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Índice

Introdução 7

1. Identificação geral dos autores das cartas 7

2. Caracterização da Faculdade de Filosofia de Braga: origens, missão e objetivos, corpo docente, orientação filosófica 10

2.1. Aspetos gerais 10

2.2. Diálogo com Kant e retomada do problema crítico 14

2.3. Diálogo com Husserl e com a fenomenologia 20

3. A Revista Portuguesa de Filosofia 28

4. O Congresso Português de Filosofia 32

5. Os contactos da Faculdade de Filosofia com a Alemanha 37

6. Critérios de edição 40

Bibliografia 42

Breve descrição dos documentos originais 46

Correspondência de Alexandre F. Morujão com a Escola de Braga 49

Notas biográficas 111

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Introdução

1. Identificação geral dos autores das cartas

ApresentepublicaçãoéconstituídaporumconjuntodecartasentreAlexandreFradiqueMorujão,quefoiprofessornaUniversidadedeCoimbradurantemaisdetrêsdécadas,ediversaspersonalidadesligadasàFaculdadedeFilosofiadeBraga,parteintegrantedaUniversidadeCatólicaPortuguesadesdeafun-daçãodestaúltimaem1967.Entreoscorrespondentes,encontramosalgunsnomessignificativosdacultura filosóficaportuguesanasegundametadedoséculopassado,comoJúlioFragataeLúcioCraveirodaSilva,ouoprimeiroreitordaUCP,JoséBacelareOliveira1.

Acorrespondênciaqueaquiseapresentaconstituiumapartedeumexten-soacervodocumental,doadopelasherdeirasdeAlexandreFradiqueMorujãoaoCentrodeEstudosdeFilosofia.Paraalémdeumavastacorrespondência,ondesedestacamfigurasderelevodafilosofiaedaculturaportuguesasdasegundametadedoséculoxx,esteacervoécompostoporváriosmanuscri-tosde liçõesuniversitárias,conferênciasenotasde leitura.Umapartedeleencontra-se já acessível aos investigadores interessados, nosite http://cefi.fch.lisboa.ucp.pt/pt/espolio-afm.html.Àmedidaqueforsendoinventariadaeclassificada,atotalidadedadocumentaçãoficaráacessívelaograndepúblico,mediantepedido.

1 Apresentamos,emApêndice,brevesnotasbiográficassobreestestrêsilustresrepresen-tantesdoque,porvezes,secostumadesignarpor«EscoladeBraga».OquartocorrespondentedeAlexandre FradiqueMorujão, o Irmão Félix AugustoRibeiro, desempenhava as funções desecretáriodarevistaenãopossuicurriculumderelevo,querdopontodevistaacadémico,quercientífico.

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Diálogos pela ciência

A importânciaqueonomedeAlexandreFradiqueMorujãoadquire, aosolhosdosprofessoresdaFaculdadedeFilosofia–comquemcolaboraraativa-menteatéàdécadade90doséculopassado,queremartigosparaaRevista Portuguesa de Filosofia,queremprovasacadémicas,queraindanaprepara-çãodecolóquioseseminários–, liga-se,deformaclara,aosinteressesfilo-sóficosdosjesuítasportugueses,nasegundametadedoséculopassado,talcomo,resumidamente,explicamosnasecçãoseguintedestaintrodução.Defacto,odiálogocomascorrentesprincipaisdafilosofiamodernaecontempo-râneaconstituiuumapreocupaçãopermanentedosprofessoresdaFaculdadedeFilosofia,cujaformaçãosefizeranoquadrotradicionaldasescolasjesuí-tasondepredominava,nosestudosfilosóficoseteológicos,umaorientaçãoneotomista.ÉoprofundoconhecimentodafilosofiadeKante,sobretudo,deEdmundHusserl,queconferiuaAlexandreFradiqueMorujãoopapeldeinter-locutorprivilegiadoqueestascartasdocumentam2.

Oacervodocumentaldequepomosagora,comestapublicação,umapar-teàdisposiçãodopúbliconãoéapenasimportanteparaahistóriadaFacul-dadedeFilosofiadeBragaedaUniversidadeCatólicaeparaoconhecimentodaorientaçãoquenelasfoiimpressaaosestudosfilosóficos.Umapartesigni-ficativadahistóriadaUniversidadeportuguesanoséculoxx–nomeadamente,

2 Note-seque,antesdapublicaçãodeA Doutrina da Intencionalidade na Fenomenologia de Husserl (tesedelicenciaturapublicada,pelaprimeiravez,novolumexxxdarevistaBiblos,em1955),de«HusserleaFilosofiacomoCiênciaRigorosa»(publicadonasAtas do I Congresso Na-cional de Filosofia,tambémem1955)ede«O“FenómenoPuro”,PontodePartidadaFilosofiadeHusserl»(publicadoem1956,non.º13darevistaFilosofia),osestudoshusserlianosemPortugal–sebemquenãosejapossíveldizê-losinexistentes–revelavamgrandeatrasorelativamenteaoqueacontecianageneralidadedospaíseseuropeusedaAméricaLatina.NaUniversidadedeCoimbra,JoaquimdeCarvalho impulsionaraeprefaciaraa traduçãoportuguesadeA Filosofia como Ciências de Rigor,eArnaldodeMirandaBarbosa,quernasuatesededoutoramento,querna lecionação,manifestavaalgumconhecimentoe interesseporHusserl.Mas,aopassoqueointeressedeJoaquimdeCarvalhoporHusserleramarginal,ainterpretaçãodeMirandaBarbosarevelavaváriasdeficiências(senãomesmocontrassensos)quenãopermitemque,emrigor,sepossaconsiderarqueoseupensamentosegueotrilhoabertopelofundadordafenomenologia.EmLisboa,DelfimSantostinhaumconhecimentomuitorazoáveldopensamentodeHusserl,masosseus interesses filosóficosorientavam-senoutrasdireções,mesmonoqueà fenomenologiadizrespeito.OcasodeCabraldeMoncada,naUniversidadedeCoimbra,desdeadécadade30,mereceriaumareferênciaàparte,masasuaaproximaçãoàfenomenologia(ondeadquiremimportânciaautoresqueestiveramligadosaomovimentofenomenológicoduranteumacertafase,comofoiocasodeMaxScheler)faz-senoquadrodaFilosofiadoDireito.

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Introdução

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daUniversidadedeCoimbra–,bemcomodahistóriadafilosofiaemPortugalestá,destaformaposta,àdisposiçãodetodososinteressados.Certamentequealgunsdestesdocumentos terão, hoje,pelo seucaráter circunstancial,sobretudose forem lidos isoladamente,umreduzido interesse.Porém, inte-gradosnoconjuntodascartas,ganhamumsignificadoqueháprimeiravistapareceriam não ter. A simples «encomenda» de um artigo de revista, ou ainformaçãodeumaviagemaoestrangeiro,ouaindaorelatodasdificuldadesnapreparaçãodeumevento,contêm,porvezes,informaçõespreciosas,aoseremcolocadosnodevidocontexto.

Nãodeverãoosleitoresesperardiscussõesfilosóficasexaustivaseprofun-das,nagrandemaioriadascartasaquireunidas.Porvezes,nahistóriadafilo-sofia,acorrespondênciafilosóficaéumelementoessencialparaacompreen-sãodasobrasdosrespetivosautores.É,comosesabe,ocasodacorrespon-dênciadeLeibniz;semela,muitosaspetosdafilosofialeibnizianaficariamporesclarecer.ÉtambémocasodacorrespondênciaentreFichteeSchelling,quelançaumanovaluzsobreagénesedoidealismoalemãoesobreapolémicaentreosdoisautoresnosprimeirosanosdoséculoxix.Maispróximadenós,étambémocaso (aindaassimmenos interessante, filosoficamente,queosdoiscasosanteriores)dacorrespondênciaentreEdmundHusserlediversosrepresentantes domovimento neo-kantiano. Seria quase ridículo pretenderqueacorrespondênciaqueaquiapresentamossepodeigualar,pelasuaim-portânciaeextensão,ataisilustresexemplos.Todavia,tantoparaofilósofo,comoparaohistoriadordasideias,nãonosparecedesinteressanteoconjuntodedocumentosaquireunidos.Elesdãocontadoestadodareceção,emPor-tugal,dealgumasdasprincipaiscorrentesdaFilosofiaeuropeiaedodiálogofrutuosoquecomelasseestabelecia,bemcomodo«estado»doensinodafilosofianasuniversidadesportuguesas.

Estas explicações servem também para que o leitor entenda os limitesdaslinhasqueseseguem.Nãoénossapretensãofazerumaanáliseexaus-tivadaprodução filosóficadoquealgunsdesignampor«escoladeBraga»,nemdopensamentodeAlexandreFradiqueMorujão.Aliás, taisdesideratosencontram-sejá,emparte,realizados.Pretendemosapenasesclarecerocon-textohistórico-filosóficoportuguêsnoqualestacorrespondência teve lugar,as razõesdealguns interesses–porKanteporHusserl,nomeadamente–edealgumas linhasdeanálise,bemcomooquedelesresultouemtermosdeproduçãofilosóficaouemeventosdenaturezacientífica.Portalrazão,nos

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Diálogos pela ciência

nossoscomentárioscingimo-nos,quaseexclusivamente,aoperíodoaquesereportamestascartas,ouseja,dofinaldosanos50aofinaldosanos80doséculopassado.

2. Caracterização da Faculdade de Filosofia de Braga: origens, missão e objetivos, corpo docente, orientação filosófica

2.1. Aspetos gerais

Oconhecimentodohorizontehistórico-filosóficoemqueatrocadecorres-pondênciaqueaquiapresentamostevelugarajudaráoleitornacompreensãodasuaimportânciaedostemasnelaabordados.Interessa,emprimeirolugar,compreenderaorientaçãodosestudosfilosóficosnaFaculdadedeFilosofiadeBragaeasrazõesquelevarammuitosdosseusprofessoresamanteruminteressepermanentepelafilosofiamodernaecontemporânea.Éestehorizon-tequeexplicaasrazõesdealgumasestadiasnomeiouniversitárioalemão,emparticularasdeJoséBacelareOliveira,emBona,ColóniaeFreiburg.Umes-pecialsignificadoparaosproblemasabordadosnestacorrespondênciaassu-meaestadiaemFreiburg,paraondeBacelareOliveirasedirigecomointuitodeestudarcomojesuítaalemãoMaxMüller,eondeparticiparáemsemináriosorientadosporMartinHeideggereEugenFink.

AFaculdadedeFilosofiadeBraga,integrada,comoacimafoidito,desde1967,naUniversidadeCatólicaPortuguesa,éaherdeiradoInstitutoSuperiordeFilosofiaBeatoMigueldeCarvalho,fundadopelosPadresdaCompanhiadeJesus,nacidadedeBraga,em1934,eelevadoaFaculdadePontifíciadeFilosofia,em1947,porumdecreto,dessemesmoano,daSagradaCongre-gaçãodosSeminárioseUniversidades.OInstituto,aqueodecretoconcediaodireitodeconferirgrausacadémicosdelicenciaturaedoutoramento–em-bora,de início,semreconhecimentooficialdiretopelasautoridadesrespon-sáveispelaeducaçãosuperioremPortugal–,visavasuprirasnecessidadesde formação teológicae filosóficadossacerdotesdaCompanhiadeJesus,apósaextinçãodaFaculdadedeTeologiadaUniversidadedeCoimbra,nasequênciadareformaeducativarealizadapela1.ªRepública.Seránoâmbitodeste instituto, como adiante explicaremosmais pormenorizadamente, que

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Introdução

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seráfundadaaRevista Portuguesa de Filosofia,em1945,amaisantigarevis-tafilosóficaportuguesaqueseencontraematividade,bemcomoacoleção«Filosofia», editadapela LivrariaCruz, onde os seus professores publicarãoinvestigaçãooriginal.

Oensinono InstitutoBeatoMiguel deCarvalho, bemcomo, apartir de1947,naposteriorFaculdadedeFilosofia,nãosepodedesligardaorientaçãogeralimprimida,àépoca,aosestudosteológicosefilosóficospelaCompanhiadeJesusemtodoomundo.Podemoscaracterizartalorientaçãonabasedadireçãoquelhefoiimpressa,naUniversidadedeLovaina,aindaemfinaisdoséculo xix, pelo cardealDésiréMercier, o fundador daRevista Filosófica de Lovaina3,econtinuada,depois,jáemplenoséculoxx,porJosephMaréchal,também em Lovaina. Celestino Pires, num ensaio importante para a com-preensãodestaproblemática,caracterizaradestaformaoprogramafilosóficodeMaréchal:«confrontarotomismocomokantismohistórico,paramostrarospontosdecontactoeasdivergências.»4Ecosdestaorientaçãofizeram-sesentirnaAlemanha,naformaçãoteológicaefilosóficadojovemMartinHeide-gger–eaindanoseuconhecidoepolémicolivrode1929,Kant e o Problema da Metafísica–,bemcomo,maistarde,naformulaçãodoprogramateológicodeKarlRahner.

Estaorientaçãoépatente,desdeoinício,nosprofessoresdaFaculdadedeFilosofiadeBraga.Poderíamosdesigná-lacomo«neotomismotranscenden-tal»,sebemqueestaexpressão,aumaprimeiraaproximação,possaparecercontraditória,umavezqueasfilosofiastranscendentaisconferemàsubjetivi-dade,noplanognosiológico,umpapelbemdiferentedaquelequeSãoTomáslheatribuía.NaspalavrasdeumprofessordeBraga,«[…]podemosresumirascaracterísticasdaprimitivaescolaBracarense,sequisermosaceitarestadesignação,comoumavisãofilosóficaque,partindodametafísicadoser,deinspiraçãotomista,entraemdiálogocomtodaafilosofiamoderna,especial-mentecomKant[…].»5Nãosedeverá,também,minimizarapreocupaçãoem

3 Arevista,fundadaem1894,intitulava-se,inicialmente,Revue de Philosophie Néo-Scholas-tique.DenotarqueoCours de Philosophie,deMercier,foitraduzidoparaportuguês,nosiníciosdoséculoxx,sobosauspíciosdeMiguelFerreiradeAlmeida:DésiréMercier,Curso de Filosofia,Viseu,EmprezaEditorada«RevistaCatholica»,1903-1904,6volumes.

4 Pires, Celestino,«OFinalismoRealistadeJ.Maréchal»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XIII/2(1957)125-157,p.126.

5 Cf.silva,LúcioCraveiroda,«ANeoescolásticaContemporânea», inPedroCalafate(dir.),

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Diálogos pela ciência

pensar a ciênciamoderna (emparticular as ciências físico-matemáticas) nabasedascategoriasgnosiológicasneotomistas,dequeéexemplootrabalho,decercadequatrodécadas,deVitorinodeSousaAlves.

Masdoquesetratava,fundamentalmente,eradereformarourejuvenes-cer6oneotomismopelocontactocomascorrentesetendênciasmaissigni-ficativasda filosofiamoderna.Note-seque,naprimeirageraçãodeprofes-soresdoInstituto,encontramososnomesdeJosédeOliveiraDiaseAdriãodeAzevedo,seguidoresdeFranciscoSuárez.Conhece-seaimportânciadeSuárezparaahistóriadafilosofiamodernaeomodocomocertastesessuasencontraramecoemDescarteseemLeibniz.Ocontactoquereferimosfaz-se,porém,comojáseassinalou,emprimeirolugarcomKante,maistarde,comafenomenologiadeHusserl,masnãoexclusivamente,comoasimplescon-sultadosartigospublicados,aolongodeváriasdezenasdeanos,naRevista Portuguesa de Filosofia, facilmentecomprova.NãoespantaquenumartigodeCassianoAbranches–figuraderelevoda1.ªgeraçãodeprofessoresdaFaculdadedeFilosofia–,apropósitodametafísicaedoseumétodo7,seen-contreumareferênciaàLiçãoInauguraldeMartinHeideggernaUniversidadedeFreiburg, intitulada«QueéaMetafísica?».Assim,paraesteprofessordeBraga,ametafísicanãoéapenasumadisciplinadocurriculumfilosófico,queseexprimeemtecnicismosmaisoumenosincompreensíveis,pois,comoMar-tinHeideggerdefendera,oprópriometafísicoencontra-seimplicadonametafí-sica,queseenraízanasituaçãoexistencialdohomemenasuaprocuradoser.

NaAlemanha,ondeseretomaeaprofundaaquelatendênciainiciadaemLovaina,épatenteessediálogocomafilosofiadeKantemobrascomoGeist im Welt,deKarlRahner,talcomo,maistarde,emHörer des Wortes,domes-moRahner,sefarásentirapresençadeMartinHeidegger.A influênciades-teúltimoémuitoforteemMaxMüller,comquem,emFreiburg,nofinaldosanoscinquentadoséculopassado,estudara,comojádissemos,JoséBace-lareOliveira,circunstânciadequedãotestemunhoalgumasdascartasaqui

História do Pensamento Filosófico Português,Lisboa,EditorialCaminho,2000,volumev/tomo1,pp.329-343,p.338.

6 Otermo«remoçar»,aplicadoàfilosofiaescolástica,éempregueporCassianoAbranchesnumartigonecrológicosobreJosephMaréchal,comquemestudaraemLovaina,publicadonaRevista Portuguesa de Filosofia,1(1945)392-398.

7 Cf.abranches,Cassiano,«MetafísicaeseuMétodo», inRevista Portuguesa de Filosofia, X/4(1954)383-394.

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Introdução

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reunidas8.JáarelaçãocomHusserlserádeterminanteemJúlioFragata,nalinhadoquefazia,pelamesmaaltura(osfinaisdosanoscinquenta)nosEs-tadosUnidosdaAmérica,ojesuítaQuentinLauer–doutoradonaSorbonnecomumateseintituladaPhénoménologie de Husserl. Essai sur la Genèse de l’Intentionnalité9–e,emLovaina,GeorgesvanRiet.

OsprimeirosanosdaFaculdadedeFilosofia,seguindoestalinhageraldeorientação quemesmo os anosmais recentes não desmentem, parecem,assim, ter sidomarcadospela forte tendência emconfrontar a filosofia deSãoTomás–dominantenasescolasdosjesuítas–comdiversascorrentesdafilosofiacontemporânea.Veja-se,porexemplo,umaobracomoTeoria do Conhecimento,deDiamantinoMartins10.Apropósitodapolémicaentreidea-lismoe realismosão largamentediscutidasalgumas tesesdeMaxSchelersobreoassunto11;e,seaorientaçãogeraldaobraéclaramentearistotélico--tomista,ouescolásticaemsentidoamplo (bastaverasreferênciasaAris-tóteles, São Tomás, FranciscoSuárez, JaimeBalmes, ou JaquesMaritain,entreoutros),nãoémenosverdadequeoautortemocuidadodeapurarasconsequências,paraumagnosiologiaaristotélico-tomistaeparaassuascon-ceçõesdaobjetividadedoconhecimento,dasinvestigaçõesrecentes–pelomenosàdatadapublicaçãodaobra–dapsicologiagenéticadeJeanPiaget,oudateoriadarelatividadedeEinstein.AconsultademuitasoutrasobrasdeprofessoresdaFaculdadedeFilosofia,quesãomencionadasnestascartas,permitiráaoleitorinteressadocomprovaroquedizemos.Asnotasderodapéqueacompanhamosdocumentosquepublicamospermitirão,emcasodenecessidade,identificarrapidamenteostítulosemcausa,muitosdelesaindahojeacessíveisemalgumaslivrarias,bemcomonageneralidadedasbiblio-tecasuniversitárias.

8 Chama-seespecialmenteaatençãoparaacartadeJoséBacelareOliveirade27.05.1957,bemcomoparaoconjuntodeautoresaímencionados.AsnotasqueacompanhamestacartaprocuramfornecerumaideiageraldopanoramafilosóficovigenteemFreiburg,nofinaldosanoscinquenta.

9 lauer,Quentin,Phénoménologie de Husserl. Essai sur la Genèse de l’Intentionnalité,Paris,PUF,1955.

10 Cf.Martins,Diamantino,Teoria do Conhecimento,Braga,LivrariaCruz,1957.11 Curiosamente,oautortomacomobasedasuadiscussãoaobradeMaxSchelerintitulada

O Lugar do Homem no Cosmos,quecitanatraduçãocastelhana.Anãoreferênciaaosnumero-sostextospóstumosdeSchelersobreoassuntoficar-se-áadever,provavelmente,aodesconhe-cimentodalínguaalemã.

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Diálogos pela ciência

Mas,nesteconfrontoquereferimos,aspetodecisivoserá,provavelmente,areformulaçãodeumprogramacrítico,nosentidoporvezesquasekantia-nodotermo,emborareferindo-oainvestigaçõesdecarátergnosiológicoquesepoderão remontaraSãoTomás,senãomesmoaPlatão12eAristóteles.JoséBacelareOliveiradesempenharáumpapel fundamentalemtodoesteprocesso.Críticaserá,emsuaopinião,todaainvestigaçãofilosóficaquetemporobjetoanatureza,apossibilidadeeoâmbitodoconhecimentohumano.Nestesentido,seriaatélegítimo–afirmaBacelareOliveira–defenderasuaprimazia relativamenteàontologia,umavezqueestasupõe jáestabelecidaapossibilidadeouaimpossibilidadedosabermetafísico13.Assim,aobradeDiamantinoMartins,referidanoparágrafoanterior,pertenceria,seinterpreta-moscorretamenteaposiçãodeBacelareOliveira,aodomíniodanoética,oudagnosiologia,eaodateoriadoconhecimento,duasdasdivisõesemqueacríticasearticula,apardeumadoutrinasobreaverdadeeafalsidade,deumateoriadaciênciaedeumalógica.

2.2. Diálogo com Kant e retomada do problema crítico

Comomaisacimadissemos,foipreocupaçãodosjesuítasportugueses– aexemplodosseuscongéneresnoutraspartesdomundo–umdiálogoper-manentecomafilosofiamoderna,ondeopensamentodeKantassumeumrelevoparticular.Dos14artigosqueAlexandreFradiqueMorujãopublicounaRevista Portuguesa de Filosofia,comoassinalamosmaisabaixo,apenasdoissãodedicadosaopensamentodeKant.Todavia,comosedepreendedalei-turadacorrespondência,atraduçãoparaportuguêsdaCrítica da Razão Pura –queAlexandreMorujãolevouacabocomacolaboraçãodeManuelaPintodosSantos–motivouointeresseeacuriosidadedosprofessoresbracarenses

12 Veja-se,porexemplo,emPlatão,Teeteto,150b,areferênciaàartededistinguir(tò krínein)overdadeirodo falso.Noartigoquemencionamosnanotaseguinte,BacelareOliveira faz re-montarotermo«crítica»,noseuusomoderno,aGoclénio,nosiníciosdoséculoxvii,masotermojáocorrenoséculoanterior,emPierredelaRamée,emconexãocomadivisãodasdisciplinaslógicaspelosestoicos.

13 Cf.Oliveira,JoséBacelare,«Crítica»,inLogos, Enciclopédia Luso-brasileira de Filosofia,volume iii,Lisboa /SãoPaulo,EditorialVerbo,1989,cc.1235-1238,c.1238.Ouseja,paraonossoautor,críticaemetafísicanãoseopõe,comoaconteceránocriticismokantiano.Voltaremosaesteassuntonoponto2.2destaIntrodução.

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daCompanhiadeJesus.TambémaFaculdadedeFilosofiaprestouasuacola-boraçãoparaarealizaçãodesteempreendimento.DasuariquíssimabibliotecasesocorreuAlexandreMorujãoparaoseutrabalhodetradução,nomeada-menteparaautilizaçãodetraduçõesdaobradeKantemoutraslínguas,paraefeitosdecomparaçãocomatraduçãoqueestavaarealizar14.

ClaroqueointeressedosPadresjesuítaspelafilosofiadeKantnãoeraumanovidade.Poder-se-ámesmodizerquesealgumacoisaidentificaosfilósofosligadosàCompanhiadeJesusrelativamenteaoutrosautoresetendênciasdafilosofiacristã–umaexpressãodeÉtienneGilson,queaquiutilizamosporco-modidade,sementrarnoscomplexosproblemasquecoloca–éummarcadointeresseporKant,dequesãoexemplosos járeferidosJosephMaréchaleKarlRahner,masaosquaissepoderiaacrescentar,maispróximosdenósnotempo,MarcelRégnier,GiovanniSalaouFrançoisdeMarty15.Se,porumlado,afilosofiadeKantpôde,paraalguns,fornecerummodeloespeculativoalter-nativoàfilosofiadeSãoTomás,poroutro,aestratégiadosfilósofosjesuítas,nesteinteressantediálogo,pareceterconsistidoemrecolocarostermosdaalternativa,mostrandoqueela,defacto,nãoexiste16.AfilosofiadeKantapa-rece,assim,nãocomoopostaàdeSãoTomás,massimcomoumafilosofiaquecorta,deformaarbitrária,o«dinamismodarazão»(queopensamentodeSãoTomásterialevadoatéaofim),porumdeficientepontodepartida:asub-missãodoentendimentoàsformaspurasdasensibilidade,cujaconsequênciaéatransformaçãodosobjetosdametafísicaespecial,naformulaçãoquedelesfez,noséculoxviii,afilosofiadeChristianWolff–asaber,Deus,AlmaeMundo–,emmerasideiasaquenãopodecorrespondernenhumaintuição.

ÉjustamenteàtemáticadaCrítica–numaaceçãodesteconceitoemqueamatrizneotomistadospensadoresdaFaculdadedeFilosofiasecruzacomadefiniçãodelequeéespecíficadeKant–queédedicadouminteressanteensaiodeJoséBacelareOliveiraintitulado«ACríticaperanteaOntologia,no

14 Sobreesteassunto,cf.acartadeAlexandreMorujãoaLúcioCraveirodaSilva,de24dejulhode1976.

15 Aoinvésdeoutrosrepresentantesdoneotomismonoséculoxx,comoforamoscasos,emFrança,deJacquesMaritaineÉtienneGilson.

16 CassianoAbranches,no jámencionadoartigonecrológicosobreJosephMaréchal, terádesempenhadoumpapelpioneiro,entreosprofessoresdaFaculdadedeFilosofiadeBraga,nes-taaproximaçãoaopensamentokantiano.ParaumacontextualizaçãodaatividadedeCassianoAbranches,cf.silva,LúcioCraveiroda,«ANeoescolásticaContemporânea»,pp.332-333.

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ÂmbitodaMetafísica»17.ÉdenotarqueoautorempregaapalavraCríticanumsentidoàpartidanão-kantiano,emboranãototalmenteincompatívelcomele.Defacto,paraBacelareOliveira,háqueanteporauma«críticadarazãopura»uma«críticapura»,poisaprimeira–aquelaqueKantprocuroulevaracabonaobracomomesmonome–temumcarátermeramentepropedêutico,name-didaemquevisaestabelecerascondiçõesdepossibilidadedoconhecimentonoplanodanaturezaedamoral.Totalmentediversoéoâmbitodacríticapura,paraBacelareOliveira.Trata-sedesabercomosecomportaohomemperan-teaverdade,analisandoaformaativaeinteligivelmentedeterminantedojuízo,nasuamáximaunidadeeuniversalidade,daqualresultaadeterminaçãointeli-gíveldo«serenquantoser»18.Ditodeumoutromodo,talvezesteprogramasepudessecaracterizarcomopassagemdoserafirmado(sejanoplanodojuízocognitivo,noâmbitodasciênciasdanatureza,sejanoplanodojuízomoral),dequeKantprocurouindagarascondiçõesdepossibilidade,paraaprópriaafirmabilidadedoser.Nestesentido,nãopareceexcessivoaBacelareOliveiradefenderaexistênciadeumaCrítica interioràprópriaFilosofiaPrimeira,namedidaemqueestaéjáumjuízodeterminantesobreo«serenquantoser»19.

Amesmaproblemáticaéretomadapeloautor,em1957,numensaiointi-tulado«BasesparaaconstruçãodeumaCrítica»20.Énomodocomo«Crítica»édefinidaporBacelareOliveiraquepodemoscommaisclarezaoqueadis-tinguedoprojetodeKantequeKantprocuroulevaracabo.ACríticaconstituiumestudodoconhecimentohumano,masnosseusaspetoslógicoepsicoló-gico;ora,nestadefinição,parecedesapareceroqueconstituiaespecificidadedaabordagemtranscendentaldeKant,aqual,sebemqueformal,comoaló-gica,temumalcancequedelaébemdistinto.Comefeito,Kantnãoseocupa,emprimeirolugar,davalidadelógico-formaldosnossosconhecimentos,massimdomodo comoas formasa priori da sensibilidade e do entendimentoconstituemascondiçõesdepossibilidadedaexperiênciadosobjetos.Ese,naaceçãodeBacelareOliveira,otrabalhodaCríticaseintegranaordenaçãodainteligênciaparaaverdade,tambémnãosedeveráveraquiqualqueres-péciedeaproximaçãocomopensamentodeKant.Poisseaverdadeapenas

17 InRevista Portuguesa de Filosofia,X/4(1954)343-382.18 Idem,Ibidem,pp.352-353.19 Idem,Ibidem,p.367.20 InRevista Portuguesa de Filosofia,XIII/3(1957)225-258.

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Introdução

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seexprimeporumaoperaçãodoconhecimento,todooconhecimento,parasê-lodefacto,deveráexistir,aoinvésdoqueéadmitidoporKant,comoum«efeitodaVerdade»21sobreele.

Podenãoser, àprimeira vista, totalmenteclarooque tal significa.UmanotaderodapédeBacelareOliveirapoderá lançaralguma luzsobreasuaposição22.AposiçãodeKantéaíclassificadacomo«agnosticismonumeno-lógico»,emvirtudedoempregocríticodaleianalíticadaidentidade.(Note-se,depassagem,queKantdefendequeoprincípiode identidadeéoprincípiosupremodetodososjuízosanalíticos,masqueosjuízossintéticosexigemumprincípiodenatureza totalmentediferente.)Bacelar eOliveiraparecequererdizerqueofenómeno,paraKant,érigorosamenteidênticoàscategoriasdoentendimentoqueoverificam,equetalposiçãosefazàcustadadimensãopropriamenteontológicadofenómeno,emquesefundemaatividadedeco-nhecereaverdadepelaqualseconhece.ÉcertoqueBacelareOliveira,aoapuraroquechamaa«formalidadedacrítica»–ouseja,asuanaturezaintrín-seca–parecereaproximar-sedeKant,namedidaemqueasuacaracterísticafundamentaléaautonomia23.Mas tambémaquinãonosparecequeasuaperspetivadebasesofraumainflexão.ParaKant,aautonomiasignificaquearazãoéojuiznoseuprópriotribunal,aopassoqueparaBacelareOliveiraaautonomiaterádeserentendidaàluzdaquele«efeitodeVerdade»quemaisacimamencionámos24.

TambémCelestinoPires,emartigoanteriormentereferido,abordaaproble-máticadacrítica,procurando,noseguimentodeJosephMaréchal,indagarse,noprojetokantiano,maugradooseupontodepartida,nãoseencontrarãoosgermesadormecidosdeumaproblemáticametafísica.NoseguimentodeMaréchal, esteprofessordeBragaestabeleceumadistinçãoentre a críticatranscendental,quepartedoobjetofenomenal,eacríticametafísica,quepar-tedanecessidadedaafirmaçãoontológica.Todavia,duasdireçõesdiferentespoderãochegaraomesmoresultado.Comefeito,paraacríticatranscenden-tal,oobjetometafísicoéapenaspostulado,porqueoseupontodepartidaé

21 Idem,Ibidem,p.229.22 Referimo-nosànota7,àp.230,doartigocitadonasnotasanteriores.23 Idem,Ibidem,p.233.24 Alémdetudoisto,BacelareOliveiraidentificaaCríticacomojuízo(Ibidem),aopassoque

Kantsubmeteesteúltimo,nassuasdiversasmodalidades,aoprópriotrabalhodacrítica.

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osujeito;acríticametafísica,aoinvés,afirmadeantemãooobjetoontológicoparanele incluirosujeito transcendental25.Ora,namedidaemqueacríticametafísicasegueainclinaçãonaturaldainteligência26–queafirmaoser–,elaé,afirmaCelestinoPires,superioràcríticanasuaversãomoderna,realizadaporKant.ÉclaroqueKant,nãoseguindoestainclinaçãonaturaldainteligên-cia,ou,pelomenos,nãoacolocandonabasedoseusistemacrítico,podeseragoraacusadodefenomenismo,ouseja,dereduçãodoseraofenómeno,ouaoque«aparece».Noentanto,convémnãoesquecerque,seKant,defacto,nãosegueaquelainclinação,talseficaadeveraduasrazões:1)porqueexisteumfactodaciência,dequeénecessáriodarcontaetal factoapoia-seemprincípiosquenãosãoosdarazãocomum;2)porquetalfactocontrastanoto-riamentecomasituaçãodametafísica,quenãoencontrouosegurocaminhodaciênciaporseapoiaremprincípioscontráriosàquelesemqueestaúltimaassentaosseusfundamentossólidos.

Seráprecisoentãodemonstrarqueaafirmaçãoontológica,queconstituiopontodeapoiodacríticametafísica,éconciliávelcomumaepistemologiaquedêcontadaquele factodaciência.Maspoderãoo filósofo tomistaeofilósofo crítico acordar numamesma epistemologia?O queCelestino Piresafirmasobreoprincípiodeidentidadepermite-nosalgumasdúvidas27.Poisseécertoqueaafirmaçãodequeumobjetoéidênticoasipróprioéirrecusávelese,relativamenteaesteassunto,qualquerabstencionismorelativamenteàverdadesecontradizasipróprio,poroutrolado,seseguirmosKant,conclui-remospelocarátergnosiologicamentenulodaquelaafirmaçãodaidentidade.Umaepistemologia, paraKant, só sepoderá erigir nabasedoquechama«princípiosupremodetodososjuízossintéticos»,queseformuladoseguintemodo:ascondiçõesdepossibilidadedaexperiênciasão,aomesmotempo,ascondiçõesdepossibilidadedosobjetosdaexperiência.Kantnãoseabs-témrelativamenteaoproblemadaverdadeeoquesepoderiachamaroseufenomenismoéperfeitamentecompatívelcomela.Simplesmente,noplanodo

25 Pires,Celestino,Ibidem,p.129.26 Estaafirmaçãodeumainclinaçãonaturaldainteligênciapoderáteralgunspontosdecon-

tactocomafilosofiahusserlianadomundodavidaeexplicar,destaforma,ointeressepelafeno-menologiaporpartedosprofessoresdaFaculdadedeFilosofia.Sobreesteassunto,veroque,maisabaixo,dizemosapropósitodeJúlioFragata.

27 Pires,Celestino,Ibidem,pp.130-133.

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usoteoréticodarazão–econvémdizerqueestenãoéoseuúnicouso,nem,paraKant,omaisimportante–,averdadedeverárestringir-seaoâmbitodaexperiênciapossível.

Um interessante ensaio de Júlio Fragata, «Fenomenologia e ProblemaCrítico»28,mostradeque forma,paraestepensador jesuíta, umacríticadafilosofiadeKant,nalinhadoquedissemosnosparágrafosanteriores,sepodecruzarcomuma leiturae interpretaçãodafilosofiadeHusserl.Defacto,se,comorespostaàabordagemempiristadoconhecimento,Kantjulgoupossívelrefutá-lapormeiodeumasínteseentreasdeterminaçõessensíveisdosfenó-menoseasformasmentais,oucategorias,nãoofezsenãoàcustadeumaduplaperda:adapersuasãoespontâneadaexistênciadeummundoexterior(queseriarestabelecidapelafilosofiatardiadeHusserldo«mundodavida»29)eadarealidadedas«transcendências»–nosentidometafísico–deDeusedaAlma.NãocabenoslimitesdestabreveintroduçãoumaanálisedestetextodeJúlioFragata.Limitamo-nosaobservarque,paraoautor, aquele «dina-mismo»,queKantteriainterrompido,nãoécompletamenterestabelecidoporHusserl,umavezqueomestredeFreiburgnãoreconhece,comoresultadodoseu idealismo fenomenológico,aexistênciadeum«determinanteextrín-seco»daconsciência,capazdeomotivar30.Emtermostalvezesquemáticos

28 Cf.«FenomenologiaeProblemaCrítico»,inProblemas da Filosofia Contemporânea,ed.cit.pp.29-48.EsteensaioforainicialmentepublicadoemProblemas da Fenomenologia de Husserl,Braga,LivrariaCruz,1962,pp.159-199.

29 JúlioFragatanãoserefereexplicitamenteàfilosofiadomundodavida,mas,nasuacríticadoidealismodeBerkeley,pareceapontarparaela,aoafirmarqueaexistênciapré-dadadomun-doéumacondiçãodepossibilidadedopróprioatodeconhecer.(Idem, Ibidem,p.40)Istonãosignificaqueopensadorjesuítaaceiteafilosofiahusserlianadomundodavida,àqual,namesmapágina,masumaslinhasmaisabaixo,parecedirigiracríticadenãoterreconhecidoqueapré--doaçãonãoéapenasumaexigênciadaatitudenatural,mastambémdaatitudetranscendental.JulgamosqueJúlioFragatanãopercebeuemquemedidatambémoéparaHusserl.

30 Idem,Ibidem,pp.37esegs.Façamos,todavia,maisumacurtaobservaçãosobreana-turezadaqueledinamismoquereferimos.Éque,nãosendoparaosujeitofinitohumano,oco-nhecimentoumaatividadeprojetivaeconstituinte–comooéparaumasubjetividadeinfinita–,talconhecimentoresultanaconstituiçãodeumaalteridadequeseopõefenomenologicamenteaosujeito.Paraestaoposição,afirmaJúlioFragata,háquebuscarumaexplicação.Agnosiologiasupõe,assim,umametafísica,poisnãoéapenasumarelaçãoentresujeitoefenómeno,massimumarelaçãoentretrêstermos:osujeito,ofenómenoemais«qualquercoisa»,analógicaaeste,equeexpliqueasuanatureza.(JúlioFragata,todavia,nãopareceestabelecerumaclaradistinçãoentreasnoçõeskantianaehusserlianadefenómeno,oqueenfraqueceasuaargumentação.)

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poderíamossintetizartodaestaproblemáticadaseguinteforma:aopassoqueafenomenologia,suspendendoatranscendênciadarealidadeexterior,emre-sultadodaepoché,pretendeconservaraalteridadedofenómenonoâmbitodeumplanodeimanência,Fragatainsistequeoreconhecimentodessaalteri-dade–queafenomenologianãonega–implicaaaceitaçãodatranscendên-cia.(Ouseja,nasualinguagem,o«determinanteextrínseco»31.)

2.3. Diálogo com Husserl e com a fenomenologia

Aorientaçãoaristotélico-tomista,dequevimosfalando,éigualmenteevi-dentenaquelesprofessoresdaFaculdadedeFilosofiaquemaisseaproxima-ramdafenomenologiadeHusserlecomelatravaramumpermanentediálo-go32.Foi,porexemplo,ocasodeJúlioFragata,paraquemAlexandreFradiqueMorujãoescreveuumabrevenotaintrodutóriaaumacoletâneadeensaiospu-blicadapostumamente33,bemcomo,comoutrodesenvolvimento,umensaionovolumedehomenagemquelhededicouaRevista Portuguesa de Filosofia,apósoseuprematurofalecimento,edequemaisàfrentefalaremos.Sobreomodocomoofilósofojesuítaseaproximoudafenomenologiaesobreousoquedelafez,eleprópriosepronunciouemtermosquevaleapenaseremaquirecordados:

31 Paraoleitorquesequeiraorientarnosmeandrosdestaintrincadapolémica,sugerimosaleituradeAlexandreFradiqueMorujão,«O“FenómenoPuro”,PontodePartidadaFenomenologiadeHusserl»,inEstudos Filosóficos,VolumeI,Lisboa,INCM,2002,pp.157-172.

32 Dointeresseprecocepelafenomenologia,porpartedosjesuítasdeBragadácontajáoartigodojesuítaalemãoAugustoBrunner,«AFenomenologia»,publicadonaRevista Portuguesa de Filosofia,VI/4(1950)337-352.AsuaabordagemaopensamentodeHusserl(masoartigocontémaindareferênciasaMaxScheler)temnaturaispontosdecontactocomaqueseráfeitapelosprofessoresdaFaculdadedeFilosofia.Todavia,sendoanterioraohorizontetemporalqueenquadraacorrespondênciaqueaquipublicamosedaautoriadeumpensadorestrangeiro,nãoentraremosempormenoressobreoseuconteúdo.

33 Cf.Fragata,Júlio,Problemas da Filosofia Contemporânea,Braga,PublicaçõesdaFacul-dadedeFilosofiadaUCP,1989;comum«Prólogo»deAlexandreFradiqueMorujão.Osensaiosreunidosnestacoletâneanãosãoapenassobrefenomenologia,nemapenassobreHusserl,abor-dandooJúlioFragataopensamentodeoutrosfenomenólogos,comoJean-PaulSartreouMau-riceMerleau-Ponty.AsquatrocartasdeJúlioFragataquereunimosnestaedição(asúnicasqueatéagorafoipossívellocalizar)dãocontadointeressedoprofessordeBragapelafenomenologiahusserliana.

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«Desejandopartirdirectamenteda“fenomenologiadeHusserl”,nempor issodeixamosdeainterpretareprolongarnumsentidoquenãonosinteressaqueviesseateraanuênciadeHusserl.Afinal,ariquezadumfilósofonãoestátantonasteoriasqueestabeleceu,massobretudonaintuiçãoounasintuiçõesfun-damentaisquecomandamodesenvolvimentodoseusistema,demodoapo-deremserretomadascomosementesfecundasdenovosdesenvolvimentos.»34

Estaestratégiainterpretativa,seassimlhepodemoschamar,éperfeitamen-telegítima,sejarelativamenteàfenomenologia,sejarelativamenteaqualqueroutracorrentefilosófica;diríamos,até,queelaéexigidapelaprópriapráticafilosóficaqueseentendeasimesmacomoalgomaisdoqueummeroexercí-ciohistoriográfico.Aquestãoquenosocupará,naslinhasseguintes,é,antes,adesaberseestaretomadadasintuiçõesfundamentaisdafenomenologiadeHusserl,natentativadeasavaliaràluzdafilosofiaaristotélico-tomista–oqueé, emsimesmo,perfeitamente legítimo–nãoconduziráJúlioFragataparaalémdaquiloqueumapráticafenomenológicadeacordocomosprincípiosdomestredeFreiburgpoderáaceitar.

Doconjuntode textosdamencionadacoletânea,saliente-seoprimeiro,intitulado«OconceitodeontologiaemHusserl»35,comorepresentativodoqueseacaboudedizer.Depoisdeumaexposiçãoclaraerelativamenteobjetivado pensamento de Husserl (apoiada, fundamentalmente, em Investigações Lógicas,Ideias I e Lógica Formal e Lógica Transcendental),JúlioFragata,naconclusãodoseutrabalho,dirigealgumasbrevescríticasaopensamentodeHusserl,questionandoapossibilidadedeserlegítimoprocedermos,apoiadosnoconceitohusserlianodeintuição,àconstituiçãodeumaontologia.Deixe-mosdeparteaquestãodesaberseasnoçõesde intuiçãoedeontologiadeJúlioFragata–sustentadasasduasnohorizonteneotomistaquemarcaasuareflexão–edeHusserlsepodemaproximarseminfinitasprecauções.OessencialdaargumentaçãodoprofessordeBragavainumaoutradireção36.Comefeito,perguntaJúlioFragataseoquedesignapor«síntesemanifestativa

34 Fragata,Júlio,«FenomenologiaeGnosiologia»,inAtas do II Colóquio Português de Feno-menologia,Revista Portuguesa de Filosofia,XLI(1985)335-343,p.335.

35 Idem,Ibidem,pp.9-27.Anotabiográfica,nofinaldestevolume,explicaaproveniênciadotexto.Podeencontrar-seumaalusãoàsuaredaçãoeàsdificuldadesinerentesaotratamentodotemanacartadeJúlioFragata,reproduzidamaisàfrente,de30deoutubrode1965.

36 Sobreoquedizemosaseguir,cf.Ibidem,p.26.

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noético-noemática»(emtermosumpoucomaissimples:arelaçãoqueexiste,segundoHusserl, entre umamultiplicidade de visadas intencionais e o seucorrelatoidêntico)nosmanifestaoserenquantoserouapenasoserenquantomeroaparecer;ouseja,nestesegundocaso,enquantopurasignificaçãoqueremeteparaumsernuncadadoenquantotal37.

Háaqui, contudo,profundasdiferençasentrea fenomenologiaeoneo-tomismo relativamente à noção de objetividade. Se conservarmos a noçãotomistadeobjeto,afenomenologiadeHusserl,nomeadamente,noquetemdemaisespecífico,asaber,asnoçõesdeconstituiçãoedeobjetocomouni-dadedesentidooupolodeidentidade,aparecerácomoumasubjetivizaçãoinjustificadadarelaçãocognitiva38.Oqueprovavelmentesetornaincompreen-sívelparaumneotomistaéqueasignificaçãonãosejaalgodeapenas«men-tal»–independentementedomodocomosequeiradeterminaranaturezadamente–,massimaprópriacoisanomododasuadoação.Assim,porexem-plo,recorrendoaumexemplocélebre,diríamosque«Napoleão,vencedordabatalhadeJena»nãoéumamerarepresentaçãomentaldosujeito«NapoleãoBonaparte»,massimopróprioNapoleãoBonapartedando-sedeumcertomodo, ao qual se poderiam contrapor outrosmodos, como, por exemplo,«Napoleão,oderrotadodabatalhedeWaterloo».Nãoénecessárioprocurarumserrealcorrespondenteaestasignificaçãoequeestivesseparaládela,poiséestamesmasignificaçãoquepermitequeoserrealsejadado.Oserreal(falamos,nestecaso,do indivíduoNapoleão)éapenasopolo idealdocon-juntodassignificaçõesquelhesãoatribuídas,sendoidentificado,justamente,pelatotalidadedelas.(O«serreal»correspondeaoque,nalinguagemtécnicadeHusserl,sedesignapor«noema».)

37 AquiloaqueJúlioFragataserefereéaoantiquíssimoproblemada«realidadedomundoexterior»equestionaapossibilidadedeafenomenologiachegaratéele,sendoelaapenasumadoutrinadassignificações,sempreàprocura(provavelmenteemvão,nabasedosseusprópriospressupostos)doobjeto«exterior»correspondenteacadaumadelas.Estainterpretaçãoparecetermarcadooutrospensadoresportuguesesque,nasegundametadedoséculoxx,seinteressa-rampelopensamentodeHusserl,comofoiocaso,naFaculdadedeLetrasdoPorto,deEduardoAbranchesdeSoveral.Trata-sedeuma interpretaçãocompletamenteerradaeoproblemada«realidadedomundoexterior»é,paraafenomenologia,oexemploporexcelênciadoqueéumpseudoproblemafilosófico.Naslinhasacimadamosalgumasindicaçõessobreesteassunto.

38 OfilósofojesuítaQuentinLauerfoiextremamentesensívelaestasdiferenças(cf.op. cit.,pp. 46-47) e a sua apresentaçãodadoutrina husserliana da intencionalidade é ainda hoje degrandevalor.ACartaI,deFélixAugustoRibeiroparaAlexandreMorujão,de9dejulhode1955,informa-nosqueJúlioFragataconheciaestaobra,àdataacabadadepublicar.

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UmadistinçãooperadaporJúlioFragataentre«representação»e«signifi-cação»pareceestabeleceraquiumdualismoqueafenomenologianãopodeaceitar39.Fragatadefineasignificaçãocomoomomentoespeculativodaintui-ção,emqueseatinge,poranalogia,oqueestáapenasimplícitonomomentointuitivo.Ouseja:porumlado,asignificaçãonãoéalgoque,comoemHus-serl,nosdirigeparaoobjetovisado,ficandonaexpectativadeumpreenchi-mentodavisada,poroutro,oobjetorepresentadopodeserinvestidoporumasignificaçãoqueotranscende.Osentidodefundodestaobjeçãoparece-nosanósseroseguinte:seéasignificaçãoquenosdirigeparaoobjeto,entãotudoésignificação–atémesmo,porventura,oquenãoexiste–eonossosentidodarealidadeedoqueérealidadefundadoraficairremediavelmentedistorcido.

Édignoderegistoque,numângulodeabordagemdafenomenologiacom-pletamentediferente,VitorinodeSousaAlvesdirijaaHusserlumaacusaçãoem tudo semelhante40. Por um lado, defende este professor deBragaqueadoutrinadaintencionalidadesignificaqueaconsciênciasetranscendeemrelaçãoaalgodeirredutívelasi,equedesignapor«fenómenoprojetado»;poroutrolado,distingueesteúltimodo«fenómenoprojetante»daesferareal,queafenomenologianãoafirmanemnega,masque,emsuaopinião,seofereceàconsciênciacomoumaespéciedefilme,noqualosfenómenosfísicoseassimplesquiméricas–comoresultadodaepoché–setornamindistinguíveis.Afenomenologia,comoqualqueroutravariantedeidealismo41,deixaaciência«suspensadeumaincerteza»42.Maspoder-se-áperguntarsecolhemcertas

39 Sobreesteassunto,cf.MOrujãO,Alexandre,«OPensamentoFilosóficodeJúlioFragata»,inRevista Portuguesa de Filosofia,LXII/3-4(1986)225-242,p.230.

40 Cf.alves,VitorinodeSousa,«IntroduçãoàFilosofiadasCiências»,inRevista Portuguesa de Filosofia,X/4(1954)456-482,p.462.

41 Acaracterizaçãodafenomenologiacomoumidealismoéproblemática,mas,mesmoqueaaceitemos(epoderáhaverboasrazõesparaofazer),seránecessárioprocederaumacaracte-rizaçãodo«idealismofenomenológico»eàsuarelaçãocomoutrasvariedadeshistoricamenteco-nhecidasdeidealismo.Cf.oensaioderiet,Georgesvan,«RéalismeThomisteetPhénoménologieHusserlienne»,inRevue Philosophique de Louvain,45(1957)58-92.Noque,maisemparticular,dizrespeitoàinterpretaçãodeJúlioFragatado«idealismo»husserliano,refira-seointeressanteen-saiodecantista,MariaJosé,«EvidenciaçãoProgressivado“FenómenoPuro”comoFundamentoRadical»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XLII/3-4(1986)277-309.DefendeaautoraqueasdistânciasdeFragatarelativamenteaoidealismodeHusserlcaracterizaram,sobretudo,aprimeirafasedasuaabordagemdafenomenologia,tendenteamostrarque,devido,justamente,atalidea-lismonuncaelasepoderiaconstituircomouma«filosofiaprimeira».

42 alves,VitorinodeSousa,Ibidem,p.463.

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supostasobjeçõesà fenomenologia,do tipodasquesão formuladasnesteensaiodeVitorinoSousaAlves:asaber,quenenhumcientistaduvidadarea-lidadedoobjetoqueestáaexperimentar,talcomonãoduvidadarealidadedaexperiênciaqueseencontraafazer,assimcomotambémnãoduvidadarealidadedascondiçõeslaboratoriaisquelhepermitemlevá-laacabo.Équesenãoduvida–comocremos todosquenãoduvida–éporquea todooobjetoverdadeiramenteexistentecorrespondeaconsciênciapossíveldeumasuaapreensãoorigináriaeadequada.Sabemosquenenhumobjetosepodedarsenãoperspetivisticamente,quedeumacasa,porexemplo,nãopodemoscaptaremsimultâneoasuafachadaeasuapartetraseira;mas,captandoafachada,supomosapossibilidadedeapreenderassuastraseiras,semoquenãoestaríamosnapresençadeumacasa.Ademais,quandoapreendemosumacasareal,mesmoqueanossaapreensãodelasejaincompleta(comonacircunstânciaacabadadereferir),todooatopercetivocontémumaindicaçãoacercadomododeacompletar,enriquecendoaprimitivaintuição43.

Mas regressemos a Júlio Fragata.Mais grave parece ser uma diferenteobjeçãoàfenomenologiaqueoautorformulaemoutrolugar44.AobjeçãotemavercomométododescritivopropostoporHusserlecomoqueseriaasuanaturalconsequênciadeencerraroqueédescritonoplanodeimanênciadaconsciência.Adescriçãoterádeserestringiraosseresmateriais,osúnicosquesãodiretamenteproporcionadosànossainteligência.Talrestriçãoacar-retouaindauma recusadoprincípiodecausalidade–enquanto ferramentaconceptualautilizarnoprocessodescritivo–eofechamentodaconsciênciaaqualquerrealidadedeordemtranscendente.EmA Doutrina da Intenciona-lidade na Fenomenologia de Husserl,de1955,AlexandreFradiqueMorujãoparece,nãodiríamospartilharestatese,mas,pelomenos,admitirapossibi-lidadedeumacertaleituradeHusserlaelapoderconduzir,transformandoafenomenologiaumaespéciede«monismodofenómeno»:

43 Sobreesteassunto,cf.Husserl,Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenolo-gischen Philosophie,§142,HusserlianaIII,DenHaag,MartinusNijhoff,1950,p.349.ParecetersidoumdestinofunestodemuitosleitoresdeIdeias Ioteremconcentradoasuaatençãona2.ªSecção(maisprecisamente,nateoriadareduçãofenomenológica)ena3.ªSecção(aexplicaçãodoa prioriuniversaldecorrelação)destaobraeteremminimizadoaimportânciada4.ªSecção,intitulada,justamente,«Arazãoearealidade».

44 Cf.«HusserleaFundamentaçãodasCiências»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XIII/1(1957)44-51,emespecialnap.49.

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«Ofundamentodoconhecimentoé[…]procuradoexclusivamentedoladodosujeitoeporissoo“fenómenodoobjecto”reduz-seàfunçãodecorrelatodaconsciência,puroobjectodesligadodacoisaexistente.Referi-loàconsciênciatranscendental não é obstáculo a que nos encontremos emnítido ambienteidealista.»45

Aquestãoéobviamentemuitocomplexaparaqueaquinelapossamosen-trarcomopormenorqueexige.Chamemosapenasaatençãoparaoseguinteponto:maisdoquerecusarousodacausalidadecomosinaldeaberturaàtranscendência,comoFragatadefende,Husserlexigequeelasejaintegradanoprocessoexplicativoapenasquandolhecorrespondeumaexperiênciavi-vida.Seumobjetoapenassurgenumarelaçãointencionalcomosujeito–seumarelaçãorealdecausalidade,independentedequalquerexperiênciavivida,sósepodebasearnumpressupostoinjustificado–,qualquersupostaaberturaa uma transcendência, postulada como anterior àquela relação intencional,nãoestádotadadaevidênciaapodíticaqueafilosofiadeveexigircomoseupontodepartida.Estaexigênciapodecompreender-seejustificar-senabasedofamoso«princípiodetodososprincípios»dequenosfalamasIdeias I.Comefeito,qualquerteseestabelecidaforadareferênciaàexperiênciavividarelevadepreconceitosepressupostosqueadescrição–paraserfielaoqueédes-crito–nãopodeadmitir.ClaroqueFragatatambémopareceadmitir,sóqueoconceitodeexperiênciavividatemneleumsignificadodiferentedeHusserl,poisnãoserefereaessaexperiênciatalcomoresultadeumaanáliselevadaacabosoboregimeda«reduçãofenomenológica»,massimematitudenatural,à qual a fenomenologia deveria voltar sob pena de permanecer umameradoutrinadasignificação46.

A impossibilidadedeo neotomista aceitar esta tese émuito claramenteexpressanoensaiodevanRietquemaisacimareferimos47.Seadmitirmos,

45 MOrujãO,AlexandreFradique,A Doutrina da Intencionalidade na Fenomenologia de Husserl (SeparatadeBIBLOS,volumexxx),Coimbra,1955,p.133.

46 Cf.A Fenomenologia de Husserl como Fundamentação da Filosofia,Braga,LivrariaCruz,1959,p.249.Sobreesteassunto,alves,PedroM.S.andMOrujãO,Carlos,«Husserl’s Ideen inthePortugueseSpeakingCommunity»,inLesterEmbree/ThomasNenon(ed.),Husserl’s Ideen,Dordrecht/Heidelberg/NewYork/London,SpringerVerlag,2013,pp.295-311,pp.306-307.

47 riet,Georgesvan,Ibidem,pp.61-63.Comoafirmaoautornoinício,todaasuaanálisedafenomenologiatomaporbaseasInvestigações Lógicas,Lógica Formal e Lógica Transcendental eaIntroduçãodeLudwigLandgrebeaExperiência e Juízo.Todavia,pensamosquealgumasdifi-

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comoesteautorafirma,queumavisadaintencional(nosentidodeatosigni-tivo)estáparaoseupreenchimento intuitivocomo,emtermosaristotélicos,apotênciaestáparaoato,estaremosa inverteraprimaziadoato,ouseja,aafirmaçãodaexistênciadeumobjeto,sobreapotência,ouseja,apossi-bilidadedeeleserdadoapenascomocorrelatodeumatoqueovisa.Ora,concluivanRiet,paraafenomenologiahusserliana,avisadaintencionalgozadeumaprioridadelógicarelativamenteàintuição.Oumelhor,afenomenologiarecusaaprioridadedaintuiçãoatualsobreasignificação.

Jáem1955,numdosseusprimeirosensaiossobreHusserl,JúlioFraga-ta defende umaopinião semelhante.Referindo-se ao que chamava, então,opontodébildafenomenologia,oautorasseveraqueele«equivaleaafirmarquesesignificaultimamenteaquiloquenãoexisteeportantoaquiloquenãosepodesignificar»48.TentemosentenderoraciocíniodeFragata.Senãoesta-mosemerro,oqueelequerdizeréque,nãosendo,paraHusserl,aexistênciarealsuficientementeevidente,coloca-aentreparêntesis,ficandoapenascomasignificaçãodela;aexistênciatorna-se,então,meraexistência significada,mesmo que nada existe fora da consciência intencional. Ora, a ser assim, a intencionalidadepoderia serapenasuma relaçãocomascoisasenquan-tosignificadas,ou,poroutraspalavras,umarelaçãodaconsciênciaconsigomesma.O sentido já nãodirigepara as coisas, conferir significação já nãoequivale a conferir referênciaobjetiva – comoé a tesedeHusserl49 –, poisosentidoéapenasoque,deumaeventualexistênciaefetiva,aconsciênciaconseguecaptar.Aexistênciaem sidomundo,concluiJúlioFragata,valeriaapenasparaaconsciêncianatural.

A interpretaçãoqueFragata faz,namesmapáginadoseuartigocitadonanotaanterior,deumapassagemdeErste Philosophie IInãonosparecetotalmentecorreta50.Comefeito,tendoreconhecidoque,paraHusserl,nãohámotivosparanegaraexistênciadomundo,afirma,deseguida,queHusserl

culdadesquevanRietafirmaencontrarnafenomenologiapoderiamdesapareceremresultadodeumaleituramaisatentadaobramencionadaemúltimolugar.

48 Fragata,Júlio,«AFenomenologiadeHusserl»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XI(1955)3-35,p.27.

49 Cf.,nomeadamente,Logische Untersuchungen, II /1, I,§18,HusserlianaXIX /1,DenHaag,MartinusNijhoff,1984,p.71.

50 Fragata remeteparahusserl,Erste Philosophie II,HusserlianaVIII,DenHaag,MartinusNijhoff,1959,p.53.

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nãoexplicitouessesmotivos,confinando,assim,aaceitaçãodasuaexistênciaàatitudenatural.Husserlpareceestaradizerqueoónusdaprovacompeteaquemquisernegaraexistênciadomundo,nãoaquemaafirma.Masosentidodasuaafirmaçãosópodeserqueestateseéválidanaatitudetranscendentalenãoapenasnaatitudenatural.Aquela,ao«suspender»esta,nãoaafetadoíndicedeindubitabilidade;apenasaanalisanointuitodemostrarofundamen-todassuascrenças.Maisumavez,oqueaargumentaçãodeFragataparecelamentar é queHusserl, em virtude do seu idealismo fenomenológico, nãointroduzaaquianoçãodecausalidade,poisseriaelaque,explicandooinfluxoquearealidadeexteriorexercesobreaconsciência,restabeleceriaorealismoeimpediriaafenomenologiadepermanecerprisioneiradasmerassignificações.

Mas,nestasdensaspáginasdeErste Philosophie II,háaindaoutracoisaemqueJúlioFragatanãoreparou51.Husserlcolocaapossibilidadededar-seumaaparência transcendental,ouseja,denãoseresteouaqueleobjetomun-danocujaexistênciasetornaincerta(exigindoque,pordetrásdomodocomoaparece,sebusqueaquiloqueverdadeiramenteeleé),massimseroprópriomundoquesetornaincerto.Aaparência transcendentalnãoimplicaaquebradaatitudenatural,maschamaaatençãoparaocarátersemprepresuntivodanossaexperiênciadomundo,paraaincessantecorreçãodosresultadosdasexperiênciasjáfeitas,paraofactodeestas,naatitudenatural,nãoseremdo-tadasdeapoditicidade.Masaatitudenatural,queconsistenacrençadequeoobjetoéexperimentávelenquantoobjetodomundo,comototalidadedascoisaspassíveisdeseremexperimentadas,podeserrestabelecidanosseusdireitospelaatitudetranscendental.Éestaque,chamandoaatençãoparaocaráterconcordantedanossaexperiênciademundo,impedequeelepossaserconsideradoumameraaparênciae,nomesmopasso, justificaacrençaemqueaatitudenaturalsebaseia,masquenãopodeelaprópriafundamentar.

O que Júlio Fragata escreveu sobreHusserl ou sobre a fenomenologia,atéquaseao finaldasuavida–umfinalprematuro,poismuitohaviaaindaaesperardoseu infatigável labor filosófico–nãoaltera,noessencial,asuaatitude,queparece fixadano iníciodosanossessentadopassadoséculo.(Mesmoadmitindo-se,comoatrásfizemosreferência,algumesbatimentonasuaafirmaçãodaimpossibilidadedeumidealismofenomenológicoseconsti-tuircomofilosofiaprimeira.)Alémdisso,seriaredutorquererlimitarointeresse

51 husserl,Ibidem,p.54.

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dosjesuítasportuguesesporHusserlaumaespéciedepolémicaentreneo-tomismoefenomenologia.AspáginasdaRevista Portuguesa de FilosofiadãocontadeuminteresseporHusserlquenãoficouconfinadoaesteângulodeabordagem.Mencione-se,apenasatítulodeexemplo,oartigodeIsidroRibei-rodaSilvasobreoantipsicologismodeHusserl,queregistamosmaisadiantenaBibliografia.Poroutrolado,paraládolimitetemporalqueébalizadoporestacorrespondênciadosprofessoresdaFaculdadedeFilosofiacomAlexan-dreFradiqueMorujão,ointeresseporHusserlpareceteresmorecido.Talnãosignificou,bementendido,umdesinteressepelafenomenologia.Muitosoutrosfenomenólogos concitaram a atenção dos professores deBraga, ou forammotivodepublicaçãonaRevista Portuguesa de Filosofia: poder-se-iamen-cionarosnomesdeMauriceMerleau-Ponty,deMaxScheler,deEmmanuelLévinas,oudeautoresligadosàhermenêuticadeinspiraçãofenomenológica(ou,pelomenos,heideggeriana),comoHans-GeorgGadamerouPaulRicoeur.MasodiálogocomHusserlecomafenomenologiadeinspiraçãohusserliananãomaisprosseguiucomaintensidadequeregistaranasdécadasde50,60e70doséculoxx.

3. A Revista Portuguesa de Filosofia

Umapartesignificativadacorrespondênciaqueagoradamosaconhecerdizrespeito às atividades daRevista Portuguesa de Filosofia, ou indiretamentea ela se refere.Aquase totalidadedos temas filosóficos abordadosnestascartas tiverameconassuaspáginasenelaAlexandreFradiqueMorujão foiregularmentesolicitadoacolaborar.Daremosconta,umpoucomaisadiante,dessacolaboração.

ARevista Portuguesa de Filosofiasurgiu,em1945,comosecçãotrimestraldarevistaBrotéria.Oregistoqueencontramosdoseuprimeironúmero,cons-tantenoCatálogodePublicaçõesPeriódicasExistentesnaBibliotecaGeraldaUniversidadedeCoimbra(1927-1945),identifica-acomo:

RevistaPortuguesadeFilosofia:secçãotrimestraldeciênciasfilosóficasdaBro-tériasobopatrocíniodoInstitutodeFilosofiadoB.MiguelCarvalho,deBraga/dir.DomingosMaurício… [etal.]:prop.eed.deGasparMariaLealGomesPereiraCabral–Braga:1945.

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Introdução

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ComoórgãodaCompanhiadeJesus–quehaviaregressadoaPortugalem1934,depoisdasuaexpulsão,em1910,motivadapelosideaisrepublica-nosqueexacerbaramaseparaçãodoEstadoedaIgreja,eseestabelecidonaRuadeSãoBarnabé,emBraga–,aRevista Portuguesa de FilosofiavemdarcorpoàmissãoparaquefoiinstituídooInstitutoBeatoMigueldeCarva-lho.Logoem1942,osestudos filosóficosaíministradossãoelevados,pordecretodoMinistériodaEducação,aoestatutodeCursoSuperiordeCiênciasFilosóficas,sendooInstitutoreconhecidocomoFaculdadePontifíciaem1947e,passados20anos,a13deoutubrode1967,porocasiãodoano50.ºdasapariçõesdaVirgemMariaemFátima,pelodecretoLusitanorum nobilissima gens,consagradocomoUniversidadeCatólicaPortuguesa.Nestetempo,nes-tepercurso,queéopercursoeotempodaUniversidadeCatólicaPortuguesa,sendo-lhe anterior,mas pertencendo-lhe, preservou sempre a conservaçãodasuafundaçãoemBragae,demodomaisoumenosvincado,osauspíciospróprios daCompanhia de Jesus, aRevista Portuguesa de Filosofia fez-sepublicarininterruptamente,atéaosdiasdehoje.

Paraalémdo já referidoDomingosMaurício,SJ, foramseus fundadoresosprofessoresCassianoAbranches,SJ,SeverianoTavares,SJeDiamantinoMartins,SJ,que,noseuinício,nãosóprocuravamdarmostradopensamentofilosóficoqueeraministradodaFaculdadedeFilosofia,mastambémtinhamcomoobjetivopromoveradivulgaçãodaquiloqueseiamaterializandonaaca-demiaportuguesa–emparticularemCoimbraemenosemLisboa,recorde-sequeaFaculdadedeLetrasdoPortohaviasidoextintaem1931–nocampodaespeculaçãofilosófica,noâmbitodametafísicadecarizneoescolásticoeneotomista,semesqueceroscontributossalmantinos(refazendoumeixoquejáhaviasidoformadoporCoimbra,ÉvoraeSalamanca).

Consideravamosseus fundadores, logonas linhas iniciaisde«PorquêeProgramada“RevistaPortuguesadeFilosofia”»,comqueabreoprimeironú-merodarevista,que:«AactividadefilosóficaemPortugal,nosúltimosséculos,foi a bemdizer nula. Incapacidade especulativa, adversidade do ambiente,deficiênciadecultura,preconceitosdeformaçãoescolar?Detudoumpouco,tomandoascoisasnageneralidade.»

Ospropósitosiniciaiseinauguraiseramclaros:difundirumatradiçãofilosó-fica,nãodoutrinária,inspiradadosprincípiosevalorespróprioseestruturantesdoensinoministradopelaCompanhiadeJesus;afirmaraRevista Portuguesa de Filosofia comooperiódico filosóficodemaior referêncianacional ecom

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elevado reconhecimento internacional; lutarcontraumcertopragmatismoepositivismoqueinformavamossaberesdoespíritoemPortugalemmeadosdoséculoxx;situaropensamentofilosóficoportuguêsnasombreirasdaes-peculaçãometafísicacontemporânea,semdescuraraleituraouareleituradahistóriadafilosofiaemPortugaledahistóriadafilosofiaportuguesa.Relativa-menteaesteúltimotópico,háasalientar,logonosprimeirosanosdeexistên-ciadarevista,arealizaçãodeumcolóquiosobreSãoMartinhodeDume,noXIVcentenáriodasuachegadaàPenínsula,umcolóquiosobreFranciscoSan-ches,noIVcentenáriodasuamortee,emparticular,oICongressoNacionaldeFilosofia,em1955,dequefalaremosadianteemmaispormenor.

Vieramaconcretizar-setodosestespropósitoseobjetivoscomapublica-çãodenúmerosdedicadosatemasespecíficos(mencionem-se,porexemplo,3fascículosdedicadosaomarxismo,nosvolumesxxviii,xxxii e xl),comaaber-turaàparticipaçãodeautoresinternacionais,algunsdelesderenome,comoGabrielMarcel, logoem1947,MauriceBlondel, em1948,KarlRahner, em1951,Hans-GeorgGadamer,em1977e,entreoutros,tambémPaulRicoeur,em1990.Mencionem-se,também,osfascículosdedicadosaaniversáriosdepublicaçãodeobrasfilosoficamenterelevantes,comoon.º4dovolumexliv,de1988,no200.ºaniversáriodapublicaçãodaCrítica da Razão Prática,onde,curiosamente,nenhumdoscolaboradoresqueabordaramestaobradeKantera,àdata,docentedaFaculdadedeFilosofia.

Deoutromodo,aatualidadeeahistóriaforampovoandoassecçõesqueseforamacrescentandoousucedendo,como:«Notas,InéditoseDocumen-tos»;«CrónicaInternacional»,«Crónica»,«FicheirodeRevistas»ou«Bibliogra-fia» [Recensões]; tambémcomnúmerosespeciaisdedicadosaautoresna-cionaiseinternacionais,simplesmentecomemorativosouevocativosdaobraoutambémemregistodehomenagem;livrosdeatas,recensões,nãosódeobras,mastambémdeencontroscientíficos;enfim,pormaisde75anosvema Revista Portuguesa de Filosofia se afirmandocomoperiódicode referên-cianoplanonacionaleinternacional, jáqueadmiteàpublicaçãoartigosemportuguês,inglês,francês,alemão,espanholeitaliano,constandoagoranasprincipaisbasesdedados, repertóriosbibliográficose índicesde referênciadequalidadecientíficacomosejam:ThePhilosophers’sIndex(Ohio,USA);In-ternationalPhilosophicalBibliography/RépertoireBibliographiquedelaPhilo-sophie(Louvain,Bélgica);Francis-BulletinSignalétique(CNRS,INIST–Fran-ça);Ulrich’sInternationalPeriodicalsDirectory(NewYork,USA);Internationale

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Introdução

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BibliographieGeistes- und Sozialwissenschaftlicher Zeitschriftenliteratur (IBZ–Alemanha);Dialnet(Logroño,Espanha);JSTOR(Michigan,EUA).

Ocaminhotrilhadoatéaosdiasdehojenuncarenegouoespíritodosseusfundadores,mastalnãoimpediuaRevista Portuguesa de Filosofiadeser,nãosóprodutoradareflexãofilosóficaquesefazemPortugal,numaorientaçãodematrizcristã,abertaànovidadeeàdiferença,mas tambémprodutodareflexãofilosóficaeuropeia,brasileiraeamericana,diremos,numapalavra,dareflexãofilosóficadoOcidente.

AlexandreFradiqueMorujãocolaborouativamentecomaRevista Portu-guesa de FilosofiaedeformamuitopróximacomBacelarOliveira,DiamantinoMartins,JúlioFragataeLúcioCraveirodaSilva,nadivulgaçãodopensamentofenomenológicoemPortugal, talcomoohavia intentadoeconcretizadonoCentro de Estudos Fenomenológicos daUniversidade deCoimbra, a partirde1965.É,pois,sobadireçãodeJúlioFragata–naquelaquepoderemoschamarasegundafasedodesenvolvimentodaRevista Portuguesa de Filo-sofia,poisqueaterceiraseráinauguradaedinamizadaporJoãoVila-Chãnoiníciodopresenteséculo–,queAlexandreFradiqueMorujãofazpublicarumconjuntodeartigos,dealgunsdosquaisnosdánotíciaaseleçãoepistolarquecompõeopresentevolume,asaber:

1.«HusserleaFilosofiacomoCiênciaRigorosa»,inAtas do I Congresso Na-cional de Filosofia,Revista Portuguesa de Filosofia,XI/3-4(1955)80-90;

2.«SobreaInterpretaçãokantianadoBeloedaArte»,Revista Portuguesa de Filosofia,XXIII/2(1967)113-134;

3.«SubjetividadeeIntersubjetividadeemHusserl»,Revista Portuguesa de Filosofia,XXV/3-4(1969)81-100;

4.«Fenómeno,Númeno,Coisaemsi:Notassobretrêsconceitoskantia-nos»,Revista Portuguesa de Filosofia,XXXVII/2(1981)225-248;

5.«A Filosofia como Saber Rigoroso de Fundamentação», in Atas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia,Revista Portuguesa de Filosofia,XXXVIII-II/4(1982)31-49;

6.«OSentidodaFilosofiaemLeonardoCoimbra»,Revista Portuguesa de Filosofia,XXXIX/4(1983)345-364;

7.«OProblemadaIntersubjetividadenaFenomenologiadeHusserl»,Re-vista Portuguesa de Filosofia,XLI/4(1985)345-368;

8.«OPensamentoFilosóficodeJúlioFragata»,Revista Portuguesa de Filo-sofia,XLII/3-4(1986)225-242.

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Diálogos pela ciência

9.«OItinerárioFilosóficodeSampaioBruno»,Revista Portuguesa Filosofia,XLIII/3-4(1987)225-242;

10.«EstruturaeSentidodo“MundodaVida”»,Revista Portuguesa de Filo-sofia,XLIV(1988)367-381;

11.«AIntersubjetividadeemGabrielMarcel»,Revista Portuguesa de Filoso-fia,XLV/4(1989)513-529;

12.«Husserlea InterpretaçãodaHistóriadaFilosofiaModerna»,Revista Portuguesa de Filosofia,L/1-3(1994)261-275;

13.«MeioSéculodeFilosofianaFaculdadedeLetrasdeCoimbra[1945- -1995]»,Revista Portuguesa de Filosofia,LI/2(1995)243-252;

14.«ADialéticadaAçãoem l’Action (1893)deMauriceBlondel»,Revista Portuguesa de Filosofia,LII/1-4(1996)579-588.

De1955,datadoprimeirotítulopublicadoporAlexandreFradiqueMorujãonaRevista Portuguesa de Filosofia,até1996,datadoúltimo,são41anos.Éumacolaboraçãoqueatravessamomentosdeumavidadedicadaàfilosofia,dequenestevolumesepretendedartestemunho.

4. O Congresso Português de Filosofia

AsCartasn.ºIIen.ºIII,deFélixAugustoRibeiroaAlexandreMorujão,referemumacontecimentofilosóficoderelevodemeadosdosanos50dopassadoséculo:o I Congresso Nacional de Filosofia,assimdesignadonasrespetivasataspublicadaspelaRevista Portuguesa de Filosofia52.Esteeventotevelugarentre9e13demarçode1955nacidadedeBraga,sobiniciativaeorgani-zaçãodaFaculdadedeFilosofiaeopatrocíniodaCâmaraMunicipaldaquelacidade.NaspalavrasdeLúcioCraveirodaSilva,quenaalturaeraReitordaFaculdadeequefoiumdosmentoresdoCongresso,esteseriaconvocadolivreeuniversalmentenostermosdeumaverdadeira«AssembleiapatenteatodososFilósofosePensadoresPortugueses»53.

Comefeito,masjánasconclusõesdoCongresso,podeler-senasrespe-tivasatas:

52 Osfascículos3e4darevista,doanode1955,sãodedicadosàpublicaçãodasatasdoCongresso.

53 AssimodefineLúcioCraveirodaSilva,masjánosanos90doséculoxx(cf.«Neoescolás-ticaContemporânea»,inHistória do Pensamento Filosófico Português,p.340).

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«Pelaamplitudedaconcepçãodoutrináriaepela formapatentedaconvoca-çãodirigidaatodosossetoresdoPensamentoedaCultura,esteCongressorevelouumacaracterística“nacional”,tendo-seneleassinaladorepresentaçõesfilosóficasdetodasasUniversidadesedasmaisdiversasescolas,instituiçõesecorrentesvivasdoPensamentoPortuguês.»54

Aindapelasmãosdofilósofojesuíta55,masjánocontextodoICongressoLuso-BrasileirodeFilosofia(1981) 56,cumpredestacaranotíciadapresençademaisdetrêscentenasdeparticipantes(373)ede81congressistascomteseoucomunicação,bemcomoa forte representação internacional, depaísescomo,porexemplo,Brasil,Espanha,Alemanha,FrançaeItália.

Outrosecosacercado impactoqueoCongressotevenopanoramafi-losófico português dos anos 50 do século xx podemos encontrá-los, de-signadamente, na comunicação de Fernando Castelo-Branco57, que seriaapresentada, também em1981, por ocasião daquelemesmoCongresso,intitulada«OICongressoNacionaldeFilosofia».Nestacomunicaçãointeres-sam-nos,sobretudo,doismomentos.

Umprimeiro,respeitanteàrecolhadostestemunhos58queFernandoCas-telo-Brancofaz,delesconstando:odeMoreiradeSá,quevênoCongresso«umapromessaporquenosfazanteverummaislargointeresse,emPortugal,pelaespeculaçãoeinvestigaçõesfilosóficas»;odeDelfimSantos,queapontanosentidodeperfazeroCongressoumpontodeviragemnaculturafilosóficaportuguesa,poisque«Oquenelesepassouédignodamaioratençãoeapre-çoepareceindicarquenovaerapodesurgirparaopensamentofilosóficoemPortugal»;eodeMariaManuelaSaraiva,queafirmatersido«esteCongresso[…],inegavelmente,umdespertardeconsciências».

54 AA.VV., Atas do I Congresso Nacional de Filosofia – Revista Portuguesa de Filosofia, XI-II/3-4(1955),p.776.

55 ConferênciaproferidaporLúcioCraveirodaSilva,nasessãodeaberturadoICongressoLuso-BrasileirodeFilosofia,intitulada«EvocaçãodoICongressoNacionaldeFilosofia»[cf.«AtasdoICongressoLuso-BrasileirodeFilosofia»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XXXVIII-II/4(1982)18-21].

56 Recorde-sequeAlexandreFradiqueMorujãoparticipanoICongressoLuso-BrasileirodeFilosofia, inaugurandoas sessõesplenárias como título «AFilosofia comoSaberRigorosodeFundamentação»[cf.Revista Portuguesa de Filosofia,XXXVIII-II/4(1982)32-49].

57 castelO-brancO,Fernando,«OICongressoNacionaldeFilosofia»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XXXVIII-II/4(1982)685-697.

58 Idem,Ibidem,p.696.

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Diálogos pela ciência

Já no que concerne ao segundomomento, oferece Fernando Castelo--Branco,jánaslinhasfinaisdoseuartigo,umasíntese,decujoconteúdopo-demoscolherumacaracterizaçãoacercadoestadodaarteemqueseencon-travam,nosanos50doséculopassado,oestudoeainvestigaçãofilosóficos:

«Consequentemente,oICongressoNacionaldeFilosofiaevidenciouumapos-sibilidadeepôsparalelamenteem focoumagravedeficiêncianasestruturasdavidaintelectualportuguesaedequãograveeraafaltadosquetinhamres-ponsabilidadesespeciaispornãoenvidaremosseusesforçosnosentidodesecriaremas instituiçõesque reunissemospensadoresecatalisassemamovi-mentaçãofilosóficaentrenós.»59

ASessãoSolenedeAberturaé feitaporLúcioCraveirodaSilva comaintervenção intitulada «Significado do I Congresso Nacional de Filosofia», ecomasconferênciasdeDelfimSantos,comotítulo«FilosofiacomoOntolo-giaFundamental»,edeArnaldoMirandaeBarbosa,queseapresentariacomotítuloFilosofia e Método.

Atendendo, agora, ao conteúdo da «Ata do I Congresso Nacional deFilosofia»60,podeler-sequeesteeventoserealizouaoabrigodeumconjuntodefactosedeacontecimentos.Sãoeles:oXVICentenáriodeS.AgostinhoedeserBragaoberçodePauloOrósio61;oIVCentenáriodarenovaçãodoColégiodasArtesdaUniversidadedeCoimbraqueassinalariaoinícioda«Fi-losofiaConimbricense»;eoXAniversáriodafundaçãodaRevista Portuguesa de Filosofia.

De relevar, também,o reconhecimentodaAssembleia,quersobreane-cessidadedepromoveraformaçãofilosófica,designadamentenasUniversi-dades62,SemináriosEclesiásticoseCursoSecundário,quersobreacriação

59 Idem,Ibidem,p.696.60 Cf. Atas do I Congresso Nacional de Filosofia,p.776.61 DiscípulodoBispodeHipona,colaborarianaobraCidade de Deus.62 Recorde-seareformadasFaculdadesdeLetrasde1957(Decreton.º41341,de30de

outubrode1957)quetrouxeàFilosofiaumasituaçãoinéditaemPortugal.NãosóadenominaçãodoCursodeixaadesignaçãodeCiênciasHistóricaseFilosóficas,paradarlugaràdeFilosofia,mastambémaduraçãodoCurso(dequatroparacincoanos)e,maisimportante,aestruturadosestudosemFilosofiaécompletamentealterada,registando-se,atítulodeexemplo,odaintrodu-çãodacadeirade«OntologiaeAntropologiaFilosófica»ede«HistóriadaFilosofiaemPortugal»,noquartoanodaLicenciatura.

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Introdução

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deumaSociedadeFilosóficaedapossibilidadede«fundaçãoeagremiaçãodeAssociaçõesfilosóficasdecarátermenosamploefinalidadedefinida»63.

OtemadoCongressoé«OConceitodeFilosofia,NaturezaeDetermina-çõesdaCiênciaFilosófica»,apartirdoqualfoimontadaaestruturacientífica,segundotrêsSecções:I–ConceitodeFilosofia;II–Filosofia,suasDetermina-çõeseProblemas;III–HistóriadaFilosofiaemPortugal.

Percorrendoodensovolumedeatas,épossívelverificarqueosautoresdacorrespondênciaqueorasepublicatêm interesses filosóficosdiferentes,apesardamatrizcomumqueosanima.Porexemplo,JoséBacelareOlivei-raabreaISecçãodedicadaaoConceitodeFilosofiacomotítulo,«SobreaEssênciadoConceitodeFilosofia»64 eJúlioFragataapresentará,aindanestaSecção,acomunicaçãointitulada«APossibilidadedumaFilosofiacomoCiên-ciaRigorosa»65.JáapresençadeLúcioCraveirodaSilva,paraládareferidaintervençãofeitanaSessãoSolenedeAbertura,distribui-seentreasSecçõesIIeIII.Noqueàquelarespeita,abre-aojesuítacomotítulo«FundamentaçãodaFilosofiaMoral»66e,nesta,marcapresençacomoartigo«SilvestrePinheiroFerreira»67.QuantoàpresençadeDiamantinoMartins,édereferirqueoseuartigointitulado«SobreoProblemadaFilosofiaCristã»68encerraaIISecçãodoCongressoequeotítulo«PauloOrósio–SentidoUniversalistadasuaVidaedasuaObra»69 inauguraa IIISecçãodedicada, recorde-se, àHistóriadaFilosofiaemPortugal.

63 Cf. Atas do I Congresso Nacional de Filosofia,p.778.64 Oliveira,JoséBacelare,«SobreaEssênciadoConceitodeFilosofia»,inRevista Portugue-

sa de Filosofia,XI-II/3-4(1955)27-40.65 Fragata,Júlio,«APossibilidadedumaFilosofiacomoCiênciaRigorosa»,inRevista Portu-

guesa de Filosofia,XI-II/33-4(1955)73-79.66 silva,LúcioCraveiroda,«FundamentaçãodaFilosofiaMoral», inRevista Portuguesa de

Filosofia,XI-II/1-2(1955)165-172.67 Idem,«SilvestrePinheiroFerreira»,inRevista Portuguesa de Filosofia,XI-II/3-4(1955)613-

-619.68 Martins,Diamantino, «Sobre oProblemada FilosofiaCristã», inRevista Portuguesa de

Filosofia,XI-II/3-4(1955)362-371.69 Idem,«PauloOrósio–SentidoUniversalistadasuaVidaedasuaObra»,inRevista Portu-

guesa de Filosofia,XI-II/3-4(1955)375-384.

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Diálogos pela ciência

AlexandreFradiqueMorujãoparticipanaqualidade,querdesecretáriodaprimeirasecçãodoCongresso,aoladodeJúlioFragata,secçãoqueseriadi-rigidaporBacelareOliveira,querdeconferencista,apresentandoacomunica-ção«HusserleaFilosofiacomoCiênciaRigorosa»70,naquelamesmasecção,naqual,ecomojávimos,pertencemascomunicaçõesdeJoséBacelareOli-veiraedeJúlioFragata.Recorde-sequecomaqueleartigoinauguraAlexandreFradiqueMorujãoasuacolaboraçãocomaRevista Portuguesa de Filosofia.

AcomunicaçãodeAlexandreFradiqueMorujãoestáorganizadaemseispontos:noscincoprimeiroséapresentadaquerumasíntese,claraeconcisa,dosprincipaisalicercesemqueassentaafenomenologiadeHusserle,con-sequentemente,opróprioconceitodeFilosofia,querumconjuntodeautoreseobrasondeecoamasliçõesdoMestredeFreiburg,nomeadamenteasdeMauriceMerleau-Ponty,MaxScheller,MartinHeidegger,JúlioFragata,Alphon-sedeWaelhens,QuentinLauer,EugenFinkouTran-Duc-Thao.

Segundoofilósofoportuguês:

«Afenomenologiasurgecomoaciênciaeidéticacujatarefaseráadedescreverasdiferentesregiõesdosernasuaestruturaprópria,precisandoapartepura dasciênciasempíricas,pondoemevidênciaas leiseidéticasquedefinemascondiçõesdepossibilidadedoconhecimentoempírico,istoé,osentido do seu ser.»(p.84)

SeránosextopontoqueAlexandreFradiqueMorujãomarcaráasuaposi-çãoquantoaHusserl,quantoàfenomenologiaequantoàdefiniçãodoconcei-todefilosofia,como ciência rigorosa.Asinterrogaçõesqueformula,numtextoaindadejuventudeequeseressentedeumaaindaincompletaassimilaçãodafenomenologia,queultrapassaránosanossubsequentescomaconsultadosnumerososinéditosdomestredeFreiburg,estãoemsintoniacomainterpre-taçãoàdatadominanteentreosprofessoresda«EscoladeBraga»,quemaisatrástentámos,emboraresumidamente,caracterizar:

70 MOrujãO,AlexandreFradique,«HusserleaFilosofiacomoCiênciaRigorosa», inRevista Portuguesa de Filosofia,XI-II/3-4(1955)80-90.

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Introdução

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«Finalmente, chegouou nãoHusserl à possedos fundamentosda “Filosofiacomociênciarigorosa”?Asobraspublicadasnãopermitemanteveroedifícioque prometia: programas sobre programas, esboçou algumas construções,mas,qualnovoMoisés,nãoentrounaterrafilosóficaprometida.»71

Omesmovalerá,também,paraasuaconstataçãodeumrelativofracassodoprojetofenomenológico:

«Certo,afilosofiarigorosaseriatarefademuitos,animadosdomesmoideal,deespíritodecolaboração,esegurosdopontodepartidapreconizadopeloMes-tre.Orasabemosodestinodessesseusdiscípulos.Todostrilharamcaminhoin-dependente;cadaumpretendeureformarafilosofiaapartirdoprópriométodofenomenológico.Nãosignificaistoofracassodaposiçãohusserliana?»72

Concluiráopensadorportuguêsoseuartigo,recolocandooproblemadoestatutoepistemológicodafilosofiaedarelaçãodestacomasciências:

«Origordasafirmaçõesfilosóficascompagina-secomodasdisciplinascien-tíficas?Nocasonegativo,éa filosofiaque ficadesvalorizadaeurgeelaborarummétodoqueaeleveaoníveldaapodicticidade.Masseráessadiferençademétodoessencial?Nãoconsistirá,aoinvés,numadiferençadeobjecto?Asciênciasestudariamascoisasquesãoetaiscomo são,afilosofiaconsiderariaascoisasenquanto são.Oaprofundamentodestadiferençaéquepoderiare-solveroestatutocientíficodafilosofia.»73

5. Os contactos da Faculdade de Filosofia com a Alemanha

RetomandoumdosescoposdaRevista Portuguesa de Filosofiajáreferidos,édesalientarodapreocupaçãodos fundadorescomo labor filosóficode-senvolvido internacionalmente, bastando aqui relembrar que, nos sumáriosdarevistaedesdeoprimeironúmero,constaasecçãodesignada«CrónicaInternacional».É,pois,justoafirmar-sequeumadasapostasdosfilósofosda

71 Idem,Ibidem,p.8872 Idem,Ibidem,p.89.73 Idem,Ibidem,p.90.

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Diálogos pela ciência

EscoladeBragaéadapromoçãodeumintercâmbiovivoentreinstituiçõesportuguesaseestrangeiras,designadamenteasdomeiouniversitário.

O desenvolvimento daquele intercâmbio é, pois, uma constante, bemcomoevidenciaos trajetosculturais,científicoseacadémicosquecadaumacolheria.Destemodo,esemprejuízodajáassinaladapontecomaBélgica,especificamentecomaUniversidadedeLovainalançadaporCassianoAbran-ches,oudorumoaFrançatraçadoporDiamantinoMartinscomasuaconhe-cida investigaçãoetesesobreaobradeHenriBergson,acorrespondênciadospadresjesuítas,JúlioFragataeBacelareOliveira,mantidacomAlexandreFradiqueMorujão, émarcada pelo comum interesse pessoal e institucionalcomaculturaeopensamentoalemães.

Nestesentido,porexemplo,entreJúlioFragataeAlexandreFradiqueMo-rujão há um horizonte intelectual comum, no que concerne aos interessesfilosóficos de ambos, já que ambos dedicarão grande parte da sua obra aE.Husserleàfenomenologia.Domesmomodo,entreBacelareOliveiraeAle-xandreFradiqueMorujãoseintensificaorelacionamentofilosófico,porviadoconhecimentodeKant.Recorde-se,tambématítulodeexemplo,ostítulosdascomunicaçõesapresentadasporocasiãodoICongressoNacionaldeFilosofia,deque jádemosnotaemlinhasantecedentes,constandoostrêspensado-resportuguesesnaSecçãodedicadaaoConceitodeFilosofia.Elementosquecompõemestaatmosferavêm,aliás,sendodadosaolongodestaIntrodução.

Ondeoleitorpodecolherelementosqueevidenciamumaposição,muitoclara,sobreoestreitamentodoslaçosinstitucionaisentreaFaculdadedeFi-losofiadeBragaeasinstituiçõesuniversitáriasalemãsénascartasdeJoséBacelareOliveira.Porexemplo,ColóniaeBonaperfazemoquepodemosde-signarpelocírculodaRenânia74eFreiburgquejáforadestecírculo,ampliará,intensificando,aquelaposição.EmtodasascartasdeBacelareOliveiraépos-sívelencontrar,aquiealém,maisumelementoquenospermiteafirmarqueofuturoReitordaUniversidadeCatólicaPortuguesaprivilegiaria,paraBraga,oscontactoscoma«terragermânica».

Aindanajácitadacartade3demaiode195675podemapurar-sealgumasdas razões que levariam o professor da Escola de Braga a tomar aquela

74 SobreaimportânciadaRenâniaparacontrabalançaroscontactosentreBragaeoutrasinstituiçõeseuropeiasveja-seoconteúdodaCartaVerespetivasnotas.

75 Cf.maisadianteaCartaV.

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Introdução

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posição:«densidade»e«disciplina»,nopensamentoenaobraéoqueencon-tranomeiouniversitárioalemão.Masexistemoutrasrazões.Maistarde,jáem195976,BacelareOliveiraassinalariaoseuinteressepelomodocomoomeiouniversitárioalemãoorganizaosseuseventoscientíficos,segundoomodelodoStudium Generale,afirmando,mesmo,queseriaútilaaplicaçãodetalmo-deloaidênticasrealizaçõesemPortugal.

Profundoconhecedordosprincipiascentrosdeirradiaçãodecultura,quenãosomenteaquelessobaalçadadaCompanhiadeJesus,BacelareOli-veiratraça,sobretudonascartasendereçadasaAlexandreFradiqueMorujãode1956,umverdadeiroitinerárioculturaleinstitucional.Recorde-seque,porestaaltura,AlexandreFradiqueMorujãoestavacomoleitornaUniversidadedeColónia(anoletivo56/57).

Desde o mosteiro Dominicano de Walberberg, situado entre Colónia eBona,erespetivaatividadeeditorial,dequeBacelareOliveirarelevaaDeuts-che Thomas-Ausgabe,passandopelaAbadiadeMaria-Lach,commençãoàmaisantigapublicaçãodeCulturanaAlemanha, Stimmen der Zeit – Die Zeits-chrift für christliche Kultur–quenosanos50doséculoxxconheceriaoseuincremento,nomeadamentecomKarlRahner–,atéaoThomasInstitutouàGoerres-Gesellschaft,BacelareOliveiraindica,aAlexandreFradiqueMorujão,algunsdosmaisimportantescentrosparacontacto.

São,ainda,referidasdiversaspersonalidadescomasquaisBacelareOli-veiramantinhaestreitoslaços,comoporexemplo,JosefKochmedievalistaefundador,em1950,dojáreferidoThomasInstitut,instituiçãoqueficariaagre-gadaàUniversidadedeColónia,ouHansPeters,Presidenteda,tambémjáreferida,Goerres-Gesellschaft.

SobreaGoerres-Gesellschaft,ouSociedadeCientíficadeGoerres,é im-portantereferirqueoseumodelodeorganização,sobretudonoquerespeitaàrealizaçãodassuasassembleiascientíficas,estevenabasedafuturaSocieda-deCientíficadaUniversidadeCatólicaPortuguesa.ApropósitodaSociedadeCientíficadeGoerresescreveriaBacelareOliveiranaRevista Portuguesa de Filosofia,salientando-seosseusartigosde1952ede1955,intitulados,res-petivamente,«“AGoerres-Gesellschaft”eoSentidoFilosóficodaAssembleiaGeralemMunique»e«SociedadeCientíficadeGoerres».

76 Cf.maisadianteaCartaXIV.

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Diálogos pela ciência

EmjeitodeconclusãodesteapontamentosobreoscontactosentreaFa-culdadedeFilosofiadeBragaea«terragermânica»podemosdizerquenãoficaramaquelessomenteaoníveldoestreitamentodelaçosinstitucionais.Ospensadores alemães e suasobras, e que tem sidodada adevida nota aolongodestaIntrodução,penetraramprofundamentenasdospadresjesuítas,JúlioFragataeBacelareOliveira.Aleituradealgumascartasprova-oeconce-demaoleitorumverdadeiromanancialdefontesedetestemunhosnaprimeirapessoasobredecisõesacercaderumospessoais,académicosecientíficos,bemcomosobreosrespetivoscontextos.

6. Critérios de edição

Ascartasqueapresentamosaseguirnãoforamescritasparaaposteridade.Istosignificaquealgumasdelasconservamumtomfamiliareusamumalin-guagemquenãoéamaishabitualemescritoscujaintençãoéapublicação.Comoéóbvio,nemotomnemalinguagemsofreramqualqueralteraçãoparaestaedição.Todavia,nãohesitámosemcorrigirumououtroerroortográfico,frutodadesatençãooudapressa,ouemcorrigir,semprequetalnospareceuimprescindível, apontuação.Mantiveram-se,em regra,asabreviaturasutili-zadaspelosautores,comalgumasexceçõesqueassinalamosmaisabaixo.Procedeu-se,contudo,como julgamospacífico,àpassagempara itálicodotítulodasobrasque,quernascartasmanuscritas,quernasdatilografadas,apareciaemsublinhadonooriginal.

Procurou-senãointerferirnotextodestacorrespondênciaque,comoatrásdissemos,nãosedestinavaàpublicaçãoeonde,comoseriadeesperar,seencontramgralhas,errosnaconcordânciadegénero,repetiçõeseomissõesdediversaordem.Asintervençõesdosorganizadoresdestaediçãocingiram--seaquatrotiposdecasos:

1.Transformação de algumas das numerosas abreviaturas em palavrasporextenso,nomeadamentenoqueserefereatermosemalemão.Porexemplo,St.apareceortografadoStrasse.Porregra,seguimosomes-moprocedimentosemprequesetratavadetítulosdeobras.

2.Algumascorreçõesnapontuaçãooriginal,semprequetalnospareceuexigidoparaacompreensãodotextoouquandoseverificavatratar-sedeerromanifesto.

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3.Adiçãodepalavrasmanifestamente omissaspor distração, ou repeti-çõesdesnecessáriasdamesmapalavra.

4.Passagemdepalavrasoufrasessublinhadasparaitálico.Nãoassinalamosestasintervençõesquefizemosnostextosoriginais.To-

davia,elesencontram-se,quase todos,disponíveisemhttp://cefi.fch.lisboa.ucp.pt/pt/espolio-afm.htmlpeloqueseráaípossíveloleitorinteressadoproce-deraumconfrontocomooriginaldotextoqueagoraapresentamos.

NaBibliografia,registamostodasasobrascitadas,quernestaIntrodução,quernasnotasexplicativasdefim,que,diretaouindiretamente,serelacionamcomosassuntosabordadosnaspáginasanteriores.

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