religião; eles usam a linguagem doscírculos mais sofisticados, daqueles que estãofamiliarizados com a ciência, com filosofia e com osmovimentos políticos e econômicos do seu tempo. Eles sãomissionários para a aristocracia e a classe média, ou paraos grupos que estão tomando o poder em uma civilização.Nestas circunstâncias, eles podem - embora nãonecessariamente - participar da consciência de classe demuitos a quem se dirigem; e têm de lutar para mostrar quenão pertencem à multidão vulgar dos seguidores nãoesclarecidos do Mestre. Esta é uma falta lamentável, mas éo mesmo pecado em que caem aqueles que se orgulham de suahumilde posição na sociedade, e é grato a Cristo menospelo fato de este partilhar de sua modesta situação do quepelo motivo de o mesmo derrubar os poderosos dos seustronos. A parte de tais considerações, parece verdadeiroque a conversão ao Cristianismo dos grupos dirigentes deuma sociedade tem sido tão importante para a missão daIgreja quanto a conversão direta das massas. Paulo é umafigura simbólica, representando, em sua conversão e em seupoder, dezenas e centenas de outros cultos desprezadoresde Cristo que se tornaram seus servos.

A posição Cristo-da-cultura parece, desta maneira e deoutras semelhantes, tornar efetivo o significado universaldo Evangelho, e a verdade segundo a qual Jesus é osalvador, não de um grupo seleto de santos, mas do mundo.Ela também focaliza incisivamente elementos no ensino e navida do Jesus Cristo de Novo Testamento que os cristãosradicais deixam de lado. Ele foi relevante para o seutempo; ele confirmou as leis de sua sociedade; eleprocurou e enviou os seus discípulos a buscarem as ovelhasperdidas de sua própria casa de Israel. Ele não apenasapontou para o fim dos tempos, mas também para osjulgamentos temporais, tais como a queda da torre de Siloée a destruição de Jerusalém

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Ele põe em questão os partidos políticos de sua nação e deseu tempo. Embora fosse mais do que um profeta, ele eratambém um profeta que, como Isaías, se preocupava com apaz de sua própria cidade. Ele não podia imaginar qualquervalor temporal tão grande como a vida da alma, mas curavaos enfermos do corpo quando perdoava os seus pecados. ‘Elefez distinções entre princípios fundamentais e tradiçõesde pouco valor. Ele achou que alguns homens sábios nosseus dias estavam mais perto do reino de Deus do queoutros. Embora ele ordenasse aos seus discípulos quebuscassem o reino acima de tudo, não lhes aconselhoudesdenhar os outros bens; nem foi ele indiferente àinstituição da família, à ordem no templo, à liberdade dostemporalmente oprimidos, e ao cumprimento do dever pelospoderosos. O senso de transcendência em relação a estemundo (the other-wordliness) está, em Jesus, sempre ligadoà preocupação com este mundo. A sua proclamação edemonstração da ação divina são inseparáveis da ordem aoshomens para serem ativos aqui e agora. O seu reino futuroalcança o presente. Se for um erro interpretá-lo como umsábio que ensinava a sabedoria secular, ou como umreformador preocupado com a reconstrução das instituiçõessociais, tais interpretações servem, pelo menos, paracontrabalançar os enganos opostos que o apresentam comouma pessoa que não tinha interesse algum pelos princípiosusados pelos homens para lhes guiar a vida em umasociedade condenada, pois os seus olhos estavam voltadospara a Jerusalém que havia de descer do céu.

Para o cristão radical, todo o mundo que está fora daesfera em que a soberania de Cristo é explicitamentereconhecida é um reino por igual de trevas. Mas o cristãocultural nota que há muita diferença entre os diversosmovimentos na sociedade. E, observando isto, ele nãoapenas descobre pontos de contato para a missão da Igreja,mas também se capacita para trabalhar pela reforma dacultura. Os radicais rejeitam Sócrates, Platão e osestóicos, ao lado de Aristipo, Demócrito e dos epicureus.Tirania e império significam a mesma coisa

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para eles; assaltantes e soldados usam, ambos, deviolência; as imagens esculpidas por Fídias são tentaçõesmais perigosas como idolatria do que as feitas por umartífice habilidoso; a cultura moderna é, no seu todo,individualista e egoísta, secularista e materialista. Ocristão cultural entende, contudo, que há grandespolaridades em qualquer civilização; que há um sentido emque Jesus Cristo confirma movimentos na filosofia pelaafirmação da unidade e ordem do mundo, movimentos nosdomínios da moral pela abnegação e cuidado do bem comum,preocupações políticas com a justiça e interesseeclesiástico pela religião e pela honestidade. Portanto,eles se põem em contato com a cultura, apresentando Jesuscomo o sábio, o profeta, o verdadeiro sumo sacerdote, ojuiz incorruptível, o reformador cheio de paixão pelo bemdo homem comum. Ao mesmo tempo, eles incentivam as forçasque estão lutando contra a corrupção secular. Os gnósticosajudam a impedir que a Igreja se transforme em uma seitade retirantes; Abelardo prepara o caminho para oesclarecimento científico e filosófico da sociedademedieval e para a reforma do sistema penitenciário; osprotestantes culturais são pregadores do arrependimento emuma cultura industrial posta em perigo pelas suascorrupções peculiares.

A tudo isto se levantará a objeção de que a cultura étão diversificada que o Cristo da cultura se torna umcamaleão; de que a palavra "Cristo" nesta conexão nadamais é do que um termo honorifica e emocional por meio doqual cada período vincula uma qualidade não empírica aosseus ideais personificados. Ora designa esta palavra umsábio, um filósofo, ora um monge, um reformador, umdemocrata, ora um rei. Sem dúvida, esta objeção tem muitavalidez. Que semelhança há entre o operador de maravilhas,o herói sobrenatural de um culto de mistério cristianizadoe o "Camarada Jesus" que "tem o seu cartão vermelho"? Ouentre o professor de uma sabedoria melhor do que a dosestóicos e "O Homem que Ninguém Conhece"? Contudo, duascoisas devem ser ditas como resposta e como defesa doscristãos

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do Cristo-da-cultura. A primeira é, naturalmente, que, defato, Jesus Cristo tem muitos aspectos, e que mesmo ascaricaturas ajudam, às vezes, a chamar atenção parafeições suas de outra forma ignoradas. A outra coisa é: ofato de terem os cristãos visto afinidade entre Cristo eos profetas hebreus, os filósofos morais da Grécia, osestóicos romanos, Spinoza e Kant, reformadoreshumanitários e místicos orientais, pode ser menosindicativo da instabilidade cristã do que de uma certaestabilidade na sabedoria humana. Embora à parte de Cristoseja difícil de se ver unidade naquilo que, às vezes, échamado de grande tradição da cultura, com a sua ajuda talunidade pode ser discernida. É-se tentado a formular estanoção teologicamente, dizendo que o Espírito procede nãoapenas do Filho, mas também do Pai, e que com a ajuda doconhecimento de Cristo será possível fazer discriminaçãoentre os espíritos dos tempos e o Espírito que vem deDeus.

IV. OBJEÇÕES TEOLÓGICAS

Não apenas clérigos, mas também não-cristãos, a quemJesus tem sido apresentado como o Cristo da cultura,levantam objeções a esta interpretação. Os gnósticoscristãos são atacados por escritores pagãos e ortodoxos. Oliberalismo cristão é rejeitado tanto por um John Deweycomo por um Barth. Os marxistas, tanto quanto oscalvinistas ortodoxos e luteranos, não gostam dosocialismo cristão. Não é nossa tarefa analisar estasobjeções que são feitas da parte da cultura. Serárelevante, contudo, assinalar que um cristianismo culturalnão é, evidentemente, mais efetivo em ganhar discípulospara Jesus Cristo do que o radicalismo cristão. Tantoquanto parte do seu propósito for de recomendar sempre oevangelho a uma sociedade não-crente, ou a um

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grupo especial tal como a elite intelectual, ou apolíticos liberais ou conservadores, ou a operários, elesempre falhará em alcançar o seu fim, ou por não irsuficientemente longe, ou por se tornar suspeito de estarintroduzindo um elemento que vai enfraquecer o movimentocultural. Parece impossível de se remover a ofensa deCristo e de sua cruz, mesmo por meio destas acomodações. Eos cristãos culturais têm as limitações gerais com que sedefronta toda a cristandade, quer esta lute contra omundo ou lhe seja aliada.

Se os evangelistas do Cristo da cultura não vãosuficientemente longe para enfrentar as exigências dehomens cuja lealdade está voltada primariamente aosvalores da civilização, eles vão longe demais no entenderdos seus companheiros cristãos de outras escolas. Estesúltimos mostram que as respostas culturalistas ao problemaCristo-cultura têm uma persistente tendência paradistorcer a figura de Jesus do Novo Testamento. Em seuesforço de acomodação os gnósticos e os protestantesculturais têm um estranho gosto de escrever evangelhosapócrifos e novas vidas de Jesus. Eles tomam um fragmentoda história complexa e da interpretação do NovoTestamento, chamam-no de característica essencial deJesus, elaboram-no, e reconstroem, assim, as suas figurasmíticas do Senhor. Alguns escolhem os primeiros versos doquarto Evangelho, outros o Sermão da Montanha, e outros aanunciação do reino, como a chave de Cristologia. E ésempre algo que parece concordar com os interesses e comas necessidades do seu tempo. O ponto de contato que elesprocuram com os seus ouvintes domina todo o sermão. E, emmuitos casos, o retrato resultante de Cristo é pouco maisdo que a personificação de uma abstração. Jesus representaa idéia do conhecimento espiritual, ou da razão lógica, oudo significado do infinito, ou da lei moral interior, oudo amor fraternal. Em última análise, estas fantasiosasdescrições são destruídas pela força da história bíblica.Com ou sem as sanções oficiais de bispos e concílios, otestemunho do Novo Testamento

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se mantém contra elas. No segundo século, a formação docânone do Novo Testamento, no dezenove e no vinte, acontínua obra de pesquisa bíblica, deixam claro que JesusCristo não é isto. Ele é maior e mais estranho do que oque se vê nestes retratos. Estes evangelhos e estas vidasapócrifos contêm elementos que não pertencem a ele. E oCristo bíblico diz e faz coisas que não se encontramneles. Torna-se evidente, mais cedo ou mais tarde, que oser sobrenatural era um homem de carne e sangue; omístico, um professor de moral; o professor de moral,aquele que expulsa demônios pelo poder de Deus; o espíritoencarnado do amor, um profeta de ira; o mártir de uma boacausa, o Senhor ressurrecto. É claro que os seusmandamentos são mais radicais do que o admite areconciliação ritschiliana de sua lei com os deveresimpostos pela vocação, e que o seu conceito de missãonunca pode ser forçado dentro do padrão de um emancipadorde opressões meramente humanas.

O número de objeções especiais deste tipo que selevanta contra as interpretações do Cristo-da-cultura podeser multiplicado. Mas independentemente do seu númeroestas acusações constituem a base da acusação de que acultura contemporânea de tal forma qualificou a lealdade aCristo que este acabou sendo abandonado em favor de umídolo que tomou o seu nome. Agora, é verdade que estelibelo tem sido tão incisivamente lavrado que acabou tendoartigos demais. Nenhum tribunal humano, e, muito menosainda, nenhum tribunal cristão está autorizado a julgar alealdade ou a traição dos discípulos. Todavia, porque umperigo evidente se faz presente na posição cristãcultural, a maior parte do movimento cristão a temrejeitado consistentemente, e o tem feito com maiorfirmeza ainda do que quando se tem recusado a aceitar aatitude oposta, a radical.

Como no caso dos crentes exclusivistas, o Cristianismocultural se defronta com problemas teológicos que indicamo quanto estão envolvidas as teorias de pecado, graça eTrindade naquilo que, à primeira vista, parece

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referir-se apenas a questões práticas. Os extremos seencontram; e o pessoal do Cristo-da-cultura se assemelhaestranhamente ao do Cristo-contra-a-cultura, tanto em suaatitude geral em relação à teologia da Igreja, quanto nasposições teológicas específicas que ambos assumem. Elesdesconfiam da teologia, como o fazem os radicais, emborapor razões opostas. Os radicais a consideram como umaintrusão da sabedoria mundana na esfera da revelação, e osúltimos acham que ela é irracional. Como os seusoponentes, os cristãos culturais tendem a separar razão derevelação, mas avaliam os dois princípios diferentes. Arazão, pensam eles, é a estrada que leva ao conhecimentode Deus e da salvação. Jesus Cristo é, para eles, o grandemestre da verdade racional e da bondade, ou o gênioemergente na história da razão religiosa e moral. Arevelação é, então, ou a fabulosa indumentária em que averdade inteligível se apresenta às pessoas que têm umQ.I. baixo, ou é um nome religioso dado àquele processoque é essencialmente o do crescimento da razão nahistória. Esta é a tendência geral no pensamento doscristãos culturais. Mas, como os radicais não podem sedesfazer de alguma dependência da razão, eles então nãopodem prosseguir em seu raciocínio sem confiar nos fatospuramente dados da história, e sem referência a uma açãode auto-manifestação da parte daquele Ser para o qual sevolta a razão quando trata da questão do infinito e da leimoral. O cristão gnóstico se faz companheiro do pagão coma confissão de que a Palavra se fez carne, e em suairredutível dependência do Jesus que sofreu sob PôncioPilatos. O Cristianismo é, em tudo, muito razoável paraJohn Locke. Todavia, ele requer uma coisa que vai além darazão, e que este homem razoável não pode razoavelmentedeixar de lado: o reconhecimento de que Jesus é o Cristo.Embora os ritschlianos saibam que Jesus pertence àhistória do desenvolvimento da razão prática do homem,eles também confessam que o perdão que ele traz aos seuspecados tem, em si, um elemento supra-racional; embora ochamar-lhe Filho de

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Deus seja um julgamento de valor, ele deve, também, serassim chamado em um sentido não tão inteligível, para aprimeira frase ter sentido. Algo que não pode ser expressoem dados racionais permanece. E este algo não é - como ospagãos sempre estão a dizer - devido à covardia dosracionalistas, que se curvam diante da autoridade daIgreja ou do costume popular, por razões pessoaisirrelevantes. Ele se deve, antes, ao fato de que a suaprópria maneira de arrazoar é não apenas condicionadahistoricamente pela presença de Jesus em sua históriapessoal e social, mas também logicamente dependente dapresença de uma convicção que a razão não pode dar por simesma.

Os dois pontos estão intimamente relacionados. Nóspodemos tentar apresentá-los de uma maneira um tantonegativa, dizendo que Jesus Cristo na história é um testeinevitável para todo este racionalismo cristão. Se o seuaparecimento foi um acidente, e não aconteceu que aPalavra se fez carne, se foi uma ocorrência de chance enão uma manifestação do padrão e propósito últimos dascoisas, então todo o arrazoado dos racionalistas cristãosestá errado. E, mais ou menos explicitamente, elesreconhecem isto. Se ele não é o Cristo, se não é arealização de todas as promessas e o assinalador nahistória humana do sentido desta história - se não éaquele por quem aquilo que é verdadeiramente promissor esignificante nesta história pode ser selecionado - entãoeste arrazoado é um erro, pois não está de acordo com anatureza das coisas. Se Jesus Cristo, obediente cominteira devoção à sua lei moral, não ressurgiu dos mortos- se o fim do -amor e pura obediência foi a impotência e onada - então todo este arrazoar sobre o que se requer dohomem e sobre o que é possível a ele desaparece em face dofato. Nestas vias, pelo menos, os cristãos culturaisencontram e parcialmente reconhecem a presença de umarevelação que não pode ser completamente absorvida dentroda vida da razão.

Parece que os extremos também se encontram no queconcerne à concepção de graça, lei e Trindade como

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vista pelos cristãos radicais e culturais. A idéia de umadepravação que é total, no sentido de se estender a todosos homens, e no sentido de envolver toda a naturezahumana, é estranha a ambos os grupos. Ambos tendem alocalizar o pecado, por um lado, nas paixões animais, e,por outro lado, em certas instituições sociais. Para oradical, toda a cultura está envolvida. O cristão culturalpode confinar o mal dentro de algumas más instituiçõesselecionadas, tais como a religião supersticiosa eignorante ou os costumes competitivos que tentam todos oshomens ao egoísmo ou em outras "forças supra-pessoais domal", como Rauschenbush as chama. Todavia, ambos estãoinclinados a admitir uma esfera livre de pecado; em um doscasos a comunidade santa, e, em outro, uma cidadela deretidão nas alturas do espírito pessoal. Na razão pura, nomomento de gnosis, na intenção pura que precede o ato, navida religiosa purificada e perdoada, ou em oração, ohomem se eleva acima do mundo de pecado. E deste retiroele sal para conquistar o mal em sua natureza e em suasociedade. Mas ouve-se aqui, também, a palavra de alerta:"se dissermos que não temos pecado enganamo-nos a nósmesmos”. Kant discerne o mal radical que corrompe aintenção, e Rudolf Otto traz à consciência o sensocaracterístico da criatura (creaturely sense) de impurezadiante do Santo Deus, de que participa a razão criada. Namedida em que o cristão cultural se acerca desteconhecimento ele também se acerca dos seus companheiroscrentes que não pensam com tanto otimismo sobre asrealizações humanas, mesmo no domínio da moral e dareligião, e que são menos confiantes quanto à existênciade qualquer lugar onde possa o homem encontrar um ponto deapoio para o seu esforço, visando a erguer o mundo de suasituação de amargura.

Como a sua contrapartida radical, os crentes doCristo-da-cultura se inclinam para o lado da lei ao tra-tarem da polaridade da lei e da graça. Eles parecem rensarque os homens, pela obediência às leis de Deus e às leisespeculativas e práticas da razão, podem realizar

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o alto destino dos conhecedores da verdade e dos cidadãosdo Reino. A ação divina da graça é subordinada ao esforçohumano, e, às vezes, tem-se a impressão de que o perdão depecados e mesmo as orações de ações de graça são todosmeios para um fim, e, mais ainda, para um fim humano. Agraça é uma boa coisa para crer, se você desejar serdeiforme ou afirmar a sua soberania sobre a natureza. OCristianismo cultural, nos tempos modernos, pelo menos,tem sempre originado movimentos que tendem para o extremodo humanismo autoconfiante, para quem a doutrina da graça- e mui- to mais, a confiança nela - rebaixa o homem edesencoraja a sua vontade. Mas dele têm surgido, também,outros movimentos que seguem outros rumos; e isto mostra oquanto ele mesmo vive na presença daquilo que soa como umparadoxo, a saber, que temos de operar a nossa salvaçãocom temor e tremor, porque é Deus quem opera em nós tantoo querer quanto o executar. Seja qual for a maneira pelaqual o racionalismo anuncia que a teologia da lei e dagraça é irracional, ele parece chegar, finalmente, àhumilde confissão de que o reino de Deus é tanto dádivaquanto tarefa, e, assim, enuncia uma vez mais o velhoproblema.

Finalmente devemos considerar como estes esforços deinterpretar Jesus como o Cristo da cultura envolvem oproblema trinitário. Os cristãos radicais - dos temposmodernos, pelo menos - vêem o desenvolvimento da teologiatrinitária como um resultado da introdução de umafilosofia cultural dentro da fé cristã, e não como umaconseqüência dos esforços dos crentes no sentido deentenderem aquilo em que crêem. Mas estes cristãos devotosda filosofia também não gostam da fórmula. Os gnósticosprecisam mais do que uma trindade, e os liberais menos. Atendência do movimento, em toda a sua linha, é a deidentificar Jesus com o espírito divino imanente que operanos homens. Mas surge então a pergunta sobre qual arelação deste princípio imanente, racional, espiritual emoral com a natureza e com o poder que a produz e governa.

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O gnóstico procura resolver o problema por meio deespeculações intrincadas; e o moderno, tendo rejeitadotodos os argumentos sobre a natureza e sobre Deus,levanta, por fim, a inquietante pergunta sobre se Deusexiste, se os juízos de valor feitos pelo homem religiosoe moral são também juízos acerca da própria existência.Pois ele não pode escapar ao problema da vida cultural eética: se existe qualquer acordo entre o poder que semanifesta no terremoto e no fogo e o que fala na vozinterior pequena e calma; se aquilo que transcende o homemem seu confronto com a natureza é uma força cruel, ou oPai de Jesus Cristo. A relação de Jesus Cristo com o Todo-poderoso Criador do céu e da terra não é, em últimaanálise, uma questão especulativa para o homem preocupadocom a conservação da cultura, mas o seu problemafundamental. Problema que se levanta diante dele nãoapenas em suas visões escatológicas, quando ele vê uma"sentença vagarosa e certa, caindo cruel e negra sobre omundo que os seus ideais talharam", mas também em toda asua construção, quando ele descobre que a sua ciência e asua arquitetura não podem resistir, a não ser que estejamordenadas de acordo com uma determinada ordem da natureza.O espiritualismo e o idealismo do Cristianismo culturalencontra o seu desafio no naturalismo. E às vezes estetipo de Cristianismo descobre em tal encontro que ele temsustentado apenas um terço da verdade, quando diz que Deusé Espírito. Outras questões surgem, na medida em que oseventos históricos manifestam a presença, na civilização,de espíritos imanentes contrariando o Espírito de Cristo.Torna-se mais ou menos claro que não é possível confessar-se, honestamente, que Jesus é o Cristo da cultura, sem seconfessar muito mais do que isto.

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Capítulo Quarto

CRISTO ACIMA DA CULTURA

1. A IGREJA DO CENTRO

ESFORÇOS DE ANÁLISE, em qualquer esfera, estãosujeitos à tentação de distinguirem apenas duas classes depessoas, coisas ou movimentos. Dividir, corretamente,significa separar em duas partes. As coisas existentes,cremos nós, devem ser ou espirituais ou físicas; asespirituais são ou racionais ou irracionais, e as físicasou matéria ou movimento. Portanto, quando tentamosentender o Cristianismo nós dividimos os seus aderentesentre os "nascidos uma vez" (once born) e os "nascidosduas vezes" (twice born), e as suas comunidades em igrejase seitas. Esta tendência intelectual pode estar ligada àprimitiva e indomável inclinação de se pensar em termos de"os do grupo" (in-group) e os "fora do grupo" (out-group);de eu (self) e outro. Sejam quais forem as suas causas, oresultado desta divisão em duas partes iguais é o desermos sempre deixados com um grande número de exemplos demistura. Quando começamos com a distinção entre branco epreto, a maioria dos tons

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que seremos solicitados a identificar será cinzenta.Quando começamos a nossa análise das comunidades cristãscom a divisão Igreja-seita, a maioria delas nos pareceráhíbrida. Se Cristo e a cultura são os dois princípios comque se preocupam os cristãos, então, muitos deles nosparecerão ser criaturas acomodatícias, que conseguemmisturar, de uma maneira irracional, uma devoção exclusivaa um Cristo que rejeita a cultura, com a devoção a umacultura que inclui Cristo. Eles parecerão representarvários graus de transição entre 1 João e os Gnósticos,entre Bento e Abelardo, Tolstoi e Ritsehl.

O grande movimento majoritário no Cristianismo, quepodemos chamar de Igreja do centro, tem-se recusado aassumir tanto a posição dos radicais anticulturais, como ados acomodadores de Cristo à cultura. Todavia, ele não temconsiderado os seus esforços de solução do problemaCristo-cultura como comprometedores, ainda quereconhecendo que todos os esforços do homem incorrem empecado. Para ele a questão fundamental não se situa entreCristo e o mundo, por mais importante que possa ser esteponto, mas entre Deus e o homem. O problema Cristo-culturaé abordado deste ponto de vista e com esta convicção. Daí,por maiores que sejam as divergências dos vários grupos naIgreja do centro, eles concordam em certos pontos, quandolevantam a questão concernente à sua responsabilidade navida social. O acordo é formulado em termos teológicos, ea relevância de tais fórmulas para as questões práticas davida cristã é sempre obscura, tanto para os críticosradicais como para aqueles que as seguem sem crítica. Elassão, contudo, tão importantes quanto as teorias darelatividade e dos quanta para as invenções, para aprática médica e mesmo política, de que participam milhõesquem nenhum entendimento têm das mesmas. Uma dasconvicções teologicamente formuladas com que a Igreja docentro aborda o problema cultural é a de que Jesus Cristoé o Filho de Deus, o Pai Todo-poderoso que criou o céu e aterra. Com esta formulação ela introduz na discussão sobreCristo e cultura a concepção

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de que a natureza, em que toda a cultura está baseada, éboa e retamente ordenada por Aquele a quem Jesus Cristo éobediente e a quem ele está inseparavelmente unido. Ondedomina esta convicção, Cristo e o mundo não podemsimplesmente ser mutuamente opostos. Nem pode o "mundo",como cultura, ser simplesmente considerado como o reino daimpiedade, pois ele está alicerçado no "mundo" comonatureza, pelo menos, e não pode existir a não ser queseja sustentado pelo Criador e Governador da natureza.

Há também um acordo com todos os grupos centrais nosentido de que o homem é obrigado pela sua próprianatureza a ser obediente a Deus - não a um Jesus separadodo Todo-poderoso Criador, nem a um autor da naturezaseparado de Jesus Cristo, mas a Deus-em-Cristo e a Cristo-em-Deus - e no sentido de que esta obediência deve serprestada na vida concreta e real do homem natural ecultural. Em sua vida sexual, em seu comer e beber, em seucomando e obediência a outros homens, ele está no reino deDeus pelo ordenar divino e sob as ordens divinas. De vezque nenhuma destas atividades pode ser efetuada sem o usoda inteligência e vontade humanas, em um nível puramenteinstintivo, de vez que o homem como criado é dotado esobrecarregado de liberdade na medida em que ele transitaentre necessidades, a cultura é, em si, uma exigênciadivina. Como criado e ordenado por Deus, o homem devealcançar o que não lhe foi dado. Em obediência a Deus eledeve procurar muitos valores. Há acordo sobre isto naIgreja central, embora haja variedades de convicção sobreo quanto de ascetismo deve estar vinculado a esteprocessar da vida cultural.

O movimento principal da Igreja é também caracterizadopor uma certa harmonia de convicção quanto à natureza euniversalidade do pecado. Já temos observado que oscristãos radicais são tentados a excluir as suas santascomunidades do domínio do pecado, e que os cristãosculturais tendem a negar que o pecado alcance asprofundezas da personalidade humana.

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Os cristãos do centro estão convencidos de que os homensnão podem encontrar em si mesmos, como pessoas oucomunidades, uma santidade que possa ser possuída. O seuacordo sobre a questão é difícil de ser estabelecido, poiscatólicos e protestantes, tomistas e luteranos, mantêm umdebate infindável em torno da mesma e, sem dúvida, semcontarem com mútua compreensão. Contudo, o uso comum dossacramentos, a esperança comum de redenção pela graça e aatitude comum com respeito às instituições de cultura,apontam para um acordo fundamental de convicção quanto aocaráter radical do pecado e sua universalidade, mesmoquando as declarações expressas sobre a matéria não possamser facilmente conciliadas.

Estes crentes que rejeitam ambas as posições extremassão, também, mantenedores de uma convicção comum arespeito da lei e da graça, convicção que os distingue doslegalistas de todos os tipos. Mas aqui, também, uma vezmais, há diferenças. Assim, os católicos são acusadospelos protestantes de praticarem "obras de justificação",e os católicos consideram os protestantes modernos comohomens independentes que pensam poder edificar o reino deDeus com um bom planejamento social. Mas estas são ascríticas endereçadas aos Abelardos e Ritschls de ambos oslados. Em suas posições centrais há maior entendimento.Tomás e Lutero estão mais perto um do outro com respeito àgraça do que dos gnósticos e dos modernistas dosmovimentos sociais. Todos os cristãos do centro reconhecemo primado da graça e a necessidade das obras deobediência, embora as suas análises variem no que concerneà relação entre o amor do homem pelos irmãos e a ação doamor divino, ação esta que vem sempre em primeiro lugar.Eles não podem separar da graça divina as obras da culturahumana, pois todas estas obras são possíveis apenas pelagraça. Mas eles também não podem separar a experiência dagraça da atividade cultural, pois como poderão os homensamar o Deus invisível em resposta ao

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seu amor a não ser que sirvam ao irmão visível nasociedade humana?

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A despeito de tais características comuns, os cristãosdo centro não constituem um grupo organizado em seu ataqueao problema Cristo-cultura. Há, pelo menos, três famíliasdistinguíveis entre eles, e cada uma delas em determinadasocasiões e em questões específicas pode se achar maisintimamente ligada a uma das partes extremas do que aoutros movimentos na Igreja central. Nós as temos chamadodesinteticistas, dualistas e conversionistas; e agoratentaremos dar sentido a estes termos, examinando osrepresentantes típicos de cada um. Na medida em que nosaventuramos a este empreendimento, uma vez mais nosalertamos contra o perigo de confundirmos tiposhipotéticos com a rica variedade e com a individualidademulticor das pessoas históricas. Estes homens, com quemestamos tratando agora, não podem ser forçados (o quetambém é o caso com Tertuliano, Abelardo, Tolstoi eRitschl) dentro dos nossos moldes típicos. Todavia, asimplificação imposta pela nossa tarefa é útil, no sentidode chamar atenção para aspectos proeminentes e para asmotivações diretrizes.

II. A SÍNTESE DE CRISTO COM A CULTURA

Há, em todos os tempos, quando os cristãos se põem atratar do problema Cristo e cultura, aquelas pessoas quevêem que não estão a considerar uma relação presa a umaalternativa equacionada em termos de "ou isto ou aquilo",mas em termos de "tanto um como outro". Todavia, elas nãoafirmam tanto a Cristo como a cultura à maneira doscristãos culturais, pois estes conseguem a reconciliaçãoentre o espírito de Jesus Cristo e o clima da opiniãocorrente pela simplificação da natureza

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do Senhor, de um modo não justificado pelo registro doNovo Testamento. Este é o caso com os gnósticos, quevivendo em uma sociedade que considerava este mundovisível mais ou menos irreal e enganoso, fizeram dele umser pertencente a um mundo totalmente transcendente. Éeste também o caso dos modernistas, que ajustados a umasociedade que não leva em conta, em pensamento e ação, oque o olho não viu e o que o ouvido não ouviu, acabam porretratá-lo como um homem deste mundo. Mas os sinteticistasafirmam tanto Cristo quanto a cultura, como quem confessaa uni Senhor que é tanto deste mundo como do outro. Oacomodador de Cristo às opiniões do tempo desfaz adistinção entre Deus e o homem, divinizando o homem ouhumanizando Deus; e adora a um Jesus Cristo que é oudivino ou humano. O sinteticista mantém a distinção, e,com ela, a convicção paradoxal de que Jesus, seu Senhor, étanto Deus quanto homem, uma pessoa com duas "naturezas"que não devem ser nem confundidas nem separadas. Para ocristão cultural a reconciliação do Evangelho com oespírito dos tempos se faz possível mediante aapresentação desta ou como a revelação da verdadeespeculativa a respeito do ser, ou como conhecimentoprático de valor. Mas a verdade sinteticista não terá nadaem comum com as subordinações fáceis do valor ao ser, oudo ser ao valor. O homem da síntese vê Jesus Cristo comosendo, a um tempo, Logos e Senhor. Portanto, quando eleafirma tanto Cristo como a cultura, ele o faz como alguémque sabe que o Cristo que requer a sua lealdade é maior emais complexo em caráter do que o pretendem asreconciliações mais fáceis. Algo do mesmo jaez é verdadequanto à sua compreensão de cultura, a qual, em suaorigem, é tanto divina quanto humana, tão santa comopecadora, um reino ao mesmo tempo de necessidade e deliberdade, e uma esfera a que se aplica não só a razão mastambém a revelação. Assim como a sua compreensão dosignificado de Cristo o separa do crente cultural, assimtambém a sua apreciação da cultura o afasta do radical.

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Há, para o homem da síntese, uma lacuna entre Cristo ea cultura que o Cristianismo de acomodação nunca levousuficientemente a sério, e que o radicalismo nunca tentousuperar. O alvo da salvação transcendente a este mundo(other-worldly salvation), para o qual Cristo aponta, nãopode ser indicado no oratório do Evangelho com algumaspoucas notas de graça, como o faz o modernismo com os seusparágrafos, não facilmente encontrados, sobre aimortalidade ou a religião pessoal. Constitui ele um temade grande importância. Nem pode aquilo que Deus requer, notocante à ação presente, relevante para as crises da vidasocial e para o estabelecimento de relações justas entreos homens, como algo também a ser feito, ser consideradocomo equivalente ao dizimo da erva-doce e da hortelã. Asordens de Cristo para vendermos tudo e segui-lo, para nãojulgarmos o nosso próximo, para oferecermos a outra faceao que nos faz violência, para nos humilharmos e nostornarmos servos de todos, para abandonarmos família e nosesquecermos do amanhã, não podem, para o sinteticista, serdispostas para rimar com as exigências da vida humana emuma sociedade civilizada, mediante a sua alegorização, oupela sua projeção no futuro, quando as condições, entãotransformadas, as possibilitarão, ou ainda pela confinaçãodas mesmas à esfera da disposição pessoal e da boaintenção. Elas são por demais explícitas para tanto.Contudo, porque sabe que Deus é o criador, ele não foge àresponsabilidade de se defrontar com os preceitos que sãodados na natureza do homem, e que a sua razão discernecomo mandamentos à sua livre vontade. Ele tem que gerarfilhos, não porque o impulso sexual não possa ser domadosó pela razão, mas porque ele foi feito para este fim,entre outros, e não pode ser desobediente à ordem dada coma natureza, antes de qualquer cultura, sem negar aquiloque a natureza afirma; e que ele mesmo afirma, pelo seuviver. Ele deve organizar as relações sociais, porque eleé feito como membro social, inescapável, inteligente elivre, de um grupo, e jamais como

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uma formiga em seu formigueiro ou como uma molécula nocristal. Há outras leis além das leis de Jesus Cristo; eelas também são imperativas e, também, são de Deus. Tratarcom esta realidade nos termos em que o fazem oscristianismos culturais e radicais é não levarsuficientemente a sério nem a Cristo nem a cultura, poiseles deixam de fazer justiça ou ao zelo de Cristo ou àconstância do Criador, e uma destas faltas envolve aoutra. Nós não podemos dizer "ou Cristo ou cultura",porque nós tratamos com Deus em ambos os casos. Nósdevemos dizer "tanto Cristo quanto a cultura", com inteiracompreensão da natureza dual de nossa lei, nosso fim enossa situação.

Até aqui o sinteticista concorda, em larga escala, comoutros tipos da fé cristã central. Sua diferença emrelação a eles surge quando ele analisa a natureza dadualidade na vida cristã, e combina em uma simplesestrutura de pensamento e conduta os elementos nitidamentediferentes. Alguma descrição dos exemplos deste tipo podeajudar a clarificar os seus métodos. Podemos encontrarilustrações em muitos períodos e em muitos grupos - naIgreja primitiva, no catolicismo medieval e moderno,romano e anglicano, e mesmo, embora menos claramente, noprotestantismo. O Novo Testamento não contém documentoalgum que expresse claramente o ponto de vistasinteticista, Mas há muitas declarações nos Evangelhos enas epístolas que soam como o motif ou que podem serinterpretadas, sem violência ao texto, como contendo estasolução do problema Cristo-e-cultura. Entre elas estão asseguintes: "Não penseis que vim revogar a lei e osprofetas: não vim para revogar, vim para cumprir. Porqueem verdade vos digo: Até que o céu e a terra passem, nemum i ou um til jamais passará da lei, até que tudo secumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos,posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, seráconsiderado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, queos observar e ensinar, esse será considerado

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grande no reino dos céus”.1 "Dai a César o que é de César ea Deus o que é de Deus”.2 "Todo homem esteja sujeito àsautoridades superiores; porque não há autoridade que nãoproceda de Deus; e as autoridades que existem foram porele instituídas… As autoridades são ministros de Deus”.3

Esforços tentando estabelecer a resposta sintética,particularmente em conexão com o problema de revelação esabedoria filosófica, podem ser encontrados nosapologistas do segundo século, e, de maneira especial, emJustino, o Mártir. Clemente de Alexandria, contemporâneode Tertuliano, é o primeiro grande representante do tipo.O modo pelo qual ele tenta fazer justiça às incisivasinjunções de Jesus e também às demandas da natureza comodiscernidas pela cultura é indicado em seu pequenopanfleto sobre a questão Quem é o Rico que Será Salvo, ese torna ainda mais claro nas suas obras Instrutor e AMiscelânea. Ao tratar do problema da riqueza ele estápreocupado com que a Igreja não use os mandamentos deCristo aos ricos e suas promessas, aos pobres, de modo alevar os homens ricos ao desespero da salvação. Daí, eleconclui que o sentido espiritual de tais declarações deveser entendido, e o homem rico deve ser assistido, paracultivar em meio à sua riqueza aquela atitude dedespreendimento estóico, de independência com relação àssuas posses, e a virtude cristã da grata generosidade. Talpessoa "é abençoada pelo Senhor, e chamada pobre deespírito, um herdeiro conveniente para o reino do céu, enão alguém que nem pôde ser rico”.4 Até este ponto Clementeconcorda com o cristão cultural; mas a este Cristianismoestóico ou estoicismo cristianizado ele acrescenta uma__________1. Mat. 5:17-19; conf. 23:2.2. Mat. 22:21.3. Romanos 13:1:6.4. Who is the Rich Man That Shall be Saved, xvi (Ante-Nicene Fathers, Vol. 11).

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nova nota. Acima e além deste amável ajustamento doEvangelho às necessidades do rico, ele surge com um claropedido cristão de resposta ao amor do auto-empobrecidoSenhor. "Por todos nós Ele deu a sua vida - o equivalentea tudo. E em troca, ele requer isto de nós: darmos asnossas vidas uns pelos outros. E, se devemos nossas vidasaos irmãos, e se temos feito tal contrato mútuo com oSalvador, por que vamos ainda acumular e guardar os bensmundanos, que são miseráveis, estranhos a nós, etransitórios?"5 Há dois motivos, então, que deveriam guiaros cristãos em sua atividade econômica, e dois estágios devida na sociedade econômica. O desprendimento estóico e oamor cristão não são, contraditórios, mas são distintos elevam a ações diferentes, embora não contraditórias. Vidaem meio às posses por quem não está possuído por elas evida sem posses não são idênticas, embora não hajadesacordo entre elas. Todavia, estas duas situações marcamestágios distintos no caminho da salvação. A busca dasalvação por meio do cultivo próprio e a resposta ao atosalvador de Cristo não são uma só atividade humana, masnão são alheias uma à outra.

Ao escrever o seu livro chamado O Instrutor, Clemente,preocupado com o preparo dos cristãos, apresentou o Senhorcomo um tutor amável e sábio, cujo objetivo era aprimoraras almas daqueles que estivessem sob os seus cuidados,treinando-as para uma vida virtuosa. O propósito de Cristonão é apenas uma grande obra cultural de educação, mas,ainda, o tipo de preparo que ele dá aos cristãos, quaseque não difere, de acordo com Clemente, daquele quequalquer professor pagão moralmente sério de Alexandria,no ano 200 A.D., teria dado aos seus alunos.6 Na verdade,Clemente, este primeiro professor de Ética Cristã, sedeleita_________5. Ibid., xxxvii.6. Conf. Lietzmann, H., The Founding of the Church Univer-sal, cap. Xiii.

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com a facilidade com que pode fazer referência a Platão,Aristóteles, Zeno, a Aristófanes e Menandro, comocomprovadores da verdade de suas admoestações práticas.Jesus Cristo é a palavra, a razão de Deus, e sua maneirade arrazoar sobre questões práticas é, para Clemente, comotodas as demais, desde que boas e sadias. Daí a ética eetiqueta cristãs de O Instrutor corresponderem intimamenteao conteúdo dos livros de texto estóicos da moralidadecorrente na época. A conduta cristã quanto ao comer, aobeber, ao uso de ornamentos, de sapatos, nos banhospúblicos, nas relações sexuais, nas festas éminuciosamente discutida. A maneira de andar, dormir,sorrir, tal como convém a um herdeiro da bem-aventurança,é receitada com grande seriedade. Lemos entre muitasoutras coisas que quando comemos devemos conservar a "mão,a poltrona e o queixo livres de manchas", e "zelar paranão falarmos coisa alguma enquanto estivermos comendo,pois a voz se torna desagradável e desarticulada quandoemitida por uma boca cheia"; que "devemos beber semcontorções no rosto… nem devemos, quando bebemos, girar osolhos, imprimindo-lhes movimentos indecorosos", pois "deque maneira pensais vós que o Senhor bebia, quando ele sefez homem por amor a nós? Não terá sido com decoro edignidade? E não o terá feito intencionalmente? Poisdeveis estar certos de que ele também participou dovinho”. “Clemente procura sempre uma conexão entre as suasregras de decência e conduta sóbria e os exemplos epalavras de Jesus Cristo, mas a relação é geralmenteforçada e freqüentemente tornada possível somente pelaatribuição de todo o velho Testamento a Cristo, o Logos deDeus. O seu uso do pão e do peixe na alimentação dos cincomil, indica a sua preferência por alimentos simples; se oshomens são alertados para não se barbearem, o são nãoapenas porque esta prática está contra a natureza, masporque Jesus disse "até os cabelos de vossa cabeça estãonumerados”;__________7. Op. cit. Livro II, caps. I, ii (Ante-Nicene Fathers,Vol. II)

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rados"; os do queixo também estão numerados bem como os detodo o corpo. Não se deve arrancá-los, pois isto écontrário às anotações de Deus que os tem contado deacordo com a sua vontade”.8 A parte estas numerosasinsignificâncias, que nos parecem mais pueris do que oforam para os leitores da época de Clemente, o Instrutorestá preocupado com o preparo dos cristãos em temperança,frugalidade e domínio próprio. Tudo mais que é exigido doaluno, o preparo bom e sadio que a melhor cultura podepropiciar e o afastar-se daquela licença que caracterizasrevolta contra os costumes são uma exigência fundamentalpara ele. Clemente está bem cônscio de que embora oCristianismo seja, de uma certa forma, contra a cultura,nada tem ele que ver com aquele movimento anticultural quenasce do desdém individualista pelos costumes. Ele nãocorre o perigo de confundir o violador do sábado, que nãosabe o que está fazendo, com aquele que está bem ciente dosignificado de sua ação; ou um ladrão crucificado com umCristo crucificado porque ambos são vítimas do Estado.Clemente sabe, também, que os cristãos estão sujeitos atodas as tentações comuns. O seu interesse, portanto, emapresentar a ética de uma vida sóbria, decorosa erespeitável como a ética de Cristo está muito longedaquele interesse de homens que querem fazer doaprendizado uma coisa fácil. Ele não está absolutamentepreocupado com a tarefa de recomendar Cristo ao homemculto, mas completamente ocupado com o problema de treinarsabiamente o imaturo, de vez que "não é pela natureza maspelo aprendizado que as pessoas se tornam boas e nobres”.9

O seu exemplo é Cristo, o grande pastor de ovelhas; e nãose entenderá Clemente se não se discernir que toda a suaexortação moral e prudente é a obra de um homem que,amando o seu Senhor, ouviu o mandamento de alimentar oscordeiros.__________8. Ibid., Livro III, cap. iii.9. The Miscellanies, Livro I, cap. vi.

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Um cristão, na opinião de Clemente, deve, então, antesde mais nada, ser um homem bom, de acordo com o padrão deboa cultura. A sobriedade na vida pessoal deve seracompanhada de honestidade nas lides econômicas e deobediência à autoridade política. Mas isto não é, de formaalguma, o todo da vida cristã. Há um estágio de existênciaalém da vida moralmente respeitável do freqüentador deigreja. Cristo convida os homens a alcançarem a perfeiçãodo homem sábio e sem paixões, e lhes promete a realizaçãode uma outra ainda maior do que esta. É uma vida de amor aDeus e por amor a Deus, sem desejo de recompensa ou medode punição; uma vida de bondade espontânea em que opróximo e os inimigos são servidos em resposta ao amordivino; uma vida de liberdade, que paira além da lei”.10

Este tipo de vida não é deste mundo, e no entanto aesperança de sua concretização e as previsões de suarealidade enchem a existência presente. Toda a obra deClemente como pastor e autor é evidentemente dirigida paraeste fim de alcançar - e de ajudar outros a fazê-lo - opleno conhecimento do Deus em quem ele crê e a plenarealização, em atos, do amor de Cristo. Seu Cristo não écontra a cultura, mas usa os melhores produtos desta comoinstrumento de sua obra de conceder aos homens o que elesnão podem conseguir por seus próprios esforços. PIe osexorta a se exercitarem em cultura própria e preparointelectual, para poderem estar preparados para uma vidaem que não se preocupem consigo mesmos, com sua cultura oucom sua sabedoria. O Cristo de Clemente é tanto o Cristoda cultura como o Cristo que está acima de toda cultura.

A síntese do Novo Testamento e demandas da vida nomundo é desenvolvida por Clemente não somente com respeitoà ética, mas também em conexão com a_________10. Ver as descrições da vida do verdadeiro gnóstico emThe Miscellanies, especialmente no Livro IV, cap. xxi-xxvi; Livro V, i-iii; Livra VII, x-xiv.

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filosofia e com a fé. Ele nem procura reinterpretar afigura de Jesus, de modo a fazê-lo totalmente compatívelcom os sistemas especulativos do dia, nem rejeita afilosofia dos gregos como sabedoria mundana. Esta é,antes, a imagem clara da verdade, um dom divino aosgregos”; ela é “uma professora que leva ‘a mentehelênica’, como a lei leva os hebreus, ‘a Cristo’”.11 Se oseu interesse o tivesse levado a desenvolver tais idéiasem outros campos da cultura, como arte, política eeconomia, Clemente teria, sem dúvida, tomado atitudesemelhante. Deus “nos admoesta a usar, mas não a gastarmuito tempo com a cultura secular. Pois o que é concedidoem termos de avanço em cada geração e em seu próprio tempoé apenas um preparo preliminar para a palavra do Senhor”.12

A tentativa de Clemente de combinar a apreciação dacultura com lealdade a Cristo foi feita a um tempo em quea Igreja ainda não era legalmente reconhecida. Ela é muitomais representativa de um senso de responsabilidade naIgreja pela manutenção de um aprendizado e moralidadesadios do que de um sentimento de obrigação pelacontinuação e progresso das grandes instituições sociais.Ela está mais interessada na cultura dos cristãos do quena cristianização da cultura. Tomás de Aquino, que éprovavelmente o maior de todos os sinteticistas nahistória Cristã, representa um Cristianismo que tinhaalcançado e aceito inteira responsabilidade social portodas as grandes instituições. Em parte porque todo o pesoda Igreja Católica foi posto na balança em seu favor, masprincipalmente por causa da adequação intelectual eprática do seu sistema, a sua maneira de resolver oproblema Cristo e cultura tem se tornado padrão paramultidões de cristãos. Muitos protestantes que abandonarama resposta ritschliana são atraídos pelo tomismo sem seremtentados______________11. Ibid., Livro 1, caps. ii, v; conf. VI, caps. vii-viii.12. Ibid., Livro I, cap. v.

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a transferir sua aliança à Igreja Romana, enquanto nopensamento e prática anglicanos o seu sistema é normativopara muitos. As linhas divisórias traçadas entre oscristãos com referência à questão Cristo-cultura não podemser estabelecidas de modo a coincidirem com as distinçõeshistóricas entre as grandes igrejas.

Tomás também responde à questão Cristo e cultura com o“tanto um como outro” (toth and). Todavia o seu Cristoestá muito acima da cultura, e ele não tenta disfarçar ogolfo que existe entre eles. A sua própria vida mostra amaneira pela qual ele une as duas exigências, as duasesperanças e começos. Ele é um monge fiei aos votos depobreza, castidade e obediência. Como os cristãosradicais, ele rejeitou o mundo secular. Mas ele é unimonge na Igreja, que se tornou o guardião da cultura, ocultivador do aprendizado, o juiz das nações, o protetorda família, o governador da religião social. Esta grandeorganização medieval, simbolizada na pessoa de Tomás,representa em si mesma a realização de uma sínteseextraordinária e prática. É ela a Igreja secular contraqual o movimento monástico levanta o seu protesto radicalem obediência a Cristo e contra a cultura. Contudo, esteprotesto é agora incorporado na Igreja, sem perder o seucaráter radical. A síntese não foi nem realizada nemmantida facilmente. Ela é cheia de tensões e de movimentosdinâmicos e sujeita a violências. Ambos os lados daIgreja, o do mundo e o do claustro, estavam sujeitos àcorrupção, mas também prestavam informações um ao outro.E, de fato, a unidade de Igreja e civilização, deste mundoe do outro, de Cristo e Aristóteles, de reforma econservação, esteve, sem dúvida, bem fora do quadro idealdivisado posteriormente pela imaginação e propaganda.Todavia ela foi uma síntese semelhante à que a sociedademoderna não parece poder realizar, por lhe faltarem doispré-requisitos: a presença de um vasto Cristianismoradical, que seja profundamente sério, em protesto contraa atenuação do Evangelho pelas instituições religiosas eculturais, e uma Igreja cultural bastante

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grande para aceitar e manter em união dentro de si mesmaesta oposição leal.

Tomás de Aquino, como Alberto, o Grande, não foi quemfez possível esta conquista, mas foi o seu representante.Como Platão e Aristóteles antes dele, ele surgiu no fim deum desenvolvimento social cuja racionalidade estabeleceu.E a sua eficácia, como a deles, esteve reservada para umtempo posterior. Em seu sistema de pensamento elecombinou, sem confusões, filosofia e teologia, Estado eIgreja, virtudes cívicas e cristãs, leis divinas enaturais, Cristo e cultura. E com estes vários elementos,edificou uma grande estrutura de sabedoria teórica eprática, que, como uma catedral, estava solidamenteplantada entre as ruas e mercados, casas, palácios euniversidades, que representavam a cultura humana.Entretanto, quando se passava pelas suas portas, estaestrutura apresentava novo mundo de silencioso espaço, desons e de cores, de ações e figuras, simbólicos de umavida, acima de todas as preocupações seculares. ComoSchleiermacher mais tarde, ele falou aos cultos entre osdesprezadores da fé cristã, com quem ele partilhava dafilosofia comum aos espíritos avançados de seu tempo, oaristotelismo, que w maometanos tinham redescoberto e queos judeus tinham desenvolvido. Mas, como Tertuliano, elereconhecia que o que estava escondido para os sábios erarevelado aos recém-nascidos.

Nós nos concentraremos aqui sobre a maneira em queTomás procurou sintetizar a ética da cultura com a éticado Evangelho. Em suas teorias do fim do homem, dasvirtudes humanas e da lei, bem como em outras partes desua filosofia prática e teologia prática, ele combinou emsistema de preceitos e promessas, as exigênciasdiscernidas pela razão cultural e as proferidas por Jesus,as esperanças baseadas no propósito das coisas comoconhecidas pela mente cultivada e aquelas alicerçadas nonascimento, vida, morte e ressurreição de Cristo. Todo oesforço de síntese é, aqui, internamente formado pelaconvicção (senão completamente baseado nela)

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de que a doutrina da Trindade é uma expressão verbal, asaber, que o Criador da natureza e Jesus Cristo e oespírito imanente são de uma mesma essência. O homem nãopossui três vias de verdade, mas recebeu as vim de trêsverdades; e estas três verdades formam um sistema deverdade. Nós vamos deixar de lado aqui a questão doespírito, para nos preocuparmos com o que a cultura sabesobre a natureza e o que a fé recebe de Cristo.13

O Cristão - e qualquer homem - tem de responder à quesobre o que deve fazer, perguntando e respondendo a umaquestão prévia: qual é o meu propósito, a minhafinalidade? Sua resposta razoável a esta indagação terá dedescontar todas as aspirações e desejos imediatos, namedida em que procurar descobrir o propósito último de suanatureza, de seu ser fundamental. Toda: a natureza, como arazão (isto é, como a razão grega e aristotélica, a razãodesta cultura) a vê, tem propósito em seu caráter;conhecida como criação de Deus o seu caráter é reveladordo propósito de Deus para o homem e daquilo que elerequer. Tomás está convicto de que quando consideramosesta nossa natureza com a razão que é tanto dom de Deusquanto atividade humana, discernimos que aquele propósitoimplícito em nossa existência - pois que somos feitosseres inteligentes e volitivos - é o de realizaçãocompleta de nossas potencialidades, como intelectos napresença da verdade universal e como vontades na presençado bem universal. “Nada pode tranqüilizar a vontade dohomem a não ser o bem universal que não é encontrado emnenhuma coisa criada mas em Deus somente. Portanto,somente Deus pode satisfazer plenamente__________13. Esta discussão da ética de Tomás está baseada na SummaTheologica, Parte II, Seção I, especialmente Qq. i-v,lv-Lxx,xc-cviii; conf. também Summa Contra Gentiles, LivroIII. Todas as citações são das traduções destas obrasfeitas pelos Padres Dominicanos. Conf. também, Filson, E.,Moral Values and the Moral Life, The System of St. ThomasAquinas, 1931.

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o coração do homem”.14 E, de vez que o que está no coraçãodo homem, sua melhor atividade e seu melhor poder, é acompreensão especulativa, a “última e perfeita felicidadedo homem não pode estar em outro lugar a não ser na visãoda essência divina”; ou desde que “todo ser inteligenteconsegue alcançar o seu fim último, mediante a suacompreensão dele …será, portanto, mediante a compreensãoque o intelecto humano alcançará a Deus como o seu fim”.Assim, Tomás é um cristão aristotélico que reproduziu oargumento do filósofo sobre a superioridade da vidacontemplativa em relação à prática, mas que chama de Deuso objeto da visão intelectual. Ele entronizou a vidamonástica não como um protesto contra o mundo corrupto,mas como um esforço no sentido de se pôr acima do mundosensório e temporal para a contemplação da verdadeimutável. Com esta aspiração, assim definida, pelo últimofim, é plenamente possível, para Tomás, como paraAristóteles, reconciliar os esforços de homens em sua vidaprática e em suas sociedades contemplativas, para arealização de fins ordinários como saúde, justiça,conhecimento de realidades temporais, e bens econômicos.Estes bens são requisitos de felicidade, e “se olharmoscorretamente para as coisas poderemos ver que todas asocupações humanas parecem ser ministeriais aoscontempladores da verdade”.16 Mas Tomás acrescenta a estaética dual de uma sociedade constituída de homens práticose contemplativos uma compreensão do fim último do homem,que ele derivou mais do Novo Testamento do que deAristóteles. “No estado presente de vida a felicidadeperfeita não pode ser alcançada pelo homem”, pois aqui eleestá sujeito a muitos males e a mutações. O que o homem__________14. Summa TheolOgica, II-1 Q, ii, art. VIII.15. Ibid., Q. iii, art. viii; Summa contra Gentiles, LivroIII, cap. xxv.16. Summa Theologica, II-1, Q.iv; Summa contra Gentiles,III, xxxvii.

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pode conseguir em e através da sua cultura dos donsoriginais de Deus no mundo da natureza é apenas umaimperfeita felicidade. Além desta, na eternidade, paira umoutro fim, para o qual todo esforço é um preparoinadequado. O alcançar daquela felicidade última não estádentro da esfera das possibilidades humanas; mas esta élivremente concedida aos homens por Deus através de JesusCristo. Além disto, ela é concedida não apenas àqueles quealcançaram a felicidade imperfeita da contemplação, mastambém àqueles que fazem o que podem para vivercorretamente nos arredores não filosóficos e nãomonásticos. Ela é concedida também aos pecadores.17 Tomásnão constrói uma síntese fácil de estágios sucessivos,onde o homem tem de subir da retidão na vida prática àfelicidade imperfeita da contemplação, e Daí à felicidadeperfeita da bem-aventurança eterna. Os estágios estãoali, mas é necessário um salto para o homem avançar de umpara o outro; e um salto pode levá-lo através de umestágio intermediário. Mais do que isto, a íngreme subidapara o céu, embora envolva sempre a atividade humana,somente se processa pelo poder do alto concedidosacramentalmente.Assim como há uma dupla felicidade para o homem, uma emsua vida na cultura e uma outra em sua vida em Cristo, eassim como a primeira destas é uma dupla felicidade, umana atividade prática e a outra na contemplação, assimtambém os caminhos da bem-aventurança são muitos e, noentanto, formam um sistema de estradas. Há o caminho docultivo da vida moral, mediante a educação em bonshábitos; o caminho do autocontrole inteligente; o caminhoda obediência ascética aos conselhos radicais de Jesus; eo caminho do amor, da fé e da esperança, espontâneos egraciosos; mas este último caminho o homem não pode nemencontrar nem percorrer pelo seu próprio poder. Tomás estábem cônscio de que a bondade moral vem através__________17. Summa Theologica, II-I, Q, iii art. 2, Q. v.

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do esforço humano, que a sociedade e cada pessoaindividualmente deve zelar muito para que os hábitos deação, necessários à existência humana e humanitária,possam ser formados e mantidos. Prudência, autocontrole,coragem, justiça, e hábitos específicos de pensamento,conversa, alimentação e outras ações humanas sãonecessárias à vida, mas não são dados às almas livres comoos instintos invioláveis aos animais. O homem não égovernado sem o seu consentimento ou cooperação. Aquiloque ele penosamente adquiriu ele tem de transmitirpenosamente. A “vida meramente moral”, que alguns cristãosexclusivistas, pelo menos, pretendem desprezar, é umagrande conquista, um produto da liberdade do homem, mastambém uma necessidade compulsiva, se ele vai viver comoum homem. Sem ela a finalidade imperfeita mas requeria derealização de felicidade na vida social será impossível. Amenos que o homem possua as virtudes ordinárias, civis,“prosaicas”, “burguesas”, ele não poderá começar a aspiraràs virtudes e felicidade da vida contemplativa. Embora ocultivo de tais bons hábitos de ação seja daresponsabilidade do homem, é certo que mesmo nesta esferaele não está só; pois ele está constantemente sendoassistido e dirigido pelo Deus gracioso, que veicula o seuauxílio através das grandes instituições sociais dafamília, Estado e Igreja. Mas agora surge diante dele,através do Evangelho, a outra felicidade “que excede anatureza do homem, onde este pode chegar apenas por umavirtude divina que envolve uma certa participação naDivindade. …Portanto, devem existir certos princípiosacrescentados ao homem pelo dom de Deus, pelos quais elese ponha a caminho da felicidade sobrenatural, da mesmaforma em que ele é dirigido rumo aos seus fins conaturaispor princípios naturais, contudo não sem ajuda divina".18

Tomás entende plenamente - o que não parece acontecer commuitos cristãos culturais - quão superior e sobre-humana éa________18. Ibid., II-I, Q. xlii, art. 2, Q. v.

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bondade exigida pelos mandamentos de amar a Deus de todo ocoração, alma mente e força, e amar ao próximo como a simesmo. Ele reconhece que onde a fé está ausente, esta nãopode ser produzida por um ato da vontade, e que aesperança da glória, atraente como é, na vida animada porela, não virá como conseqüência de uma resolução. Todavia,elas não são virtudes impossíveis, nem dons acidentais dasorte ou de uma natureza caprichosa que produz de vez emquando estranhos gênios espirituais e morais. Elas sãodadas e prometidas por Deus através de Jesus Cristo; dadasem antecipação e prometidas em plenitude. Aqueles que iasrecebem participam da natureza de Cristo; eles não vivemmais para si mesmos, mas foram elevados acima de simesmos. A eles pertence a bondade ativa e esforço dacaridade não egoísta. Por mais que os homens aspirem aestas virtudes teológicas, a este viver semelhante aCristo, eles podem apenas tornar receptivos os seuscorações. Eles não podem forçar a dádiva, E a dádiva podevir a um ladrão na cruz antes de ser estendida ao cidadãocorreto ou ao monge asceta.

O mesmo tipo de combinação sintética é característicoda teoria de Tomás sobre a lei. O homem não pode viver emliberdade, salvo sob a lei, isto é, na cultura. Mas a leideve ser a verdadeira lei, não resultante da vontade domais forte, mas descoberta na natureza das coisas. Tomásnão procura descobrir uma regra para a vida social dohomem nos Evangelhos. Estas regras podem ser encontradaspela razão. Elas constituem, com os seus amplosprincípios, uma lei natural, que todos os homens, quevivem suas vidas humanas em meio às dadas condições daexistência humana comum, podem discernir. E esta leinatural é, por sua vez, baseada, em última instância, namente de Deus, o criador e governador de tudo. Embora aaplicação destes princípios na lei civil varie de tempopara tempo e de lugar para lugar, eles permanecem os m os.A cultura discerne regras para a cultura, porque

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esta é obra da razão de Deus (God-given reason) em umanatureza dada por Deus (in God-given nature). Todavia, háoutra lei atrás da lei racional que os homens descobrem eaplicam. A lei divina revelada por Deus através dos seusprofetas, e especialmente através do seu Filho, em partecoincide com a lei natural e em parte a transcende comolei da vida sobrenatural do homem. “Não furtarás” é ummandamento encontrado tanto pela razão como na revelação;“Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres” se encontraapenas na lei divina. Ele se aplica ao homem como alguémque tem uma virtude implantada nele, além da virtude dehonestidade, e que tem sido dirigido em esperança rumo auma perfeição além da justiça desta existência mortal.19

Sobre estas bases Tomás prepara não apenas a defesadas grandes instituições sociais, mas também a suaorientação, de acordo com os princípios morais próprios docaráter das mesmas. A propriedade privada, por exemplo,tão suspeita para o radical, é justificada, pois ela “nãoé contrária à lei natural, mas é um acréscimo a ela,divisada pela razão. Todavia, a razão discerne que emborao controle privado de bens exteriores seja uma justadisposição, o uso destes para fins puramente egoísticos eprivativos é indefensável”.20 o comércio, envolvendo lucro,é legal, embora não virtuoso, e deve ser governado porprincípios de preços justos e de proibição à usura, nãosomente porque a Bíblia está contra esta última, mastambém porque não é razoável vender “aquilo que nãoexiste”.21 O governo, o Estado e o uso do poder políticosão ordenados de maneira semelhantes,22 pois Deus criou O__________19. Ver Summa Theologica, II-I, Q. xc-cviii, sobre ateoria de lei de Tomás.20. Ibid., II-II, Q. lxvi, art. 2.21. Ibid., II-II, Q. lxxvii, lxxviii.22. "On the Governance of Rulers”.

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homem como um ser social, e a existência da sociedade éimpossível em um nível humano sem direção, de acordo com arazão. Além do Estado está a Igreja, que não apenas dirigeos homens rumo ao seu propósito sobrenatural e promove aassistência sacramental, mas também orienta a organizaçãoda vida temporal, como guardiã da lei divina, visto que arazão não consegue realizar, às vezes, o que lhe épossível, necessitando, portanto, da graciosa assistênciada revelação, e, também, porque ela não pode atingir asfontes interiores e os motivos da ação.23 A Igreja,contudo, é também uma organização dupla: a instituiçãoreligiosa no mundo e a ordem monástica. Na síntese deTomás, todas estas instituições são tão orgânica emutuamente relacionadas que cada uma delas serve a um fimparticular mas também a outros fins. É fácil ressaltar-seo caráter histórico desta estrutura, e concebê-la como umaorganização militar em que a hierarquia do comando seestende desde o Legislador e Governador Divino, atravésdos seus vice-governadores na terra, a Igreja com a suacabeça papal, através dos príncipes e Estadossubordinados, até alcançar o seu ponto mais baixo, ossúditos, que apenas obedecem. Não há nenhuma questãoquanto ao princípio hierárquico na concepção de Tomás.Como ele disse em sua aula inaugural como mestre deteologia em Paris, e repetiu em muitas variações, era suaconvicção fundamental a de que “o Rei e Senhor dos céusordenou desde a eternidade esta lei: que os dons de suaprovidência devem alcançar as coisas mais baixas porintermédio daquelas que estão no meio”.24 Mas a síntese nãoseria tão atraente e não teria conseguido tanto êxito seTomás não tivesse facultado ao longo de toda a linha umacerta independência a cada instituição e a cada criaturaracional e individual. Cada uma tem_________23. Summa Theologica, II-I, Q. xcix, cviii.24. Citado assim por Gerald Vann no seu St. Thomas Aqui-nos, págs. 45 e segs.

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a sua própria finalidade, a sua própria compreensão,através da razão comum, do alvo e da lei de suas ações, esua própria vontade e principio de autocontrole. Ahierarquia está presente, mas não é uma satrápia oriental.Ela pressupõe a presença de uma mente comum e oconsentimento do governado, bem como um certo grau deindependência em cada grupo de pessoa que realiza a suaprópria tarefa imediata.Enquanto esta mente comum esteve presente na cultura doséculo treze, e enquanto as instituições da época formavamuma unidade sem sérios atritos, a síntese de Tomás não foiapenas uma conquista intelectual, mas a representaçãoteológica e filosófica de uma unificação social de Cristoe cultura. Aquela unidade foi quebrada, tão logorealizada, não pela Reforma ou pela Renascença, mas àparte delas, em todos os conflitos e tensões do séculoquatorze. Quando examinamos períodos posteriores daHistória Cristã, em busca de exemplos semelhantes doCristianismo de síntese, dificilmente encontramosilustrações adequadas. Somos tentados a interpretar opoderoso contemporâneo de Tolstoi e Ritschl, Joachim Pecci- o Papa Leão XIII - como um cristão da escolasinteticista. Durante o seu histórico pontificado elelibertou a Igreja Católico-Romana de seu isolacionismo ede sua tendência a pensar do verdadeiro Cristianismo comouma sociedade alheia em um mundo estranho. Em suasencíclicas sociais sobre o “Casamento Cristão”, “Aconstituição Cristã dos Estados”, “A Liberdade Humana",“Dos Principais Deveres dos Cristãos como Cidadãos” e “ACondição das Classes Operárias”, ele mostrou interessepela sábia participação cristã na vida comum e pelo sensode responsabilidade com vistas à manutenção ou reforma dasgrandes instituições. Ele foi ativo na promoção daeducação, e encorajou o estudo da filosofia, pois “osauxílios naturais com que a graça da sabedoria divina temsustentado a raça humana, dispondo todas as coisas, amávele energicamente, não são para serem desprezados ounegligenciados, estando

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especialmente entre os mesmos o uso certo da filosofia”.25

Ao mesmo tempo, e sem nenhum senso de tensão, eleproclamava a soberania de Cristo, porque ele é “a origem ea fonte de todo o bem, e assim como a humanidade só pôdeser libertada da escravidão pelo sacrifício de Cristo,assim também ela só pode ser preservada pelo seu poder”.26

Todavia Leão XIII e todos os que o seguiram em buscade uma nova síntese em bases tomistas não sãosinteticistas. A síntese de Cristo e cultura é, semdúvida, o seu alvo, mas eles não sintetizam Cristo com acultura presente, presente filosofia e presentesinstituições, como Tomás. Quando eles se dirigem aos“gentios” eles não aceitam estar em solo comum com eles,nem argumentam à base de uma filosofia comum, mas lhesrecomendam a filosofia dos dias de Tomás. Leão XIIIdiscursa sobre a “Democracia Cristã” nos termos em queTomás escreveu sobre “O governo dos Governadores”; masLeão escreve no espírito patriarcal de uma sociedadefeudal, e não como alguém que participa no movimentopolítico moderno, como Tomás o fez na época medieval.27 Oque se procura aqui não é a síntese de Cristo com acultura presente, mas o re-estabelecimento da filosofia edas instituições de uma outra cultura. Ao invés depertencer ao tipo sinteticista, este Cristianismo pertenceà espécie cultural. Sua aliança fundamental parece estarvotada a um tipo de cultura da qual, seguramente, JesusCristo e especialmente a sua Igreja são parte importante.Mas o reino e a soberania de Jesus foram tão identificadoscom os__________25. "The Study of Scholastic Philosophy", na obra deWynne, J.D., The Great Encyclicals of Pope Leo XIII, pág.36.26. "Christ our Redeemer", Wynne, pág 463. Conferir também"On the Consecration of Mankind to the Sacred Heart of Je-sus", Wynne págs. 454 e segs.

27. Ver de Leão XIII, "Christian Democracy", Wynne, págs.479 e segs.

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dogmas, organização e costumes de uma instituição culturale religiosa, que os contrapesos da síntese de Tomásdesapareceram, salvo na própria teoria aceita, isto é, emuma espécie de reflexão e refração. “Por lei de Cristo”,escreveu Leão XIII, “queremos dizer não apenas ospreceitos naturais de moralidade, ou aquele conhecimentosobrenatural que o mundo antigo adquiriu, tudo que Jesusaperfeiçoou e elevou ao mais alto plano pela suaexplicação, interpretação e ratificação, mas queremosdizer, além disto, toda a doutrina e em particular asinstituições que ele nos deixou. Destas, a Igreja é aprincipal. Na verdade, que instituição há que ela nãoenvolve e inclui completamente? Pelo ministério da Igreja,tão gloriosamente fundada por ele, ele quis perpetuar ooficio que lhe foi atribuído pelo Pai, e tendo, por umlado, outorgado a ela todas as ajudas eficazes para asalvação humana, ele ordenou, com a maior das ênfases, poroutro lado, que os homens lhe sejam sujeitos como a elemesmo e sigam a sua orientação em todos os departamentosda vida”.28 Tal posição é, na esfera Católico-Romana, umacontrapartida exata do Cristianismo cultural do EvangelhoSocial no protestantismo, para quem Jesus Cristo é ofundador e o aperfeiçoador da sociedade democrática, dareligião livre e da ética da liberdade. Qualquer que sejaa contenda entre tais católicos romanos e taisprotestantes, ela será sempre uma querela na mesmafamília. Ambos estão primariamente preocupados com acultura. Eles só divergem no que se refere à organizaçãoda sociedade e aos valores que devem ser realizados peloempreendimento humano. Portanto, o seu debate também sedesenvolve na sociedade cultural e não na Igreja. Estescatólicos e protestantes contendem uns com os outros arespeito da organização dos__________28. "Christ Our Redeemer", em Wynne, págs. 469 e segs. Adescrição mais objetiva da vida e obra de Leão XIII queencontrei foi a de Schmidlin, Josef, Papstgeschichte derNeutzeit, Vol. II, 1934.

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Estados, da direção e conteúdo da educação, do controledos sindicatos, da escolha da verdadeira filosofia, e nãoacerca de lei e graça, da participação ou não participaçãonas tarefas seculares do mundo, ou sobre a naturezaradical do pecado. Todavia, agiremos bem se nos lembrarmosde que Leão XIII não é catolicismo, assim como Ritschl nãoé protestantismo.

Um melhor exemplo da síntese de Cristo e cultura podeser encontrado no bispo anglicano Joseph Butler, o qual,em sua Analogy of Religion e em seus sermões sobreassuntos éticos, procurou relacionar ciência, filosofia erevelação, a ética cultural do amor próprio racional - tãoinglesa e tão do século dezenove - e a ética daconsciência cristã, do amor de Deus e do próximo. Ao ladode Tomás de Aquino o seu pensamento parece débil eprosaico, mais como uma igreja de arraial bem construídado que como uma catedral. Aqui não se encontram arcosabobadados, nem baluartes góticos, e o altar não é muitoalto. Na América, Roger Williams tentou dar uma resposta àquestão Cristo e cultura, especialmente no campo dasinstituições políticas, que fizesse justiça às distinçõesentre as exigências da razão na sociedade e as de Cristono Evangelho. Mas, embora as distinguisse, ele não pôdereuni-las, contentando-se com (e deixando aos seusseguidores) um paralelismo de exigências e não umasíntese. O paralelismo freqüentemente redundava em umabifurcação da vida espiritual e temporal, ou em umamoralidade individual cristã e outra social e racional,que podia ser resolvida apenas pela aceitação na práticado Cristianismo cultural ou da solução proposta poraqueles que seguem Lutero.Se a resposta sinteticista está ausente do Cristianismomoderno por causa da natureza de nossa cultura ou emdecorrência de uma outra compreensão corrente de Cristo,não tentaremos analisar. Há muitos anseios por umaresposta assim. Ouvem-se pedidos, exigindo a suaformulação. Mas nem uma tem sido divisada, quer comoproduto de um grande pensador, quer como (o que é maisimportante) o de uma vida social ativa, de um clima deopinião ou de uma viva fé que permeie todas as coisas.

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III. A SÍNTESE EM QUESTÃO

A atração da resposta do tipo sinteticista ao problemaCristo e cultura é, sem dúvida, sentida por todos oscristãos, quer sejam, quer não sejam levados a aceitar osistema tomista. A procura de unidade, pelo homem, éindomável, e o cristão tem uma razão especial para buscara integridade, por causa de sua fé fundamental no Deus queé Um. Quando ele, em decorrência de sua experiência ereflexão, compreende que não poderá estar reconciliadoconsigo mesmo se negar a natureza e a cultura, no esforçode ser obediente a Cristo, ou que tal negação envolve, emsi mesma, uma espécie de desobediência ao mandamento doamor, pois as instituições sociais são instrumentosdaquele amor, então ele terá de procurar uma forma dereconciliação entre Cristo e cultura sem negar ou outra. Oimpulso rumo à unidade moral, vincula-se, no eu, ao desejoinsistente e urgente da razão no sentido de descobrir aunidade de seus princípios e o unificado princípio dasrealidades para as quais ela está voltada. Na síntese derazão e revelação, em que a pesquisa do filósofo e aproclamação do profeta são combinadas sem confusão, arazão parece ouvir a promessa de satisfação de sua fome. Aexigência social de unidade na sociedade está, também,inseparavelmente unida a este impulso rumo à integridademoral e intelectual. A própria sociedade é uma expressãodo desejo de muitos pela unidade. Suas enfermidades sãotodas as formas de dissensão; a paz é um outro nome parasaúde social. A união de Igreja e Estado, de Estado comEstado e de classe com classe; a união de todos estes como

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Senhor e companheiro sobrenatural é o desejo irresistíveldo crente. A síntese parece requeria por Deus mesmo, nãoapenas na medida em que Ele opera na natureza humana, narazão e na sociedade pelo seu Espírito unificante, mas namedida em que Ele se revela através de suas palavras e deSua Palavra. Para a Igreja tanto do Novo quanto do VelhoTestamento, a grande proclamação é feita: “Ouve, ó Israel,o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Porque pareceenfrentar estas necessidades e exigências, a resposta dotipo sinteticista será sempre atraente aos cristãos. Mesmoquando têm de rejeitar a forma em que ela é oferecida,eles a verão como um símbolo da resposta última.

A parte, talvez, alguns crentes radicais eexclusivistas, todos os cristãos estão de acordo com aafirmação do sinteticista da importância das virtudescivis e das instituições sociais justas. Agostinianos eLuteranos, como veremos, consideram estas virtudes einstituições sob uma luz diferente, mas se unem noreconhecimento de sua importância para o seguidor deCristo e para todo cidadão da comunidade (common-wealth)de Deus. O que distingue um sinteticista do tipo de Tomásé o seu interesse em descobrir as bases do direito nanatureza dada e criada, do homem e do seu mundo. A suainsistência em que o “deve” (ought) está alicerçado no“é”, embora este, por sua vez, esteja alicerçado no “deve”na mente de Deus, apela com seu realismo a todos que estãoconscientes dos perigos do wishful thinking (*) - nãoapenas de seus perigos para a vida social, mas também dosperigos da fé que ele envolve. Pois a concentração sobre arealidade do futuro reino de Deus pode facilmente levar ànegação de que Deus reina agora; a ansiedade pelo que nãoé presente pode trazer consigo a afirmação de que o___________*Wishful thinking é o ato de crermos que as coisas sejamcomo gastaríamos que fossem (N.T.).

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que é presente vem de um diabo e não de Deus. Há umaatraente grandeza na proclamação resoluta do sinteticistade que o Deus que vai reinar reina agora, e sempre temreinado, e de que o seu reino está estabelecido nanatureza das coisas, e de que o homem deve edificar sobreas bases lançadas. Ele expressa, desta maneira, umprincípio que nenhum outro grupo, cristão parece afirmar,mas do qual todos têm de participar, a saber, o princípiode que o Criador e o Salvador são um, ou que, seja qualfor o significado de salvação, além da criação, ela nãoquer dizer a destruição do que foi criado. Praticamenteafirmado, Ele postula com mais clareza que a conduta devida entre os redondos não pode ser inferior à da vida soba lei, por mais elevada que ela possa estar acima desta, eque a lei nunca é uma invenção puramente humana, mascontém a vontade de Deus. Com este reconhecimento ossinteticistas oferecem aos cristãos uma base inteligívelpara a obra que têm de realizar em cooperação com os nãocrentes. Embora Tertuliano diga aos não cristãos: “Nósnavegamos convosco, e lutamos ao vosso lado, e convoscocarpimos o solo; e… nós nos unimos a vós em vossomercadejar”, ele não indica as bases sobre as quais ocristão pode entrar em tal frente única, e nem dáorientações sobre como, e sobre os limites dentro dosquais ele pode cooperar. O cristão cultural, por outrolado, faz causa comum com o não crente a ponto de privar-se dos princípios especificamente cristãos. Somente osinteticista parece estipular a cooperação voluntária einteligente de cristãos com não crentes ao realizarem aobra do mundo, mantendo, todavia, o caráter distintivo dafé e vida cristãs.Ao lado desta realização da resposta sinteticista pairaoutra - o testemunho irrespondível do fato que o Evangelhopromete e requer mais do que um conhecimento racional doplano do Criador para a criatura e espontânea obediência àlei da natureza. os críticos radicais muito freqüentementese esquecem de quão exaltada é a maneira de ver a lei e oalvo do amor

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apresentada por Clemente e Tomás. Para os sinteticistas, avida cristã é como a dos servos com quem Jesus comparou osseus discípulos. Eles nunca podem cumprir os seus deverestrabalhando nos campos, servindo as mesas e mantendo acasa em ordem. Todavia, estes servos inúteis recebem umconvite para a festa real no fim do dia, e assim efetuamum preparo duplo, de sorte que todo o seu trabalho servilse transforma, para eles, pela chama intima da expectativana o de seu envelope de pagamento, mas de um júbiloimerecido, e que não se pode comprar. Sempre há o mais e ooutro; sempre há o “tudo isto e o céu também”; e para overdadeiro sinteticista o mais não é uma lembrança tardia,como sempre parece acontecer com o cristão cultural.

Não apenas a Igreja mas também a cultura tem umadivida imensa para com os sinteticistas, por estas eoutras contribuições. Na história da civilização ocidentala obra de Clemente, Tomás e seus seguidores e companheirostem tido uma influência imensa. As artes e ciências,filosofia, lei, governo, educação e instituiçõeseconômicas têm sido profundamente afetados por ela. Oshomens deste grupo têm sido mediadores da sabedoria gregae da lei romana para a cultura moderna. Eles têm amoldadoe dirigido a instituição religiosa mais influente em nossacivilização, a Igreja Católico-Romana, e têm ajudadotambém a dar forma a organizações e movimentos menoseficientes.

Quando refletimos sobre o valor para a fé e para asociedade deste modo de tratar o problema Cristo ecultura, é difícil evitarmos o julgamento de que esta éuma das maneiras necessárias à consideração do assunto, ede que a resposta é uma afirmação necessária de umaverdade ou de algumas verdades, Que se trate de toda averdade e de nada que não seja verdade, é menos evidente.A parte estas objeções específicas as específicasformulações da síntese, os cristãos de outros gruposargumentarão que este empreendimento em si e por si mesmotem de levar a um erro.

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O esforço de trazer Cristo e cultura, a obra de Deus ea do homem, o temporal e o eterno, lei e graça, para unisistema de pensamento e prática, tende, talvezinevitavelmente, à absolutização do que é relativo, àredução do infinito a forma finita, e à materialização dodinâmico. Uma coisa é afirmar que há uma lei de Deusinscrita na própria estrutura da criatura, que esta deveprocurar conhecê-la pelo uso de sua razão e reger-se deacordo com ela; outra coisa é formular a lei na linguageme conceitos de uma razão que é sempre condicionadaculturalmente. Talvez seja possível uma síntese em que ocaráter relativo de todas as formulações da criatura sobreo criador seja plenamente reconhecido. Mas nenhumsinteticista tem evitado, até agora, na história cristã, aequação de um modo cultural de se ver a lei de Deus comaquela própria lei. A compreensão de Clemente do que énatural para o homem é, muitas vezes, pateticamenteprovinciana. A visão hierárquica da ordem natural de Tomásde Aquino é histórica e medieval. Verdades provincianas ehistóricas podem ser verdadeiras no sentido decorresponderem à realidade, mas, não obstante, sãofragmentárias e se tornam falsas quando superenfaticamentepostuladas. Nenhuma síntese - pois esta consiste deformulações fragmentárias, históricas e, portanto,relativas, sobre a lei da criação, com previsõesreconhecidamente fragmentárias da lei de redenção - podeser mais do que provisória e simbólica. Mas, quando osinteticista reconhece isto, ele está em vias de aceitaroutra resposta que não a sinteticista. Ele estará dizendo,então, que toda a cultura está sujeita a uma conversãocontinua e infinita, e que a sua própria formulação doselementos da síntese, como toda realização social naestrutura da Igreja e da sociedade, é apenas provisória eincerta.

Tem-se notado que Tomás, ao longo de todo o seuperíodo, carecia de compreensão histórica. Oreconhecimento moderno de que a razão está envolvida comtoda a cultura no movimento continuo da história, e

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de que as instituições sociais, a despeito da presençanelas de elementos reconhecidamente estáveis, estãoperpetuamente mudando, coincide com a reflexão cristã deque toda conquista humana é temporal e passageira. Umsinteticista que torna o evanescente, em qualquer sentido,fundamental à sua teoria da vida cristã terá que sededicar à defesa daquele fundamento temporal, em favor dasuperestrutura que ele sustenta, quando mudanças nacultura o ameaçarem. É lógico que, quando uma respostasinteticista é dada ao problema Cristo e cultura, aquelesque a aceitam se tornam mais preocupados com a defesa dacultura sintetizada com o Evangelho do que com o próprioEvangelho. As duas coisas, então, parecem estar tão inter-relacionadas que o Evangelho perene parece envolvido pelodesaparecimento da cultura anual. Quer tenha sido acivilização medieval ou moderna, feudal ou democrática,agrária ou urbana unida ao Evangelho; quer seja osinteticista romano, anglicano ou protestante, ele tende adevotar-se à restauração ou conservação de uma cultura ese transforma, assim, em um cristão cultural. A tendênciarumo ao conservantismo cultural parece endêmica nestaescola.

Por outro lado, parece que o esforço no sentido desintetizar leva à institucionalização de Cristo e doEvangelho. Pode acontecer que seja possível uma síntese emque a lei de Cristo não se identifique com a lei daIgreja, em que a sua graça não seja efetivamente confinadaao ministério da instituição religiosa e social, e em quea sua soberania não seja equacionada com a regra daquelesque se proclamam seus sucessores. Pode ocorrer que sejapossível uma resposta sinteticista em que se reconheça quea instituição religiosa e social, que se chama de Igreja,é parte da ordem temporal, tanto quanto qualquerempreendimento humano, como o Estado, a escola e asinstituições econômicas. Mas é difícil ver como seria talocorrência, pois se a graça, a lei e o reino de Cristo nãosão institucionalizados, toda síntese deverá ser,novamente,

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provisória, aberta, sujeita a ataque radical, à conversãoe substituição, pela atividade de um livre Senhor e dehomens sujeitos aos seus mandamentos antes que àinstituição religiosa.

Todas estas objeções se encontram em um ponto: o deque a integridade e a paz são a eterna esperança e alvo docristão, e o de que a incorporação temporal desta unidadeem uma fórmula concebida pelo homem representa umausurpação em que o tempo procura exercer o poder daeternidade e o homem o poder de Deus. Como ação puramentesimbólica, como tentativa humilde e reconhecidamentefalível, como o lado humano que não pode ser completo semo feito do Deus que também a iniciou, a síntese é umacoisa; como uma postulação autoritária da maneira em queas coisas se organizam no reino de Deus ela é outra coisa.Mas se ela se enquadrar no primeiro caso, ela não serárealmente uma síntese.

Há outras criticas que os dualistas, osconversionistas e os radicais insistem em apresentarcontra os tomistas. Uma destas, que apenas mencionaremos,é a que argumenta que o esforço de combinar cultura comCristo envolve uma tendência de distinguir graus deperfeição cristã, disto resultando os danos da divisão doscristãos em termos daqueles que obedecem às leissuperiores e dos que obedecem às inferiores, dos que são“psíquicos” ou “gnósticos”, seculares ou religiosos. Semdúvida, há estágios na vida cristã, mas nenhuma sucessãode estágios finitos eleva o homem para perto do infinito enenhum padrão de julgamento, ordem institucionalizada,método de educação, tipo de louvor, pode equivaler a taisestágios. A assistência pastoral que ajusta os seusdeveres e suas expectativas à imaturidade ou maturidade deseus encargos é uma coisa; a afirmação de que a vidacontemplativa é mais cristã do que a prática, ou de que omonge cumpre a lei de Cristo com maior perfeição do que ohomem econômico e político, é um assunto completamentediferente. Tais afirmações estão além da ordem dos homense dos pecadores.

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O sinteticista, contudo, não parece capacitado paracombinar a vida no mundo com a vida em Cristo, salvo com aajuda da idéia dos estágios.

A principal objeção às respostas do sinteticista, quetodos, exceto os cristãos culturais, levantam, é oprotesto de que por mais que professem que participam dapressuposição da pecaminosidade humana, e, portanto, danecessidade e grandeza da salvação de Cristo, elesrealmente não levam a sério o mal radical presente em todaobra humana. Por ser esta a objeção mais eficientelevantada pelos dualistas, nós adiaremos o nossodesenvolvimento do tema para o próximo capítulo.

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Capítulo Quinto

CRISTO E CULTURA EM PARADOXO

I. A TEOLOGIA DOS DUALISTAS

Os esforços visando sintetizar Cristo e cultura têmsido sujeitos a ataques veementes no decurso da históriacristã. Os radicais têm proclamado que estas tentativassão versões disfarçadas de acomodação cultural doEvangelho rigoroso e que elas transformam o caminhoestreito da vida numa estrada espaçosa. Os cristãosculturais objetam que os sinteticistas conservam vestígiosde relíquias antigas, e vias imaturas de pensamento, comoverdade evangélica. A maior oposição não tem sido,contudo, verberada, nem por partidos esquerdistas nem pordireitistas, nem por qualquer outro grupo central, asaber, pelos que procuram responder à questão Cristo ecultura com um “tanto um como outro”. Este grupo que, porfalta de um nome melhor, chamamos de dualista, não é, demodo algum, dualístico no sentido de dividir o mundo, àmoda maniqueísta, em reino da luz e reino das trevas, emreino de Deus e reino de Satã. Embora os membros deste

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grupo discordem das definições e combinações dossintetizadores de Cristo e cultura, eles também procuramfazer justiça à necessidade tanto de serem mantidas juntasa lealdade a Cristo e a responsabilidade pela cultura,como de se fazer distinção entre elas.

Se quisermos entender os dualistas, teremos deobservar o lugar onde eles se encontram e assumir a suaposição na medida em que eles tratam do nosso problema.Para eles, a questão fundamental da vida não é a que oscristãos radicais enfrentam quando traçam uma linhadivisória entre a comunidade cristã e o mundo pagão. Nem éaquela que o Cristianismo cultural discerne quando vê ohomem por toda parte em conflito com a natureza e localizaCristo ao lado das forças espirituais da cultura. Todavia,como ambos, e diferente do sinteticista com o seu mundopacífico e em desenvolvimento, o dualista vive emconflito, e na presença de uma grande questão. O conflitoé entre Deus e o homem, ou melhor - visto que o dualista éum pensador existencialista - entre Deus e nós; a questãopaira entre a retidão de Deus e a retidão do eu (self). Deum lado, estamos nós com todas as nossas atividades,nossos Estados e nossas Igrejas, nosso mundo pagão enossas obras cristãs; do outro lado, está Deus em Cristo eCristo em Deus. A questão a respeito de Cristo e cultura,nesta situação, não é uma que o homem levanta por e parasi mesmo, porém aquela que Deus lhe dirige, não é umaquestão sobre cristãos e pagãos, mas uma questão acerca deDeus e do homem.

Não importa qual possa ter sido a história psicológicado dualista, pois o seu ponto de partida na consideraçãodo problema cultural é o grande ato de reconciliação eperdão que ocorreu na batalha divino-humana: o ato quechamamos Jesus Cristo. São entendidos, partindo-se destecomeço, o fato de que houve e há um conflito, e os fatosda graça de Deus e do pecado humano. Nenhum dualista,jamais, considerou fácil a chegada a este ponto departida. Cada um deles está pronto para esclarecer queestava no caminho errado até que foi

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detido e reconduzido em seus trilhos por outra vontade quenão era a sua. O conhecimento da graça de Deus não lhe foidado, e ele não crê que o tenha sido a alguém, comoverdade auto-evidente da razão - como o crêem certoscristãos culturais, os deístas, por exemplo. O que estesconsideram como pecado que deve ser perdoado e como agraça que perdoa está muito longe da profundidade e dasalturas da maldade e da bondade reveladas na cruz deCristo. A fé na graça e o conhecimento correlato dopecado, que vêm através da cruz, são de uma ordem distintadaquela fácil aceitação da benignidade da divindade e doerro moral da humanidade, de que falam,aqueles que nuncaenfrentaram o horror de um mundo em que os homensblasfemam e tentam destruir a própria imagem da Verdade eBondade, e do próprio Deus. O milagre com o qual odualista começa é o milagre da graça de Deus, que perdoaesses homens sem nenhum mérito de sua parte, recebendo-oscomo filhos do Pai, dando-lhes arrependimento, esperança ecerteza de salvação dos poderes sombrios que regem as suasvidas, especialmente a morte, e transformando-os emcompanheiros daquele que eles desejaram matar. Embora assuas exigências dirigidas a eles sejam tão altas quediariamente acabam por negá-lo, ele mesmo assim permanececomo o seu salvador, levantando-os depois da queda epondo-os no caminho da vida.

O fato de que o Novo começo tenha sido feito com arevelação da graça de Deus não muda a situação fundamentalno que concerne à graça e ao pecado. A graça está em Deuse o pecado está no homem. A graça de Deus não é umasubstância ou um poder semelhante à mana *, veiculado aoshomens através de atos humanos. A graça está sempre naação de Deus; ela é atributo de Deus. Ela é a ação dereconciliação que atravessa__________*Mana - "Nome dado, entre os melanésios, ao conjunto deforças sobrenaturais que operam num objeto ou numa pessoae provêm dos espíritos”. Pequeno Dicionário Brasileiro daLíngua Portuguesa, 1951, pág. 769 (N.T.).

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o campo de ninguém da guerra histórica dos homens contraDeus. Se algo da graciosidade de Cristo está refletido naresposta de gratidão de um Paulo ou um Lutero à graciosaação de Cristo, eles mesmos não podem estar cônsciosdisto, pois aqueles que contemplam tal coisa não podem verque ela é apenas um reflexo. Tão logo o homem tentelocalizá-la dentro dele ela desaparece, assim como agratidão desaparece no momento em que me desvio do meubenfeitor para a contemplação desta virtude benéfica emmim. Também a fé, com que o homem reconhece e se volta, emconfiança, para o gracioso Senhor, não é nada que elepossa derivar de suas capacidades naturais. Ela é umreflexo da fidelidade de Deus. Nós confiamos porque ele éfiel. Portanto, no encontro divino-humano, na situação emque o homem se acha, antes e depois de ouvir a palavra dereconciliação, a graça permanece totalmente do lado deDeus.

Mas o pecado está no homem e o homem no pecado. Napresença do crucificado Senhor da glória, os homens vêemque todas as suas obras são não apenas lastimosamenteinadequadas, medidas por aquele padrão de bondade, masainda sórdidas e depravadas. Os cristãos dualistas diferemconsideravelmente dos sinteticistas em sua compreensãotanto da extensão como da inteireza da depravação humana.Quanto à extensão, Clemente, Tomás e seus associados notamque a razão do homem pode estar obscurecida, mas não estádesorientada em sua natureza. Para eles a cura do mauexercício da razão está em um melhor exercício da mesma, ena ajuda do mestre divino. Além disto, eles consideram acultura religiosa do homem, em sua forma cristã - asinstituições e doutrinas da santa Igreja - como pairandoalém do alcance da corrupção pecaminosa, ainda que muitosmales menores, que exigem reforma, possam aparecer de vezem quando nos recintos sagrados. Mas o dualista do tipo deLutero discerne corrupção e degradação em toda a obra dohomem. Diante da santidade de Deus, como manifestada nagraça de Jesus

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Cristo, não há distinção entre a sabedoria do Filósofo e aestultícia do tolo, entre o crime de assassino e a puniçãodeste pelo magistrado, entre o profanar de santuáriospelos blasfemos e a santificação de lugares pelossacerdotes, entre os pecados carnais e as aspiraçõesespirituais dos homens. O dualista não diz que não hádiferença alguma entre estas coisas, mas diz que diante dasantidade de Deus não há diferenças significativas. É comose pudéssemos dizer que as comparações entre os mais altosarranha-céus e a mais humilde choupana são insignificantesna presença de Betelgeuse. A cultura humana é corrupta einclui toda a obra humana, não simplesmente as realizaçõesde homens fora da Igreja, mas também as daqueles que estãodentro dela; não apenas a filosofia, pelo fato de ser umempreendimento humano, mas também a teologia; não apenas adefesa feita pelos judeus da lei judaica, mas também adefesa cristã do preceito cristão. Se quisermos entender odualista, aqui, devemos ter em mente duas coisas. Ele nãoestá pronunciando um julgamento sobre os outros homens - anão ser que em sua pecaminosidade ele abandone a suaposição diante de Deus - mas depõe, antes, no julgamentoque tem sido feito sobre ele e sobre toda a humanidade, aque ele está inseparavelmente unido, não só pela naturezamas na cultura. Quando ele fala da pecaminosidade do homemda lei, ele o faz como um Paulo, que tinha sido zeloso naobservância da lei, e como um Lutero, que tinha procuradoguardar rigorosamente a letra e o espírito dos votosmonásticos. Quando ele fala da corrupção da razão, ele ofaz como alguém que, tendo feito uso da mesma, tentouardentemente alcançar o conhecimento da verdade. O que sediz a respeito da depravação do homem é dito, portanto, doponto de referência e na situação do homem culto epecador, ao confrontar-se com a santidade da graça divina.A outra coisa que se deve ter em mente, é que para estescrentes a atitude do homem diante de Deus não é umaatitude que ele assume em adição a outras posições, depoisde ter estado em confronto com

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a natureza, com o seu Próximo, ou com os conceitos darazão. Ela é uma situação fundamental e sempre presente,embora o homem esteja sempre tentando ignorar o fato deque ele se encontra diante de Deus, ou que aquilo que eleenfrenta, quando está “em apuros” (up against it), é Deus.

Os dualistas diferem, também, dos sinteticistas em suaconcepção da natureza da corrupção na cultura. Talvez asduas escolas partilhem daquele senso religioso de pecadoque nunca pode ser traduzido em termos morais eintelectuais, e o dualista apenas sinta mais profundamentea sordidez de tudo que é da criatura, de tudo que é humanoe terreno, quando na presença do santo.1 Tendo contendidocomo Jó quanto à sua própria bondade, ele também confessa:“Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem osmeus olhos. Por isso me abomino e me arrependo no pó e nacinza”. Todavia, a santidade de Deus, como presente nagraça de Jesus Cristo, tem um caráter muito preciso parapermitir uma definição de sua contrapartida negativa, opecado humano, nos termos vagos do pensamento primitivo. Osenso de sordidez, de vergonha, de impureza, de polução, éo acompanhamento afetivo de um julgamento moral objetivosobre a natureza do eu (self) e sua sociedade. Aqui, ohomem se encontra diante de Deus, derivando de Deus a suavida, sendo sustentado e perdoado por Deus, sendo amado esendo-lhe permitido viver. Ele nega o que tem de atestarno próprio ato da negação; ele se rebela contra Aquele semcuja lealdade ele não poderia nem mesmo rebelar-se. Todaação humana e toda a cultura estão infeccionadas pelaimpiedade, que é a essência do pecado. A impiedade surgecomo a vontade do homem de viver sem Deus, de ignorá-lo,de ser a sua própria fonte e começo, de viver sem estarendividado e perdoado, de ser independente e

__________1. Conferir, de Otto, Rudolf, The Idea of the Holy, 1924,págs. 9 e segs; e também de Taylor, A. E., The Faith of aMoralist, 1930, Vol. I, págs. 163 e segs.

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estar seguro no próprio eu (self), de ser divino em simesmo. Ela tem milhares de formas e se expressa nas maisdiversas maneiras. Ela aparece na complacência dos homensmoralmente autojustificantes e daqueles que se julgamracionalmente autênticos, e também no desespero daquelespara quem tudo é vaidade. Ela se manifesta na falta dereligião, no ateísmo e no antiteísmo, e também na piedadedaqueles que conscientemente levam Deus aonde quer quevão. Ela ocorre nos atos desesperados de paixão pelosquais os homens se afirmam contra a lei social, com assuas pretensões de sanção divina, mas também na zelosaobediência dos homens da lei, que precisamdesesperadamente da certeza de que são superiores àscastas menores sem lei. Barrado em seus esforços de fundarimpérios divinos e duradouros, o desejo de serindependente da graça de Deus se expressa na tentativa deestabelecer igrejas divinas que tenham armazenado a graçae a verdade necessárias nas doutrinas e nos sacramentos.Incapaz de impor sua vontade sobre os outros mediante amoralidade de senhores, a vontade de ser Deus tenta osmétodos da moralidade de escravos. Quando o homem não podemais estar certo de ser o senhor do seu destino físico,ele se volta para as coisas que crê estarem realmente sobseu controle - coisas como sinceridade e integridade - etenta proteger-se sob sua honestidade. E neste domínio,pelo menos, ele pensa poder ajeitar-se sem a graça, comoum homem bom e independente, de nada necessitando que nãopossa conseguir por si mesmo. O dualista gosta de mostrarque a vontade de viver como deuses - e, portanto, sem Deus- surge nos mais elevados empenhos do homem, isto é,naqueles que são os mais nobres de acordo com os padrõeshumanos. Os homens cuja ocupação é pensar racionalmenteexaltam a razão à posição de juíza e de regra para todasas coisas, chamando-a de elemento divino no homem. Aquelesque têm a vocação de manter ordem na sociedade deificam alei; e, em parte, se deificam. O cidadão democrático,independente, tem dentro de si um pequeno deus na

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consciência autoritária que não se submete à autoridade.Como cristãos, queremos ser os perdoadores de pecados, osque amam os homens, as novas encarnações de Cristo, ossalvadores, antes que salvos, os seguros em nossa própriaposse da verdadeira religião, antes que dependentes de umSenhor que nos possui, nos escolhem e nos perdoa. Se nãotentamos ter Deus sob nosso controle, então, pelo menos,tentamos dar-nos a certeza de que estamos ao seu lado,encarando o resto do mundo, e não ao lado do mundo,contemplando a Deus, em atitude de infinita dependência esem nenhuma segurança, exceto a que encontramos nele.

Assim, do ponto de vista do dualista, todo o edifícioda cultura está fendido e desatinadamente esguelhado, e aobra dos edificadores contraditórios, de construção detorres que aspirem aos céus, está confusa, na crosta daterra. Onde o sinteticista se rejubila com o conteúdoracional da lei e das instituições sociais, o dualista,com o ceticismo do sofista e do positivista, chama aatenção para a cobiça do poder e para a vontade do forte,que incidem em racionalizações em todos esses arranjos dasociedade. Nas monarquias, nas aristocracias e nasdemocracias, nas regras proletárias e nas da classe média,nos regimes episcopais, presbiterianos e congregacionais,a mão do poder nunca é totalmente disfarçada com a luvamacia da razão. Mesmo na obra da ciência, a própria razãoestá sujeita a confusões, como, por exemplo, o fato deela, por um lado, se curvar humildemente diante doaxiomático no arrazoar desinteressado, e de, por outrolado, procurar o conhecimento por amor ao poder. Em todasas defesas sinteticistas dos elementos racionais dacultura, o dualista vê esta falha fatal, a saber, que arazão nos empreendimentos humanos nunca se separa de suaperversão egoística e ímpia. A instituição da propriedade,argumenta ele, não apenas protege contra o roubo, mastambém sanciona grandes tomadas de possessões alheias comoquando defende o direito do colonizador sobre as terrastomadas à força ou por meio de subterfúgios aos índios. Ainstituição

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racional se apóia sobre uma grande irracionalidade. Asinstituições do celibato e do casamento evitam, e tambémacobertam uma multidão de pecados. Daí juntar-se odualista ao cristão radical ao afirmar que todo o mundo dacultura humana é ímpio e está enfermo, a ponto de morrer.Mas há esta diferença entre eles: o dualista sabe quepertence àquela cultura e sabe que não pode livrar-sedela; que Deus na verdade o sustenta nela e por meio dela,pois se Deus em sua graça não sustentasse o mundo em seupecado este não subsistiria por um momento sequer.

Nesta situação o dualista não pode falar de nenhumoutro modo a não ser o paradoxal, pois ele se vê ao ladodo homem no encontro com Deus, embora procurandointerpretar a Palavra de Deus que ele ouve e que vem deoutro lugar. Nesta tensão ele tem de falar de revelação erazão, de lei e graça, de Criador e Redentor. Não apenas oseu discurso é paradoxal, sob tais circunstâncias, mastambém a sua conduta. Ele está sob a lei e, todavia, nãosob a lei mas sob a graça; ele é pecador e, todavia,justo; ele crê como alguém que duvida; ele tem certeza desalvação, e no entanto anda na corda bamba da insegurança.Em Cristo todas as coisas se fizeram novas, e no entantotudo permanece como era desde o princípio. Deus se revelouem Cristo, mas também se velou nesta sua revelação; ocrente sabe em quem ele tem crido, e no entanto anda pelafé e não por vista.Entre estes paradoxos dois são de particular importânciana resposta dos dualistas ao problema Cristo-cultura: o dalei e graça e o da ira e misericórdia divinas. Osdualistas se juntam aos cristãos radicais na manutenção daautoridade da lei de Cristo sobre todos os homens e naexposição da mesma, em seu sentido literal e claro; efazendo objeção às atenuações dos preceitos do Evangelhopelos cristãos culturais ou sinteticistas. A lei de Cristonão é, em sua maneira de entender, um apêndice à lei danatureza do homem, mas a verdadeira afirmação desta, umcódigo para um homem

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comum e normal, e não uma regra especial para os super-homens espirituais. Todavia, ele insiste em que nenhumacultura própria do homem em obediência àquela lei sepresta a livrá-lo do seu dilema de pecado. Nem estão asinstituições que pretendem ter esta lei por fundamento -as ordens monásticas, os costumes pacifistas ou associedades comunistas - menos sujeitas ao pecado daimpiedade e do amor próprio do que as formas mais imaturasde costume e sociedade. A lei de Deus nas mãos dos homensé um instrumento de pecado. Contudo, na medida em que vemde Deus, e de seus lábios é ouvida, ela é um meio degraça. Mas, de Novo, ela é uma espécie de meio negativo,levando o homem ao desespero de si mesmo e preparando-opara voltar-se para Deus. Quando, entretanto, o pecador selança na misericórdia divina e vive somente por estamisericórdia, a lei é reestabelecida de uma nova forma,como algo escrito no coração - uma lei da natureza, não ummandamento externo. Ainda assim ela permanece sendo a leide Deus que o perdoado recebe como a vontade de outro enão como a sua própria. E assim prossegue o diálogo arespeito da lei. Ele soa paradoxal, por se tratar de umesforço visando a dispor em um monólogo um sentido que setorna claro apenas nos encontros e reencontros dramáticosentre Deus e as almas dos homens. Em sua breve sinopsedesta grandiosa ocorrência, o dualista parece estar adizer que a lei da vida não é lei, mas graça; que a graçanão é graça, mas lei - uma grande exigência feita aohomem; que o amor é uma possibilidade impossível e aesperança de salvação uma certeza improvável. Estas são asabstrações, mas a realidade é o continuo diálogo e luta dohomem com Deus, com suas perguntas e respostas, com assuas vitórias divinas que parecem derrotas, e suasderrotas humanas que são transformados em vitórias.

A situação que o dualista está tentando descrever emsua linguagem paradoxal se complica ainda mais pelo fatode o encontro do homem com Deus não se dar em face de umaunidade. O dualista é sempre

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alguém que professa a crença em uma trindade, ou pelomenos em uma duplicidade no ser divino, e para quem asrelações entre o Filho e o Pai são dinâmicas. Mas, alémdisto, ele nota em Deus, como revelado na natureza, emCristo e nas Escrituras, a dualidade da misericórdia e daira. Na natureza o homem encontra não apenas razão, ordeme bondade vitalizante, mas também força, conflito edestruição; nas Escrituras ele ouve a palavra do profeta“sucederá qualquer mal à cidade, e o Senhor não o teráfeito?” Na cruz ele vê um Filho de Deus que não é apenas avítima da maldade humana, mas também alguém entregue àmorte pelo poder que preside todas as coisas. Todavia,desta cruz procede o conhecimento de uma Misericórdia quese dá livremente, e dá o seu bem-amado para a redenção doshomens. O que parecia ira é visto, agora, como tendo sidoamor, que castigou por amor à correção. Mas este amor étambém uma ordenança e aparece como ira contra osdesprezadores e violadores do amor. Ira e misericórdia, nofinal, ficam misturadas. A tentação do dualista é separaros dois princípios e, assim, postular dois deuses ou umadivisão na divindade. O verdadeiro dualista resiste àtentação, mas continua ia. viver na tensão entre ira emisericórdia. Quando ele trata dos problemas de cultura,não pode se esquecer de que o lado negro da vida social dohomem - coisas como vícios, crimes, guerras e punições -são armas nas mãos de um irado Deus de misericórdia, bemcomo asserções da ira humana e da impiedade do homem.

II. O TEMA DO DUALISMO EM PAULO E MÁRCIO

No caso do dualismo, ainda mais do que no dasrespostas prévias à questão Cristo e cultura, devemosfalar de um motif no pensar cristão e não tanto de uma

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escola de pensamento. Exemplos relativamente precisos econsistentes desta maneira de abordar o assunto são maisraros do que os das outras, e o motif freqüentementeaparece de um modo isolado, em áreas especiais do problemacultural. Ele pode ser usado no trato do problema razão erevelação por um pensador que não o emprega quandoconsidera as questões políticos. Ele pode surgir nasdiscussões acerca da participação cristã no governo e naguerra, e com crentes cuja solução do problema razão-revelação soa mais como a dos sinteticistas. Emboraimportante no pensamento de muitos-cristãos, tal motif étão enfático nos escritos de alguns dentre eles, comoLutero, que nos permitimos falar aqui também de um grupoou de uma escola relativamente distinta das outras.

É evidente que os últimos representantes deste gruposão descendentes espirituais de Paulo, quer este possa ounão ser contado como um dos seus membros. E é evidente,também, que o motif está mais pronunciadamente presente noseu pensamento, do que nas tendências sinteticistas ouradicais, para nada dizermos das culturais. A questão davida, como Paulo a vê, paira entre a retidão de Deus e aretidão do homem, ou entre a bondade com que Deus é bom edeseja transformar em bons os homens, por um lado, e otipo de bondade, independente que o homem procura ter emsi mesmo. Cristo define a questão e resolve o problema davida, pela sua contínua ação de revelação, reconciliação einspiração. Não há nenhuma questão quanto à centralidadede Jesus Cristo na vida e pensamento do homem para quemCristo era “o poder de Deus e a sabedoria de Deus”, omediador do julgamento divino, a oferta pelo pecado, oreconciliador dos homens com Deus, o doador da paz e davida eterna, o Espírito, o intercessor pelos homens, ocabeça da Igreja e o progenitor de uma nova humanidade, aimagem do Deus invisível, “um Senhor através de quem todasas coisas existem e por meio de quem existimos”. Em suacruz Paulo tinha morrido para o mundo e o mundo tinhamorrido para ele; e desde

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então viver significava estar com Cristo, sob Cristo e serpor Cristo, nada conhecendo ou desejando a não ser ele.Este Cristo do apóstolo era Jesus. Já passou o tempo emque a identidade do Senhor de Paulo com o Rabi de Nazarépodia ser questionada. Aquele que ele viu, que habitou emsua mente e o possuiu, corpo e alma, era evidentementeaquele amigo dos pecadores e juiz dos que se julgavamjustos, aquele profeta e legislador do Sermão da montanha,aquele que curava os enfermos, que tinha sido condenadopelos judeus companheiros de Paulo, crucificado pelos seuscolegas romanos e visto na existência ressurreta como namortal pelos seus companheiros de apostolado.2

Em um duplo sentido, o encontro com Deus em Cristotinha tornado relativas, para Paulo, todas as instituiçõese distinções culturais e todas as obras do homem. Elasforam todas colocadas sob o pecado, e em todas elas oshomens estavam abertos para o ingressar divino da graça doSenhor. Os homens estão no mesmo nível de uma humanidadepecadora diante da ira de Deus, “revelado do céu contratoda impiedade e injustiça”, fossem ou não, pela suacultura, judeus ou pagãos, bárbaros ou gregos. Quer fossea lei conhecida pela razão ou dada a conhecer através deuma revelação no passado, ela condenava igualmente oshomens, era igualmente ineficaz para salvá-los do seuanarquismo e de seu egoísmo, e era igualmente instrumentoda ira e misericórdia divinas. Deus, pela revelação de suaglória e graça em Jesus Cristo, tinha demonstrado aincredulidade de toda religião, consistisse ela naadoração de imagens à semelhança de homens, pássaros,bestas e répteis, ou na confiança na Torah, acentuasse elaas observâncias rituais ou a guarda das leis éticas. Tantoo conhecimento que encontrava as suas bases na razãoquanto o que buscava o seu fundamento na revelação estavamigualmente afastados do conhecimento__________2. Conferir especialmente, de Porter, F. C., The Mind ofChrist in Paul, 1930.

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da glória de Deus na face de Jesus Cristo. Cristo destruiua sabedoria dos sábios e a retido dos bons que o haviamrejeitado de várias maneiras mas em um mesmo grau. Mas elenão sanciona a estultícia do não sábio ou a iniqüidade dostransgressores, pois estes também estavam incluídos sob opecado, como súditos evidentes do seu reinado. Se asrealizações espirituais do homem ficavam muito atrás dasgloriosas realizações de Cristo e se viam corruptas quandoiluminadas por sua cruz, a total impropriedade edepravação dos valores materiais (físicos) era tambémevidente. Tivesse Paulo, nesta conexão, falado maisexplicitamente das instituições da cultura - família,escola, Estado e comunidade religiosa - e ele se veriaobrigado a tratar delas da mesma forma. Cristo terialançado luz sobre a falta de retidão de toda a obrahumana.

Todavia, em qualquer posição na cultura, e em qualquercultura, em todas as atividades e postos dos homens navida civilizada, eles estavam também igualmente sujeitos àsua obra de redenção. Através de sua cruz e suaressurreição, ele os redimiu de sua prisão deegocentrismo, de mêdo da morte, de desespero e deimpiedade. A palavra da cruz velo para casados esolteiros, para morais e imorais, para escravos e livres,para obedientes e desobedientes, para sábios e justos,para estultos e injustos. Pela redenção, eles nasceram deNovo, ganharam um Novo começo, o qual não estavam nelesmesmos mas em Deus; receberam um Novo espírito, queprocede de Cristo, um amor a Deus e ao próximo que osconstrange a fazer sem constrangimento o que a lei nuncafoi capaz de cumprir. Na liberdade do pecado e naliberdade da lei eles foram fortalecidos pelo amor, paraque pudessem regozijar-se pelo direito de suportar todasas coisas, de serem pacientes e amáveis. Das fontesinteriores do Espírito de Cristo emanariam amor, gozo,paz, paciência, benevolência, fidelidade, brandura eautodomínio. Não como o legislador de uma nova culturacristã, mas como o mediador de um Novo princípio de vida -uma vida de paz com

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Deus - Cristo realizou e realiza esta poderosa obra nacriação de uma nova espécie de humanidade.

Seria falso interpretarmos tudo isto em termosescatológicos, como se Paulo olhasse para a cultura humanado ponto de vista de um tempo no qual esta seria julgadapor um último tribunal, após o que uma nova era de vidaseria inaugurada. Na cruz de Cristo a obra do homem era,então, julgada, e pela sua ressurreição uma vida novatinha sido introduzida na história. Qualquer pessoa queteve os seus olhos abertos para a bondade com que Deus ébom e para a sua ira contra toda impiedade pôde verclaramente que a cultura humana tinha sido julgada econdenada. Se a paciência longa e sofredora manteve taishomens e suas obras vivos, ainda por um pouco; se o juízofinal foi retardado, isto não significou uma invalidação,mas uma demonstração posterior, do Evangelho paulino. Alémdisto, a vida nova não era simplesmente uma promessa masuma realidade presente, evidente na capacidade dos homensde chamarem a Deus de Pai e de manifestarem os frutos doEspírito de Cristo dentro deles e de sua comunidade. Agrande revolução na vida humana não era do passado; nemestava ela por vir, mas estava então em processo.

Com esta compreensão da obra de Cristo e das obras dohomem, Paulo não podia tornar o caminho do cristão radicalcom a sua nova lei cristã tentando mover-se com outrosdiscípulos do mundo cultural para uma comunidade isoladados salvos. É bem verdade que ele se pronuncia contra aparticipação no mundo, quando ela se realiza através deatitudes que são flagrantes exibições de incredulidade,falta de amor, desespero e impiedade humana. “As obras dacarne são conhecidas, e são: prostituição, impureza,lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias,ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas,bebedeiras, glutonarias e coisas semelhantes a estas. …Osque tais coisas praticam

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não herdarão o Reino de Deus”.3 Mas ele está longe desugerir que aqueles que se refreiam de tal condutaherdarão, portanto, o reino, ou que o preparo em bonshábitos morais é um passo no preparo visando ao dom doEspírito. A sua experiência com os gálatas e coríntios,com os cristãos judaizantes e espiritualistas, lhe haviaensinado - se realmente ele necessitava de tal ensinodepois de anos de lutas com Cristo e com o Evangelho - queo espírito anticristão não podia ser expulso por meio deexpedientes como a fuga à cultura pagã, a substituição develhas leis por novas, ou a supressão do orgulho dafilosofia helenista pelo orgulho da gnosis cristã. O reinopenetrante do pecado podia manifestar- se nas atitudes ecostumes dos cristãos, em sua falta de amor nas festas deamor, em seu falar de línguas, em seu orgulho pelasaquisições espirituais, em suas esmolas e em seusmartírios. De vez que a batalha não era contra a carne e osangue, mas contra os princípios espirituais nas mentes ecorações dos homens, não havia lugar de refúgio imune aoseu ataque em uma nova cultura cristã. A cidadania doscristãos era do céu; o seu Lugar de refúgio era com oCristo ressurrecto. No que concernia à sua vida nestemundo, era de seu dever operarem a sua salvação, eexercerem o dom de viver no espírito de Cristo, fosse qualfosse a comunidade ou a posição em que estivessem, quandoalcançados pelo Senhor. Ninguém podia se aproximar doreino de Deus pela mudança de hábitos sociais como o comere o beber e a guarda dos dias santos, pelo abandono dafamília em favor do celibato, pela busca de liberdade doestado de escravidão, ou pelo escape às regras dasautoridades políticas.

Todavia, Paulo acrescentou a esta proclamação doEvangelho de uma nova vida em Cristo a ética cristãcultural, pois a nova vida na fé, esperança e amorpermaneciam fracos e sujeita à luta com Satã, pecado emorte. Além disto, tinha ela de ser vivida no meio de__________3. Gal. 5:19-21

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sociedades evidentemente sujeitas a poderes sombrios. Estaética era, em parte, uma ética da cultura cristã e, emparte, uma ética para as relações interculturais. Àcultura cristã ela provia injunções contra a imoralidadesexual, roubo, preguiça, bebedeira e outros vícios comuns.Ela regulamentava o casamento e o divórcio, as relações deesposos e esposas, de pais e filhos; tratava das soluçõesde querelas entre cristãos; procurava evitar a formação defacções e heresias; dava instruções sobre a conduta nascoletividades religiosas e providenciava o sustentofinanceiro das comunidades cristãs necessitadas. Na medidaem que esta ética se voltava para as relações dos cristãose suas igrejas com as instituições sociais não cristãs, assuas prescrições eram diversas. As autoridades políticaseram reconhecidas como divinamente estabelecidas e aobediência às suas leis era requerida como um devercristão. Todavia, os cristãos não deviam fazer uso dostribunais em questões prementes de uns contra outros. Asinstituições econômicas, inclusive a escravidão, eramconsideradas com certa indiferença ou aceitas como tais.Apenas as instituições e os costumes religiosos dasociedade não cristã foram completamente rejeitados. Estaética da cultura cristã, e da vida na cultura, tinhavárias fontes. Pouco esforço foi feito para derivá-ladiretamente dos ensinos de Jesus, embora em um certonúmero de exemplos as suas palavras fossem de importânciabásica. Quanto ao mais, ela estava baseada em noçõescomuns do que era justo e pertinente, nos dez mandamentos,na tradição cristã, e no próprio senso comum de Paulo.Inspiração direta, à parte de tal uso de tradição e razão,não é mencionada como fonte das leis e conselhos.Assim, Paulo parece mover-se na direção de uma respostasinteticista ao problema Cristo e cultura. Todavia, amaneira como ele relaciona a ética da cultura cristã com aética do Espírito de Cristo é marcantemente diferente damaneira pela qual Clemente e Tomás procediam de uma para aoutra. E a própria ordem é

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diferente, pois os sinteticistas vão da cultura a Cristo,ou do Cristo instrutor ao Cristo redentor, enquanto Paulose move do Cristo que é o juiz da cultura e o redentor nadireção da cultura cristã. Esta variação na ordem estávinculada a algo mais significativo. O sinteticistaconsidera a vida cultural como tendo certos valorespositivos em si mesma, com as suas próprias possibilidadesde realização de uma felicidade imperfeita mas real. Elaestá voltada para a aquisição de valores positivos. Masela, para Paulo, tinha uma espécie de função negativa. Asinstituições da sociedade cristã e as leis de talsociedade, bem como as instituições da cultura pagã, namedida em que têm de ser reconhecidas, parecem, de acordocom o seu ponto de vista, destinadas mais a evitar que opecado se torne tão destrutivo quanto pode se tornar, doque a perseguir a realização do bem positivo. “Por causada tentação da imoralidade, cada homem deve ter a suaprópria esposa e cada mulher o seu próprio marido”. Asautoridades governantes são servas de Deus “para executara sua ira sobre o malfeitor”.4 A função da lei é refrear eexpor o pecado e não guiar os homens à retidão divina. Aoinvés de duas éticas para dois estágios no caminho davida, ou para dois tipos de cristãos, o imaturo e omaturo, as duas éticas de Paulo se referem às tendênciascontraditórias na vida. Uma é a ética da regeneração evida eterna; a outra é a ética que visa evitar adegeneração. Em sua forma cristã ela não é exatamente umaética de morte, mas é uma ética para o moribundo.Portanto, não se reconhecem aqui duas espécies de virtude,a moral e a teológica. Não há virtude exceto a do amor queestá em Cristo, inseparavelmente combinado com a fé eesperança. Deste ponto emanam todas as outras excelências.A ética da cultura cristã, e da cultura em que os cristãosvivem, é, como tal, sem virtude; ela poderá ser, nomáximo, uma ética da ausência de vícios__________4. I Cor. 7:2; Rom. 13:4.

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- embora não haja pontos neutros em uma vida sempresujeita ao pecado e à graça.

Neste sentido, Paulo é um dualista. As suas duaséticas não são contraditórias, mas não fazem parte de umsistema que as enfeixe intimamente. Elas não podem serassim relacionadas por se referirem a fins contraditórios,como vida e morte, e porque representam estratégias emduas frentes distintas - a frente do encontro divino-humano e a frente da luta com o pecado e com os poderesdas trevas. Uma é a ética dos cristãos na medida em que sesubjugam à misericórdia sobrepujante de Deus; a outra temem vista a sua ira contra toda injustiça. O dualismo dePaulo está ligado não apenas à sua visão da vida cristãcomo sendo vivida no tempo da luta final e do Novonascimento, mas também à sua crença de que toda a vidacultural juntamente com os seus fundamentos naturais é tãosujeita ao pecado e à ira que o triunfo de Cristo deveenvolver o fim temporal de toda a criação temporal, bemcomo da cultura temporal. “Carne” neste pensamentorepresenta não apenas um princípio ético, o elementocorrupto na vida espiritual humana, mas também algumacoisa física de que o homem deve ser redimido. Vida nagraça não é apenas a vida que vem de Deus, mas também avida fora do corpo humano. “Enquanto estamos nesta tendanós gememos angustiados; …pois enquanto estamos em casa,no corpo, estamos ausentes do Senhor”.5 O morrer para o eue o ressuscitar com Cristo são eventos espirituais,todavia incompletos sem a morte do corpo terrestre e a suarenovação em forma celestial. Enquanto o homem permaneceno corpo ele parece necessitar de uma cultura e dasinstituições da cultura, não porque elas o levam à vidacom Cristo, mas porque refreiam a maldade em um mundopecador e temporal. Os dois elementos em Paulo não são demodo algum iguais em importância. Seu coração e mente__________5. II Cor. 5:4,6. Ver cap. VI, nota 2.

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se devotam por completo à ética da vida e reino eternos.Somente as necessidades do momento, enquanto a nova vidapermanece escondida e a desordem reaparece nas própriasigrejas, arrancam a ele as leis, as admoestações e osconselhos de uma ética cultural cristã.

No segundo século a resposta dualística à questãoCristo e cultura foi confusa e erraticamente oferecidapelo estranho seguidor de Paulo, Márcio. Ele éfreqüentemente contado entre os gnósticos por ser quaseviolento em seu esforço de livrar a fé cristã de suasassociações com a cultura judaica, e particularmente emsua tentativa de excluir o Velho Testamento e todos oselementos derivados dele das Escrituras Cristãs. Ao mesmotempo, ele usava as idéias gnósticas em sua teologia. Porum lado, devemos associá-lo aos cristãos radicais, poisele fundou uma seita separada da Igreja e caracterizadapor um rigoroso ascetismo. Freqüentemente se pensa que elefoi além, tendo-se tornado uma espécie de maniqueísta, quedistinguia dois princípios na realidade e dividia o mundoentre Deus e o poder do mal. Mas, como Harnack e outrosdeixaram claro, Márcio era, antes de mais nada, umpaulinista, para quem o Evangelho da graça e misericórdiadivinas era a maravilha das maravilhas, algo que causavapasmo e êxtase, algo que não podia ser comparado com coisaalguma.6 Ele não começa com a lei de Cristo, mas com arevelação da bondade e misericórdia divinas. Mas haviaduas coisas que ele não conseguia rimar com aqueleEvangelho. Uma destas era a apresentação do VelhoTestamento de Deus como o furioso guardião da justiça, e aoutra era a vida real do homem neste mundo físico com asexigências, indignidades e os horrores existentes nele. Sefosse apenas o Velho Testamento o

6. Harnack, A.v., Marcion, Das Evangelium vom FremdenGott, caps. iii e vi; conf. Lietzmann, H., The Beginningsof the Christian Church, págs. 333 e segs.

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que lhe causava preocupações ele o poderia ter desprezadoe desenvolvido uma teologia de um Pai Criador amável e umaética de amor destinada a conseguir êxito em um mundoformado pela graça. Mas o mundo real, como Márcio o via,era “estúpido e mau, rastejando com vermes, uma covamiserável, um objeto de escárnio”. Como foi possívelpensar-se que o Deus de toda a graça, o Pai demisericórdias, o tivesse feito e fosse responsável, entreoutras coisas, por esta “extra herança desagradável dereprodução, e por todo o nauseante desfiguramento da carnehumana desde o nascimento até à putrefação final”?7 Em talmundo, a família, o Estado, as instituições econômicas e ajustiça severa têm, sem dúvida, o seu lugar; mas todo estearranjo foi evidentemente um remendo, o produto de pobremanufatura de um vil material. A vida em Cristo e em seuEspírito, a bênção da misericórdia em resposta amisericórdia, pertenciam a uma esfera completamentediferente.

Com esta compreensão de Cristo, e de uma culturafundamentada sobre a natureza, Márcio buscou a sua própriasolução. Ele descobriu a sua resposta na crença de que oshomens estavam tratando com dois deuses: a divindadejusta, mas grosseira e limitada, que fez o mundo com amatéria má; e o Deus bom, o Pai, que por meio de Cristosalvou os homens de sua situação de desespero total nomundo misto de justiça e matéria. Ele reconheceu duasmoralidades, a saber, a ética da justiça e a ética doamor, sendo que a primeira estava inseparavelmente ligadaà corrupção, tendo Cristo vivido, pregado e comunicadoapenas a última dessas duas éticas.8 Daí, Márcio procurouretirar os cristãos do_________7. É assim que Harnack descreve o ponto de vista deMárcio; op. cit., págs. 144, 145; conf. págs. 94, 97.8. Harnack, op. cit., pág. 150.

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mundo físico bem como do cultural, tanto quanto possível,e formou comunidades em que a vida sexual erarigorosamente suprimida - até o casamento sendo proibidoaos crentes - em que o jejum era mais do que um ritoreligioso, mas em que também as relações de misericórdia eamor entre os homens deviam ser realizadas de acordo com oEvangelho.9 Mesmo assim, enquanto os homens permaneciamfisicamente vivos, eles podiam viver apenas na esperançade sua salvação pelo Deus bom, e preparando-se para amesma.

A resposta de Márcio, então, com efeito, não foirealmente dualística, porém mais parecida com a de umcristão exclusivista. O verdadeiro dualista vive na tensãoentre dois pólos magnéticos. Márcio desligou esses doispólos. Justiça e amor, ira e misericórdia, criação eredenção, cultura e Cristo foram separados, e os cristãosmarcionistas se esforçaram para viver não somente fora domundo do pecado, mas, tanto quanto possível, fora do mundoda natureza com que estavam inseparavelmente unidos opecado e a justiça. Sob tais circunstâncias, o Evangelhode misericórdia acabou sendo, para ele, uma nova lei, e acomunidade dos redimidos uma nova sociedade cultural.

O motivo dualista é forte em Agostinho, mas porque anota conversionista parece mais característica de seupensamento nós deixaremos as considerações sobre o seuponto de vista para uma abordagem posterior. NoCristianismo medieval a solução dualista surge em áreasespeciais, como quando escotistas e ocamistas abandonam amaneira sinteticista de encarar revelação e razão e, noentanto, procuram manter a validade de cada uma delas.Esta será também apresentada, em conexão com o problema deIgreja e Estado, como ainda na resposta de Wycliffe àmesma questão.

__________9. Ibid., págs. 186 e segs.

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III. O DUALISMO EM LUTERO E NOS TEMPOS MODERNOS

Martinho Lutero é bem representativo deste tipo,embora ele, como Paulo, seja muito complexo para permitiruma nítida identificação de sua individualidade históricacom um padrão estilizado. A nota fortemente dualística emsua resposta ao problema Cristo-cultura aparece quandocolocamos lado a lado suas duas obras mais amplamenteconhecidas (embora de nenhuma forma as melhores), que sãoo Tratado sobre a Liberdade Cristã, e o apelo àresistência Contra as Hordas Assaltantes e Assassinas dosCamponeses. Elas diferem uma da outra mais ou menos domesmo modo que o hino de Paulo ao amor que não se irritadifere de seu ataque aos judaizantes, com o seu desejo deque se mutilassem aqueles que enchiam de dúvidas os novoscristãos, com a sua conversa a respeito de circuncisão.10

Mas a distância entre estes escritos de Lutero é muitomaior do que qualquer uma das encontradas em Paulo. Semdúvida, o temperamento pessoal tem o seu lugar aqui, masum outro fator deve ser também considerado. Lutero arcavacom a responsabilidade de toda uma sociedade nacional emum tempo de tumultos, e Paulo só teria participado deexperiência semelhante se tivesse sido Cicero ou MareusAurelius e Paulo em uma só pessoa. Seja lá como for, háuma grande distância entre a celebração de Lutero da féque opera através do amor, sofrendo todas as coisas noserviço do próximo, e a sua injunção aos governantes para“apunhalar, esmagar e matar tantos quantos puderem”. NaLiberdade Cristã, ele escreve: “Fluem da fé o amor e ogozo no Senhor e, do amor, uma mente aprazível, espontâneae livre, que serve prazerosamente ao próximo e não fazcaso de gratidão ou de ingratidão, de louvor ou censura,de ganho ou perda. …Pois assim como o Pai distribui todasas__________10. Gal. 5:12.

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coisas rica e livremente entre todos os homens, fazendo oseu sol brilhar sobre bons e maus, assim também o filhofaz todas as coisas e sofre todas as coisas com aquelegozo condescendente e livre, que é o seu deleite, quandoatravés de Cristo ele vê estas coisas em Deus, odespenseiro de tão grandes benefícios”. Mas no panfletocontra os camponeses, lemos que “um príncipe ou senhordeve se lembrar, neste caso, de que é ministro de Deus eservo de sua ira, a quem a espada é entregue para usocontra tais homens. …Aqui não há tempo para sono, nemlugar para paciência ou misericórdia. É a hora da espada enão o dia da graça”.12 A dualidade que é tão evidente najustaposição destas declarações surge, em Lutero, emmuitos outros pontos, embora nem sempre tão incisivamente.Ele parece ter uma dupla atitude para com a razão efilosofia, para com o comércio, para com as organizações eritos religiosos, bem como para com o Estado e política.Estas antinomias e paradoxos têm sempre sugerido queLutero dividiu a vida em dois compartimentos, ou ensinouque a mão direita cristã não devia saber o que a mãoesquerda mundana estava fazendo. Suas declarações às vezesparecem expressar este ponto de vista. Ele faz nítidasdistinções entre vida temporal e espiritual, ou entre oque é exterior e interior, entre corpo e alma, entre oreino de Cristo e o mundo da cultura e obras humanas. Émuito importante para ele que estas distinções sejammantidas sem confusão. Eis porque, defendendo o seupanfleto contra os camponeses, escreve: “Há dois reinos,um o reino de Deus, o outro o reino do mundo. …O reino deDeus é um reino de graça e misericórdia … mas o reino domundo é um reino de ira e severidade. …Agora, quemconfundir estes dois reinos - como os nossos fanáticosfalsos o fazem - porá a ira no reino

11. Works 0f Martin Luther, Philadelphia, 1915-1932, Vol.II, pág. 338.12. Ibid., Vol. IV, págs. 251 e segs.

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de Deus e misericórdia no reino do mundo; e isto é o mesmoque pôr o diabo no céu e Deus no inferno”.13

Todavia, Lutero não divide o que ele distingue. A vidaem Cristo e a vida na cultura, o reino de Deus e o reinodo mundo estão intimamente relacionados. O cristão deveafirmar ambos em um simples ato de obediência a um Deus demisericórdia e ira, não como uma alma dividida com umadupla aliança e dever. Lutero rejeitou a soluçãosinteticista do problema cristão, mas foi igualmente firmeem manter a unidade de Deus e a unidade da vida cristã nacultura. Ele a rejeitou por um número de razões: elatendia a fazer os mandamentos radicais de Cristorelevantes apenas para uns poucos cristãos maisdesenvolvidos, ou para a vida futura, ao invés de aceitá-los como são - exigências incondicionais para todas asalmas em cada momento presente; ela tendia tanto ainquietar como a confortar as consciências dos homens deformas difíceis de serem reconciliadas com o Evangelho;ela deixava de lado muito facilmente o pecado da impiedadeque afeta os esforços em busca de uma vida ordinária evirtuosa, bem como a procura da santidade; ela nãoapresenta a majestade singular de Cristo como umlegislador e como um salvador, associando-o por demais comoutros mestres e redentores. A base do pensamento deLutero e de sua carreira como um reformador da moralidadecristã foi lançada quando ele chegou à convicção de que oque se requeria do homem no Evangelho era requeridoabsolutamente por um absoluto Senhor.14

__________13. Works, Vol. IV, págs 265, 266.14. Uma excelente descrição do desenvolvimento de Luterocomo pensador ético e reformador pode ser encontrada noartigo do Prof. Karl Holl "Der Neubau der Sittlichkeit" emsua obra Gesammelte Aufsaetze zur Kirchengeschichte,Vol.I, 69 edição, correspondendo ao ânimo antiluterano detais escritores como Grisar e a um desejo de mostrar comoLutero foi original mesmo quando comparado com Agostinho.O artigo, contudo, é superior ao tratamento amplamenteaplicado à ética de Lu-

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Se for verdade que esta compreensão parecia levá-lo aassumir a posição cristã exclusivista e a rejeitar a vidana cultura como incompatível com o Evangelho, é verdadetambém que ele foi impedido de fazer essa escolha em facede sua compreensão de que a lei de Cristo era muito maisexigente do que pensava o Cristianismo radical, pois querequeria um amor a Deus e ao próximo que fosse completo,espontâneo e sacrificial, sem visar lucros temporais oueternos. O segundo passo no desenvolvimento moral ereligioso de Lutero ocorreu, então, quando ele compreendeuintegralmente que o Evangelho como lei e como promessa nãoestava diretamente preocupado com ações visíveis doshomens, mas com as fontes do seu comportamento; que eleera a medida pela qual Deus criava de Novo as almas doshomens, capacitando-os a praticar boas obras. Comolegislador, Cristo põe todos os homens sob a convicção desua pecaminosidade, de sua falta de amor e de suaincredulidade. Ele lhes mostra que uma árvore má não podeproduzir bom fruto, e que eles são árvores más; que elesnão se tornarão retos pelo simples fato de agiremretamente, mas poderão agir retamente somente se antes demais nada se tornarem retos; e que eles não são retos.15

Mas como salvador ele cria naqueles cuja autoconfiançadestruiu aquela confiança em Deus de que brota o amor aopróximo. Enquanto o homem não confia no seu criador eleserá incapaz, em sua angústia com referência a si mesmo eaos seus bens, de fazer qualquer coisa para servir aoutrem, estando, porém, sempre a serviço de si mesmo. Eleé, então, envolvido, no círculo vicioso do amor próprio,que o leva a buscar__________tero por Ernst Troeltsch em sua obra social Teachings ofthe Churches, Vol. II. A interpretação de Holl da atitudede Lutero para com a cultura faz dele um conversionistamais do que o admitiria o presente escritor.15. Conferir “Treatise on Good Works”, Works, Vol. I,“Treatise on Christian Liberty”, Works, Vol. II; ver Holl,op. cit., págs. 217 e segs., 290 e segs.

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crédito para toda ação aparentemente altruística, e quefaz mesmo do seu serviço a Deus uma obra para a qual eleespera recompensa e aprovação. Cristo, pela sua lei, epelo seu feito de redenção, quebra este círculo de amorpróprio e cria a confiança em Deus como Aquele que é oúnico que pode tornar e torna os homens retos - não em simesmos, mas na resposta a ele, de seus corações humildes eagradecidos. Lutero compreendeu que o eu não podia vencero amor próprio, porém que este era vencido quando o euencontrava a sua segurança em Deus, era libertado daansiedade e, assim, feito livre para servir ao próximo semnenhuma pretensão.

Esta é a base do dualismo de Lutero. Cristo trata dosproblemas fundamentais da vida moral; ele purifica asfontes de ação; ele cria e torna a criar a comunidadeúltima em que toda ação ocorre. Mas pelo mesmo sinal elenão governa diretamente as ações externas nem constrói acomunidade imediata em que o homem desenvolve a sua obra.Pelo contrário, ele liberta o homem da necessidade deencontrar vocações especiais e fundar comunidadesespeciais onde vai tentar conseguir respeito próprio eaprovação divina e humana. Ele os livra dos mosteiros econventos dos piedosos, para o serviço dos seus próximosno mundo, por meio de todas as vocações ordinárias doshomens.

Mais do que qualquer outro grande líder cristão antesdele, Lutero afirmou a vida na cultura como a esfera emque Cristo podia e devia ser seguido; e mais do quequalquer outro ele entendia que as regras a serem seguidasna vida cultural eram independentes da lei cristã oueclesiástica. Embora a filosofia não oferecesse nenhumcaminho que levasse à fé, o homem fiel podia seguir aestrada filosófica em busca dos objetivos que a mesmaalcançasse. Em uma pessoa "regenerada e iluminada peloEspírito Santo através da Palavra", a sabedoria natural dohomem "é um instrumento justo e

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glorioso e uma obra de Deus”.16 A educação da mocidade emlínguas, artes, história, bem como em piedade, ofereciagrandes oportunidades ao homem cristão livre, mas aeducação cultural era também um dever a ser cumprido.17 "Amúsica", dizia Lutero, “é um nobre dom de Deus, que vemlogo após a teologia. Eu não trocaria o meu pequenoconhecimento de música por nada”. O comércio estavatambém aberto aos cristãos, pois “comprar e vender sãonecessários. Eles não podem ser postos de lado, e podemser praticados de um modo cristão”.19 As atividadespolíticas e mesmo a carreira de soldado eram até maisnecessárias à vida comum, sendo, portanto, esferas em queo próximo podia ser servido e Deus obedecido.20 De fato,algumas poucas vocações foram condenadas, por seremevidentemente irreconciliáveis com a fé em Deus e com oamor ao próximo. Entre estas, Lutero eventualmente incluiua vida monástica. Em todas estas vocações, em todas asobras culturais a serviço dos outros, as regras técnicasdaquela atividade particular deviam ser seguidas. Ocristão estava não apenas livre para agir na cultura, maslivre também para escolher os métodos que eramestabelecidos para que fosse alcançado o bem objetivo peloqual ele se interessava em sua obra. Assim como ele nãopodia derivar do Evangelho as leis da atividade médicaquando tratava de um caso de tifo, assim também__________16. Kerr, H.T., A Compend of Luther's Theology, págs. 4-5;conferir com as observações de Holl sobre o efeito daReforma sobre a filosofia, op. cit., págs. 529 e segs.17. Conferir "To the Councilmen of All Cities in GermanyThat They Establish and Maintain Christian Schools",Works, Vol. IV, págs. 103 e segs.19. Kerr, op. cit., pág. 1478.19. Kerr, op. cit., pág. 147.20. “Secular Authority: To What Extent It Should beObeyed", Works, Vol. III, págs. 230 e segs.; "Whether Sol-diers, Too, Can Be Saved", Works, Vol. V, págs. 34 e segs.

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não poderia ele deduzir do mandamento do amor as leisespecificas para uma comunidade (commonwealth) ondeexistissem criminosos. Lutero tinha uma grande admiraçãopelos homens geniais que em suas várias esferas descobriamnovas maneiras de agir ao invés de seguirem sempre osprocessos tradicionais.

Podemos então dizer que o dualismo na solução luteranado problema Cristo e cultura foi o dualismo do “Como” e do“Que” da conduta. De Cristo recebemos o conhecimento e aliberdade para fazermos fiel e amoravelmente o que acultura nos ensina e exige que pratiquemos. A premissapsicológica da ética de Lutero é a convicção de que ohomem é um ser dinâmico e para sempre ativo. “O ser e anatureza do homem não podem, por um instante sequer,permanecer sem fazer algo, suportando ou abandonandoalguma coisa, pois a vida não pára nunca”.21 O motivo deação parece vir de nossa natureza dada por Deus; suaorientação e espírito são uma função da fé; seu conteúdovem da razão e da cultura. A fome nos leva a comer; nossafé (ou falta de fé) determina se comemos como bonspróximos, mostrando-nos interessados pela situação dosoutros e pela glória de Deus, ou se o fazemosansiosamente, sem moderação e egoisticamente; nossoconhecimento de dietética e dos costumes de nossasociedade relacionados com tal conhecimento e não os dalegislação hebraica a respeito daquilo que é puro ouimpuro ou as leis da Igreja sobre o jejum - determina oque comer e quando comer. Nossa curiosidade nos fazprocurar o conhecimento; nossa atitude religiosa determinacomo nós o procuramos, se com ansiedade, por reputação, ouse por amor ao serviço, se pelo poder ou se para a glóriade Deus; a razão e a cultura nos mostram por que métodos eem que áreas o conhecimento pode ser adquirido. Assim comonão há meio de se derivar do Evangelho o conhecimentosobre o que se deve fazer__________21. "Treatise on Good Works", Works, Vol. I, págs. 198 esegs.

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como um físico, um construtor, um carpinteiro ou umestadista, assim também não há meio de se obter o espíritocerto de serviço, de confiança e de esperança, dehumildade e de prontidão para aceitar a correção dequalquer soma de conhecimento técnico ou cultural. Nenhumaumento de conhecimento científico e técnico pode renovaro espírito dentro de nós; mas o espírito certo nosimpulsionará a procurar conhecimento e habilidade emnossas vocações especiais no mundo para que possamosservir. É importante para Lutero que estas coisas semantenham distintas a despeito de suas inter-relações,pois o confundi-las leva à corrupção de ambas. Sebuscarmos a revelação de Deus no conhecimento de Geologia,não a encontraremos; mas se procurarmos a Geologia na féem Deus, acabaremos perdendo tanto a Deus como as rochas.Se fizermos da estrutura da comunidade cristã primitivauma regra para o governo civil, estaremos substituindo oespírito daquela comunidade, com a sua dependência deCristo como o doador de todas as boas dádivas, por umaindependência autojustificante de nós mesmos; seconsiderarmos nossas estruturas políticas como reinos deDeus, e esperarmos que através de papados e reinos nosaproximaremos dele, não poderemos ouvir sua palavra ou vero seu Cristo, nem poderemos conduzir nossas atividadespolíticas dentro de um espírito correto.

Grande tensões perduram, pois técnica e espírito seinterpenetram, e não são facilmente distinguíveis e nemrecompostos em um simples ato de obediência a Deus. Atécnica é orientada rumo às coisas temporais; mas oespírito é uma função das relações do Cristão com oeterno. O espírito é algo altamente pessoal; é ele a coisamais profunda no homem; a técnica é um hábito, umahabilidade, uma função do ofício ou vocação que ele tem nasociedade. O espírito cristão de fé é orientado rumo àmisericórdia divina; as técnicas dos homens quase semprese destinam a evitar os males que surgem das flutuações dajustiça divina. O cristão se defronta a cada momento, comocidadão do reino eter-

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no e do império de Deus que tudo subordina, com os valoresimediatos e transitórios dos homens físicos, que tambémsão seus, mas, acima de tudo, dos seus próximos. O tipo deconflito que deve sentir um estadista quando faz cair aprodução de cereal em favor da prosperidade a longo prazode uma nação é aqui aumentado imensamente. Temporalmente,empregamos o nosso melhor conhecimento para ganhar o nossopão diário; como cidadãos da eternidade, nós somos (oudevemos ser) sem ansiedade. Esta tensão se faz mais agudapelo fato de ser combinada com a polaridade de pessoa esociedade. Por si mesmo, como um indivíduo infinitamentedependente de Deus e que confia nele, uma pessoa sente odever e talvez a possibilidade de fazer sua obra semesperança de recompensa terrena; mas ele é também pai enutridor, um instrumento pelo qual Deus provê o alimentode cada dia aos filhos. Como tal ele não pode, emobediência a Deus, negligenciar as reivindicações desalário. A tensão se torna ainda mais aguda quando o que érequerido do homem em seu serviço aos outros for o uso deinstrumentos de ira com vista a protegê-los do irascível.Lutero é muito claro quanto a este ponto. Na medida em queuma pessoa é responsável apenas por si mesma e por seusbens, a fé torna possível o que a lei de Cristo exige, asaber: que ele não se defenda contra ladrões ou contra osque pedem emprestado, contra tiranos ou inimigos. Mas umavez lhe seja confiado o cuidado de outrem, como pai ougovernador, em obediência a Deus, ele deve usar a forçapara defender os seus próximos contra a força. Pecadomaior aqui será o desejo de ser santo ou de exercermisericórdia onde a misericórdia é destrutiva.22 Assim comoDeus faz uma obra “estranha” - a saber, uma obra queaparentemente não é de misericórdia mas de ira - nascalamidades naturais e históricas, assim também__________22. Ver especialmente "Secular Authority", Works, Vol.III,págs. 236 e segs. Ver também Kerr, op. cit., págs. 313 esegs., para outras passagens relevantes.

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ele requer que o cristão obediente faça uma obra“estranha” a qual esconde a misericórdia de que ele éinstrumento.

Vivendo entre o tempo e a eternidade, entre ira emisericórdia, entre a cultura e Cristo, para o verdadeiroluterano a vida é ao mesmo tempo trágica e alegre. Não hásolução para o dilema, deste lado da morte. Os cristãos,ao lado de outros homens, têm recebido o dom comum daesperança de que a situação presente e má do mundo chegaráa um fim, e um bom tempo advirá. Todavia não existe umadupla felicidade para eles, de vez que enquanto durar avida haverá pecado. A esperança de uma cultura melhor “nãoé a sua preocupação principal, mas sim a de que sejaaumentada a sua bênção particular, que é a verdade comopresente em Cristo. …Mas além disto eles terão …as duasmaiores bênçãos em sua morte. A primeira, no fato de queatravés da morte toda a tragédia dos males deste mundochega ao fim. …A outra bênção da morte é esta, que ela nãoapenas põe fim às dores e males desta vida, mas (o queainda é mais excelente) põe termo aos pecados e vícios.…Pois esta nossa vida é tão cheia de perigos - o pecadocomo uma serpente, cercando-nos de todos os lados - quenos é impossível viver sem pecar; porém a mais justa mortenos livra destes perigos e corta de nós o pecado,deixando-nos limpos”.23

A resposta de Lutero à questão Cristo e cultura era ade um pensador dialético e dinâmico. Sua reprodução pormuitos que se chamaram seus seguidores foi estática e nãodialética. Eles substituíram sua ética intimamenterelacionada por duas moralidades paralelas. Assim como afé se tornou matéria de crença antes que a orientaçãofundamental e confiante do homem em cada momento para comDeus, assim também a liberdade

__________23. "The Fourteen of Consolation", Works, Vol. 1, págs.148 e seguintes.

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do cristão se transformou em autonomia em todas as esferasespeciais de cultura. É um grande erro confundir-se odualismo paralelístico de vida espiritual e vida temporal,que são separadas, com a interpretação do Evangelho dadapor Lutero, da fé em Cristo operando através do amor nomundo da cultura.

O motivo dualístico tem aparecido no cristianismo pós-luterano também em formas não paralelísticas. Porém muitasdas suas expressões, quando comparadas com a de Lutero,parecem débeis e abstratas. Em afirmações paradoxais eescritos ambivalentes Soren Kierkegaard estabelece ocaráter dual da vida cristã. Ele mesmo é um ensaísta, umesteta, que deseja ser entendido como um homem de suacultura, e todavia não como um esteta e como um homem decultura, mas como um autor religioso.24 Ele procurademonstrar filosoficamente a impossibilidade de seformular filosoficamente a verdade que é “verdade paramim”. A vida cristã tem para ele o aspecto duplo de umaintensa relação do interior com o exterior e de umarelação total e não espetacular do exterior com os outroshomens e coisas. Neste particular, ele parece estarrepresentando e não tanto demonstrando a ética dual deLutero; ele é um homem em seu escritório, usando osinstrumentos deste no espírito da fé. Na consciência dopecado, na humildade externa, e na confiança na graça,Kierkegaard, um homem culto em sua cultura, desenvolve asua obra como um literato e aspirante ao ministério (outradualidade nele). Mas este não é o seu problema essencial,a saber, que como um cristão ele deva fazer a obra dúbiade um artista escritor e a obra, possivelmente ainda maisdúbia, de escrever os discursos para edificação. Odualismo com que ele luta é o do finito e infinito; eporque isto caracteriza todos os seus escritos, ele seacerca do problema Cristo e cultura mas não se envolvefortemente no mesmo. O debate em que__________24. Ver The Point of View for my Works as an Author, parteI.

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ele está engajado é um debate solitário consigo mesmo. Àsvezes parece que ele não quer propriamente tornar-se umcristão, mas sim uma espécie de Cristo; alguém em quem oinfinito e o finito estão unidos; alguém que sofre pelospecados do mundo e não alguém para quem, antes de maisnada, sofreu a vitima eterna. Em seu isolamento como “oindivíduo” ele analisa magnificamente o caráter doverdadeiro amor cristão, estando porém mais preocupado coma referida virtude do que com os seres que devem seramados. Na medida em que trata do problema Cristo ecultura ele o faz mais no espírito do Cristianismoexclusivista do eremita do que no do cenobita. “O homemespiritual”, escreve ele, “difere de nós, outros homens,pelo fato de ser capaz de suportar o isolamento, sendo queo seu grau de homem espiritual é proporcional à suacapacidade de suportar o isolamento, enquanto nós, osdemais homens, temos constantemente necessidade de ‘osoutros’, da multidão. …Mas o Cristianismo do NovoTestamento está precisamente fundamentado sobre erelacionado com este isolamento do homem espiritual. OCristianismo no Novo Testamento consiste em amar a Deus,em ódio ao homem, em ódio a si mesmo, e portanto aosoutros homens, em odiar pai, mãe, filho, esposa, etc., amaior expressão do mais agonizante isolamento”.25 Tãoextrema expressão, que trata o Novo Testamento de um modotão abstrato, pode naturalmente ser contrabalançada poroutros ditos kierkegaardianos. Mas o tema do indivíduoisolado é dominante. Não existe aqui o reconhecimento dofato de que as pessoas existem apenas nas relações “eu-tu”; e a consciência do “nós” está quase completamenteausente. Portanto, as sociedades culturais não interessama Kierkegaard. No Estado, na família e na igreja ele vêapenas um desserviço a Cristo. Ele admite que, naDinamarca, somente ele estava lutando duramente para setornar cristão; ele parece__________25. Attack upon "Christendom", pág. 163.

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pensar que toda religião social, o Estado e a Igrejatinham o dever de serem capazes de expressar, maisfacilmente do que o faziam as suas produções literárias, oque significava o ser contemporâneo de Cristo.26

Kierkegaard está, de fato, protestando, como umcristão na cultura do século dezenove, contra oCristianismo cultural ou cultura cristianizada dos seusdias, que na Europa central tinha usado o dualismo deLutero como um modo de domesticar o Evangelho e diminuirtodas as tensões. Respostas mais fielmente dualísticasforam oferecidas por outros, que não conseguiram, emobediência a Cristo, evitar as exigências da cultura, masque entenderam também quão entranhado estava Cristo nacultura. Ernest Troeltsch viveu o problema como um duplodilema. Por um lado, ele lutava com a questão doabsolutismo de um Cristianismo que era a religião culturaldo Ocidente; por outro, ele se preocupava com o conflitoentre a moralidade da consciência e a moralidade socialvoltada para a consecução e conservação dos valoresrepresentados pelo Estado e nação, ciência e arte,economia e tecnologia. Não era o Cristianismo em si mesmouma tradição cultural, sem exigências maiores do que asdas outras partes de uma civilização histórica etransitória? Troeltsch não pôde dar a esta questão aresposta do cristão cultural. O Cristianismo, na verdade,era algo relativo, mas através dele chegava aos homens umaexigência absoluta; e ainda que tal exigência chegasseapenas aos homens ocidentais, ela continuaria sendo umabsoluto no meio da relatividade.27 A exigência de Jesusfoi identificada__________26. As melhores introduções ao pensamento de Kierkegaardsão a obra de Bretall, Robert (editor), A KierkegaardAnthology; de Dru A. (editor) The Journals of SorenKierkegaard; e de Swenson, David, Something aboutKierkegaard.27. Glaubenslehre, págs. 100 e segs.; também ChristianThought, págs. 22 e segs.

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por Troeltsch com a ética da consciência. Por maishistórico que seja o desenvolvimento da consciência, ela,ainda assim, confronta os homens históricos com aobrigação de se tornarem personalidades livres, e de sedefenderem como tais, sendo interiormente unificados eclarificados, independentemente de um mero destino; etambém com a obrigação de honrarem a livre personalidadeem todos os homens, unindo-os aos vínculos morais dahumanidade. A moralidade da consciência estará, semdúvida, sempre engajada em uma luta com a natureza. “OReino de Deus, exatamente porque transcende a história,não pode limitar e nem dar forma a esta. A históriaterrena permanece como fundamento e pressuposição dadecisão pessoal e da santificação; mas em si mesma elasegue o seu caminho como uma mistura de razão e deinstinto natural, e nunca pode se deter em qualquerempenho, a não ser em um grau relativo e durante um certoespaço de tempo”.28 Esta luta com a natureza não é,contudo, a única que o homem tem de sustentar. Há na suaconsciência ética uma outra moralidade além da moralidadeda consciência propriamente dita. Ele se dirige rumo àconsecução dos valores culturais, dos bens objetivos eobrigatórios que as suas instituições representam -justiça, paz, verdade, bem-estar, etc. Embora aconsciência e a moralidade dos valores culturais estejamintimamente relacionadas, as “duas esferas se encontramapenas para divergirem”. A consciência é transistórica;ela zomba da morte, pois “nenhum mal sucederá a um homembom na vida ou na morte; mas a moralidade dos valoresculturais é histórica e se preocupa com a manutenção dascoisas perecíveis. Nenhuma síntese se faz possível aqui,salvo nos atos de conquista individual. Em última análise,somos justificados

28. Ibid. seção II, parte I, "The Morality of the Personand of Conscience", págs. 39 e segs.

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apenas pela fé.29 O próprio Troeltsch experimentou estastensões de um modo muito agudo, na medida em que procuroudesincumbir-se de tarefas políticas na República deWeimar. É claro que esta versão dos preceitos de Cristoestava muito mais relacionada com a interpretação cristãcultural do Novo Testamento, corrente nos seus dias, doque com uma leitura mais literal e radical dos Evangelhos.Mesmo assim permaneceu uma tensão entre Cristo ecultura, uma tensão que não pôde ser resolvida, a não serem uma vida de luta contínua.

Em nosso tempo correm muitas versões da soluçãodualista.30 Afirma-se, por exemplo, que fé e ciência nãopodem estar nem em conflito nem numa relação positiva deuma para com a outra, de vez que representam verdadesincomensuráveis. O homem é um grande anfíbio que vive emdois reinos, não devendo usar em um as idéias e métodospróprios do outro. 31 O dualismo surge em medidas práticase justificações teóricas da separação de Igreja e Estado.Roger Williams tem-se tornado o símbolo e o exemplo de taldualismo na América. 21 e rejeitou as tentativassinteticistas e conversionistas do anglicanismo e dopuritanismo tendentes a unir a política e o Evangelho, nãosó porque a união corrompia o Evangelho por associar aforça espiritual à coerção física, mas também porquecorrompia a política, introduzindo nela elementosestranhos à sua natureza. Ele também não aceitou o esforçoquaker__________29. Ibid. parte II, "The Ethics of Cultural Values", págs.71 e segs.30. Entre estes dualismos que evitam o paralelismo ou acompartimentalização da vida moral deve ser mencionada aobra de Reinhold Niebuhr Moral Man and imoral Society,1932, e a de A. D. Lindsay The Two Moralities: Our Duty toGod and to Society, 1940.31. Para uma declaração típica desta posição, ver a obrade J. Needham, The Great Amphibium, 1931.

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de fundar uma comunidade civil (commonwealth) nosalicerces da espiritualidade cristã, porque este erainadequado em termos políticos tanto quanto perverso emtermos cristãos.32 O problema de combinar a lealdade aCristo com a aceitação da religião social lhe pareciaainda mais difícil do que o de Cristo e César. A atitudede pesquisador que ele assumiu, depois de deixar asigrejas: Anglicana, Puritana e Batista, representava ummodus vivendi e não tanto uma solução do problema. Emambos os casos, o político e o eclesiástico, Williamspermanece como representante de um dualismo comum noprotestantismo.

A resposta dualística tem também sido aceita em teoriae prática por expoentes da cultura. Defensores políticosda separação de Igreja e Estado, economistas que lutampela autonomia da vida econômica, filósofos que rejeitamas combinações de razão e fé propostas pelos sinteticistase pelos cristãos culturais, freqüentemente se situam bemlonge de uma atitude anticristã. Um Nicolau Hartmann, porexemplo, ao estabelecer a antítese entre a fé cristã e aética cultural, admite que as atinomias permaneçam, semsugerir que devam ser resolvidas em favor da cultura.Mesmo os positivistas, que não podem; achar uma base paraa fé na vida da razão, podem, por outro lado, não estardispostos a repudiá-la; ela pertence a uma ordem diferenteda existência humana.33

Freqüentemente tais soluções, quer sejam oferecidaspor clérigos ou por outros, não têm seriedade moral, nemprofundidade racional. O dualismo pode ser o refúgio

__________32. Ver The Bloudy Tenent of Persecution, George FaxDigg’d Out of His Burroes, Experiments in Spiritual Lifeand Health, e Letters. Todos estes, exceto os Experiments,podem ser prontamente conseguidos nas Publications of theNarragansett Club.33. Ver Ayer, A.J., Language, Truth and Logic, 1936. Areligião e a ética são aqui descritas como insignificantesno sentido exato da palavra; elas expressam emoção apenas.

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de pessoas de mentes mundanas que desejam prestar umaligeira reverência a Cristo, ou dos espiritualistaspiedosos que sentem que devem alguma cortesia à cultura.Políticos que desejam manter a influência do Evangelhofora do reino da “Política Real”, e homens do domínioeconômico, que desejam antes de mais nada lucrar sem seremlembrados de que os pobres herdarão o reino, podemprofessar o dualismo como uma racionalização conveniente.Porém tais abusos não são mais característicos da posiçãodo que aqueles abusos associados com qualquer uma dasoutras atitudes. O Cristianismo radical tem produzido osseus monges severos, seus claustros imorais e os seusexibicionistas morais. Os Cristianismos culturais esinteticistas têm permitido que os homens justifiquem acobiça do poder e a retenção de velhas idolatrias. Aintegridade e sinceridade morais não acompanham a adoçãode uma ou outra destas posições, embora cada uma delas,inclusive e especialmente o dualismo, tenha sido assumidapelos homens em conseqüência de um esforço sincero e de umardente anseio de integridade em obediência a Cristo.

IV. AS VIRTUDES E VÍCIOS DO DUALISMO

Há vitalidade e força no motif dualístico comoestabelecido pelos seus grandes expoentes. Ele reflete aslutas reais do cristão que vive “entre os tempos”, e que,no meio deste conflito no tempo da graça, não podepretender viver a ética do tempo de glória, que eleaguarda tão ardentemente. Trata-se de um relato deexperiência e não um plano para uma campanha. Se por umlado ele fala do poder de Cristo e seu Espírito, por outrolado ele não omite o reconhecimento da força e prevalência

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do pecado em toda a existência, humana. Há umaimpressionante honestidade na descrição de Paulo doconflito íntimo, e no “Pecca fortiter” de Lutero, quefreqüentemente está faltando nas histórias dos santos. Seureconhecimento de que o pecado está não apenas nos crentesmas também na sua comunidade, está mais de acordo com oque o cristão sabe a respeito de si mesmo e de suasigrejas do que com as descrições de comunidades(commonwealth) santas e sociedades perfeitas, postuladaspor radicais e sinteticistas. Quer as afirmações dualistassejam inteligíveis ou não, do ponto de vista de suaconsistência interna, elas são inteligíveis e persuasivascomo correspondentes à experiência.

Os dualistas, contudo, não são apenas repórteres daexperiência cristã. Mais do que qualquer outro grupoprecedente de que temos tratado, eles levam a sério ocaráter dinâmico de Deus, do homem, da graça e do pecado.Há algo de estático na idéia de fé do cristão radical.Esta é para ele uma nova lei e um Novo ensino. E em grandeparte isto é verdade também quanto ao sinteticista, emboraeste reconheça um elemento dinâmico nos altos escalões davida cristã. O dualista, contudo, enuncia a ética da ação;da ação de Deus, do homem e dos poderes maus. Tal éticanão pode consistir de leis e virtudes admiravelmenteorganizadas em oposição aos vícios, mas pode ser sugeridae esboçada, pois, de fato, a ação viva só pode sersugerida e indicada. Trata-se de uma ética de liberdade,não no sentido de liberdade da lei, mas no sentido da açãocriativa, em resposta à ação sobre o homem. Com a suacompreensão da natureza dinâmica da existência osdualistas têm feito uma contribuição grande e única aoconhecimento cristão e à ação cristã. Eles têm dirigido asua atenção para a profundidade e poder da obra de Cristo,como esta penetra as profundezas da mente e coraçãohumanos, limpando as fontes da vida. Eles têm posto delado toda a análise superficial da inclinação

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humana para o vício, e têm tentado focalizar as raízesprofundas da depravação do homem. Seguindo estaspercepções, e parcialmente em conseqüência delas, elestêm-se tornado revigoradores tanto do Cristianismo como dacultura. Ao Cristianismo eles têm veiculado novasapreensões da grandeza da graça de Deus em Cristo, nova,disposição de vida militante, e emancipação dos costumes eorganizações que têm estado substituindo o Senhor vivente.A cultura eles têm trazido o espírito de um desinteresseque não pergunta o que exige diretamente a lei cultural oua lei do Evangelho e qual será a recompensa do eu, mas,antes, que requer o serviço ao próximo dentro dedeterminadas circunstâncias, e que pergunta: quecircunstâncias são realmente estas?

É evidente, por certo, que o dualismo tem sido cercadopelos vícios que acompanham as suas virtudes; e para esteponto outros grupos no Cristianismo continuam a chamar aatenção. Podemos evitar referência àqueles abusos daposição já mencionados, e considerar apenas as duasacusações mais verberadas: que o dualismo tende a levar oscristãos a um antinomismo e a um conservantismo cultural.Alguma coisa tem que ser dita com referência a estes doispontos. A “relativização” de todas as leis da sociedade,da razão, e de todas as outras obras dos homens - peladoutrina de que todas estão incluídas no pecado, nãoimportando quão elevadas ou quão inferiores se mostrarem,quando medidas pelos padrões humanos - tem, sem dúvida,dado ocasião ao homem esclarecido, ou ao homem emdesespero, de pôr de lado as regras do viver civilizado.Eles têm invocado Lutero ou Paulo como autoridade nadisputa sobre se há diferença entre os homens serempecaminosamente obedientes ou pecaminosamentedesobedientes à lei, entre serem obedientes oudesobedientes a uma lei pecaminosa, entre o buscarempecaminosamente a verdade ou o viverem como céticos, entreserem moralmente autojustificantes, ou serem complacente

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amorais consigo mesmos. Evidentemente está longe dodualista a intenção de incentivar um comportamento sub-legal e subcultural por saber de uma vida supralegal ediscernir o pecado na cultura. Todavia ele tem de aceitara responsabilidade, quando não a tentação de colocar, pelomenos as formas racionalizantes de recusa de resistência àtentação, no caminho da impertinência dos fracos. O fatode isto ser assim, de forma alguma invalida o que ele tema dizer quanto à prevalência do pecado e quanto àprevalência da diferença entre a graça e toda a obrahumana. Mas tal fato indica que ele não pode dizer tudo oque precisa ser dito; e que os cristãos culturais esinteticistas precisam estar ao seu lado com as suasinjunções de obediência à lei cultural - embora estes, porsua vez, não possam dizer o que o dualismo deva pregaracerca da pecaminosidade que se prende à obediência. AIgreja escolheu mais sabiamente do que Márcio, quandoassociou às epístolas de Paulo o Evangelho de Mateus e acarta de Tiago.

Tanto Paulo como Lutero têm sido caracterizados comoconservadores culturais. Muito se pode dizer quanto aoefeito final de sua obra na promoção de reforma cultural;todavia, parece verdade que eles estavam profundamenteinteressados em provocar rnudança apenas dentro de uma dasgrandes instituições culturais com sua disposição dehábitos, em seus respectivos tempos: a religiosa. Quantoao mais, pareciam estar contentes pelo fato de o Estado ea vida econômica - com a escravidão, em um caso, e aestratificação social, em outro - continuaremrelativamente sem mudança. Eles desejavam e requeriamprogresso na vida dos príncipes, dos cidadãos, dosconsumidores, dos comerciantes, dos escravos, dossenhores, ete.; mas estes melhoramentos deveriam ocorrerdentro de um contexto de hábitos sociais relativamenteinalterado. Mesmo a família, de acordo com o seu ponto devista, deveria manter o seu

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caráter predominantemente patriarcal, a despeito dos seuconselhos aos maridos, às esposas, aos pais e aos filhospara amarem uns aos outros em Cristo.

Tal conservantismo parece, na verdade, estardiretamente ligado à posição dualista. Se ele, nãoobstante, tem contribuído para a mudança social, o temfeito em grande parte, sem intenção e com a assistência deoutros grupos. Conservantismo é uma conseqüência lógica datendência de pensar da lei, Estado, e outras instituiçõescomo freios e diques contra o pecado, impedidores daanarquia, e não como agências positivas através das quaisos homens em união social prestam serviço aos próximos,avançando rumo à vida verdadeira. Além disto, para. osdualistas, tais instituições pertencem inteiramente aomundo temporal e passageiro. Mas, surge uma questão,relacionada com este ponto. Parece haver uma tendência nodualismo, como representado tanto por Paulo como porLutero, no sentido de relacionar temporalidade ou finitudecom o pecado, de modo a colocar a criação e queda dentrode uma relação de proximidade muito estreita, e, nestaconexão, não fazer inteira justiça à obra criativa deDeus. A idéia, que em Márcio e Kierkegaard é estabelecidade uma forma herética, é pelo menos sugerida por seusgrandes predecessores. Em Paulo, a idéia de criação éusada significativamente somente para reforçar o seuprimeiro principio da condenação de todos os homens porcausa do pecado, enquanto o seu uso ambíguo do termo“carne” indica uma incerteza fundamental a respeito dabondade do corpo criado. Para Lutero, a ira de Deus semanifesta não apenas contra o pecado, mas contra todo omundo temporal. Portanto, há nestes homens não apenas umaexpectativa ardente de uma vida nova em Cristo, mediante amorte do eu para si mesmo, mas também um anseio pela mortedo corpo e pelo fim da ordem temporal. Morrer para o eu eressuscitar com Cristo para a vida com Deus são, semdúvida, fatos da maior importância; mas o auto-centrismo ea finitude estão de tal forma unidos que a

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transformação espiritual não deve ser esperada deste ladoda morte. Estes pensamentos levam à idéia de que em todaobra temporal na cultura os homens lidam apenas com otransitório e mortal. Daí, por mais importantes que sejamos deveres culturais para os cristãos, sua vida não estáneles; ela está escondida com Cristo, em Deus. É nesteponto que o motif conversionista, tão semelhante aodualista em outros aspectos, surge nitidamente ligado aele.

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Capítulo Sexto

CRISTO, O TRANSFORMADOR DA CULTURA

1. CONVICÇÕES TEOLÓGICAS

A COMPREENSÃO conversionista das relações de Cristo ecultura é mais achegada ao dualismo, mas tem afinidadestambém com outras grandes atitudes cristãs. Fica evidente,entretanto, que ela representa um motif diferente, quandonos movemos do Evangelho de Mateus e da carta de Tiago,através das epístolas de Paulo, ou de Tertuliano, passandopelos gnósticos e por Clemente, até Agostinho, ou deTolstoi, Ritschl e Kierkegaard até F. D. Maurice. Oshomens que apresentam o que chamamos de respostaconversionista ao problema Cristo e cultura pertencem,evidentemente, a uma grande tradição central da Igreja.Embora se apeguem a uma distinção radical entre a obra deDeus em Cristo e a obra do homem na cultura, eles nãoseguem o caminho do Cristianismo exclusivista, isolando-seda civilização ou rejeitando as instituições com aamargura tolstoiana. Embora aceitem a sua situação na

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sociedade com seus deveres, em obediência ao seu Senhor,eles não procuram modificar o incisivo julgamento de JesusCrista sobre o mundo em sua plenitude. Na sua cristologia,eles são como os sinteticistas e dualistas; para eles oRedentor é mais do que o doador de uma nova lei, e Deus,com quem o homem se encontra, é mais do que orepresentante das melhores fontes espirituais dahumanidade. Entendem eles que, em sua obra, Cristo não sepreocupa tanto com os aspectos externos e superficiais docomportamento humano, em primeiro lugar, mas põe à prova ocoração do homem e julga a sua vida subconsciente; que eletrata com aquilo que é mais profundo e mais fundamental nohomem. Ele cura a mais obstinada enfermidade humana, atísica do espírito, a doença mortal; ele perdoa o pecadomais prolífico e mais escondido, a desconfiança, a faltade amor e o desespero do homem em sua relação com Deus. Eisto ele faz, não somente mediante o oferecimento deidéias, conselho e leis, mas vivendo com os homens emgrande humildade, suportando a morte por amor a eles, eressuscitando do túmulo em uma demonstração da graça deDeus, antes que em um argumento sobre a mesma. Em suacompreensão do pecado os conversionistas são maisparecidos com os dualistas do que com os sinteticistas.Eles notam que este está profundamente enraizado na almado homem, penetrando toda a obra humana, e que não existegradação de -corrupção, ainda que os seus sintomas sejamvários. Daí discernirem também o quanto a obra cultural,em que os homens promovem a sua própria glória, individualou socialmente, como membros de uma nação ou dahumanidade, jaz sob o juízo de Deus - do Deus que nãobusca a sua própria vantagem. Eles vêem a autodestruiçãona auto-contradição. Todavia eles crêem também que talcultura jaz sob o governo soberano de Deus e que o cristãodeve desenvolver a obra cultural em obediência ao Senhor.

O que distingue os conversionistas dos dualistas é asua atitude mais positiva e esperançosa para com a

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cultura. A sua posição mais afirmativa parece estar in-timamente relacionada com três convicções teológicas. Aprimeira destas se refere à criação. O dualista tende aconcentrar-se na redenção através da cruz e ressurreiçãode Cristo, de modo que a criação passa a ser para ele umaespécie de prólogo ao poderoso feito da expiação. Emboraele afirme com Paulo que em Cristo "todas as coisas foramcriadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis, sejamtronos, sejam dominações, sejam principados, sejamautoridades tudo foi criado por ele e para ele",1 tal idéiasó recebe uma ênfase relativamente fraca, idéia esta que émuito mais usada para introduzir o tema da reconciliação.Para o conversionista, contudo, a atividade criativa deDeus e de Cristo em Deus é um tema de importânciafundamental, jamais sendo subjugado pela (ou jamaissubjugando a) idéia de expiação. Daí o homem, a criatura,operando em um mundo criado, viver, como o vê oconversionista, sob o governo de Cristo e pelo poder eordenar criativos da Palavra divina, muito embora em suamente não redimida ele possa acreditar que esteja vivendono meio de coisas vãs e debaixo da ira divina. É verdadeque o dualista sempre diz algo semelhante a isto, também,mas ele tende a qualificar de tal forma as suas afirmaçõescom referências à ira de Deus, como particularmentemanifesta no mundo físico, que a beneficência doGovernador da natureza fica sendo um tanto suspeita. Oefeito da teoria de cultura do conversionista sobre o seupensamento acerca da criação é considerável. Ele descobrelugar para uma resposta ordenada e afirmativa da parte dohomem criado à obra criativa e ordenadora de Deus, muitoembora a criatura possa fazer de má vontade a sua obra, namedida em que carpa o solo, cultiva a sua mente e organizaa sua sociedade, e muito embora possa administrarperversamente a ordem que lhe foi dada com sua existência.Em_________1. Col. 1:16

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conexão com este interesse pela criação, o conversionistatende a desenvolver uma fase da cristologia, negligenciadapelo dualista. Por um lado, ele ressalta a participação daPalavra, do Filho de Deus, na criação, não como estaocorreu uma vez, mas como ocorre na origem imediata, noinício momentâneo e lógico de todas as coisas, na mente epoder de Deus. Por outro lado, ele se preocupa com a obraredentora de Deus na encarnação do Filho, e não meramentecom a redenção em sua morte, ressurreição e volta empoder. Não que o conversionista se volte do Jesushistórico para o Logos que estava no princípio, ou negue amaravilha da cruz por admirar o nascimento em umaestrebaria. Ele procura manter juntos, em um movimento, osvários temas da criação e redenção, de encarnação eexpiação. O efeito desta compreensão da obra de Cristo naencarnação, bem como na criação, sobre o pensamento doconversionista acerca da cultura, é iniludível. A palavraque se fez carne e habitou entre nós, o Filho que faz aobra do Pai no mundo da criação, penetrou a culturahumana, cultura esta que nunca esteve sem a sua atividadeordenadora.

A segunda convicção teológica que modifica o ponto devista conversionista acerca da obra e costume humanos é asua compreensão da natureza da queda do homem de suabondade original. Como temos notado, o dualismo semprecoloca a criação e queda numa relação tal de proximidadeque se sente tentado a falar quase em termos gnósticos,como se a criação do eu finito ou da matéria finitaimplicasse em queda. Estar no corpo é estar longe deCristo; nada de bom habita na carne; ser carnal significaestar vendido sob o pecado. Tudo isto é verdade para umPaulo e para um Lutero, não somente porque o espírito dohomem que habita no seu corpo seja pecador, mas tambémporque o corpo

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dá ensejo à tentação insopitável do pecado.2 Daí tenderemtais cristãos a pensar nas instituições de cultura comoportadoras de uma função grandemente negativa em um mundotemporal e corrupto. Elas seriam ordens de corrupção,impeditivas da anarquia, diretivas da vida física epreocupadas totalmente com questões temporais. Oconversionista concorda com o dualista ao afirmar adoutrina de uma queda radical do homem. Mas ele, muitoinsistentemente, distingue a queda da criação e dascondições da vida no corpo. Para ele, a queda é umaespécie de reverso da criação, não sendo de nenhuma formaa sua continuação. Ela é uma ação do homem e não, de modoalgum, um ato de Deus. Ela é moral e pessoal e não físicae metafísica, embora tenha conseqüências físicas. Oresultado do distanciamento do homem em relação a. Deus,além disto, ocorre totalmente da parte do homem, e não daparte de Deus. A palavra que deve ser usada aqui paradesignar as conseqüências da queda é “corrupção”. Anatureza boa do homem tornou-se corrupta; ela não é mácomo algo que não devesse existir, mas deformada, torcidae transviada. Ele ama com o amor que lhe é dado em suacriação, mas ama os seres de um modo

__________2. Sobre este ponto muito controvertido, ver Lietzmann,Hans, An die Roemer (Handbuch zum Neuen Testament, Vol.VIII), págs. 75 e segs. Comentando Romanos vii, 14-25,Lietzmann diz, “O ponto de vista que afirma que as açõespecaminosas do homem têm a sua origem em um ‘impulso mau’trabalhando dentro dele pode também ser encontrado nateologia contemporânea judaica; mas o que é estranho aesta é aqui de decisiva importância, isto é, que esteimpulso está vinculado à carne… Pode-se fazer uma escolhae considerar Paulo como um originador independente destadoutrina, ou reconhecer o fato de que um contemporâneo doapóstolo (Philo), que também era um judeu helenista,apresenta a mesmo ensinamento. No caso de a segundaalternativa ser considerada, de acordo com os padrões dométodo histórico, mais correta, então se poderá dizer quePaulo, tanto quanto Philo, o derivaram da atmosferahelenística que os cercava”.

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errado, em uma ordem errada; ele deseja o bem com o desejoque lhe foi dado pelo seu criador, mas aspira aos bens quenão são bons para ele e assim perde o seu verdadeirobem; ele produz fruto, mas este é deformado e amargo; eleorganiza a sociedade com a ajuda de sua razão prática, mastrabalha contra a propósito das coisas com o forçarobstinado de sua razão em caminhos irracionais, e assimdesorganiza as coisas no próprio ato de sua organização.Daí ser a sua cultura uma ordem toda corrompida e nãotanto uma ordem de corrupção, como esta o é para osdualistas. Trata-se de um bem pervertido e não de um mal;ou então ela será um mal como perversão, e não comomaldade do ser. O problema da cultura é, portanto, oproblema de sua conversão, e não o de sua substituição poruma nova criação, embora esta conversão seja tão radicalque se pode dizer que ela equivale a uma espécie de nascerde Novo.

Com estas convicções a respeito da criação e queda, osconversionistas combinam uma terceira: uma concepção dehistória que sustenta que para Deus todas as coisas sãopossíveis em uma história que fundamentalmente não é umcurso de eventos meramente humanos, mas sempre umainteração dramática entre Deus e os homens. Para o cristãoexclusivista, a história é a história de uma Igrejatriunfante ou de uma cultura cristã, e de uma civilizaçãopagã que perece; para o cristão cultural, ela é a históriado encontro do espírito com a natureza; para osinteticista, ela é um período de preparação sob a lei,razão, Evangelho e Igreja para uma comunhão última da almacom Deus; para o dualista, a história é o tempo de lutaentre fé e descrença, um período entre a dádiva dapromessa de vida e o seu cumprimento. Para oconversionista, a história é a história dos feitospoderosos de Deus e das respostas do homem a eles. Ele, decerta forma, vive menos

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“entre os tempos” e mais no “Agora” divino do que os seusirmãos cristãos. O futuro escatológico tem-se tornado paraele um presente escatológico. A eternidade significa paraele menos a ação de Deus antes dos tempos, menos a vidacom Deus depois dos tempos, e mais a presença de Deus notempo. A vida eterna é qualidade de existência no aqui eagora. Daí estar o conversionista menos preocupado com aconservação do que tem sido dado com a criação, menos coma preparação para o que há de ser dado em uma redençãofinal, do que com a divina possibilidade de uma renovaçãopresente. Tais diferenças de orientação quanto ao temponão podem ser definidas com uma precisão exata. Há umadisposição para o futuro em cada vida cristã, bem como umaconfiança no Deus de Abraão, de Isac e Jacó, e umreconhecimento de que este é o dia da salvação. Mas há umadiferença entre a expectativa de Paulo do tempo quando oúltimo inimigo, a morte, terá sido destruído por Cristo, ea compreensão de João das últimas palavras de Cristo nacruz: “Está tudo consumado”. O conversionista, com estamaneira de ver a história como o presente encontro comDeus em Cristo, não vive tanto na expectativa de umtérmino final do mundo da criação e da cultura quanto naconsciência do poder do Senhor em transformar todas ascoisas, elevando-as a si mesmo. Suas imagens são espaciaise não temporais, e o movimento de vida que, para ele,promana de Jesus Cristo, é um movimento para cima, aelevação das almas, feitos e pensamentos dos homens em umrasgo de adoração e glorificação daquele que os atrai parasi mesmo. Isto é o que - a cultura humana pode ser - umavida humana transformada em e para a glória de Deus. Istoé impossível para o homem, mas todas as coisas sãopossíveis para Deus, que criou o homem corpo e alma paraEle mesmo e mandou o seu Filho ao mundo para que o mundofosse salvo por ele.

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II. O TEMA DA CONVERSÃO NO QUARTO EVANGELHO

Estas idéias e o motif conversionista são apresentadosem muitas páginas do Novo Testamento. Eles são sugeridosna primeira carta de João; mas são acompanhados ali portantas referências às trevas, à transitoriedade e à faltade amor do mundo, por um lado, e pela distinção entre anova e a velha comunidade, por outro, que a tendênciadeste documento parece ser rumo ao Cristianismoexclusivista. O tema do conversionismo é preparado porPaulo, mas ofuscado no fim pelos seus pensamentos acercada carne e da morte e da contenção do mal. Talvez esteseja mais claramente indicado no Evangelho de João,embora, como dá a entender uma intima relação desta obracom a Primeira Epístola de João, este seja acompanhado alitambém por uma nota separatista. O que tem sido dito arespeito da “realidade de Janus” do quarto Evangelho, arespeito de sua “união dos opostos” e de suas aparentescontradições, também se aplica a ele no que se refere àsua atitude para como o mundo da cultura.3 As idéiasbásicas do pensamento conversionista, estão, contudo,todas presentes nele; e a obra, em si mesma, é umademonstração parcial de conversão cultural, pois ela sepropõe não somente a traduzir o Evangelho de Jesus Cristoem conceitos próprios de seus leitores helenísticos, mastambém eleva estas idéias a respeito do Logos e doconhecimento, da verdade e da eternidade, a novos níveisde significado, interpretando-as através de Cristo.

No que foi dito acima, sobre a fé do conversionista noCriador, já se fez alusão ao quarto Evangelho. De__________3. Ver de MacGregor, G.H.C., The Gospel af John (TheMolfatt New Testament Commentary), 1928, pág. ix, onde asopiniões de um número de críticos a respeito da antítesedo Evangelho estão sumariadas; ver também de Scott E.F.,The Fourth Gospel, 1908, págs. 11 e segs., 27.

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um certo modo ele começa onde Paulo termina, com a gêneseda Palavra e a origem de todas as coisas através dela. Semela nada foi criado; o mundo feito por meio dela é o seular. João não podia dizer com mais ênfase que tudo aquiloque existe é bom. Não há mais qualquer sugestão aqui deque o físico (ou material), com tal, seja sujeito a umaira especial de Deus, ou que o homem, por ser carnal,esteja vendido ao pecado. Carne e espírito sãocuidadosamente distinguidos por João: “O que é nascido nacarne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito”.Mas o físico, o material e o temporal nunca sãoconsiderados como participando do mal de um modoparticular, por não serem espirituais e eternos. Pelocontrário, o nascimento natural, o comer e o beber, ovento, a água, o pão e o vinho são para este evangelistanão apenas símbolos empregados em referência às realidadesda vida do espírito, mas também fatos plenos de sentidoespiritual. Eventos espirituais e naturais “são inter-relacionados e análogos”. “Não se requer dos homens queeles sejam levados a alguma espiritualidade esotérica edesengajada”.4 Em suas convicções a respeito da criaçãopela Palavra e a respeito da encarnação da Palavra, Joãoexpressa a sua fé na relação totalmente afirmativa de Deuspara com o mundo material e espiritual. Criação significao mesmo que redenção, significa que “Deus de tal formaamou o mundo que deu o seu Filho unigênito para que todo oque nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. PorqueDeus enviou o Filho ao mundo, não para condenar o mundo,mas para que o mundo fosse salvo por meio dele”.5

Um dos paradoxos evidentes do quarto Evangelho é apalavra “mundo”, assim usada com referência à totalidadeda criação e especialmente da humanidade__________4. Hoskyns, Edwyn Clement, The Fourth Gospel, 1940, Vol.I, pág. 217; ver págs. 231, 317 e segs.5. João 3:16 e seguintes.

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como objeto do amor de Deus, sendo também usada paradesignar a humanidade, na medida em que esta rejeita oCristo, vive em trevas, faz as obras más, ignora o Pai ese regozija pela morte do Filho.6 O governador do mundo nãoé o Logos mas o diabo”.7 O seu princípio não é a verdade,mas a mentira; este é um reino de assassínio e de morte, enão de vida. Todavia, é evidente que João não está falandode duas realidades distintas, uma, o reino criado damatéria, em oposição ao reino criado do espírito, outra,um cosmos demoníacamente separado do mundo como criadopela Palavra divina. A idéia da queda, da perversão do bemoriginal, está implícita em todo o Evangelho. A criação,que é fundamentalmente boa, pois que vem de Deus atravésde sua Palavra, se torna contraditória em si, econtraditória face a Deus, em sua resposta a Ele. Deus amao mundo em Sua atividade criadora e redentora; o mundoresponde àquele amor com a negação de sua realidade e comódio pela Palavra. Esta é uma situação simples; e,todavia, nas interações infinitas de Pai e Filho, Deus,Palavra e mundo, ela se expressa em complexidades grandes,que nenhum outro escrito cristão tem procurado descrever,ou pelo menos sugerir, tão bem quanto o faz este quartoEvangelho. A natureza da perversão do mundo é indicadapela comparação constante da resposta de Jesus Cristo aoPai com aquela do mundo dos homens ao seu Criador. O Filhoobedece à vontade do Pai e faz as suas obras; o mundoobedece à vontade não daquele de quem ele deriva suaexistência, mas do seu “pai”, o diabo, isto é, à vontadede fazer a sua própria vontade. O Filho honra e glorificao Pai que o fez glorioso e o fará glorioso; o mundo,criado glorioso por Deus, responde ao feito do Criador,glorificando-se, ao invés de glorificá-lo. O Filho ama oPai que o tem amado e o amará;_________6. Ver João 7:7; 8:23; 14-17; 15:18 e segs.; 17:25, etpassim.7. João 8:44; 12:31; 14:30; 16:11.

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o mundo, amado por Deus, responde perversamente com o amorpróprio. O Filho dá testemunho de Pai que testemunha etestemunhará por ele; o mundo chama a atenção para simesmo. Jesus Cristo obtém sua vida do Pai, e oferece suavida àquele que lhe dá vida; o mundo ama a sua vida em simesma.8 Cristo, em suas relações com o Pai torna evidente anatureza da pecaminosidade humana. Mas não é apenas pelacomparação de Cristo com este mundo pervertido dos homens,com as suas obras, que o Evangelho enuncia a sua doutrinada queda. A corrupção do mundo aparece em sua relação como Filho do Pai, e não apenas em sua atitude para com o Paido Filho. Cristo, aquele que ama a Deus, ama também omundo; este responde ao seu amor com rejeição e ódio. Elevem para dar a sua vida pelo mundo; ao invés de dar a suavida pelo seu amigo, o mundo diz: “é conveniente que umhomem morra pelo povo, e não que toda a nação pereça”. Elevem para dar a sua vida; os homens lhe dão morte. Ele vempara dizer aos homens a verdade a respeito deles; e elesmentem a respeito dele. Ele vem para dar testemunho arespeito de Deus; o mundo responde, não com o seutestemunho corroborativo sobre o seu criador e redentor,mas com referências aos seus legisladores, seus diassantos e sua cultura. “Ele velo para os seus e os seus nãoo receberam”.

Embora João não formule a sua doutrina de pecado equeda em termos abstratos, pois ao invés de defini-laprocura ilustrá-la, parece acertado dizer que para ele opecado é a negação do próprio princípio da vida; é amentira, que não pode existir exceto à base de uma verdadeaceita; é o assassínio que destrói a vida no próprio atode afirmá-la, e afirma a vida no próprio ato de destruí-la; é o ódio que pressupõe o__________8. Estes temas, que aparecem em todo o Evangelho, sãoparticularmente ilustrados no capitulo xv, onde o símbolodo agricultor, da vinha e das varas é usado para mostraras relações recíprocas e comparativas do Pai, do Filho edo mundo.

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amor. O pecado existe porque a vida, a verdade, a glória,a luz e o amor só existem em comunicação e comunidade; eporque em tal comunidade será possível aos homens quevivem pelos feitos de outrem recusarem-se a responder comatos. Ele está presente, portanto, em todos os níveis devida; mas sua raiz está nas relações contraditórias dohomem em referência a Deus e à Palavra, ao Pai e ao Filho.Sir Edward Hoskyns disse, e muito bem, que “a análisebíblica joanina do comportamento humano é… uma distinçãoteológica entre aquelas ações que, consideradas completasem si mesmas, não deixam lugar para a justiça de Deus, eaquelas outras - e estas podem ser visivelmente idênticasàs julgadas más - que dão lugar à justiça de Deus. Estasúltimas exigem fé, pois em si mesmas são incompletas,enquanto que as primeiras a excluem, por serem auto-suficientes”.9 A análise joanina do comportamento humanoestende-se tanto para trás quanto para frente. Ela fazdistinção entre aquelas ações que estão muito seguras doamor de Deus como alguma coisa devida ao eu, que respondemao seu amor com o amor próprio, e aquelas que respondem aoamor com amor - não simplesmente de uma forma recíproca,mas com exuberante devoção a todos os que são amados peloPai e Filho.

Com estas convicções a respeito da bondade de Deus eda perversidade do homem na comunidade do Pai, Filho emundo, João apresenta uma visão da história em que asdimensões temporais - o passado e o futuro - estãograndemente subordinadas à relação eternidade-tempo. Acriação de que ele fala em seu prólogo não é um evento nopassado, mas a origem e fundamento de tudo que existe - oeterno começo e o princípio do ser. A queda não é umevento ligado à vida de um primeiro homem, na seqüênciadas gerações históricas; ela é um distanciamento presentecom__________9. Op. cit., pág. 237

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relação à Palavra. O julgamento do mundo é agora; ele édado com o advento da Palavra e com a vinda presente doEspírito.10 A visão histórica do quarto Evangelho écaracterizada pela substituição da frase "reino de Deus"pela frase "vida eterna”. Como praticamente todos osestudiosos do Evangelho têm observado, esta frasesignifica uma qualidade, uma relação de vida, umacomunidade presente através do Espírito com o Pai e oFilho, uma adoração espiritual, um amor e uma integridadepresentes. Sem dúvida permanece ainda certa tensão comrespeito ao futuro; e pode ser questionado se de qualquermaneira será possível que um cristão se veja completamentelivre da mesma. Mas o grande ponto do Evangelho está noreconhecimento de que um Novo princípio, um Novonascimento, a nova vida não são apenas um evento quedepende de mudança na história temporal ou na vida dacarne. Este evento começa de cima, com Deus, no céu, noespírito; trata-se de uma cidadania em um reino que “não édeste mundo”, não sendo, todavia, um reino do futuro. Joãosubstituiu em ampla escala a doutrina da volta de Cristopelo ensino a respeito da vinda do Paráclito; a idéia dedeixar este corpo para estar com Cristo ele - substituiupelo pensamento de uma vida presente com Cristo noespírito. “A carne para nada serve”, ou positivamente porcausa do seu nascimento ou negativamente por causa de suamorte. Este Novo começo é uma possibilidade de Deus, eação de Deus em Jesus Cristo, bem como no envio doEspírito; não no fim dos tempos, mas em cada momento vivoe existencial.11 Todavia, esta possibilidade não se realizaem uma vida mística e não histórica; ela se realizaatravés dos eventos concretos da vida de Jesus e dasrespostas concretas a ele pelos homens na Igreja”. O temado quarto Evangelho

__________10. João 9:39; 12:31; 16:7-11; ver Scott, Op. cit.cap. X.11. Ver Hoskyns, op. cit., pág. 229; Scott, op. cit.,págs. 247 e segs., 317 e segs.

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é o do não-histórico que ganha sentido na história, o doinfinito que ganha sentido de tempo, o de Deus que dásentido aos homens, sendo, portanto, seu salvador”.12 Eisaí o porquê das inter-relações complexas do registrohistórico e da interpretação espiritual neste livroenigmático e esclarecedor.

O tema conversionista, que aparece nesta atitude paracom a história, é apresentado implicitamente e às vezesexplicitamente pelo que João tem a dizer a respeito dacultura humana e suas instituições. Sua atitudeaparentemente ambivalente para com o judaísmo, gnosticismoe sacramentos do Cristianismo primitivo é parcialmenteexplicável quando pensamos nele como um conversionista.Por um lado, ele apresenta o judaísmo como anticristão;por outro, ele ressalta que “a salvação vem dos judeus”, eque as suas escrituras dão testemunho de Cristo. Odualismo nesta atitude pode ser explicado por referênciaaos conflitos do segundo século e pela afirmação da Igrejade ser o verdadeiro Israel;13 porém, pode-se também afirmarque tal atitude está de acordo em todos os tempos elugares com a concepção de que Cristo - e não a Igrejacristã como uma instituição cultural - é a esperança, overdadeiro significado, o novo começo de um judaísmo queaceita ser transformado por ele, não em uma religiãogentílica, mas em um louvor não defensivo do Pai.Semelhantemente, as relações de João com o gnosticismo sãoambíguas. Por um lado, ele parece levar a atitudeexclusivista da primeira carta de João rumo à acomodaçãodo Evangelho a esta espécie de sabedoria popular; poroutro lado, ele se assemelha em muito aos cristãosgnósticos em seu interesse pelo conheci- mento e suapreocupação com o espírito.14 Historicamente__________12. Hoskyns, op. cit., pág. 12013. Scott, op. cit., págs. 70-77.14. Ibid., págs. 86-103.

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explicável, em parte, esta atitude dualista é maisinteligível em termos conversionistas, como umatransformação cristã do pensamento religioso e cultural.João é um conversionista também em sua atitude para com aIgreja do segundo século, sua doutrina, sacramentos eorganização. Ele parece ser um defensor desta religiãocultural contra o judaísmo. Todavia, ele está muitodistante daqueles cristãos exclusivistas para os quais oelemento distintivamente cristão é encontrado nas formasexternas do jejum, da oração e da prática dos sacramentos.

Ele parece entender e interpretar a fé e práticascristãs com a ajuda de termos derivados dos cultos demistério, embora nada possa ser mais alheio ao seuespírito do que a idéia de transformar Cristo num heróique deva ser cultuado.15 Ele está preocupado em todo o seulivro com a transformação pelo espírito de Cristo doespírito que se expressa nos,atos extremos de religião.Ele está preocupado em que cada ato simbólico tenha averdadeira fonte e a verdadeira orientação em seuverdadeiro objeto. Talvez João não registre as palavras daoração do Senhor pelo fato de estar certo de que os seusleitores as conhecem; mas outros escritores da época asrepetiram, e é evidente que este homem distingue entreespírito e letra, mesmo quando a letra é cristã. Suainterpretação dos sacramentos da ceia do Senhor e dobatismo realça a mesma nota de participação em Cristo eseu espírito, sem negar e sem ressaltar a importância dopão, vinho e água físicos.16 Assim, no que concerne àsinstituições e cultura religiosas dos homens, pareceevidente que o quarto Evangelho pensa em Cristo como oconvertedor e transformador das ações humanas. O homem queescreveu “A hora vem e agora é quando os verdadeirosadoradores__________15. Ver Strachan, R. H. The Fourth Gospel, 1917, págs. 46-53.16. Hoskyns, op. cit., págs. 335 e segs.; Scott, op. cit.,págs. 122 e segs.

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adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Paiprocura tais que assim o adorem”, sem dúvida tinha oscristãos em mente tanto quanto os judeus e os samaritanos,estando longe de supor que a substituição das formascristãs por outras da religião resultasse em adoraçãoverdadeira e integral.

Somente forçando-se a questão será possível encontraruma atitude conversionista nas breves referências de Joãoa outras fases da cultura. O tratamento especial que eledispensa a Pilatos, o qual nenhum poder teria sobre Cristose este não lhe tivesse sido concedido do alto, e cujosenso de justiça foi derrotado com alguma dificuldade,pode ser explicado das mais diversas maneiras, como o podea referência ao reino deste mundo, cujos servos seesforçam na luta. O que se pode dizer é que, em geral, ointeresse de João está voltado para a transformaçãoespiritual da vida do homem no mundo, e não para asubstituição de uma existência temporal por uma totalmenteespiritual, e não para a substituição dos corpos ecircunstâncias físicas dos homens por novas criaçõesfísicas e metafísicas, e nem mesmo Dara a ascensão gradualdo temporal para o eterno.

Somos impedidos de interpretar o quarto Evangelho comoum documento totalmente conversionista, não somente porcausa do seu silêncio em muitos assuntos, mas tambémporque a sua nota universalista se faz acompanhar de umatendência particularista. A vida cristã consiste, de fato,na transformação de todas as ações por Cristo, para quesejam atos de amor a Deus e ao homem, glorifiquem o Pai eo Filho, e sejam obedientes ao mandamento de amar una aosoutros. Trata-se de uma vida de trabalho em que o cristãofaz o que ele vê o Filho fazendo, na medida em que o Filhofaz as obras do Pai. Mas esta vida parece possível apenasa uns poucos. É bem verdade que Cristo é o cordeiro deDeus que tira o pecado do mundo, e que foi o amor de Deuspelo mundo que o levou a enviar o seu Filho ao mesmo; eque quando este for levantado atrairá

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todos os homens a si.17 Todavia tais declaraçõesuniversalistas, que parecem visar à completa transformaçãoda vida e obra humanas, são contrabalançadas no Evangelhopelas afirmações que verberam o sentido da oposição domundo a Cristo e de seu interesse por uns poucos.“Manifestei o teu nome”, diz Jesus em sua oraçãosacerdotal, “aos homens que do mundo me deste. …Eu rogopor eles; não rogo pelo mundo. …Eles não são do mundo comoeu do mundo não sou”.18 Daí comentar o Professor Scott: “Oquarto Evangelho, que dá a mais grandiosa expressão aouniversalismo da religião cristã, é …ao mesmo tempo o maisexclusivista dos escritos do Novo Testamento. Eleestabelece uma incisiva divisão entre a Igreja de Cristo eo mundo que está de fora, mundo este que é consideradoestranho e hostil”.19 A antinomia pode ser facilmenteexplicada pela reflexão de que embora João estejaespecialmente preocupado com a conversão da Igreja de umasociedade separatista e legalista em uma comunidadedinâmica, espiritual e viva, que deriva a sua vida de umCristo vivo, ele também procura evitar a confusão de fécom o espiritualismo superficial e universal da culturasecular. Daí ser para ele a vida cristã a vida convertidapela regeneração do espírito do homem; mas o renascimentodo espírito de todos os homens e a transformação de todaexistência cultural pela Palavra encarnada, o Senhorressurrecto e o Paráclito inspirador não entram em suavisão. Ele combinou o motif conversionista com oseparatismo da escola Cristo-contra-a-cultura.

Uma combinação semelhante de conversionismo comseparatismo é sugerida na Carta a Diognetus, no segundoséculo. Os cristãos, diz ela, “não se distinguem dosoutros homens nem pela sua nacionalidade, nem___________17. João 1:29; 3:16 e segs.; 12:32,47.18. João 17:6,9,16.19. Scott, op. cit., pág. 115; conferir págs. 138 e segs.

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pela sua língua, e nem mesmo pelos seus costume. Pois elesnem habitam em cidades que lhes pertençam, nem têm um modoespecial de falar, nem levam uma vida caracterizada porqualquer singularidade. Morando em cidades gregas oubárbaras, de acordo com a sorte de cada um deles, eseguindo os costumes dos nativos, no que se relaciona comindumentária, alimentação e repouso, em sua condutaordinária, eles nos expõem seu modo de vida admirável emaravilhoso.20 O que torna maravilhoso este modo de vida éo desdém pela morte, o amor, a mansidão que têm sidoinfundidos nele por Deus através de sua Palavra redentorae criativa. Todavia a sugestão de que a vida cristã é ummodo transformado da existência cultural, e a declaraçãode que “o que a alma é no corpo, são os cristãos nomundo”, não são vinculadas pelo autor deste documento àesperança de conversão de toda a humanidade em toda a suavida cultural.

III. AGOSTINHO E A CONVERSÃO DA CULTURA

A expectativa da regeneração universal através deCristo surge de certo modo mais claramente nos grandeslíderes cristãos do quarto século. Mesmo então, contudo, anota universalista não se expressa tão plenamente como aidéia de conversão, visto que, a exemplo do que ocorre noquarto Evangelho, os conversionistas têm de manter a lutaem duas frentes – contra o anti-culturalismo doCristianismo exclusivista, e contra o “acomodatismo” doscristãos culturais. Ambas as tendências tinham-se tornadomuito impetuosas ante a aceitação da nova fé como religiãodo Estado. Charles

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_________20. Ante-Nicene Fathers, Vol. I, pág. 26.

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Norris Cochrane descreveu brilhantemente os váriosmovimentos daquela época em seu estudo sobre a culturaclássica, desde a reconstrução augustina, passando pelarenovação constantiniana até a regeneração agostiniana. 21De acordo com a sua interpretação, a regeneração dasociedade humana, mediante a substituição dos princípiospagãos pelos princípios trinitarianos, é o tema daquelemovimento iniciado por Ambrósio e Atanásio e que Agostinholevou a um grande clímax na sua Cidade de Deus.22 Esteshomens concluíram por uma teoria visando àquela renovaçãoda existência cultural humana que os césares e ospensadores romanos tinham tentado em vão pelo fato deserem os seus primeiros princípios auto-contraditórios.Interpretar Agostinho deste modo é fazê-lo enquadrar-senitidamente dentro do nosso esquema dos tipos éticoscristãos - e fazê-lo um pouco demais. O motifconversionista ou de transformação é a grande coisa nesteteólogo, que, nas palavras que ele mesmo aplicou a João,“foi uma daquelas montanhas a respeito das quais seescreveu: ‘Que as montanhas recebam paz em favor de teupovo’”.73 Todavia, não se deve esquecer que este motif sefaz acompanhar em seu pensamento por outras idéiasconcernentes às relações de Cristo e cultura. Seuinteresse pelo “monasticismo” o liga à escola dos cristãosradicais, como o faz sua antítese das duas cidades, aterrena e a celestial, na medida em que este contraste seaplica à oposição entre a religião cristã, como talorganizada, e as comunidades políticas também organizadas.Sua filosofia neoplatônica vincula-o ao Cristianismocultural, e torna possível, se não plausível, o argumentode que a sua conversão foi mais uma volta a Platão do queao Cristo do Novo Testamento. Tomás de Aquino e ostomistas_________21. Christianity and, Classical Culture, A Study ofThought and Action from Augustus to Augustine, 1940.22. Ibid, especialmente as págs. 359 e seguintes, 510 esegs.23. Translates on the Gospel According to St. John, I, 2.

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pretendem tê-lo do seu lado, chamando a atenção para o seuinteresse pelo correto ordenar de valores, e para a suacompreensão hierárquica das relações de corpo, razão ealma, bem como das autoridades sociais e terrenas à pazcelestial.24 Quando Agostinho fala da escravidão e daguerra, ele está pensando em termos dualísticos deobediência às ordens que são relativas ao pecado, esimplesmente evitam uma corrupção maior.25 Além disto, paraele, como para outros dualistas, a despeito da doutrina dacriação, o corpo animal, devido à sua corrupção, parecepesar mais sobre o espírito do que o espírito corruptosobre o corpo. Finalmente, é questionável se “a visão novade uma sociedade baseada na ‘unidade da fé e no vinculo daconcórdia’”, de Agostinho, foi verdadeiramente “universalem um sentido não sonhado mesmo pelo chamado impériouniversal, …e potencialmente …tão ampla e inclusiva como aprópria raça humana”.26 Suas doutrinas de predestinação epunição eternas, ambas concebidas individualistamente,estão de tal forma em contraste com a sua visão dasolidariedade no pecado e na salvação que é difícil darmoscrédito à sua idéia de regeneração universal. Uma vezmais, portanto, estamos tratando com um homem que é muitomais do que um simples representante de um determinadotipo.

Não obstante, a interpretação de Agostinho como oteólogo da transformação cultural efetuada por Cristo estáde acordo com a sua teoria fundamental de criação, queda eregeneração, com sua própria carreira como pagão ecristão, e com o tipo de influência que ele tem exercidono Cristianismo. O universalismo potencial de sua teoriatambém não pode ser negado. Agostinho não apenas descreve,mas ilustra também, em sua própria_________24. Conferir, por exemplo, de Bourke, V.J., Augustine’sQuest of Wisdom, 1945, págs. 225 e seg., 266, 277.25. City of God, XIX, 7, 15.26. Cochrane, op. cit., pág. 511.

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pessoa, a obra de Cristo como transformador da cultura. Oretórico romano torna-se um pregador cristão, que nãoapenas põe no serviço de Cristo seu preparo em línguas eliteratura, que lhe é dado por sua sociedade, mas também,em virtude da liberdade e iluminação derivadas doEvangelho, faz uso da linguagem com Novo brilho e traznova liberdade àquela tradição literária. O neoplatôniconão apenas acrescenta à sua sabedoria sobre a realidadeespiritual o conhecimento da encarnação, que nenhumfilósofo lhe havia ensinado, mas também humaniza estasabedoria, dando-lhe nova profundidade e orientação,fazendo-a produtiva de novas percepções, pela compreensãode que a palavra se fez carne e sofreu os pecados doespírito. O moralista ciceroniano não adiciona às virtudesclássicas as novas virtudes do Evangelho, nem substitui alegislação natural e romana por uma nova lei, mas avaliaem bases diferentes e reorienta, em conseqüência daexperiência da graça, a moralidade dentro da qual elehavia sido educado e que ele mesmo tinha ensinado. Alémdisto, Agostinho vem a ser um dos líderes daquele grandemovimento histórico pelo qual ia sociedade do Impérioromano é convertida de uma comunidade centralizada nocésar em cristandade medieval. Portanto, ele é, em simesmo, um exemplo do que significa a conversão da cultura,em contraste com a rejeição desta pelos radicais, com asua idealização pelos cristãos culturais, com a sínteseque funciona à base da adição de Cristo à boa civilização,e com o dualismo que procura viver pelo Evangelho em umasociedade indomavelmente imoral.27 Todavia, mesmoTertuliano, o advogado romano, e Tolstoi, o artista russo,bem como Tomás de Aquino, o monge aristotélico, Paulo, ofariseu judaico, e Lutero, o nominalista, ilustram o temaconversionista. O que é distintivo em Agostinho é o fatode que a sua teoria é uma duplicata de sua demonstração.__________27. Ibid., pág. 510.

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Cristo é o transformador da cultura para Agostinho, nosentido de que ele reorienta, revigora e regenera aquelavida do homem expressa em todas as obras humanas, que narealidade presente é o exercício pervertido e corrompidode uma natureza fundamentalmente boa, a qual, além disto,em sua depravação, está sob a maldição da transitoriedadee da morte, não porque uma punição exterior tenha caídosobre ela, mas pelo fato de ser intrinsecamentecontraditória. A sua visão da realidade humana e dapossibilidade divina não parte da idéia de uma criaçãoboa, mas a descrição da [sua] teoria bem pode começar ali.Como Agostinho, depois de muitos começos falsos na área doarrazoar especulativo e prático, veio a começar com DeusPai, Filho e Espírito Santo, e daí [chegou] à compreensãodo eu e da criatura, é a história das suas Confissões.Depois de ter feito este começo - ou depois que a sua vidafoi assim reiniciada - ele viu que toda a criação era boa,primeiro porque era boa para Deus, a fonte e o centro detodo o ser e valor, e segundo porque era boa em suaprópria ordem, com a bondade e beleza do serviço mútuo dascriaturas. As suas Confissões terminam com uma expressãoextática da idéia que é repetida em formulações maisabstratas em muitas outras obras: “Tu, ó Deus, viste todasas coisas que fizeste, e eis que tudo era muito bom. Sim,nós também vemos o mesmo, e eis que todas as coisas sãomuito boas. …Sete vezes tenho eu contado no que estáescrito, que tu viste que aquilo que criaste era bom: eesta é a oitava, quando viste tudo quanto criaste, e eisque era não apenas bom, mas também muito bom, agora, emconjunto. Pois várias vezes tudo era apenas bom; masconjuntamente, não somente bom, porém muito bom. Todos oscorpos maravilhosos expressam o mesmo, pela razão de queum corpo, constituído de membros, que são todos belos, émuito mais belo do que os membros em si mesmos, eaperfeiçoado pela sua composição bem ordenada. …Então, éuma coisa, para o homem, o pensar ser mal aquilo que ébom… ; e outra

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coisa o pensar que aquilo que é bom ele deve ver como bom(como agradável é serem muitas as tuas criaturas por seremboas, as quais não te agradam quando preferem comprazer-seem si mesmas e não em ti); e outra, que quando um homem vêuma coisa que é boa, Deus deve ver nele que isto é bom, demodo que Ele seria amado no que Ele fez, o qual não podeser amado a não ser pelo Espírito Santo que Ele tem dado…,através de quem vemos que tudo o que é, qualquer que sejao seu grau de existência, é bom, pois provém d’Aquele queem si mesmo não tem graus de existência, mas é o que é.…Louvem-te as tuas obras, para que possamos amar-te, eamemos-te para que as tuas obras possam louvar-te”.28

Apesar de que tudo quanto existe é bom, Agostinho estálonge de dizer, à moda do século dezoito, que tudo quantoexiste está certo, ou que apenas as instituições sociaisestão erradas, e que mediante um retorno às condiçõesprimitivas o homem pode voltar à felicidade. A naturezaboa do homem se corrompeu e sua cultura se tornou perversade tal forma, que a natureza corrupta produz culturaperversa e a cultura perversa corrompe a natureza. Adepravação espiritual, psicológica, biológica e social dohomem não significa que ele se transformou em um ser mau,pois Agostinho insiste em que “não pode haver uma naturezaem que não exista bem algum. Daí, nem mesmo a natureza dodiabo é má em si mesma, enquanto natureza, porém ficousendo má pelo fato de ser pervertida”.29 A doença moral dohomem - que não podia existir, a menos que houvesse algumaespécie de saúde em sua natureza - é tão complexa como suanatureza, mas tem origem unicamente em sua auto-afirmaçãoem si mesma contraditória. O homem foi feito, em suanatureza criada, para obedecer, para adorar e paraglorificar a bondade___________28. Confessions, XIII, xxvii, 43; xxxiii, 48.29. City of God, XIX, 13.

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que o fez, e o fez bom, a Deus, que é o seu bem supremo, epara depender dele. Como sua bondade primária consiste emsua adesão a Deus, assim também o seu pecado primárioconsiste em seu volver de Deus para si mesmo ou para algumvalor inferior. “Quando a vontade abandona o que lhe ésuperior e se volta para o que lhe é inferior, ela setorná-la; não porque seja mau aquilo para o que ela sevolta, mas porque a volta é má, em si mesma”. Este pecadoprimário, que é mais significativamente chamado deprimeiro pecado do homem do que pecado do primeiro homem,pode ser descrito de várias maneiras, como afastamento dapalavra de Deus, como desobediência a Deus, como vicio,isto é, como aquilo que é contrário à natureza, como vidaem conformidade com o homem, e como orgulho, pois “que é oorgulho se não a ansiedade por uma auto-exaltaçãoindébita?” Ele sempre tem este duplo aspecto: o deafastamento do homem d’Aquele de quem ele deriva a suavida, e da adesão a um bem que foi criado, como se estefosse o principal valor. Deste pecado radical surgemoutras desordens na vida humana. Uma destas é a confusãoque entra dentro do padrão ordenado da natureza filosóficado homem, natureza esta que é racional e emocional. “Quefoi se não a desobediência a punição de desobediêncianaquele [primeiro] pecado? Pois que outra é a miséria dohomem a não ser a sua própria desobediência a si mesmo, desorte que em conseqüência de não querer fazer o que elepodia, agora quer fazer o que não pode?… Pois quem podecontar quantas coisas deseja e que não pode fazer,enquanto for desobediente a si mesmo, isto é, enquanto suamente e sua carne não obedecem à sua vontade?”31 A desordemna vida emocional e racional do homem é incisivamentesentida no grande distúrbio de sua existência causado pelapaixão sexual, mas surge também em todas as outrasexpressões de sua libido. A alma__________30. Ibid., xii, 6.31. Ibid., XIV, 15; ver os capítulos seguintes

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desordenada é corrupta em todas as suas partes, não porqueuma parte foi desordenada, mas porque a relaçãofundamental da alma com Deus foi desordenada.

Uma segunda conseqüência do pecado radical é apecaminosidade social da humanidade. “Não há nada”, dizAgostinho, “tão social por natureza, e tão anti-socialpela sua corrupção, como esta raça”. “A sociedade dosmortais… embora mantida junta por uma certa comunhão denossa natureza comum, está, contudo, em sua grande parte,dividida contra si mesma, e os mais fortes oprimem osoutros, porque todos buscam os seus próprios interesses ecobiças”.32 A amizade é corrompida pela traição; o lar, queé o “refúgio natural dos males da vida”, em si mesmo nãoestá seguro; a ordem política na cidade e no império nãoestá apenas confusa, em decorrência das guerras eopressões, mas a própria administração da justiça setransforma em uma atividade perversa, em que a ignorância,ao procurar represar o vício, comete nova injustiça”.33 Adesordem se estende por toda a área da cultura:diversidade de línguas e esforço de imposição de umalíngua comum, as guerras justas bem como as injustas,esforços visando à consecução da paz e ao estabelecimentode domínio, a injustiça da escravidão e a exigência de queos homens se comportem com justiça, como senhores e comoescravos, no meio desta injustiça - todos estes e muitosoutros aspectos da existência social são sintomas damiséria e corrupção do homem. As próprias virtudes em queos homens são educados na sociedade são perversas, vistoque a coragem, a prudência e a temperança, quando usadaspara propósitos egoísticos ou idólatras, passam a ser“esplêndidos vícios”, contudo, toda esta pecaminosidadesocial depende da presença de uma ordem de criaçãofundamentalmente boa. “Mesmo o que é pervertido deve, poruma questão de necessidade, estar__________32. Ibid., XII, 27; XVIII, 2.33. Ibid., xix, 5.

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em harmonia com a ordem das coisas e em dependência dela,pelo menos em parte, pois do contrário não teriaexistência alguma. …Pode haver paz sem guerra, mas nãopode haver guerra sem alguma espécie de paz, pois que aguerra pressupõe a existência de algumas naturezas parafazê-las, e estas naturezas não podem existir sem a paz deum tipo ou de Outro”.34 Além disto, Deus dirige e governaos homens em sua existência corrupta, pessoal e social.“Assim como ele é o Criador supremamente bom das boasnaturezas, assim também é Ele o justo juiz das vontadesmás, de modo que enquanto elas fazem um mau uso das boasnaturezas, ele faz bom uso mesmo das vontades más”. Pelavontade má dos governadores ele refreia e castiga aperversidade dos seus súditos, e ao dar os reinos da terratanto aos bons quanto aos maus, "de acordo com a ordem dascoisas e dos tempos…, ele mesmo governa como Senhor”.35

A humanidade, com esta natureza pervertida e com estacultura corrupta, veio Jesus, para curar e para renovaraquilo que o pecado tinha contaminado com a doença mortal.Pela sua vida e pela sua morte ele mostra claramente aohomem a grandeza do amor de Deus e a profundidade dopecado humano; pela revelação e instrução ele reúne a almaa Deus, a fonte de seu ser e bondade, e restaura-lhe aordem certa de amor, fazendo-a amar, seja o que for queela ame em Deus, e não no contexto da devoção egoística eidólatra à criatura. “Este é o meio pelo qual umadeterminada mão é estendida ao fracassado e caído”. De vezque o homem, movendo-se em seu círculo vicioso deimpiedade, não pôde salvar-se de si mesmo, “a verdademesma, Deus, o Filho de Deus, assumindo humanidade semdestruir a sua divindade, estabeleceu e fundou esta fé,para que pudesse haver um caminho do homem ao Deus do_________34. Ibid., XIX, 12, 13.35. Ibid., XI, 17; I, 1, 8, 9; IV, 33.

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homem, através de um Deus-homem. Pois este é o mediadorentre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus”, que comoDeus é o nosso fim, e como homem é o nosso caminho.36

Humilhando o orgulho humano e libertando o homem de simesmo, por um lado, e revelando o amor de Deus e unindo ohomem ao seu único bem, por outro, Cristo restaura o quetem sido corrompido e reorienta o que tem sido pervertido.Ele transforma as emoções dos homens, não substituindo aemoção pela razão, mas unindo o medo, o desejo, a afliçãoe o gozo ao seu objeto certo. “Os cidadãos da cidadesanta de Deus, que vivem de acordo com Deus, naperegrinação desta vida, temem e desejam, sofrem e sealegram. E porque o seu amor está corretamenteestabelecido, todas estas suas afeições estão certas”.37

“As virtudes morais, que os homens desenvolvem em suasculturas perversas, não são suplantadas por novas graças,mas convertidas pelo amor. “A temperança é o amor que semantém integro e incorrupto para Deus; fortaleza de ânimoé o amor que tudo suporta prontamente pela causa de Deus;justiça é o amor servindo apenas a Deus, e portantoregendo bem tudo o mais como sujeito: ao homem; prudênciaé o amor fazendo justa distinção entre aquilo que o ajudarumo a Deus e o que o atrapalha”.38 A vida da razão acimade tudo, aquela sabedoria do homem que a sabedoria de Deusrevela como cheia de loucura, é reorientada e redirigida,ao receber a dádiva de um Novo primeiro princípio. Aoinvés de começar com a fé em si mesma e com o amor de suaprópria ordem, o arrazoar do homem redimido começa com afé em Deus e com o amor da ordem que ele pôs em toda a suacriação. Portanto, este está livre para traçar osdesígnios de Deus e para seguir-lhe__________36. Ibid., X, 24; XI, 2; conferir VII, 31; IX, 15.37. Ibid., XIV, 9.38. On the Morals of the Catholic Church, XV.

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os caminhos humildemente. Há lugar dentro do pensamentoagostiniano para a compreensão de que a matemática, alógica, as ciências naturais, as belas artes e atecnologia podem tornar-se tanto beneficiarias daconversão do amor do homem quanto instrumento daquele Novoamor de Deus, que se alegra em toda a sua criação e servea todas as suas criaturas. A vida cristã pode e deve fazeruso não apenas destas atividades culturais, mas também dos“arranjos convenientes e necessários dos homens com oshomens” - convenções sobre indumentária e distinção, pesose medidas, dinheiro e coisas semelhantes.40 Tudo, e nãomenos a vida política, está sujeito à grande conversão queé ensejada quando Deus dá um Novo começo ao homem,levando-o a começar com Deus. Se estivéssemos a perseguirapenas as idéias conversionistas de Agostinho, poderíamosapresentá-lo como um cristão que pôs diante dos homens avisão da concórdia e paz universais em uma cultura em quetodas as ações humanas teriam sido reordenadas pelagraciosa ação de Deus, ao atrair todos os homens a simesmo, e em que todos os homens seriam ativos em obrasdevotadas ao e refletindo o amor e glória de Deus”.41

Agostinho, contudo, não desenvolveu seu pensamentonesta direção. E, de fato, ele não aguardou, comesperança, a realização da grande possibilidadeescatológica demonstrada e prometida no Cristo encarnado:a redenção do mundo criado e corrompido, e a transformaçãoda humanidade em toda a sua atividade cultural. Apossibilidade da reorientação de toda a obra do__________39. Sobre a interpretação agostiniana da filosofia e daciência ver Cochranne, Op. cit.cap. XI, onde o assunto éamplamente considerado.40. Ver On Christian Doetrino, 11, 25, 26.41. A afirmação a respeito da paz de como e alma, dos ho-mens com Deus, no início do capitulo 13, livro XIX, daCidade de Deus, é, às vezes, apresentada como se fosse umaprofecia agostiniana, o que realmente não é.

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homem, em meio às coisas temporais, rumo a uma atividadede glorificação a Deus, pelo regozijo em face da suacriação e pelo cultivo da mesma, pela prestação de mútuoserviço do amor sem segundas intenções, pelo desdenhar damorte e do temor dela, na convicção do poder divino sobreela, pelo delinear, em arrazoados desinteressados, daordem e desígnio da criação e pelo uso de todos os benstemporais com reverência sacramental, como encarnações esímbolos das palavras eternas - esta possibilidade évislumbrada no pensamento agostiniano apenas para serposta de lado. E o que surge, então, é a visãoescatológica de uma sociedade espiritual, que consiste dealguns indivíduos humanos, eleitos juntamente com osanjos, vivendo, em um paralelismo eterno, na companhia doscondenados. Os eleitos não são os remanescentes de quesurge uma nova humanidade. Eles são um remanescente salvo,mas não um remanescente salvador. Por que o teólogo que,em suas convicções fundamentais, lançou as bases de umavisão da natureza e cultura da humanidade não levouadiante as conseqüências destas convicções, eis umaquestão difícil. Pode-se argumentar que ele procurou serfiel às Escrituras com suas parábolas sobre o juízo final,e às idéias separatistas presentes nelas. Mas há tambémuma nota universal nas Escrituras, e a fidelidade ao livronão explica por que alguém, que em outros casos estevesempre mais interessado no sentido espiritual do que naletra, não apenas seguiu a letra, neste caso, mas tambémexagerou o sentido literal. A chave do problema pareceestar na atitude defensiva de Agostinho. De sua confissãode seu pecado e da graça divina, ele se volta para adefesa da justiça de um Deus que, tendo escolhido oscristãos, através da revelação de sua bondade, não pareceter escolhido os não-cristãos. Da confissão de pecado egraça como um membro da Igreja Católica, ele se volta paraa justificação da Igreja em face das acusações trazidascontra ela pelos pagãos. Da esperança de conversão dacultura, ele se volta para a defesa da cultura cristã, asaber, das instituições e hábitos da sociedade cristã. Eledefende também a moralidade

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periclitante, embora não regenerada, do homem, com asameaças do inferno e promessas do céu. Em conseqüênciadesta volta à auto-justificação, sua cristologia permanecefraca e sem desenvoltura quando comparada com ia de Pauloou de Lutero. Ele sempre tende a substituir a religiãocristã - que é uma aquisição cultural - por Cristo, efreqüentemente considera o Senhor mais como o fundador deuma instituição cultural e de autoridade, a Igreja, do quecomo o Salvador do mundo através do exercício direto desua soberania. Daí, também, a fé, em Agostinho, tender aser reduzida a um assentimento obediente aos ensinos daIgreja, o que sem dúvida é muito importante para a culturacristã, mas não é nenhum substituto imediato para aobediência a Deus. Na forma de predestinação dada àdoutrina da eleição, Agostinho, de Novo, com grandesímpetos defensivos, muda a sua concepção fundamental sobreo fato de Deus escolher o homem para que este o ame, antesque o homem possa amá-lo, para a proposição de que Deusescolhe alguns homens e rejeita outros. Assim a visãogloriosa da Cidade de Deus vem a ser uma visão de duascidades, compostas de diferentes indivíduos, para sempreseparadas. Eis aqui um dualismo mais radical do que o dePaulo e de Lutero.

Calvino é muito semelhante a Agostinho. A idéiaconversionista é proeminente em seu pensamento e atitudes.Mais do que Lutero, ele aguarda o permear de toda a vidapelo Evangelho. Sua concepção mais dinâmica das vocaçõesdos homens como atividades em que eles podem expressar suafé e amor e glorificar a Deus pelo seu chamado, sua intimaassociação de Igreja e Estado, e sua insistência em que oEstado é ministro de Deus, não apenas de um modo negativo,como o represador do mal, mas positivamente como promotorde bem-estar social, sua visão mais humanista do esplendorda natureza humana, ainda evidente nas ruínas da queda,seu interesse pela doutrina da ressurreição da carne, e,acima de tudo, sua ênfase quanto à realidade da soberaniade Deus - tudo isto leva ao pensamento

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de que aquilo que o Evangelho promete e torna possívelcomo divina (não humana) possibilidade é a transformaçãoda humanidade, em toda a sua natureza e cultura, em umreino de Deus no qual as leis sejam escritas nos íntimos[dos homens]. Mas, neste caso, também a esperançaescatológica da transformação por Cristo da vida arruinadada humanidade vem a ser a escatalogia de uma morte física,e a redenção de alguns homens para uma vida em glória,separadas não apenas pelo seu espírito, mas também pelassuas condições físicas, da vida no mundo. A esperançaescatológica de um Novo céu e de uma nova terra, suscitadapela vinda de Cristo, é modificada pela crença de queCristo não pode vir a este céu e a esta terra, mas deveaguardar a morte da velha criação e a ressurreição de umanova. As contraposições eternas de Deus e do homem,Calvino acrescenta o dualismo da existência temporal eeterna, e o outro dualismo de um céu eterno e de um eternoinferno. Embora o calvinismo tenha sido marcado pelainfluência de uma esperança escatológica de transformação[do mundo] por Cristo e pelo seu conseqüente esforço decumprimento da promessa, este elemento nele tem sidosempre acompanhado de uma nota separatista e repressiva,que é aqui muito mais marcante do que no luteranismo.

IV. AS PERSPECTIVAS DE F. D. MAURICE

A tenacidade e vitalidade da idéia de perfeição nahistória da igreja ajudam a clarificar quão importante é aidéia da transformação da cultura por Cristo, de um mododistinto dos outros motivos principais da ética cristã.Wesley é o grande expoente protestante desteperfeccionismo. Seu pensamento sobre o assunto confunde-sefreqüentemente com o dos cristãos exclusivistas, mas eledifere deles profundamente, pois participa

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da compreensão de Paulo, João, Lutero, Agostinho e Calvinode que Cristo não é um Novo legislador que separa um Novopovo do velho, mediante a dádiva da constituição de umanova cultura. Cristo é para Wesley o transformador davida; ele justifica os homens dando-lhes fé; ele trata comas fontes da ação humana; ele não faz nenhuma distinçãoentre os cidadãos morais e imorais das comunidadeshumanas, ao condenar todo amor-próprio e ao franquear atodos a vida de liberdade, em resposta ao amor perdoadorde Deus. Mas Wesley insiste na possibilidade - novamentecomo possibilidade de Deus e não do homem - de umcumprimento, no presente, daquela promessa de liberdade.Pelo poder de Cristo os crentes podem ser purificados detodo pecado; podem ser como o Mestre; podem ser libertados“neste mundo”. O Novo Testamento não diz que “o sangue deCristo nos purificará na hora da nossa morte, ou no dia dojulgamento, mas que ele ‘purifica’ a ‘nós’, os cristãosvivos, já no presente, de ‘todo o pecado’”.42 Para o homem,esta possibilidade significa uma intensidade de expectaçãoe de esforço rumo a um alvo que poderia ser facilmentepervertido, de Novo, em atividade centralizada efortalecida em si mesma, e em cultura própria, religiosa emoral, em que a santidade fosse buscada como uma posse, eDeus se tornasse instrumento de consecução de auto-respeito. Mas o que interessava a Wesley, em meio a todasas inadequações de sua doutrina de pecado,43 bem como aosseus seguidores, em meio aos seus tropeços no orgulho, eraa idéia joanina da possibilidade presente da transformaçãodo homem temporal em um filho de Deus, vivendo para o amorde Deus e em liberdade com relação ao eu.44 Em seuindividualismo, Wesley não ressaltou__________42. Do sermão "Sobre a Perfeição Cristã".43. Ver Flew, R. Newton, The Idea of Perfection, 1943,págs. 332 e seguintes.44. Ver especialmente Lindstroem, Harald, Wesley and Sanc-tification, 1946.

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a promessa de Cristo [de redimir] * a humanidade, e nãotanto de separar os homens, mas aqui também há sugestõesdessa idéia, a qual os seus seguidores desenvolveramposteriormente, embora sempre corri uma tendência rumo aocristianismo cultural maior do que a que eracaracterística do iniciador do movimento metodista.

Jonathan Edwards, com suas opiniões ricas de percepçãoe profundas sobre criação, pecado e justificação, com asua compreensão do modo de conversão e suas esperançasquanto ao milênio, tornou-se na América o fundador de ummovimento de pensamento sobre Cristo como o regenerador dohomem em sua cultura. Edwards nunca perdeu o seu ímpeto,embora tal ímpeto se tenha freqüentemente pervertido,assumindo aspectos de uma teurgia pelagiana e banal, emque os homens se preocupam com os sintomas do pecado e nãocom as suas raízes, e pensam ser possível veicular a graçae poder de Deus pelos canais que eles construíram. Assim,o conversionismo de Edwards foi usado para justificar omecanismo psicológico de um avivamento mesquinho, com suaprodução em massa de almas renovadas, e a ciênciasociológica daquela parte do Evangelho social, queesperava transformar a humanidade pródiga melhorando aqualidade das bolotas servidas no chiqueiro.

No século dezenove, nas gerações representadas porTolstoi, Ritschl, Kierkegaard e Leão XIII, a idéiaconversionista teve muitos expoentes. Notável entre eles éF.D. Maurice, o teólogo inglês, cuja obra tem sidoavaliada de tantas maneiras que os julgamentos a respeitode sua profundidade e compreensibilidade são semprecontrabalan-çados pelas referências à sua nebulosidade,

___________*. Aparentemente o original omite uma palavra que, à luzdo contexto, nos parece ser o verbo “redimir”. – (N.T.).

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confusão e caráter fragmentário.45 Todavia, a influência deMaurice é penetrante e permeante. Ele é acima de tudo umpensador joanino, que começa com o fato de que o Cristoque vem ao mundo vem para aqueles que são seus, e que é opróprio Cristo quem exerce a sua soberania sobre oshomens, e não um vice-gerente - seja ele o papa, asEscrituras, a religião cristã, a Igreja, ou a luz interior- separado da Palavra encarnada. Cedo em sua vida foi-lheimposta a convicção de que Cristo é o Senhor dahumanidade, quer os homens creiam ou não. Assim, em umacarta à sua mãe, ele escreveu: “Deus nos diz que ‘n’Ele,isto é, em Cristo, ‘tenho feito novas todas as coisas,tanto as que estão no céu quanto as que estão na terra.Cristo é a cabeça de cada homem’. Alguns homens crêemnisto, e outros não crêem. E aqueles homens que não crêem,‘andam segundo a carne’. …Eles não crêem nisto, e portantonão agem de acordo com esta crença. …Mas muito emboradezenas e centenas de milhares de homens vivam segundo acarne, e ainda que todos os homens no mundo vivessemassim, somos proibidos, pela verdade cristã e pela IgrejaCatólica, de chamar isto de estado real do homem. …Averdade é que todo homem está em Cristo…; a não ser queele estivesse ligado a Cristo, ele não poderia pensar,respirar e viver uma hora sequer.46 Os homens, entendiaMaurice, eram sociais por natureza; não tinham elesexistência alguma a não ser como filhos, irmãos e membrosde uma comunidade. Esta convicção o associou aossocialistas. Mas a comunidade em que os homens eramcriados não era simplesmente humana; ela não podia serverdadeiramente__________45. Ver Vidler, Alec R., The Theology of P. D. Maurice,1948, págs. 7 e segs. Este livro, publicado nos EstadosUnidos com o titulo de Witness to the Light, é umaexcelente introdução ao pensamento de Maurice.Indispensável para a compreensão de Maurice é a obra TheLife of Frederick Denison Maurice Chiefly Told in HisLetters, editada pelo seu filho Frederick Maurice, em 2volumes, em 1884.46. Life, Vol. I, pág. 115.

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humana se não fosse mais: a comunidade dos homens com oPai, Filho e Espírito Santo. Na compreensão de Maurice da“constituição espiritual” da humanidade, todas as inter-relações intrincadas do amor em Deus, do amor do Pai, doshomens e de Cristo, dá natureza divina e humana do Filho,da Palavra criadora e redentora, do amor do homem dopróximo em Deus e de Deus no próximo, da família, nação eIgreja, todas têm o seu lugar.47 Mas o centro é Cristo.Nele, todas têm o seu lugar.48 Mas o centro é Cristo. Nele,todas as coisas foram criadas para viver em união com Deuse umas com as outras; ele revela a verdadeira natureza davida e lei da sociedade como criada, bem como o pecado e arebelião dos seus membros; ele redime os homens na e paraa comunidade de vida uns com os outros em Deus. “Aessência e o significado de toda a história” registradanas Escrituras estão contidos na “impressionante oração deCristo” Para que todos sejam um, assim como tu, ó Pai,estás em mim, e 'eu em ti, para que sejam um em nós.48 Daí,Maurice viu-se em conflito não apenas com os ”cristãos nãosociais”, mas também com os “socialistas não cristãos”; osprimeiros baseavam a relação do homem com Cristo em ritosexternos, substituíam Cristo pela religião, e nãoaceitavam responsabilidade alguma pela vida social humana;os últimos estavam inclinados a basear a sociedade nanatureza animal do homem e a fazer do interesse própriocomum a base para a ação social. Os homens não são“animais mais uma alma” argumenta Maurice, “mas sãoespíritos com uma natureza animal, …o vínculo de sua uniãonão é comercial, nem é a submissão a um tirano comum, enem ainda uma fúria brutal contra ele; … mas se apóia etem sempre se apoiado numa base espiritual;__________47. Ver especialmente The Kingdom of Christ, Vol. I, parteII, capítulos II e III; conferir com Vidler, op. cit.,cap. II.48. The Kingdom of Christ, Vol. I, pág. 292.

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… o pecado da Igreja - a apostasia horrível da Igreja -tem consistido na negação de sua própria função, que é ade proclamar aos homens a sua condição espiritual, osfundamentos eternos em que ela se alicerça, e amanifestação que se fez dela pelo nascimento, morte,ressurreição e ascensão do Filho de Deus, e pelo dom doEspírito”.49

A doença profunda do homem, a auto-contradição em queele está envolvido, como indivíduo e membro das sociedadeshumanas, é a sua negação da lei do seu ser. Ele procurapossuir dentro de si mesmo ou por si mesmo, em forma debens físicos ou espirituais, aquilo que ele só podeconseguir na comunidade, onde se recebe e se dá. Mauriceestá de tal forma consciente do pecado do amor-próprio, dosectarismo (divisiveness) humano, da exploração do homempelo homem, da auto-glorificação das nações e Igrejas, queprecisa falar pouco, de um modo explícito, sobre a queda ecorrupção; trata-se daquilo que corre por baixo de todo oseu pensamento. “Quando comecei a procurar Deus por mimmesmo”, escreveu ele, “o sentimento de que eu precisava dealguém que me libertasse de um peso avassalador de egoísmoesteve predominante em minha mente”.50 Tanto o peso quantoo permear etéreo daquele egoísmo, continuaram a oprimi-lo.Ele encontrou egoísmo no sistema comercial, contra o qualele protestou como um líder do movimento socialistacristão, e então descobriu como este surgia entre aquelesque protestavam; ele se manifestava no individualismo dopovo religioso, que confessava que pertencia a uma raçaculpada, mas aguardava um perdão especial; no esforço deum homem para justificar-se pela fé, mantida comopossessão, e por uma retidão própria; na, grita dospartidos e seitas da Igreja, cada qual apontando para simesmo ou para os seus discípulos como o caminho dasalvação. O pecado__________49. Life, Vol. II pág. 272.50. Ibid., pág. 15; conferir com Vidler, op. cit., págs.42 e segs.

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do homem está em ele tentar ser Deus para si mesmo. “Oefeito do nosso pecado é o fato de ele nos fazer olharpara nós mesmos como centros do universo, e então olharpara os acidentes perversos e miseráveis de nossa condiçãocomo determinando aquilo que nós mesmos somos”.51 Em facedo caráter penetrante e destrutivo do pecado, a petição“Livra-nos do mal”, poderia parecer quase desonesta. "Quãodifícil é quando o mal está por cima, por baixo, pordentro, quando você se defronta com ele no mundo e lhecausa susto no quarto, quando você o ouve dizendo ao seucoração, e dizendo para todo o mundo: ‘Nosso nome éLegião’, quando todos os esquemas de reforma parecemtornar ainda mais maligno o mal sob o qual a terra está agemer, quando a nossa própria história (e a história dahumanidade) parece estar zombando de todo esforço de vidae obrigando-nos a nos contentarmos com a morte; ah, édifícil, muito difícil pensarmos que tal oração não sejamais um dos ardis da auto-ilusão em que gastamos a nossaexistência!”52 A prevalência de corrupção e auto-contradição na vida humana era especialmente opressiva edesencorajadora, porque surgia na Igreja, na própriacultura cristã. Assim Maurice escreveu: “Eu considero assuas seitas - e todas elas - como um ultraje ao principiocristão, como uma negação dele. …Vocês realmente nãoquerem unir-nos em Cristo, como membros de seu corpo; oque vocês querem é que nos unamos na defesa de certasnoções a respeito de Cristo”.53 “Sim! Religião contra Deus.Esta é a heresia da nossa época …e isto está nos levando àúltima e mais terrível forma de infidelidade”.54

__________51. The Lord’s Prayer, págs. 63 e seguintes.52. Ibid., págs. 144 e segs. Ver também The Gospel ofJohn, págs. 91 e segs.53. Life, Vol. I, pág. 259.54. Ibid., pág. 518.

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Contudo, o que fez de Maurice o mais consistente dosconversionistas, foi o fato de que ele se apegou aoprincípio de que Cristo era rei, e de que era necessárioque os homens o levassem a sério, e não apenas os seuspecados; pois concentrar-se no pecado, como se o mesmofosse o princípio regente da existência, seria enredar-seem auto-contradição ainda maior. Daí ter-se indispostocontra os evangélicos na Alemanha e Inglaterra, pois eles“parecem fazer do pecado a base de toda a teologia,enquanto que para mim o Deus vivo e santo é a sua base, eo pecado é o afastamento do estado de união com ele,estado este para o qual ele nos trouxe. Não posso crer queo diabo seja, em qualquer sentido, rei deste universo.Creio que Jesus Cristo é o rei em todos os sentidos, e queo diabo está nos tentando todos os dias e a cada hora aque O neguemos, e pensando de si mesmo como rei. Trata-se,para mim, de uma questão de vida ou morte o saber qualdestas duas doutrinas é verdadeira; eu poderia viver oumorrer para manter aquilo que me foi revelado”.55 Por estarazão Maurice rejeitou toda tendência dualística depassagem de uma ação positiva para uma negativa, depassagem da cooperação a um ataque à não-cooperação, depassagem da prática da unidade em Cristo a um conflito comaqueles que dividem a Igreja, de passagem do perdão depecadores à sua exclusão da Igreja. Todo esforço destetipo envolve reconhecimento do poder do mal, como se esteexistisse a não ser como um espírito de busca, vontade eglorificação do eu; como se este pudesse ser localizado emalguma parte fora de nós mesmos. Daí, o expulsar de Satãinvoca Satã, como quando o socialismo procura destruir aopressão de classe pelo apelo de classe com vista àsolidariedade de classe e interesse de classe; ou como nocaso dos movimentos católicos na Igreja, que apontam parasi mesmos e para os seus princípios como base da concórdiacristã. Assim Cristo é substituído pelo__________55. Ibid., pág. 450

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Cristianismo, e a defesa da cultura cristã toma o lugar daobediência ao seu Senhor. Isto não é entrar em acordo como mal, mas aceitar o mal como o nosso bem pois entre o beme o mal não pode haver acordo, por mais que os mesmospossam misturar-se em pessoas e atitudes. Maurice está bemcônscio de que ele mesmo assumiu atitudes de negação e deseparação dos seus colegas na Igreja e no mundo, mas nãoachava tais faltas desculpáveis. Ele sabia que o seupróprio pensamento seria usado de um modo defensivo poralgum Novo partido. Mas para toda a tendência inveteradados homens de transformar suas verdadeiras percepções emauto-afirmações, nenhuma outra resposta poderia haver,exceto a do testemunho renovado de Cristo, o único centroda vida, o único poder capaz de vencer a vontade própria.56

A conversão da humanidade do auto-centrismo aoCristocentrismo era, para Maurice, a possibilidadeuniversais presente e divina. Era universal, no sentido deincluir todos os homens, de vez que todos eram membros doreino de Cristo pela sua criação na Palavra, pelaconstituição real e espiritual sob que viviam. Ela erauniversal, também, no sentido de que a Igreja precisavadirigir todo o seu interesse rumo à concretização dapossibilidade divina, da aceitação universal espontânea doreinado efetivo de Cristo. A inclusão no testemunhocristão das doutrinas da dupla predestinação - da eleiçãodos homens não apenas para a vida com Deus mas também paraa separação dele - e da punição eterna, era, para Maurice,aberração daquele tipo que resulta do Cristianismonegativo. “Eu não peço a ninguém que diga”, escreveu ele,“pois não ouso dizer para mim mesmo, quais são aspossibilidades de resistência em uma vontade humana paracom a vontade amorável de Deus. Há tempos em que elas meparecem - pensando de mim__________56. A respeito do pensamento de Maurice sobre oSocialismo, ver Life, vol. II, caps. i-iii; sobre a ala daHigh Church, ibid., Vol. I, págs. 160 e seguintes, 205 esegs.

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mesmo e não dos outros - quase infinitas. Mas eu sei quehá algo que tem de ser infinito. Sou obrigado a crer em umabismo de amor que é mais profundo do que o abismo damorte: não ouso perder a fé em tal amor. Eu me afundariana morte eterna se o fizesse. Tenho de sentir que esteamor está abarcando o universo. Mais a respeito disto, nãoposso conhecer”.57 “Não posso crer que ele faltará aalguém, no final; se a obra estivesse confiada a outrasmãos, ela poderia se arruinar; mas a sua vontade deve, comcerteza, ser feita, ainda que seja resistida por muitotempo”.58

Salvação universal significava mais do que a volta dosseres individuais ao seu verdadeiro centro. Pela criaçãoatravés da Palavra os homens são sociais; eles são pais,irmãos, mulheres e maridos, membros de nações,participantes voluntários e espirituais das sociedadespolíticas, religiosas e econômicas. A plena concretizaçãodo reino de Cristo não significava, então, a substituiçãode todas as organizações separadas dos homens por uma novasociedade universal, mas antes a participação de todosestes em um reino universal, de que Cristo é a cabeça.Significava a transformação através da humilhação eexaltação: através da humilhação que vem quando membros docorpo espontaneamente aceitam o fato de que não são acabeça, e através da exaltação que resulta do conhecimentode que eles receberam a sua tarefa particular, própria enecessária à obra de serviço, à cabeça do corpo e a todosos outros membros. Maurice estava bem cônscio dos valoresnas variedades das culturas nacionais e não estavainteressado nem na erradicação da nacionalidade e nem nado eu. As escolas de filosofia, bem como os vários gruposou movimentos na vida religiosa, tinham, cada um, o seuvalor particular. A variedade trouxe desordem em todosestes casos, somente porque os homens confundiram as suascontribuições parciais à verdade__________57. Theological Essays, segunda edição, pág. 360.58. Life, Vol. II, pág. 575.

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com a verdade total, mas houve transformação quandohumildade e serviço suplantaram a auto-afirmação e auto-glorificação. Neste sentido, Maurice lidou com todas asfases da cultura: com os costumes sociais, sistemaspolíticos, linguagem, e organizações econômicas. Em suavisão do reino de Cristo, que é tanto realidade quantopossibilidade, as doutrinas protestantes de vocação ecidadania cristã, a preocupação tomista pela filosofia emoralidade social, o interesse católico pela unidade e aênfase sectária quanto a certas verdades, foram todoscombinados em uma grande afirmação positiva de que não háfase alguma da cultura humana ,sobre a qual Cristo nãoreina, e nenhuma obra humana que não esteja sujeita ao seupoder transformador sobre a vontade do eu; assim como nãoexiste, também, nenhum santo que não esteja sujeito àdeformação.59

A idéia de universalidade, Maurice uniu a deimediatismo escatológico. Eternidade significava para ele,como para João, a dimensão do operar divino, e não danegação do tempo. Assim como a criação era a obra eterna,e não pré-temporal, de Deus, assim também a redençãosignificava aquilo que Deus-em-Cristo faz naquele laborareterno que sempre se levanta em contra-posição à açãotemporal do homem. O eterno não cancela o passado, opresente e o futuro do homem, nem depende de nenhum deles:Deus era, é, e há de ser; ele reina e reinará. A melhorordem, pela qual esperam os homens, não depende da mudançade condições físicas, que uma nova criação há de trazer.“Nosso Senhor fala de seu reino ou do reino de seu Pai,não como se o mesmo fosse pôr de lado aquela constituiçãodo universo de que os homens tinham visto os toques nasinstituições da família e da nação, com as quais elessonharam quando pensavam em uma comunhão mais elevada egeral. …As altas expressões de desdém pela pequenez__________59. Ver especialmente The Kingdom of Christ, Parte II,caps. ii,iii, v; e também Vidler, op cit., págs. 183 eseguintes e Raven, C.E.., Christian Socialism, 1848-1854,págs. 13 e seguintes.

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das transações meramente terrenas e pelas vicissitudes dosgovernos humanos, que alguns teólogos mantêm, não sãoaprendidas na sua escola”. Embora nutrisse e confirmasse aesperança dos homens pelo futuro, ele não encorajou“antecipações incompatíveis com o inteiro reconhecimentodo caráter sagrado de nossa vida aqui”, ou “noçõesmaniqueístas de que a terra ou a carne são criaturas oupropriedades do diabo”.60 Todavia, o reino de Cristo não édeste mundo; não é ele um reinado sobre condiçõesexteriores, mas sobre os espíritos dos homens. “Quandoexpulsou espíritos maus, ele deu testemunho de que estavaconversando com o espírito do homem; que com o orgulho, acobiça e o ódio, os poderes espirituais da maldade noslugares celestiais, ele estava mantendo sua grandecontrovérsia. …Aqui, nesta região íntima, neste âmago doser do homem, ele ainda está subjugando os seus inimigos eministrando sua misteriosa educação”.61 O tempo do conflitoé agora; o tempo da vitória de Cristo é agora. Nós nãoestamos lidando com o progresso humano na cultura, mas coma conversão divina do espírito do homem de que surgemtodas as culturas. “O reino de Deus começa por dentro, masele tem de se manifestar exteriormente… Ele tem depenetrar os sentimentos, hábitos, pensamentos, palavras,atitudes de quem é seu súdito. Por fim ele tem de penetrartoda a nossa existência social.62 O reino de Deus é acultura transformada, pois ele é antes de tudo a conversãodo espírito humano da incredulidade e do serviço do eu aoconhecimento e serviço de Deus. Este reinado é umarealidade, pois se Deus não reinasse nada existiria e, seele não tivesse ouvido a oração pela vinda do reino, omundo da humanidade já se teria tornado, há muito, umacaverna de_________60. The Lord's Prayer, págs. 41 e seg., e pág. 44.61. Ibid., págs. 48 e segs.62. Ibid., pág. 49.

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salteadores. Todo momento (e período) é um presenteescatológico, pois a todo o momento os homens estãotratando com Deus.

Em Maurice a idéia conversionista é mais claramenteexpressa do que em qualquer outro pensador ou lídercristão dos tempos modernos. Sua atitude para com acultura é em tudo afirmativa, porque ele leva muito asério a convicção de que nada existe sem a Palavra. Trata-se de uma atitude totalmente conversionista e jamaisacomodatícia, pois ele é muito sensível à perversão dacultura humana em seus aspectos religiosos, políticos eeconômicos. Ela nunca é dualística, pois ele deixa de ladotodas as idéias sobre a corrupção do espírito pelo corpo,e sobre a separação da humanidade em redimidos econdenados. Além disto, ele é consistente em rejeitar aação negativa contra o pecado e sempre clama pela práticapositiva, confessional, orientada por Deus, (de vida) naIgreja e na comunidade. A questão que surge é,naturalmente, se a sua obra teria sido efetiva mesmo, seele não tivesse estado associado ao movimento socialistacristão, à obra de educação e ao trabalho religioso, comos sinteticistas, com os dualistas e com os cristãosradicais. Esta questão ele teria, sem dúvida, respondidopor si mesmo com a reflexão de que nenhum pensamentocristão pode conter o pensamento do Mestre, e que assimcomo o corpo é um mas tem muitos membros, assim também é aIgreja.

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Capítulo Sétimo

“PÓS-ESCRITO NÃO-CIENTÍFICO E CONCLUSIVO”

I. CONCLUSÃO NA DECISÃO

Nosso exame das respostas típicas que os cristãos têmdado ao seu problema duradouro é inconcluso e nãoconclusivo. Ele poderia ser infinitamente desdobrado. Oestudo poderia ser mais atualizado com uma consideração deuma grande variedade de ensaios sobre o tema que teólogos,historiadores, poetas e filósofos têm publicado em anosrecentes para o esclarecimento, e às vezes para aconfusão, dos seus concidadãos e seus companheiroscristãos.1 Uma investigação mais ampla e_________1. Entre esses recentes ensaios, os seguintes podem sermencionados como ilustrativos do interesse pelo problema ealvo da discussão: Baillie, John, What Is Christian Civi-lization?; Barth, Karl, Christengemeinde und Buergerge-meinde; Church and State; Berdyaev, Nicolas, The Destinyof Man; Brunner, Emil, Justice and the Social Order;Christianity and Civilization; Cochrane, Charles Norris,Christianity and Classical Culture; Dawson, Christopher,Religion and Culture; Religion

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profunda no passado revelaria uma multidão de líderescristãos tão importantes como os que temos mencionado, quetambém lutaram com o problema e deram suas respostas,tanto em palavras como em poderosas decisões. Nóspoderíamos lançar uma rede mais ampla e puxar do mar dahistória exemplos não apenas teológicos, mas tambémpolíticos, científicos, literários e militares de lealdadea Cristo em conflito e ajustamento com os deveresculturais. Constantino, Carlos Magno, Tomas Morus, OliverCromwell e Gladstone, Pascal, Kepler e Newton, Dante,Milton, Blake e Dostoiévski, Gustavus Adolphus, Robert E.Lee e “Chinese” Gordon - estes e muitos outros mais, emtodos os campos da atividade cultural, oferecemperspectivas fascinantes de estudo àqueles que admiram oselementos entrelaçados da fé em Cristo e o exercícioracional do dever na sociedade, e se maravilham ante apossessão tenaz que Cristo exerce sobre os homens em meioaos seus labores temporais. O estudo poderia serinterminável e frutiferamente continuado pelamultiplicação de tipos e subtipos, motifs e contra-motifs,com o propósito de relacionar mais intimamente padrõesconceituais e realidades históricas, ou de reduzir a névoade incerteza que circunda todo esforço da análise da formaem meio à multiforme riqueza da vida histórica, de traçarmais nitidamente__________and. Rise of Western Culture; Eliot, T.S., The Idea of aChristian Society; Notes Towards a Definition of Culture;Maritain, Jacques, True Humanism; Niebuhr, Reinhold, Thenature and Destiny of Man; Faith and History; Reckitt M.B.(ed.), Prospect for Christendom; Tillich, Paul, The Prot-estant Era; Toynbee, Arnold, Civilization on Trial; AStudy of History. Encíclicas papais desde o tempo de LeãoXIII e conferências ecumênicas de décadas recentes têmmostrado muito interesse por vários aspectos do problema.Ver Hughes, Philip, The Pope’ New Order; Husslein, Joseph,Social Wellsprings; The Churches Survey Their Task, TheReport of The Conference at Oxford, July 1937, On Church,Community and State; da Primeira Assembléia do ConselhoMundial de Igrejas, Findings and Decisions; e também osestudos preparatórios para essas conferências: The OxfordSeries; Man’s Disorder and God’s Design.

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os limites entre pensamentos e feitos interpenetrantes eintervenientes de homens diversos.

Todavia, deve ficar evidente que nem a extensão nem orequinte do estudo poderia trazer-nos ao resultadoconclusivo que nos capacitasse a dizer: “Esta é a respostacristã”. O leitor, bem como o escritor, é, sem dúvida,tentado a ensaiar tal conclusão, pois ficará evidente,tanto para um como para o outro, que os tipos não são demodo algum mutuamente exclusivos no seu todo, e que hápossibilidades de reconciliação em muitos pontos entre asvárias posições. Talvez, também, venha a ficar claro queem teologia tanto quanto em qualquer outra ciência a buscade uma teoria que tudo abranja é de grande importânciaprática, e que uma grande obra de construção nesta esferapoderia capacitar alguém a ver mais unidade naquilo queagora está dividido, e a agir em maior harmonia commovimentos que parecem ter propósitos antagônicos.Todavia, em um ponto ou outro a gente tem de parar defazer a tentativa de dar uma resposta final, não somentepor causa da escassez do conhecimento histórico, quandocomparado com o de outros homens históricos, e da evidentefraqueza de habilidade que a gente tem no campo daconstrução conceitual, em comparação com outrospensadores, mas também pela convicção, pelo conhecimento,de que a elaboração de tal resposta, por qualquer mentefinita a que qualquer medida de fé limitada e pequenatenha sido concedida, seria um ato de usurpação dasoberania de Cristo; um ato que, ao mesmo tempo,implicaria em fazer violência à liberdade dos homenscristãos e à história não concluída da Igreja na cultura.Se tivéssemos de fazer tal tentativa, precisaríamosadmitir que o nosso lugar particular na Igreja e nahistória é tão decisivo que podemos ouvir não apenas apalavra de Deus dirigida a nós, mas toda a sua palavra.Teríamos de admitir que ao exercermos nossa liberdade deinterpretação arrasadora daquela palavra, e em obediênciaa ela, não estaríamos exercendo a liberdade de uma razão ede uma vontade finitas, mas agindo como se nossa razão enossa vontade fossem universais.

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Precisaríamos admitir, se fossemos tentados a dar aresposta cristã, sermos representantes da cabeça daIgreja, e não membros do corpo; que representamos suarazão ao invés de estarmos sujeitos a ela como mãos oupés, ouvidos ou olhos, dedos articulados ou juntasenrijadas. Nossa incapacidade de dar a resposta cristã nãoé: apenas relativa; um homem, na verdade, pode ser maiscapaz do que outro de elaborar a resposta da maioria dosseus companheiros cristãos ou de mover-se rumo a umaresposta mais esclarecedora e fiel. Porém, quaisquer quefossem as nossas capacidades para postular respostasrelativamente amplas e inteligíveis ao problema Cristo ecultura, todas elas encontrariam seu limite em umimperativo moral que ordena: “Tu podes prosseguir até esteponto, mas não além”.

Todavia, em certo sentido, devemos ir além e chegar auma conclusão. Este passo além não pode ser dado no planoda compreensão, e esta conclusão não pode ser alcançada noreino da percepção e perspectiva teóricas. Eles são,antes, dados e alcançados no movimento da consideraçãopara a ação, da percepção para a decisão. Cada crentechega à sua própria conclusão “final”, nas resoluções queenvolvem um salto da cadeira em que ele lia sobre asbatalhas antigas para o meio de um conflito presente.Nenhuma percepção especulativa do arrazoar e do crer dosoutros homens e nem a continuação da consideração dosimperativos e valores que promanam de Cristo e da culturapoderiam livrar o indivíduo cristão ou a comunidaderesponsável cristã do fardo, da necessidade, da culpa e daglória de chegar a tais conclusões nas decisões presentese na presente obediência. O estudo dos tipos de reflexão eação representadas por outros homens em outros tempos nãooferece nenhuma escapatória a este fardo de liberdade,como também não o faz nenhum outro estudo. Depois determos dito que em nosso modo de ver a situação somostomistas ou luteranos, tolstaianos ou agostinianos, temosainda de resolver uma questão presente em termosespecíficos; e naquela decisão determinaremos,

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casualmente, se as nossas reflexões a respeito de nósmesmos eram moderadamente corretas. Sem dúvida, conforme anatureza do caso, nossas decisões nos mostrarão que sempresomos mais e menos do que membros de um grupo.

Se esta é a conclusão do nosso estudo - que o problemaCristo e cultura pode e deve chegar a um fim somente emuma dimensão além de todo estudo, nas decisões livres deindivíduos crentes e comunidades responsáveis - não sesegue que não seja também nosso o dever de dar atenção àsmaneiras pelas quais outros homens têm respondido erespondem a tal questão, e o dever de inquirir quearrazoado acompanhou suas escolhas livres, relativas eindividuais. Pois crer é estarmos unidos tanto a alguém emquem cremos como também a todos aqueles que nele crêem.Pela fé, visto que cremos, somos feitos cônscios de nossarelatividade e de nosso relacionamento (relatedness). Pelafé, nossa liberdade existencial é reconhecida bem comoconcretamente exercida no contexto de nossa dependência.Decidir em fé é decidir em plena consciência destecontexto.

O que queremos dizer aqui pode ficar mais claromediante um exame de caráter das decisões que tomamos naliberdade da fé. Parece que elas são tomadas à base depercepção e fé relativas, mas não são relativistas. Sãoelas decisões individuais, mas não individualistas. Sãotomadas em liberdade, mas não em independência; sãotomadas no momento, mas não são não- históricas.

II. O RELATIVISMO DA FÉ

As conclusões a que chegamos individualmente, aoprocurarmos ser cristãos em nossa cultura, em pelo

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menos quatro aspectos são relativas. Elas dependem doconhecimento parcial, incompleto e fragmentário doindivíduo; são relativas segundo a medida de sua fé e desua descrença; são relacionadas com a posição históricaque ele ocupa e com os deveres de sua situação nasociedade; e interessam-se pelos valores relativos dascoisas. Não é tão necessário elaborarmos o primeiro ponto.Embora o mal que o bom homem ignorante pratica em nossostempos seja alegremente exposto por homens que pensam quea ciência é um substituto da moralidade, também aquelesque sabem que a moralidade não substitui a ciência devemcontinuamente expor este mal com atitude dearrependimento. O Cristo que elogiou um bom samaritano porpassar óleo e vinho nas feridas dificilmente honraria umhomem que, educado segundo os métodos contemporâneos depronto socorro, considerasse o exemplo bíblico como seuguia absoluto. Na política, na economia e em qualqueroutra esfera de cultura, não menos do que na medicina, nósfazemos o melhor que podemos, à base do que sabemos sobrea natureza das coisas e sobre o processo da natureza, maseste melhor é sempre relativo ao conhecimento socialfragmentário e ao ainda mais fragmentário conhecimentopessoal. Tanto o nosso conhecimento técnico, quanto anossa, compreensão filosófica - os padrões mais amplosmediante os quais obtemos orientação em nosso mundocomplexo - tornam relativas as nossas decisões. Todapessoa tem uma espécie de filosofia, alguma visão geral domundo, que para outros homens de outras visões parecerámitológica. Tal filosofia ou mitologia afeta as nossasações, tornando-as relativas. Elas não são menos relativasquando afetadas pela mitologia do século vinte do quequando influenciadas pela mitologia do primeiro século.Não nos aventuramos a agir à base do último e a tratar dosdoentes mentais exorcizando demônios; procuraremos usarnossa melhor compreensão da natureza e das relações deespírito e corpo. Todavia, ficaremos sabendo que o que érelativamente verdadeiro para nós abrange, também,elementos mitológicos.

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Nossas soluções e decisões são relativas, porque serelacionam com a medida fragmentária e frágil de nossa fé.Ainda não encontramos, e não encontraremos - antes queCristo venha de novo - um cristão na história cuja fégovernasse de tal forma sua vida, que todo o seupensamento se submetesse a ela, e para quem todo momento elugar se situassem dentro do reino de Deus. Cada homem temencontrado a montanha que não pôde remover e o demônio quenão pôde exorcizar. E isto ocorre, evidentemente, assim,conosco. Por vezes, é a recalcitrância da cultura pagãcomo uni todo que leva alguém a dizer: “a misericórdia e opoder de Deus não podem mover esta coisa”. Por vezes, é omal da carne que leva ao julgamento de que não é possívela Deus redimir o homem no corpo e na história quecomeçaram com a sua criação. Às vezes, a fé em sua bondadee poder fraqueja à vista dos malfeitores entre os homens,animais, ou outros poderes da natureza. E onde quer que afé se detenha, ali se detém a decisão em fé, bem como oarrazoar na fé; e ali começam a decisão e o arrazoar dadescrença. Se eu não creio que o poder último que presideas sociedades humanas seja misericordioso para com elas,mas apenas para com os indivíduos, então eu não apenas mevoltarei para o serviço dos indivíduos, mas orientarei asminhas atitudes sociais pela minha descrença subjacente arespeito da impossibilidade de redenção para a sociedade.Se não tenho nenhuma confiança em que o poder que semanifesta na natureza seja Deus, eu aceitarei a bondade danatureza sem gratidão, e os seus golpes semarrependimento, embora eu seja sempre tão cônscio de Deusquando encontro espíritos graciosos ou críticos dentro daIgreja ou na sociedade. Toda a nossa fé é fragmentária,embora nem todos tenhamos os mesmos fragmentos de fé. Apequenez da fé do segundo século se tomou evidente em suaatitude para com o “mundo”; a pequenez da medieval surgiuem sua relação com os hereges; a sua pequenez nos temposmodernos se manifesta em nossa atitude para com a morte.Mas a fé é uma coisa muito menor e muito mais fragmentáriado que

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o mostram os seus fracassos mais evidentes. Quandopensamos e agimos em fé, e damos assim nossa respostacristã, agimos à base de uma fé parcial e retalhada, demodo que é provável que um pouco de Cristianismo possafazer-se presente em nossa resposta.

A relatividade cultural e histórica de nosso arrazoare de nossas decisões é evidente não apenas quandoconsideramos as mudanças históricas na esfera doconhecimento, mas também quando pensamos em nossos deveresno processo histórico ou na estrutura social. Uma Igrejagrande e poderosa não pode fazer responsavelmente o queuma seita pequena e perseguida descobriu como requeridodela. Os cristãos em uma cultura industrial não podempensar e agir como se estivessem vivendo em uma sociedadefeudal. É verdade que não estamos mais distanciados deCristo, por vivermos 1950 anos depois do nascimento deJesus, do que estiveram os discípulos que viveramquinhentos ou mil anos atrás; sem dúvida estamos bemdistanciados de alguns dos nossos alegados contemporâneosque nunca chegaram e nunca chegarão a ter nossa visão.Mas, deste ponto de vista particular na história social,nós necessariamente vemos Cristo dentro de um background eouvimos suas palavras em um contexto que são um tantodiferentes do background e contexto da experiência dosnossos predecessores. A nossa situação histórica, com osseus pontos de vista e seus deveres, é mais complicada, emvirtude da relatividade de nossa situação na sociedadecomo homens e mulheres, pais e filhos, governantes egovernados, professores e estudantes, trabalhadoresmanuais e intelectuais, etc. Devemos tomar nossas decisõese desenvolver o nosso arrazoar, e conseguir nossaexperiência como homens particulares em temposparticulares e com deveres particulares.

Finalmente, há uma relatividade de valores que devemoslevar em consideração em todas as nossas escolhas. Tudoaquilo com que lidamos tem muitas relações de valor; e temvalor para nós mesmos, para outros homens, para a vida,para a razão, para o Estado e assim

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por diante. Embora partamos de uma corajosa afirmação defé - que todos os homens têm valor sagrado por serelacionarem com Deus, e que, portanto, são iguais emvalor - devemos também levar em conta que todos os homensestão relacionados com outros seres finitos, e que nestasrelações eles não têm igual valor. Aquele que ofende “umdos pequeninos” não é igual em valor, para “o pequenino”,ao seu benfeitor. O sacerdote, o levita e o samaritanodevem ser considerados iguais em valor, como objetos daavaliação divina; mas eles não são iguais em valor para avítima dos assaltantes, a desperto de tudo quanto pensarema respeito de si mesmos. Em Cristo não há nem judeu nemgrego, nem escravo nem livre, nem masculino nem feminino;mas na relação com os outros homens surge uma multidão deconsiderações de valor relativo. Nada (nem mesmo averdade) tem valor apenas em uma relação - para nadadizermos da noção de valor intrínseco. Embora a verdadetenha valor eterno, valor para Deus, ela também se põe emrelação de valor para com a razão humana, para com a vida,para com a sociedade e sua ordem e para com o eu. Nossaobra na cultura se interessa por todos esses valoresrelativos dos homens, idéias, objetos e processosnaturais. Na justiça, tratamos de valores relativos dehomens criminosos e honestos com referência a outroshomens; na vida econômica, nos preocupamos com valoresrelativos das coisas e atitudes que estão relacionadas commilhões de seres em múltiplas e mútuas relações. Emqualquer obra de cultura, nós, homens relativos, com osnossos pontos de vista relativos e relativas avaliações,tratamos com valores relativos; e assim tornamos nossasdecisões.

Contudo, o reconhecimento e a aceitação de nossarelatividade não significam que ficamos sem um absoluto.Em face de suas relatividades, os homens parecem ter trêspossibilidades: eles podem tornar-se niilistas e céticosconsistentes, afirmando que nada há em que se possaconfiar; ou podem se refugiar na autoridade de algumaposição relativa, afirmando que uma Igreja, ou

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uma filosofia, ou um valor, como o da vida do eu, seja umabsoluto; ou podem aceitar as suas relatividades com fé noAbsoluto infinito, a quem todas as suas visões, todos osseus valores e todos os seus deveres relativos estãosujeitos. No último caso, eles podem fazer suas confissõese tomar suas decisões com a confiança e a humildade comque aceitam aperfeiçoamento e correção e mesmo com aconfiança e a humildade com que aceitam conflito de outrose com outros que mantêm a mesma relação com o Absoluto.Eles estarão capacitados, então, em seu conhecimentofragmentário, a enunciar com convicção aquilo que têmvisto e ouvido, a verdade para eles; mas eles não argüirãoque se trata de toda a verdade, e nada mais do que averdade, e nem serão dogmáticos e nada dispostos aprocurar o que outros homens têm visto e ouvido daquelemesmo objeto que eles conhecem fragmentariamente. Cadahomem que olha para o mesmo Jesus Cristo fará suadeclaração daquilo que Cristo significa para ele; mas nãoconfundirá esta declaração relativa com o Cristo absoluto.Maurice tinha um princípio, que ele herdou de J. S. Mill,e que nos é recomendável. Ele afirmava que os homens emgeral estavam certos no que afirmavam e errados no quenegavam. O que negamos é, geralmente, algo que paira forade nossa experiência, e a respeito do que, portanto, nadapodemos dizer. O materialista deve ser ouvido quandoafirma a importância da matéria; mas que faz ele ao negara importância do espírito, a não ser afirmar que nada sabea respeito do mesmo? Sem dúvida, é verdade que a cultura émá; porém quando Tolstoi afirma que nada de bom existenela, ele admite ter transcendido seu ponto de vistarelativo e poder julgar com o juízo de Deus. A fé,exatamente por reconhecer um ponto de vista absoluto, podeaceitar a relatividade da situação e do conhecimento docrente.Se não tivermos alguma fé na absoluta fidelidade de Deus-em-Cristo, ser-nos-á, sem dúvida, difícil, discernir arelatividade da nossa fé. Porque aquela fé é fraca, nósnos esforçaremos para transformar nossa fé pessoal

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ou social em um absoluto. Mas com a pequena fé que temosna fidelidade de Deus, podemos tomar nossas decisões depequena fé com alguma confiança, e com a certeza do perdãodo pecado envolvido em nossa atitude. Assim, também, ocumprimento de nossos deveres relativos em nossos tempos,lugares e vocações particulares, estão longe de serrelativista e auto-afirmativo, quando feito em obediênciaao mandamento do Absoluto. Ele se torna relativista efalsamente absoluto quando exijo que aquilo que para mim écerto seja o certo e nada menos que o certo, e quando, emminha relatividade, exijo que aquilo que faço, emobediência, seja digno de ser considerado por mim mesmo,por outros homens e por Deus como certo, à parte todas asações complementares, precedentes e conseqüentes, em minhaprópria atividade, a atividade dos meus semelhantes, e,acima de tudo, a atividade de Cristo. Pois a fé noAbsoluto, como conhecida em e através de Cristo, deixaclaro que nada que faço ou possa fazer, em minhaignorância e meu conhecimento relativos, em incredulidadee em fé, no tempo, no lugar e na vocação, está certo com aperfeição da ação completa e terminada; que nada estácerto sem o aperfeiçoamento, correção e perdão de umaatividade da graça operando em toda a criação e naredenção.O tratar, como devemos, com os valores relativos depessoas, coisas e movimentos, não nos envolverá emrelativismo, na medida em que nos lembrarmos de que todasestas realidades, que têm muitos valores em mútuasrelações, têm uma relação com Deus que nunca deve serperdida de vista. É verdade que, se eu considerar apenas ovalor que o meu próximo tem para Deus e ignorar o seuvalor para os outros homens, não haverá lugar para ajustiça relativa ou para qualquer tipo de justiça. Masnesse caso não estarei agindo com piedade e sim comimpiedade, pois não estarei exercendo qualquer fé no Deusreal, o qual não criou nem a mim nem a meu próximo comoseus unigênitos filhos, mas sim como irmãos. Se euconsiderar o meu próximo apenas

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nestas relações de valor com a minha pessoa, não haverálugar também para justiça, mas apenas para a reciprocidadedo olho por olho e do auxilio da mão pelo auxílio da mão.Mas se eu o considerar em suas relações de valor com todosos seus próximos, e também em sua relação de valor comDeus, então haverá lugar não apenas para relativa justiça,mas mesmo para a formação e reformação de julgamentosrelativos por referência à relação absoluta. A relação como Absoluto não entrará em consideração como um pensamentosubseqüente - como quando um padre é mandado paraacompanhar um criminoso em seu percurso até a força - mascomo um pensamento prévio, como um pensamento ao lado deoutro, que determina que tudo quanto se faz seja feito porele e para ele. Provisões para julgamento justo, paraverificação e contrapeso de julgamentos parciais erelativos, para a proibição de certo tipo de punição, parao cuidado físico e espiritual do ofensor, para a suarestauração para a sociedade - tudo isto bem pode refletiro reconhecimento do seu valor além de todos os valoresrelativos. A justiça relativa se torna relativista quandoalgum valor relativo substitui o valor verdadeiramenteabsoluto, como quando o valor do homem para o seu instadoou sua classe, ou sua raça biológica é aceito como seuvalor último. Há uma diferença, mesmo no trato com osanimais, entre o comportamento dos homens relativistas e odaqueles que reconhecem uma relação da mais humildecriatura com o Senhor e Doador da vida. Na economia e naciência, na arte e na técnica, as decisões da fé em Deusdiferem das decisões da fé em absolutos falsos, não porignorarem os valores relativos das coisas, mas por seremtomadas em atenção às relações absolutas de valor.

Tal combinação de percepção e dever relativos com a féem Deus não envolvem transigência, pois não se podetransigir entre valores e interesses incomensuráveis; umpadrão absoluto não pode sofrer transigência: ele só podeser quebrado. Que estamos sempre a nos esquecer do valorpara Deus de nossos semelhantes e das

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outras criaturas; que estamos sempre a fazer escolhas devalores relativos sem referência à relação de valorabsoluto; que as escolhas que chamamos cristãs são tomadasem descrença - tudo isto, sem dúvida, é verdade. Mas nósnão poderemos nos desculpar dizendo que fizemos o melhorarranjo possível. Tentaremos, antes, reconhecer nossainfidelidade e, em fé, confiar na graça que transformaránossas mentes, enquanto, a custa do sofrimento inocente,curará as feridas que abrimos e que não podemos curar.

III. O EXISTENCIALISMO SOCIAL

Há um outro termo que podemos aplicar às decisões quetemos de tomar como cristãos no meio da história cultural.São elas decisões tanto existenciais quanto relativas, asaber, decisões que não podem ser feitas pela indagaçãoespeculativa, mas devem ser tomadas em liberdade por umagente responsável atuando no presente momento, à basedaquilo que é verdadeiro para ele. Kierkegaaxd, a quempertence a honra de ter sublinhado e ministrado estanatureza existencial do eu (self) irredutível, mais do quequalquer outro pensador moderno, pode ser uma espécie deguia para nós, em nosso esforço de entender como, em facedo nosso problema duradouro, devemos chegar à nossaresposta, antes que a a resposta cristã. Mas ele podefacilmente vir a ser um guia falaz, se aceitarmos suasnegações ao lado de suas afirmações.

No Concluding Unscientific Postscript, Kierkegaard temo seu alter ego, Johannes Climacus, apresentando oproblema do Cristianismo da seguinte maneira: “Sem terentendido o Cristianismo… eu ainda entendo o bastante paraapreender que ele se propõe conceder uma felicidade eternaao homem individual, presumindo

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assim um interesse infinito pela sua felicidade como con-ditio sine qua non, em virtude do qual o indivíduo odeiapai e mãe, e então, sem dúvida, menospreza sistemas eesquemas especulativos da história universal”.2 Em vista detal ponto de partida surge o argumento de que, seja qualfor a verdade ou inverdade a respeito das Escrituras ou dedezoito séculos de história cristã, e qualquer que seja averdade objetiva para o filósofo, que pôs de lado ointeresse pessoal por amor à objetividade - tudo istonenhuma relevância terá para o indivíduo que estáapaixonadamente preocupado com o que é verdade para ele.Tal verdade subjetiva - verdade para mim - é encontradaapenas em fé e em decisão. “A decisão está no sujeito… oser um cristão não é determinado pelo que do Cristianismo,mas pelo como do cristão”. Este como é fé. Um cristão é umcristão pela fé. E fé é uma coisa muito diferente de todaaceitação de doutrina e de toda experiência interior.“Crer é algo especificamente diferente de qualquer outraapropriação e interiorização. Fé é a incerteza objetivacausada pela repulsa ao absurdo a que se agarra a paixãoda interioridade, a qual se intensifica até o mais altograu, no presente caso.…A fé jamais se deve contentar coma ininteligibilidade, pois a expressão da paixão da fé éprecisamente a relação com ou a repulsa ao absurdo aoininteligível”.3*

Muito disto parece enquadrar-se dentro de nossasituação, na medida em que nos confrontamos com as__________2. Op. cit., pág. 19.

3. Ibid., pág. 540.

*. No original “To believe is specifically different fromall other appropriation and inwardness. Faith is the ob-jective uncertainty due to the repulsion of the absurdheld fast by the passion of inwardness, which in this in-stance is to the utmost degree. …Faith must not rest con-tent with unintelligibility; for precisely the relation toor the repulsion from the unintelligible, the absurd, isthe expression for the passion of faith”, pág. 242.

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nossas escolhas forçadas, na presença de Cristo e de nossacultura. Temos de decidir; temos de proceder da história eda especulação para a ação. E, ao decidirmos, temos deagir à base daquilo que é verdadeiro para nós, com apaixão da fé; em nossa decisão temos de ir além daquiloque é inteligível, e, todavia, temos também de nos apegara ele.

Mas há também muito nesta doutrina de decisão e fé quenão é verdade para nós. Nossas decisões são individuais, écerto, mas não são individualistas - como se as tivéssemostomado para nós mesmos, por nós mesmos e em nós mesmos.Não são individualistas no sentido kierkegaardiano, antesde mais nada, porque o que está em questão não é simplesou primariamente nossa felicidade eterna. Nós não podemospretender, por certo, não estarmos envolvidos; mas oJohannes Cliniacus, que fala por muitos crentesapaixonados - e entre eles se não o presente autor, pelomenos aquele eu (self) a quem ele se confiaria - formulaassim a sua questão: “Sem ter entendido Cristo, mesmoassim entendi o bastante para saber que ele se propõeoferecer infinita felicidade e vida eterna aos homens e àhumanidade, e assim presume ou cria, naqueles a quem elevem, um interesse infinito pela felicidade eterna dasdemais criaturas, suas companheiras, como e conditio sinequa non; um interesse em virtude do qual eles odiarão tudoquanto seja puramente particular, seu pai e mãe e suaprópria vida, e assim também, sem dúvida, menosprezarãosua dialética subjetiva e suas histórias particulares”. Oproblema existencial, enunciado em desespero ou em fé, nãopode ser formulado simplesmente em termos do “eu”. Nósestamos envolvidos, e cada “eu” vai se defrontar com o seudestino em nossa salvação ou condenação. Que será feito denós? Qual é o nosso de onde e para onde? Qual é o sentido- se houver algum - de toda esta marcha da humanidade, coma qual estou marchando? Por que fomos nós - esta raçahumana, esta realidade histórica singular - postos emexistência? Qual é a nossa culpa, e a nossa esperança? Que

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poder nos confronta em nosso nascimento e em, nosso fim?Que devemos fazer para sermos salvos da vilania e davaidade, da vacuidade e da futilidade? Como poderemos nós

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ter um Deus amorável? Sem dúvida, levantamosindividualmente nossas perguntas existenciais, e não nosesquecemos dos nossos eus (selves) pessoais e individuais.Mas a pergunta existencialista não é individualista; elasurge em sua mais apaixonada forma, não em nossa solidão,mas em nossa comunhão comunitária (in our fellowship).Trata-se de uma questão existencial de homens sociais, quenão têm o seu próprio ser (self) separado de suas relaçõescom os outros eus humanos.

O existencialismo kierkegaardiano põe de lado oproblema da cultura como irrelevante para a fé, não pelofato de ser existencialista e prático, mas por serindividualista e abstrato, tendo abstraído o eu dasociedade tão violentamente como qualquer filósofo jamaisabstraiu a vida da razão de sua existência como um homem.Ele abandona o problema social, não por ser insistente naresponsabilidade do indivíduo, mas por ignorar aresponsabilidade do eu (setf) para com os outros eus. SeusJosués nunca dizem: “Eu e a minha casa serviremos aoSenhor”, pois eles não têm casa. Seus “indivíduosexistentes” não podem nem mesmo conhecer o significado dopronome “eu”* na afirmação apaixonada de Paulo: “Em Cristodigo a verdade, não minto, dando-me testemunho a minhaconsciência no Espírito Santo, que sinto grande tristeza econtinua dor no meu coração. Porque eu mesmo poderiadesejar ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos,que são meus parentes segundo a carne”. Estes homens quesão da mesma raça [parentes segundo a carne], não sãoindivíduos solitários, sendo, antes, seres da mesmacultura. Eles “são israelitas, dor, quais é a adoção defilhos, e a glória, e os concertos, e a lei, e o culto eas promessas;_________* No original - the meaning of the capital “I” (N.T.)

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dos quais são os patriarcas, e dos quais é Cristo, segundoa carne”.4

Nossas decisões cristãs individuais não sãoindividualistas, em segundo lugar, porque não podem sertomadas em separado, à base de uma verdade que é “verdadepara mim”. Nós não nos confrontamos com um Cristo isolado,conhecido por nós independentemente de uma companhia detestemunhas que o cercaram, que apontam para ele, queinterpretam este e aquele aspecto de sua presença, que nosexplicam o sentido de suas palavras, que dirigem a nossaatenção para as relações entre ele, o Pai e o Espírito.Sem um confronto direto com ele, não haverá nenhumaverdade para mim, em todo este testemunhar, mas sem ostestemunhos corroborativos de companheiros, colaboradorese instrutores, ficarei à mercê da minha imaginação. Semcompanheiros e sem mestres nós não conheceríamos nem gatosnem cães, seus nomes e caracteres distintivos - se bemque, sem encontrá-los em nossa experiência, também não osficaríamos conhecendo. Quanto mais importante for o nossoconhecimento, tanto mais importantes serão também, nãoapenas o encontro franco, mas ainda o companheirismo comos demais conhecedores. Embora a voz da consciência nãoseja a voz da sociedade, ela não é inteligível sem a ajudamedianeira de outros que a têm ouvido. Não é no debateinterno e solitário, mas no diálogo vivo do eu (self) comoutros eus (selves) que chegamos ao ponto onde podemostomar uma decisão e dizer: “Seja qual for o dever dosoutros homens, este é o meu dever”, ou, “Seja o que forque os outros façam, isto é o que eu devo fazer”. Sem aprimeira cláusula – “Seja o que for que os outro pensem oufaçam” - a segunda não poderia surgir. Assim, também, é ocaso com os confrontos com Cristo. Se depois do longodiálogo com Marcos, Mateus, João, Paulo, Harnack,Schweitzer, Bultmann e Dod, eu chegar à conclusão de queaquilo que Cristo significa para_________4. Romanos 9: 1-5

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outros e requer de outros é o mesmo que ele significa paramim e requer de mim, então estarei em uma posiçãototalmente diferente daquela em que eu deveria estar - seessa fosse uma possível posição - caso fosse confrontadopor ele somente. O Cristo que me fala sem autoridades esem testemunhas não é um Cristo real; ele não é o JesusCristo da história. Ele pode ser nada mais que a projeçãodaquilo que eu desejo [que ele seja] ou de minha compulsão[sobre ele]. Por outro lado, o Cristo a respeito de quemouço falar apenas através das testemunhas, mas com quemnunca me encontro em minha história pessoal, nunca éCristo para mim. Temos de tomar nossas decisõesindividuais em nossa situação existencial, mas não astomamos individualmente como eus (selves) solitários emconfronto com um Cristo solitário.O existencialismo, que tem ressaltado a realidade dadecisão e de seu caráter livre e individual, nos tem feitocônscios, também, da significação do momento. A razãoespeculativa e contemplativa pode viver no passado, nofuturo ou fora do tempo (in timelessness). Ela traça asseqüências causais e as conexões lógicas. Como razãohistórica ela percorre o primeiro, o quarto século ou oséculo treze e vê o mundo de Pedro, de Agostinho e deTomás de Aquino. Trata-se de uma razão impessoal, quetenta esquecer as prementes preocupações individuais doarrazoador. Mas o pensador tem de voltar de suas viagens,pois ele é um homem. Como um homem, ele tem de tomardecisões; e o tempo da decisão não é nem o passado nem ofuturo, mas o presente. A razão especulativa, que temperguntado sobre o que tem acontecido e por que, ou sobreo que acontecerá é por que, deve ceder ante o arrazoadorprático que pergunta: “Que devo fazer agora?” No momentoda decisão presente, o eu se torna consciente de si mesmo;e na consciência de sermos nós (in awareness of selfhood)nos tornamos cônscios do presente. O momento presente é otempo de decisão; e o significado do presente é aquele dadimensão do tempo de liberdade e de decisão.

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Esta insistência no caráter decisivo do momentopresente e na descontinuidade entre ele e o passado, ofuturo, ou a atemporalidade (timelessness) com a qual nospreocupamos na reflexão, é significativa para nós, quandotratamos do problema Cristo e cultura. Chegamos a um pontoem que devemos deixar nossos estudos daquilo que Tomás deAquino e Lutero pensaram e decidiram a respeito dasexigências de razão e revelação, e devemos assumir nossaprópria posição no presente reconhecimento ou não de suasexigências quanto a nós. E esta decisão deve ser repetidaa cada momento presente. Não podemos nos basear, quandoenfrentamos este (momento presente), em uma decisãosituada em nosso passado, como também não podem ospacifistas ou os adeptos da coerção, ao se defrontarem comuma nova guerra, confiar em decisões passadas sobre aobediência prestada aos imperativos “Não matarás” e “Ama oteu próximo como a ti mesmo”. Nem podemos tentar viver nofuturo, por referência ao tempo em que o reino de Deusterá vindo ou se tornado perfeito, pois devemos decidiragora, na presença do reino [ainda] oculto e em nossaimperfeição.

Contudo, embora seja verdade que o eu responsável,agindo no presente momento, deva deixar atrás o passado eo futuro de especulação e de reflexão, não é verdade quedecidimos em presente não histórico, sem conexão com opassado e cora o futuro. Cada momento presente em quedecidimos está cheio de memórias e de antecipações; e emcada momento presente, algum outro com o qual não nosdefrontáramos antes, e com o qual nem esperávamos nosencontrar de Novo, se faz presente para nós. O que torna omomento de crise, o presente critico e decisivo, tão plenode sentido, não é o fato de o eu estar sozinho aqui com aresponsabilidade de decisão, mas o fato de haver alguémco-presente com ele. E este alguém não seria importante senão fosse relembrado e esperado. Um soldado na hora certado ataque sem dúvida está altamente consciente do presentecritico e da liberdade da

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obediência com que ele enfrenta a ordem de avançar.Todavia, o que está presente para ele não é meramente oseu eu (self) livre e o momento, mas, antes, aquele eu comas suas memórias do passado de fraqueza e de firmeza, oinimigo relembrado e antecipado, e os seus companheiros aquem ele está unido pela lealdade. Cada “Agora” é um“Agora” histórico, em que um eu histórico se faz co-presente com um histórico outro e com os companheiroshistóricos: trata-se de um presente pleno de memória e deantecipação, embora ambas se focalizem na decisão dopresente.

Para o cristão, a decisão critica e presente delealdade e deslealdade a Cristo, em meio às suas tarefasculturais, é sempre tal decisão histórica. Ele se defrontacom um Cristo co-presente e contemporâneo; mas este Cristotem uma história, é lembrado e é esperado. O cristão temuma história de relações com Cristo. Ele relembra suasnegações e seus enganos de interpretação das palavras deCristo. O Cristão é um membro de uma companhia que tem umahistória de relações com ele e com Cristo. Sercontemporâneo de Cristo é ser contemporâneo de alguém queestava presente para Agostinho bem como para Paulo, e sefaz presente no menor dos irmãos. O existencialismoindividualista, abstrato, de Kierkegaard não é fiei nãoapenas ao caráter social do e umas também à naturezahistórica de seu presente e ao caráter histórico deCristo. Ele diz: “O que realmente ocorreu (o passado) nãoé (exceto em um sentido especial, isto é, em contraste coma poesia) o real. Falta-lhe o determinante, que é odeterminante da verdade (como interioridade) e de toda areligiosidade, o para ti. O passado não é realidade - paramim; somente o contemporâneo é realidade para mim. Aquilocom que vives contemporaneamente é realidade - para ti. Eassim cada homem pode ser contemporâneo apenas da idade emque vive - e então de algo mais: da vida de Cristo naterra; pois a vida de Cristo na terra, a história

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sagrada, se apóia em si mesma, sozinha, fora da história.… Na relação com o absoluto só existe um tempo: opresente. Para quem não é contemporâneo do absoluto omesmo não tem existência. E como Cristo é o absoluto, éfácil de se ver que com respeito a ele só existe umasituação: a da contemporaneidade. Os quinhentos, ossetecentos, os mil e quinhentos, os mil e oitocentos anosnão vêm ao caso. Eles não o mudam nem de modo algumrevelam quem ele era, pois ele é revelado apenas à fé”.5

Somos tentados a reagir ante esta mistura de verdadeiraafirmação e de falsa negação, esta confusão do tempo do eucom o tempo de seu corpo, e ante a lastimável solidão deum homem sem companheiros. Somos contemporâneos de homensque em seus pensamentos e atos representam a raça humana;somos contemporâneos da humanidade em sua história, a quepertencem os mortos fisicamente como os que existembiologicamente; somos contemporâneos dos pecados dos paisvisitados nos filhos até a terceira ou quarta geração, ede sua guarda leal dos mandamentos, pela qual recebemos arecompensa; somos contemporâneos da Igreja, a companhia detodos os contemporâneos de Cristo. E então somoscontemporâneos de algo mais: do absoluto, o Deus deAbraão, Isac e Jacó, [Deus] dos vivos, antes que dosmortos, aquele que em Cristo enfeixa todos os tempos,Deus-em-Cristo e Cristo-em-Deus, de quem nos lembramos e aquem esperamos, mesmo quando o encontramos no menor dosnossos irmãos, e nos julgamentos que executa através dosseus servos involuntários. Nossas decisões devem sertomadas no momento presente - mas na presença de sereshistóricos cuja história tem sido feita sagrada pelasrelembradas ações históricas daquele que habita aeternidade.__________5. Training in Christianity, págs. 67 e seguinte

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IV. LIBERDADE EM DEPENDÊNCIA

Em nosso presente histórico tomamos nossas decisõesindividuais com liberdade e em fé; mas não as tomamos emindependência e sem (o concurso da) razão.

Nós as tomamos em liberdade porque temos de escolher.Não somos livres para não escolher. A escolha estáenvolvida em nossa resolução de esperar um pouco, antes denos comprometermos a tomar uma linha de ação; na decisãode não interferirmos na ação e de sermos expectadores; noconsentirmos em aceitar uma autoridade para orientar todasas nossas escolhas menores. Todavia, embora escolhamos emliberdade, não somos independentes, pois exercemos nossaliberdade no meio dos valores e poderes que não temosescolhido, mas a que estamos presos. Antes de escolhermosviver temos sido escolhidos dentro da existência edeterminados a amar a vida como um valor. Não escolhêramosa existência humana, mas fomos eleitos membros dahumanidade. Não escolhêramos ser racionais antes que seresinstintivos; nós raciocinamos porque temos de fazê-lo. Nãoescolhêramos o tempo e o lugar do nosso presente, masfomos designados para estar neste posto, nesta hora deguarda ou de batalha. Não escolhêramos ser seres sociais,incomensuravelmente independentes de nossos companheiros,nem escolhêramos nossa cultura; temos chegado à nossaconsciência de nós mesmos dentro de uma sociedade e emmeio às obras humanas [já] estabelecidas. Dentre estas, avida, a humanidade, a razão, a sociedade e a cultura podemser não apenas poderes, mas também valores e bens a quetemos sido unidos por um amor necessário. Não somoscapazes, é verdade, de viver com qualquer deles naausência de liberdade. Mesmo o viver requer o nossoconsentimento; continuamos a ser humanos apenas medianteescolhas contínuas; não somos racionais sem esposarmos arazão, e nem sociais sem nos comprometermos com os nossospróximos; não podemos ser “completamente”

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no aqui e no agora sem que tentemos ser. Mas tem sempreexistido uma escolha precedendo a nossa, e vivemos nadependência dela ao fazermos nossas escolhas menores entreas coisas que são boas para a vida, razão e sociedade.

Tomamos nossas livres decisões não apenas em taldependência de suas origens, que estão além do nossocontrole, mas também na dependência de conseqüências queescapam ao nosso poder. A história da nossa culturailustra de várias e múltiplas maneiras esta dependência denossa liberdade em relação às conseqüências que nãoescolhemos. A decisão de Colombo de navegar rumo ao oeste,a decisão de Lutero de atacar o mercado das indulgências,a resolução do congresso americano de declarar aindependência das colônias - todas foram feitas semprevisão ou desejo de conseqüências em longo prazo. Semdúvida, o mesmo ocorre com as escolhas grandes e sociais,bem como com as pequenas e pessoais do nosso momentopresente. Que reações ou decisões provocarão as nossasações, da parte de outros? Que entrelaçamento de processosnaturais e morais resultará de nossa escolha no sentido deentrarmos para uma vida de casamento leal, por exemplo, ouno sentido de nos aventurarmos a defender uma naçãoinvadida? Isto não pode nem saber nem planejar. Nósescolhemos e nos sujeitamos a muitas escolhas que não sãonossas.

A nossa última questão, nesta situação existencial deliberdade dependente, não é se escolheremos de acordo coma razão ou pela fé, mas se escolheremos com umaincredulidade raciocinante ou com uma fé que arrazoa. Emincredulidade faremos nossas escolhas como homens cujaexistência esteja dependendo de uma casualidade, de querealmente não se pode depender. Pela casualidade,pensaremos, temos sido “lançados na existência”, e pelacasualidade temos, em nossa individualidade, chegado aeste aqui e a este agora particulares e com estaconstituição particular. Pela casualidade nós somoshomens, e não bestas; pela casualidade

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nós somos racionais. Quando raciocinamos a respeito denossas decisões neste contexto, o elemento de casualidadecomeça a invadir o próprio conteúdo de nossas escolhas; euma espécie de liberdade arbitrária do momento se impõe emnosso existencialismo ateu. Se se vai jogar fora a vidaque tem sido lançada em nosso caminho, se se casa ou senão se casa, se não resistimos ou se lutamos - estas sãoas questões que o eu existencialista, livre e ateísta,decide, no vácuo - isto é, arbitrariamente.

Há uma outra possibilidade - que escolhamos eraciocinemos em fé. Embora falemos dela como se a mesmafosse a possibilidade que escolhemos, parece claro, quandoatentamos para ela, que muito mais do que a vida e a razãoela é um poder e um valor pelos quais temos sidoescolhidos. Trata-se de um bem que devemos receber, a quedevemos consentir e a que devemos nos agarrar; trata-se dealgo que iniciamos e escolhemos em liberdade independente.Que fé é esta pela qual temos sido escolhidos, e na qualse requer que façamos nossas escolhas menores?

Quando Kierkegaard considerava a fé, ele salientavaque esta era uma paixão de interioridade (inwardness), queela era objetivamente incerta, e que era uma relação com oabsurdo. Seguindo nosso método prévio, podemos tentartanto aceitá-lo como rejeitá-lo, dizendo que esta [fé] éuma paixão íntima orientada rumo a outrem; que a mesma étão subjetivamente certa como objetivamente incerta; e queé a relação com o absurdo que torna possível o raciocíniona existência. A paixão da interioridade que encontramosna fé é a intensidade de lealdade com que nos agarramosnão a nós mesmos, mas àquele outro, sem o que as nossasvidas não têm sentido. Onde quer que exista lealdade, aliestá esta paixão, com o seu significado reflexivo para oeu. O nacionalista e o racionalista, e toda pessoa que temuma causa, deixam transparecer a presença desta paixão deinterioridade quando o princípio a que se unem é atacado.A fé, neste sentido, precede todo arrazoar,

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pois sem uma causa - seja ela a verdade, a vida, ou aprópria razão - nós não meditamos. Quando dizemos quevivemos pela fé e decidimos em fé, bem podemos estardizendo - pelo menos - que vivemos pela união íntima a umobjeto de lealdade. Todavia, fé não é simplesmentelealdade; é certeza também, é confiança no objeto rumo aoqual a paixão íntima se dirige; é a confiança em que acausa não nos deixará em falta, e não permitirá quefracassemos. Tal confiança é bem verdade, está vinculada auma espécie de incerteza objetiva; mas não é a incertezaque faz dela a fé. E se argumentássemos assim, seríamoscomo um moralista que define o dever como aquela condutaque corre contra a inclinação. Eu posso não estarconsciente de um dever como dever, a menos que encontre aresistência da inclinação; e posso não estar cônscio daextensão de minha confiança a não ser que a mesma sejaexercitada na presença da incerteza objetiva. Mas aconsciência do fato de que confio pode ser inversamenteproporcional à realidade da minha confiança. Estarei maiscônscio do fato de estar agindo em fé quando confio minhafortuna a um homem desconhecido do que quando a confio aum banco estabelecido. Não estarei confiando menos noúltimo, pois ainda neste caso estarei contando com algoque não é objetivo - a saber, com a fidelidade, com afidedignidade dos indivíduos, dos homens que se subjugarama promessas.Aqui estão, portanto, duas linhas de fé: lealdade econfiança. E estas estão em relações responsivas. Euconfio no outro que é leal, e sou leal ao fidedigno outro.Mas ela tem ainda uma outra característica. Agir em fé,significa também agir em lealdade a todos os que são leaisà mesma causa a que sou leal e aos quais a causa é leal.Se verdade for o nome de minha causa, então estareiligado, em lealdade, à verdade, a todos aqueles que sãoleais à verdade, e a todos aqueles a quem a verdade é leale aos quais a verdade não desamparará. Sou fiel à verdadesendo fiei em meu dizer a verdade a todos os homensligados à verdade; mas

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minha confiança no poder da verdade não é separável,também, da confiança em todos os meus companheiros ligadosà causa desta. Fé é um tronco de duas correntes - lealdadee confiança - que envolvem os membros de tal comunidade.Ela não surge simplesmente de um indivíduo; ela é chamadaà existência, como confiança, pelos atos de lealdade daparte de outros; ela é infundida como lealdade a uma causapor outros que são leais àquela causa e a mim.11 A féexiste apenas em uma comunidade de eus (selves) napresença de uma causa transcendente.

Sem lealdade e confiança para com as causas ecomunidades, os eus (selves) existenciais não vivem, nemexercem liberdade, nem pensam. Certa ou erradamente,vivemos pela fé. Mas nossas fé são fragmentária,s ecaprichosas; nossas causas são muitas e estão em conflitoumas com as outras. Em nome da lealdade a uma causa nóstraímos outra; e em nossa desconfiança de todas, nósprocuramos nossas pequenas satisfações insatisfatórias enos tornamos infiéis aos nossos companheiros.

E aqui entra o grande supra-racional (surd). Qual éesta coisa absurda que entra em nossa história moral deseres existenciais, se não a convicção que nos vem atravésde uma vida, uma morte, e um milagre acima de qualquercompreensão, de que a fonte e fundamento e direção e fimde todas as coisas - o poder que nós (em nossadesconfiança e deslealdade) chamamos de destino e decasualidade - é fiel, integralmente fidedigno,integralmente leal a todos que provêm dele; que ele não émeramente leal à lealdade, mas leal ao desleal; fidedignonão apenas para o leal, mas também para o desleal? Para opensar metafísico a coisa irracional é a encarnação doinfinito, o temporalizar do absoluto. Mas isto não é aabsurdidade para o nosso pensamento__________6. As obras de Josiah Roice Philosophy of Loyalty e TheProblem of Christianity contêm reflexões ricas e férteissobre lealdade e comunidade.

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existencial, subjetivo, e de tomada de decisão. O que éirracional aqui é a criação de fé na fidelidade de Deus[motivada] pela crucifixão, pela traição de Jesus Cristo,o qual foi integralmente leal a ele. Observamos que nãoapenas esta fé que teve Jesus Cristo na fidelidade doCriador está contra todos as nossos cálculos racionais,baseados na suposição de que temos sido enganados em vida,que suas promessas não são cumpridas, que devemos contarnão apenas com pactos violados entre os homens, mas tambémcom o vermos tomadas de nós todas as coisas que nos foramdadas e que tanto prezamos, que só podemos confiar noacaso, sendo os nossos acasos tão pequenos. Eis aqui umabsurdo maior: que o homem que pensou de outra maneira,que esperou na fidelidade de Deus ao guardar todas aspromessas dadas à vida, e que foi leal a todos aqueles - aquem ele cria ser Deus leal, devesse sofrer um fim tãovergonhoso como o resto de nós; e que, em conseqüência, afé no Deus de sua fé fosse despertada em nós. Não se tratade uma questão de crer em certos homens ou em certosescritos que afirmam que Deus o ressuscitou dos mortos noterceiro dia. Nós não confiamos no Deus da fé pelo fato decrermos que certos escritos são fidedignos. Todavia, nossaconvicção é a de que Deus é fiel, a de que ele foi fiel aoJesus Cristo que foi leal a ele e aos seus irmãos; queCristo ressurgiu dos mortos; que como o Poder é fiel,assim também a fidelidade de Cristo é poderosa; quepodemos dizer “Pai Nosso” àquele que nos elegeu paraviver, para morrer, e para herdar a vida além da vida.

Esta fé foi introduzida em nossa história, em nossacultura, em nossa Igreja, em nossa comunidade humana,através de sua pessoa e neste evento. Agora que ela temsido despertada em nós através dele, vemos que ela estevesempre ali, que sem ela jamais teríamos existido, de modoalgum, que a fidelidade é a razão moral em todas ascoisas. Todavia, sem a encarnação histórica daquela fé emJesus Cristo estaríamos perdidos em incredulidade. Como arealidade histórica, dada, em

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nossa história humana, ele é a pedra angular sobre queconstruímos e a pedra de tropeço. Ele está simplesmenteali com sua fé e com sua criação de fé.

A base daquela fé, nós raciocinamos; e muito do queera ininteligível na área da incredulidade ou da fé nospequenos deuses, que não são fidedignos, é agorailuminado. Muito além dos limites dos grupos religiososque procuram tornar a fé explícita em credos, ela forma asbases para o nosso arrazoar na cultura; para os nossosesforços de definir uma justiça racional; para os nossosempenhos por uma ordem política racional; para as nossastentativas de interpretar o belo e o verdadeiro. Ela nãoforma a única base; pois nossa fé, nossa lealdade, nossaconfiança, são pequenas, e sempre caímos em incredulidade- mesmo naquelas regiões em que ela conseguiu algumavitória sobre os nossos pensamentos. Naquela fé procuramostomar decisões em nosso presente existencial, sabendo quea medida da fé é tão pobre que sempre combinamos negaçõescom nossas afirmações dela. Todavia, em fé na fidelidadede Deus nós esperamos ser corrigidos, perdoados,aperfeiçoados pela companhia dos fiéis e por muitos outrosa quem ele é fiel embora o rejeitem.

Tomar em fé as nossas decisões é tomá-las à luz dofato de que nenhum homem, ou grupo, ou tempo histórico, éa Igreja, mas que há uma Igreja de fé, em que fazemosnossa obra parcial e relativa, com a qual devemos contar;é tomá-las à luz do fato de que Cristo ressurgiu dosmortos e é não apenas a cabeça da Igreja mas o redentor domundo; é tomá-las à luz do fato de que o mundo da cultura- as realizações do homem - existe dentro do mundo dagraça: o reino de Deus.

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____________________________________________________________Composto e impresso pela Cia. Editora Fon-Fon e SeletaR. Pedro Alves, 60, para Paz e Terra. Rio. GB/1967