jacinto fradique e gonçalo-impasses oitocentistas no olhar do Último eça-2099

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    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Educao e HumanidadesInstituto de Letras

    Roberto Loureiro Jnior

    Jacinto, Fradique e Gonalo: impasses oitocentistas sob o olhar doltimo Ea

    Rio de Janeiro2009

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    Roberto Loureiro Jnior

    Jacinto, Fradique e Gonalo: impasses oitocentistas sob o olhar doltimo Ea

    Dissertao apresentada, comorequisito parcial para obteno dottulo de Mestre, ao Programa dePs-Graduao em Letras, da

    Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao:Literatura Portuguesa.

    Orientador: Prof. Dr. Srgio Nazar David

    Rio de Janeiro2009

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    CATALOGAO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/CEHB

    Q3 Loureiro, Roberto.Jacinto, Fradique e Gonalo: impasses oitocentistas sob o olhar do

    ltimo Ea / Roberto Loureiro Junior. 2009.95 f.

    Orientador: Srgio Nazar David.Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, Instituto de Letras.

    1. Queiroz, Ea de, 1845-1900 - Crtica e interpretao. 2.Queiroz, Ea de, 1845-1900 - Personagens Teses. 3. Realismo naliteratura Teses. 4. Naturalismo na literatura Teses. I. David,Srgio Nazar. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Institutode Letras. III. Ttulo.

    CDU 869.0-95

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial destadissertao

    __________________________ __________________Assinatura Data

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    Roberto Loureiro Jnior

    Jacinto, Fradique e Gonalo: impasses oitocentistas sob o olhar doltimo Ea

    Dissertao apresentada, comorequisito para obteno do ttulo deMestre, ao Programa de Ps-Graduao do Instituto de Letras,

    da Universidade do Estado do Riode Janeiro. rea de concentrao:Literatura Portuguesa.

    Aprovado em 30 de maro de 2009.

    Banca Examinadora:

    _____________________________________Prof. Dr. Srgio Nazar David (Orientador)Instituto de Letras da UERJ

    _____________________________________Prof. Dr. Maria do Amparo Tavares MalevalInstituto de Letras da UERJ

    _____________________________________Prof. Dr. Gilda da Conceio SantosFaculdade de Letras da UFRJ

    Rio de Janeiro2009

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    DEDICATRIA

    Ana Luiza, pelo carinho, pela dedicao, pelo incentivo, pela

    cumplicidade, pelos constantes puxes de orelha, enfim... pelo amor

    de mulher e amiga.

    memria do professor Jos Carlos Barcelos, que com a sabedoria e

    a humildade dos grandes mestres fez uma pergunta to simples que,involuntariamente, apontou-me o caminho que eu queria seguir.

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    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, pelo constante incentivo, em especial ao meu pai, Roberto

    Loureiro.

    Aos meus sogros, pela compreenso infinita.

    famlia Baptista, com quem aprendi o que uma casa portuguesa.

    Aos meus amigos portugueses, que me ajudaram a compreender e amar

    Portugal.

    Patrcia Cordeiro, que um dia teve a feliz idia de visitarmos a Quinta de

    Santa Cruz do Douro; e em outro me ofereceu a primeira obra de Ea de Queirs que li,

    A cidade e as serras.

    Adriana Loureiro, irm e revisora em tempo integral.

    Liana Riente, pela digitalizao das imagens.

    Ao Henrique Fadul Abrantes, pelo emprstimo do notebookna reta final desta

    dissertao.

    Ao professor Srgio Nazar David, pelo empenho, incentivo, pacincia e

    compreenso inesgotveis no processo de orientao.

    Aos professores Cludia Amorim, Flvio Garcia, Iremar Maciel, Maria do

    Amparo Tavares Maleval, Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu, Marina Machado

    Rodrigues, Mrio Bruno, Nadi P. Ferreira, Roberto Aczelo de Souza pela

    contribuio inestimvel para o meu entusiasmo para com os estudos literrios desde

    que ingressei nesta universidade.

    Aos funcionrios da Secretaria da Ps-Graduao do Instituto de Letras da

    UERJ.

    A todos os funcionrios da UERJ lotados na Biblioteca do Instituto de Letras.Aos funcionrios do Real Gabinete Portugus de Leitura.

    FAPERJ, pela concesso da bolsa de estudos que proporcionou a realizao

    desta pesquisa.

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    RESUMO

    LOUREIRO, Roberto.Jacinto, Fradique e Gonalo: impasses oitocentistas sob o olhardo ltimo Ea. 2009. 95 f. Dissertao (Mestrado em Literatura Portuguesa) Instituto

    de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

    A fase conhecida como o ltimo Ea um perodo controvertido na obra deEa de Queirs. A ilustre casa de Ramires (1900), A cidade e as Serras (1901) e Acorrespondncia de Fradique Mendes (1900) so, geralmente, consideradas obrasmenores. H quem veja em Gonalo Ramires um personagem vazio; para outros, a sagade Jacinto uma obra reacionria; e apenas Fradique Mendes desfruta de maiorsimpatia nos estudos queirosianos. No entanto, nos estudos mais recentes, h umarecuperao deste perodo e, para esses pesquisadores, tais obras apontam uma nova

    postura ideolgica do autor que, atravs de elementos histricos, simblicos e mticos,

    conduz a um dilogo com os temas e os valores mais discutidos da cultura europianaquele final de sculo. Com esses elementos, Ea expe nas trs obras a necessidadede a sociedade adotar uma postura de originalidade no pensar visando independnciaintelectual e eliminao de conceitos caducos. Assim, essas trs obras so vistas nestetrabalho como uma trilogia, e os trs protagonistas representam trs propostas de Ea deQueirs: Gonalo o portugus rural que busca no passado a fora para mudar; Jacinto o portugus cosmopolita que retorna s origens para, de modo singular, pr-se emdilogo com o seu pas e o mundo que conhecera na capital do sculo XIX (Paris);Fradique o portugus global que circula vontade pelos continentes, mas no deixa deamar Portugal. A trilogia apresenta propostas para um novo sculo: livrar o homem dasamarras que o atavam ao nacionalismo romntico, crena cega na cincia, ao poder da

    igreja e aos grandes sistemas filosficos.

    Palavras-chave: ltimo Ea. Realismo-naturalismo. Fim-de-sculo.

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    ABSTRACT

    The phase known as the ultimate Ea is a controversial period at Ea deQueiros opus. A ilustre Casa de Ramires (1900; translated as The illustrious House ofRamires), A cidade e as serras (1901; translated as The city and the mountains) and Acorrespondncia de Fradique Mendes (1900; The Correspondence of Fradique Mendes)are usually considered minor texts. Some people see Gonalo Ramires as an emptycharacter; for others, Jacintos saga is a reactionary text; only Fradique Mendes relishesthe affinity at queirosian studies. Nevertheless, at the most recent studies, there is arecovery of this period and, for this researchers, such books point out a new ideological

    position of the author that, through historical, symbolic and mythical elements leads to adialogue with the themes and values discussed at the European culture at the end of thecentury. With these elements, Ea exposes in the three books the necessity of the society

    to adopt a position of original thoughts aiming at intellectual independence and theelimination of decrepit concepts. So, the three pieces are seen in this work as a trilogyand the protagonists represent the Ea de Queiross proposals: Gonalo is the ruralPortuguese that seeks for the strength to change in the past; Jacinto is the cosmopolitanPortuguese that returns to his origins to, in a single way, put himself in dialogue withhis country and the world he knew in the capital of the 19th century (Paris); Fradique isthe global Portuguese that easily circulates through the continents, still loving Portugal.The trilogy presents proposals to a new century: release man from chains that tie him toromantic nationalism, to the blind belief at science, to the power of church and to thegreat philosophical systems.

    Keywords: Ultimate Ea. Realism-naturalism. End of the century.

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    SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................... 09

    1 ORIGENS DO FRADIQUISMO......................................................... 18

    1.1 Paris e aflnerie................................................................. 25

    1.2 O dndi e a efemeridade.................................................... 31

    2 O LTIMO EA................................................................................ 38

    2.1 O farol................................................................................ 41

    2.2 Entre o macadame e o socalco........................................... 52

    3 A CORRESPONDNCIA DE FRADIQUE MENDES..................... 64

    3.1 As Cartas............................................................................ 70

    CONCLUSO...................................................................................... 83

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................... 91

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    E como num meridional de vinte anos, lrico de raiz, todoo amor se exala em canto no houve moo que no

    planeasse um grande poema cclico para imortalizar aHumanidade.

    (Um gnio que era um santo)

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    INTRODUO

    Jos Maria Ea de Queirs, descendente de magistrados e de militares, nasceu em Pvoade Varzim, ao p do Porto. Formou-se em Direito, foi jornalista, administrador de Concelho e

    cnsul em Cuba, Inglaterra e Frana. Viajou pela frica, Oriente-Mdio, Amrica e Europa, e aos

    55 anos incompletos, morreu em Paris.

    Conheceu as agruras dos trabalhadores/escravos agrcolas chineses em Cuba, dos

    emigrantes portugueses nas plantaes de fumo no Sul dos Estados Unidos e dos mineiros na

    Inglaterra. Como cnsul, praticou as idias socialistas que desenvolveu nos tempos de estudante

    defendendo os trabalhadores junto aos latifundirios e grandes industriais. Esteve na inaugurao

    do Canal de Suez e conheceu Zola. Casou com uma das filhas da Condessa de Resende, teve

    filhos, fundou uma revista e travou lutas com seus editores por um pagamento mais justo por suas

    obras.

    Uma vida dividida entre legaes, campos de cultivo, unidades fabris, sales da alta-

    sociedade, minas de carvo, redaes e dificuldades financeiras. Transitou entre escondidas

    provncias portuguesas e as grandes metrpoles do mundo moderno. Atravessou fronteiras,

    conheceu pessoas de todas as classes, mas no abandonou as convices da juventude, apenas se

    adaptou s circunstncias que a vida lhe apresentou. Todos esses dados biogrficos exemplificam

    como essas experincias foram fundamentais na formao desse homem de Letras, que gerou,

    durante 35 anos de pena em punho, uma Literatura indissocivel da sua trajetria de vida. No

    artigo Sobre as obras finisseculares de Ea de Queirs, Carlos Reis aponta que nesse trajeto

    observamos traos dominantes e atitudes reiteradas, mas tambm um visvel desejo de constante

    auto-superao (REIS, 2001, p. 130). Traos esses firmados por um dilogo questionador dos

    valores, dos costumes e dos fenmenos que marcaram o final do sculo XIX; atitudes reiteradas,

    por exemplo, na abordagem crtica que permeou a sua produo literria e em posicionar-sesempre com independncia na defesa das suas convices; e, finalmente, o desejo de auto-

    superao o fez, em alguns casos, praticamente reescrever livros j editados as trs verses de

    O crime do padre Amaro so um exemplo desta insatisfao com seus escritos. Um escritor

    que trabalhou exaustivamente os seus textos at atingir o resultado desejado, fato que no escapa

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    aos olhos do leitor atento e que percebe que nada est escrito ao acaso em uma obra de Ea de

    Queirs.

    Nos ltimos doze anos de vida, Ea produziu os trs textos que so objeto de estudo nesta

    dissertao: A correspondncia de Fradique Mendes, A cidade e as serras e A ilustre Casa deRamires. A no publicao em livro desses textos evidencia o rigor com que Ea sempre tratou a

    sua obra O crime do padre Amaro, O primo Baslio e O Mandarim tiveram, cada um, trs

    edies e o cuidado do escultor que burila a sua arte enquanto no a d como pronta e, nessas

    ltimas obras, Ea analisa as sociedades portuguesa e europia, sob uma postura ideolgica bem

    distante do Ea das Conferncias do Casino.

    Com Carlos Fradique Mendes, o autor orquestrou o projeto mais ambicioso e mais

    conseguido. Fradique no um mero personagem. Houve um esforo de construo de uma

    personalidade que antev a heteronmia pessoana. Fradique anunciado por Carlos Eduardo

    dOs Maias encarna o enaltecimento originalidade aparelhado pelo diletantismo, pela

    disperso e pelo dandismo. Joel Serro, em O primeiro Fradique Mendes, define o personagem

    como um representative-man das inquietaes do tempo europeu que era o seu (SERRO,

    1985, p. 163). Tudo isso tendo Paris como moldura.

    E tambm em Paris que surge Jacinto, to fornecido de civilizao nas mximas

    propores. Nesse final de sculo, Paris era uma das capitais do mundo, se no a capital

    oitocentista, e, vivendo nela, Ea acompanhou o rpido desenvolvimento tcnico e cientfico que

    a Cidade Luz produzia e as conseqncias que esse avano tecnolgico provocou nos seus

    habitantes. O spleen que os afetava aturdiu o excelente Jacinto, que, para Frank F. Sousa, se

    afasta do Positivismo otimista para se aproximar da inrcia pessimista (SOUSA, 1996, p.30). S

    recupera a boa disposio quando pelos trilhos dos caminhos de ferro regressa s suas origens

    portuguesas onde, fascinado pela tranqilidade e pela autenticidade rstica do Douro, recupera o

    vio e d um sentido vida dispersa e diletante que ocupava os seus dias na capital francesa

    conseguindo alcanar a utopia do seu tempo ao usufruir os benefcios da tecnologia sem permitirque os danos provocados pelo progresso o afetassem.

    J Gonalo Mendes Ramires, o maior Fidalgo de Portugal, a representao do momento

    poltico vivido pelo pas e a preocupao do autor com o destino portugus representado pela

    associao entre o passado e o presente, ou, nas palavras de Miguel Real, ...um Portugal nobre e

    senhorial, com o Portugal do final do sculo XIX, [...] onde prevalecem jogos de interesses

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    subordinados mais-valia da riqueza ou do prestgio poltico (REAL, 2006, p.205).

    Gonalo/Portugal apresenta ainda algumas questes que melindravam a Gerao de 70: a

    relao do intelectual com o seu passado histrico ou, noutros termos, a dialtica entre tradio e

    renovao (REIS, 2001, p.134). A reflexo crtica da Gerao de 70 buscava uma revitalizaocvica, cultural e histrica para Portugal, o que levou alguns dos seus membros a polmicas com

    intelectuais ideologicamente afastados1.

    Mesmo apesar das acusaes de antipatriotismo, de adorao pela Frana Paris era tida

    pelo prprio autor como sua cidade de eleio e por ter vivido no exterior a partir de 1872, Ea

    sempre esteve atento aos acontecimentos da vida social e da poltica portuguesa. Carlos Reis

    relaciona no artigo j citado as temporadas que Ea passou em Portugal nos seus ltimos anos de

    vida e, se considerarmos os meios de transporte disponveis na poca, as obrigaes consulares, a

    vida familiar e a sade precria, conclui-se que Ea visitava Portugal com bastante freqncia, o

    que evidencia o interesse do autor em estar, acompanhar, analisar e compreender o seu pas.

    Em 1889, quando integra os Vencidos da Vida; em 1890, durante cerca de quatro meses; em1892, quando visita Santa Cruz do Douro; em 1895, outra vez por vrios meses; em 1898, quandotestemunha as celebraes do quarto centenrio da viagem de Vasco da Gama ndia e de novovisita Santa Cruz do Douro, onde volta no ano seguinte, naquela que foi a sua derradeira visita aPortugal (REIS, 2001, pp. 136-137).

    As trs obras que so objeto de estudo neste trabalho foram mal vistas pela crtica literriadurante muito tempo, mas recentemente tm sido resgatadas e melhor compreendidas. Um dos

    pesquisadores que tm reabilitado essa fase Miguel Real, que no livro intitulado O ltimo Ea

    executa um trabalho minucioso sobre as obras concebidas no perodo parisiense. Real dividiu os

    estudos queirosianos em: Perodo Testemunhal, que durou entre 1900 e 1930; Perodo de

    Balano, compreendido entre 1930 e 1950; e Perodo Crtico, que comea em 1950 e termina em

    2000. Esta classificao no ser analisada neste trabalho, mas chama ateno a forte influncia

    que o Perodo de Balano exerceu na leitura da obra de Ea de Queirs, sobretudo da ltima fase.

    Este perodo assim chamado por corresponder ao balano biobibliogrfico do autor de

    Singularidades de uma rapariga loura, baseado nos lanamentos pstumos, na grande variedade

    de artigos que celebravam os cem anos de nascimento do autor e de quase cinqenta anos de sua

    morte, e que, somados aos testemunhos do perodo anterior, constituram os primeiros estudos

    1Ver a polmica Ea de Queirs-Pinheiro Chagas sobre questes patriticas.

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    sectoriais sobre aspectos importantes da sua obra (REAL, 2006, p. 26) como os de Antnio

    Srgio, Jaime Corteso e Antnio Jos Saraiva, entre outros. Esses estudos basearam-se nas

    seguintes publicaes: em 1940, Novas Cartas Inditas de Ea de Queiroza Ramalho Ortigo;

    Crnicas de Londres, em 1944; em 1945, Cartas de Ea de Queirs; j em 1949 publicado Eade Queirs entre os Seus; e durante toda a dcada de 1940 ocorre a republicao da obra de Ea

    de Queirs com o ttulo Edio do Centenrio.

    Esta fase dos estudos queirosianos define uma unidade ideolgica que o distingue dos

    outros dois perodos atravs das publicaes das primeiras biografias de Ea de Queirs e pela

    associao entre as mentalidades da Gerao de 70 e dos Vencidos da Vida. Entre essas

    biografias destacam-se as de Joo Gaspar Simes, Miguel Mello e Antnio Cabral, obras que

    associam os fatos da vida do escritor com a sua extensa correspondncia, permitindo relacionar a

    vida e a obra do biografado. O Livro do Centenrio foi outra fonte importante para os estudos

    queirosianos. No entanto, esses pesquisadores acabaram por rotular, e, principalmente,

    simplificar os temas nas diferentes fases de Ea de Queirs como crtica social, ataques Igreja

    e ao Estado e a reforma da mentalidade portuguesa. Esses crticos escreveram estudos guiados

    por critrios duvidosos e dividiram rigidamente a obra do autor de Um gnio que era um santo

    em trs fases: 1 fase romantismo tardio; 2 fase naturalismo-realismo; 3 fase fase mais

    lrica e fantasiosa, conservadora, em que privilegiaria a tradio rural portuguesa (REAL, 2006,

    p. 27). Classificaes elaboradas a partir de gostos pessoais dos pesquisadores, ou, nas palavras

    de Miguel Real, comentadores que tomam partido pessoal (subjectivo) sobre as possveis opes

    poltico-filosficas de Ea (REAL, 2006, p. 27). Portanto, sem embasamento cientfico.

    O erro cometido por esses pesquisadores foi engessar a obra de Ea de Queirs como se o

    autor escrevesse sempre dentro de rgidos critrios programticos. O crime do padre Amaro

    uma forte crtica Igreja e mentalidade beata? Sem dvida, mas l est o abade Ferro para

    deixar claro que a crtica no totalidade da Igreja, mas sim parte podre do clero. Da a fama

    de anticlerical veemente. O anticlericalismo est presente em toda a obra do autor, mas no porcapricho juvenil e sim pelo horror postura passiva frente aos dogmas, no s religiosos, que

    desde sempre ele manifesta em textos como Ramalho Ortigo (1878), O bock ideal (1893) ou

    Um gnio que era um santo (1896), depoimento para o In Memoriamde Antero de Quental que

    apresenta importante testemunho sobre a juventude em Coimbra.

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    Ea critica o ambiente inspido da burguesia lisboeta em O primo Baslio?

    Impiedosamente, mas l est o Julio, personagem que contraria os habitusdos seres na casa

    de Jorge e Lusa. Ele o contraponto ao conselheiro Accio, o que demonstra que nem toda a

    sociedade lisboeta conselheira. Esses personagens no devem ser encarados como episdiosisolados, pois servem para exemplificar que Ea no se enquadrou incondicionalmente na

    doutrina realista-naturalista nem em suas obras mais engajadas nesse movimento e no punha

    todos os personagens no mesmo tacho. O que leva a outro engano da crtica que era exigir do

    artista uma coerncia que s existe no entendimento do crtico que l uma obra de forma isolada,

    e no no todo da uma produo literria. Portanto, no parece justo cobrar o olhar verdadeiro

    como alguns estudiosos faziam em relao fase designada como ltimo Ea.

    Real faz quatro observaes sobre o que definiria a expresso ltimo Ea em relao a

    esses estudos. As trs primeiras de negao: 1) neste perodo Ea no seria um burgus

    resignado, aboletado em Paris e atrelado ao tradicionalismo portugus com tudo o que a

    expresso implica, como nacionalista e catlico viso alardeada pelo Estado Novo; 2) em sua

    ltima fase, Ea no foi um revolucionrio militante, socialista-cristo, pregador do ideal

    franciscano de vida (REAL, 2006, p. 13) interpretao contestatria da viso Salazarista que

    nomes como Antnio Srgio e Jaime Corteso abraaram; 3) O ltimo Ea no decadentista,

    passivo, nem resignado; 4) O ltimo Ea d-nos uma literatura consciente e sensvel s questes

    econmicas e sociais, tanto portuguesas (A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras)

    quanto europias (A Correspondncia de Fradique Mendes e A Cidade e as Serras), e esses

    temas tambm se destacam na produo jornalstica do autor.

    Depois de 28 anos trabalhando no exterior acumulando funes diplomticas, produo

    literria e colaboraes variadas em diferentes publicaes jornalsticas de Portugal e do Brasil,

    Ea percebeu que a sociedade no mundo estava doente e no s a portuguesa. Se na juventude o

    autor j no se prendia a escolas ou ideologias, na maturidade mesclou estilos e propostas com

    desenvoltura e, inclusive, criticou posies anteriormente defendidas por ele prprio. Joel Serrolembra que Ea nunca fora um doutrinador poltico, como Antero, e nos textos construdos na

    juventude revelava conscincia de representar um papel coadjuvante naquela gerao. Mas

    quando se distraa do posto que ele atribura a si mesmo, Ea expunha a sua verdadeira

    propenso: um homem para quem a vida s teria sentido como experincia de liberdade

    criadora, procurando [...] a suamaneira de ser e de estar no mundo (SERRO, 1985, p. 120), o

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    que manifesta, a meu ver, na escolha pela diplomacia, por ser uma carreira que evidencia o desejo

    de alargamento de horizonte pela vivncia de outras experincias e o contato com outras culturas.

    E nesta procura do jovem Ea, o autor produz, em parceria com Antero de Quental e

    Jaime Batalha Reis, O mistrio da Estrada de Sintra, obra composta com pedaos de romantismo(o enigma policial) e de satanismo decadentista (Fradique Mendes) para, a seguir, proferir a sua

    conferncia A nova Literatura ou O realismo como nova expresso da arte. Na juventude

    esse movimento representa as idas e vindas de um jovem autor procura do seu caminho, e que

    deseja expressar as suas idias e convices; na maturidade, a experincia formula uma nova

    viso de mundo e estabelece um autor comprometido com o dilogo questionador dos valores e

    dos temas de um sculo de transformaes polticas e cientficas, mas ainda preso a dogmas

    religiosos e filosficos.A correspondncia de Fradique Mendes,A cidade e as serrase A ilustre

    casa de Ramiresrefletem, cada obra sua maneira, esse dilogo questionador entre as idias do

    escritor e os conceitos finais oitocentistas. Miguel Real define os ideais defendidos por Ea de

    Queirs atravs dos protagonistas dos trs ltimos romances e do personagem-ttulo de uma das

    Lendas de Santos, textos produzidos no mesmo perodo:

    1. Fradique Mendes, o ideal de homem supercivilizado, ponto de partida para o novo homemeuropeu do sculo XX, rejuvenescedor da sociedade; 2. Jacinto, o ideal de equilbrio entre atradio e a modernidade; 3. Gonalo Mendes Ramires, o rejuvenescimento da aristocracia liberalacompanhando o rejuvenescimento de Portugal (partida para Moambique); 4. So Cristvo, ohomem tico universal, sntese e modelo do homem futuro, agindo exclusivamente segundo umimperativo tico: deve-se fazer o bem, ser til aos outros. (REAL, 2006, pp. 14 e 15)

    Esse ltimo Ea caracteriza-se primeiro pela predominncia da subjetividade em relao

    realidade (os princpios realistas no so de todo eliminados, mas amenizados); segundo, pelo

    movimento de recriao da Europa e de Portugal atravs da revisitao do passado histrico;

    depois, pela atenuao realista favorecendo a subjetividade pelo comparativismo histrico

    levam a textos de cariz mais ensastico do que descritivo; por fim, tanto na produo romanesca

    quanto na jornalstica, engajamento ativo na valorizao do pobre, apelando a uma soluopoltica e civilizacional promotora do po e da casa para todos (REAL, 2006, pp. 134-135).

    Essa ltima caracterstica confirma os relatos de alguns bigrafos relacionados atuao do

    cnsul Ea de Queirs com trabalhadores nas minas de carvo inglesas ou com os chineses nas

    plantaes em Cuba e no sul dos Estados Unidos, quando o diplomata interveio em favor dos

    trabalhadores que desempenhavam suas funes em condies sub-humanas.

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    Para Real, o conceito que unifica essas quatro caractersticas o Humanismo enquanto

    filosofia defensora de uma autenticidade humana com interveno social activa no sentido de

    generalizar o bem entre os povos sem a submisso a uma escola partidria ou filosfica nica

    (REAL, 2006, p. 135). Esse humanismo presente no ltimo Ea j vinha anunciado em obrascomo, por exemplo, Os Maias2. Mas, nos anos parisienses, essa atitude se intensificou e um dos

    relatos mais comprometidos com esse Humanismo Um gnio que era um santo e o texto em

    homenagem a Santo Antero altamente revelador sobre a Gerao de 70 e sobre a gnese do

    autor de O Mandarim.

    Ea conta que Antero resumia a rebeldia daquela gerao avessa a todo ensino

    tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com audcia, inventividade, fumegante

    imaginao, amorosa f, impacincia de todo o mtodo, e uma energia arquejante que a cada

    encruzilhada cansava (QUEIRS, s/d, p. 254). Em outro passo, Ea lembra as novidades que os

    caminhos de ferro levavam a Coimbra e aquela que foi a descoberta suprema: a Humanidade.

    Coimbra de repente teve a viso e a conscincia adorvel da Humanidade. Que encanto e que

    orgulho! Comemos logo a amar a Humanidade, como h pouco, no ultra-romantismo, se amara

    Elvira, vestida de cassa branca ao luar (QUEIRS, s/d, p. 255). Esse texto retrospectivo

    confirma duas observaes feitas por Joel Serro, que, juntas, permitem uma maior compreenso

    das razes do escritor Ea de Queirs:

    A primeira, que ele foi um homem de gerao, cujos valores e objectivos fundamentais haviamsido esboados pelos juvenis escritos de Antero; e a segunda, que esse facto, alm decomprovado, lhe no tolheu a singular originalidade da sua procura, a partir de um magma culturalmais ou menos comum (SERRO, 1985, p.166).

    A procura de um caminho prprio que j se anunciava no jovem estudante de Direito em

    Coimbr, foi o esteio de toda a literatura de Ea de Queirs, ainda que fortemente influenciado por

    Antero, espcie de guru daquela gerao. E o estandarte da independncia intelectual e do

    combate s idias feitas demonstram que existe algo que une vigorosamente o jovem estudantecoimbro ao maduro escritor estabelecido em Paris. A coerncia de Ea de Queirs jamais esteve

    atrelada a escolas artsticas, mas sim compreenso de que era preciso entender e adaptar-se s

    transformaes que o final do sculo XIX exigia. No se tratava de seguir as mudanas

    2D. Afonso da Maia era um altrusta que discretamente, no fosse ele um cavalheiro atendia pessoas carentes

    amenizando-lhes as dificuldades.

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    passivamente, mas de encontrar uma maneira de se encaixar na nova ordem sem perder a

    individualidade. De reconhecer os benefcios trazidos pelo desenvolvimento cientfico e

    tecnolgico sem abandonar a identidade adquirida pelas tradies, assim como no permitir que

    novas condutas fossem sufocadas em nome das tradies.Ao longo de toda a sua vida adulta, Ea de Queirs acompanhou as mudanas que

    chegavam a Portugal e a repercusso dessas transformaes junto sociedade portuguesa. Ao

    longo da sua carreira literria bateu vigorosamente nos opositores do progresso; no final ps-se a

    dialogar com os novos e os velhos valores oitocentistas por entender que o avano tecnolgico

    no poderia e nem deveria ser impedido. Apenas defendia que cada um o utilizasse da maneira

    que melhor lhe conviesse. E, se isso valia para a cincia, tambm servia para a religio e para a

    filosofia, pois os textos do ltimo Ea evidenciam o desejo de ver o homem livre para pensar e

    agir de acordo com suas convices individuais.

    Com essa filosofia que defende a autenticidade humana e com a insubordinao a

    escolas filosficas ou literrias, Ea de Queirs escreveu no eplogo de sua obra uma preciosa

    trilogia de enaltecimento originalidade e independncia intelectuais. Posturas que j se

    apresentavam ao jovem estudante em Coimbra que um dia, tal e qual Ponce de Lon como

    conta o editor da correspondncia do cinzelador das Lapidrias [h]mirado algo nuevo.

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    A mocidade que nos sucedeu, em vez de ser inventiva, audaz, revolucionria, destruidora de

    dolos, parece-nos servil, imitadora, copista, curvada demais diante dos mestres. Os novos

    escritores no avanam um p que no pousem na pegada que deixaram outros. Esta

    pusilanimidade torna as obras tropegas, d-lhes uma expresso estafada; e a ns, que partimos,a gerao que chega faz-nos o efeito de sair velha do bero e de entrar na arte de muletas.

    (Carta-Prefcio ao editor dO mistrio da Estrada de Sintra)

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    1. ORIGENS DO FRADIQUISMO

    Em 29 de agosto de 1869 surge na Revoluo de SetembroCarlos Fradique Mendes. Aos

    leitores do jornal foi anunciado que esse senhor era um poeta satnico que vivia em Paris.Campos Matos (1988) o v como um heternimo criado por Jaime Batalha Reis, Antero de

    Quental e Ea de Queirs nos tempos do Cenculo de Lisboa entre 1868-1869. Essa

    heteronimidade contestada por alguns estudiosos e corroborada por outros, mas a questo ser

    tratada um pouco mais frente.

    Em O primeiro Fradique Mendes, Joel Serro considera que, para Ea, Antero e Jaime

    Lisboa era a capital de um reino estagnado. Para trs jovens recm-sados de Coimbra cheios de

    ambies polticas, literrias e filosficas, o panorama Regenerador da cidade era desolador.

    Serro diz que os trs procuravam, e de caminho se procuravam, como timbre da natureza de

    seres inquietamente jovens (SERRO, 1985, p. 11). Batalha Reis conta o estado de esprito

    deles emAntero de Quental: In Memoriam:

    ...pensando na apathia chineza dos lisboetas, immobilisados, durante annos, na contemplao e nocinzelar de meia ideia, velha, indecisa, em segunda mo, e em mau uso, pensmos em suppriruma das muitas lacunas lamentaveis creando ao menos. Um poeta satanico. Foi assim queappareceu Carlos Fradique Mendes (REIS, 1896, p. 461).

    A gestao do personagem comeou em um retiro beira-mar em que Antero e Batalha

    Reis passavam os dias discordando pacificamente e vivendo em um cubculo em que mal cabiam.

    Apesar da forte amizade e da serenidade das discusses, Batalha Reis conta que ficaram sem se

    falar durante dois dias inteiros. Mesmo assim no deixaram de pensar no intenso movimento de

    idias que corria o mundo moderno e que era sumariamente ignorado em Portugal. Antero era,

    segundo o amigo Jaime, calado e nervoso; Batalha Reis era o Apolo: nenhum dos trs Faustos

    do pacto mefistoflico lisboeta de 1869 apresentava um perfil to nitidamente apolneo como

    Jaime Batalha Reis (SERRO, 1985, p. 150). Ea era o elo entre os dois amuados da praia.A dupla pensava em criar uma filosofia que fugisse completamente aos ideais

    tradicionalmente aceitos utilizando a implacvel e impassvel lgica e uma literatura

    propostas por Batalha Reis, Antero e Ea de Queirs, que se juntaria aos dois amigos na

    elaborao de Fradique estabelecida pelos frios processos de anlise crtica moderna como se

    emoo e sentimento fossem mquinas conhecidas e reproduzveis (REIS, 1896, p. 461). Com

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    o intuito de adquirir respeitabilidade junto aos imitativos publicistas lisboetas, o agora trio

    entendeu ser necessrio criar uma escola que fosse admirada algures no estrangeiro. Assim

    surgiram os Satnicos do Norte, grupo que teria como expoente Carlos Fradique Mendes.

    Em sua estria nARevoluo de Setembroforam apresentados quatro poemas: Serenatade Sat s Estrelas, escrito por Ea, A Velhinha, por Batalha Reis e, por fim, Soneto e

    Fragmentos da Guitarra de Sat, compostos por Antero (MATOS, 1988, p. 276). Como

    introduo aos poemas, uma breve apresentao do autor:

    Habitando Paris durante muitos anos, conheceu o sr. Fradique Mendes pessoalmente a CarlosBaudelaire, Leconte de Lisle, Banville e a todos os poetas da nova gerao francesa. O seuesprito, em parte cultivado por esta escola, entre ns o representante dos satanistas do Norte [..]Esta tendncia do exuberante subjectivismo artstico que pela quebra das derradeiras peias doformulismo e da tradio clssica se espraia librrimo at licena, espontneo e pessoal, at ao

    individualismo exagerado, para o que concorre especialmente o catico da concepo filosfica,social e esttica dos tempos modernos tempos de laborao e de anarquia, de emancipao etransio, esta tendncia profundamente pessoal e originalmente romntica dizemos , quechamam poesia satnica, quase no tem tido em Portugal representantes ou proslitos ouapstolos, quase no teve eco na alma das sociedades peninsulares, onde tanto se arreigou a fromana, e que por tanto tempo andou atrofiada sob o duplo despotismo civil e religioso, dirigido,alimentado e explorado pelo monarquismo3(apud SERRO, 1985, p. 257).

    O satanismo de Fradique tem origens na crise filosfico-religiosa que atingiu Antero de

    Quental em 1863. Nas Odes Modernas, Antero afirma ser o bardo de um deus encoberto, uma

    maneira de eliminar os laos que o uniam aos tradicionais valores catlicos que lhe foram

    incutidos no ambiente familiar, como em quase toda a sociedade portuguesa de ento. Antero

    teve uma relao complexa com o pai, que costumava pregar-lhe partidas para testar a obedincia

    do filho que as acatava sempre por receio da reao paterna. Uma das partidas que mais o marcou

    foi na despedida de Antero quando este saiu dos Aores para freqentar, em Lisboa, o Colgio do

    Prtico, de Castilho. J a relao com a me foi de grande afetividade e a ela Antero atribua as

    primeiras leituras bblicas4. Sendo integrante da primeira gerao que conscientemente abdicou

    desses valores tradicionais, mas educado dentro desses preceitos, Antero mantinha em seu ntimo

    um sentimento religioso que no conseguira extirpar completamente. Assim, tendo sido educado

    3 Introduo aos poemas de Carlos Fradique Mendes publicados em 29 de agosto de 1869, um domingo, nA Revoluo de

    Setembro. Joel Serro acredita que esse texto foi escrito por Jaime Batalha Reis pelos seguintes motivos que aqui relaciono: 1)

    Nesse perodo Antero viajava pelos Estados Unidos; 2) NoIn Memoriamde Antero de Quental, Batalha Reis fala sobre esse texto

    e utiliza a expresso se publicou, que confirmaria a sua reputao de homem reservado; 3) Caso o texto fosse de autoria de Ea

    de Queirs, Batalha Reis revelaria a autoria do seu amigo de muitos anos na homenagem a Antero.4Antero escreve esse depoimento, aos dezoito anos, no texto As meditaes poticas de Lamartine.

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    para obedecer cegamente a um credo que no permitia contestaes, Antero entrou em conflito

    interior, quando aconteceu o seu despertar como ser questionador e reflexivo. Decidido a

    contrariar os dogmas catlicos pela via do raciocnio, o jovem Antero interrogava-se sobre a

    natureza de Deus, as prioridades do esprito e da conscincia moral e como seria a convivnciaentre a Igreja e a Revoluo que ele cria necessria. Esse tumulto interno o levou a reconhecer

    que A natureza em mim conservadora: s o esprito que revolucionrio (apud SERRO,

    1985, p. 57).

    Todo esse dilema provocado por uma educao catlica e pelo despotismo paterno que

    impunham obedincia ferrenha desembocou, com algum Michelet mistura, na poesia satanista

    de Fradique Mendes. P, o Deus da natureza e smbolo de liberdade, foi morto pelo Deus do

    cristianismo, logo, Sat seria o seu herdeiro natural por desempenhar o inverso das prticas

    sagradas que doutrinaram Antero quando criana. Ora, como mentor, ainda que informal, da

    Gerao de 70, ele desempenhou papel preponderante nos rumos da produo literria de todo o

    grupo e como artista questionador do transcendentalismo catlico e defensor de uma nova

    santssima trindade Justia, Razo e Liberdade Antero foi, efetivamente, o arquiteto da poesia

    satnica em Portugal. Mas se esta corrente no cumpriu papel de destaque na Literatura

    Portuguesa, no se pode negar que a experincia literria do satanismo desempenhou uma busca

    por novos rumos dessa gerao de artistas e resultou na bem sucedida criao de Carlos Fradique

    Mendes.

    Esse personagem reaparece em 1870 em uma rpida passagem nO Mistrio da Estrada

    de Sintra escrito em parceria com Ramalho Ortigo. Amigo da condessa W..., Fradique anuncia

    algumas das suas caractersticas como o talento, a excentricidade e a descrio de um homem

    verdadeiramente original e superior. A propsito deste folhetim, Campos Matos cita um ensaio de

    Amrico Guerreiro de Sousa, intitulado English references in the fiction of Ea de Queirs, em

    que o ensasta v no personagem captain Rytmel traos semelhantes aos de Fradique como

    atributos fsicos, temperamentais e sociais (apud MATOS, 1988, p. 65). O mesmo ensaiosustenta a mesma comparao com o Craft, dOs Maias.

    Craft um cidado do mundo, colecionador de obras de arte e voluntrio em guerrras

    travadas em solo africano como o satnico do Norte. Joo da Ega considerava o Craft

    simplesmente a melhor coisa que havia em Portugal... (QUEIRS, 2000, p. 108). Campos

    Matos lembra que Oliveira Martins considerava Fradique Mendes o portugus mais interessante

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    do sculo XIX (MATOS, 1988, p. 277). De fato h muitas parecenas de temperamento e de

    verve entre Fradique e Craft, mas captain Rytmel apesar do porte, da intrepidez e mesmo sendo

    um leo dos sales, das selvas e das amuradas est mais para um personagem de capa-espada

    interpretado por Errol Flynn.H vrias hipteses sobre quem seria o modelo que teria inspirado Ea para criar o

    personagem. Viana Filho enumera algumas dessas teorias. Eduardo Prado um dos que mais

    aparecem como o suposto Fradique por manter slida amizade com o escritor. Jernimo Colao

    teria sido identificado a partir do seu obiturio escrito por Ramalho Ortigo que falava em

    passeios a cavalo pelo Bois e no criado ingls. De Antero de Quental haveria convergncias

    fsicas as mos, a estatura, a fora fsica , a naturalidade aoriana e o gosto pelas viagens e

    pelas idias. O Conde Artur de Gobineau dizia-se um dos modelos de Fradique. Ainda segundo

    Viana Filho, Joo Gaspar Simes dizia que a criatura era o duplo do criador precedido, no

    Distrito de vora, pela figura de Manuel Eduardo (VIANA FILHO, 1984, p. 273). Manuel

    Eduardo foi personagem de um folhetim do Distrito de vora, que costumava viajar a p pelo

    mundo, citava Grard Nerval e morreu numa viagem Dinamarca. O folhetim era uma espcie de

    biografia desse viajante que, de certa forma, marcou o autor do seu obiturio. Joel Serro atribui a

    esse personagem um carcter pr-fradiquiano. Escrito por A. Z. (EAde QueiroZ) em 1867,

    Manuel Eduardo representava o gosto e o desejo por viagens do trio Ea, Antero e Batalha Reis.

    Serro considera o personagem como uma dada sorte de arqutipo do marginal e do

    marginalizado pelo uso da sua liberdade essencial (SERRO, 1985, p. 122). Enfim, so muitas

    as personalidades e alguns personagens que rondaram a criao do homem da cabaia chinesa,

    mas em momento algum Ea fez, como Flaubert, uma confisso do tipo Fradique sou eu.

    Apesar de falar sobre o personagem como se ele realmente existisse em vrias cartas

    dirigidas a familiares e amigos, Ea afirmou que Fradique havia sido criado com pequenas partes

    de seus amigos e contava, por exemplo, que a sua robustez fsica havia sido tirada de Ramalho

    Ortigo. Uma colcha de retalhos em que so encontrados figuras pblicas, amigos ntimos epersonagens que formaram uma personalidade que representava os anseios baseados nas

    convices de trs jovens artistas que buscavam uma maneira de estar na vida, tanto no campo

    pessoal, quanto nos rumos de uma sociedade. J sabemos que Fradique no era inspirado em

    nenhuma figura especfica, mas o que era Fradique Mendes?

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    O amigo de Gautier era um homem calmo, de constituio slida e viril; a face, aquilina e

    grave, lembrava a de um Csar; a pele branca e fresca emoldurava lbios vocacionados para a

    ironia e para o amor; os olhos, negros e pequenos, magnticos e inquisitoriais. As variadas

    descries de Fradique que encontramos ao longo da obra queirosiana demonstram asingularidade e o gnio do exmio diletante. Os editores do volume dO Mistrio da Estrada de

    Sintra5consultado para este trabalho identificam em nota os autores de cada captulo e atravs

    desse depoimento, escrito em 1947, descobre-se que nos dois captulos em que Fradique aparece,

    um foi escrito por Ea justamente o que mais apresenta pistas da personalidade do personagem

    e no ltimo, escrito por Ramalho, Fradique est escrevendo um livro em que pretende espantar

    a pontaps as correntes literrias dominantes em Portugal. Conclui-se ento que alm de Ea,

    Antero e Batalha Reis, Fradique tambm saiu da pena da Ramalhal figura.

    Com tantos criadores a criatura foi descrita como filho de uma famlia velha e rica dos

    Aores e descendente de navegadores; era ntimo da nobreza europia, amigo de Baudelaire e

    Mazzini, lutou na Abissnia e esteve ao lado de Garibaldi na conquista das Duas Siclias. Para

    alm disso, visitou Victor Hugo em Guernesey. Amante de belas mulheres de cortess a

    antropfagas excntrico, aventureiro, corsrio grego, poeta, msico... Fradique era nico em

    sua multiplicidade. Tal multiplicidade foi gerada numa educao plural um antigo frade

    beneditino que o introduziu na doutrina, no latim e no horror maonaria; depois um coronel

    francs jacobino que lhe apresentou Voltaire e a Declarao dos Direitos do Homem; por fim,

    um alemo que iniciou o jovem Carlos na Crtica da RazoPura.

    Fradique estudou na Universidade de Coimbra e na Sorbonne antes de se estabelecer em

    Paris, onde se tornou clebre como filsofo de boulevard. Antnio Sardinha em O esplio de

    Fradique, ensaio contido em Ea de Queirs In Memoriam, diz que o que havia nele era um

    excesso de inteligncia um gosto indominvel de anlise (SARDINHA, 1947, p.352). Para

    lvaro Lins, o colaborador do marechal-de-campo Napier aproveitou o que havia de melhor em

    seu sculo: as peripcias, as excentricidades, a toilette, a modulao entre paixo e saciedade nossentimentos, a paixo por tudo o que era extico e ainda a improvisao e superficialidade do

    5Edio da Livraria Lello & Irmo, este volume apresenta como prefcio uma carta escrita em Lisboa no dia 14 de dezembro de

    1884 em que autoriza uma nova edio de O mistrio da Estrada de Sintra. Esta carta assinada por Ea de Queirs e Ramalho

    Ortigo.

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    conhecimento e cultura, a ligeireza, o diletantismo, a f na natureza, na cincia e na razo e,

    sobretudo a ausncia de f (LINS, 1939, p.181).

    Com tantos traos de personalidade e mincias quanto origem e trajetria de vida,

    Carlos Fradique Mendes visto por alguns estudiosos como portador de caractersticasheteronmicas. Campos Matos e Joel Serro definem o personagem como heternimo coletivo e

    Matos enumera algumas caractersticas: Farsa, mistificao, exerccio de humor e de verve,

    representao de um ideal coletivo de grupo e de um ideal de poca, retrato, em parte, do seu

    autor e tambm de vrios dos seus amigos (MATOS, 1988, p. 278). J lvaro Lins afirma que

    nunca um criador esteve to distante da sua criatura (LINS, 1939, p. 173), e Gerardo Moser, no

    Livro do Centenrio de Ea de Queirs, classifica como um pseudnimo aplicado a um grupo de

    jovens sados da universidade. Joo Gaspar Simes chama Fradique de duplo de Ea. Mas o

    termo que entendo ser o que melhor define o personagem utilizado por Carlos Reis: condio

    pr-heteronmica (REIS, 2000, p. 28).

    A concepo literria do segundo Fradique considerada por Reis como elitista e anti-

    realista. Nas palavras de Ea, ele um resumo da Natureza feito pela imaginao (QUEIRS,

    2002, p. 71). Sua personalidade marcada por posies ideolgicas e culturais distantes de outras

    criaes de Ea de Queirs. Seu carter contrrio ao Ea realista-naturalista, da o intervalo de

    cerca de dezoito anos entre as aparies nO Mistrio da Estrada de Sintrae a publicao de sua

    correspondncia.

    Reis chama a ateno para a autonomia de Fradique em relao ao seu criador e para o

    fato de no ser visto como personagem de fico, o que o aproxima do estatuto e da linguagem

    da heteronmia (REIS, 2000, p. 93). Lus Viana Filho reproduz trecho de uma carta de Ea para

    a mulher, D. Emlia, em que ele no esconde o entusiasmo pelo sucesso do seu personagem:

    As senhoras em Lisboa esto encantadas com Fradique. De fato Fradique um sucesso, e ocupa

    parte de todas as conversaes em Lisboa, a ponto de se ouvir esse grande nome por cafs, lojas de

    modas, peristilos de teatros, esquinas de ruas, etc. O pior que se cr geralmente que Fradique

    existiu, e ele, no eu, que recebe estas simpatias gerais (VIANA FILHO, 1984, p. 273).

    Se lembrarmos a carta endereada a Oliveira Martins em 1885, conclumos que Ea fala

    de Fradique como se, de fato, ele existisse. Realmente a personalidade de Fradique to intensa e

    sedutora que em vrios pontos deste texto trato o fatal homem dos Aores como um ser real.

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    Viana Filho acredita que, pelo contedo da carta escrita mulher, Ea revela uma ponta de cime

    da sua criao e do sucesso que Fradique desfrutava na sociedade lisboeta.

    Essa autonomia ideolgica faz com que a criatura tenha pensamento prprio e a isso

    Carlos Reis chama de fradiquismo e entende o termo como um dos ismos que abundaram nacultura europia do final dos oitocentos. Mesmo sendo motivado por um intuito crtico, o

    movimento, acredita Reis, no perde a legitimidade e explica:

    O fradiquismo pode ser entendido como alternativa ideolgica ao pensamento da Gerao de 70,

    de que o Ea dos anos 80 se ia distanciando, sem assumir claramente esse distanciamento como

    ruptura: em certa medida, ao fradiquismo que cabe cumprir essa funo (REIS, 2000, p. 93).

    Por isso, Fradique seria uma estratgia de abastecer de autonomia algum que no podeser considerado um personagem de fico. Acredito ser o caso de perguntar se Fradique seria

    uma projeo do homem do sculo XX. Isabel Marnoto tambm pergunta: sendo Ea de Queirs

    um grande escritor, teria ele vislumbrado alguns sinais de fogoque iriam marcar o ltimo sculo

    do milnio? (MARNOTO, 2000, p. 111). Ela acredita que h vrios sinais marcantes do sculo

    XX encontrados na personalidade do patro do Smith: o culto da efemeridade, a preferncia pela

    Forma em detrimento da Idia, o apelo visual, a constante passagem entre culturas, o gosto pela

    multiplicidade, uma intensa necessidade de percorrer o mundo, a fugacidade da vida, a busca pela

    informao e pelo conhecimento.

    Os mesmos sinais de fogo podem ser detectados emA cidade e as serras. Neste romance,

    Ea criou uma biblioteca para Jacinto com trinta mil volumes na Paris finissecular e o autor

    comenta a quantidade excessiva de informao na biblioteca do 202: ... porque na sua Biblioteca

    possua trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte

    que nunca se transpe nem se desbasta (QUEIRS, 2000, p. 145). Cem anos depois da

    publicao deste romance, o mundo convive com uma gigantesca quantidade de informao

    disponvel na internet. Fradique recebia com assiduidade altas rumas de livros enviadas da Casa

    Hachette, densas camadas de revistas especiais... (QUEIRS, 2002, pp. 72-73). Isabel Marnoto

    cita George Steiner, que, num livro publicado em 1989, expe nmeros impressionantes relativos

    produo acadmica no sculo XX: S no campo da literatura moderna calcula-se que as

    universidades russas e ocidentais somem cerca de trinta mil teses de doutoramento por ano e

    conclui que um mandarinato enlouquecido do comentrio infecta o pensamento e a

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    sensibilidade (STEINER, 1993, pp. 33-34). Isabel Marnoto sustenta ser o mundo de Fradique,

    assim como o de hoje, um mundo de transies, instabilidades, e porque efmero, inseguro.

    O sculo XIX foi um perodo de enormes transformaes polticas e sociais, tocadas pelo

    impulso da Revoluo Industrial, que levou a sociedade oitocentista a enfrentar uma srie deestmulos que reconfiguraram a percepo de mundo do homem. O ritmo de vida passou a ser

    orquestrado de acordo com os velozes (des)compassos das engrenagens do capitalismo industrial

    e de suas linhas de montagem.

    Ea de Queirs era um espectador atento das transformaes ocorridas na segunda metade

    do sculo XIX e suas ltimas obras revelam as preocupaes de um homem que viveu essas

    sensaes em Paris. Suas observaes corroboram os estudos realizados por pensadores da

    modernidade que discorreram sobre os conflitos e as dificuldades de adaptao do homem ao

    modo de vida moderno. Um mundo de estmulos intensos, sensaes descartveis e sentimentos

    efmeros que se contrapunham solidez de outros tempos e esse um campo frtil para uma

    figura caracterstica do sculo XIX: o dndi.

    Isabel Pires de Lima registra que Fradique tem uma aguda conscincia do carter

    perecvel de todo ato humano, designadamente o amor. Realmente, tudo na vida efmero para o

    dndi, inclusive a felicidade. Mas o constante empreendimento em busca dos intensos momentos

    de prazer est fadado ao insucesso. Como touristeque , Fradique persegue o amor enquanto um

    perfeito e curto momento de vida (QUEIRS, 2000, p.201). Mas quem diz touriste, diz tambm

    flneur.

    1.1 Paris e aflnerie

    Em Paris do Segundo Imprio, Walter Benjamin refere-se ao flneur como um tipo

    ocioso que caminha sem rumo certo e se deixa envolver pela cidade para observ-la, encarando-a

    como paisagem. Paris era a Meca da flnerie, cujas ruas transformaram-se em moradia doflneur. Para esta entidade, os letreiros eram to atraentes quanto uma pintura a leo decorando

    uma sala; os muros eram como escrivaninhas onde anotava seus apontamentos; as bancas de

    jornais, suas bibliotecas. O flneurera um observador nato e essa caracterstica justificava a sua

    ociosidade, pois, a partir das suas consideraes desenvolvia a capacidade de reao frente aos

    desafios propostos pela metrpole. Captava a essncia das coisas para aplic-las ao seu

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    comportamento e, assim, mover-se nos diversos estratos da sociedade parisiense com suas ruas

    frementes de novidades.

    Sobre os modos de vida na modernidade industrial, Ben Singer cita Howard Woolston,

    que, em um ensaio de 1912 no American Journal of Sociology, fala em nervosismo crescente(apud SINGER, 2004, p. 116) e que, no ambiente em que o homem urbano vivia, produziam-se

    indivduos alertas sempre em busca de novas satisfaes. Esse carrossel de sensaes estimula

    constantemente uma ateno j esgotada, e s por meio de choques curtos e intensos um

    organismo cansado se recompe para novas atividades. Essa estimulao exagerada a que o

    homem urbano estava sujeito na segunda metade do sculo XIX est muito presente em A cidade

    e as serras. Jacinto tambm um homem com os nervos esgotados por tantos compromissos,

    imensas atribuies e vrios cargos em diferentes e esdrxulas organizaes, como a

    Companhia dos Telefones de Constantinopla, os Bazares Unidos da Arte Espiritualista ou o

    Comit de Iniciao das Religies Esotricas.

    Georg Simmel, no artigo A metrpole e a vida mental, confirma essa viso e diz que o

    homem assumia uma atitude blas em face de um mundo cada vez mais inspido. Nervos

    superexcitados e esgotados necessitavam de sensaes cada vez mais fortes, pois s um estmulo

    mais forte seria capaz de despertar a percepo. Com isso, a capacidade sensorial alterava-se,

    tornando-se cada vez mais elstica. O homem urbano se ressentiu desse fato e procurou preservar

    a sua autonomia frente s foras sociais, culturais e histricas impostas pela modernidade. O

    dndi exibia essa autonomia atravs da indumentria. Ea faz referncias toilettede Fradique

    em vrias passagens como um instrumento que o individualiza em relao aos demais, e, em uma

    carta escrita ao seu alfaiate em Lisboa, E. Sturmm,6 Fradique escreve um tratado sobre a

    individualidade baseada na indumentria e na influncia do vesturio sobre o pensar. Define

    como banal a sobrecasaca que o alfaiate produz, para todosos clientes, e a relaciona ao que h de

    pior: a figura do conselheiro. Surpreende-se, sobretudo, pelo fato de Sturmm ter nascido em

    Koenigsberg, cidade metafsica, terra natal de Kant e que isso o impediria, em tese, deconfeccionar uma sobrecasaca to conselheira. E finaliza a carta fulminando:

    6Texto publicado em Cartas inditas de Fradique Mendes, edio de Lello & Irmo. Este texto acompanhado por uma nota

    escrita por Ea de Queirs que conta que esta carta foi-lhe entregue por Marcos Vidigal, primo de Fradique, ao saber que Ea

    trabalhava na publicao da correspondncia do seu parente. Segundo Ea, nunca houve um alfaiate com este nome em Lisboa.

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    Dentro dessa confeco banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dandy perde avivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crtico perde a sagacidade, o

    padre perde a f e, perdendo cada um o relevo e a salincia prpria, fica tudo reduzido a essecepo moral que se chama conselheiro! A sua tesoura est assim mesquinhamente aparando aoriginalidade do Pas! Voc corta, em cada casaco, a mortalha de um temperamento. E se Camesainda vivesse e V. o vestisse tnhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comrcio do Porto

    (QUEIRS, s/d, p. 47).

    Conforme observado por Colin Campbell em A tica Romntica e o Esprito do

    Consumismo Moderno, o consumo no sculo XIX era identificado por ser um consumo de luxo.

    O termo comporta as definies de suprfluo e agradvel. A primeira um desejo acrescentado

    carncia e um contraste entre esta e a necessidade. J a segunda definio refere-se mais s

    atividades. uma experincia sensorial e, assim como o suprfluo, subjetiva. Ambos variam ao

    longo do tempo e entre indivduos e grupos, mas o luxo est relacionado com o prazer, e a busca

    do prazer implica certos estmulos para justificar a sua realizao.

    Fradique viajou pelo mundo, conheceu seitas exticas, lutou em guerras remotas e se

    permitiu experimentar tudo o que a vida lhe proporcionava, sempre em busca de novidades e de

    novos estmulos. Reforo a afirmao de que a sociedade oitocentista era hiperestimulada e, em

    qualquer poca, com o passar do tempo, esses estmulos precisam ser mudados continuamente,

    pois, se permanecerem estticos, rapidamente deixam de cumprir o seu objetivo. Campbell

    exemplifica essa questo com uma nota musical. Por mais bela que seja, se for mantida

    indefinidamente sem variao de volume ou intensidade, despertar no ouvinte um enfadocrescente. Essa nota musical era um estmulo agradvel, mas a repetio tornou-a uma sensao

    desarmoniosa provocando o tdio.

    Durante a modernidade industrial, a disciplina foi aplicada produo fabril como forma

    de organizar a atividade e aumentar a produtividade. O dndi reagia a essa organizao. Na Paris

    do sculo XIX, a vida adquiriu outro andamento no Segundo Imprio. O governo de Napoleo III

    foi ditatorial, modernizador e procurou promover o desenvolvimento econmico.

    Carlos Lus Napoleo Bonaparte foi imperador da Frana entre 1852 e 1870. Antes foideputado e presidente por fora das urnas. Insatisfeito com as limitaes do poder democrtico de

    ento, organizou reformas que culminaram com uma nova Constituio que lhe concedeu poderes

    ditatoriais por dez anos. Arrivista que era, procurou marcar sua passagem pelo poder com obras

    luxuosas. Calou conscincias e bloqueou protestos de liberais na Frana e no exterior. No final de

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    1852, convocou com o apoio da burguesia um plebiscito que restituiu a monarquia e adotou o

    ttulo de Imperador Napoleo III.

    Nos primeiros seis anos de governo exerceu poder absoluto, mas as presses sofridas

    pelos liberais levaram-no a conceder certas liberdades que culminaram no perodo conhecidocomo Imprio Liberal, compreendido entre 1867 e 1870. Vianna Moog diz que durou tanto no

    trono que acabou acreditando ser um grande homem. nessa parte final de seu governo que Ea

    e seus amigos de Cenculo estabelecem na capital francesa o primeiro Fradique.

    Durante o seu governo, Napoleo III utilizou um vasto espectro de representantes da

    sociedade francesa para manter o poder. A Sociedade de 10 de Dezembro estava entre as que

    apoiavam o novo monarca e reunia, em seus quadros, burgueses e operrios. Benjamin cita a

    observao feita por Marx: toda a massa indefinida, diluda e disseminada por toda a parte, a

    qual os franceses denominam a bomia (apud BENJAMIN, 1989, p. 10). Quando andava s

    voltas com idias revolucionrias, que visavam a sua subida ao poder, Lus Napoleo freqentou

    reunies conspiratrias de toda sorte em busca do seu intento. Os encontros eram irregulares e os

    locais preferidos para as reunies eram as tavernas. Aproveitando os novos tempos, esses

    revolucionrios projetavam bombas incendirias e mquinas de alto poder destrutivo, numa

    abordagem literal para Revoluo Industrial.

    Esse tipo de reunio no era estranho a Ea de Queirs. Desde Coimbra, Ea esbarrou em

    diferentes revolucionrios alimentados por Proudhon, Marx e Michelet, entre outros. Antero,

    Oliveira Martins, Vieira de Castro, Tefilo Braga, Guerra Junqueiro, Augusto Soromenho,

    Adolfo Coelho e Batalha Reis so alguns dos nomes de uma extensa lista. Vianna Moog conta

    que um deles, Jos Fontana, no faltava s reunies do Cenculo. Sempre vestido de preto,

    cumprimentava a todos na chegada e mantinha-se quieto num canto. Quando ficava a ss com

    seus camaradas de confiana, garantia: Para a semana... sabem? Para a semana sem a menor

    dvida, rebenta ela... (MOOG, 1966, p. 96).

    Ea freqentava as reunies, mas, assim como Marx, criticava a anarquia da bomia.Havia socialistas, republicanos e demagogos no sentido oitocentista da palavra mas nem

    sombra de operrios. Se aquele era o modelo de conspirao, Ea preferia as recepes mundanas

    como campo de batalha contra a burguesia. Essa preferncia estabeleceu os alicerces de sua obra

    e ele se assumia como um autor dos sales porque exerceu o cargo de administrador de concelho,

    foi diplomata na Frana e na Inglaterra, casou com uma irm do conde de Resende e andava em

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    companhia de famlias ligadas nobreza. Nas recepes que freqentava tinha o hbito de

    escancarar os paradoxos do casamento, escandalizar as senhoras e irritar os maridos. Mesmo

    assim, no deixou de se movimentar com os velhos companheiros, e as Conferncias do Casino e

    toda a sua produo literria provam que no abdicara da luta.Os conspiradores do Segundo Imprio seguiam num andamento semelhante.

    Preocupavam-se demasiadamente com as futuras aes e no com o esclarecimento dos

    trabalhadores acerca de seus ideais. Charles Baudelaire seguia mais ou menos a mesma cartilha.

    Tanto podia apoiar o clero quanto uma insurreio e suas opinies apontavam fragilidade nos

    fundamentos. Ficou famoso em Paris um protesto em que, empunhando uma espingarda, bradou:

    Abaixo o general Aupick (BENJAMIN, 1989, p. 11). O general em questo era seu padrasto.

    Benjamin cita Flaubert para justificar o poeta provocador: De toda poltica s entendo uma

    coisa: a revolta (BENJAMIN, 1989, p. 11).

    O autor dO Poema do Haxixe queria despejar a sua fria atravs dos livros com o intuito

    de atiar a raa humana contra si prprio. Mas prometeu me, em uma carta de dezembro de

    1854, que seu nome jamais apareceria nos registros infames da polcia (BENJAMIN, 1989, p.

    12). Contraditrio o magano das Flores do Mal. Mas a contradio uma caracterstica que

    todo dndi cultivava com zelo.

    Para Fradique, o francs, muito intelectual, estava mais para psiclogo do que para poeta,

    pois a poesia exige emoo e o magano no passava de um dissecador sutil de estados

    mrbidos. Comparava-o a um patologista que, com o corao saudvel, descrevia numa folha de

    papel as perturbaes de uma leso cardaca. O poeta das Lapidrias justificava essa

    observao afirmando que Baudelaire escreveu as Flores do Malprimeiro em prosa, para depois,

    com a ajuda de um dicionrio de rimas, passar a obra para verso. Essa era uma das maneiras que

    faziam de Carlos Fradique Mendes um homem original. No tinha o menor pudor em expor as

    suas idias, principalmente as mais polmicas, no importando a quem as dirigia.

    Fradique no atacava o poeta e conspirador francs toa. Benjamin lembra que, quandoNapoleo liderou o golpe de estado que o levou ao poder, Baudelaire ficou indignado, mas depois

    de analisar os acontecimentos do ponto de vista providencial, acatou-os como se fosse um

    monge. O novo imperador foi o incentivador do movimento lart pour larte o poeta das Flores

    via na ruptura com essa corrente uma postura a ser adotada.

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    Desde a dcada de 1830, a atividade literria ocupava as pginas dos dirios. A imprensa

    marcada por fortes e justificadas desconfianas passou a ser a arena de debates da sociedade e

    j no final do Segundo Imprio surgiram em Marselha e em Paris dois volumes das Revistas

    Parisienses, veculo que chegou para fazer frente s leviandades das informaes histricas e sdos folhetins. A informao saa dos cafs em Paris e a rua fornecia a matria-prima para os

    peridicos. Era nos cafs que a informao se oferecia ou na forma de boatos ou na boca das

    cocottes. Para obt-la, os redatores dirigiam-se ao boulevard. Ea manifestou o seu desencanto

    com o rumo da Frana em sua conferncia sobre o realismo, segundo reproduo de Viana Moog:

    O segundo imprio d-nos os cticos corrompidos, materialistas; sobe a poltica bomia eexplora o povo. O egosmo, o amor ao dinheiro, so a palavra de ordem em todos os ramos daatividade; o luxo afoga a dignidade; no h moral nem conscincia; a poltica domina tudo, nasce

    o mundo odioso das cocottes e dos petits-crves mundo que h pouco fugia em presena dosprussianos e contemplava, como um espetculo de prazer a destruio de Estrasburgo. Aparece aliteratura devassa do boulevard, que se sintetiza na ostentao da impudica Rigolboche (apudMOOG, 1966, p. 144).

    Nas avenidas, o literato passava o seu tempo ocioso. Passeando, vagando, flanando. Para

    este tipo, a diversidade da vida s poderia ser desenvolvida sobre os paraleleppedos e as caladas

    largas da capital francesa. Com o surgimento do Segundo Imprio, as lojas localizadas nas

    principais ruas no fechavam antes das 22 horas o que significou um grande apoio para a

    flnerie e para o comrcio de bens luxuosos. Mas a flnerie tambm se aprimorou graas sgalerias parisienses. Benjamin reproduz um trecho de um guia ilustrado de Paris datado de 1852:

    As galerias, uma nova descoberta do luxo industrial, so caminhos cobertos de vidro e revestidosde mrmore, atravs de blocos de casas, cujos proprietrios se uniram para tais especulaes. Deambos os lados dessas vias se estendem os mais elegantes estabelecimentos comerciais, de modoque uma de tais passagens como uma cidade, um mundo em miniatura. (BENJAMIN, 1989, p.35).

    Com a flnerie surge uma literatura panormica que teve como veculos maiores de

    divulgao os fascculos chamados de fisiologias. Essas edies apresentam os tipos quehabitam as caladas da capital francesa. Depois dos homens, as fisiologias consagram a cidade

    com ttulos como Paris Noite, Paris Mesa, Paris Casada, etc. Da passaram a abordar os

    povos e os animais. O que importava era a inofensividade do teor. O texto desfilava pelas pginas

    assim como o autor pelas avenidas, galerias e sales. Era o mundo de Fradique e que Ea de

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    Queirs conheceu to bem. Um mundo raso de idias em que no havia questionamentos

    substanciais.

    Alis, o magano mantinha uma mgoa em relao a Bruxelas por causa da falta de

    vitrines na capital belga. Para ele, a flnerieera amada pelos povos criativos e em Bruxelas noh nada a ver, e as ruas so inutilizveis (BENJAMIN, 1989, p. 47). Benjamin diz que

    Baudelaire adorava a solido, desde que a desfrutasse no meio da multido. Baudelaire chama o

    flneurde prncipe que se faz incgnito, apesar deste precisar de espao livre para no prejudicar

    a sua observao e a sua privacidade. Este observador uma espcie de detetive cuja ociosidade

    no lhe fica mal.

    Em tempos de liberalismo, a ociosidade no era a mais bem vista das formas de vida

    excetuando, claro, aos olhos do dndi. O dndi aquele que se destaca no meio dos outros.

    Assim age o flneur. Ao observar que consegue se destacar. Se ao contrrio disso ele se

    surpreendesse com o material de observao, deixaria de ser umflneurpara ser um basbaque. O

    flneur sempre est ciente da sua individualidade, enquanto que o basbaque absorvido pela

    multido ao ser surpreendido.

    1.2 O dndi e a efemeridade

    Fradique amava o passado e considerava que o verdadeiro Portugal havia desaparecido.

    Considerava que a perda da tradio diminua o mundo e banalizava a vida. Lamentava, com

    provocao e ironia para com os amigos liberais portugueses, o desaparecimento de velhos

    costumes fidalgos do tempo do rei D. Joo V. E a ironia era, para ele, uma maneira de manifestar

    a sua portucalidade. Sua correspondncia era despachada de Lisboa, do Minho e h referncias

    sua predileo pelo Ribatejo. No era, portanto, avesso s coisas de Portugal, mas tinha tal ironia

    em relevo como trao de sua personalidade.

    Assim como o apego ao passado, a ironia uma caracterstica fundamental no dndi,segundo Isabel Pires de Lima, no artigo Fradique e o dandismo. com ela, e com o cinismo,

    que este ente que parece emergir de tempos imemoriais desmascara a sociedade moderna. Porm,

    com os olhos sempre voltados para o futuro.

    Mas esse apego ao passado no ficava restrito a Portugal. Amante da arqueologia,

    Fradique lastimava a decadncia do Oriente. Era contra a modernizao da Terra Santa pela

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    construo da ferrovia entre Jafa e Jerusalm. Para ele, era necessrio preservar a mitologia

    crist, mesmo sendo um descrente. Descrente no homem, na vida e em qualquer tipo de salvao.

    Mesmo assim, dizia adorar a vida e, assim, adorar tudo. No devemos nos esquecer que ele

    mantinha sobre sua mesa-de-cabeceira um exemplar de Darwin e outro do Padre ManuelBernardes, um escritor que privilegiava a emoo na sua crtica aos costumes de seu tempo.

    Natural em um homem que era todo anlise.

    Um insatisfeito, uma alma tumultuosa, mas que no deixava de sorrir mesmo no

    sofrimento. Esse estado de esprito que se manifesta no poeta das Lapidrias fica evidente na

    sua opinio a respeito da efgie dos donos do poder na Europa. Sendo ele um heri que emerge do

    passado trazendo consigo referncias sobre perfis cunhados, ele lamenta a fealdade tacanha do

    rosto dos poderosos. O czar da Rssia tinha um caro parado e afvel que podia ser o do seu

    copeiro-mor; Bismarck ostentava um focinho de buldogue acorrentado; Napoleo III

    apresentava um perfil sorno, oblquo e bigodoso (QUEIRS, 2002, p. 124).

    No estudo A correspondncia de Fradique Mendes: o brilho do efmero, verbete do

    Suplemento ao dicionrio de Ea de Queiroz, Isabel Marnoto lembra que Fradique um homem

    que prefere a forma idia e que o mundo dele efmero. As diversas aluses a flores contidas

    no livro e as reflexes sobre a brevidade da vida confirmam essa idia de transitoriedade. E o

    poeta das Lapidrias um homem que corre de amor em amor da mesma forma que atravessa

    continentes, converte-se ao babismo e envolve-se em conflitos. Sempre movido pelas

    necessidades de certeza. Mas nessas buscas, o Leo Portugus sempre deixa claro que as

    fronteiras existem.

    Fradique um feroz defensor da nacionalidade. Quando se tornava urgente retemperar a

    fibra, gostava de percorrer a provncia portuguesa a cavalo. De preferncia pelo Ribatejo, torro

    da tauromaquia lusitana. Dizia que cavalgar com os ares matinais no meio da boiada o fazia sentir

    a verdadeira delcia de viver. Mas o trao nacional era aplicado tambm lngua. Em carta a

    Madame S. exerce aquilo que chama de diletantismo das idias e elabora um tratado em defesado sotaque carregado ao falar uma lngua estrangeira. Para ele, o poliglota no um patriota e o

    homem s deve falar com pureza a sua lngua natal, a qual atribui a verdadeira nacionalidade. De

    fato, o sotaque irretocvel s interessa ao espio, e, como dndi que era, Fradique no poderia

    jamais exercer um cargo que exigisse tanta discrio atitude dificultada para quem mantinha em

    seus armrios uma cabaia de mandarim de seda verde bordada com flores de amendoeira.

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    A toilettede Fradique sempre impecvel e original. A indumentria era importante item

    que distinguia o dndi do comum dos mortais. E se para obter essa distino fosse necessrio

    gastar horas para dar o n na gravata, melhor seria, pois o lao perfeito era aquele que parecia ter

    sido executado s pressas o que, por um lado, demonstrava desprezo pela importncia ao tempodada pelo burgus e, por outro, permitia uma garantia de originalidade no vestir.

    Em Homo Ludens, o historiador holands Johan Huizinga afirma que o sculo XIX foi

    extremamente sisudo e essa caracterstica ficou refletida em todos os segmentos da cultura, fosse

    nas artes, na cincia, na filosofia, na economia ou na moda. Para Huizinga, o desaparecimento de

    traos imaginativos e fantasiosos na indumentria masculina um indcio incontestvel da

    eliminao do aspecto ldico na vida social. As calas compridas utilizadas por camponeses e

    pescadores passaram a vestir a nudez dos cavalheiros, tornando o vesturio dos elegantes cada

    vez mais amorfo e incolor, sujeito a cada vez menos transformaes (HUIZINGA, 2005, p.214).

    Atravs da eliminao de caractersticas militares da vestimenta, o homem deixou de

    brincar de heri, sendo a cartola o emblema da sua moderao. Os tecidos finos foram

    substitudos por grossos panos escoceses e a casaca foi condenada a vestir os empregados de

    restaurante. Huizinga afirma que o nivelamento e a democratizao da elegncia masculina

    resultado de uma transformao espiritual e social ocorrida desde a revoluo francesa

    (HUIZINGA, 2005, p. 214). E contra essa democratizao da individualidade que o dndi se

    rebela.

    O dndi recusa o anonimato e gosta de surpreender. Para ele, a elegncia surgia de uma

    simples equao matemtica: a soma de mtodo e acaso. E foi por conta desse apego elegncia

    e ao estilo que Fradique morreu no inverno de 1888, ao recusar a proteo da pelia de um

    oficial catarroso. Desprotegido em nome da vaidade e do horror em usar uma vestimenta

    semelhante do militar, o heri adoeceu e morreu, confirmando o ditado portugus que diz que

    a peneira no sente frio, aluso ao pouco caso dos vaidosos em relao s condies climticas,

    o que explica a verdadeira razo que deveria constar no atestado de bito do rebelde poeta dasLapidrias.

    Assim como Ea e seu grupo de amigos, esse crculo de intelectuais firmou posio

    contrria vida burguesa e ao poder que dela emanava nas Conferncias do Casino. A crise

    econmica que atingiu a Europa chegou a Portugal e fragilizou mais ainda o liberalismo

    portugus j bastante abalado pelo descrdito que sofreu depois dos diversos arranjos e da

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    poltica de rotatividade promovida por regeneradores, histricos e reformistas. Liana Flosky

    Manno lembra que essa gerao no queria ser cmplice, no queria pactuar com a paz

    regeneradora. A Gerao de 70 lutava contra a mentalidade vigente e se oferecia como alternativa

    para a sociedade. Para isso, estava disposta a lutar contra os bares, que Garrett j denunciara,utilizando as novas armas e o estilo de vida de que dispunham.

    Em seu horror ao burgus, o dndi expe a sua rebeldia. Seja o desprezo pelo tempo

    manifestado na interminvel confeco do lao perfeito de uma gravata ou na excentricidade dos

    costumes, como no passo sobre a mmia presa na alfndega ou ainda na nostalgia e na forma de

    marcar a diferena entre a sua postura e a dos burgueses. Essas passagens demonstram os traos

    de um antagonismo feroz. E o dndi fascinado pelo animal selvagem.

    O selvagem a negao quela civilizao, pois o animal domina o ambiente em que vive

    estabelecendo o prprio ritmo. A elegncia do dandismo est baseada no comedimento e na

    surpresa, maneira pela qual procura reconquistar o lugar do natural numa sociedade que

    considerava artificial. E para combater esse artificialismo de uma sociedade que ignorava o

    natural, s o artifcio para preservar o natural. muita contradio. At mesmo para um dndi.

    Para realizar essa tarefa, era necessrio encontrar o animal que existe dentro do homem.

    Benjamin lembra a pergunta feita por Baudelaire:

    O que so os perigos da floresta e da pradaria comparados com os choques e conflitos dirios domundo civilizado? Enlace sua vtima no boulevard ou traspasse sua presa em florestasdesconhecidas, no continua sendo o homem, aqui e l, o mais perfeito de todos os predadores?(apud BENJAMIN, 1989, p. 37).

    Fradique, em carta a Oliveira Martins, diz que as nicas fisionomias nobres so as das

    feras, genunos Rameses no seu deserto, que nada perderam da sua fora, nem da sua liberdade

    (QUEIRS, 2002, p. 127) e compara o homem moderno a um pobre Ado achatado entre as

    duas pginas de um cdigo. O homem que no acreditava em nenhuma forma de salvao e que

    era devoto de Nossa Senhora da Razo mantinha vivas em seu repertrio as referncias bblicasda av, D. Angelina Fradique, tradutora de Klopstock o autor de epopias religiosas.

    E pela aluso religiosa Fradique Mendes considerava as mulheres organismos superiores e

    divinamente complicados. A Correspondnciaapresenta diversas figuras femininas ao longo da

    vida do protagonista. Clara, Libuska, Madame S., Condessa de La Fert, Ana de Leon e Jeanne

    Morlaix a quem Ea chamou de ninfa e teceu uma ode em elogio sua beleza. Esboou

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    inclusive uma fantasia pag em que pretendia reservar ao amigo um providencial enlaamento

    de tomos (QUEIRS, 2002, p. 42). Fradique no esqueceria jamais a inteno e mesmo dono

    de opinies polmicas e originais, entregou-se por um pequeno e delicado suborno. Ainda mais

    porque o agrado envolvia questes de amor. Ea registrou a gratido do amigo:

    Muitas vezes, no decurso da nossa convivncia, Fradique aludiu gratamente a essa minhaencantadora inteno de lhe atar, em torno do pescoo, os braos de Jeanne Morlaix. Fora elecativado pela sinuosa e potica homenagem que eu assim prestava s suas sedues de homem?

    No sei. Mas, quando nos erguemos para ir ver as iluminaes do Beiram, Fradique Mendes, comum modo novo, aberto, quente, quase ntimo, j me tratava por voc (QUEIRS, 2002, pp. 42-43).

    Fradique descobrira Clara de passagem. Estava em companhia de Libuska, mas no

    deixou de notar a loura e clara figura que logo o seduziu. Com um certo ar indolente, viu nesta

    mulher uma oposio maneira de ser da sua acompanhante. Buscou o auxlio da madrinha para

    providenciar um encontro.

    Freud diz que os instintos do amor so difceis de educar (FREUD, 1973, p. 88) e insere

    esse instinto nas ambies de uma civilizao que o pretende inatingvel. Como sedutor e

    aventureiro que era, Fradique apreciava a conquista. No sabia quem era a mulher que observara

    com rigor. Descrevia o vestido, o corpo e at as pestanas. Fazia a tradicional comparao com o

    passado e a semelhana com as damas do sculo anterior foi motivo de satisfao.

    Na carta madrinha explica o fato de ter deixado passar a oportunidade de umaapresentao como um requinte de quem caminha rumo felicidade. O obstculo dava o picante

    necessrio para acender a paixo e gosto pela conquista. Prorrogar como nos tempos do rei Artur.

    Liana Flosky Manno lembra que no romantismo o homem acreditava na possibilidade de alcanar

    a plenitude no amor, mas ressalta que os romances do final do sculo XIX questionam valores

    tidos como definitivos e que eram considerados a salvao dos homens. Vivia-se uma crise moral

    e no s intelectual.

    Os esforos da Igreja para reprimir a sociedade oitocentista, com o apoio do poder

    estabelecido, levaram o homem desse sculo a uma situao em que ou ele sucumbia culpa ou

    aceitava as regras desse jogo. Liana Manno lembra que Flaubert reconheceu a neurose como o

    mal do sculo. Suas vtimas no se enxergavam como eram, mas sim como desejariam ser.

    Fradique no padecia com esses escrpulos. Esprito livre de culpas e arrependimentos,

    percorria alcovas como se fossem continentes e descartava amantes como quem troca de

    sobrecasaca. Sempre (des)preocupado em manter a sua agudeza crtica, a sua autonomia

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    intelectual, a sua originalidade pessoal, a sua individualidade diante de um sculo que deu os

    primeiros passos rumo democratizao dos costumes.

    O sculo XIX foi um tempo de conquistas efetivas, mas quem viveu esse perodo o

    entendia muitas vezes como um sculo de poucos avanos: os Vencidos da Vida e os da Geraode 70, por exemplo, depositaram muitas expectativas naquele tempo que, como todos os outros,

    obedece a um determinado ritmo, marchas e contramarchas prprias das sociedades em geral.

    O fradiquismo a configurao do dilogo de um autor com o seu tempo. Um tempo de

    enormes transformaes e de avanos e recuos no campo da poltica, nas relaes sociais, na

    cincia, na filosofia e na literatura. Um tempo em que um observador agudo como Ea de

    Queirs percebeu ser a base de uma nova ordem para a sociedade do sculo seguinte e via esses

    acontecimentos finisseculares com o pessimismo natural de quem vive determinada poca e

    apresenta dificuldades para reconhecer os avanos testemunhados por si prprio.

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    E todavia o Homem s vale pela Vontade s no exerccio da Vontade reside o gozo da Vida.

    (A ilustre Casa de Ramires)

    E nada mais instrutivo e doloroso do que este supremo homem do sculo XIX, no meio de todos

    os aparelhos reforadores dos seus rgos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu servioas Foras Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos sculos estacando,

    com as mos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indeciso mole de

    um bocejo, o embarao de viver!

    (A cidade e as serras)

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    2. O LTIMO EA

    Tendo sido acusado desde sempre de antipatriota, Ea de Queirs publicou em sua ltima

    fase livros que mantm as suas convices acerca das idiossincrasias da sociedade portuguesa,mas que tambm demonstram uma aceitao das coisas como elas eram. Ea jamais brigou com o

    seu pas para haver uma reconciliao. Portanto, essa reconciliao simblica e deve ser vista

    mais como um entendimento.

    Carlos Reis afirma em Ea de Queirs consul de Portugal Parisque 1888 foi um ano

    crucial para a literatura queirosiana. Neste ano foi publicado em dois volumes Os Maias, a sua

    obra-prima, e nas pginas dO Reprter ressurgiu um personagem nico na extensa galeria do

    autor dO Mandarim e que anunciou a heteronimidade pessoana do sculo seguinte: Carlos

    Fradique Mendes.

    Segundo esquema cronolgico organizado por Campos Matos, alm dOs Maias e de

    Fradique (ambos em 1888), Ea publicou no ano seguinte as edies finais de O Mandarim e de

    O crime do padre Amaroe lanou aRevistade Portugal; em 1890, supostamente, de acordo com

    Campos Matos, Ea escreveu o manuscrito de So Cristvo, e lanou o primeiro volume de

    Uma campanha alegre (As Farpas totalmente refundidas, bom frisar), para um ano depois

    publicar o segundo volume; entre 1892 e 1896 escreveu os contos Civilizao, A Aia, Frei

    Genebro e O Tesouro (estes dois ltimos em 1894), O Defunto e a homenagem pstuma a

    Antero de Quental, Um gnio que era um santo, um texto importantssimo para a compreenso

    de toda a obra queirosiana.

    Em 1897 publicou na Revista Moderna: A Perfeio, Jos Matias e comeou a

    publicar A Ilustre Casa de Ramires. Em 1898 foi a vez de O Suave Milagre. E deixou trs

    romances que s foram editados em livro aps a sua morte: em 1900 A correspondncia de

    Fradique Mendes e A ilustre Casa de Ramires (cuja publicao no se conclui na Revista

    Moderna)7

    e em 1901 A cidade e as serras. As obras finais do escritor deixam bem claro a suamudana de entendimento do mundo e das pessoas. A correspondncia de Fradique Mendes

    ainda mantm o tom das crticas sociedade portuguesa, mas j fica evidente o reconhecimento

    das qualidades lusitanas, sobretudo do velho Portugal; mas em A cidade e as Serras e em A

    7Ver a dissertao de mestrado de Cntia Pinheiro intituladaA Revista Moderna: fatos e retratos de um sculo que termina (1897-

    1899).

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    ilustre Casa de Ramires, Ea admite as deficincias do mundo civilizado e reconhece as

    qualidades do seu pas no tal movimento que alguns pesquisadores encaram como de

    reconciliao.

    Reconciliao ou entendimento, o que importa que Gonalo Mendes Ramires umametfora para o momento que o pas vivia a ferida provocada pelo Ultimatum ainda no havia

    cicatrizado. O protagonista dA Ilustre Casa de Ramiresbuscava trilhar o seu caminho diante do

    mundo que se apresentava. Portugal, dono de uma histria de conquistas e feitos memorveis,

    sentia-se sem rumo naquele final de sculo, assim como o Fidalgo da Torre. Carlos Reis, n O

    essencial sobre Ea de Queirs, entende que aqui se percebe uma reelaborao e

    aprofundamento do Realismo crtico (REIS, 2000, p. 33) porque a reflexo crtica aplicada pela

    Gerao de 70 intentava revitalizar as conscincias cultural, cvica e histrica de Portugal, e nA

    ilustre Casa de Ramires, o autor utiliza a histria para superar uma viso esttica e nostlgica do

    passado nacional (REIS, 2000, p. 34) em contraposio nostalgia sentimentalista do ultra-

    romantismo.

    O outro foi Jacinto, o personagem supercivilizado de A cidade e as Serras. Portugus

    nascido em Paris, neto de um miguelista, Jacinto fora outrora um entusiasta da civilizao, mas

    os constantes estmulos a que um habitante da cidade estava expost