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CRISE DE LEGITIMIDADE DO ESTADO E NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO Rodrigo Fernandes das Neves RESUMO A humanidade passa por evidentes transformações culturais, econômicas e sociais, determinadas principalmente pela difusão de novas tecnologias de informação e comunicação. Essa verdadeira revolução informacional determinou a redução do poder do Estado-nação, uma vez que ele concorre com fluxos internacionais financeiros, produtivos e de identidades fragmentárias religiosos, étnicos, ambientais etc. Aquelas tecnologias, contudo, podem igualmente ser utilizadas para enriquecer a esfera pública e legitimar o Estado-nação como interlocutor privilegiado na promoção da democracia em nossa atual condição pós-moderna. PALAVRA-CHAVE: LEGITIMAÇÃO - PÓS-MODERNIDADE - ESTADO-NAÇÃO – DEMOCRACIA - TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO. ABSTRACT The humanity passes through evidents cultural, economic and social transformations, mainly determined by the diffusion of new information and communication technologies. This information revolution determined the reduction of the power of the Nation-state caused by international flows of finance and production and religious, ethnic and environmental fragmentary identities. Those technologies, however, can equally be used to enrich the public-sphere and to legitimize Nation-State as privileged interlocutor in the promotion of the democracy in our current post-modern condition. KEYWORDS: LEGITIMATION - POST-MODERNITY - NATION-STATE – DEMOCRACY - NEW INFORMATION AND COMMUNICATION TECNOLOGIES. Procurador do Estado do Acre, mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] (www.rodrigoneves.com). 1

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CRISE DE LEGITIMIDADE DO ESTADO E NOVAS TECNOLOGIAS DE

INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Rodrigo Fernandes das Neves∗

RESUMO

A humanidade passa por evidentes transformações culturais, econômicas e sociais,

determinadas principalmente pela difusão de novas tecnologias de informação e

comunicação. Essa verdadeira revolução informacional determinou a redução do poder

do Estado-nação, uma vez que ele concorre com fluxos internacionais financeiros,

produtivos e de identidades fragmentárias religiosos, étnicos, ambientais etc. Aquelas

tecnologias, contudo, podem igualmente ser utilizadas para enriquecer a esfera pública e

legitimar o Estado-nação como interlocutor privilegiado na promoção da democracia em

nossa atual condição pós-moderna.

PALAVRA-CHAVE: LEGITIMAÇÃO - PÓS-MODERNIDADE - ESTADO-NAÇÃO

– DEMOCRACIA - TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO.

ABSTRACT

The humanity passes through evidents cultural, economic and social transformations,

mainly determined by the diffusion of new information and communication

technologies. This information revolution determined the reduction of the power of the

Nation-state caused by international flows of finance and production and religious,

ethnic and environmental fragmentary identities. Those technologies, however, can

equally be used to enrich the public-sphere and to legitimize Nation-State as privileged

interlocutor in the promotion of the democracy in our current post-modern condition.

KEYWORDS: LEGITIMATION - POST-MODERNITY - NATION-STATE –

DEMOCRACY - NEW INFORMATION AND COMMUNICATION

TECNOLOGIES.

∗ Procurador do Estado do Acre, mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] (www.rodrigoneves.com).

1

INTRODUÇÃO

O título do artigo, “Crise de Legitimidade do Estado e Novas Tecnologias de

Informação e Comunicação”, deixa subentendida, apesar de manter aberta, a questão da

ligação entre a crise do Estado-nação e as tecnologias de comunicação.

Contudo, o título também pode referir-se a uma outra forma de intersecção

do Estado com tecnologia, dessa vez em uma visão mais otimista: a utilização de novas

maneiras de informar e comunicar como instrumento democrático, de fortalecimento da

cidadania e de enriquecimento do espaço público.

Para falar sobre estes temas, neste artigo fazemos uma breve descrição de

teorias sociológicas que podem nos ajudar a entender nosso mundo contemporâneo e a

compreender a forma com que as tecnologias interferem nas estruturas do sistema e do

mundo da vida. Cuida-se do que intitulamos uma “condição pós-moderna” do mundo

contemporâneo, a que o Estado deve fazer frente.

Após a digreção histórica, e estabelecido o prisma teórico adotado, passamos

a descrever, com maior especificidade, a maneira como surgiu o Estado Moderno e as

razões que o levaram à crise de legitimidade a que assistimos hoje.

Questionamo-nos: a fragmentação da sociedade em interesses bastante

específicos e a transnacionalização dos movimentos sociais, assim como ocorre com os

mercados e as finanças globalizadas, determinará o fim do Estado-nação? Não nos

furtamos desse tema. Apresentamos os contornos do quadro e as perspectivas para o

Estado, o que acaba nos levando ao próximo assunto, qual seja, a utilização da própria

tecnologia de informação e comunicação para auxiliá-lo a resgatar, ao menos em parte,

a legitimidade perdida, bem como permitir seu reposicionamento na rede mundial de

fluxos de poder.

É assim que, na seqüência, fazemos um relato sintético de experiências

práticas de democracia eletrônica na Finlândia e na Itália, dentre um universo já grande

no mundo, buscando estabelecer alguns requisitos mínimos para que iniciativas desse

tipo possam alcançar o sucesso.

Tentamos, dessa maneira, colaborar para o debate sobre o tema, tão atual e

necessário no meio acadêmico, para que possamos servir como centro irradiador de

idéias e concepções que nos ajudem a evoluir como sociedade, bem como consolidar

processos democráticos que respeitem a opinião pública e nos garantam a participação

constante nas deliberações estatais.

2

1 CONDIÇÃO PÓS-MODERNA

Para compreensão de nosso tema, entendo que primeiramente devemos

contextualizar os questionamentos que fazemos em relação ao Estado-Nação, levando

em consideração a relação de poder em que o mesmo está inserido, inclusive diante do

mercado e da sociedade. Temos como ponto de partida a aceitação de que vivemos, a

humanidade, uma nova etapa de organização social, econômica e cultural, que nos leva

a uma alteração das bases e princípios com os quais devemos lidar nos nossos estudos.

Nesse sentido, diversas teorias sociológicas têm procurado explicar os acontecimentos

atuais, e a elas nos referiremos a seguir.

É importante essa compreensão histórica para que possamos demonstrar as

raízes da crise de legitimidade do Estado a que fazemos menção, bem como para que

nos auxilie na compreensão das possibilidades de sua relegitimação diante da sociedade

civil.

Krishan Kumar, professor de ciência política e social, sintetizou em sua obra

“Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna” as principais tendências teóricas sobre o

mundo contemporâneo. Dentre as várias teorias, ele destaca: a percepção dos

fenômenos atuais como uma “sociedade da informação”; como resultado de

modificações estruturais no capitalismo, que corresponderia a uma teoria “pós-fordista”;

e uma concepção “pós-moderna”, esta eclética e influenciada, dentre outras, por aquelas

duas visões.

A convergência entre essas teorias consiste no reconhecimento do papel

fundamental das novas tecnologias de informação e comunicação (em uma condição

técnico-instrumental) nesse processo de criação de um novo cenário.

Vejamos, portanto, um pouco de cada uma dessas teorias.

1.1 Sociedade da informação

Esta formulação teórica tem por base os escritos de autores como Alvim

Tofler e Daniel Bell, dentre outros, que mantêm, em suas formulações, a fé no

Ilimunismo, na racionalidade e no progresso, em uma visão que pode ser caracterizada

como “otimista” da utilização de novas tecnologias de informação e comunicação –

TICs.

A teoria da sociedade da informação é um desdobramento de pensamentos

originados ainda na década de 1960, então chamados de pós-industrialismo, e sustenta a

plausibilidade de grandes possibilidades emancipadoras trazidas pela propagação da

informação e do conhecimento.

3

De acordo com Daniel Bell, o que gerou a sociedade da informação foi a

convergência explosiva de computador e telecomunicações, que acabou com a antiga

distinção entre processamento e disseminação de conhecimentos. Ressalta o autor que

as sociedades do passado foram basicamente limitadas pelo espaço e pelo tempo, e que

a coesão somente era possível por meio de uma autoridade burocrática e política central

que tivesse por base um território, assim como por meio de apropriação homogênea da

história e das tradições1. Essa apropriação e homogeinização deram origem à formação

dos Estados constitucionais contemporâneos, bem como determinaram sua inicial

legitimação perante a sociedade.

Yoneji Masuda, por sua vez, sustenta que a tecnologia da comunicação por

computadores tornará possível dispensar a política e o governo centralizados. Em seu

lugar, surgiria uma democracia participativa e sistemas de "administração local pelos

cidadãos"2, formulação esta que determina a sua identificação com a teoria da

“sociedade da informação”.

Alega Kumar, contudo, que há uma percepção ingênua desses autores com

relação aos poderes reinantes, salientando que, ao contrário do que imaginam os

formuladores da teoria, as novas tecnologias estão sendo aplicadas em uma estrutura

política e econômica que confirma e reforça os padrões de dominação existentes, em

vez de gerar novos3.

Ou seja, a sociedade da informação não teria evoluído de maneira neutra e

isenta, mas moldada conforme certos interesses sociais e políticos4, em uma ambiente

claramente capitalista e (neo)liberal.

Todavia, Kumar, quando se refere à sociedade da informação, apresenta suas

percepções com base no pensamento dos primeiros autores sobre o tema, que tinham

uma opinião exageradamente otimista e romantizada sobre as mudanças já mencionadas

e que muitas vezes apelavam para futurologia.

O Autor, assim, não capta o que Manuel Castells, após a edição do Livro de

Kumar, viria a caracterizar como "sociedade informacional", diferenciando-a do

conceito de “sociedade da informação”, que não seria suficiente para explicar processos

que se aprofundaram exponencialmente com a difusão da internet e as novas 1 BELL, Daniel. Apud: KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 22. 2 MASUDA, Yoneji. Apud: KUMAR, op. cit., p. 27. 3 KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 44. 4 KUMAR, op. cit., p. 46.

4

possibilidades de comunicação que hoje se apresentam.

Castells concorda que o capitalismo fornece a matéria prima desse novo

panorama e também que existem possibilidades emancipadoras, mas ressalta que estão

dadas as bases de um processo já iniciado de formação de uma nova ordem mundial,

cujo denominador comum, presente tanto na teoria do pós-fordismo, como na da

sociedade da informação e no pós-modernismo, é a formação de redes.

Ele entende estar ocorrendo uma verdadeira revolução tecnológica,

caracterizada pela aplicação do conhecimento tanto para geração de conhecimento

quanto para novos dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um

ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso5. Entende o autor que, por

influência desse novo sistema comunicacional, mediado por interesses sociais, políticas

governamentais e estratégias de negócios, surge uma nova cultura que intitula a “cultura

da virtualidade real”6.

O mundo, impactado pelas tecnologias de comunicação, passa, portanto, por

um processo de mundança semelhante à Revolução Industrial. As empresas, não mais

são organizadas em hierarquias verticais e rígidas, mas possuem estruturas cada vez

mais horizontais e fragmentadas. O mercado financeiro transnacional é totalmente

interligado, a ponto de qualquer desequilíbrio em um de seus nós ter conseqüência por

toda a rede. Enfim, governos, grupos de interesses, ONGs, mídia, dinheiro, produção e

cultura estão interligadas em torno de fluxos de informação, formando uma grande rede

interdependente, uma metarrede.

Sob uma perspectiva histórica, a sociedade em rede representa uma

transformação qualitativa da experiência humana7.

1.2 Pós-Fordismo

Ainda na esteira das teorias sociais que tentam explicar as transformações

que vivemos, Kumar cita o pós-fordismo, ressaltando desde logo que tal compreensão

da realidade é um pensamento influenciado fortemente por princípios marxistas,

configurando portanto uma análise de esquerda quanto aos fenômenos em estudo.

Os pós-fordistas, em especial os ingleses, agregados ao movimento chamado

"Novos Tempos", sustentam que as transformações recentes do capitalismo sinalizam o

fim da produção em massa e, portanto, do “fordismo” como modelo de produção. 5 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Tradução: Roneide Venâncio Majer – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 69. 6 CASTELLS, A Sociedade em Rede, op. cit., p. 415. 7 CASTELLS, ibidem, p. 573.

5

O modelo fordista de produção em massa, com base taylorista de

organização científica do trabalho, estaria sendo substituído por produções

personalizadas e em pequena escala, no que os pós-fordistas chamam de "especialização

flexível". Isso resultaria em um retorno das pessoas para suas casas ou até mesmo uma

reorganização autônoma do trabalho, trincando princípios que sustentam o sistema

capitalista. Tal novel configuração do trabalho poderia tornar a vida das pessoas mais

agradável e mais satisfatória. Há quem diga, portanto, ser uma tentativa romântica de

buscar uma vitória marxista nas entranhas do capitalismo.

De qualquer forma, sustentam os pós-fordistas que as razões que teriam

levado àquela mencionada “especialização flexível” seria uma demanda do mercado por

produtos em quantidades e qualidades imprevisíveis, a diversificação do mercado em

razão de sua mundialização, o ritmo frenético de transformação tecnológica e a ineficaz

rigidez dos sistemas de produção em massa diante da nova economia8.

Como exemplo emblemático da ocorrência dessa modificação no modo de

produção é sempre citada a organização empresarial da chamada “terceira Itália”, nas

últimas décadas do Séc. XX, um fenômeno ocorrido em uma região específica do norte

da Itália com a proliferação de pequenas indústrias organizadas em rede de produções

flexíveis, interligadas e diversificadas, portando alta-tecnologia e fornecendo produtos

personalizados para o mercado mundial.

Kumar reflete sobre o tema e, com base no exemplo japonês, tenta

demonstrar que o que os pós-fordistas chamam de "especialização flexível", que seria

representativo da autonomia fragmentária dos novos tempos, também pode ocorrer por

meio de grandes empresas, ou por elas capitaneadas, o que é corroborado por Castells9.

A característica primeira do pós-fordismo, portanto, não seria suficiente para justificar a

concepção de superação da Era Moderna.

Os pós-fordistas sustentam, por outro lado, que essas características

determinam a existência de um "capitalismo desorganizado", cuja manifestação de

instabilidades e inquietações sugeririam mudanças qualitativas na cultura e política no

futuro. Exemplificam essas mudanças, na economia, com o surgimento de mercados e

empresas globais e declínio de empresas nacionais e da Nação-estado; nas relações

políticas e industriais, com a fragmentação de classes sociais e declínio de partidos

baseados em classe, bem como o surgimento de movimentos baseados em região, etnia,

8 CASTELLS, A Sociedade em Rede, op. cit., p. 212. 9 CASTELLS, ibidem, p. 214.

6

sexo etc; na cultura e ideologia, com a privatização da vida doméstica e de atividades de

laser.

Nesse sentido, Lash e Urry10 sustentam que as transformações sociais estão

ocorrendo “a partir de cima, de baixo e de dentro. Tudo o que é sólido no capitalismo

organizado - classe, indústria, cidades, coletividade, nação-estado e mesmo o mundo -

se desmancha no ar”.

Os intelectuais vinculados ao movimento inglês de esquerda “Novos

Tempos”, entendem que a globalização em si - a origem de tantas mudanças que estão levando ao pós-

fordismo - deve ser interpretada como sendo tanto uma ameaça como uma

oportunidade. A globalização ergue a política e a cultura acima do nível

provinciano da nação-estado e sugere novas conexões e interdependências

entre todos os povos do mundo11.

Para Kumar, contudo, os pós-fordistas confundem efeitos com causas, já que

o que consideram como fatos primários são na verdade produtos derivados ou

dependentes de processos menos visíveis e desconsiderados pela teoria. Ressalta,

entretanto, que a crítica em relação à teoria não pode impedir o reconhecimento de que

coisas novas estão acontecendo. Como poderíamos então descrever a situação da

humanidade hoje?

1.3 Pós-Modernidade. Superação da Modernidade?

A condição histórica em que o Estado-Nação, assim como nós, está inserido

hoje gera imensas polêmicas, a começar por uma longa discussão acadêmica sobre a

ocorrência do fim modernidade e suas conseqüências, colocando filósofos como

Habermas e Derrida em campos opostos.

De quaquer forma, a discussão acerca do tema passa, necessariamente, pela

conceituação da própria modernidade, uma vez a idéia de pós-modernidade contém em

si a essência do que pretende superar (a modernidade).

Podemos, assim, iniciar dizendo que a modernidade está ligada a uma

percepção particular de tempo que, baseada numa idéia cristã de progressão linear e

irreversível, opõe-se a uma idéia anterior de tempo natural, cíclico, característico de um

tempo antigo12. Essa idéia de progresso é elemento determinante para formação da idéia

contemporânea de modernidade. 10 LASH, Scott; URRY, John. Apud: KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 62. 11 KUMAR, op. cit. p. 65. 12 KUMAR, ibidem, p. 81.

7

Buscando identificar o momento da configuração do início histórico da

modernidade, Kumar relembra que a Renascença ainda estava presa ao tempo natural e,

não obstante ter recuperado conhecimentos clássicos da Era Antiga, ultrapassando o

obscurantismo da Idade Média, nada criou de novo. A história, até o Séc. XVIII, era um

manancial de exemplos uniformes e imutáveis, em uma noção atemporal do

conhecimento.

Entretanto, é justamente na segunda metade do Séc. XVIII que se tem as

bases para a formação, com base no Iluminismo, da idéia de progresso. Os tempos

modernos começavam a tomar vida. Os intelectuais já não se consideravam mais cópias

menores dos antigos filósofos. Ao contrário, proclamavam o rompimento completo com

o passado e o estabelecimento de um novo começo baseado em novos princípios13.

Todo esse processo teve por resultado a primeira revolução moderna da

história: a Francesa. Ela representou o início simbólico da modernidade, bem como

moldou sua forma e consciência características14.

Posteriormente, com um maior desenvolvimento do capitalismo, as imagens

determinadas pela revolução industrial vincularam-se tão intimamente ao próprio

modernismo que desde então toda alteração nas estruturas de produção industrial induz

a uma idéia, não necessariamente correta, de modificação de mesma ordem em relação à

modernidade15. Isso importa no sentido de mantermos uma visão crítica dessas novas

teorias, para não sermos iludidos pela aparência e confundir causas com efeitos, como

ocorreu com o pós-fordismo.

De qualquer forma, devemos lembrar que, desde seu começo, a modernidade

buscou o rompimento com a Era Antiga, com o obscurantismo da Idade Média e com a

tradição, mas paradoxalmente criando uma nova tradição, a “tradição do novo”. Na

modernidade há uma interminável série de mudanças de estilos e de modas, ou seja, o

estabelecimento de um culto às inovações sem fim16.

Há, agora, um movimento diferente, em que a condição temporal e

geográfica do conhecimento é simplesmente desprezada, e a fragmentação do

espaço/tempo é levada ao extremo, seja na criação de comunidades, na produção de

bens, na prestação de serviços, na produção cultural ou na participação política.

Ora: Todas essas mudanças estruturais tão radicais não determinariam o fim 13 KUMAR, op. cit., p. 91. 14 KUMAR, ibidem, p. 93. 15 KUMAR, ibidem, p. 95. 16 KUMAR, ibidem, p. 111.

8

da modernidade? A profundidade das alterações não configurariam a pós-modernidade?

Hoje, é certo, não há mais nenhuma força que oriente e controle a forma e o significado

da sociedade. Há simplesmente um fluxo aleatório, sem direção17. Estamos, assim, em

uma nova Era ou trata-se apenas da revitalização da própria modernidade, cujos

princípios foram perdidos e agora resgatados?

Esses questionamentos são possíveis hoje principalmente porque nos

permitimos um rompimento com aquela citada “tradição do novo” e com a própria idéia

de tempo, na busca de uma síntese do velho e do novo, do longe e do perto. A

ambivalência da (pós) modernidade é evidente.

De qualquer forma, diz Kumar, o que não há de se negar é uma profunda

transformação das sociedades industriais, o que merece um novo nome, que pode ser

simplesmente “moderno” ou “moderno tardio” ou ainda “pós-moderno” ou qualquer

outro. O que se deve é levar em consideração é a nova situação das sociedades,

impactadas pelas tecnologias de comunicação, em uma mudança geral na visão da

civilização e uma nova condição de desenvolvimento da cultura e da organização da

sociedade.

Nesse contexo, onde as TIC’s exercem papel fundamental, estas podem ser

vistas tanto como uma ampliação da capacidade e do poder humanos quanto uma

supressão do indivíduo nas redes de informação18. Bauman, por exemplo, diz tratarem-

se, essas novas tecnologias, de “uma estreita fenda na parede, não de um portal”19, no

que parecer ser uma visão pessimista das possibilidades democráticas decorrentes.

Por outro lado, os pós-modernistas sustentam que a democracia não pode se

basear em uma idéia “essencialista” de um agente racional unitário e universal da teoria

clássica, mas devemos aceitar a pluralidade de possibilidades e identidades

diferenciadas que constituem os indivíduos, abandonando o Estado Nacional como

única arena da política20.

Assim, nada de organizações e instituições permanentes na rígida estrutura

do Estado-nação, mas redes frouxamente ligadas, inventando suas próprias vidas e

descobrindo os próprios meios de expressá-las21. É a idéia da total desconstrução para

um novo rearranjo de nosso universo. 17 KUMAR, op. cit., p. 113. 18 KUMAR, ibidem, p. 138. 19 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 79. 20 KUMAR, op. cit., p. 142. 21 KUMAR, ibidem, p. 147.

9

Essa concepção de desconstrução, contida na idéia de pós-modernidade,

vincula-se mais fortemente aos chamados pós-estruturalistas, que pregam a necessidade

de reconhecimento do fim das “meta-narrativas”, que são os grandes esquemas

histórico-filosóficos de progresso da modernidade e que tentam explicar genericamente

as regras que nos regem. Os pós-estruturalistas, todavia, não aceitam serem definidos

como pós-modernistas, em um curioso fenômeno de o pós-modernismo possuir poucos

membros que assumem explicitamente a posição22.

Os intelectuais, de qualquer maneira, compreendem, a partir desse ponto de

vista, que não têm o papel de estabelecer regras absolutas para a sociedade, mas sim de

agir como intérpretes de costumes e culturas específicas23.

Assim, portanto, é o mundo pós-moderno: um presente eterno, sem origem,

destino, passado ou futuro, onde tudo é temporário e mutável ou tem o caráter de formas

locais de conhecimento e experiência24.

Sem ingressar na questão de filiação a qual ou tal teoria, podemos considerar

que estamos vivendo em uma “condição pós-moderna”, reconhecendo as intensas

mudanças nas estruturas da modernidade decorrentes, principalmente, da difusão das

novas tecnologias de informação e comunicação por todos os campos da vida humana.

2 CRISE DE LEGITIMIDADE. FIM DO ESTADO-NAÇÃO?

Manuel Castells questiona-se em relação ao Estado contemporâneo: ele está

destituído de poder? 25 Da mesma forma, Zygmunt Bauman pergunta: depois da Nação-

estado, o quê?26 Em um primeiro momento, interrogações desse tipo nos levam a uma

grande preocupação quanto ao papel futuro do Estado como fonte de regras e mediador

de conflitos. Diante de todas as mudanças sociais, culturais e econômicas já

comentadas, estaria o Estado-Nação realmente fadado à extinção?

A pergunta possui uma resposta aparentemente ambígua: ao mesmo tempo

em que devemos reconhecer a decadência do poder do Estado, não há dúvidas de que o

mesmo mantém sua influência27. Vejamos.

Castells sustenta que a “identidade nacional” não é pré-existente ao Estado,

22 KUMAR, op. cit., p. 143. 23 KUMAR, ibidem, p. 151. 24 KUMAR, ibidem, p. 157. 25 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 2). São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 288. 26 BAUMAN, Globalização, p. 63. 27 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 287.

10

mas por ele criada; a Nação, portanto, é um produto do Estado. Tal ocorreu por meio da

apreensão do tempo histórico e apropriação da tradição pela organização estatal28.

Cuidou-se, em verdade, de um processo de homogeinização da população, necessária à

estabilidade institucional.

Conforme salienta Tilly, “a construção da nação é somente um dos possíveis

resultados da construção do Estado”29. Ainda segundo o autor, em consonância com que

disse Castells, os Estados em formação se apoderavam da cultura local, como por

exemplo a adoção de uma religião estatal, e expulsavam as minorias, estabeleciam uma

língua nacional bem como uma organização de instrução pública30, na itenção de

moldar a sociedade e unificar o poder em um determinado território.

Mais recentemente, e talvez em uma visão um pouco diferente da exposta

acima, com a maior politização da população, a consolidação do Estado moderno neste

século se deu por meio de uma união dialética de interesses entre a sociedade e as

autoridades do Estado, no reconhecimento da necessidade de uma ordem institucional

estável para regulação da convivência. Assim, “o status de cidadão e de pertencimento à

comunidade política nacional torna-se a principal identidade dos indivíduos e o foco

para mobilização ou união de interesses”31.

Entretanto, em se reconhecendo a condição pós-moderna de nosso mundo,

podemos dizer que a relação entre Estado e sociedade se modifica. A Nação-estado hoje

já não tem total controle de seus súditos, e a maior comunicabilidade e mobilidade física

e virtual dos cidadãos vinculados a um território subvertem a ordem e desafiam as

autoridades e as regras.

Como salienta Habermas, a internet ao mesmo tempo ampliou e fragmentou

os nexos de comunicação. Dessa maneira, ela produz, por um lado, efeito subversivo em

regimes autoritários à esfera pública e, por outro, enfraquece as conquistas das esferas

28 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 287. 29 TILLY, Charles. Apud: KOSLINSKI, Mariane. Da Modernidade à Globalidade: novos espaços para a análise da esfera da ação da sociedade? In: SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. p. 10. 30 TILLY, idem. 31 KOSLINSKI, Mariane. Da Modernidade à Globalidade: novos espaços para a análise da esfera da ação da sociedade? In: SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. p. 12.

11

públicas tradicionais32, normalmente representadas justamente pelo Estado. Esse é um

fenômeno que acelera o processo de minimizaão de sua (Estado) legitimidade

orgininária como monopólio do espaço para exercício da política.

O controle de um território, portanto, tradicionalmente exercido pelo Estado,

hoje é desafiado por multiplos fluxos de poder. A globalização econômica, midiática e

comunicacional retirou muitos dos instrumentos de dominação estatal. A exemplo, o

trânsito quase imediato de recursos financeiros internacionais cria dificuldades cada vez

maiores para um controle sobre a economia interna por parte dos governos nacionais.

Dessa forma, a única tarefa permitida ao Estado, e que se epera que assuma,

é a garantia de um “orçamento equilibrado”, conforme nos lembra Bauman33. De acordo

com o autor, esse enfraquecimento da Nação-estado é, justamente, o que a Nova Ordem

Mundial precisa para se sustentar e reproduzir, em um processo onde a fragmentação

política e a globalização econômica são aliados íntimos e conspiradores afinados34.

Além disso, a transnacionalização da produção de bens e serviços deixa

pouco espaço para o Estado-nação criar diferenças substanciais de benefícios sociais,

diminuindo, portanto, as possibilidades de legitimação perante a sociedade mediante a

aplicação de adequadas políticas públicas35.

Bauman, para evidenciar que vivemos realmente em uma nova fase da

modernidade, nos lembra que a antiga divisão do mundo em dois blocos ideológicos

encobria as diferenças e desviava a atenção em relação às divergências mais profundas

do globo, já que todo espaço fazia parte, de uma forma ou de outra, da “ordem global

das coisas”36.

Com o Grande Cisma terminado, o mundo é agora um campo de forças

dispersas e díspares em uma vastidão modernamente inculta, decorrente da fraqueza e

impotência dos agentes ordenadores habituais37. “Em poucas palavaras: ninguém parece

estar no controle agora” 38.

Bauman afirma, ainda, que o Estado, que teve como origem justamente a

avocação a si do direito de impor regras e determinar a ordem em um certo território,

32 HABERMAS, Jürgen. O Caos da Esfera Pública. Folha de São Paulo, São Paulo. 13 ago. 2006. Caderno Mais! pp. 4-5. 33 BAUMAN, Globalização, 74. 34 BAUMAN, ibidem, p. 77. 35 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 297. 36 BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 66. 37 BAUMAN, ibidem, p. 68. 38 BAUMAN, ibidem, p. 66.

12

pelas razões anteriormente expostas, encontra-se em verdadeira crise39.

Por outro lado, o controle sobre a mídia, que sempre serviu como suporte ao

controle do Estado, tem sofrido enorme segmentação, diversificação e interatividade,

dificultando o controle por regulamentações estabelecidas tradicionalmente. A

comunicação mediada por computador igualmente está fora do alcance do Estado, em

uma nova era de comunicação extraterritorial, o que tem sido um verdadeiro pesadelo

para o Estado-Nação40.

Além dessas questões externas, e avançando nos pensamentos, é de se

perceber que, internamente, a fragmentação da sociedade em múltiplas identidades

heterogêneas gera demandas por serviços e políticas públicas muito específicas,

induzindo o Estado-Nação a descentralizar a administração, uma vez que não tem como

lidar com essa imensa diversidade de interesses. Essa dificuldade do Estado-nação de

atender simultaneamente essas exigências internas e externas leva ao que Habermas

denomina “crise de legitimação”41.

Exemplo da compreensão desse fenômeno inclusive pelo próprio Estado

aparece no relatório do órgão de pesquisa e formulação estratégica norte-americano, o

National Intelligence Council – NIC, que se preocupa em formular projeções dos

processos de mudanças da ordem mundial e seus efeitos para seu país. Afirma-se no

relatório: A crescente conectividade também será acompanhada pela proliferação de

comunidades virtuais transnacionais, tendência que pode complicar a capacidade dos

países e das instituições globais de gerar consenso e de pôr em prática as decisões

tomadas, podendo até mesmo ver desafiadas a sua legitimidade e autoridade. Grupos

baseados em afinidades religiosas, culturais, étnicas ou quaisquer outras podem ficar

divididos entre a lealdade ao seu país ou às outras identidades. Esses grupos terão

um considerável poder para influenciar em âmbito nacional, e até mesmo global, as

decisões políticas sobre um amplo espectro de temas – o que é, normalmente, uma

função dos governos.42

Não temos dúvidas, portanto, de que as características multipolares de poder

em que o Estado está inserido deixam evidentes os desafios que lhe são impostos. Nesse

contexto, os limites de sua legitimidade são expressos, por exemplo, quando se discute a

39 BAUMAN, ibidem, p. 68. 40 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 302. 41 CASTELLS, ibidem, p. 317. 42 ESTADOS UNIDOS. Conselho de Inteligência Nacional. Mapeando o Futuro Global: relatório do projeto 2020 do Conselho Nacional de Inteligência. In: O Relatório da CIA: como será o mundo em 2020. São Paulo, Ediouro: 2006. p. 171.

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administração do meio ambiente planetário, onde redes transnacionais de interesse

sobrepujam a má articulação interestatal, colocando em cheque a capacidade do Estado-

nação de lidar com questões consideradas como as mais importantes de nosso tempo,

que configuram o que podemos definir, em sentido lato, como direitos coletivos.

Assim, espremido entre as limitações internacionais e as pressões internas de

grupos de interesse cada vez mais fragmentados, o Estado cede parte de sua soberania

para formação de blocos multinacionais (garantindo assim sua durabilidade), bem como

busca descentralizar suas atividades típicas internas a administrações locais. Essa

tentativa de relegitimação acaba tendo, paradoxalmente, um alto preço pela redução da

importância do Estado na rede de fluxos de poder, comprometendo sua legitimidade e

agravando ainda mais sua ineficácia e incapacidade43.

Podemos dizer que os governos nacionais são não só muito pequenos para

enfrentar as forças globais como também muito grandes para administrar a vida das

pessoas44.

Como se vê, o Estado encontra-se submetido à uma rede de fontes de

autoridade da qual é apenas um dos nós, sofrendo uma concorrência de várias formas de

poder: ONGs, redes criminosas, movimentos étnicos, redes de capital e de produção,

religiões, mídia, mecado financeiro etc.

Torna-se, assim, complexo o papel do Estado, que tem que se equilibrar nos

âmbitos global e local em uma geometria variável. Passa, portanto, de sujeito soberano

a ator estratégico, permanecendo a exercer influência considerável, mas sem o poder de,

por si só, buscar soluções isoladas da coordenação com macroforças supranacionais e de

microprocessos subnacionais45.

Respondendo ao questionamento inicial quanto ao fim do Estado-nação,

ressaltamos que de fato ele perdeu grande parte de seu poder econômico,

permanecendo, contudo, com relativo controle sobre os sujeitos. Nas palavras de

Cancellier de Olivo, a “vantagem competitiva do Estado em relação a seus parceiros

privados é que ele ainda tem na representação política a sua fonte de legitimidade”46.

3 ESTADO E NOVAS TECNOLOGIAS: OPORTUNIDADES.

43 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 314. 44 CASTELLS, ibidem, p. 319. 45 CASTELLS, ibidem, p. 357. 46 OLIVO, Luis. Reglobalização do Estado e da Sociedade em Rede na Era do Acesso. Florianópolis: Boiteux, 2004. p. 119.

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Como visto acima, governar hoje é um teatro onde nenhum ator detém

sozinho os meios para resolver os problemas demandados pela sociedade47,

posicionamento, aliás, corroborado por Castells e Bauman. Tendo em vista as novas

tecnologias de informação e comunicação, o Estado, não obstante ser um nó

privilegiado, passou a concorrer com diversas outras fontes de poder em uma imensa

rede de fluxos e conexões econômicas, políticas, culturais e sociais.

O que buscaremos verificar a seguir, de forma breve em razão da própria

limitação do artigo, são as possibilidades abertas aos próprios Estados e que podem

fomentar um processo de relegitimação baseado no enriquecimento da esfera pública e

fortalecimento da democracia participativa.

Isso porque as mesmas tecnologias que geraram as modificações na

sociedade e na economia, e que forçaram a perda de poder por parte do Estado, podem

permiti-lo trazer para si (em um exemplo da ambivalência pós-moderna) os movimentos

caracterizados por interesses específicos, estabelecendo-se como instituição mediadora

do diálogo político, ainda que fragmentado. Ou seja, fortalecer-se como nó dentro da

rede.

Uma visão romântica dessas possibilidades, porém, não está em nosso

horizonte. Ao contrário, reconhecemos que há tantos obstáculos e impecílios quanto

esperança no fortalecimento do cidadania por meio das TIC’s. É verdade que alguns

associam, muitas vezes deterministicamente, e de forma exagerada, a disponibilização

da tecnologia comunicacional com a qualificação da esfera pública, atrapalhando uma

análise honesta dessa complexa mudança social. Todavia, uma compreensão realista do

tema não deve nos impedir de imaginar soluções criativas, mesmo que complexas.

Algumas visões pessimistas, aliás, dificultam, muitas vezes, uma discussão

sobre o que se acostumou chamar de “governança eletrônica” – referência a um governo

virtual - e que muitas vezes é perturbada por uma compreensão ideológica do termo.

Isso porque o Banco Mundial (vinculado aos interesses das nações desenvolvidas),

juntamente com outros bancos regionais de fomento, tem incentivado por todo o mundo

em desenvolvimento a implantação de programas de “governança”, identificados com

princípios economicamente liberais (ou neoliberais), onde o escopo da decisão

47 STOKER, Gerry. Apud: FREY, Klaus. Experiências de Cidades Européias e Algumas Lições para Países em Desenvolvimento. In: EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 143.

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democrática é limitado pelas expectativas dos mercados48, o que tem gerado fortes

reações.

Todavia, é de se lembrar que o termo também é utilizado em um sentido

mais emancipatório, tendo relação com novas práticas de atividades em rede, parcerias e

fóruns deliberativos, ainda que fora do Estado. Assim entendida, a governança

eletrônica também pode ser vista como uma possibilidade de relegitimação do sistema

político por meio de novos canais de participação da sociedade no espaço público49.

Os Estados podem, dessa maneira, utilizar as novas tecnologias não somente

para fins de melhoria da eficiência administrativa e oferecimento on-line de serviços

ordinariamente prestados. Há muito mais a se fazer.

Aliás, Lawson50 reforça essa idéia de que as possibilidades são muito mais

extensas do que aquelas que os governos costumam implantar em abordagens

geralmente conservadoras, no que ele chama de “visão fraca” da governança eletrônica.

Isso porque, na verdade, as tecnologias de informação e comunicação podem ser

catalizadoras - além de serviços públicos personalizados, holísticos, efetivos e criativos

- da formação de redes sociais e políticas, ou seja, de novas formas de participação

democrática51.

De qualquer maneira, é bom ressaltar que a tecnologia, por si, não é

suficiente para garantir o sucesso de um sistema, mantido pelo Estado, de participação

política por meio de comunicações mediadas por computador, já que sua eficácia

depende da existência de um firme propósito governamental, além de requisitos

essenciais como um amplo acesso a meios digitais de comunicação, campanhas

educativas e criação de comunidades virtuais com conteúdos adequados e atraentes.

Experiências em várias partes do mundo têm buscado, por meio das

tecnologias digitais, uma aproximação com os movimentos fragmentários da sociedade,

na tentativa de participar diretamente do processo de autoformação da sociedade e

alcançar subsídios para a própria atuação nos meios políticos tradicionais, ainda que

apenas em âmbitos locais.

Frey exemplifica experiências formuladas em algumas cidades, como a rede

Iperbole, de Bolonha, e a rede NuvaNet, de Espoo, na Finlândia. Nesta última, um site e 48 FREY, Klaus. Experiências de Cidades Européias e Algumas Lições para Países em Desenvolvimento. In: EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 144. 49 FREY, op. cit., p. 145. 50 FREY, ibidem, p. 147. 51 LAWSON, George. Apud: FREY, op. cit., p. 147.

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uma revista on-line permitem a participação de jovens da cidade em uma plataforma

chamada IdeaFactory, que os possibilita apresentar suas idéias e moções junto às

autoridades locais. Trata-se de uma rede baseada na transparência pública, estimulando

processos reflexivos e interativos, já que os encaminhamentos são sempre precedidos de

ampla discussão no meio virtual. A experiência demonstra ser essencial, neste tipo de

sistema, uma estreita vinculação entre o processo de deliberação virtual e o processo

real de tomada de decisões por parte das autoridades52, o que permite aos participantes

formar uma percepção de valor e significado para a comunidade.

Em Bolonha, as proposições são ainda mais ousadas. O governo local

promoveu um amplo programa de inclusão digital e criou um portal contendo

informações administrativas e políticas importantes para a população, com a

disponibilização de uma rede de caráter aberto, encontrando novas maneiras de criação

de redes sociais, principalmente por meio de fóruns de discussão livres ou ordenados

por moderadores devidamente treinados.

Questiona-se, portanto, se a comunicação mediada por computador pode de

fato enriquecer a democracia, o que significa também perguntar se ela pode ajudar a

democracia a ser mais delibertativa.

O exemplo de Bolonha nos indica que simples consultas pré-determinadas,

em espécies de enquetes ou indagações fechadas, são insuficientes. A cidade italiana

percebeu a necessidade de sistemas abertos, onde os próprios cidadãos determinam a

formação do conhecimento deliberativo. Às comunidades, dessa forma, deve ser

permitida a produção e publicação de informações por si própria, de maneira que possa

rearranjar ou destacar informações que são lhe sejam diretamente pertinentes53.

Requisitos como esses são necessários uma vez que simples consultas de

opinião não constituem verdadeiro espaço público, já que não incluem um processo de

formação de opinião. Comunicação significa não somente encontrar o que indivíduos

previamente decidiram ou aprenderam, mas é principalmente um processo em que a

opinião propriamente dita é criada por meio de um debate54.

Dessa maneira, Joss Hands, em uma pesquisa realizada em 469 web sites de

52 FREY, op. cit., pp. 154-155 53 WILLIAMSON, Andy. Getting Ready for eDemocracy. Disponível em: <http://public-policy.unimelb.edu.au/egovernance/papers/42_Williamson.pdf >. Acesso em 13 nov. 2006. 54 THORNTON, Alinta. Does Internet Create Democracy? Disponível em <http://www.zip.com.au/~athornto/thesis_2002_alinta_thornton>. Acessado em 8 nov. 2006.

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governos locais na Grã-Bretanha55, identificou que, para formação de verdadeiros

espaços públicos deliberativos, devem existir, necessariamente, alguns elementos

básicos, como: adequada provisão de informação; oportunidade de discussão dos

problemas sem a coerção de outros cidadãos; regras que falicilitem o processo

deliberativo; e a oportunidade de influenciar os políticos nos procedimentos

democráticos formais.

A criação dessas redes sociais e políticas, a partir da estrutura do próprio

Estado, pode trazer, portanto, para o espaço tradicional da política, aqueles movimentos

que, de outra forma, estariam concorrendo com o próprio Estado na rede de fluxos de

poder característica de nossos tempos.

Trata-se, dessa maneira, de se fomentar a sensibilização e a compreensão por

parte dos administradores públicos em relação ao contexto em que a instituição de que

fazem parte, e da qual decidem o rumo, está inserido. Somente assim terão a tenacidade

necessária para empreender os eforços na criação de espaços públicos virtuais

portadores dos requisitos necessários e que sirvam não somente como instrumento de

melhoria da democracia, mas também como possibilidade de ampliação da importância

do próprio Estado na rede.

Nesse sentido, diversas experiências em outras partes do globo têm

demonstrado que existem possibilidades amplas e inéditas para criação de uma

“cidadania virtual”, onde os cidadãos possam defender seus interesses sem,

necessariamente, desafiar toda a organização do Estado moderno.

Alguns podem compreender essa possibilidade como uma indevida invasão

do Sistema no Mundo da Vida, para utilizar uma linguagem habermasiana. Veriam em

tal comportamento por parte do Estado como algo não desejado, caso se entenda que o

futuro da organização política deva ser baseado no terceiro setor e não no Estado-nação.

Aliás, essa tendência de migração do debate político para fora dos canais

tradicionais da democracia representativa é o que Gramsci apresentava como “crise de

hegemonia” e que pode ser caracterizado como uma crise de consenso, um excesso de

desacordo, ou indiferença, entre o Estado e os cidadãos56.

Em síntese, os aspectos mais promissores da internet como instrumento de

revitalização da esfera pública é determinada pela habilidade de pequenos grupos de

55 JOSS, Hands. E-deliberation and Local Governance. First Monday, vol. 10, n. 7. Disponível em < http://www.firstmonday.org/issues/issue10_7/hands>. Acessado em 10 nov. 2006. 56 JOSS, op. cit.

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interesse de encontrar-se e comunicar-se, a possibilidade de indivíduos e pequenos

grupos com poucos recursos apresentarem seus pontos de vista a um grande número de

pessoas, o fácil acesso a uma grande variedades de pontos de vista, a longevidade dos

materiais informativos, uma maior interatividade e a formação de comunidades on

line.57

Ao fim, podemos dizer que ao Estado-nação cabe adaptar-se às mudanças

estruturais em curso e que o levaram à perda de poder, aproveitando sua influência

regulatória sobre as pessoas em um determinado território, apresentando-se, assim,

como intermediário hábil e confiável para coordenação dos interesses da sociedade

civil, em um reestabelecimento da união dialética de interesses que lhe deu origem.

Talvez esse seja o caminho para nos reencontrarmos em uma comunidade

originária, um outro nome que damos ao paraíso perdido e a que esperamos

ansiosamente retornar. Eis porque, assim, buscamos febrilmente os caminhos que

podem levar-nos até lá58.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto neste artigo, há que se aprofundar o debate sobre o papel do

Estado-nação na Nova Ordem Mundial. A utilização das tecnologias de informação e

comunicação resultou em profundas alterações sociais, que devem ser analisadas e

compreendidas. A utilização da própria tecnologia como meio de legitimação da

atuação do Estado é apenas um dos aspectos possíveis de ser estudado.

O cenário demonstrado aqui implica, igualmente, em modificação na

estrutura do Estado, tendo, portanto, ligação com o Direito Administrativo; um

questionamento quanto às bases justificantes do Estado Moderno, permitindo

indagações de ordem teórica no Direito Constitucional; O surgimento de novas relações

interpessoais, de ordem virtual, que exigem atualização do Direito Civil e do Direito

Penal. Sem falar nas conseqüências para a linguística, a sociologia e antropologia, a

história, os estudos ambientais, a educação e a uma infinidade de áreas afetadas pela

nossa condição pós-moderna.

Todavia, temos como primordial a questão democrática nesse contexto. As

novas tecnologiais permitem um grau de interatividade e difusão de conhecimento que,

57 THORNTON, op. cit. 58 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 9.

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uma vez superada a questão do livre acesso, da divisão digital, pode-se imaginar

imensas possibilidades de avanço de uma democracia representativa para uma

verdadeira democracia deliberativa, rica, plural e atraente.

O Estado-nação pode, assim, ter um papel fundamental nessa evolução.

Primeiramente, porque tem os instrumentos para criar políticas que diminuam a

defasagem digital da Nação, mas também porque pode incentivar o desenvolvimento e

difusão de tecnologias que possibilitem a criação de experiências realmente inovadoras

de cidadania, no que poderíamos de intitular uma “visão forte” de governança

eletrônica.

Experiências em diversos locais, em variados países do mundo, nos dão um

norte de como podem funcionar sistemas que atraiam de volta as pessoas para a esfera

pública, que está cada vez mais ameaçada pela “commoditização” da cultura e da

política.

Acreditamos, e essa é a essência da proposta deste artigo, que se trata de uma

grande oportunidade do Estado fortalecer-se no espaço de fluxos da sociedade em rede,

buscando sua legitimação como interlocutor privilegiado entre as múltiplas identidades

heterogêneas, reiventando-se como Estado adaptado à condição pós-moderna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. __________________ Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999. _________________ O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 2). São Paulo: Paz e Terra, 1999. EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ESTADOS UNIDOS. Mapeando o Futuro Global: relatório do projeto 2020 do Conselho Nacional de Inteligência. In: O Relatório da CIA: como será o mundo em 2020. São Paulo, Ediouro: 2006. HABERMAS, Jürgen. O Caos da Esfera Pública. Folha de São Paulo, São Paulo. 13 ago. 2006. Caderno Mais! JOSS, Hands. E-deliberation and Local Governance. First Monday, vol. 10, n. 7. Disponível em < http://www.firstmonday.org/issues/issue10_7/hands>. Acessado em 10 nov. 2006. KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. OLIVO, Luis. Reglobalização do Estado e da Sociedade em Rede na Era do Acesso. Florianópolis: Boiteux, 2004.

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SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. THORNTON, Alinta. Does Internet Create Democracy? Disponível em <http://www.zip.com.au/~athornto/thesis_2002_alinta_thornton>. Acessado em 8 nov. 2006. WILLIAMSON, Andy. Getting Ready for eDemocracy. Disponível em: <http://public-policy.unimelb.edu.au/egovernance/papers/42_Williamson.pdf >. Acesso em 13 nov. 2006.

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