corra, a vida te chama - boris cyrulnik

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Corra, A Vida Te Chama - Boris Cyrulnik

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História verídica de superação e esperança, Corra, a vida te chama é a autobiografia de um sobrevivente: salvo da morte ao seis anos, órfão e analfabeto até adolescência, Boris Cyrulnik é hoje um psiquiatra de renome e um dos grandes estudiosos da resiliência em todo o mundo. Autor de vasta e reconhecida obra, Cyrulnik, de origem judaica, aborda pela primeira vez em livro a sua própria trajetória, marcada pela perseguição nazista. O livro também pode ser lido como um relato de autodesenvolvimento e atrair interessados em relatos de Segunda Guerra Mundial, judaísmo e psicanálise.

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CAPÍTULO1

AGUERRAAOS6ANOS

Eunasciduasvezes.Nomeuprimeironascimento,eunãoestava.Meucorpoveioaomundo

no dia 26 de julho de 1937, em Bordeaux. Disseram-me. Sou obrigado acrer,umavezquenãotenhonenhumalembrança.Domeusegundonascimento,tenhoplenamemória.Umanoite,fuipreso

porhomensarmadosquecercavamminhacama.Vinhammebuscarparamelevarparaamorte.Minhahistórianasceunaquelanoite.

Aprisão

Aos6anos,apalavra“morte”aindanãoéadulta.Éprecisoesperarumanoou dois para que a representação do tempo dê acesso à ideia de umaparadadefinitiva,irreversível.Quando a senhora Farges disse “Se o deixarem viver, não lhe diremos

que é judeu”, iquei muito interessado. Portanto, aqueles homens nãoqueriam que eu vivesse. A frase me fazia compreender por que elesapontaramorevólverparamimquandomeacordaram: lanternaemumadasmãos,revólvernaoutra,chapéudefeltro,óculosescuros,colarinhodopaletólevantado,queeventosurpreendente!Entãoéassimquesevestemquandoqueremmatarumacriança.Fiquei intrigadocomocomportamentodasenhoraFarges:decamisola,

elajuntavaminhasroupasemumapequenamala.Foientãoqueeladisse:“Seodeixaremviver,nãolhediremosqueéjudeu.”Eunãosabiaoqueeraserjudeu,masacabaradeouvirquebastavanãodizerparaserautorizadoaviver.Fácil!Um homem que parecia o chefe respondeu: “É preciso fazer com que

essas criançasdesapareçam, senãoelasvão se tornar inimigasdeHitler.”Portanto,euestavacondenadoàmorteporumcrimequeiacometer.Ohomemquenasceuemmimnaquelanoitefoiplantadonaminhaalma

por essa encenação: revólveres para me matar, óculos escuros à noite,soldados alemãesde fuzil nas costasno corredor e sobretudo a estranha

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frasequerevelavaminhacondiçãodefuturocriminoso.Imediatamenteconcluíqueosadultosnãoeramsériosequeavidaera

apaixonante.Vocês não vão me acreditar quando eu disser que levei muito tempo

paradescobrirque,naocasiãodaquelanoiteimpensável,eutinha6anosemeiodeidade.Preciseidereferênciassociaisparaconcluirqueoeventosepassounodia10de janeirode1944,datadaprisãoemmassade judeusbordeleses. Para esse segundo nascimento, foi preciso que mefornecessemmarcos exteriores à minha memória 1 para que eu pudessetentarentenderoquetinhaocorrido.Em 2011, fui convidado a um programa sobre literatura em Bordeaux

pela RCF, uma rádio cristã. Ao me acompanhar em direção à saída, ajornalistadisse: “Pegueaprimeiraruaàdireitaeverá,ao inal, aestaçãodebondequeolevaráàplacedesQuinconces,nocentrodacidade.”O dia estava bonito, o programa fora simpático, eu me sentia leve.

Subitamente, fui surpreendido por um surgimento de imagens que seimpunham a mim: de noite, na rua, a barreira de soldados alemãesarmados, caminhões com toldos ao longo das calçadas e o carro pretodentrodoqualmeempurraram.O dia estava bonito, eu era esperado na livraria Mollat para outro

encontro.Porque,subitamente,esseretornodeumpassadolongínquo?Chegando à estação, eu li, esculpido na pedra branca de um grande

edi ício:“HospitaldasCriançasDoentes”.Derepentemevoltouaproibiçãode Margot, a ilha da senhora Farges: “Não vá pela rua do hospital dasCriançasDoentes,hámuitagente,podemdenunciá-lo.”Estupefato, volto pelo mesmo caminho e descubro que acabara de

atravessararueAdrien-Baysselance.PassaraemfrenteàcasadasenhoraFarges sem me dar conta. Não a revira desde 1944, mas creio que umindício, omato entre as pedras desconjuntadas do calçamento ou o estilodasescadarias,desencadearanaminhamemóriaoretornodahistóriadaminhaprisão.Mesmoquandotudovaibem,bastaumindícioparadespertarumtraço

dopassado.Avida cotidiana,osencontros,osprojetosenterramodramanamemória,mas, àmenorevocação, omatonomeiodo calçamento,umaescada mal construída, uma lembrança pode surgir. Nada se apaga;acreditamosteresquecido,apenasisso.Eu não sabia, em janeiro de 1944, que teria de fazer minha vida com

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essa história. Tudo bem, não sou o único que passou pela iminência damorte: “Atravessei a morte, ela se tornou uma experiência da minhavida...”,2masaos6anostudodeixatraços.Amorteseinscrevenamemóriaesetornaumnovoorganizadordodesenvolvimento.

Aslembrançasquedãosentido

O falecimento dos meus pais não foi um acontecimento para mim. Elesestavam ali, e depois já não estavam ali. Não tenho os traços da mortedeles,masrecebiasimpressõesdeseudesaparecimento. 3Comovivercomelesedepois,subitamente,viversemeles?Nãosetratadeumsofrimento;nãosesofrenodeserto,morre-se,simplesmente.Tenho lembranças muito claras da minha vida de família antes da

guerra. Mal começara a aventura da palavra, uma vez que tinha 2 anos,masaindaguardolembrançasdeimagens.Lembro-medemeupailendoojornalàmesadacozinha.Lembro-medomontedecarvãonomeiodapeça.Lembro-me dos vizinhos de andar em cuja casa eu ia admirar o assadosendopreparado.Lembro-meda lechadeborrachaquemeutio Jacques,de14anos,atiroubemnaminhatesta.Lembro-medetergritadobemaltoparaqueelefossepunido.Lembro-

me da paciência exausta da minha mãe, esperando que eu calçasse ossapatos sozinho. Lembro-me dos grandes barcos no cais. Lembro-me dehomens desembarcando nas costas imensos cachos de banana e lembro-me de mil historietas sem palavras que, hoje ainda, dão forma à minharepresentaçãodeantesdaguerra.Um dia meu pai chegou de uniforme e eu iquei muito orgulhoso. Os

arquivosme explicam que ele se alistara no Regimento de Infantaria deVoluntários Estrangeiros, tropa composta de judeus estrangeiros erepublicanosespanhóis.ElescombateramemSoissonsesofreramperdasenormes.4 Na época, eu não tinha como saber. Hoje, eu diria que tinhaorgulhode ter umpai soldado,masquenão gostavade seuquepe, cujasduaspontasmepareciamridículas.Eu tinha2anos:erade fatooqueeuachavaouviemumafotografiadepoisdaguerra?Oencadeamentodosfatosdásentidoaoacontecimento.Primeira historieta: o exército alemão des ila em uma grande avenida

perto da rue de La Rousselle. Eu acho aquilo magní ico. A cadência dos

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soldados batendo no chão todos juntos produz uma impressão de poderquemeencanta.Amúsicaabreamarchaegrandestamboresdecadaladodos lancosdeumcavalodãoo ritmoeprovocamummaravilhoso temor.Um cavalo escorrega e cai, os soldados o levantam, a ordem érestabelecida. É um drama magní ico. Surpreende-me ver que à minhavoltaalgunsadultoschoram.Segunda historieta: estamos no correio com minha mãe. Os soldados

alemães passeiam pela cidade em grupos, sem armas, sem quepes e atésemcinturão.Notonelesoarmenosguerreiro.Umdelesvasculhaobolsoemeestendeumpunhadodebombons.Minhamãepega-osbrutalmenteedevolve ao soldado, injuriando-o. Admiro minha mãe e lamento pelosbombons.Elamediz:“Nuncasedevefalarcomumalemão.”Terceira historieta: meu pai está de licença. Passeamos no cais do

Garonne.Meuspaissentam-seemumbanco,eubrincocomumabola,querolaatéoutrobancoondeestãosentadosdoissoldados.Umapanhaabolaemeentrega.Eurecusoinicialmente,mas,comoeleestásorridente,aceito.Poucodepois,meupai tornaapartirparaoexército.Minhamãenunca

maisoverá.Minhamemóriaseentorpece.MinhaslembrançasretornarãomaistardequandoMargotformebuscar

na Assistência. Meus pais desapareceram. Eu me lembro então de terfalado com os soldados apesar da proibição, e esse encadeamento delembrançasmefazpensarque,semeuspaismorreram,éporque,semserdepropósito,devoterdadonossoendereçoaofalar.Comoumacriançapodeexplicarodesaparecimentodospaisquandoela

não sabe que existem leis antijudaicas e que a única causa possível é atransgressão da proibição: “Nunca se deve falar com os alemães”? Oencadeamento desses fragmentos de memória é que dá coerência àrepresentação do passado. Organizando algumas lembranças esparsas,concluíqueelesmorreramporminhacausa.Emumaquimera,tudoéverdadeiro:oventreédeumtouro;asasas,de

uma águia; e a cabeça, de um leão. Contudo, o animal não existe. Oumelhor, ele só existe na representação. Todas as imagens postas namemória são verdadeiras. É a recomposição que organiza as lembrançaspara delas fazer uma história. Cada acontecimento inscrito na memóriaconstituiumelementodaquimeradesi.Depois, um simples encontro pode revelar o traço: Sidney Steward,

soldado do exército americano em 1945, foi deportado para um campo

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japonês.Morre-setantoàsuavoltaqueelesesurpreendeporsobreviver.Psicanalista emParis, nãoacreditana culpados sobreviventes e sustentater sidopoupado.Atéodia emqueumade suaspacientes lhe contaqueela, criança, estava na ila que levava à câmara de gás emAuschwitz. Derepente, ela largou a mão da mãe e se afastou. Sua irmã menorimediatamente tomou o seu lugar. Foi ela que entrou no pavilhão com amãe. A porta foi fechada, obrigando a irmã mais velha a não morrer. Aintersubjetividade entre o psicanalista e a paciente provocou “umaexplosãodelembrançasqueelatentaraocultaratéentão”.5Eu não armazenava lembranças senão quando havia vida em torno de

mim. Minha memória se extinguiu quando minha mãe se extinguiu. Naescola maternal da rue Pas-Saint-Georges, vivia-se intensamente. MargotFarges,aprofessora,encenavacomospequenosatoresde3anosdeidadeafábulaOcorvoearaposa.Aindamelembrodaperplexidadenaqualmemergulhara o verso: “Mestre Corvo, numa árvore empoleirada...” Eu meperguntava como era possível empoleirar uma árvore* e nela pôr umcorvo, mas isso não me impedia de aderir plenamente ao meu papel deMestreCorvo.Ficava particularmente indignado com o fato de duas meninas se

chamarem“Françoise”.Cadacriança,pensavaeu,deviaserdesignadaporumnomesemoutroigual.Imaginavaque,dandoummesmonomeaváriasmeninas,sedesconsideravamsuaspersonalidades.Eujácomeçavaminhaformaçãopsicanalítica!

Chamar-seJeanBordes(ouLaborde?)

Em casa, umanão vida entorpecia nossas almas.Nessa época, quando oshomens se alistavam no exército, as mulheres só podiam contar com afamília.Nãohaviaajudasocialem1940.Masafamíliaparisiensedaminhamãe desaparecia. Uma irmã mais nova, Jeannette, de 15 anos,desaparecera assim. Nenhum sinal de detenção, nenhuma prisão emmassa,nada–derepenteelajánãoestavalá.“Desaparecida”éapalavra.Possibilidade de trabalhar também não havia, era proibido. Tenho a

vaga lembrançadaminhamãevendendoobjetosdacasa,emcimadeumbanco,narua.Enormeburacodememóriaentre1940e1942.Eu ignoravaasdatase

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vivi durante muito tempo em um caos da representação do tempo. “Eutinha2anosquandofuipreso...não,éimpossível,eudeviater8anos...nãopode ser, a guerra tinha acabado.” Algumas imagens de uma precisãosurpreendente persistiam na minha memória, incapaz de situá-las notempo.Recentemente, informaram-me que minha mãe me colocou na

AssistênciaPúblicanavésperadesuaprisão,em18dejulhode1942.Nãotive vontade de veri icar. Alguém deve tê-la prevenido. Jamais achei queela tivesseme abandonado. Elame pôs lá parame salvar. Depois voltoupara casa, sozinha,umahabitaçãovazia, semmarido, sem ilho.Foipresademadrugada.Nãotivevontadedepensarsobreisso.Devo ter icado um ano na Assistência, não sei. Nenhuma lembrança.

Minha memória voltou no dia em que Margot foi me buscar. Para mesossegar, ela levou uma caixa com torrões de açúcar e foi me dandoregularmente até omomento emque se recusou, dizendo: “Acabou.” Era,eu acho, dentro de um vagão que vinha não sei de onde e ia paraBordeaux.Na família deMargot,minhamemória voltou a viver. O senhor Farges,

inspetordeescola,ameaçava“ icarfurioso”.Eu ingia icarimpressionado.A senhora Farges criticava a ilha: “Você podia ter nos avisado que iabuscarestacriançanaAssistência.”Suzanne,a irmãdeMargot,professoraemBayonne,meensinavaaver

ashorasnogranderelógiodasala,eacomercomoumgato,elamedizia,compequenaslambidas,enãocomoumcachorro,queengoletudodeumavez.Creioterditoaelaqueeunãoconcordava.OsFarges tinhamreuniões estranhas emvoltadeumgrande rádio, no

qualseouvia:“Asuvasaindaestãoverdes...eurepito...asuvasaindaestãoverdes”ou“opequenoursomandouumpresenteàborboleta...eurepito...”Um barulho de matraca cobria essas palavras às vezes di íceis deentender. Eu não sabia que se chamava Rádio Londres,mas achava quenãoerasérioreunir-seemtornodeumrádioparaescutarcomgravidadefrasesengraçadas.Deram-me algumas missões naquela família: cuidar do jardinzinho,

ajudarna limpezadogalinheiroe irbuscaro leitequeeradistribuídoemuma portaria, perto do hospital das CriançasDoentes. Eu preenchiameutempocomisso,atéqueumdiaasenhoraFargesdisse: “ApartirdehojevocêvaisechamarJeanBordes.Repita!”

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Euprovavelmenterepeti,masnãoentendiaporqueeraprecisomudarmeunome.Umamulherqueàsvezesvinhaajudara senhoraFargesnostrabalhosda casameexplicougentilmente: “Sevocêdisser seunome, vaimorrer.Eosqueoamammorrerãoporsuacausa.”Aosdomingos,Camille,o irmãomaisvelhodeMargot,vinhase juntarà

mesa familiar. Todo o mundo ria tão logo ele aparecia. Um dia, ele veiovestidodeescoteirocomumjovemcolega.Esseamigo,educado,reservado,cacheado como um carneiro, mantinha-se atrás e sorria quando Camillefazia rir seu pessoal chamando-me de “o pequeno aborda” e meperguntando:“Oquevocêaborda,Jean?”Nunca consegui me lembrar do nome que me escondia... Bordes?...

Laborde?Nuncasoube.Muitotempodepois,nohospitalLaPitié,emParis,onde fui interno de neurocirurgia, havia um jovem médico chamadoBordes. Quase lhe disse que ele tinha o nome sob o qual tinham meescondido durante a guerra. Mas depois me calei. Pensei: ‘Será que nãoeraLaborde?’Euteriadedartantasexplicações!Dois anos depois da Libertação, quando me devolveram o nome na

escola,tiveaprovadequeaguerraacabara.MinhatiaDora,irmãdaminhamãe,merecolheu.Opaísestavaemfesta.

Os americanos davam o tom. Eles eram jovens e esbeltos, e, assim queapareciam, a alegria entrava nas casas com eles. Suas gargalhadas, osotaquedivertido,suashistóriasdeviagens,seusprojetosdeexistênciameencantavam.Esseshomensdistribuíamchicleteseorganizavamorquestrasde jazz. As mulheres davam muita importância às meias de náilon semcostura e aos cigarros Lucky Strike. Um jovem americano que usavapequenosóculosredondosdecidiuqueBorisnãoeraumnomeadequado,pareciarussodemais.Batizou-medeBob.Essenometinha luz,signi icava“retornoàliberdade”.Todomundoaplaudiu;euoaceiteisemprazer.Só quandome tornei estudante demedicina, passei a ser chamado de

Boris. Nesse momento, tive a impressão de que o nome podia serpronunciado longe dos ouvidos de Dora, sem risco de feri-la. Para ela,Boris ainda era o nome do perigo, ao passo que Bob era o nome dorenascimento, da festa com os americanos, nossos libertadores. Nosfarrapos da minha família, eu ainda estava escondido, mas longe delespodiame tornar eumesmo eme fazer representar tal como eu era, pelomeuverdadeironome.Após a visita dos dois escoteiros, a vida na casa deMargot também se

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extinguiu. Uma noite, fui acordado por gritos e luzes. O senhor Fargesmorrera dormindo. A senhora Farges tornou-se sombria, Suzanne saíaparadaraulaemBayonneeMargotdesapareciasegunda-feirademanhã,paraassumiropostodeprofessoraemLannemezan,euacho.Acasaficavasilenciosa, semmovimento, sem rádio engraçado, sem visitas. Bastara eumechamarBordes (ouLaborde?)para jánão terodireitode irbuscaroleite,ficaraperigoso,alguémpodiamedenunciar...Denunciar?Umdia,chegouumamulherqueeunãoconhecia.Margotdisse:“Elavai

levar você para ver seu pai.” Meu pai? Eu achava que ele tinhadesaparecido.Nemalegrianemdor,euestavaentorpecido.Aquelemundonãotinhacoerência.Amulhertinhadoladodireitodopeitoumaestreladetecido amarelo, brilhante, bordado de preto, que eu achavamuito bonita.Margot disse,mostrando a estrela: “Como você vai fazer com isto?” “Voudarumjeito”,respondeuamulher.A viagem foi silenciosa, um longo trajeto desolador para chegar ao

campo de Mérignac. Ao se aproximar dos soldados que guardavam aentradado campo, amulher desenrolou a echarpe e, comumal inete defralda, prendeu-a no casaco a im de tapar a estrela. Ela mostroudocumentos, nós nos dirigimos a um acampamento. Um homem meaguardava, sentado em uma cama de madeira. Mal reconheci meu pai.Logicamente,eledeveterditoalgumaspalavras.Nósfomosembora.Muito tempo depois da guerra, recebi sua cruz de guerra, com um

certi icado assinado pelo general Hutzinger: “Soldado corajoso... feridoantes de Soissons.” Eis por que meu pai permanecera sentado. Ele forapreso no seu leito de hospital, por ordem do departamento de polícia, elevadoparaocampodeMérignac,quemandavaparaDrancy,depoisparaAuschwitz.Nodiaseguinte,ouviMargotcontaremvozbaixaque,aochegaracasa,

a farmacêutica (era, pois, a pro issão damulher) estava sendo esperadapelaGestapo.Elapuloupelajanela.Falar era perigoso, pois se corria risco de morte. Calar-se era

angustiante, pois a ameaça pesadamente sentida vinha não se sabe deonde. Quem ia me denunciar? Como me proteger? Achei que eu ia serresponsável pela morte dos Farges, uma vez que eles eram bondososcomigo.A casa tornou-se sombria e muda. Nada teve vida ali durante vários

meses.Eutinha6anos,nãosabialernemescrever,semrádio,semmúsica,

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semamigos,sempalavras.Pus-meaandaremvoltadamesadasalaondeicava fechado. O atordoamento me acalmava ao me dar uma curiosasensação de existência. Quando icava cansado de rodar tanto tempo,deitava-me no sofá e lambia os joelhos. Em 1993, quando estava emBucareste com osMédicos doMundo, observei omesmo comportamentoautocentradonascriançasabandonadaseisoladassensorialmente.Provavelmentefoiporissoquevivencieiminhaprisãocomoumafesta.O

retorno da vida! Não iquei assustado com a barreira de soldados e oscaminhõesalinhadosque fechavama rueAdrien-Baysselance.Éhojequeachopitorescaestasituação:umexércitoparaprenderumacriança!O que mais me impressionou foi que, dentro do carro no qual me

empurraram, um homem chorava. Seu pomo de adão me fascinava detantoqueerasalienteemóvel.Diante da sinagoga, fomos postos em ila. Assim que transpúnhamos a

porta,éramosorientadosparaduasmesas.Entreasduas,haviaumo icialde botas de couro e pernas afastadas, como num ilme ruim. Creiolembrar-medeque,comumavarinha,elenosorientavanadireçãodeumamesaoudaoutra.Oquesignificavaaquelaescolha?Euouvi:–Devemosdizerqueestamosdoentes.Elevainosorientarparaamesa

quenosinscreveparaohospital.– De forma alguma – diziam outros homens. – Devemos dizer que

estamos com boa saúde para nos enviarem ao STO, 6 para trabalhar naAlemanha.Ao transpor a porta, vi atrás da mesa da ila da esquerda o escoteiro

cacheadocomoumcarneiro,oamigodeCamille.Saída ilaparamedirigira ele. Ao me ver, ele teve um sobressalto, sua cadeira caiu e ele saiu apassoslargos.Entãocompreendiqueeraelequemtinhamedenunciado.

Desobedecerparaseevadir

A sinagoga fervilhava de gente. Lembro-mede pessoas deitadas no chão,apertadas contra a parede para deixar espaço de passagem. Lembro-medeumamulhergordaqueprocuravaascriançasparajuntá-lasemcimadeumcobertorestendidonochão.Hojedigoquedescon ieidaquelamulhereseucobertor.Foidefatooquesentinaquelanoitedejaneirode1944?Em

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cima daquele cobertor, algumas crianças se esforçavam para dormir.Sobreduas cadeiras ao lado, algumas caixas continham leite condensado.Sei porque me deram. Lembro-me de ter pedido uma ou duas caixas,depoisde termeescondido comaquele tesouroe idome sentar emumacadeiravermelhaafastada,encostadaemumaparede.Detemposemtempos,aportaseabria,aluzeofrioentravamcomuma

coorte de recém-chegados. Eles se inscreviam emumadas duasmesas edepois procuravam um canto para se sentar. Éramos regularmentedespertados para fazer ila entre duas carreiras de arame farpado, nomeio da sinagoga. Recebia-se uma xícara de cafémuito quente, ao dar onome.Umadultosempremepediaocafé.Um soldado de uniforme preto veio se sentar perto de mim. Ele me

mostrouoretratodeummeninodaminhaidade,seu ilhoprovavelmente.Esse homem, comentando a fotogra ia, me fez compreender que eu eraparecido.Elefoiemborasemsorrir.Porqueeutenholembrançatãoclarada cena? Foi o espanto que a ixou na minha memória? Por que aindatenhoa impressãode ter sido importante?Pornãopodervivernomedo,eutinhanecessidadedepensarquehátraçosdehumanidademesmonosperseguidores?Eu não ia mais pegar as caixas de leite condensado, uma enfermeira

vinhame trazer. Como ela estava vestida?De enfermeira provavelmente,poismelembroclaramentequeeraumaenfermeira.Aindavejoseurosto,que eu achavamuito bonito, o louro de seus cabelos e as caixas de leitecondensadoqueelametrazia.Creiomelembrardeterseguradoopescoçodela. Eu deixava minha cadeira toda hora para ir explorar a sinagoga.Seguia os garotos que queriam se evadir. Compreendera suas intençõesporqueeramosúnicosqueolhavamparacima,paraas janelas.Umdelesdisse:“Nosmictóriosajanelaémuitoalta,pequenaegradeada.”Doishomenspertodaportanãosecomportavamcomoprisioneiros.Eles

avaliavam a multidão, e o que usava uma roupa de trabalho disse:“Recebemosaordemdepôrascriançasnovagãosalgado.”Aos6anos,eunão conhecia o signi icado da palavra “selado”*. Achei que iam pôr ascrianças em vagões salgados e que certamente era um tortura cruel. Eutinhade fugir.Olheiparaoalto, impossível,altodemais.Volteiaomictóriopara ver se de fato a janela era inacessível.Houve uma grande confusãodentro da sinagoga. Atrás da porta de uma privada algumas placas demadeirapregadasdesenhavamumZ.Conseguisubiratéoaltosemmuita

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di iculdade. Creio ter apoiado as pernas em uma parede e as costas naoutra. Fiquei surpreso ao constatar que podiamemanter sem esforço. Obarulhoeraintensodentrodasinagoga.Umhomememtrajecivilentroueabriuumaporumaasportasdosbanheiros.Nãolevantouacabeça.Faziamenosbarulhoagora.Umsoldadotambémentroueexaminouasprivadas.Se ele tivesse erguido a cabeça, teria visto ummenino acuado sob o teto.Espereiosilêncioemedeixeicairnochão.Asinagogaagoraestavavazia.A grande porta aberta deixava entrar o sol. Eu me lembro da poeiralutuando na luz. Achei aquilo bonito. Homens em trajes civis falavam,numa roda. Passei perto deles, tenho a impressão de queme viram, nãodisseramnada,eusaí.Na rua, os carros se afastavam. Alguns soldados esparsos junto das

grandes escadarias arrumavam as armas. A enfermeira bonita, perto deumaambulância,mefezsinal.Euatropeloosdegrausemergulhosobumcolchão no qual uma mulher está morrendo. Um o icial alemão sobe naambulânciaeexaminaamoribunda.Elemevêsobocolchão?Dáosinaldepartida.Quandocriança,eumelembravadessacenaeachavaqueeletinhame

visto. Estranho. Não tenho certeza. Será que eu tinha necessidade dessacerteza parame ajudar a pensar que oMal não era inexorável? Como osoldadodepretocomoretratodofilho?Dáesperança,nãoé?Tempos depois, no encadeamento das lembranças, revejo-me em um

grande refeitório quase deserto. Os adultos me cercam – explode umaviolentadiscussãocomocozinheiro-chefe.Como izparasaberquemeraochefe? Seria porque mais longe, na sala, outros cozinheiros baixavam acabeçaenão tomavamapalavra?Ochefeberra: “Nãoqueroestacriançaaqui,elaéperigosa.”Pedem-mequeentreemumcaldeirão.Dizem-mequenãosaia.Eusouperigoso,nãoé?Depoisquerecebeuaautorizaçãodepartir,aenfermeiradirigiu-separa

acantinada faculdadededireitoondeelaconheciaumestudante,quesepropôsameesconderporunsdias.7Ainda vejo a formado rosto do cozinheiro. É umhomemparrudo, com

poucos cabelos negros, com um avental dobrado na barriga. Ele berra,depoisaceitaqueeufiquenocaldeirão,massóporalgumashoras.Lembrançaseguinte:acaminhoneterodaduranteanoite...puseram-me

atrás,dentrodeumsacodebatatas,earrumaramnaminhafrenteoutrossacos...Emumabarreira,ossoldadosveri icamalgunssacosenãoabremo

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meu... O carro para na praça de um vilarejo... os adultos batem a umagrandeporta...Umafreirade toucamostraacabeçaediz: “Não,não,nempensar,estacriançaéperigosa.”Elatornaafecharaporta,gritando.8Estou em um pátio de escola. Desde quando? Quatro ou cinco adultos,

professores,eudiria,meseguram,põemumapelerinenasminhascostasepedemqueeupuxeocapuzsobreorosto.Elesgritamparafazerosalunosvoltaremparaassalas,cercam-meparaquenãomevejam,acompanham-me até um carro que me espera e dizem: “Depressa, os alemães estãochegando!”Achoareaçãodelesboba.Vejoorostodascriançascoladoemtodasas

janelas.Essamaneirademeescondermepõeemevidênciaeosfazcorrerperigo.Osadultosnãosãoespertos.Eunãodissenada.Sinto-meummonstro.

Umceleiroeumcolega

Em Pondaurat, a vida retorna. Eu me lembro do nome desse vilarejoporquedepoisda guerra, quando soubequeminha tia se chamavaDora,fiqueisurpresocomumaponteteronomedela.*Seráqueelaacomprara?Nessepequenovilarejonãofuiinfeliz.Dormianoceleiro,emcimadeum

monte de palha, junto com outra criança da Assistência, um meninogrande, de 14 anos. Ele me tranquilizava bastante, explicando-me comoevitaroasnoquequerianosmordercomseusgrandesdentesamarelosecomo fazer para que os adultos acreditassem que nós contáramos oscarneiros no im do dia, ao voltar: bastava dizer em voz alta “oitenta” etudo estava resolvido. Ele sabia a iar a foice e abrir um caminho paraevitar a fossa de esterco que levava ao celeiro. Eu me sentia bem juntodaquelegarotogrande.Tenho uma lembrança muito clara do poço de onde eu tinha de tirar

água e de seu rebordo, queme assustava, pois tinhamme explicado quemuitagentecaíranofundoenuncatinhamtiradoseuscadáveres.Gostava das noites em que os trabalhadores agrícolas comiam com

Marguerite, a rendeira, destacando-se na cabeceira damesa. Lembro-medalâmpadalúgubrequependianomeiodamesacoma itadepapelmata-moscas, onde agonizavam os insetos colados. Lembro-me das noites emqueeu faziaopessoalrirpondopimentademaisnaminhasopa,edepois

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gritando “chamem os bombeiros” a im de apagar o incêndio da minhabocacomoscoposdevinhoquemeserviam.Todomundoria,eassimerapossívelrecuperarolugarentreoshumanos.Arendeiraerarude.Raramentepassavapertodenóssemnosameaçar

comumapaulada.Umapauladanão éum trauma.Dói nahora e acabou.Mas eu revia com frequência, como em um ilme interior, omomento daprisãonacasadeMargot,ocon inamentonasinagoga,amulhermorrendoemcimademim,ocaldeirãoeafreiraquemedeixaradoladodefora,denoite,gritandoqueeueraperigoso.Alémdo “Grande” e demim, o “Pirralho”, havia naquela fazenda outra

criança:Odette,aCorcunda.Elatrabalhavasemumapalavra,evitavatodomundo,dormiaemumquartodeverdadecom lençóisbrancose cortinasderenda.Euachavaqueeraassimquedormiamascrianças:asmeninasem cama, os meninos em cima de palha. Isso não me chocava.Perturbavam-me bem mais os pequenos gestos que humilhavam aCorcunda.Quandoos operários voltavamdo trabalho, ela tinhade ajudá-los a tirar os tamancos. Para evitar as bolhas, eles os enchiam de palha,queosuordodiafaziainchar.Ohomementravaesedeixavacairemcimade uma cadeira perto da porta. A menina se acocorava diante dele epuxavao tamanco.Com frequência,ooperáriopunhaooutropénopeitodaCorcundae,quandoderepenteotamancosesoltava,elacaíaparatrás,como em uma cambalhota, sua calcinha aparecia e todo mundo ria. ACorcundanãodizianada.Eunãogostavadaquelabrincadeira.Umacontecimentodespertouovestígiodopassado.Umdia,oGrandeme

disse: “Pirralho, nós vamos pescar.” Mais uma felicidade! Nós nosinstalamos no alto de uma pedra que fazia uma espécie de barragemembaixodeumapontee começamosapescar.A água calma cintilava.Euadormeci e acordei afogando-me. Lembro-me de ter pensado: ‘Que penamorrer agora que a felicidade está voltando.’ Quando recuperei aconsciência,euestavanacamadaCorcunda!Marguerite,adura,disseraaOdette:“Cedasuacamaparaele,depoisdoquelheaconteceu.”Dormiemlençóis,admirandoajanelacomascortinasderenda.Quefelicidade!Poucotempodepois,napraçadovilarejo,algunsmeninoscomeçarama

me xingar. Eles me olhavam de lado, eu notava o desprezo em seusolhares, percebia que falavam mal de mim, mas não sabia por quê. Umdeles disse em voz su icientemente alta para que eu escutasse: “Com osjudeuséassim.Elesnuncaagradecem.”Entãocompreendiquetinhasidoo

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pai dele queme tirara da água,mas como eu poderia ter sabido? Não oconhecia e tinha perdido a consciência. Compreendi também que ascrianças do vilarejo sabiam que eu era judeu, mas como tinham sabido?Comosabiamsobremimcoisasqueeunãosabia?EmCastillon-la-Bataille,eudeviater7anos.Minhamemóriadessaépoca

alonga-seno tempo. Jánão é simplesmente compostade lashes, imagensbrevesdeantesdaguerra,nemmesmodecurtassequências,elasetornaumverdadeiropequeno ilmedemim,nosentidoteatraldotermo.Eumerevejodormindoemumleitodecampanhanocorredordacasadodiretordaescola.Eunãoiaparaaaula,maspodiabrincarnopátio,depoisqueosalunosiamembora.Euvagueavapelovilarejo,ondeconhecimeuprimeirocolegaemeuprimeiroamor.Ela se chamava Françoise, como todas as meninas. Era morena, tinha

olhosazuiseosdentesdecimaseparados.Eugostavamuitode icarpertodela,vê-lasimplesmente,efalarcomela.Écuriosaaheterossexualidade:jána escolamaternalda ruePas-Saint-Georges emBordeaux, euprocuravafalar com asmeninas. O pátio da escola era virtuosamente separado emdois por uma cerca, osmeninos de um lado, asmeninas do outro. Eumeaproximavadacercaparadizeraelasduasoutrêspalavras.Essalembrançanãoécoerente,umavezque,naclassedeMargot,eume

lembrodeumpequenoAli e deduasFrançoises.Mas é assimmesmonaminhamemória.Não me lembro do nome de meu colega de rua, pois, como meninos,

preferíamos as ações. Partíamos para os vinhedos para roubar uva-moscatel, que comparávamos com amoissac. Comíamos tanto quepassávamosmal.Jogávamospedrasumnooutroparaaprenderaevitá-las.Colhíamos nozes e ameixas, catávamos ovos, caçávamos borboletas,xeretávamos por todo lado, com total independência. Ficava contente poreleserpobre;assimeupodiamesentirmaispróximo.Euiaprocurá-loemcasa,adoispassosdaescola.Elemoravacomamãeemumúnicocômodo,comummontedecarvãonomeio.Euarevejosentada,vestidadepretoesorridente. Tenho dessa época uma lembrança de sol, de gentileza e detotalliberdade,emplenaguerra.

Odesmoronamentodossuper-homens

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Uma noite, fui acordado por uma luz forte. Dois o iciais alemães estavamjuntodemim,comumalanternanamão,nacompanhiadosenhorLafaye,o diretor da escola. Não senti medo nem sofrimento, apenas a pesadasensação:recomeçou!Iaserpresoeprovavelmentemorto.Ostrêshomenspartiram,eeuvolteiadormir.No dia seguinte, o pátio da escola estava cheio de soldados. As mesas

estavam do lado de fora; os homens, de torso nu ou só de camiseta,estavamocupados lavando-seou fazendobricolagem.Quandoeupassavaperto deles, eles me falavam com gentileza e brincavam comigo. Eu melembro de que um deles se divertia levantando-me só pela cabeça. Euprocurava evitá-lo. No alto da escola havia ummirante onde um soldadomontavaguarda.Estenãobrincava.Quando,commeuamigo,quisemoslhefazerumavisita,elenosexpulsouapontapés.Na estrada, em cada obstáculo havia umametralhadoramontada. Dois

soldados a alimentavame, paranosdivertirem, atiraramemumaparedecom balas explosivas que izeram estourar as pedras. Era muitointeressante.Algunsdiasdepois, a escola de repente se esvaziou. Senti saudadesdo

burburinhodevida,quedesapareceu.Disseramqueossoldadostinhamsereunidonocentrodovilarejo,ondeasFFI (ForçasFrancesasdo Interior)os tinham esmagado. Os resistentes tinham cercado os alemães e tinhamlhescausadopesadasperdas.Depoisdabatalha,eume lembrodeumadiscussãoentreumhabitante

que eu não conhecia e um resistente, fácil de reconhecer porque usavaumaarmaeumabraçadeira.O resistentedisse: “Temosummorto e trêsferidosgraves.”Eudisse:“Sóisso!”Afrasemeescapouporqueeupensavanascentenas

depessoasamontoadasnasinagogaedespachadasnostrens.Oresistentemelançouumolhardedesprezo,eomoradorexplicou:“Eleperdeutodaafamília.” O resistente se acalmou, e eu me perguntei como aqueledesconhecidopodiaconhecerminhahistória.Elepodiatermedenunciadoquandoosalemãesestavamlá.Meuamigochegoucorrendo: “Venharápido.Opadrequerquesoemos

os sinos.” A festa recomeçava. No vestíbulo coberto, antes de entrar naigreja, a corda do sino passava por um buraco do teto e pendia nomeiodaquele espaço. Era preciso puxar para baixo acocorando-se a im deinclinar o sino, pois, quando o pêndulo o fazia voltar para o outro lado, a

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cordanoslevavacadavezmaisparaoaltoeeraprecisosoltá-ladepressa.Ao subir coma corda, ummeninonão ousoudeixar-se cair e foi subindoaté o teto, onde bateu com a cabeça. Foi assim que nós soamos os sinos,queanunciavamalibertaçãodeCastillon.Nossamissãoeraimportante.Nos dias que se seguiram, eu ouvia os adultos falarem de

“desembarque”. O halo afetivo, quando eles pronunciavam essa palavra,me transmitia uma alegria leve. Eles diziam alegremente “La Rochelle”,mas seu rosto se tornava sombrio quando falavamde “Royan”. Eu sentiaclaramentequecertaspalavraseramportadorasdeesperançaeoutrasdeinquietação.Quando a felicidade se instalava em tornodemim, veiculadaporpalavrasestranhas,eumesentialiberto.Foi no centro de um vilarejo (Castillon?) que vi pela primeira vez

alemães prisioneiros. Sentados, abatidos, esfarrapados, imóveis, elesolhavam para o chão, sem uma palavra. Esses soldados, que tinham nosvencido, esmagado, dominadona vida cotidiana, os “besouros-da-batata”, 9comoeramapelidados,pareciamagoraacabrunhadospeladesgraça.Nãoiquei feliz com seu desmoronamento (eu ia quase dizer: “Eles nuncameizeram mal!”). Eu me surpreendia com seu revés, ao lembrar-me delestriunfantes, des ilando em Bordeaux com suas armas, seus cavalos, suasmúsicaseseusbombons.Voltei para a casa de Margot. A família Farges também recomeçava a

viver,comsuasmesasconcorridas,amigoserádiossemmatraca.Falava-seemvozaltaagora,comentavam-seosjornais.Euachavaexistirnaquelas folhasdepapelumpodermágico, vistoque

nelas era possível ler acontecimentos inauditos desenrolados em outroslugares. Então eu me posicionava bem protegido, debaixo da mesa, etentava decifrá-los. Foi por isso que ninguém me viu quando ouvi asenhora Farges discutir comMargot: “Mas você não entende que os paisdelenãovoltarãonuncamais,nuncamais!”Pronto. Estava dito. Eu ia agora precisar aprender a viver sem eles.

Imediatamente voltei a mergulhar nas minhas tentativas de leitura. Umavezqueospapéisfalavamdeacontecimentosocorridosemoutroslugares,necessariamente daria para achar o rastro dos meus pais. Algumaspalavrasescritasiriammecontarahistóriadeles.Euprecisavaaprenderaler.Umdia,Margotchegouradiante.CorremosparaaplacedesQuinconces.

Antesdaguerra,minhamãeàsvezesmelevavaláparatomararebrincar

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emvoltadeumenormeconjuntodecavalosdebronzequecuspiamágua.Oscavalos tinhamdesaparecido;haviaumamultidãonaqueledia.Falava-se, ria-se, e todo mundo se abraçava. Fiquei espantado de verdesconhecidosenlaçaremMargot,quesedeixavaabraçar,rindo.Euouviapalavrasalegres:“Hiroshima... imdaguerra...200milmortos.”Umaloucaalegria, a guerra acabara! Esperavam-se muitos milhões de mortos noJapão, mas graças à bomba atômica não seriam senão 200 mil: um bomnegócio,aguerraacabara!Foi entãoque revi abonitaenfermeira, aquehaviamedadocaixasde

leite condensado, a que me havia feito sinal para eu mergulhar sob amulher moribunda. Acho que ela foi até a casa de Margot convidar-meparapassar algunsdias comela eonoivonoGrandeHoteldeBordeaux,em frente ao teatro. O general De Gaulle ia fazer um discurso lá, e elaconseguiraqueeufosseescolhidoparaentregaraeleumbuquêdeflores.O noivo me agradava porque eu o achava elegante em seu uniforme

azul-marinho. Seu boné, sobretudo, era magní ico com os bordadosdourados.Elemeemprestou,eumeexibiadotandoaresmarciais:grandesucesso! Todomundo ria, depois os noivos se afastaram para conversarintimamente.Eudescobri cortinas fechadas comumacorda inadourada,quetrateidepegaremprestadoparafazerparamimumbonéimaginário.Temordojovemcasal,quesezangouaoacreditarqueeutinhaarrancadoos ios do boné do marinheiro. Lembro-me do sentimento de injustiça etristeza que experimentei por ter causado transtorno a pessoas que euadmirava e que tinham me achado capaz de fazer tamanha bobagem:pequenocontrassensoentregerações.Nodiaseguinte,Margotnãogostoudequeosnoivostivessemmelevado

ao teatro, pois, naquela noite, o espetáculo tinha sido feito por bailarinasnuas, cobertas de plumas. Margot, zangada, dizia: “Não é bom para ummenino pequeno.” Já eu tinha achado bom: pequeno desacordo entre asgerações.Nanoiteanterioràcerimônia,escuteiumagrandecomoçãonocorredor

do hotel. Saí do meu quarto e vi sentado em uma cadeira um homemchorando.Eleseguravaacabeça,eseurostosangrava.UmFFIcomarmasmeexplicou: “Éummilicianoque conseguiupenetrarnohotel, elequeriaassassinar De Gaulle.” Outros homens armados de pé perto domilicianolhe aplicavam, de tempos em tempos, uma coronhada, um soco, umpontapé. O homem sangrava e chorava. De manhã, ele tinha caído,

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lentamentemortoporumsocoaqui,outroali.Esse linchamento foiminhaprimeira decepção política. Eu devia ter 7 anos; teria gostado de que oslibertadoresqueacabavamdevenceroexércitoalemãomanifestassemumpouco mais de nobreza. Meus heróis estavam se comportando comomilicianos.Euqueriatantoqueelesnãoseparecessem!DepoisdeHiroshima,aguerraacabou.Aspessoastentavamreaprender

a viver. Para alguns, o balanço era pesado. Revi minha prima Riquettequandoelatinha13anos.Eutinhaalembrançadopaidela,irmãodemeupai, engenheiro em uma fábrica em Espiet, perto de Bordeaux. EstivealgumasvezesnacasadatiaHélène,antesdaguerra,etinhaumaporçãodelembrançasfelizes.Opaidesapareceuduranteaguerra,amãeeosdoisilhos foram perseguidos. Eu me lembro daquela menina grandeexplicando àmãe: “Não podemos icar em um país que fez isso conosco.TemosdeirparaaPalestina.”Creiolembrar-medequeamãequeria icar.“Estouapreensiva”,repetiaela,comumapalavranovaparamim.Riquetteme explicava: “Lá há uma terra sem povo para um povo sem terra.Faremoscrescer loresnodeserto.”Euachavaafórmulabembonita,masreplicava, do alto dos meus 8 anos: “Mesmo que essa terra seja umdeserto, é umdesertopalestino.Não se deve ir para lá.”Riquette achavaqueaFrançatinhanosagredido.Eujulgava,aocontrário,queelatinhanosprotegido. Eu já não tinha família, mas achava que Margot Farges,Marguerite, a rendeira, o senhor Lafaye, diretor da escola, Descoubès, aenfermeira,emuitosoutrostinhamcorridoriscosenormesparaabrigareproteger uma criança que não conheciam. Para mim, os franceses quetinhamcolaboradonãoeramverdadeirosfranceses,poistinham icadodoladodosalemães.Éramos crianças muito politizadas no im da guerra. Nossas opiniões

divergentesiamnosengajaremcaminhosdevidadiferentes.

Otraumanamemória

Quarentaanosdesilêncio.Isso não quer dizer quarenta anos sem relatos íntimos. Eume contava

muitominhahistória,masnãoacontavaaninguém.Teriagostadodefalardela. Eu fazia alusão, evocava os acontecimentos passados,mas, cada vezque deixava escapar uma migalha de lembrança, a reação dos outros,

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embaraçados,dubitativosouávidosdedesgraças,fazia-mecalar.Sentimo-nostãomelhorquandonoscalamos...Teriagostadodefalarsimplesmente,maserapossívelfalarsimplesmente?Por felicidade, as circunstâncias inventam acontecimentos que dão a

palavra. Em 1985, Philippe Brenot, psiquiatra-antropólogo em Bordeaux,organizouumseminário cujo temaera “Linguagens”.Muitagente famosa,gente que eu admirava: Jacques Cosnier (psicanalista-etólogo), ClaudeBensch ( isiologista), De Ceccati (histologista, especializado emcomunicaçãocelular).É a primeira vez que eu voltava a Bordeaux desde 1945. Tudo correu

bem, as pessoas eram alegres, amistosas e interessantes. Eu iz umaexposição sobre os sinais que os animais dirigem à própria imagem noespelho.ClaudeBenschmecumprimentou,oquenãodeixoudeserbom.Antes da minha fala, contudo, tive uma pequena perturbação. Nos

corredores do espaçoMalraux, umamoça se aproximou demim e disse:“Soua ilhadeSuzanneFarges.”Suzanne,airmãdeMargotquevinhaaosdomingose tentavameensinaracomercomoumgato.Seamoça tivessese aproximadodemim, cara a cara, eu teriame apresentado segundoosrituaisdeuso.Comohaviamuitagente,elatevedeseinsinuarparachegarao meu lado e se dirigir a mim. Como o ritual de apresentação não foiexecutado apropriadamente, iquei sem jeito, fui chamado à tribuna. Ascircunstâncias estragaram o encontro. O que dizer a uma desconhecidaqueconheciaminhainfância,umainfânciaescondida,umainfânciadequeeunãofalava?Depoisdaexposição,passou-seàsperguntasdospro issionaispresentes

na sala. Um senhor pede omicrofone, levanta-se e, com uma voz que sepreparaparachorar,diz:“Boris,euescondivocêduranteaguerra.”Oquedizer?Há quinhentas pessoas na sala, aquele senhor chora contando umepisódio da minha infância de que eu não tenho nenhuma lembrança.Entendomaloqueelediz,detantoqueelesoluçaecontacoisasquefalamdeumacriançaqueeunãoconheço.Ninguémousalhecortarapalavra.“Perguntaseguinte?”UmetólogodoCNRSmefazumaperguntatécnica

quemerepõenoeixo,umavezquenãoéafetiva.No inaldasessão,osenhorpermanecenacadeira.Voumesentarperto

dele.Elefala,fala,dá-meumcartãodevisitaecontaque,quandoeuestavanacasadele,nãoparavaderepetir:“Eutambém,euantestinhaumamãe.”Ele diz que mora atualmente numa casa de repouso, trocamos nossos

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endereços, alguém vem me chamar, ponho o cartão de visita na minhabolsa,nomeiodeumadezenadeoutros,nãoouvionomedele, jánãoseiqualéocartãocomseuendereço.Maisumencontroquefalhou.Margot me dirá depois que aquele senhor, em 1944, arriscou a vida

para me esconder. Chamava-se André Monzie. Não tenho nenhumalembrança. Nós nos correspondemos com polidez: o que dizer? O maisintensonãoésuficiente.Em1995(talvez),aFR3Aquitainemeconvidouparaapresentarumde

meus livros.Depoisdoprograma,uma jornalistameestendeuumpedaçode papel: “Uma mulher telefonou, ela se pergunta se você não seria opequenoBorisqueelaajudouafugir.Esteéotelefonedela.”Umtáximelevaàcasadela,umagrandecasadesubúrbio.Suaalegriae

simplicidadeimediatamentemepõemàvontade.ElasechamaDescoubès:é a bonita enfermeira que me deu caixas de leite condensado, que euabracei quando tinha 6 anos e que me fez sinal para eu mergulharembaixodocolchãodamulhermoribunda.Omaridoestá lá;seguramenteéojovemo icialdemarinhaqueestavacomelanoGrandeHotel,nanoiteem que o miliciano foi linchado. Ele é sorridente, ausente, e me repetemuitas vezes que seu o icial superior não o esperava quando eleschegaramàSíria.Conto minhas lembranças à senhora Descoubès, distraímo-nos

confrontando nossas memórias. Partilhamos as mesmas imagens, quaseemdetalhes,maravilhamo-noscoma idelidadedenossasreminiscências.Evocamosalegrementenossoencontronasinagoga,nossopassadocomumdurante a guerra naquela espécie de prisão. Eu lhe digo que hoje achodivertido ter conseguido me evadir aos 6 anos, graças a ela, mas meespantaqueosalemãestenhamautorizadoapresençadeumaambulânciaembaixodasescadasdasinagoga.Nãoeraumaambulância,elaesclarece,“era uma caminhonete”. Então eu me lembro do o icial que entrou na“ambulância” para examinar a mulher moribunda, um médiconecessariamente. Creio lembrar-me de que ele suspendeu uma ponta docolchão,quemeviueaindaassimteriadadoosinaldepartida.“Era o capitão Mayer”, diz a senhora Descoubès. Ele não levantou o

colchão,mas viu amoribunda e disse: “Que elamorra aqui ou em outrolugar,oimportanteéquemorra.”Eu tinha adaptado minhas lembranças para dar coerência à minha

representação do passado. Uma vez que ela era enfermeira e que havia

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umamoribunda,oveículoeranecessariamenteumaambulânciaeoo icialalemãoeraseguramentemédico.Eralógicoporémfalso.Umacaminhonetetinhasidorequisitada,poisamulherquereceberacoronhadasnabarrigaestava morrendo no chão. Efeito ruim para um exército que tinha comomissão seduzir a população francesa. A multidão na calçada, atrás docordãodemilicianos,olhavacomoseembarcavamosjudeusparaeliminá-los. Era preciso lhesmostrar que o exército alemão efetuava suamissãocomgrandecorreção.Adaptei minhas lembranças para suportá-las sem angústia. Na minha

representaçãodoacontecimento,acalmava-mepensarqueoo icialalemãotinhamevistoeaindaassimdadoosinaldepartidaparaa liberdade.Eunão estava verdadeiramente certo, parecia-me... aquela intencionalidadenão consciente me permitia remanejar a representação dosacontecimentos passados a im de torná-los suportáveis e não sentir alembrançacomoumacondenaçãoinexorável.Graçasaessaadaptação,eunãoeraprisioneirodopassadoeescapavaaotrauma.Eu sabia que o nome da senhora Descoubès era Andrée ou Dédé. De

onde me vinha esse conhecimento? Será que ouvi seu noivo chamá-laassimnoGrandeHotel, nanoitedo assassinatodomiliciano?Duas fontesdiferentespodem,pois,confluirpararesultarnumasólembrança!Eladisse: “Você repetiao tempo todo: ‘Ah!Umdia comoesteeununca

vou esquecer!’” Estava me chamando de “você” porque me conheceracriança?Não sei. Espanta-me eu ter dito que jamais esqueceria. Como izpara pensar que, na vida que me aguardava, eu jamais esqueceria,enquanto poucos minutos antes tinha compreendido claramente quequeriammematar?Eladeviateruns75anosnatardedesseencontro.Aindaerabonitacom

seus cabelos brancos. Confessei-lhe que, quando ela me trazia caixas deleite condensado, eu a achavamuito bonita com seus cabelos louros. Elasorriu,levantou-seevoltoucomumafotosua,umamoçacomuniformedeenfermeiradaCruzVermelha,defatobela,comseuscabelospretoscomoumcorvo.A vida é louca, não é? É por isso que é apaixonante. Imaginem se

fôssemos equilibrados, se nossa existência fosse pací ica; não haveriaacontecimentos,nemcrise,nemtraumaporsuperar,unicamentearotina,nada para colocar na memória: nós não seríamos sequer capazes dedescobrir quem somos. Semacontecimentos e portanto semhistória, sem

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identidade.Nãopoderíamosdizer:“Foi istooquemeaconteceu,seiquemeu sou porque sei de que sou capaz diante da adversidade.” Os sereshumanossãointeressantíssimosporqueaexistênciadelesélouca.

Amoribundanãomorreu

Há dois meses, fui convidado para fazer uma conferência em Orange,Montrouge. Organização perfeita, pessoal sorridente, uma mulher seaproximademimedizcomarcúmplice:“Depoisdapalestra,osenhorvaiterumabelasurpresa,asenhoraBlanchéestáaqui.”Nessescasos,tenhoocostumedeadotarumarextáticoedizercomvoz trêmula “Aaaah...”,poisnãoseiqueméasenhoraBlanché.Depois da conferência, sou levado para uma pequena sala onde uma

moça me diz: “Eu me chamo Valérie Blanché, sou a neta da mulhermoribundasobaqualosenhorseescondeuaoseevadir.”Pessoasqueeunão conhecia assistem,maravilhadas, a um encontro cujo sentido eu nãocompreendo. Acabo entendendo que a moribunda se chamava GilberteBlanché,quesuanetaestánaminhafrente;euacaboconfundindoasdataseosnomes,entãonósdecidimosnosreveremumlocalsilencioso.Valérieme entrega umapequenapasta com fotogra ias da avó, que se

parece comumprotótipodemulher espanhola.ElanasceuemBordeaux,tinha 26 anos quando foi presa ao mesmo tempo que eu e 227 outraspessoas.Eume lembrodequeela tinharecebidoumacoronhadaque lheromperaobaçoequeestavamorrendodehemorragiainterna.Curiosa, essa lembrança! Com 6 anos, eu conseguia entender que ela

estavamorrendo,maseacoronhada,deondeeusabia?Eunãotinhavisto.Eanoçãodebaçorompidoqueprovocaumahemorragiainterna,deondevinha?Ainda tenho na memória uma imagem indiscutível: a parte de trás do

veículoéescura...Emcimadeumcolchãoumamulherestádeitadasobreseu lado esquerdo, o rosto contra a lateral do carro... A enfermeira memandasubirdepressanocarro...Alguémlevantaocolchão...Eumergulhoembaixo, o colchão desce... Nãomemexo... Sinto o peso damulher sobremim. Vejo o soldado alemão entrar na caminhonete para examinar amulher. É impossível que eu o tenha visto. Devo ter ouvido seus passos,sentidoalgunsmovimentosemcimademim,masvisto,certamente,não.

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Para compor essa lembrança, acrescentei imagens precisas, outrasinformações tais como o barulho, os movimentos do soldado, algumaspalavrastalvezouvidas:“Podemospartir?...Elavaimorrer?...”eumanoçãoadquirida muito tempo depois, quando era estudante de medicina eaprendi que uma pancada violenta no abdome pode romper o baço eprovocarumahemorragiainterna.Fazendoconvergirfontesdiferentes,fabriqueiparamimumalembrança

coerente.Valérie me conta que a avó, levada para o hospital, teve uma parede

abdominal rompida pelas coronhadas. Operada, escapara de Auschwitz!Ela revelou à neta que, frequentemente, se perguntava o que teriaacontecidocomogarotoqueseesconderadebaixodelaequeelaohaviaprocurado durante quarenta anos. Valérie me conta que tinha 4 anosquando a avó disse: “Os alemães, ao me torturarem e me consideraremmorta, nos salvaram a vida, aminha e a domenino...” A avó acrescentouuma frase que determinou grande parte de sua vida: “Não é preciso serjudeu,pois,seosalemãesvoltarem,elesporãoascriançasemumvagão,ospais em um centro e levam-nos para... Auschwitz, para matá-los... Eusequersabiaoquesignificavaserjudeu...”Na idade em que as meninas adoram histórias de princesa, é uma

história de horror o que Valérie ouve sem compreender: “O que é serjudeu?Porquepõemascriançasdentrodevagõesparamatá-las?”10Gilberte Blanché, a sobrevivente, teria preferido calar-se, mas, uma

tarde,anetaentrouderepentenoquartoesurpreendeuoabdomedaavó,deformadopelosrasgõesecosturascirúrgicas.Elaacreditavaqueoavôatinhamaltratado.Foiprecisorealmentelheexplicar!O“segredo”compartilhadoreforçouacumplicidadeentreaavóeaneta,

queouviacomfrequênciafalardo“menino”:“Euosujeicommeusangue”,diziaGilberte.“Éclaroquenão,vocêosalvoucomseusangue”,respondiaapequenaValérie.Depois,Valérie interessou-sepor livrosque falavamderesiliência, sem

pensarqueoautorerajustamente“omenino”.Atéodiaemqueelaleu Jeme souviens11 [Eu me lembro] e conseguiu estabelecer o elosurpreendente: o menino fora inalmente achado, mas Gilberte deixou omundonaquelemomento,semterpodidoencontrá-lo.Não tenho nenhuma lembrança de sangue em cima demim, nenhuma

lembrança do momento em que saí da caminhonete! Minha imagem

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seguinte é o caldeirão e a maldição do cozinheiro: “Esta criança éperigosa!”Quando a memória é sadia, uma representação de si coerente e

tranquilizadora constrói-se em nós: “Todos os verões, a família se reúneem uma casa de campo sem conforto, onde passamos nossos diaspreparandoasrefeições,ospasseioseosjogoscomosprimoseprimas.”Ofato deme lembrar daqueles de que gosto e daqueles queme irritam, aevocação dos jogos em que sou bom ou sou ruimme permitem planejarminhas futuras condutas. Essa representação coerente de mim me dácon iança,umavezque,doravante, seioquedevo fazerparamesentiràvontade: vou montar a cavalo com a prima Berthe, jogar pingue-ponguecom Angèle e evitar o tio Alfred, que me aborrece ao implicar comigo.Colocando em ligação tais lembranças, construo uma representação claranaqualsabereivivercomcon iança.Apessoacujamemóriaésadiapõeàvista alguns objetos, algumas palavras, alguns acontecimentos queconstituemumarepresentaçãoclara.Umamemória traumáticanãopermite construir uma representaçãode

sitranquilizadora,jáque,quandoaevocamos,fazemosvoltaràconsciênciaa imagem do choque. Repentinamente sobreveio um acontecimentoinsensato?Comocolocaremligaçãoumacondenaçãoàmorte,desúbito,ànoite,seguidadeumalongaperseguiçãonaqualumasimplespalavraqueescapafazvoltaroriscodemorrer?Umgesto,traindo-nos,transformaeminimigaspessoasque, dois segundos antes, nosdeclaravamafeição e quesubitamente gelam. Basta articular a palavra “judeu” para que tudo sejasubvertido.Bastacalar-separaserautorizadoaviver.Namemória sadia, a representaçãode si contaamaneiradeviverque

nospermiteserfelizes.Namemóriatraumática,umrompimentoinsensatofixaaimagempassadaebaralhaopensamento.Pode-se tentar viver ao preço de uma interdição de dizer, uma

amputação de si. Faz-se silêncio apenas sobre um tema especí ico, orestantedapessoaexpressa-secomnaturalidade.Esseestilorelacionalfazpassarumaimagemenigmáticaqueintrigaospróximos,entretendo-osoudesorientando-os.Semacontecimento, o quepoderíamos colocar namemória?Quando as

criançasabandonadas fazemorelatodesuavida,seus longosburacosdememóriacorrespondemaperíodosde isolamento.Omundo íntimonãoseenche senão com o que os outros põem lá: as festas, as brigas, os

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acontecimentosimprevistos.Ninguémdáomesmosigni icadoaummesmofato.Aemoçãoatribuídaaoenredopostonamemóriadependedahistóriado indivíduo, o que resulta em dizer que, em umamesma situação, cadaumconstróilembrançasdiferentes.

Prisãodopassadoeprazerdeviver

Ao ser preso, a vida voltou dentro de mim, pois antes dessa ruptura eusofreraumisolamentoprotetor.Nocarrodentrodoqualmeempurraram,um homem chorava: para ele, a vida ia acabar. Se eu não tivesse mealegradocomaprisão,nãoteriaficadoatentoaoquediziamosadultos,nãoteria seguido os jovens que procuravam fugir, não teria encontrado ainacreditável solução de me encolher sob o teto. Abatido, eu teria medeixadotranquilizarpelamulherquereuniaascriançassobreocobertor,atraindo-ascomleitecondensado,facilitandoaidadelasparaamorte.Ocontextoéqueatribuisigni icadoaoacontecimentopresente.Éassim

queopequenoMaurice,sobreviventedoguetodeLodz,conta:“Eupegueiumtrem,eraaprimeiravez,estavafeliz.Elemelevavaparaamorte.”12Sem acontecimento exterior, não há o que colocar no mundo interior.

Quando amemória é sadia, a clara representação de si permite planejarnossas condutas futuras. Quando uma catástrofe nos dilacera, a rotina jánão consegue resolver o problema imprevisto, será preciso encontraroutrasolução.Mas,quandoadilaceramentonosaniquilaporqueéintensodemais ou porque estamos fragilizados por feridas anteriores,permanecemossemação,desnorteados,emagoniafísica.A clínicado traumadescreveumamemóriaparticular: intrusiva, ela se

impõe como uma sequência dolorosa que se apropria de nossa alma.Prisioneiros do passado, revemos sem cessar as imagens insuportáveisque, à noite, povoam nossos pesadelos. A menor banalidade da vidadesperta o dilaceramento: “A neve que nos faz pensar nos Natais namontanha faz voltar em mim a imagem dos cadáveres gelados deAuschwitz...“Océuazuleocalorevocamincontrolavelmenteocampo japonêsonde

porpouconãomorriem1945.”13Amemória traumática é um alerta constante para uma criança ferida:

quandoelaémaltratada,adquireumavigilânciagélida,e,quandoviveuem

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umpaís em guerra, continua a sobressaltar-se aomenor barulhomesmoquando a paz voltou. Fascinado pela imagem de horror instalada namemória,o feridoseafastadomundoqueocerca.Elepareceindiferente,prostrado, como se estivesse entorpecido. Sua alma, possuída peladesgraçapassada,jánãolhepermiteseinteressarpeloqueviveemtornodele.Parecelongínquo,estranho,enquantoseumundoíntimofervilha.Apossedamemóriatraumáticaprovocareaçõesquealteramamaneira

deserelacionar.Parasofrermenos,oferidoevitaoslugaresondesofreuotrauma, as situações que poderiam fazê-lo pensar nele e os objetos quepoderiam evocá-lo. E, sobretudo, não se permite dizer as palavras quedespertariam a ferida. Não é fácil aproximar-se desse ferido mudo quecoloca a si mesmo em situação de estrangeiro. Sua defesa retraída, aoencapsular o sofrimento, impede-o de compartilhar suas emoções.Prisioneiro de sua hipermemória, fascinado por uma imagem horrível, oferido não é disponível para os outros. Perdeu a liberdade de procurarentender e de se fazer entender. Isolado entre os outros, sente-se só,expulso da condição humana: “Eu não sou como os outros... ummonstro,talvez?”Eumeperguntoporquenãosofridessetipodememória.Rapidamente

compreendiquebastavamecalarparafalarsemproblema.Eumeexplico:bastanãopronunciarapalavra“judeu”.Fácil,eunãosabiaoqueapalavradesignava. Nunca vira um judeu à minha volta. Tenho lembranças de“mãe”:odiaemqueelaesperava,depé,queeuterminassedeamarrarosapato;odia emqueelame forçoua entregar apequenabonecaqueeuacabara de roubar em uma loja de brinquedos; o dia em que catávamospulgas, quando caíamos na cama às gargalhadas. São muitos os eventoscomoesses.Tenho lembranças de “pai”, quando ele saía para trabalhar na sua

o icinadeartesãodemóveis,quandoelecorriaatrásdemim,emvoltadamesa,paramepunirpornãoseioquê,quandoeleliaojornaldizendo“Ai,ai,ai”.Escutei a palavra “judeu” pela primeira vez na noite emque fui preso,

quando o policial explicou à senhora Farges que era preciso me pôr naprisãoporqueeuiacometerumcrime.Na ocasião da libertação de Castillon, umminúsculo acontecimentome

perturbou. Quando o FFI disse: “Tivemos ummorto e três feridos”, e eurespondi que não eramuito. O desconhecido que falava como resistente

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explicouaelequeeuresponderaassimporquetinhaperdidotodaaminhafamília e por isso não deviam icar zangados comigo. Depois ele meperguntouseeutinhapesadelosouraivassúbitas.Portanto,elesabiaqueeu tinha sido preso, que tinha me evadido e que o senhor Lafaye meescondia na escola. Ainda que eume calasse, aquele desconhecido sabiasobremimoqueeraprecisoesconderparaterdireitodeviver!Elequeriaaté entrar naminha alma a imde saber se a cascata de acontecimentosmeprovocavapesadelos.Creio ter pensado: ‘Nunca nos escondemos su icientemente. Preciso

partir, ir para outro lugar, para um país onde ninguém conheça minhahistória.Sóentãoestarei livre.Quantomaiseuaprenderamecalar,maispoderei falar livremente.’ É hoje que penso ter pensado assim.Provavelmente, não empreguei essas palavras na minha linguagem decriança,masdevotertidoasensaçãoqueessaspalavrashojetraduzem.Diziamqueeufalavapeloscotovelos,contavahistórias,dirigiaapalavra

adesconhecidosna rua.Quempoderiapensarque falavaparame calar?As palavras que eu dizia serviam para esconder as que era preciso nãodizer.Minhaestratégiarelacionaleraclara:conversarcomosoutrosparadistraí-los, interessá-los e assim me esconder atrás das palavras nãocompartilhadas. Essa proteção permitia contar a mim mesmo outrahistória, esta sim, de boca fechada, com palavras não socializáveis queconstituíam contudo a base da minha vida mental. Eu me contava comfrequência o que eu não podia dizer. De tanto repetir, meu relato sesimpli icava.Quando certas lembranças icavamclaras, outras iampara asombra. Eume contava a evasão, oumelhor, eu a via como no cinema. Edetalhava também a gentileza do soldado de uniforme preto, o que memostrara a fotogra ia do ilho dele; eu me espantava com o militar quedera o sinal da minha libertação embaixo da mulher moribunda: faziaquestão de me enganar, adaptava minha memória para torná-lasuportável!Ohorroracabavaaté se tornandobelo: agentilezado soldadonegro, a

indulgência do médico militar, a beleza da enfermeira, a proteção domeninograndequemechamavade“Pirralho”,osrisosdostrabalhadoresagrícolas que me faziam beber demais, a camaradagem de meu amigotravessocomquemeulançavapedraseroubavauva-moscatel;todasessasverdadeiras lembranças lindamenteadaptadasmeajudavamanãosofrercomopassado.

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Nem tudo ia tão mal, a inal. Eu punha de lado o escoteiro que medenunciara, o cozinheiro que berrava de raiva ao me ver, a freira quefecharaaporta,deixando-medo ladode foraporqueeueraumacriançaperigosa.Sentiaumapequenairritaçãocontraosprofessoresque,parameajudar

afugirdaescola,tinhampostoumcapuznaminhacabeça,apitadoo imdorecreioemecercadoparameesconderdavistadosgarotos,penduradosnas janelas e excitados com a ideia de assistir a um salvamento. Ao meprotegerem daquela maneira, estavam me designando ao eventualdenunciador! Corriam riscos, claro, mas creio que ingiam me proteger.Nãogostei.Aadaptaçãodaminhamemóriadavacoerênciaao insensato, tornavao

horror suportável e até o transformava em uma conta vantajosa. Euenganara os perseguidores, tinha sido mais esperto do que o exércitoalemãoeaGestapo juntos.Experimentavaquaseumsentimentode força:paraserlivre,bastacalar-seeagirsemseexplicar.Euacabaradeestabelecerumestilorelacionalqueiacaracterizarminha

existênciafutura.Otrabalhodenarraçãoíntimaadaptavaminhamemóriaparaembelezaroinsuportável.Eujánãoeraumobjetoarremessadopelodestino, tornava-me sujeito da história que eu me contava, talvez até oherói!

Estranhaclareza

Eu não me dava conta de que, calando-me, passava para os outros umaestranha imagem minha: “Enquanto ele fala claramente, ouve-se umaespécie de eco, o murmúrio de seus fantasmas.” Após a guerra, grandenúmerodemeuscolegasdeescoladeveterexperimentadoumsentimentoquecorrespondeaessafrase,umavezquetinhampormimumagentilezaintrigadaquerevelavasuaperturbação.EumelembrodeMax,quemecobriadepresentesestranhos.Eletinha

11ou12anos, levavaparaocolégio,paramedar,roupas-brancasdopaicuidadosamente dobradas pela mãe. Depois me fazia muitas perguntassobreminha família. Eu respondia enfeitandominha família de acolhida:“Meupai[deacolhida]organizafestasdebairro.Minhamãe[deacolhida]émuitoeleganteefalavárias línguas.”Nãoestavamentindo,mas,quando

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dizia “meu pai”, Max devia ouvir “de acolhida”, como um murmúrioassociado.E,quandoeuesclareciaqueminhamãefalavaváriaslínguas,talverdade me permitia não dizer que ela falava francês com sotaque, umpoucodepolonêseoídicheperfeitamente.Afaltadenitidezverbalmepermitiaprotegerminhafamíliadeacolhida

e apresentá-la com uma bela imagem, a im de me mostrar como umacriançanormal,comotodomundo.EusabiaqueMax falavademimaospais,umavezqueeles lhedavam

pequenospresentes para eleme entregar: um cadernode desenho, umacaixadepintura,duas ceroulas, três camisas.Estranho,não?Eleme faziamuitasperguntassobreminhafamília.Quando nossos fantasmas fazem eco ao que contamos, costumam

provocarpequenos atabalhoamentos: “Ele temummodo curiosodedizer‘minha mãe’, de falar da família dele, é estranho”, devia pensar Max.Desejandomeajudar,nãopodiaadivinharquemecontrariavaumpouco.Aome obrigar a expor à luz o que eu queria deixar na sombra, ele meagrediasemquerer.Oídicheque,nasuagrandesabedoria,constatouessaperturbação amistosa, diz: “Por que me censuras tanto? Eu nunca teajudei!”Eu dizia “minha mãe” sem acreditar verdadeiramente, mas, se tivesse

dito “minha tia”, teriadireitoaumriodeperguntas sobreumperíododaminha vida caótico, perigoso, esmagador, no qual a questão era amorte.Teriapodidodizerissosimplesmente?Max,nasuagentilezaintrigada,mepunhapoucoàvontadeaomeconvidarafalardeumahistóriaqueeumecontavasemcessar,masquemepareciaimpossívelcompartilhar.Essa relação de amizade perigosa é maravilhosamente ilustrada em

Adeus,meninos,o ilmedeLouisMalle.Nodia15defevereirode1944,ossoldados alemães cercaram o pequeno colégio des Carmes, perto deFontainebleau.Trêsalunossãopresosduranteasaulasdiantedoscolegasassombrados.“DoisagentesdaGestapo,emtrajecivil,efetuamasprisões.Estão bem informados: vão diretamente às salas respectivas de cada umdos alunos judeus, ‘uma denúncia circunstanciada revelara à Gestapo onomedascrianças,oplano,ohoráriodocolégio...’”14Emoutubrode1943,JeanBonnetconheceLouisMalle,quedisputacom

ele o primeiro lugar da classe.15 Tornam-semuito amigos. Os dormitóriossão imensos, a comida rara, mas os padres são bastante calorosos naeducaçãoenasrelaçõeshumanas.LouisseligaaJean,aquemadmira,mas

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cuja mistura de maturidade e reserva o intriga. Como todas as crianças,Louis falade sua família, e icaumpoucodesorientadoquando Jean, quehabitualmente é claro, gagueja e responde evasivamente quando lhepedemnotíciasdesuamãe.Em uma manhã de inverno, “dois alemães em traje civil entraram na

classe e interromperam a aula [...], chamaram Bonnet duas vezes. Naprimeira vez, o professor fez sinal para que ele não se mexesse, e, nasegundavez,eleselevantoucomserenidade,apertouamãodetodosnós.Oprofessorestavaemlágrimas.Nósnãocompreendíamos”.16Subitamente,paraLouisMalle,ovéuselevanta,oenigmaestáresolvido:

Jean Bonnet é judeu! Eis o que explica sua estranheza: excelente aluno,muitobomcolega,eraacompanhadoporumfantasmaqueofaziagaguejarquando questionado sobre sua família ou quando perguntavam de quecidadevinha.Durante quarenta anos, os alunos daquela classe de quinta série

prosseguiram seus caminhos de vida, guardando na memória estefenômenoincompreensível:“Nossoscolegasdesapareceram.Nãosabemosnemseunome,nemodesuafamília.OprojetoNachtundNebelvencera.”17LouisMalle icaria sabendo temposdepois que seu jovemamigoHans-

Helmut Michel, nascido em Frankfurt, entrou na câmara de gás deAuschwitz no dia 6 de fevereiro de 1944, 18 enquanto o padre Jacques,diretordaescola,morriadeportadoemMauthausen.A vida inteira, LouisMalle se perguntou se, sem ter sidoproposital, no

momento em que subitamente descobriu o que o amigo escondia, umacriança não teria olhado para ele, designando-o com um breve olhar àGestapo.Razoavelmenteéimprovável,mas,nafantasia,vásaber!19

Memóriatraumática

Quando passamos por uma experiência similar, um circuito de memóriatraça-se dentro de nosso cérebro. Tornamo-nos hipersensíveis a um tipode informaçãoque,doravante,percebemos commais acuidadedoqueosoutros. Assim se constrói “o mundo oculto da memória implícita [...].Quando as experiências passadas in luenciam inconscientemente nossaspercepções,nossospensamentosenossasações”.20Omundo que percebo comminha sensibilidade adquirida con irma as

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marcas deixadas pelo que se passou: porque estive em perigo, percebomais facilmente os sinais do perigo. As crianças que foram maltratadaspercebemomenor indício que pode anunciar osmaus-tratos: umqueixoligeiramente crispado, uma súbita ixação do olhar, um minúsculofranzimentodasobrancelhaindicamapreparaçãoparaoatoviolento.Umadulto quenunca conheceu esta experiência dirá que são invenções, quecertamenteexageramos.Alembrançaéumamemóriadiferente:vouprocurarnomeupassadoas

imagens e as palavras que compõem o roteiro que me representa. Nosmeusrastrosdememória, sóprecisodas lembranças.Amemóriadomeucorpo não precisa de roteiro para andar de bicicleta. Meus músculos emeus órgãos de equilíbrio adquiriram uma habilidade que dispensalembranças. Mas, quando Louis Malle se lembra de sua amizadeenigmática com Jean Bonnet e faz um ilme sobre ela, organiza arepresentação do que se passou. Por isso ele pode acreditar ter talvezdesignadooamigoparaaGestapo,assimcomopodedecidirfazerum ilmeemsuamemória.Elenão fazvoltaropassado:recompõearepresentaçãodopassado.É um pouco assim que funciona a memória traumática: uma imagem

clara surpreendentemente precisa, cercada de percepções vagas, umacertezaenvoltaemcrenças.Essetipodememóriapróximadeumamarcabiológica não é inexorável, ainda que inscrito no cérebro. Ele evolui aosabordeencontrosquelevamocérebroareagirdiferentemente.Quandoo meio muda, o organismo estimulado diferentemente já não secreta asmesmas substâncias. Todo trauma modi ica o funcionamento cerebral: ametilação do DNA e o surgimento de histonas constituem as alteraçõesmais frequentes. Doravante, a banda genética já não se expressa damesma maneira e nós já não estamos atentos aos mesmos sinais. Essasmodi icaçõesepigenéticassãomuitoprecoces:21descobre-seatualmenteaimportância do estresse pré-natal e do empobrecimento do nicho afetivoquecercaorecém-nascido.Aindaqueamãesejaaprincipalorganizadorado nicho sensorial, não se pode torná-la responsável pela guerra quedestrói sua família, pela precariedade social que deteriora sua habitaçãooupelaviolência conjugalprovocadaporummaridoalcoólatra!Em todosesses casos, o nicho afetivo que cerca um bebê ica empobrecido, e océrebrodelejánãoéharmoniosamenteestimulado.As condições adversas organizam um meio que pode perturbar o

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desenvolvimento da criança. A cascata de pequenos traumas cotidianosreproduz feridasmenos espetaculares do que uma catástrofe natural ouuma prisão pela Gestapo, mas prejudica o desenvolvimento. Asdi iculdadesepigenéticasaumentamavulnerabilidadedacriança.Apartirdeentão,umnadapoderáferi-la.Quando se consegue suprimir a infelicidade social ou relacional que

empobreceu o nicho, quando se consegue enriquecê-lo modi icando asrelações, ou quando se propõe um substituto ambiental, asvulnerabilidadesneurológicasadquiridaspodemdesaparecer.22O que signi ica dizer que nem todos os cérebros reagem da mesma

maneira segundo sua estruturação anterior ao acontecimento traumático.Émais di ícil ferir a criança que recebeu amarca de um vínculo seguroduranteosprimeirosmesesdevidadoqueacriançaquejásofreuporqueesteve doente, ou porque seu círculo precoce era deteriorado por umainfelicidadedaexistência.Oimpactodeumacontecimentoserámenostraumatizanteseacriança,

antes do transtorno, já tendo adquirido umvínculo seguro, aprendeuuminstrumentopreciosodedomínioemocional:aaptidãoparaverbalizar.Certas situações espontâneas permitem analisar o fator de proteção.

Entregêmeosmilitares,hácasosemqueumsóéenviadoparaocombate,evoltatraumatizado.Ostestesquepermitemavaliaramemóriavisualeamemória verbal foram validados. Constata-se que o gêmeo traumatizadoobtém um escoremais fraco emmemória verbal. 23 Poderíamos até dizerque tem excesso de memória visual, sofrendo de uma síndromepsicotraumática na qual as imagens de horror se impõem ao seumundoíntimo.Contudo, quando se faz a mesma avaliação com o gêmeo não

traumatizado, constata-se que também ele tem pontuação ruim emmemória verbal. Pode-se pensar que a fragilidade verbal, em caso deacontecimentoaterrorizante,teriaprovocado,neletambém,umasíndrometraumática.Outros estudos demonstram que os soldados que sabem manipular o

instrumento verbal sofrem menos de síndrome traumática. 24 Pode-seportanto deduzir que os dois fatores de proteção mais preciosos são ovínculo seguro e a possibilidade de verbalizar. O fato de sermos aptos afazer uma representação verbal do que nos aconteceu, e achar alguémaquem dirigir o relato, facilita o domínio emocional. O sentimento de

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segurançanãopermitequeamemóriavisualseapossedomundoíntimoelhe imponha imagens de horror. Todos os traumatizados têm uma claramemóriadeimagens,eumamemóriaruimdepalavras.25Odesenvolvimento que fragiliza a alma e, em caso de adversidade, faz

com que a síndrome traumática se instale é, pois, determinado peloisolamentosensorialepeladificuldadedeverbalizar,anterioresaotrauma.Isso explica por que, em uma situação aterradora, os que se sentiamseguroseaprenderamasecomunicarsãomenostraumatizados.Contudo,quandose temdesobreviveremcondiçõesadversas,seosmicrotraumasrepetidos diariamente isolam e impedem a palavra, terminam impondo avulnerabilidadedaqualseescapara.Viveremcondiçõesadversasterminaprovocando alterações neurobiológicas análogas às de um traumalagrante:reduçãodovolumehipocâmpico,quealteraamemóriaeimpedeocontroledasemoções.26Na memória traumática, a lembrança impõe-se. A pessoa isolada

adquiriu vulnerabilidade neuroemocional. Se, ainda por cima, ela dominamalo instrumentoverbal,ouseseuambientea impedede falar, todasascondições do sofrimento traumático estarão reunidas: 27 com a memóriaimobilizada,osujeitoprisioneirodeseupassadonãopodesenãoruminaresofrerasreminiscências.

Memóriaviva

Se, antes do trauma, o sujeito se sentia seguro e falava corretamente, se,depoisdogolpe, foi apoiadoeescutado, amemóriaevolui,umavezqueésadia.Arepresentaçãodoqueaconteceumudacomo tempoesegundoocontexto familiar e cultural.Quandoamemória é sadia, as lembranças seadaptam.Maria Nowak era muito jovem quando as perseguições antissemitas

explodiram na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial. Sua famíliamorreu, os amigos foram destruídos, mas ela conseguiu fugir para aFrança, onde atravessou a guerra refugiando-se no vão de uma escada.Anos depois, quando se tornou estudante, um amigo a convidou parajantar: “Eleme levouaumrestaurantedoQuartierLatin.Àmesa,elediz:‘Vocêestácomfome?’Eurespondo: ‘Não, tudobem,agoraeucomotodososdias.’”28

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O pequeno relato permite ilustrar como as lembranças antigas dãoconotaçãoafetivaaosacontecimentospresentes,quandoamemóriaéviva.Mariapassara fomeduranteváriosanos.Paraela, “Vocêestácomfome?”nãopodiasigni icar“Esperoqueestejacomapetiteestanoite.”Aperguntasó poderia evocar seus sofrimentos passados. Ela respondeu à perguntapresente com uma signi icação passada, explicando assim como nossahistóriaatribuiafetividadeaosacontecimentospresentes.A contaminação afetiva do presente pelo passado acrescenta-se às

distorções inevitáveis da representação de fatos passados. “As novaslembranças são inevitavelmente in luenciadas pelas velhas lembranças, oqueabrecaminhoparadistorçõesrelativamentefrequentes.”29Em seguida a um acidente de automóvel, o traumatismo craniano

provocaumvácuodememória.Quando,semanasdepois, seperguntaaosacidentados se eles tiveramumvácuodememória, quase todos situam ainterrupçãoentreaúltimalembrança(“Euestavaentrandonaestrada”)eoreaparecimentoalgumashorasoualgunsdiasdepois(“Euestavaemumleitodehospital”).Quandoessasmesmaspessoassãointerrogadasumoudois anos depois, costumam garantir que jamais tiveram transtornos dememória. Lembram-se de ter icado presas às ferragens do carroesmagadocontraummuro.Nãoédi ícil constatarqueestãodescrevendoasfotografiasdaseguradora!30Após o atentado de 11 de setembro de 2001, emNova York, omesmo

fenômenofoiconstatado.AmaioriadossobreviventesdasTorresGêmeas,interrogados logo depois do atentado, estavam aparvalhados,compreendendo mal o que tinha acontecido, estavam lentos, confusos,imprecisos. O que aconteceu? Eu estou ferido? Vai recomeçar?, são suasperguntashabituais.Passadosalgunsdias,elesrespondiammelhorecomeçavamafazerum

relato claro. No ano seguinte, a descrição era precisa: tinham visto umaviãoentrarnatorre,tinhamdescidocalmamenteasescadas,cruzadocomcorajosos bombeiros, ouvido os corpos dos que tinham se atirado pelajanelaexplodirnochão,tinhamlimpadoafuligemdorostodosamigos...31Eles tinhamreunidoas lembrançasesparsasa imdedar coerênciaao

impensável. Fizeram convergir a memória de seus corpos (o choque, oestupor, o medo, o cansaço) com os relatos coletivos (imagens vistas emoutroslugares).Essaamnésiadafonte,aodarumaúnicarepresentaçãodatragédia,permitiaquedominassemseumundomental.Sentiam-semelhor,

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masas lembrançasque contavameramconstituídasdeumpatchwork desensaçõesdiversaserelatosreunidos.O trabalho integrador da memória explica a frequência das falsas

lembranças, o que não quer dizermentira. Podemos nos lembrar de umacontecimento que nunca ocorreu. Tal recordação utiliza fragmentos dememóriadeimagensedepalavrasparadarumaformaconscienteaumasensação implícita: “Eu me lembro de que de repente ele me maltratou,está na minha memória” não quer dizer necessariamente que ele memaltratou de fato,masme vem à consciência de que basta estar ao ladodele para ter a impressão de ser maltratado. A falsa lembrançatestemunha um sentimento real. O contrário é também frequente, não éraro ver pessoas terrivelmente maltratadas quando crianças insistirem,vinte anos depois, em que nunca o foram. Quando se tornam inalmentefelizes,veemseupassadodeoutramaneira.O simples fato de escrever, de pensar com a mão, acaba adaptando a

história que eu me contava. Por muito tempo acreditei ter superadorazoavelmente a balbúrdia da guerra, o caos dos meus primeiros anos,graçasaumaespéciederesistênciamentalesobretudograçasaosilêncioque havia me salvado a vida. Hoje eu entendo que, nos meus primeirosanos, minha mãe impregnou em mim um vínculo seguro. Esse estilorelacionalquefacilitaoencontroeapalavratinhameajudadoanãodeixarescapar as mãos estendidas, Margot Farges, Andrée Descoubès, AndréMonzie, André Lafaye, Marguerite – a rendeira –, um guarda cujo nomeignoro e mil outros desconhecidos cujo rosto eu não reconheceria, todosfazempartedaminhahistóriasempalavras.Eu acreditava ingenuamente que a balbúrdia da guerra bastava para

de inir o trauma.Hojeme pergunto se o fato de ser obrigado ame calarquandoapazvoltounãofoiumaferidamaisgrave.

* “Empoleirado” traduzperché, adjetivonomasculinoque concorda comMaîtreCorbeau. Sucedequeem francêsarbre (árvore)tambémésubstantivomasculino–daíaconfusãodacriança.(N.doP.O.)

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CAPÍTULO2

UMAPAZDOLOROSA

Os adultos falavam de “capitulação”, de bombardeios sobre Berlim, deocupaçãodaAlemanha.Ostíquetesderacionamentopermitiamcomerumpoucodepãopretocombatatasda terrae jánãoapenasgirassolenabo.Os J3 (adolescentes) tinham até direito a um tíquete para chocolate. Eraumluxo!

Escreverparafazeroluto

Eu tinha voltadopara a casadeMargot, cuja família se reagrupara, emeinstalara embaixodamesada cozinhapara icar tranquilo comoemumacabana.EntãoasenhoraFargesdisse:“Masvocênãoentendequeospaisdelenãovãovoltarnuncamais,nuncamais?”ElasedirigiaaMargot,cujaspernas eu via da minha posição embaixo da mesa. Nenhuma outralembrança em torno dessa breve sequência, mas as palavras seimpregnaramnaminhaalmaeeuasouçoaindahoje.Naverdade,nãoasouço,masseiqueforampronunciadas.Logicamente,acenadevetersepassadoem1945.Meupaiseengajara

no regimento de voluntários em 1939, eu o revira de uniforme duranteuma licença e outra vez no campo de Mérignac, onde ele permanecerasentado, calmo e silencioso. Depois ele desapareceu.Minhamãe deve tersidopresaem1942,1nuncamaisarevi.Afrasesobamesameserviaderitualdeluto.Foraditaemvozalta,pois

a senhora Farges estava zangada. Haviamuito tempo eu era órfão, mas,graças àquela cerimônia involuntária, acabara de ouvir o anúncio de queeuteriaoutravidaporfazer,semeles.Eumelembroentãodeterpegadoumjornalatrásdamesa,tê-loaberto

no chão e ter dito amimmesmo: “Há de ter algumas linhas sobremeuspais ou uma fotogra ia deles. Não se pode desaparecer assim. Éabsolutamentenecessárioqueeuaprendaalerparadescobrirquemeleseram.”Hoje icopasmadocommeuparentescocomGeorgesPerec.*Opaidele,

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em 1939, engajou-se na Legião Estrangeira, como todos os judeuspoloneses e republicanos espanhóis recém-chegados. Ele desapareceu.Teriafeitoamizadecommeupai?A mãe o levou à estação de Lyon. Ela desapareceu. Nenhum trauma

evidente, nenhuma violência, de repente o deserto. O pequeno Georges,isolado, entorpece-se progressivamente. Colocado em uma instituição emVillard-de-Lans,desorientado,eleespera.Com8anosdeidade,quandoaguerraacabou,compreendequeospais

jamaisvoltarão.Decideentão tornar-seescritora imdecontarahistóriadavidadelesemumlivroquelhesservirádesepultura. 2Dinamizadopeloprojeto, torna-se bom aluno e se apresenta cerimoniosamente: “Eu mechamoGeorgesPerec,tenho8anos,souescritor.”Encontrei-o muito tempo depois, quando ele se tornou arquivista no

hospital Saint-Antoine,mas não sabia que talvez tivesse cruzado com eleemVillard-de-Lans,ondefuicolocadonoGaiLogis,atrásdaigreja.Imagensde campos de neve, lembranças de caçadores alpinos. Eu os admiravamuito, comseuuniformeazul e a grandeboina, análogaàqueme faziamusar.Estavaumpoucodecepcionadoporvê-losesquiartãomal,emboraeucontasse que os tinha visto saltando de um trampolim a 100 metros dealtura. Ninguém me acreditava, não faz mal, mas eu salvara a imagemdeles.Podia,pois,continuaraadmirá-los.Nãoseiporqueeuestavalá.Comoutrospensionistas,caminhávamosna

neve, usávamos um capote azul, passávamos diante de uma grandeinstituição cheia de crianças que corriam em um jardim. Georges PerecestavanoGaiLogisounaquelagrandecasa?Os dois momentos marcantes desse período eram as caminhadas na

neveparaformarnossocaráter,eamissa.Gostavamuitodessacerimônia,as roupas cômicas dos padres, a música, o incenso e o teatro do qualdevíamos participar icando de pé, de joelhos ou murmurando palavrasestranhas.Quebeloacontecimento!Oquemaismeimpressionavaeramasbotasdeumcolegapequeno.Nós

todostínhamoscalçadosdeformados,emgeral furadoserecebendoágua,enquanto ele possuía botas de couro, que iam até a metade da canela.Quandoerapreciso icardejoelhospararezar,eleseacomodavaparapôrum pé à frente, na posição do atirador ajoelhado, como o soldado dechumboquealguémmedera.Quebeloacontecimento!Nãodevo ter icadomuito temponoGai Logis, visto quenão cheguei a

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aprender a ler. Não éramos infelizes naquela instituição: a neve, oscaçadores alpinos, a missa, as botas de couro, o tempo passavatranquilamente.Atéodiaemqueuma“monitora”medisse:“Váatéocorredor.Suamãe

o está esperando.” “Minha mãe?” Com efeito, uma mulher, alta, bonita eelegante,viu-meaproximar.Eumelembrodeseuvestidoazulcomenfeitesbrancos e do seu chapéu espetacular. “Sou suamadrinha, a irmã da suamãe,chamo-meDora.”Nãoseimaisoquefoiditoemseguida.Nodiaseguinteelavoltou.Eraahoradaprece.Euavifalaraoouvidoda

monitora, que se aproximoudemimedisse: “Vá icardepéno fundodasala.Vocênãofarámaisaprececonosco.Vocêéjudeu.”Eu continuava sem saber o que era ser judeu, mas descobria que

bastava pronunciar essa palavra para ser excluído,mesmo em tempo depaz.Dora foi embora dizendo que voltaria parame buscar. Umbom tempo

depois, um rapaz simpático veio me visitar. Ele disse: “Eu me chamoJacques, sou seu tio.”Elemedeuumcastelodemadeira, alguns soldadosde chumbo, com os quais ingi me divertir. Ele foi embora, eu perdi osbrinquedos.Jánadaeracomoantes.Euacharadoissobreviventesdaminha família

e,pelaprimeiraveznavida,mesentiasozinho,infeliz.Durante a guerra, amorte era tãopróximaque eu estava entorpecido,

anestesiado,acho.Bastavaqueumapalavraescapasse,queumvizinhomedenunciasse, para que um nada me izesse morrer. A inabilidade dosprofessores que me protegiam fazendo-me fugir encapuzado diante dosoutros alunos, um cozinheiro que se zangava, uma freira assustadabastavam para me empurrar para a morte. Eu não sentia tristeza nemangústia,eramaisumanãovidaantesdamorte.Quandoagenteserende,sofre menos, acho eu. Também não era um desespero, uma vez que osimplesfatodenãomorrereraparamimumavitória.

Adançaeavida

A vida retornou quando voltei para a casa de Margot, quando AndréeDescoubès me levou para ver as mulheres nuas no grande teatro deBordeaux, quando os passantes se beijaram na place des Quinconces

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porqueabombaatômicaexplodiraemHiroshima:eraumafesta!Aalegriaàminhavoltamepenetravadocementeemedevolviaoprazerdeviver.A centelha se apagou assimque encontrei o fragmento da família. Eles

nãopoderiamterfeitooutracoisa,evidentemente.Tinhammuitoslutosporsuperar:Nadia,minhamãe;Rose,minhatia;muitosprimos;aparentadose,sobretudo,Jeannette,quedesapareceraaos15anos.Nãofoipresa,nãofoideportada, não foi morta, ela desapareceu. Eles precisavam arranjartrabalho,moradia e tinhamde preencher toneladas de papéis para ter odireitodemerecolher.Àespera,rejeitadoporquenãopodiarezarnemirà igreja, ignorando que as sinagogas existiam, eu também não podiabrincarcommeuscoleguinhas,queagoramemantinhamàdistância.O fato de já não pertencer a um grupo e ter de esperar aquelas duas

pessoasqueeunãoconheciadespertouorastrodasolidão,fazendovoltaras lembranças da época em que eu estava escondido na sala da rueAdrien-Baysselance. Depois de icar isolado durante a guerra, eume viaabandonadoapósaguerra,oquenãoéomesmosofrimento.Um fenômeno estranho entãomepreocupou: recomecei a sonhar, toda

as noites, que estava fechado dentro de um aquário! Eu via o mundoexterior, mas não podia me mexer nem gritar. Às vezes, o aquário seenchia de bolhas que cresciam e vinham na minha direção para meesmagar.Àsvezes,euviaumaprincesinhabonitaeminúsculafechadaemoutroaquário.Elamefaziasinaisparaeu iratéela,maseunãopodiamemexereasparedesdevidroeramintransponíveis.Essessonhossão frequentementemencionadospelosquesofreramum

“encerramento traumático”. 3 Aprisionados pelas paredes, entorpecidospelo silêncio, vemos os outros viverem, gostaríamos de sair mas éimpossível,estamosenvoltosemumagelatinatranslúcidaqueimpedequenos mexamos, estamos encerrados em um aquário, onde podemos vertudo,semnosmexernemdarumapalavra.“Tudo banhava em um silêncio de aquário, como uma cena vista em

sonho.”4 Não é assim que um homem deve viver. Ele tem de ter um lar,pais,amigos,umaescolaesonhos.Umserhumanonãopodeviverdentrodeumaquário,precisadeespaçoedepalavras.Como prometido, Dora foi me buscar. Eu a achava amável, calorosa e

muito bonita. Ela morava sozinha em um quarto muito pequeno na rueRochechouart, perto de Pigalle: sem água, sem aquecimento, uma camaqueeudividiacomela,umamesinhaealgumasprateleirasem12metros

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quadrados, no máximo. Era su iciente para ser feliz nos anos do pós-guerra.Avantagemdoquartoéqueerapróximodotrabalhodela,oRoxy,ondeelaeradançarina.Àsvezeselame levavaaesse lugarmaravilhoso.Asgrandesescadarias,osespelhos,aluzazul,otapeteeamúsicacriavamumambientedeluxoedefesta.Euadorava.Nuncatinhavistoumpaláciotão bonito. Dora ria o tempo todo; era um momento de verdadeirafelicidadecompartilhada.EntreoRoxyearuedeRochechouart,euhabitavaoparaíso.Mesmono

céu há sombras. Dora voltava do trabalho por volta das três horas damanhã, e eu icava sozinho no minúsculo quarto. Bastava o isolamentorecomeçar e os balanços e rodopios tomavam conta de mim. Euredescobria osmovimentos autocentrados quemanifestara quando tinhaicadoisoladonarueAdrien-Baysselance,emBordeaux,duranteaguerra.Meuúnicooutroeraeumesmo.Todasascriançascolocadasemisolamentosensorial acabam reagindo assim, o que constitui um indício deperturbaçãododesenvolvimento.Porsorte,bastavaquechegassealguémparaquemeuelãemrelaçãoàpessoa izessedesaparecerosmovimentosestereotipados. Ninguém podia ver, pois eles só apareciam durante osmomentosdeisolamento.Durante o dia, Dora dormia, mas eu podia ir à escola da rue Turgot.

Quaseescrevi“porsorte”,masnãoodirei,poisnãofoinadabom.Tenhonamemória uma classe superlotada e mal iluminada. E, sobretudo, guardouma lembrança muito ruim de uma professora de coque. Puseram-menuma classe na qual eu deveria estar caso tivesse tido escolaridadenormal.Euestavamuitoatrasado.Começavavagamentea lereaescrever,mas

nãosabiaque,duranteasprovas,nãopodiacopiardo livrodeclassequeeu pusera simplesmente em cima da minha mesa. A professora seaproximoudevagarinhoe,derepente,puxoumeucabelo,fazendoaalegriadosmeuscolegasdeclasse.

HistóriadasenhoraLot

Eunãoentendianada. Iamalnaescolae era rejeitadoduranteo recreio.Dora dançava de noite e dormia de dia. Eu icava sozinho. Por sorte, elatinha dois enormes livros cujas imagens eu admirava. Era uma Bíblia

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ilustradaporGustaveDoré.Foiondeaprendialer.Alieuachavahistóriasterríveis e maravilhosas, templos que desabavam sobre milhares dehomens, crianças que eram abandonadas no deserto ou degoladas nacama, irmãos mais velhos que vendiam o caçula, exércitos inteirosafogadoscomoscavalos.Maravilhoso.Horrível.Avidanormal,afinal.Entreasbelasimagenseostextosqueeutentavadecifrar,ahistóriade

Lot icougravadanaminhamemória.Aindahojerevejoclaramenteaparteesquerda da ilustração escura onde o talento de Gustave Doré pôs emrelevo Lot fugindo, seguindo em frente com as ilhas. Na parte direita,iluminadapeloincêndiodeumacidade,SodomaouGomorracertamente,asenhora Lot volta-se e, com um gesto de súplica, estende os braços eimobiliza-se,transformando-seemestátuadesal.Eucontemplavacomfrequênciaaquelagravura,quetinhaparamimum

efeito moral: eis o que acontece quando se pensa no passado. O sal denossas lágrimas nos transforma em estátua de sal, e a vida para. Nuncaretornesequiserviver!Paraafrente,paraafrente!Essa história edi icante me serviu de estratégia na existência durante

grandepartedaminhavida.Paraafrente,nãoretorne,nãopensemaisnoseu passado, dele só lágrimas resultam. Já o futuro será rosa. Para afrente!FoiassimqueahistóriadeLotmefalououfuieuquea izfalarassim?

Eupoderiaterextraídooutramoral.“Cadaumconheceaversãoo icialdocapítulo19doGênesis.EmSodoma,comoemGomorra,bemaosuldoMarMorto [...] a corrupção era generalizada e a sexualidade desenfreada.” 5

Naquele oceano de vício, a família Lot era virtuosa, até acolhera doisestrangeiros! Deus os autorizou portanto a fugir antes da destruiçãodaqueles antros de devassidão. A senhora Lot, talvez lastimando a perdadosmomentosdefesta,olhouparatrásumaúltimavez!Eis como eu o poderia ter interpretado. Recentemente, procurei a

gravuradeGustaveDoréqueevocaahistóriadeLot.Osdois livrosaindaestão naminha biblioteca.6 Acabo de folheá-los com toda a atenção. Revitodas as gravuras ainda claras na minha memória, detalhadamente.GuardonofundodemimaimagemdeIsaaccarregandoamadeiradeseuprópriosacri ício,deJosévendidopelosirmãos,deMoiséssalvodaságuas,da morte de Saul com uma espada a lhe abrir o peito e a de Sansão aderrubarospilaresdotemploqueencantouminhaalmademenino.Estátudogravadonaminhamemóriacomumaprecisãoimpressionante.

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Tudo, salvo a fuga de Lot, que eu não acho! A gravura que a mostrafugindo das cidades pecadoras não está aqui! Contudo, eu a vejo, possogarantir,vejo-adentrodolivrodepáginasamareladas.É indiscutível,masela não está. Devo tê-la visto em outro lugar e, como eu folheavafrequentementeestaBíblia,apusdentro,umlugar lógico.É lógico,porémerrado!Dei muita importância a essa falsa lembrança (poderia dizer “a essa

lembrançarecompostavindade fontesdiferentes”),porquea imagemmefalava.Elamediziademaneirabela: “Vocêpoderáviversequiser, comacondiçãodenuncasevoltarparaseupassado.”Fácil!Evitar a inquietante representação do passado permitia-me não ter

angústias, não ruminar e não deprimir-me.Mas, impedindo a verdadeirarepresentaçãodemim,instalava-seumdistúrbionarelaçãocomosoutros.Eu era alegre, coerente, e, repentinamente, quando uma palavra ou umacontecimentoevocavaaruínadaminhainfância,eumecalava.Em tempos de paz, eu teria podido contar o que se passara. Não era

“indizível”, como se pretende hoje. Talvez até, se tivesse encontrado ummeiotranquilizador,eupudessecontarbanalmenteaguerra.“Banalmentea guerra”, vocês se dão conta? Pode-se contar “banalmente” a loucuraassassina?Essa formulaçãonão é correta, não foi uma loucura assassina:uma simples palavra que escapou, umpapel para assinar, o olhar de umvizinho... bastava para provocar a prisão, uma estrela amarela escondidasob uma echarpe pouco tempo antes de pular pela janela. O horrorexpressando-senabanalidade,comocompreender?Calando-me, eu dava a entender que saíra incólume da guerra. Isso é

possível? É normal parecer normal depois de um pesadelo de todos osdias?Não falarnadasobreaperseguiçãome traziaumbene ício: “Paraafrente, para a frente”, como eu izera Lot dizer. Era uma adaptação,masnão era normal. Meu círculo era cúmplice dessa negação. Os feridosicavamfelizesporparecerfortesesorridentesdepoisdadevastação,eospróximos icavamaliviadospornãoterdeenfrentarasquestõescolocadaspelaperseguição.NaépocaemqueeurecebiaaafeiçãodeDoraeviviaasfestasluxuosas

do Roxy, desesperava-me por ser nulo na escola.Minhas péssimas notascon irmavamminhainferioridade,comotinhama irmadoosalemãseseusaliados colaboradores. Uma vez que eu não entendia nada, eles tinham

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razãoemmedesprezaretalvezatéemterdesejadomeeliminar.

Aguerraébela,dizemeles

Nessa época, as crianças eram incrivelmente livres na butteMontmartre.Eu tinha feitoumamigo comquemgalopava atravésdobairro.Asplacesd’Anvers, de la Trinité, Montholon e os jardins do Sacré-Cœur nosofereciam belos campos para brincadeiras. Nós nos encontrávamos demanhã e voltávamos para casa de tarde. Ninguém se preocupava.Jogávamosbolanomeiodas ruas,poispraticamentenãohavia carrosem1948. Entrávamos nos cafés para pedir um copo d’água e umpedaço depão.Eraaliberdade!Afesta!Eu me lembro de uma manhã em que, muito gentilmente, meu amigo

disse: “Minha mãe não quer que eu brinque com você porque você éjudeu.”Aonossepararmos,demosumapertodemão.Creionãoter icadotriste.Simplesmentetiveumasensaçãodevaziona

representaçãodemim.Umvazioperplexo,vocêssabem,comoumasombraimprevista em uma representação clara: subitamente, um enigma! Omundo era simples quando, de repente, uma pergunta sem respostasurgiu.Opaidelemorreranaguerra,comoomeu.Amãedeleerapobre,como Dora. Meu amigo morava com ela em um minúsculo quarto semconforto,comonós.Eueraumapalavraquedesignavanãoseiquê,oquemeprivavadeamizadeedeumdiadeliberdade.Os outros conheciam esse “não sei que” que me caracterizava. Uma

tarde,umcolegadebairroveiomeprocurarparaqueeucontasseminhahistóriaaopaidele.Aceiteicomprazer,afinalnadaaesconder,banal,comotodomundo!Quandoentreina joalheria,haviatrêsouquatroadultos,umdos quais sentado, seguramente alguémmais importante. O pai (lembro-medeseunarizgrandeedacamisacinza)medisse:“Conteaestesenhoro que lhe aconteceu.” Talvez tenha exagerado, pois me senti no palcodiante de quatro espectadores, um deles importante, sentado. Não melembro do que eu disse, mas, como aquela encenação me dava umsentimento de importância, devo ter dito a verdade, contando-a bemdemais.O que provocou uma careta no sujeito importante, que estava sentado,

foi a minha evasão. Ele me pediu detalhes, a que penso ter respondido

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claramente. Então ele me estendeu uma moeda (cinquenta centavosprovavelmente)edisse:“Vocêcontabelashistórias,vácomprarbalas.”Belashistórias?Nãoerafalso.Odespedaçamentodaminhainfânciamepunhaemsituaçãodeexceção.

Seeutivessefaladoduranteaguerra,teriammematado.Quandoeufalavaemtemposdepaz,nãomeacreditavam.Fazer o relato da própria vida não é em absoluto expor um

encadeamentodeacontecimentos,éorganizaraslembrançasa imdepôrordem na representação do que nos aconteceu e é, ao mesmo tempo,modi icar o mundo mental daquele que escuta. O sentimento quevivenciamos depois de um relato de si depende das reações do outro: Oqueelevai fazer comoqueeudisse?Vaimematar,me ridicularizar,meajudar ou admirar? Aquele que se cala participa do relato daquele quefala.Porquemepediamquecontasseacontecimentosqueeupreferiacalar?

Quando os expunha, eume sentia anormal: orgulhoso ou envergonhado,segundooolhardooutro.Eumesentiaapaziguadoquandonãotinhamaisnada a esconder,mas, em geral, a reação das pessoas àminha voltameincentivavaaonãodito.Quandoumadultonãoacreditavaemmim,quandoeleriadomeu“talentoinventivo”,quandoumamigoserecusavaabrincarcomigo,eumeresignavaaosilêncio.Nessa época eu tinha 9 anos e teria podido explicar que, em meio à

desgraçadaguerra,conheceramomentosfelizes.Euguardavanamemóriaalgumas imagens ternas e alegres com minha mãe, sentia orgulho doengajamento do meu pai na Legião Estrangeira. Teria podido contar aalegria das refeições familiares na casa dos Farges. Suzanne, que queriameensinaracomercomoumgato;Margot,quedecretaraqueeuadoravaascabeçasdecoelho(dequeeutinhahorror);acômicaRádioLondres,ocalor daquela família, até o dia em que foi preciso eu me isolar em umúnicocômodo.Conhecibelosmomentosquandodormiaemcimadapalhanoceleirode

Pondaurat,nacompanhiadogarotograndequemechamavade“Pirralho”edos trabalhadores agrícolasquemeembriagavampara sedivertir. Issonão interessava aninguém.Preferiamque eu falasseda fossade estercona qual era preciso chafurdar, da rudeza da rendeira e do meu quaseafogamentoduranteapesca.Adesgraçadosoutrosémaisinteressante.Guardo boas lembranças de alguns dias de escola, para onde pude ir

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graças a meu nome protetor Jean Laborde (ou Bordes). O dia começavacom uma festa, quando era preciso cantar “Maréchal, nous voilà”[Marechal, estamos aqui]. Ficava feliz em pensar que um marechal meesperavaeesperavaqueeutrabalhasseparaagrandezadaFrança.7Em Castillon, eu era feliz quando corria pelo campo com meu amigo

pobreeroubavauva-moscatelatépassarmal.Passeinoitesmagní icasnoRoxyvendoDoradançarcomosamericanos,

conversar alegremente com acrobatas, e vendo Maurice, que, dizia-se,dançavamelhordoqueFredAstaire.Que alegria! Não estou mentindo, esses acontecimentos foram

maravilhosos. Mas outro relato enchia minha alma, o de uma cascata detragédias impossíveis de dizer porque as pessoas em torno de mim nãoqueriamescutar.Nem tudoera róseoemnossos reencontros.Doranãomecriticavapor

eu ser mau aluno. O que lhe causava desgosto era que eu não davacambalhotas e não pulava no pescoço dos seus amigos. Minha reserva adecepcionava.Nasuagenerosidade,elasonhavaemrecolhero ilhodesuairmã preferida. Para ela, signi icava o retorno da paz, a felicidaderecuperada, o prosseguimento da vida familiar. Ela queria cuidar de ummeninoexpansivoeafetuoso.Via-secomumpequenovelhode9anos.Elatinhamuitosamigosentreosdançarinos.Quandoumdeleschegava,

ela me empurrava dizendo: “Vá, corra, dê um beijo nele.” Eu não sabiafazerisso,mesmoquesentisseumgrandeprazeremver“FredAstaire”ouo “Corso Acrobático”, cujas fotogra ias eu admirava nas paredes doscabarés de Pigalle. “Uma criança dá cambalhotas”, dizia-me ela,decepcionada.Eunãoeraumacriançahaviamuitotempo.Foi então queMargot quisme adotar. Ela estava emposição favorável,

pois tinha pro issão, marido e uma família conhecida. Minhas duasmãessubstitutas entraram em con lito. O caos voltou. A primeira consequênciade uma desorganização do meio em torno de uma criança é que ela setornaincapazdeordenarsuaprópriarepresentaçãodotempo.Aindahoje,a memória dessa época retorna por lashes, não vejo senão clichêssuperexpostoscercadosdesombrascalcinadas.

Abelezaeoszumbistristes

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Eume vejo em uma instituição cujo nome desconheço.8 A casa é grande,limpa e vazia. As crianças ainda não chegaram. Devo ser o primeiro. Osdoismonitores nunca falam, nada está organizado, não há escola, não háatividades, não há lazer, nada. Em volta da casa, uma paisagemmontanhosa,umaenormeparederochosadooutroladodaestradae,maisabaixo,umrio,queouçochamarde“oBourne”.Nãoseiondeestou.Andoàtoa, sozinho, tento fazer alguma coisa. Nadame diverte. Recomeço a darvoltaseamebalançar.Fui salvo pelas formigas. Perto da porta de entrada, no jardim, à

esquerda, reparei emumapedraque tremia.Aomeaproximar, constateique se tratava de um castelo para formigas aladas. Podiam-se ver ostúneis,ondeosinsetosseatarefavam,e,nasuper ície,basesdedecolagemde onde as grandes formigas acobreadas levantavam voo em esquadrão.Foiestarrecedor:haviapertodemim,nomeudesertoafetivo,ummundoapaixonante! No dia seguinte, como em um ilme de grande espetáculo,pequenas formigas negras atacaramo campode formigas voadoras paralhes roubar os ovos! Eu as vi entrar nos túneis e sair rolando enormesovos brancos, que elas carregavam para longe. Movimento circular dasformigas aladas, novo ataque das formigas negras, estocagem dos ovos,combates, fugas. Eu nunca vira um espetáculo tão fantástico. Nuncaquestionei tantos problemas humanos quanto ao observar as formigas:bastava, pois, estar vivo para se organizar em sociedade? Por que asformigasnegraspegavamos ilhosdasformigasacobreadas?Quandoseépequeno,pode-seaindaassimserforte?Graçasàsformigas,eucomeçavaminha formação de fazedor de perguntas e descobria que o mundo àsvezeséencantado.Pouco a pouco, as crianças foram chegando àquela casa. Pequenos

zumbis tristes, eunãome ligavaa elas.Haviamenosvidanaquelamornainstituiçãodoque emplena guerra, no celeirodePondaurat, nos camposdeCastillone,depoisdaLibertação,nasruasdeParis.Di ícilviverquandotudoestáentorpecido.Naquele ambiente vagaroso houve dois acontecimentos: descobri a

beleza fantástica do sol nascendo e a extraordinária satisfação de treparemtudooquepudesseserescalado.Euacordavamuitocedoesubiaemcimadeumapiaparameagarrara

umajanelinhaondeesperavaonascerdosol.Ficavaassimbastantetempo,pois me lembro da dor que sentia nos joelhos apoiados no rebordo da

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janela e do cansaço das mãos agarradas à maçaneta. Por im, o sol selevantava. Eu saboreava cada claridade e depois, maravilhado, voltava amedeitar.Porqueprecisavatreparemtudo?Todasascriançasgostamdeescalar

coisas, simplesmente. E, naquela instituição, eu descobrira um corredorestreitoquelevavaaobanheiro.Pondoospésemumaparedeecolandoascostas do outro lado, conseguia me elevar até o teto, onde memantinhasem esforço. A performance criava em mim um notável sentimento desegurança. Eu me pergunto se não teria pensado: ‘Enquanto eu puderescalar, posso me libertar.’ Não devo ter pensado assim, com estaspalavras,masofatodeescalaradquiriatalsigni icado,aoqual,hoje,douaformaverbal.Seja como for, escalando, eu pensava na minha evasão. A quem vocês

querem que eu fale disso? Aos adultos indiferentes? Aos meus colegasentorpecidos? Escalar adquiria para mim o signi icado de uma evasãopossível, comoseeume izesseumrelato sempalavras: “Não temanada,nãoexisteprisãohermética.”Entãoeuescalavanocorredordosbanheiros,mastambémaolongodas

paredesenascolunasdepedratão largasqueeunãoconseguiaabraçar.Chegava a alcançar o alto, correndo um risco enorme diante de algunscolegasmudosdeadmiração.Quandoouvi falardoOignon,umaparede rochosa, convexa apontode

sóosbonsescaladoresconseguiremenfrentá-la,deciditentar.Oportãodainstituiçãoera fechado,masdavaparasairsemdi iculdade,suspendendoa grade que cercava o jardim. Levei comigo, na fuga, um coleguinha cujaamizade eu desejava obter porque a mãe dele vinha vê-lo de vez emquando.Seumamãeoamava,eutinhaa impressãodequeelevaliamaisdo que eu. O simples fato de estar perto dele dava importância à nossaamizade.Creioqueonomedele eraCapitão. Ébembonito.Vá saber, talvez seja

verdade.Seguimos o caminho de aproximação, ele icou imobilizado em cima de

um ressalto, incapaz de subir ou de descer. Eu o aconselhei a tirar ossapatospara sentirmelhorapedra sobospés.Comoelenãopodia subirsegurando-os na mão, quis jogá-los para mim. Eu me lembro da minhaa liçãoaonãoconseguirpegarossapatosevê-loscairláembaixo,nomeiodomato. Para ele, foi uma tragédia expressa em berros e choro. Tive de

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continuarsozinhoatéotopo,edepoisdescicorrendopeloestreitocaminhoatrás do Oignon para avisar os adultos. Ninguém me fez a menorreprimenda.Que ideia esquisita contar essa lembrança! Talvez eu tenha desejado

demonstrar que o signi icado que atribuímos ao presente se enraíza emum acontecimento passado. Escalar signi icava para mim “Existe sempreumaliberdadepossível”,porcausadaminhaevasão.Parameucoleguinha,o signi icado era: “Mamãe vai icar furiosa, perdi os sapatos. Esteacontecimentoéumainfelicidadeparamim.”Sofrercomorealnãotemabsolutamenteomesmoefeitoquesofrercom

arepresentaçãodoreal.Duranteaguerra,euestavainseridonaurgênciado contexto. Vivia em um mundo imediato no qual não tinha su icientedistanciamento para fazer uma representação. Quando mentalizamos,fazemosumarepresentaçãodeimagensedepalavras,fazemosvoltarparanossocinemainterioralgumassequênciaspostasnamemória.Esses ilmesíntimos,aonoscontarnossaprópriahistória,participamdaconstruçãodenossaidentidade.Emperíododeguerra,oprocessodememórianãoépossível.Épreciso

serrápido,compreenderedecidir,passaraoatoemvezdementalizar.Aadaptação permite a sobrevivência, mas não a representação doacontecimento. Ouve-se uma informação inquietante à qual se reage nomesmo instante. Podemos resolver um problema sem verdadeiramentecompreendê-lo, como quando se anda de bicicleta. Tratamos todas asinformaçõessemtomarconsciênciadelas.Sememoção,semmentalização,a frieza e a ação bastam para nos tornar fortes. Emais: depois da ação,experimentamos uma sensação de euforia, o prazer de ter enganado amorte.Que estranha associação entre a friezada ação e a euforia que sesegue...Durante a guerra, nasminhas emoções, a anestesia damorte iminente

sealternavacomoprazerdavidarecuperada.Eraumafelicidadedormirsobreapalha,depoisdequasetermorridodentrodeumapanela,eraumaalegria deixar-se embriagar pelos adultos para entretê-los, depois de tersidoprivadode relações, eradivertido ser presoporhomens comarmasdepoisdeterficadoisoladodurantemeses.

Pequenosvelhosde10anos

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Quando a paz voltou, as transaçõesmudaram de natureza. De agora emdiante, a ideia que eu fazia demim tinha de estar de acordo coma ideiaqueosoutros faziamdemim.Orealse tornavaacessório,sóosigni icadocontava.Aemoçãodoentorpecimentooudaalegria jánãoeraprovocadapela percepção de uma situação, mas pelos relatos que se faziam dela.Agora eu tinha um sentimento, ou seja, uma emoção provocada por umarepresentação.Em todos os países em guerra, constata-se esta reação paradoxal: as

crianças parecem fortes durante a guerra e desabam em seguida. Oslibaneses têm o que dizer: “Em julho de 2006, durante os bombardeiosisraelenses,Ali,de4anos,estáemCana.Oprédioondeeleserefugioucomos pais e com a irmã Zeinab desaba.”9 A mãe, Roula, é tirada dosescombros,mas Zeinab estámorta eAli, ferido na cabeça, está em coma.Um vizinho, tomando-o por morto, leva-o para uma casa onde sãoempilhados os cadáveres. A criança recupera a consciência, sozinha, nomeio dos corpos destroçados e dos cães, que espreitam o monte decadáveres.Depoisde15dias,ogarotinhoestáalegreeativo.Dizquesuairmãestá

feliz no paraíso. Dorme bem, fala gentilmente e desenha tanquesisraelenses atacados e destruídos pelos resistentes libaneses. Na escola,ele émuito bom aluno, orgulhoso de termártires na família. Quando forgrande, será soldado. As pessoas próximas, admiradas, falam deresiliência.Apósdoisanos,apazvoltou,oslibanesesjáestãoreconstruindo.Amãe

de Ali leva omenino ao centromédico-psicológico de Tiro. A criança nãopara no lugar, agita-se, rasga todos os desenhos, os seus e os doscoleguinhas,quebraosobjetose respondeagressivamente.Temmedodequematemsuamãe.Essa evolução, frequente em crianças da guerra, permite pensar que

coping não é resiliência. Ocoping consiste em enfrentar a provação nomomento em que ela se apresenta. A criança desa ia a tragédia com suapequena personalidade já construída. Combate o que está em torno delacomoqueestánela.Só se pode falar de resiliência mais tarde, no pós-golpe, quando a

criança tiver de enfrentar namemória a representação do que sofreu. Ocopingestánasincronia,aresiliênciaestánadiacronia.Enfrenta-se a provação com o que se é, naquele momento. Depois,

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repensando, procura-se compreender o que aconteceu para já não icarconfuso,paradominararepresentação.O acontecimento trágico é inscrito em um relato de si para dar a ele umsentidoeparatomarumnovocaminhodevida.Sóentãosepodefalarderesiliência.Nomomentodobombardeio,Alisentia-seemsegurançagraçasàfamília,

aos amigos e à familiaridade de seu bairro. Estava em casa. A escola, omercado,osvizinhos,tudoeraestáveletranquilizador.Aos4anos,aideiademortenãoéadulta,anoçãodeirreversibilidadeaindanãofoiadquirida.Alinãopode,portanto,sofreramortedairmã,mastalvezpossasentirfaltadapresençadelaedesuasbrincadeiras.Decorridosdoisanosapósosbombardeios,quandoapazjávoltou,tudo

desabanonichoafetivodeAli.Opai, ferido, jánãopodetrabalhar.Amãe,esgotada,deprimida,sópensanamorteda ilha.OlardeAlitorna-setristee doloroso.No bairro destruído, o discurso dos adultos só fala de ódio. OnichoafetivoquecercaAlioacabrunhaenão lhepermitedar inícioaumprocessoderesiliência.ElissareKhalilnãoparamderepetir: “Detestoestepaís [oLíbano].Ele

não nos dá nada quando nossa família é inexistente... Não há amor... Eusufoco... Os libaneses só sabemviver na guerra. Estão em guerra consigomesmos.Queroirembora.”10Criançasnaguerranãosãocriançasdaguerra.Duranteabatalha,elas

se engajam se, nas suas memórias, tiver sido impregnado um vínculoseguroquelhesdêcon iançaese,emtornodelas,ospaispreservamumabase de segurança: por que elas icariam assustadas? A maioria dascriançaslondrinasadoravaosbombardeiosdurantea2ª-GuerraMundial.Eram acordadas à noite, embrulhadas afetuosamente em cobertores,desciam para o metrô, sentiam-se abrigadas junto dos que amavam.Cruzavam com desconhecidos que também protegiam seus ilhos e lhessorriamamavelmente.Voltavamadormirdepoisdobarulhodasbombas,aolonge,bemacimadelas.Eramacontecimentostranquilos!Chego a achar que esse tipo de agressão reforça os vínculos. Não se

provoca o vínculo de uma criança empanturrando-a, provoca o enjoo,apenasisso.Transmitindo-lhesegurançaebrincandocomelaéqueseteceoelo.Mas,paraisso,éprecisoqueospaissesintam,elesmesmos,segurose não assustados, como os ingleses, durante os bombardeios de Londres,que desciam sorrindo para os abrigos no metrô. Ademais, para que a

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presença dos pais tenha um efeito tranquilizador, é preciso que, nocontexto, haja uma agressão inquietante. A transação entre o efeitotranquilizadordospaiseaagressãodomeioéoquereforçaovínculo.11Nósadorávamososcombatesaéreos.Assimqueescutávamososaviões

manobraremedesenharemnocéucurvasimprevistas,precipitávamo-nospara fora para assistir ao espetáculo. E, quando um deles era atingido,quandouma fumaçapretaaparecia,precedendoaschamas,eahélicedoaviãocaía, icávamosencantados!Quebeloespetáculo!Orealeraperigoso,masnãonos inquietavaporquetinhamnosexplicadoquebastavaouviroassovio das bombas para saber que iam cair ao longe. Sequer sentíamosmedo!Quandoosamericanosbombardeavamasbelascidadesbretãsparanos

libertardonazismo,ospaisaplaudiameascriançasmaravilhadasdavamcambalhotasolhandoofogocair.Entãofoiprecisoprotegê-las,enviando-aspara suas famílias longínquas. Lá elas icavam realmente protegidasmasprivadas de suas bases de segurança parental e, ao ouvirem os aviões,tinham crises de angústia. Ao passo que, na presença de paistranquilizadores, “o alerta signi icava [...] estar num abrigo abraçado àminhamãe, comaentrega ritualizadadeumdoce,umcerto fascíniopelobarulho das explosões e a intensidade das luzes, depois uma espécie dealegria convivial [...], como uma bandeirinha triunfante: eles não nospegaram”.12A estrutura da agressão estrutura a reação traumática. Não se pode

dizer: “O bombardeio provoca transtornos psíquicos.” Pode-se dizer: “Obombardeio provoca morte, mutilações, ruína.” Mas, para que hajatranstornos psíquicos, é preciso que haja uma desorganização familiar esocial.Todos os que acompanharam crianças durante as guerras se

surpreenderam com a exatidão de suas observações. Quando os adultostiram fotogra ias edepoispedemque as crianças “desenhema guerra”, 13ficamabismadoscomsuaprecisão:“Aobjetividadedealgunsdesenhosnossurpreendeu[...].Acriançatestemunhaocularencontra-seprovavelmenteem estado de transe, como se tudo se passasse longe, em outro mundo,aindaqueelaestejaalieveja.”14O estado de transe corresponde àmemória traumática: fascinada pelo

acontecimento,acriançaimpregnaa imagemnamemória.Ocontextoseminteressenãoépostonamemória.Amemória,pelapontinhadobinóculo,

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ixa uma imagem precisa cercada de inde inição. Quando o contexto étranquilizador, o acontecimento não é traumatizante. Inversamente,quando a família e a cultura desmoronam, a mesma imagem torna-seperturbadora, angustiante. Ela se impõe durante o dia e volta durante anoite,empesadelosquefacilitamamarcamnésica.Umaparte inteirademeudesenvolvimento,emumperíodosensívelda

existência, foi estruturadapela guerra.Mereci verdadeiramenteamorte?Quem eu sou por ter conseguido sobreviver? Sou mais forte do que amorte? Eu traí para ter direito de viver? Como vou viver agora, se o queme aconteceu não pode ser compartilhado? Devo falar assim mesmo eprovocarreaçõesquemedesorientam?Porqueelesriem?Porquenãomeacreditam? Por que se zangam? Por que me mandam calar? Por quedizem: “Tudo issonãoénada... avidacontinua... ondeelevaibuscar tudoisso...nóstambémsofremos,nãotínhamosmanteiga.”

Algunscalváriosíntimos

A discordância entre o sujeito preocupado com a própria história e seucírculo que não consegue escutá-lo é habitual, seja qual for a cultura.DepoisdoautogenocídiodePolPotnoCamboja,quandoumsobreviventetentavacontarcomosemorriadefome,deesgotamentoededesespero,aspessoas encolhiam os ombros e explicavam delicadamente: “Pare de sequeixar, nós também sofremos, tínhamos de matar o porco àsescondidas!”15Quandoainfelicidadedosoutroséinimaginável,nósacomparamoscom

nossas pequenasmisérias. Essa reação que protege as pessoas próximasisola o desafortunado. Eu poderia acrescentar: “[...] isolando nele a partenãocompartilháveldesuahistória.”A“cripta”individual 16quese incrustana alma do ferido lá se instala por causa da reação discordante de seuspróximosedesuacultura.O ferido, fascinado por sua dilaceração muda, é obrigado a buscar

sozinhoassoluçõesparaseuproblema.Porissoeumepunhaàprovaparamostraramimmesmoqueeutinhadireitodeviver.Termineientendendo,depois da Libertação, que me in ligia pequenos calvários a im de meprovarquenãomesubmetiaàdesgraça.Eumepunhaemperigoparatera oportunidade de provar a mim que a morte não era inexorável. Fui

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colocado em uma instituição em Tarnos, perto da bacia de Arcachon.Guardo de lá uma péssima lembrança. Os dormitórios eram imensos,quatro ileiras de dez a vinte camas, e refeitórios ainda maiores, ondecentenas de crianças faziam tamanho barulho que os educadores tinhamdeserrepressoresafimdefazerreinarumacalmarelativa.O grande número provocava o anonimato. Brincávamos com facas em

pequenos grupos, ou entrávamos em disputas de clãs que, longe dosadultos, resultavam em alguns acontecimentos, alguns ferimentos ealgumas alianças. No decorrer dessas batalhas, eu adquirira umaespecialidade:eraprecisosubiremumaárvoreparaespreitarachegadade adversários, mas, em vez de descer ao longo do tronco, eu ia o maislonge possível na ponta dos galhos, até eles se dobrarem sobmeu peso.Então me deixava cair, freando a queda agarrado à extremidade dosgalhos. Faziamuito efeito. Os educadores vinhamme ver realizar aquelaproeza que me reconfortava, pois eu utilizava minhas qualidades detrepadorparaseradmiradoemeprovarqueerasemprepossíveldominarumasituação,mesmoquandooriscofossegrande.Eu tinha sido despersonalizado pela guerra. Tinham-me tirado os pais,

tinham-me prendido, encerrado, fora condenado à morte, tinham-meescondidoparameproteger, tinham-meencapuzadoparame fazer fugir,tinham-me encerrado em salas escuras, em caldeirões, em casa de genteque eu não conhecia. Seja parame destruir oume proteger, eu não eradonodaminhavida.Desafiandoamorte,eumerepersonalizava.Às vezes nos levavam para tomar banho em Capbreton. Os adultos

tinhamnosditoquetomássemoscuidadocomamarébaixaeosturbilhõesque ela provocava. Entãodecidime tornar bomnadador paramergulharnosturbilhõesafimde...escapardeles!FoiemCastillonqueconteiaadultosdesconhecidosqueeumeevadira

segurando-me no teto e depoismergulhando debaixo do colchão de umamulhermoribunda.Umdelesdisse: “Aindabemquevocênãoespirrou.Osoldadoalemãooteriamatado.”Namesmahoradecidipôrramosdematodentro do nariz a im de desencadear a vontade de espirrar e eu mecontrolar.Funcionavabem!Meusolhosseenchiamdelágrimas,eàsvezesmeunarizsangrava,maseunãoespirrava.Provavaamimmesmoqueeueramais fortedoqueascircunstâncias.Podiatreparemárvoresatodaavelocidade,deixar-medespencardaextremidadedegalhos,mergulharnosturbilhõesenãoespirrar.Eueralivreseeudecidisse.Bastava lertarcom

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a morte. Esses calvários íntimos deviam parecer absurdos aos adultosobservadores.Mas,naminhavidadecriançadestruídapelaguerra,essespequenos julgamentos de Deus me ajudavam a retomar posse de meumundo.Repeti durantemuito tempo esses comportamentos estranhos que não

falavamsenãoamimmesmo,aome fazeremcorrerriscos.Eupensoque,sedepoisouseiestudar,foigraçasaessacoragemmórbida.Setivessesidoequilibrado, eu teriame adaptado à existência de criança rebaixada quemeu círculo me propunha: “Pobrezinho, como você pode querer serjornalista ou médico com o que lhe aconteceu?” A compaixão teria sidomutilante.“Do que falam as lágrimas?”17 Eu nunca chorei, nem pela morte dos

meus pais, nem pela minha infância em agonia. Nada a dizer. Pequenodemais para fazer luto. As cicatrizes não doem, as carnes estão mortas,ponto inal. As lágrimas apareceram depois, na casa de Dora, quando,graçasaelaeaolarqueelamepropunha,avidavoltouemmim.“Nãoseesqueçadequeseuespíritoémoldadopelasexperiênciasmais

banais. Dizer que um fato é banal é dizer que ele é dos que maisconcorrerampara a formaçãodas ideias essenciais.” 18 Quando os pais deGabrielle desapareceram em 1943, a menina foi colocada no que sechamava de “depósito de crianças de Denfert-Rochereau”. Algum tempodepois, em agosto de 1945, ela foi enviada para uma fazenda doMorvancom outras crianças da Assistência. “Uma camponesa chegou...”, o diretordaagênciadisse: “Podeescolher,háquatromeninoseumamenina.” 19 Nocomeço do ano escolar, vestida com o avental quadriculado de azul ebrancodascriançasdaAssistência,umamenininhaseaproximadelaediz:“Nãobrinquecomela,elaédaAssistência.”O que dá poder traumatizante a uma rejeição banal é seu signi icado,

não é o ato.Rejeitar uma criançaporque suablusa é azul e brancapodeirritaroudivertir.Mas,quandoascoresdablusaqueremdizer“Vocêvalemenosdoquenósporquenãotemfamília”,arejeiçãotorna-sepesadadesentido.Asroupassãoportadorasdeumsigni icadoquevemdenossahistória.

QuandoAmélie,educadaemumafamíliamuitoreligiosa,sofreuincesto,elaerapequenademaisparaentenderoquelheerain ligido.Mastinhaumavaga consciência de algo esmagador. Quando, com 14 anos, ouviupronunciar a palavra “incesto”, não fez a reaproximação com o que

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acontecia na casa dela. Só aos 18 anos, em plena consciência, eladesmoronou.Mulherfeita,elaexplica:“Quandovistoroupadeesporte, icocon iante.Quandomevistodemulher,sinto-meemperigo.” 20Operigonãovemdasroupas,masdoqueelasevocamnamemória:vestir-sedemulheréprovocarumdesejoquelevaàtransgressão.Nossas roupas são carregadas de um signi icado que vem de nossa

história. A blusa da infâmia para uma criança da Assistência quer dizer:“Valhomenosdoqueosoutros.”Ossapatosdesaltoaltosãoangustiantesporque anunciam a possibilidade de uma transgressão sexual. Nossamemória atribui aos objetos e aos acontecimentos presentes umaconotaçãodeangústiaoudeprazervindadenossopassado.Compreendo muito bem a reação de Jean, jovem sobrevivente de

Auschwitz. Ao voltar para casa, fantasma de pele e osso, arrastandoconsigo séculos de memória, ele conta: “Minha mãe me preparou umacamanormalcomcolchão,cobertasetravesseiros.Claroquenãosuporteifisicamenteamaciezdaqueleleitoemedeiteinochão.”21Opesodamemóriacoloreopresente.Quandosesaideumaangústiade

vários anos, não se pode dar saltos de alegria imediatamente. É precisotempoparareaprenderadeixarvirafelicidade.Desde os 2 anos de idade, eu não conheci senão rupturas,

dilaceramentoseameaças.Longosperíodosdeamnésiacorresponderamamomentosdevidaparalisadaem tornodemim.Adepressãoprováveldaminhamãe,osisolamentossensoriais,aausênciadeestímulosnãopunhamnadanamemória!Depois da guerra, as trocas incessantes de lugar, as mudanças de

instituições impediamateceduradeumvínculo.Todoprincípiodeeloeralogodesfeitoquandoeuiaparaoutrainstituiçãoanônima.Umacascatadecolocações em lugares que eu não conhecia, junto de pessoas de que euesqueciatudo,impediaqualquerrepresentaçãocoerente.Nãoseiporquê, fuipararemOloron-Sainte-Marie.Lembro-medeuma

costa bem íngreme que levava a não sei onde: um pensionato? Umorfanato?Umacolôniade férias?Algumas lembrançasde felicidadenessaincoerência, um bonito terraço com vista para o vale, algumas alegrestransgressões quando fumávamos talos de urze, que nos faziam passarmal, e sobretudo uma noite em que aprendemos “Tout va très bienMadamelamarquise”.*Amúsica,gesticulada,mepermitiradescobrirmeutalento de palhaço. É muito sério o papel de palhaço, nós nos sentimos

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reviver,somosaplaudidos,amados,avidaretornadocemente.NãoseiporquefuipararemTarnos,emHossegor,emSaint-Jean-Royan

e em outras instituições onde iquei não sei quanto tempo com não seiquem.Uma lembrança absurda em Hossegor: um “inspetor” chama um

“educador”22 para lhedizer que recebeuum cupomqueme autoriza a irbuscarroupasemParis.Nóstomamosotrem,umalongaviagemsilenciosa,pois o educador se entediava comigo e eu com ele. Chegamos perto daBastilha, subimos uma escada bem no meio de uma rua, o educadorentregou meu cupom, e eu recebi um suéter sem mangas, de listrasmarrons e verdes, bem feio. Retomamos o trem para um longo retornosilencioso.Muitos momentos felizes no meio das outras crianças. Construir uma

cabana,brincardeatirarfacas,serdesignadodepoisdeumarefeiçãoparaotrabalhodelimparamesaeassimpoderrecolherumastantasmigalhassuplementaresparacomer.Nossas relações com os adultos se reduziam à autoridade e à

humilhação.Umeducadordormiaconoscono imensodormitório,masseu“quarto” era simplesmente cercado por uma divisória de panos verticais.Uma noite, um deles me chamou e me mandou mergulhar a cabeça nabaciaondeele lavavaospés.Eu iz?Por sorte, outroeducadorentrouno“quarto”etevetempodelhedizerpalavrasqueofizerammudardeideia.Outro educador temia por sua autoridade. Nós devíamos marchar a

passonograndeespaçoentreosedi ícios.Paranãosedaraotrabalhodenosdirigirapalavra,Moric,eraesteseunome,contentava-secomestalaralínguaparainformarquedevíamosdaralargada,todosaomesmotempo,com o pé esquerdo. Nunca odiei os alemães, temia os milicianos, masnaquelediadecidiquedevia icar fortea imdematarMoric.Aliás,outrodia, em um vilarejo da Provence onde eu passeava, vi a placa de umisioterapeuta que trazia esse nome gravado. Por pouco não toquei acampainha.Ofatodeosalemãesquereremminhamortemepareciamenosgravedo

que o desprezo de Moric. Além do mais, desde o inal da guerra, elestinhammudado inacreditavelmente.Nas fazendasondeeramprisioneirosdeguerra,jánãousavamuniforme.Trabalhavamfrequentementedepeitonu e interpelavam-nos com gentileza. Tão logo tinham sido vencidos, ossoldados alemães se reumanizaram. O uniforme os havia robotizado.

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Acalmava-meveragentilezadaquelesprisioneirosdeguerra.Creioquejátinha compreendidoqueaqueleshomens tinhamsidopossuídosporumain luência malé ica. Hoje eu diria “alienados por sua submissão a umaideologia,pervertidosporsuascrenças”.Minha memória não é uma bagunça quando representa os anos da

guerra, mas se torna confusa assim que a paz retorna. Paradoxalmente,fugir dos perseguidores me fornecia uma linha de conduta, um objetivoporrealizar.E,sobretudo,aestratégiadesobrevivênciacategorizavameumundo com uma distinção evidente entre bondosos e malvados. Tinhaorgulhodetermeevadidoeterconseguidoescapardeumexércitointeiroquequeriaminhapele.Essemundoeraclaroparamim.Eumesentiaemcon iança junto dos bondosos com quem eu falava despreocupadamente.Eleseramalegres,calorosos,benevolenteseperdoavamminhasbesteirasde criança.Eupassavadeumbondosoaoutro ao sabordos avançosdastropasalemães,massemprejuntodeles,eeutinhaasensaçãodeafetuosasegurança. Esses adultos compunham para mim uma igura de vínculotranquilizador.Mesmoquando eu tinha repentinamente de partir à noiteemumacaminhonete,escondidoatrásdesacosdebatataparaatravessarabarreira,haviasempreumadultobenevolentequemefalavasorrindo.Não eramuito angustiante, era até divertido, e, ao chegarmos ao novo

esconderijo, compartilhávamos, os adultos e eu, a euforia da vitória. Osmalvados tinham sido enganados! Eu me ligava a meus cúmplicesdesconhecidos. Durante a guerra, houve algumas breves angústias emuitasalegrias!Tiveumasensaçãode libertaçãoquandovipessoaspularemdealegria

depois de Hiroshima, quando a bonita enfermeira me levou para ver asbailarinas nuas no Grande Teatro de Bordeaux e quando acompanheiPierre Saint-Picq, um amigo deMargot, tenente da FFI, durante o ataquede Bègles. Quando o carro dos resistentes entrou no vilarejo, ainda seouviramtiros,masbastouSaint-PicqsairdocarrocomsuabraçadeiradaFFI e a arma em punho para que o silêncio se impusesse. O inimigoinvisível fugira, os resistentes cercaram meu grande amigo. Foimaravilhoso. Todos aqueles bondosos traziam a paz e a liberdade. Aguerraacabara,elesvoltaramparacasa,nóséramososvencedores.Minhamemóriaeraclaraantesdaguerra,quandoeunãotinha3anos.

Ganhou furos durante a guerra, quando eu não tinha nada para pôr namemória.Tornou-secaóticaeincoerentedepoisdaguerra,duranteosdois

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anos emque os juízesmepuseram alternadamente na casa deDora, emParis,enadeMargot,emBordeaux.Eeufuicolocadopelomenoscincoouseis vezes em instituições anônimas onde não havia malvados nembondosos.Nada.Não sofri a perda de meus pais porque no momento em que eles

desapareceram eu era pequeno demais para ter acesso à noção dairreversibilidade da morte. Além disso, eles não estavammortos, tinhamdesaparecido,e tivedeouvira revelação,embaixodamesa,pelasenhoraFarges, para entender que eles nunca mais voltariam. O fato de não tersofrido amortedelesnãoquerdizerque a separaçãonão tenhadeixadotraçosnaminhamemória.Naqueleestágiodomeudesenvolvimento,eujáadquirira alguns fatores de proteção: antes da de lagração da guerra, apresença daminhamãeme dera autocon iança. Ademais, diziam que euera falante como um papagaio. Portanto, eu sabia mentalizar ecompartilhar as palavras que fazem os mundos íntimos se encontrarem.Outro fator de proteção me foi oferecido durante a guerra por todosaqueles justos desconhecidos, cujo conjunto compôs para mim umsubstituto afetivo tranquilizador. Eume sentiabem juntodeles. E, depois,nóstínhamosganhadoaguerra!Setivesseperdidomeuspaisantesdecompletar2anos,teriaadquirido

gravefatordevulnerabilidade.Nãoteriatidoàminhadisposiçãoapalavra,esse instrumento de regulação afetiva. Teria sido submetido às minhasemoções, não teria podido governar minhas relações, não teria podidosuportarasprovaçõesqueseseguiram.Osperíodosdeisolamentonãopermitemalembrança.Quandoomundo

estávazio,oquevocêquerpôrnamemória?Masamarcadaperdadeixaum traçona representaçãode si. E, quando, em seguida, sobrevémoutraseparação,eladespertaaquelamemóriasemlembranças.As separações são inevitáveis no curso da existência, são até bené icas

quando preparam para a autonomia. Mas, quando uma perda precocesobrevém antes da idade da palavra, impregna namemória uma aptidãopara sofrer sentimento de perda, e a menor separação posterior podedesencadear uma depressão. Um simples afastamento da pessoa que dásegurançatorna-sedoloroso“paraacriançafragilizadaporumaseparaçãoantiga durante a infância”. 23 Mesmo uma perda simbólica basta paradespertaramarcaadquiridaprecocemente:ofracassoemumexame,umencontrofrustrado,umrompimentoamoroso.Osqueforamprecocemente

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tranquilizados sentem essas perdas como um sofrimento, mas muitodepressaprocuramcompensarcomumnovoprojeto.Aocontrário,osqueforam isolados precocemente, antes da idade da palavra, por teremadquirido uma vulnerabilidade emocional, sentem os inevitáveiscontratemposcomoumaperdairremediável.A vulnerabilidade precocemente adquirida explica as curiosas

estratégias de ligação das crianças abandonadas. Em um primeiromomento, protestam e choram indignadas por terem sido privadas daligaçãoquelhesédevida.E,quandoodesencorajamentoseinstala,sentema privação como um vazio onde não adianta chamar por ninguém.Enquanto têm força para esperar, basta que um substituto afetivo seapresente para que se precipitem e se agarrem a ele. A hiperligaçãoansiosa não é diferenciada. Essas crianças procuram se ligar a qualquerpessoaquepasseaoseualcance.Ligam-seaqualqueradultocomoquemse afoga e se agarra a qualquer coisa que lutue. Isso salva a criança,evidentemente,masopreçodetaldesenvolvimentoéelevado.Umacriançaque foi tranquilizada antes orienta-se para iguras de vínculo que lheconvêm.Elaseaproxima,sorrie falacomoadulto.Aocontrário,acriançaqueadquiriuumavulnerabilidadeefetivaorienta-separaqualqueradulto,aindaqueelenãolhesorria,aindaqueelearejeite.Ficapertodeleporquetem necessidade, ainda que o adulto a repila. A criança sente-semelhor,mas, tendo perdido a autonomia, aceita viver com alguém que não seinteressa por ela. Ao se tornar adulta, dará uma forma verbal aosentimento impregnado em sua infância e dirá: “Veja de onde eu venho,como querer que alguémme ame? Veja quem sou, eu lhe agradeço porquerer que eu ique perto de você. Obrigada por ter se casado comigo.”Assim, existemcriançasou jovensque se ligamdesesperadamenteapaisou cônjuges que os fazem infelizes. Esse estilo relacional organiza umdesenvolvimento di ícil que pode levá-los à depressão. Na adolescência,quandoéprecisotornar-seautônomo,nãotêmsu icientecon iançaemsiepreferempermanecer juntodequemasnegligenciaoumaltrata,atéodiaemqueosconstrangimentosrepetidoseasfrustraçõescotidianasacabamprovocandoumadepressão.Em uma população de crianças cujo vínculo foi indiferenciado,

constatam-se, na adolescência, quatro vezes mais depressões do que napopulação geral.24 E, quando a precariedade social exacerba avulnerabilidadeacumulandoasfrustraçõeseostraumas,68%dosadultos

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mal socializados, após terem sido crianças afetivamente vulnerabilizadas,têmdepressão.25Portanto,nãosepodedizerque“umfracassoescolarouumarupturade

noivadoprovocadepressão”.Maspode-seexplicarque,quandooindivíduoadquiriu vulnerabilidade afetiva por causa de perdas precoces semsubstitutotranquilizador,umaperdaposterior,realousimbólica,teráforteprobabilidadededesencadeardepressão.Quando a perda precoce sobrevém durante um período sensível do

desenvolvimentoeomeionãooferecenenhumsubstitutoafetivo,acriançase vê em uma situação de isolamento sensorial onde nada é estimulado,nem seu cérebro, nem suamemória, nem suahistória. E, se o isolamentodura muito tempo, o cérebro se resseca, a memória se apaga, apersonalidadejánãopodesedesenvolver.Nessecaso,aresiliênciatorna-sedifícil.

Aquisiçãodeumavulnerabilidade

O que não quer dizer que uma perda precoce provoque estragosinexoráveis. Com muita frequência, uma criança ferida encontra umsubstituto familiar que sente prazer em cuidar dela. Nesse caso, avulnerabilidade afetiva da criança, sua di iculdade de suportar umaseparação,suahiperligaçãoprovocamumaestabilidadeafetivaquefacilitaos outros desenvolvimentos: boa aluna, atenta, um pouco séria demais,todomundo a louva sem saber que sua vulnerabilidade à separação é oqueprovocaosprogressoseorelacionamentoagradável.Seráquemanifesteiessetipodeligação,jáque,duranteaguerra,eume

aproximava de qualquer adulto tranquilizador e contava a ele ummontede histórias? A ladainha dos Justos que me cercaram naquele contextoperigosocompôsparamimumabasedesegurança.Contudo,nãotecicomeles elos profundos, pois eu devia rapidamente deixá-los, e esqueci seusnomes e seus rostos. Eles deixaram uma marca em mim. Eu sabia queaquelas pessoas eram admiráveis eme sentia confortável com elas.Mas,vistoquenãoerammeuspais,nãomevinhaodesejodemeidentificarcomelas. Quando as circunstâncias me propunham outra base de segurança,emoutrolugar,eumeligavaaelacomindiferença.A adaptação me salvou durante a guerra e provavelmente me fez

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recuperar o gosto de viver. Quando a paz voltou e eu encontrei osfrangalhosdaminhafamília,senti-meabandonado,poisesperavadelesumverdadeironichoafetivo,rasgadopelosjuízesacadanovacolocação.Os sentimentos que experimentamos são provocados por

representações, no sentido teatral do termo. Durante a guerra, osmalvadosmeacossavameosbondososquemecercavammeajudavamapassar a perna nos alemães. Tais representações são compostas defragmentosdeverdadearranjadosparaencenaro espetáculodoquemeacontecia.Eunãomentia:descreviasimplesmenteaquimerademim.Recentemente, eu me perguntei se esse teatro de mim, essa

representação íntima que não tive a possibilidade de compartilhar,correspondia à verdade dos fatos. Deveria retornar aos lugares paraveri icar? Deveria descobrir testemunhas que tivessem compartilhadocomigoomesmoacontecimento?Nuncativecoragemdetentaraveri icação,comosetemessefazervoltar

o passado. A reação prova que o sofrimento pós-traumático não estavadistante. Não era repressão o que provocava amnésia no pontoprecisamentemais sensíveldaminhamemória.Eupensava todoo temponaguerra,masparalisavaaemoçãoassociadaàsuarepresentação.Tudooqueeupercebia emmeu contexto adquiria sentido em referência aoquemeacontecera.Eumesentiapróximodosvietnamitasedosargelinosquelutavam...contraoexércitofrancês,odomeupaís.Eumeidenti icavacomos escravos negros e teria gostado de participar da sua libertação.Compreendia que se luta contra um exército para salvar a próprialiberdade, e gostaria que o exército demeupaís não se parecesse comoexércitodeocupaçãoalemãoqueeuconhecera.Lembro-medetudocomprecisão,masqueriaacreditarquenãoestava

traumatizado uma vez que estava vivo. Quando os adultos meperguntavamseeu tinhapesadelos, eumesentia forteao responderquenão,queeunãotinhaesseproblema.Euoevitava,simplesmente.Eufugiaparaadiante,refugiava-menaação,nodevaneio,nocontatomuitobom,noluxodepalavrasqueserviamparamascararoqueeraprecisonãodizer.Não teria suportado o retorno da emoção, teria sucumbido sob aincredulidadee a incompreensãodaspessoas. “Anegaçãoéumprocessoque não me parece ser raro nem perigoso na vida psíquica de umacriança.”26 A negação protege do sofrimento traumático, mas altera alembrança, paralisando a emoção associada à representação do

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acontecimento. Ainda hoje tenho vontade de dizer que não sofri com aguerra,mas sou obrigado ame perguntar se é de fato normal andar emvoltadeumamesa,durantehoras,emumasalavazia,ou icaranestesiadoemsituaçõesnasquaisserialógicoentrarempânico.Com a idade e o recuo do tempo, recuperei um pouco de força, tive

vontadedeverificar.Nãopodiavoltaraoslugaressimplesmentepararevê-los,issodespertariaostraçosdopassado.Euprecisavadeumaaposta,deumprojetoparametamorfosear a emoçãoprovocadapela percepçãodoslugares. Decidi, pois, fazer uma investigação para veri icar se arepresentaçãodemeupassadocorrespondiaaosfatos.Aintençãomodi icaomodocomopercebemososfatos.Eumelembrode

uma experiência na qual observávamos as expressões de uma pessoadiantedaqualdes ilavamparticipantesquedeviamexpressarpormímicaatristeza,aalegriaouaagitaçãodesordenada.Quandoumparticipantederosto tristepassavadiantedapessoa, seu rosto imóvel parecia fascinado.Quando um participante alegre atravessava a sala, a pessoa sorriaerguendo as sobrancelhas. Quando o agitado surgia pulando e soltandogrunhidos,ela franziaassobrancelhasetorciaabocacomumar irritado.Foi quando dissemos:27 “Este agitado tomou anfetaminas.”Instantaneamente, asmímicasmudaram, expressando umamudança nasemoções. A pessoa observada ergueu as sobrancelhas e torceu a boca,balançandoacabeçacomarcondescendente.Obtínhamosaprovadequeumasimples injunçãoverbal,aoremanejarasrepresentações,modi icavaamaneiradeperceberosfatos.

Embuscadopassado

Ainjunçãoverbalmeveiodeumamigo,28umdomingoemBordeaux.Comoa reunião terminara por volta de 12 horas,meu avião decolava só às 19horaseeutinhavagamentecontadoaeleque,duranteaguerra,estiveraemumafazendaemPondaurat,elemedisse:“Eujátoqueiembailesnestacidade,nãoélonge,vamosatélá?”Evidentemente, eu não reconheci nada. Entretanto, naminhamemória

tudo estava claro. Eume lembrava dasmesas coletivas de trabalhadoresagrícolas na peça separada do estábulo onde, à noite, se abrigavam oscarneiros.Tenhoumamemóriaprecisadopoçoonde eu ia tirar água, do

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seu rebordo e de sua grande roldana. Lembro-me do celeiro demadeiraescura,comseusraiosdeluzentreaspranchas.Nãoencontreinadadissoao chegar aovilarejo, onde sóhaviabonitas casinhas loridas.Meuamigoteve por mim uma intrepidez que nunca teria por si próprio. Saiuperguntandoatodosospassantes,atéomomentoemqueumsenhoridosonosindicouafazendadarendeira.Foionome“Marguerite”edesua ilha“Odette,aCorcunda”queorientaramaindicaçãodomorador.Quando eu disse à moça que estava perto dele que meu trabalho

consistiaemtiraráguademanhãetrazerdevoltaoscarneirosànoite,eladisse: “Você deve estar enganado, nunca houve carneiro aqui.” Foi entãoqueosenhoridosoesclareceu:“Houve,sim,criamoscarneirosaté1956,sódepoiséquepassamosparaasvacas.”Eutinhaminhaprova!Encontramosa fazenda, conversamos com a nova proprietária, que a reformaracaprichosamente, como fazemoscitadinosquandocompramumacasadecampo.Opoço, tãoclaronaminhamemória,estavaatrásdacasa,emboraeuovisseclaramenteemfrentedaescadaria.Oceleirodemadeiraescuraera imenso naminhamemória e não podia corresponder àquele que euestavavendo.Masaproprietária explicou: “Meumaridoo achavagrandedemais,achavaqueescondiaacasa,entãomandoureduziraaltura.”Reviaponteeoressaltodepedradeondeeucaínaágua,etiveumasensaçãodefamiliaridadeaoverapraçadovilarejo,ondeosmeninoscochichavamolhandoenviesadamenteparamim:“Osjudeusnuncadizemobrigado.”Foi tudo: alguns indícios alimentavam minha representação com

imagensclaras,masnãocongruentescomascoisas.Asúnicasreferênciascon iáveisforamosnomes“Marguerite,arendeira”e“Odete,aCorcunda”,cujosimplesenunciadopermitiuencontrarafazenda.Asimagensdeontemgravadasnaminhamemóriajánãocorrespondiam

àscoisasdehoje.Opoço,oceleiroeacasaconstruíamnaminhamemóriaoutrarepresentação,outraevidênciaparamim.Entãomepergunteiseaspalavrasànossavolta,asqueouvimosnavida

cotidiana quando são ditas por nossa família, nossos amigos e nossacultura, não teriam um efeito indutor de memória. Quando penso nosdeslocamentos incessantesdepoisdaminhaevasão,revejoacaminhonetepseudoambulância, o caldeirão na cozinha da cantina, a cabeça da freiraquepassapelaportaentreabertaeserecusaaabri-la,asrefeiçõesalegresna casa de Margot, a austera gentileza do diretor da escola de Castillon,meus furtos de uva-moscatel e um emaranhado de imagens felizes e

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infelizes,eumepergunto:“Seeutivesseouvidooutraspalavras,teriapostoasmesmas imagens naminhamemória?” Se tivesse conhecido a palavra“acossado”, teria tido o mesmo sentimento ao desenrolar o ilme dessesacontecimentos? Não a conhecendo, era o assombro o que conotava acaminhonete,ocaldeirão,afreiraeauvaroubada.Seapalavra“acossado”tivesseevocadoemmima representaçãodeumanimal caçadoe cercadopara ser morto, o assombro não teria conotado a avalanche deacontecimentos,eumsentimentodepânicoéqueteriasidosugerido.Arepresentaçãodo traumaseria in luenciadapelamaneirade falar?O

simplesfatodepronunciarumapalavraorientaarecordaçãodeimagensefatos.Dois psicólogos americanos passaram um ilme no qual se viam dois

carroscolidirem.29Parafazerapergunta,elesescolheramaspalavras:“Nasuaopinião,emquevelocidadeandavamoscarrosquandosechocaram?”Os que assistiram ao ilme avaliaram que os carros estavam a 140quilômetrosporhora.Depois eles mostraram o mesmo ilme a outros espectadores

formulando a pergunta de maneira diferente: “Na sua opinião, em quevelocidadeandavamoscarrosquandobateram?”Avelocidadedoscarrosfoientãoestimadaem90quilômetrosporhora,porqueapalavra “bater”evocavamenosviolênciadoqueapalavra“chocar”.A maneira como eu ouvia contarem perto de mim o que tinha me

acontecido provocava sentimentos diferentes. Em Castillon, ouvi adultosdizeremameurespeito:“Estemeninoviuhorrores.”Oqueeutinhavisto,portanto, eram horrores. O real representado por aquelas palavras era,pois,aterrador,eteriamedadorazõesparasofrer.Maseutambémouvioutraspalavrasepusnamemóriaoutrasimagens.

Os inspetores queme prenderamde noite, com seus revólveres e óculosescuros, eu os achei ridículos. A enfermeira que me ajudara durante aevasão, eu a achei bonita e sorridente. Os Justos que se alternaramparame esconder durante muitos meses não falavam de horror nem deheroísmo, faziam tranquilamente seu trabalho cotidiano. Por que querer,emtalcontexto,queosacontecimentostivessemconotaçãodehorror?O abatimento surgiu com a paz, quando os adultos encarregados de

cuidar das crianças sem família não se davam ao trabalho de falar comelas. Ou quando, apiedados, diziam: “Coitado, ele não tem família.” Ouquando eu surpreendia a frase: “Ele inventa histórias.” Ou quando uma

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assistente social encarregada de examinar meu dossiê começou a rirquandoeu lhedissequequeria sermédico.Ouquandoum funcionário aquem eu explicava que meu pai se inscrevera na Legião Estrangeiraafirmou:“ComumnomedessesnãopodetermorridopelaFrança.”Todas as palavras àminha volta, as pequenas frases e os estereótipos,

constituíamumambienteverbalapartirdoqualeuconotavaefetivamenteo que me acontecera: vergonha ou orgulho, desespero ou alegria,sentimentosopostosquesejuntavamaumamesmalembrançasegundoamaneiracomomeuspróximosmefalavam.NacasadeDora,nãosefalavadisso.Sócontavamaspalavrasdaalegria:

“dança”, “meias de náilon”, “Lucky Strike”, e “colegas”. Nada de guerra,nada de horrores, algumas evocações de prazeres imediatos. Nossacultura,nosanosdopós-guerra,não tinha su icientedistanciamentoparaentenderqueanegaçãoprotetorainstalavananossaalmaumabombadeefeitoretardado.Leveimaisdecinquentaanosatéousarvoltaràsinagoga.Muitasvezes

andarapelobairroda rueLabirat, vá saberporquê, sem jamaispegar aruaquelevavaaela.Foiumaamigaquemefezir:“Éaquidolado”,elamedisse,“vamosdarumpulolá,conheçoorabino.”Faziasol,oarestavaleve,acompanhiaeraagradável,eupodiaportantoiratélásemsentirumpesonopeito.Asinagogaerabonita,gosteidevê-la.Orabinonosrecebeucomoirmão.

O ambiente amistoso e os rostos sorridentes nos permitiram abordar oproblemasemrodeios:“Éaprimeiravezquevoltaaqui?”Primeirasurpresa:a sinagogaébranca,enquantonaminha lembrança

eu vejomuito vermelho.O tabernáculo é vermelho e, naminhamemória,um homem abre a porta dele e tira de lá os rolos da Lei. Curioso?Profanação?Falsas lembranças?Eume lembrodovermelhodoaltaredovermelhodas cadeiras ao longodas paredes, à esquerda de quementra.Hojeasparedessãobrancaseascadeiras,demadeira.Eucontoaorabinoque, na entrada, havia duas pequenas mesas para a seleção. Umacondenavaàmorte,aoutraautorizavaaviver,masnósnãosabíamosqualeraprecisoescolher.Conteiaelequeéramosacordados,ànoite,paraumcafé obrigatório, que devíamos ir buscar entre dois rolos de aramefarpado.O irmão do rabinomemostra emuma coluna, junto do capitel de uma

pilastradovestíbulo,umamarcanapedra,umburacoprovocadopor tiro

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de fuzil. “Você se lembra,não?”Eunãome lembro.De repentemeveioalembrança de uma redação que eu tinha feito no ginásio, alguns anosdepoisdaguerra.Conteiqueumacriança,presaduranteaguerra,assistiua uma fuzilaria dentro de um templo. Se tivesse escrito minhaautobiogra ia aos 13 anos, teria certamente descrito esse acontecimentoimpressionante. Sessenta anos depois, a lembrança apagada da minhamemóriajánãocontaasmesmascenas.Quando me deram o pequeno livroLa Synagogue de Bordeaux,30 pude

verumquadrode JeanLubinVauzelle datadode1812, noqual o artistapintouovermelhodastapeçariasacimadotabernáculoecadeirascontraaparede,àesquerdadequementra.VejotambémoutrapinturadeAugusteBordes(decididamente),de1845,quecon irmaaexistênciadetapeçariaseadisposição longitudinaldoaltar.Nochão, reconheçoosmosaicose,nadireçãodoteto,colunatasdeinspiraçãomourisca.Certos pontos da minha memória são, logo, mais con iáveis do que os

testemunhosdehoje,umavezqueospintoresdoséculoXIXmedãorazão.Mas a fuzilaria que, hoje, já não faz parte das minhas recordaçõesestruturou meus relatos quando eu era criança. Apaguei a cena sob apressãodaincredulidadedosmeuspróximos?Nós nos dirigimos agora para o local da minha sobrevivência: os

banheiros! Reconheço o pequeno corredor que leva a eles, revejo ajanelinha alta demais para se evadir e... decepção... o Z desenhado pelastábuas dentro das portas já não existe. Passei anos revendo aquele Z nomeuteatroíntimoeestouquaseinquietoporjánãoencontrá-lo.Perguntoao rabino e aos amigos que me acompanham: “Re izeram as portas?” Oirmão diz: “Acho que foram refeitas.” Ele não parece convencido. E eupenso no risco de não me acreditarem, pois é a reação habitual. TeriagostadotantodequeoZdasportascon irmasseminhatécnicadeevasão!Sorriem à minha volta, mas eu percebo que eles também estãodecepcionados.Oquemepreocupaéaescadariadasinagoga.Revejonaminhamemória

aportatodaabertaeosoliluminandoointerior.OscarrosdesapareceramlevandoosprisioneirosparaaestaçãoSaint-Jean.Estousozinhonoaltodosdegrausevejoembaixoaenfermeiraquemefazsinalparacorrerparaoveículo perto dela. Na minha lembrança, isso não é discutível, eu desçocorrendoosdegrausemdireçãoàambulância.Ora,naescadarianãovejosenão três degraus cobertos de musgo! E, depois, como eu poderia ter

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mergulhadonacaminhoneteseopátiodasinagogaéinteiramentecercadoporumafortegradetrabalhada?Contudo, eu me vejo descendo rápido os degraus na direção da

ambulância, eu me vejo mergulhando sob o colchão que alguémsuspendeu,lembro-medeteremmedito:“Nãosemexa,nãorespiremuitoalto.”Seiquemedisseramisso,masnãoouço.Talvezestivessesemfôlegoportercorrido.Na minha memória, desço uma escadaria tão grande quanto a do

Encouraçado Potemkin . Na realidade, só vejo três degraus cobertos demusgo! Na minha memória, escalo o Z das pranchas da porta dosbanheiros.Na realidade, ele não existe!Naminhamemória, corro para aambulância estacionada embaixo da escada, ao longo da calçada. Narealidade, uma grossa grade fecha o espaço diante da sinagoga! Minhaslembrançassãofalsas?Os arquivos, contudo, con irmamminha prisão. Vi meu nome em uma

ordemdeprisãoemmassacuriosamentedatada:“Listade ilhosdejudeuspresosdenoite,entre1º-e16dejulhode1942.” 31Dasquarentacrianças,amaisnova, Jacqueline, tinha1ano.Minhamãe,presanodia18de julhode1942,provavelmentemeentregouàAssistênciapúblicanavéspera.Eunãofuipresonessadata.Enquantoorealconfunde,minhamemóriapermanececlara.Comefeito,

houveobrasnasinagoga,repintaramasparedesere izeramosbanheiros.Comefeito,umacaminhonetepodiaestacionaraolongodacalçada,poissepode ver emuma fotogra iade antesda guerraquehaviaumagradenomeiodoadroquedeixava livreas laterais. 32Ufa!Tivemedodequevocêsnãomeacreditassem.MasaescadariadoEncouraçadoPotemkinnãopodiaexistir.Contudo,eu

lhes garanto que desci correndo, eu lhes garanto. Esqueci a emoção quesenti no momento em que corri para a enfermeira. Provavelmentecorrespondeuàemoçãoprovocadapela imagemdaescadaria imensaquevi,depois,no ilmedeEisenstein:emumcarrinhoquerolaaescadaria,umbebê sozinho vai morrer estatelado embaixo dos degraus. Condensei asduas lembranças em uma só. Esqueci a fonte dessa memória, mas nãoesqueci a forma imaginada que a escadaria doPotemkin dera à minhaemoção.Era, pois, verdade paramim,mesmo que as fontes deminhamemória

fossemdiferentes.Narealidade,descitrêsdegraus,masnarepresentação

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dorealeraaescadariadoEncouraçadoPotemkin.A palavra “representação” é a que verdadeiramente convém. As

lembrançasnãofazemvoltaroreal:dispõemospedaçosdeverdadeparacom eles fazer uma representação no nosso teatro íntimo. O ilme queprojetamos nomundo psíquico é resultado de nossa história e de nossasrelações. Quando somos felizes, vamos buscar na memória algunsfragmentos de verdade que reunimos para dar coerência ao bem-estarque sentimos. Em caso de infelicidade, buscaremos outros pedaços deverdadequedarãoporsuavezoutracoerênciaaonossosofrimento.Em todos os casos, será verdade, como são verdadeiras as quimeras,

monstrosimagináriosnosquaistodososelementossãoverdadeiros.Namemóriadesi,averdadedascoisaséparcial:nãonoslembramosde

quase nada dos bilhões e bilhões de informações que todos os dias nospenetram.Depois,fazemosumarepresentaçãocomessesquasenadasquedão uma forma imaginada ao que sentimos. É nesse teatro íntimo querespondemos aplaudindo, chorando ou com indignação, ainda queignorandoostraçosnãoconscienteseaslembrançasimpedidaspornossasdefesas.

Aguerraacabou

Tenho uma clara consciência da libertação de Castillon, mas, perseguidopelaconfrontaçãoentreminhalembrançaeorealdeminhaevasão,decidiretornaraessapequenacidade.NaocasiãodaentregadamedalhadosJustosaMargot,eurepararaem

umhomemidoso,eretoeaindabonitocujagravidademeintrigava.Fomosapresentados:“Sr.Lafaye,odiretordaescolaqueabrigouvocêao inaldaguerra.”Nós conversamosbrevemente.Oquemais queremque eudiga?Trocamosnossosendereçoseprometemosnosrever.Elevoltouparacasaemorreu.Soubequetinhaficadofelizcomnossoencontro.Perto dele, durante a cerimônia dos Justos, uma mulher chorava

sorrindo.Erasua ilha,asenhoraSabatié.Lembro-meclaramentedeumamenina que às vezes levávamos eu e o meu companheiro para roubarmoscatel.Elanãotinhanenhumalembrançademim,nemdomoscatel,masouvirafalardomeninoqueopaiesconderanaescoladeCastillon,bemnomeiodoexércitoalemão.

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NadareconhecideCastillon.Otempoestavafresco,nósconversávamos,passandoporumaruazinha,quandoasenhoraVillechenouxdisse:“Olheaía escola!” Uma bela casa de paredes brancas, com vista para as colinas.Nadadoqueeuestavavendoalicorrespondiaàminhamemória.Aofundo,adiante, logicamente havia o prado. Era lá que eu conversava comFrançoise,amoreninhadeolhosazuisedentesseparados.Maravilhosa!Ali onde eu estava vendo um jardim, havia mesas de madeira que os

soldadostinhampostoparafora,a imde icaraoarlivre.Elesmedirigiama palavra em alemão, ofereciam-me uma fruta, brincavam de me jogarparacima,oquemeassustavaumpoucomasnãoeranada,poiselesriam.Commeucompanheiroderapina,passeávamosentreeles,maravilhados

comosfuzis.Bemnoaltodacasahaviaumaespéciedeobservatório,umapequena torre envidraçada, onde um soldado montava guarda. Ele nosexpulsouapontapés.Eu lembro que, na estrada, algumas braçadas de palha formavam um

obstáculo. Havia uma metralhadora diante de dois soldados. Meucompanheiro e eu atravessávamos a barreira quando um soldado noschamou sorrindo. Ele nos fez compreender por sinais que queria nosmostrar alguma coisa. Pegou seu fuzil e atirou em um muro, fazendoexplodirumagrandepedra.Todomundoriu.Ébonitaaguerra!Algumas lembranças depois, vejo soldados descompostos andando em

desordem pela estrada. Não têm armas nem capacetes. Estão sujos, malbarbeados, os colarinhos estão abertos, largados. Ouço dizer quecometeram uma falta militar ao se reunirem na praça do vilarejo. Nascolinas, em toda a volta,membros da Resistência os bombardearam semdificuldade.QuandocontoessalembrançaaFrançoiseVillechenoux,elaprometeme

enviar os testemunhos de gente mais velha de Castillon que viveu operíodo, e leio: “Os resistentes tomaram posição em torno de Castillon,vindos das vertentes no alto da encosta de Castillon... Ausência decombates, aindaque alguns tiros tenhamsido trocados.” 33 Foi Jean Collin,chefe de um grupo de resistentes FTP comunistas associados aos FFIgaullistas,ePierreDruss,prefeitonaépoca,quehabilmentenegociaramarendiçãodosalemães.“Ocomandante...nãoeradosmaisfanáticos,nãoeraumhitlerista... porque já estavade s... cheioda guerra... e elesbatiamemretiradaemtodaparte.”34Minhaslembrançasadquiremsentidocomessestestemunhos.Pormuito

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tempo me perguntei por que os alemães não tinham me prendido umasegundavez.Eumelembrodeestardormindoumanoite,dormiaemumaespécie de leito de campanha, no corredor da escola, quando a luz medespertou. Atrás das lanternas, o iciais alemães, com quem o senhorLafaye falava em voz baixa. Eles foram embora, eu tornei a dormir. Hojecompreendo “o comandante... não era dos mais fanáticos, não era umhitlerista...porquejáestavades...cheiodaguerra...”.NodiaseguinteaodaLibertação,quandoviumresistentecomsuaarma

esuabraçadeira, falandocomummorador,aproximei-meeescutei: “Elescometeram um erro reunindo-se no centro, na praça do vilarejo, umexército deve sempre controlar as alturas.” Os alemães tinham sidoreunidos pelos resistentes naquela praça: “Eu vou à cidade e vejo,descendopelaavenidadaestação,soldadosdescompostoscaminhandoemdesordem.Osalemães[...]prisioneirossãolevadosparaopátiodaestação.A oposição de um chefe resistente impede que sejam executados.” 35 Esteresistentetambémimpediráqueseinsultemosprisioneiros.O resistente que falava com os moradores provavelmente acabara de

chegar após a rendição: “Imediatamente depois da Libertação, nos diasqueseseguiram,numerososmaquisforamparaCastillon[...],pensamosnomaqui Janlou, dirigido pelo chefe de grupo Baruthel, no de Loiseau,dirigidoporMoresée...”36Quando o resistente disse “Nós temos um morto e três feridos” e eu

deixei escapar “Só isso! Não é muito!”, tratava-se provavelmente de umcombate que ocorrera em um lugar que não era Castillon, pois aquelesresistentestinhamchegadonodiaseguinteaodaLibertação.Acrediteiquehouvesse uma oposição entre minha lembrança de combate e ostestemunhosdeausênciadeengajamentomilitar.Tratava-semaisumavezdeumacondensaçãodeduasfontes.Conheci os alemães,maravilhosos vencedoresdes ilandoemBordeaux.

Os cavalos, os tambores, a música e a ordem impecável davam umaimpressão de força e de beleza. Depois os conheci como ocupantescalorosos distribuindo balas, exibindo suas armas, sem quepe nemcinturão, de modo a dar impressão de simpatia, como exigia o contratoassinadocomogovernodeVichy.Conheci-osemseguidacomoocupantes,erguendo barreiras, veri icando documentos, prendendo inocentes,batendo com cassetetes em mulheres inofensivas. Descobria agora osalemães vencidos, esgotados, descompostos, submetendo-se às ordens de

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algunsgarotos.Osmesmoshomenstinhammudadode imagem,semparar.Escolhama

sua:ummúsico,umbomsujeito,umtorturadorouumvencido?Sejaqualforsuaimagem,elaseráverdadeira.Oshomenssãoestruturadospelaorganizaçãodeseusambientes.Nossa

principal liberdade consiste em procurar o ambiente onde possamos nosdesenvolversegundonossasesperançasouemmoldaroambientequevainosmodelar.Quandoestamospresosemumcontexto,eleseimpregnaemnósefazdenósoquesomos...naquelemomento.Assimquesetornaramvencidos,osalemãesvoltaramaserhumanos.Os

robôs super-homens se transformaram em bons sujeitos: “AWehrmachtfoiderrotada.Auschwitzestáquasevazio.OsguardasSSpartiramlevandocom eles algunsmilhares de deportados, cadáveres ambulantes que vãomorrerdurantea caminhadaalucinante.Algunsdeportadospermanecemnocampoesvaziado.Estamosnoblocodosbombeiroseachamosumpiano.EeudescubroqueHenriéumpianistadejazz,excelente.Aportaseabre.Umalemãoentra.Todososexércitosdomundoquandoperdemaguerraseparecem.Tiposesfarrapados,tiposamedrontados,tipossujos,tiposquefedem...Elenospedeumpedaçodepão.Deiaelemetadedeumpão...Eletinha sapatos, eram destroços. Ele, alemão, pediu a nós, deportados: ‘Eupoderia pegar um par?’ Dissemos a ele: ‘Pegue.’ O sujeito foi embora,estava feliz. Bateu nas minhas costas e disse (estou traduzindo): ‘Nãotenhamedo,Mensch,37amanhãosrussoschegam.’”Quando os alemães eram vencedores, eles tinham mentalidade de

super-homens, submetiam-se às ordens de seus chefes, legitimando seuscrimescomarecitaçãodealgunsslogansmoralizadores.Tãologovencidos,voltaramasertímidos,educados,respeitandoosrituaisquenospermitemviverjuntos.Germaine Tillion dá um testemunho dessa metamorfose quando conta

que, chegando a Ravensbrück, em um domingo de tarde, em outubro de1943,teve“arevelaçãobrutaldocampo,docárcere[...]edavivissecçãodemoças”.38Decidedefender-seeapoiarosferidos,comosempre izera.Paracompreender esse “outro mundo”, ela observa, escreve e organiza uma“resistência pelo riso”. Ao fazer suas anotações de etnóloga, nota que,quandoosguardasSSassumemsuas funções,mantêmoaspectohumanoporquatrodias.Noquintodia,desumanizam-seetornam-sebrutais,cruéisedesprovidosdeempatia.

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NaLibertação,algunsfranceses,agoravencedoresdepoisdeteremsidooprimidos, liberaram suas pulsões sádicas. O fenômeno dasmulheres decabeça raspada é o sintomamais visível. Os raspadores encontraramumpretextomoralizadora imdesecomprazeremhumilharasmulheresque,segundo eles, tinham praticado “colaboração horizontal”. Algumas erampobresmoças que se vendiam aqui e ali ao homem que se dispusesse apagar,alemãoou francês,pouco importava.Outrasmulheres,verdadeirascolaboradoras,nãoforamraspadasporquemoravamnosbairroschiques,ondeeramprotegidas.Amaioriadessasfrancesaserademulheresqueseapaixonaram por um alemão. Hoje, isso seria considerado uma prova deabertura, um fator de paz na Europa. Ontem, no contexto da guerra, osencontrossexuaisadquiriamosignificadodeumatraição.Amaioriadosfrancesesreagiucomdignidade.Quandoeuouviafalarde

ajuste de contas na Libertação, de falsos tribunais de depuração quefuzilavamvizinhos e às vezes até tomavam seus bens, os adultos quemecercavamfranziamocenhoediziam:“Nãohádequeseorgulhar.”Algunschegaram a se enfurecer e impediram que se humilhassem prisioneirosalemães.ElesnãoentraramparaahistóriadaLibertação.Nãosefazrelatodeumnãoacontecimento.A coerência depende também do que somos capazes de compreender.

Há alguns dias, eu conversava com uma pequena ilósofa de 7 anos cujairmãmaisvelhaacabaradefazer,naescola,umcursodeeducaçãosexuale havia falado dele em casa. Como a menina sabia que eu era médico,expressou-me sua raiva. O professor, segundo ela, dizia coisas absurdas!Quandoeumeespantei,apequena ilósofadoutamentemeexplicouqueoprofessor falara da sexualidade das plantas e, ora veja, “não existemargaridagrávida!”,indignava-se.Com7anos,a jovem ilósofacompreenderaperfeitamenteque,pornão

terpintinho,estavadestinada,quandofossegrande,asetornarmãe,oquelhe parecia ummaravilhoso destino. Mas, com essa idade, ela ainda nãotinhaarepresentaçãodoatosexual,queelaconheciavagamenteequelheparecia “muito bobo”. Nesse estágio de seu desenvolvimento, ainda nãoadquiriraosconhecimentosquelhepermitiriamfazerarepresentaçãodapenetraçãosexualemenosaindadozigue-zaguedosespermatozoidesnatrompauterinaantesdeentrarnoóvulo.Paraela,abelezadasexualidadeconsiste em encontrar um príncipe encantado e depois carregar umacriança na barriga, e não fusionar gametas. Nessas condições, há que

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admitirqueoprofessordizia absurdos.Dizerqueasplantas tinhamumasexualidadepareciaincoerenteparaminhapequenafilósofa.Ameninanãopodia alimentar sua representação senão com os conhecimentos de quedispunha.Nãoseráassimquenóstodosraciocinamos?

*GeorgesPerec(1936-1982):romancista,poeta,roteiristaeensaístafrancês.(N.daT.)

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CAPÍTULO3

MEMÓRIAFERIDA

Aos8anos,moldadoporessescuriososacontecimentos,1atordasrelaçõesqueeuestabelecia, faziaparamimmesmoarepresentaçãoteatraldoqueme acontecera, o que me levava a estabelecer um curioso modo desocialização.2Arepresentaçãododramapassadodependetantodapessoaquesomos

nomomentoemquepensamosnelequantodapessoacomquemfalamos.

AdivisãodoEuameaçado

Aclivageméumasoluçãoqueseimpõeaotraumatizado:“Adivisãodoeuoudoobjeto,sobainfluênciaangustiantedeumaameaça,[faz]coexistiremas duas partes separadas que se desconhecem sem compromissopossível.”3 Uma metade fala em voz alta, enquanto a outra murmura ocontrário.Ao me dar o papel de herói em um relato íntimo que eu não podia

compartilhar, eu me tornava sujeito da minha história. Eu não era umacoisa que queriam esmagar. Sentia-me melhor contando-me o queacontecera,masnãoviaoquantoessadefesaperturbavaminhasrelações.Eumudava omodo como o passado agia sobremim. Construía um novopassado remanejando minha história, o que me permitia escapar damemóriatraumática.4Ter vivido uma experiência nada tem que ver com rememorar essa

experiência. Contar uma satisfação passada não a faz voltar, mas dá oprazerde contar.Fazero relatodaprópria infelicidadepodedespertarosentimento de infelicidade quando se reativa a memória dolorosa semremanejá-la: isso se chama “queixar-se”. Mas, quando modi icamos arepresentação buscando compreender e fazer-nos compreender, o relatocompartilhado in lecte o sentimento: ruminar ou remanejar, eis os doiscaminhosquenossãopropostosapósumtrauma.Alguns pesquisadores quiseram veri icar o remanejamento da

lembrança.Em1962,DenisOffer5pediua77adolescentesde14anosque

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respondessem a um questionário de cinquenta pontos, permitindodescreverseumundoatual:Vocêéreligioso?Épopularentreoscolegas?Qualasuaprincipalaspiração?Oqueofazsofrermais?Passados34anos,opsiquiatraencontrou64das77pessoasefezaelas

asmesmasperguntas.Estáinfeliznaescola?Aos14anos,28%dizemquesofrem.Mas,com48

anos,58%lembram-sedesofrimento.Você épopular?Vinte e cincopor centodos adolescentes estimamque

sãoapreciados,aopassoque,depoisdeadultos,50%selembramoquantoeramamados.Oquesentiamdepoisdeumcastigocorporal?Issosepraticavanaescola

da época: uma reguada na ponta dos dedos e, na hora, o teorema dePitágoras entrava na cabeça! Oitenta e dois por cento dos adolescentesa irmam que eram humilhados, mas, na idade adulta, não são mais que33%osquedizemquesofreram.“Houvecoisaspiores”,esclarecem.O prosseguimento de suas histórias remanejou a representação do

passado. Quando pensamos no nosso passado e encontramos amigos dejuventude, experimentamos um sentimento de amizade por colegas declassecomquemmalfalávamos.Quandosetemdeaceitarumtrabalhonafábrica ou na mina, onde cada gesto é uma tortura, relativizam-se oscastigos corporais da escola. Muitas vezes até, quando somos felizes,explicamos nossa felicidade atual pelas boas recordações passadas:“Aqueles castigos corporaisme tornaram forte, eu os superei.” Se somosinfelizes aos 50 anos, estabelecemos umamesma relação de causalidade,invertendo-a:“Aquelescastigoscorporaismedestruíram.”O sentimento associado à lembrança pode variar: “Sentia vergonha

quando minha mãe vinha me buscar na escola com seu avental sempremolhado”, diz um adulto. “Hoje, tenho vergonha de ter sentido vergonha,poisela trabalhavaduroparapagarmeusestudos.”Osimplesdesenrolardahistóriaremanejaarepresentaçãodopassado.Não somos sensíveis a todos os objetos e acontecimentos que nos

cercam. Se tivéssemos de tratar todas as informações, nada adquiririaforma, icaríamos confusos. Para ter ideias claras, precisamos esquecer. 6Para fazer a representação de nosso passado demaneira indubitável, sóprecisamosdestacaras lembrançasque correspondemaoestadoemqueestamosquandofazemosoesforçodeevocá-las.O passado torna-se coerente graças a nossos esquecimentos e

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remanejamentos afetivos. Quando omundo é claro, tornamo-nos capazesdedecidirquesonhossempredesejamosrealizarquandoéramoscrianças.Podemos até nos indignar com as feridas passadas que acreditáramosindolores.

Ovinhodalembrança

A partir do presente, “embriagamo-nos com o vinho da lembrança e dopassadorestaurado”,7escreveBaudelaire,grandeexpertemmemória.Amemóriatraumáticaécompostadeumacoleçãodeimagensprecisas,

cercadas por um halo de palavras e sentimentos incertos que devemosremanejar para não nos deprimirmos. É dentro dessa zona emreconstrução que a criatividade nos dá o instrumental de resiliência.Quando tudoéclarodemais, somossubmetidosà repetição,nãopodemossenãorecitar.Emmeioaoassombroéquesentimosoprazerdeelucidar.Aparte luminosa nos fornece arquivos veri icáveis, enquanto a zona desombranosconvidaàcriatividade.Tãolongequantoremontaminhamemória,eusempresoubequequeria

ser psiquiatra. As pessoas se surpreendiam, diziam que era uma falsalembrança,poisnopós-guerraninguémfalavadepsiquiatria.Em1970, jápsiquiatra,fuimexerporacasoemumamalalargadanosótãodacasaqueDora eAdolphe tinhamacabadode comprar emSannois.Achei ummaçode “redações”, como se dizia na época. O professor perguntava: “O quevocêquerfazerquandoforadulto?”Licomsurpresaquequeriametornarpsiquiatraparacompreenderaalmadossereshumanos.Eutinha11anos.Tenhoumalembrançaclaradodiaemque,com10anosdeidade,quismetornar escritor porque umprofessor tinhame parabenizado. Lembro-meatéda frasedaredaçãoqueprovocaraoelogio: “Elesaltavaporcimadaspoças geladas, com as mãos nos bolsos do casacão grande demais paraele.”Eusabiaaos11anosquequeriametornarpsiquiatra,sótiveaprovavinteanosdepois.Oque junta e coordena os pedaços verdadeiros daminhaquimera é o

sentidoquehojedouaosacontecimentospassados.Anarraçãopermiteotrabalho de harmonização dasminhas lembranças e orienta o galope daquimera. Semela, cadapedaçode verdade iria em suaprópria direção enadaadquiririasentido.Eunãopoderiasaberquemeusou,oqueamoea

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queaspiro.Depoisdaguerra,euviviaemumaassembleiadefaladorescacofônicos,

algunstonitruantesrelatavamsuaresistência,outroscochichavamalusõesa “tribunais de depuração”, eu ouvia palavras suaves, amargas,humilhantes ou reconfortantes que falavam da guerra, da alegriarecuperada e da coragem dos franceses que reconstruíam o país. Ocinema,todasemana,eraumacontecimentoextraordinário.Aspessoassevestiamcomonosdomingos,iamemfamíliaouemgrupo,ouviamosjovenscantores tentar a sorte antes do ilme, saíam no intervalo, tomavamsorvete,ocinemaeraumafesta.Lembro-me dos operários que dormiam em cabanas na porta

Clignancourt saindo de manhã, caminhando sobre tábuas para evitar alama,indoparaotrabalhodecamisabrancaegravata,impecáveis!ACGTpediaaosempregadosque izessemhorasextraseaosoperários

quetrabalhassemsábadoedomingopararestabeleceraredeelétrica,degraçaevidentemente,umavezqueogovernonãopodiapagar.Naqueleentusiasmocotidianodepobreza,deajudamútua,deempenho

e alegria, eu não tinha a palavra. Pequeno demais. O que às vezes eucontava,umafraseaquioutraali,provocavaopesadosilênciodosquemerodeavam. Não duravamuito tempo, a vida recomeçava, eu só estragaraunspoucosminutosdasuafelicidaderecuperada.Não era fácil atribuir um sentido ao que tinhame acontecido, já que o

parlamento de faladores que me rodeava evitava abordar o problema. 8Quando há tantos relatos como pessoas, a máquina de produzir sentidotorna-se cacofônica. Semnarraçãonãohá sentido,masquandohá relatosdemais nossa quimera não sabe para que lado deve galopar. Um relatoacaba se impondo, uma verdade se instala como se tivesse havido umdestinoinexorável:éummito.A experiência coletiva da guerra foi penosa, humilhante, sufocante.

Alguns escolheram a colaboração. De início, usufruíram de seu poder eriqueza. As festas elegantes eram diárias nos restaurantes do mercadonegro, nos teatros, prefeituras e Kommandantur. O humor dessesvencedoresconsistiaemesmagar,fazerrircomahumilhaçãoquein ligiamaosnegros,aosjudeus,aospobres.Ria-semuitoentresuper-homens.Durante esse tempo, um grande número de resistentes descobria a

torturaeasolidariedadeparaenfrentaroinimigo.Aausênciaderelato, tantoquantoacacofonia, impedea representação

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de si quedá sentido à existência.Durante os anosdopós-guerra, eunãotiveescolhasenãoentreotorporeabalbúrdia.

Opassadorestaurado

Por sorte, dois tutores de resiliência se colocaram em torno de mim: oencontroentreDoraeÉmileeomitocomunista.Quando Dora me apresentou Émile, ele icou em pé, perto da porta,

porque a peça era pequena demais para comportarmuitas cadeiras. Porqueeu imediatamentemeencanteicomsua forçaegentileza?De fato,euhoje diria que sua aparência denotava algo que eu esperava para mim:forçaegentileza.Émilerevelavaaquiloemqueeuesperavametornarumdia, quando fosse grande. Não era assim que se expressava o édipo“quandodramatizava a identi icação comumadulto demesmo sexo, comsua con iguração afetiva reveladora do sonho de si ao qual aspiramos”? 9

NãosentiamesmaemoçãoquandoDorameapresentouseusamigos,umcorsodançarinoacrobáticoouMaurice,oFredAstairedeMontmartre.Euos achei simpáticos, alegres e admiráveis dançarinos. O corso meaconselhavaasermilitar: “Vaiconheceromundo”,elemedizia, “eestarábem-vestido.” Issonãomedizianada.Eugostavabastantedosdois,masocaminhodelesnãoeraomeu.Aome apresentar Émile, Dora disse: “Nós vamos viver juntos. Émile é

cientistaejogarúgbi.”Eunãosabiaoqueeramciênciaerúgbi,masadotei-oimediatamente.Ocorreuentãoumfenômenoestranho.DuranteosmesesemqueDorae

Émileprocuravamumamoradiamaior,eumetorneiexcelentealuno,comosemeumundoíntimoderepenteseiluminasse.EstavamatriculadonaescoladarueTurgot,aquelaondeeu,antes, fora

medíocre. Os dois anos de fracasso escolar tinham correspondido àsrupturas administrativas queme atribuíam alternadamente aMargot e aDora. Os cortes repetidos entre as instituições bordelesas e os retornosparisienses tinham impossibilitado qualquer escolarização e qualquerteceduradeelo.Tãologo(digobem“tãologo”)soubequeDora,abeladançarina,iaviver

comÉmile,oparrudocientista,aescolasetornouumlugardefelicidade.10Lembro-me do rosto e do nome dos meus coleguinhas, lembro-me dos

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professoresquenosfalavamcomgentileza,chegueiaguardarnamemóriaasmaravilhosasbrincadeirascomboladegude,asbrincadeirasde“políciaeladrão”e,sobretudo,osroteirosqueeuinventavaparameuscolegasdeclasseinterpretarem.Namesmahorapasseiaseroprimeirodaclasse,inclusiveemdesenho.

Tive de pular um ano para me preparar para o exame de entrada noginásio, que, em 1848, era reservado a uma minoria. Mancheron, umcolega de escola, recentemente me contou que, de uma classe de 44crianças,somentetrêstinhamconseguidoentrarnoginásio.A rapidez dessa metamorfose intelectual ainda hoje me intriga.

Provavelmente,foioencontrodedoisfenômenosoqueatornoupossível:•incorporação,dentrodemim,dasegurançaafetivaoferecidaporDora

eÉmile;•algunsacontecimentosqueseduziramosprofessores.Minha vidamental parara com a idade de 2 anos, quandominhamãe

icara sozinha depois do engajamento do meu pai no exército francês,angustiada diante da iminência de sua prisão. Depois, seguiram-se paramim alguns anos de perseguição, de vizinhança da morte e isolamentosensorial.Asrupturasafetivas,repetidassemcessar,aproibiçãodesairouir à escola, o sentimento de ser um monstro impossibilitaram qualquerdesenvolvimento. Eu não sofri durante a guerra, porque minha almaestavagelada.Nãosentimosnadaquandoestamosem“agoniapsíquica”, 11respiramosumpouco,sóisso.“Oquecaracterizaessaépocaéantesdetudoaausênciadereferências.

As lembrançassãonacosdevidaarrancadosdovazio,nenhumaamarra...não havia começo nem im. Já não existia passado, e por muito tempotambémnão existiu futuro, aquilo simplesmente durava... As coisas ou oslugaresnãotinhamnome;aspessoasnãotinhamrosto.”12Joseph Bialot, adolescente que sobreviveu a Auschwitz, faz a mesma

constatação: “Não há nada por compreender em um mundoincompreensível onde não existe senão uma lei, a do cassetete, umasanção,adamorte,umarazão,ada insanidade.” 13Quandoo real é louco,como querer que o mundo mental de uma criança se organize? Paraestruturarumaalma,éprecisoterumsonho, tornar-seescritor,procurarcompreenderourepararasruínas.Bastouqueaexistênciadispusesseàminhavoltaumsubstitutoafetivo,

umabeladançarinaeumparrudocientista,paraqueavidaretornassea

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mim como uma lufada de felicidade. Eu vivia, era mais forte do que amorte,driblaraoexércitoalemão,encontraraumanovafamíliaenaescolainventava o tempo todo roteiros com animais, índios e caubóis quepermitiam cercar-me de uma multidão de pequenos candidatos a atordentreosquaiseuescolhiaquemfariaocavaloindomável,oíndioespertoouomalvadocaubói.Umacascatadefelicidades!Os recreios se tornavam muito curtos para realizar as minhas

produções. Contudo, foi lá que sobrevieram alguns minúsculosacontecimentosqueorientarammeunovomododeviver.Creio que o nome dele era Hugues ou algo assim, era bom quando

brincávamosdeíndio!Eufaleiaeledomeuorgulhodeterumamadrinha,uma segunda mãe dançarina, ele me ouviu com gravidade, depoiscomeçamosumapartidadeboladegudenaqualolançadordevia icara3metros, a distância mais di ícil. Enquanto eu me preparava para lançarminhasbolas,vi-oconversarcomogarotoqueexibiaumabelaágata.14Osdoiscolegasfalavambaixinhoaoouvidoumdooutro,olhando-meedandorisada.CompreendiquefalavammaldeDora.Aágataqueeutinhanamãoalcançou-o em pleno crânio. Posso assegurar que ele parou de falar.Orgulhei-medaprecisãodomeutiro,masoincidentecon irmou,maisumavez,aquepontoosilêncioeraprotetor.Quandolançamosumaideianoar,nãosabemoscomoelavaicair,nãosabemosoqueoouvintefarácomela.Vai usá-la para zombar de você, para rebaixar ou fazê-lo ser preso pelaGestapo?Oqueparamimeraumabelezaeumafelicidadetornava-separaeleumaarmaparamehumilhar.Mesmo em tempos de paz não se pode dizer tudo. Eu prosseguia o

processomentalque,muito tempodepois,me levouapensar: “Admiroossilenciosos.Osquesabemcalar-seestãoprotegidos,sãoinvulneráveis.”Todososferidosdaalmaexperimentamoefeitoprotetordosilêncio.Vão

precisardemuitotempoparadescobrirqueessalegítimadefesacriaumarelação particular. Ao voltarem do outro mundo, as lembranças e aspalavras adquiriram um signi icado di ícil de compartilhar. Quem vaientender a euforia que se sente ao ser preso pela Gestapo após váriosmeses de isolamento? Quem vai entender que as pancadas não sãotraumatismos? Doem na hora, mas quando não têm signi icado não sãouma dormoral. Quem vai entender que uma dançarina pode ser bonita,alegreeperfeitamentemoral?

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Os pós-guerras são revoluções culturais em que tudo deve serrepensado. Novos valores surgiam, mas o pensamento preguiçoso nosconvidava à submissão aos discursos de antes da guerra. O casamentonaquelaépocatinhaobjetivosocial,serviaàproteçãomútua,nãoerafrutode sentimento amoroso. As dançarinas eram mulheres fora da cultura,comotinhamsidoantesdelasosatoreseosromancistas.Um traumatizado não escolhe sempre o silêncio. Com frequência, é a

culturaqueo fazsecalar.Aovoltardooutromundo,“emque língua,comque palavras a experiência poderá ser falada [...], o silêncio em todas assuas formas–mutismo intermitente, recusaderetorno [...], suspensãodequalquerlinguagem–ofereceaosobreviventeaúnicaresposta”. 15Quandonadadoquesedizéescutado,quandotodasaspalavrassãodeformadas,como não querer se calar? A personalidade separa-se em camadas: umapartesocializávele,subitamente,ummutismonoqualapessoasesentenasegurança do silêncio, protegida entre paredes. O ouvinte desorientadosenteumaestranhezaprovocadaporelemesmo,masqueatribuiaooutro,poisbemvêserooutroquemsecalacomumasubitaneidadequechamaaatenção: “Eu voltei de entre os mortos e acreditei que isso me dava odireitode falar,masquandomevidiantedosoutrosnão tivenadaa lhesdizer porque aprendi, lá onde eu estava, que não se pode falar com osoutros.”16

Odireitodefalar

Durante a guerra, fazemos segredo para não morrer. Depois da guerra,continuamoscaladosparanãocompartilharcomosoutrosoqueelesnãosão capazesdeescutar.É curiosaa culturaque criticaos feridospornãofalar,emborasejaelaqueosfazcalar-se.Quando eu inventava roteiros com índios que passavam a perna no

exército de caubóis, reparava, entre meus espectadores, um interessadoprofessorque icavanaprimeira ila,atentoedivertidocomasperipéciasdo roteiro. Ao inal da apresentação, via como ele comentava minhasapresentaçõescomoscolegas.Umdia, ao chegaràescola,descobriquemeesquecera completamente

de estudar minha lição. Corro para me desculpar com a professora,dizendo a ela que não tinha tido tempo de estudar por ter jogado o dia

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inteiro com Émile. Gargalhadas gerais na classe, resposta imparcial daprofessora, que diz que sua caneta apontada ao acaso para a folha depresença designará o aluno a ser interrogado. Durante o recreio, nempensar em abrir mão da apresentação que eu havia programado! Meuspequenos atores aguardavam, bem como o professor, espectador daprimeirafila.Por sorte, a sala de aula erano segundo andar e amultidãode alunos

subia lentamente. Tive, pois, tempo de preparar a lição. A caneta daprofessoramedesignouporacaso,mas,comoeuacabarade lero trecho,tireinotadez. “Acheiquevocênãotivesseestudadoa lição”,elamedisse.“Estudei enquanto subia as escadas”, respondi. Notei que ela franziu assobrancelhaseacenoucomacabeçaadmirativamente.Algum tempo depois, o diretor e essa professora me chamaram para

dizer que alguém me acompanharia no dia do exame de admissão aoginásio.Trêsforamadmitidos.Asoutrascriançascontinuariamatéaobtençãodo

certi icado e, logo em seguida, iriam trabalhar nos campos, na fábrica ouseguiriamcursosprofissionalizantes,com13anosdeidade.Na minha memória, há um encadeamento pouco visível de

acontecimentospouco faladosque,contudo, tenhocerteza,mepermitiramchegar ao ginásio Jacques-Decour. Eu era decerto bom aluno, roteiristaprolífico,porém...17Setivessesidoumacriançabemcomportadanaescola,vivendoemuma

família estável, a professora não precisaria me acompanhar no dia doexame. Eu seguiria a corrente que teria me orientado para o ginásio oupara a fábrica. Uma criança bem comportada é transparente, deixa-selevar.“Meu”trauma,mesmonãodito,tinhamepersonalizado!Porsorte,aferida identitária, queme impedia de saber quem eu era, provocara umsuperinvestimentoimaginárionoqualeumeconstruía.Eunãosabiaoqueera ser judeu. É visível? É invisível? Eu não sabia de quem nascera.Logicamente, meus pais eram judeus, uma vez que desapareceram emAuschwitz.Queprovainquietante!Comosefazparaserjudeu?Comumahistóriadessas,aautoa irmaçãotorna-seangustiante,umavez

que se trata de... declarar que se é... alguma coisa que não se sabe... Porsorte, a clivagem me dera a possibilidade do duplo pensamento, osentimento do duplo pertencimento.18 Eu pertencia às pessoas a que meligava:Dora, adançarina, eÉmile, o cientista.Essa sustentaçãomepunha

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no eixo,me apoiava pelo exterior. Eume aproximava amistosamente doscolegas de escola, dos professores queme estimavame dos vizinhos queme pediam que falasse da guerra, fazendo-os rir um pouco. Mas euorganizava meu pensamento em torno de um mundo duplo: umcompartilhável, no qual eu contava histórias que divertiam os que merodeavam, e o outro, intenso, que não saía da minha cripta. Dora diziarindo que meu talento de oratória faria de mim um bisbilhoteiro ou umadvogado. Meus colegas de escola interpretavam comédias que euinventava,eosprofessoresespectadoresaplaudiamsorrindo.Eu achava que contar histórias me permitiria não contar a minha

história. Esperava me esconder atrás do que eu inventava, na verdadeencenandooqueeunãopodiadizer.Adivinhememquemeupensavaquandoinventavaopapeldoíndioque

escapadaperseguiçãodoscaubóisquequeremmatá-lo...Porqueimaginarmoçasmaravilhosasqueprotegemoíndio?PorquerazãoelassechamamMargaret?Outras representações do meu mundo íntimo não podiam ser

compartilhadas. À noite, adormecendo, tentava achar o sonho da noiteanterior:eumevianafloresta,escondidonofundodeumagrandecavernacheiade luz,ondesó tinhapor companhiaalgunsanimais.Aomenoselesnão desejavamminhamorte, nãome julgavam e não zombavam demim.Trocávamosnossasafeições,semterdenosjusti icar.Nósnosamávamosepronto.Juntos,ficávamosbem.Averdadenarrativanãoéaverdadehistórica,o remanejamentoéque

torna a existência suportável. Quando o real é louco, o rearranjo damemória torna-o coerente. Certas histórias que eu inventava a im deexpressarmeumundoíntimoetorná-locompartilháveldavamaosadultosuma impressão curiosa: “De onde ele tira tudo isso?”, diziam sorrindo.Gostavadequeelessemaravilhassemcomminha imaginação,mas icavaaturdidoquandoviaemseurostoumaexpressãodedúvida.Suasreaçõesmudasparticipavamdaconstruçãodemeurelato.Eis por que o relato rearranjado do que me acontecera era mais

coerente do que a verdade dos fatos: as escadas que eu descera emdisparadaparafugirerammenoresdoqueasdo EncouraçadoPotemkin;aambulânciaondeeuhaviamergulhadoparameescondereraumasimplescaminhonete; o o icial alemão que dera autorização de partir nãomanifestarasenãoódiopelamulherquemorriasobremim.

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Convinha-me que meus próximos me izessem calar, facilitava minhanegação, ajudava-mea realizar a estratégiadeexistênciada senhoraLot:“Paraafrente...paraafrente...nãosevolteparaopassado.”Essesalve-sequempuderpsicológicomepermitianãosofrer,masdava

aos que me rodeavam uma curiosa imagem de mim. Com frequênciaalegre,ativoeinventivo,subitamentetorna-sesombrio,ensimesmadoeàsvezesenfurecido:eueraduplo!Nenhuma história é inocente. Contar é pôr-se em perigo. Calar-se é

isolar-se.

Calváriosíntimoserelatoscoletivos

Graças ao desvio dos relatos, eu conseguia achar um lugar entre aspessoas. Algumas historietas luminosas que interessavam os adultos mepermitiamdeixarnasombraoqueeunãopodiadizer.Eufalavadaguerraencenando-aalegremente.Falavadaglóriadomeupai,feridoemSoissonsao deter sozinho o avanço do exército alemão. Detalhava a coragem daminhamãe ao devolver bombons ao soldado, insultando-o em alemão. Orelato daminha epopeia familiar me permitia não dizer o que os outroseram incapazes de entender. Foi a incredulidade deles que instalou naminhaalmaacriptasilenciosaqueatrapalhavanossasrelações.Meus comportamentos também eram criptografados. Eles tornavam

possível a expressão pré-verbal do que os outrosme impediamde dizer.Algunsroteiroseramdi íceisdedecodi icar.Ninguémconseguiaentenderporqueeu“brincava” frequentementedeen iarramosdematononariz.Acho que foi em Castillon que uma vez conteiminha evasão embaixo damulher moribunda. Um adulto disse: “Se você tivesse espirrado, teriamorrido.”Asoutraspessoasconcordaram.Eudeviaportantoprovaramimmesmo que se quisesse viver teria de me tornar capaz de prender umespirro. Então, com ramos de mato, eu fazia cócegas no fundo do nariz,icavavermelho,contraía-me,meusolhosseenchiamde lágrimas,maseunão espirrava! Com esse comportamento criptografado, eume fornecia aprovadequealiberdadeépossível.Umadulto,baseando-senoqueestavavendo,teriaachadoocomportamentoidiota.Paramim,queriadizer:“Vocênãosesubmeteàscircunstâncias.”Noscalvários íntimos,euprecisavameprovarqueerasemprepossível

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nãocapitulardiantedamorte.Épossível escapardelaescalandoparedeslisas, impedindo-se de espirrar, mergulhando nas ondas da entrada doportodeCapbreton,deixando-secairdaextremidadedosgalhos.Nãoeraumaerotizaçãodorisco,um lertecomamorte.Era, sim,aconstruçãodaprova de que é possível ganhar a própria liberdade. Argumento pré-verbal,roteirocomportamentalquetinhaafunçãodemedizer:“Eiscomoéprecisofazerparadominarainfelicidade.”A infelicidade, eu a sentia. O sentimento de merecer a morte por um

crimequeeu iacometer,asrupturasafetivas incessantes tinhamdeixadonaminhamemóriaumarepresentaçãodesialterada.Euacombatiagraçasaos calvários íntimos que deviam parecer sem sentido para um adultoequilibrado.Depoisdaguerra,mantiveohábitodostestessecretos.DepoisqueDora

abandonouadançaparasetornarcomerciante,eucostumavaacompanhá-la nas compras nos mercados de Creil, de Argenteuil e de Châteaudun,atrasando-me consideravelmente no ginásio. Então eume fazia o desa iode aprender emuma noite o que tinha sido ensinado durante a semana.Gostava dos esforços custosos queme permitiam conseguir boas notas,19apesar dohandicapdasausências.O treinamentodeenfrentarprovasmedeuumacoragemmórbidaquemepermitiu,depois,estudarmedicinaemcondições materiais verdadeiramente desarrazoadas. Dora não seespantava com meus comportamentos estranhos. Ela não me pedianenhumaexplicação.Eraassim.O im da guerra não trouxe a paz. O contexto cultural, os noticiários

ilmados, o cinema, os romances, as conversas preferiam falar da alegriados reencontros com 2milhões de prisioneiros voltando inalmente paracasa. Os 2 ou 3 mil espectros chegados dos campos deambulavam comofantasmas. Via-se a infelicidade que habitava neles, mas eles não diziamnada.Nas famíliasenlutadas,suportavam-semalosrelatosdehorrorqueestragavamasnoiteseenvenenavamoretornodavida.OsúnicosrelatosencorajadoseramosdaFrançaresistenteduranteaguerraelaboriosaemtemposdepaz.Eraprecisocalarohorroreencenaracoragem.Osresistentessobreviventestambémnãofalavammuito.Permanecendo

unidosdepoisdaguerra,constituíramgruposdeamigos,quasefamiliares,tornando-se padrinhos dos ilhos um do outro, ajudando-semutuamente,militandoousaindodefériasjuntos.Um irmão daminhamãe,meu tio Jacques, alistou-se nas FTP20 aos 16

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anos. Quando o conheci, eleme pareceu adolescente e achei normal quetivesse combatido o nazismo. Meu pai izera o mesmo, alistando-se noexército. Não se falava da Shoah21 nessa época, também não se falava degenocídio, só se falava da França combatente e de sua reconstrução.Relatos coletivos cantavam loas a De Gaulle, a Leclerc, à Resistênciacomunista e até a pessoas comuns que tinham resistido às escondidas.Essesdiscursos,contandoumagrandepartedaverdade,permitiamqueseincluíssemos quenão tinham combatido. Eume lembrodeum ilmequetodoomundoadorou:LePèretranquille .22Umamávelatorquenadatinhade herói encarnava um funcionário humilde que todo o mundo pensavaque se escondesse. Pois bem, estão enganados, a irmava a icção, todomundo resistiu, mesmo os tímidos, mesmo os anti-heróis. A simpáticarepresentação ensejava muita conversa. Cada um trazia um testemunhoanálogo: tinham conhecido um carteiro que pensavam ser colaborador equenaverdadeforneceraarmasaosresistentes;todoomundocitavaumcamponêsque esconderaumparaquedista; umempregadodaprefeituraquefabricarafalsascarteirasdeidentidade.Frequentementeeraverdade.As conversas provocadas pelo ilme redouravam a imagem da França,vencidaecolaboradora.Dosjudeusnãosefalava.Haviamuitopoucos(240milem1945),elesse

izeram cúmplices dos relatos coletivos. “A vontade dos judeus de não sesingularizar da nação francesa impediu a tomada de consciência daShoah.”23Contudo,muitosjudeusforamparaaEspanhaparaalistar-senasForças Francesas Livres: “Eu esperava a Igreja”, disse De Gaulle, “vichegar a Sinagoga.” OsÉclaireurs Israélites [associação francesa deescotismo] formaramosmaquis deToulouse e doTarn.No regimentodevoluntários estrangeiros do exército francês, onde combateumeu pai, sóhavia republicanos espanhóis e judeus da Europa central. No Orientepróximo, 40 mil judeus palestinos (que ainda não eram israelenses)alistaram-senoexércitofrancêsdogeneralKoenigetiveramumpapeltãoimportante na derrota dos exércitos alemães de Rommel em Bir-Hakeimqueogeneralosconvidouparadesfilaraoladodabandeirafrancesa.De fato, grande número de judeus em idade de combater engajou-se

contra o nazismo.24 Mas o que passou para a memória coletiva foram asprisões emmassa, com suas imagens de colunas de homens,mulheres ecriançasdesamparados,amontoadosemvagões,sendolevadosaosfornoseàspilhasdeossos.

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Os judeus combateram como franceses, embora tenham sido caçadoscomo judeus. Tudo é verdade, nos dois casos,mas a quimera coletiva sóguardou as imagens dos que “se deixaram conduzir ao abatedouro comocarneiros”.Élisabeth de Fontenay, 25 Claude Lévi-Strauss e Marguerite Yourcenar

queriam simplesmente dizer que, para aquele cuja visão de mundo éhierarquizada,nãoécrimeabaterumjudeucomoaumcarneiro.Pode-sematá-lossemvergonhanemculpa,umavezquenãosãosereshumanos.Aimagemdecarneirosconduzidosaoabatedouronãoéfalsa,maselasófaladas prisões em massa e não dos combates. Os relatos coletivos seapropriam de uma verdade parcial para generalizá-la abusivamente aoconjuntodopovojudeu.Oqueéparcialmenteverdadetorna-setotalmentefalso.Éassimquegalopamasquimerascoletivas.Também os espectros se izeram cúmplices do silêncio. Ao voltarem

livresparaaFrança,nãotinhamnadaparasedizer,eosqueencontraramalguns restosdesuas famílias “sentaram-seaumamesaondehaviamaismortosdoquevivos”.26Osdibuks27daCabalahabitaramascasasondetodomundopensavanosdesaparecidossempoderfalardeles.Nocinema,viam-senastelasosproblemasdacomunidade.Osoperários

organizam suas lutas sociais e, nas comunidadesmineiras, tratados comoheróis por suas famílias, os homens morriam instantaneamente com ogrisu...aspessoasosadmiravam,choravam.Osferroviários,em LaBatailledu rail [A Batalha nos trilhos],28 sabotavam as instalações alemãs, e osburgueses com suas boas maneiras ridículas exploravam o povo bom. Ocinema do pós-guerra assumia a função democrática do teatro na Gréciaantiga.Eraprecisoir,paravernatelaascenasdavidacotidianaedepoispoder comentar. Esses encontros constituíam maravilhososacontecimentos.Umacampainhaforteanunciavanobairroqueasessãoiacomeçar. As pessoas se precipitavam, assistiam primeiro a um pequenoconcerto de órgão no Gaumont Palace, ou a um recital de canções deMarcadet. No intervalo, vendedoras passavam pelas ileiras e nosmandavam “compraresquimaux”.* Depois a luz se apagava, a magiacomeçavaevoltávamosparacasaparadiscutir interminavelmentenossosproblemas e nossas concepções da sociedade, que os atores tinhamacabadodeencarnarnatela.Paradoxalmente,essaalegrianecessáriafaziaossobreviventescalarem-

se: “Henri voltou a Paris, mas rapidamente cortei relações com ele [...],

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sempreàespreita,nãoconseguiaseadaptaràsuanovacondição[...].ReviArmand três ouquatro vezes [...], um rapaz simpático,masnão tínhamosmaisnadaparanosdizer.” 29Oqueuniraoshomensnoenfrentamentodohorror separava-os quando a paz retornava. Teria sido possívelcompartilhar as lembranças das humilhações, das roupas imundas, dadiarreias incontroláveis, das covardias inconfessáveis? Era um alívio nãonosvermais.Seriaporessa razão,depoisque fuimoraremParis comDoraeÉmile,

queeusentiacadavezmaisdificuldadeemescreveraMargot?

Quandoaficçãodizaverdade

No contexto de paz, quando os relatos coletivos falavam das bravurasdiante do ocupante e do ardor no trabalho de construir uma sociedademelhor, os testemunhosdos sobreviventespareciamobscenos.Entãoelessecalavam...eeramelhorassim.EncontreirecentementepessoasqueforamadolescentesemAuschwitz.

Essesjovenssobreviventespensavam:“Ninguémpoderáacreditaremnós,então permaneçamos juntos, casemo-nos.” Os casamentos do desespero,emmeio à incompreensão dos próximos, engendraram pequenos gruposafetivos em que, com efeito, eles se compreendiam e formavam casaisestáveis. Falavam livremente do pesadelo passado... e seus ilhos osacusaramdetê-losfeitovivernohorrordoquelhesacontecera!Eraprecisocalar-separajánãovivernavergonhaenopavor,paranão

estragar a festa do país que renascia e para não transmitir nossamonstruosidade aos que amávamos. A enorme negação enquistou nofundo de nossa alma uma cripta onde murmuravam fantasmas. Nós nosengajamos em nossas relações com uma imagem estranha,frequentemente alegre, ativa e a irmativa. Quando, de repente, umasombranegraalteravaarelação:“Oquedeunele?Oqueestáescondendo?Certamenteestá se culpandodealgumacoisa!”Falar transmitiaohorror,calar-sedifundiaaangústia:nãoéfácilviverquandoseésobrevivente.Quando encontrei o que restara daminha família, eu era sobrevivente

entresobreviventes.Comoquererquefalássemosclaramente?Os que tinham orgulho de sua guerra estavam ao lado dos que ainda

sofriam, mas os dois grupos tinham um discurso estranho. Os que não

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tinham nada de que se culpar, a gente honesta, os gaullistas e oscomunistas, aos quais pertencia Jacques, tinham também uma estranhamaneira de falar. Eles se expressavam claramente em grupo, mas seudiscurso em casa permanecia distante, abstrato, ilosó ico ou político,jamaisíntimoouafetivo.Eu tinha orgulhoda resistência de Jacques,masnada sabia doque ele

izera no dia a dia. Ele contava a grandeza do “partido dos 100 milfuzilados”,30 militava com seus antigos camaradas de combate, eles seamavam,riamerecitavamslogansqueeuaprovava,masquenadadiziamde sua vida de todos os dias. Levei muito tempo para compreender queaquelerefúgionateoriaeraumamaneiradenãoexporaintimidade.Muitolentamente iqueisabendocomoJacquestinhaseengajado isicamentenocombate.31Falavam daShoah à minha volta, mas falavam de longe, jamais na

intimidade. Comentavam simplesmente o que se escrevia sobre a guerra.Osalemãestinhamarquivos,produziam ilmesdepropaganda,enviavamàsuafamíliafotosdefériasemAuschwitzoudehomensdescarnadosqueosfaziamrir.Osperseguidosescreviamsemcessar,tomavamnotasa imdepreparar

suas futuras memórias e testemunhos. Alguns cadernos acumulavamdatas, fatos, palavras pronunciadas, nomes de executores e de vítimas.Comoexplicaressafomedeescrever?Deve-seàculturadopovodoLivro,à sua injunçãode lembrare testemunhar?Asanotaçõeseramanálogasadeclaraçõesemcartório:sempoesia,semre lexão,sóosfatosacumulados.Hátambémescritosquetinhama intençãodetornarohorrorsuportável.As metáforas, compondo uma imagem estetizada, permitiam dominar aemoçãoedizeraverdade semperturbaroouvinte.As re lexõespolíticasou ilosó icas, intelectualizando o pesadelo, tentavam entender comohomenspodiamterfeitoaquiloaoutroshomens.Eueramuitopolitizadoaos11anos.Conheciaasteorias,tomavaposição,

mas ignorava os escritos que testemunhavam a perseguição. Só meinteressava pelos ilmes ou pelos relatos que transformavam os fatos.Minhaexperiênciaíntimapermanecianofundodemim.Jamaisfalavadela,ninguémmeperguntavanada,eupensavanelaotempotodo.A escrita dos testemunhos não entrava na cultura. Os que escreveram

em ídiche não foram traduzidos. Os textos russos, poloneses e húngarosforam abafados pelos regimes comunistas. Numerosos testemunhos

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ficaramdentrodegavetas,ignoradosdopúblico.O cinema não falava melhor. Fiquei contente ao ouvir falar deNuit et

brouillard[Noiteeneblina].32Temiaasimagens,mastinhaaimpressãodeque o público, graças a esse ilme, reconhecia amorte demeus pais e omassacredosjudeus:umaoraçãofúnebre,dealgumamaneira.Eutinha18anosnaocasião.Nãonotaraqueapalavra“judeu”tinhasidopronunciadaapenasumaveznofilme.Asimplesevocaçãodegenocídiomebastava,poisapronúnciadapalavraofereciaumasepulturaameuspais.Charles Chaplin me encantava comO grande ditador ,33 cujo roteiro

correspondia àsminhas fantasiasmais loucas, na época em que, criança,eusonhavaqueumdiaridicularizariaHitler.Foi oDiário de Anne Frank34 quemaisme apaziguou. Ele só punha em

cenaoqueerarepresentável:umasimpáticafamílianaqualaspessoasseamavam e brigavam à espera das batidas da Gestapo à porta. Nada quever com as pilhas de ossos, nem com Auschwitz nem com as prisões emmassa.Osimples fatodenão judeusemvoltademim falaremdaemoçãoquesentiramnomomentoemquecompreenderamqueameninagrandeiadesaparecer comsua família fazianascer emmimumagratidãomuda.Entãoerapossívelreconhecernossamorte?Asobrasdearte,convidandoa falarda tragédia, ofereciamuma lápideaosmeuspais.Elesnão tinhamdesaparecidototalmente,jáqueerapossívelfalardeseudesaparecimento.Eu me sentia acalmado, serenado, feliz quase, graças às icções quepunham em cena um momento da tragédia. Os romances, os ilmes, aspeçasdeteatronãomostravamsenãooqueaculturaeracapazdeaceitar,masessaacolhidaprovocavaemmimumsurpreendentesentimento:eujánão era ummonstro! Eu era como todas as pessoas que, comentando asicçõesemtornodemim,mecercavamdepalavrasquesigni icavam:“Nósteríamosreagidocomovocêseumamesmadesgraçanostivesseatingido.”Aliteraturadoscamposdeconcentraçãonãomeacalmava.Aocontrário,

ela con irmava minha monstruosidade. Ninguém suportava ler ou ouvirtais testemunhos. Foi a icção o que pôs um bálsamo emminhas feridas.Nãoeraumaofensaàdor,masencenava-seumarepresentaçãosuportáveldo sofrimento. Um imaginário compartilhável indicava o lugar dadesolação,aomesmotempopreservandoopudordosferidos.André Schwartz-Bart contava como era possível defender-se. No seu

romanceLeDernierdesJustes[Oúltimodosjustos],eleinventouahistóriadeErnie, cuja existênciadespedaçada terminava emuma câmarade gás:

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“Louvado. Auschwitz. Seja. Maïdanek. O Eterno...”35 Sua linguagem sedesconjuntou ao escrever. Apresentar uma história verdadeira como umromancepermitia dominar a perturbação interior e comunicar a emoção,sob a formadeumbelo acontecimento compartilhável. Vocês lerambem:“beloacontecimento”.Oleitoremocionadoenãobrutalizadointeressava-seporumdestinoquepoderiaserodelepróprioouomeu.Quandoorealeralouco, indecente, vergonhosodedizer, a icção concedia aErnieum lugarentreoshomens,convidando-mecomeleamudararepresentaçãoqueeufaziadaminhainfância.Umdocumentodajustiçateriaomesmoefeito?Umpapeltimbradoteriaperturbadonossaalma?Foia icçãooqueabrandounossaconsciênciaenosajudouaconsideraroimpensável.É de fato icção? Já não tenho certeza. Eu mal lera o livro, eu o

percorrera, mas icava feliz ao ouvir falar dele. Por causa dele, eu ouviapalavras antes impossíveis de pronunciar. Graças a elas, o massacre daminha família, a pilhagem daminha infância se expressavam docementecomapontadoslábios.Eujánãomesentiasozinho,banidodacultura.Não se pode contrapor uma icção em que tudo é inventado ao

testemunho que diz a verdade. Acho até que a imaginação é próxima dalembrança.Quandoquerocontaroquemeaconteceu,voubuscarnomeupassado o episódio que poderá participar “do edi ício imenso dalembrança”.36 O tema que abre este livro (a prisão, a perseguição, asrupturasafetivasrepetidas)37serve-medeestreladoPastor.Éelaquedáadireção,osentidoqueorganizaaconstruçãodaminhamemória.Primeirolutuoumpouco, tentandouma imagem,umasensaçãoouumapalavra, ederepenteacho!Umaimagemsurgeedáformaaoqueeuesperava.Possoentãodetalhá-la,colocá-laemseucontextoeacharalgumaspalavrasparacomunicá-la. Nesse processo que acabo de detalhar, há uma forteintencionalidadedamemória.38Quandosouobrigadoamecalar,quandojánão tenho forçanemdesejodemeentender comvocê, posso ainda vivernopresenteou sobreviver emumaexistência imediatanaqualnada temsentido.Emcompensação, se tenhovontadedevivercomvocê,decompartilhar

as emoções provocadas por minhas lembranças, vou fazer o relato e odestinareiavocê.Maisumavez,háumaintencionalidade:aantecipaçãodomeupassadovaiorganizarafuturaexposiçãodaminhamemória.39Quando imagino um romance, um ilme ou qualquer outra icção, vou

buscar no meu passado, em mim e em torno de mim, alguns

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acontecimentos pessoais ou relacionais que vou organizar a im de dar aelesumaformaartísticaquecon iareiavocê.Semeutalentocorrespondeao que você espera, passaremos juntos um momento agradável eedi icante. Ao contrário, se eu juntarmal minhas lembranças ou se izerdelas uma representação que não lhe convém, você vai se entediar e euficareidecepcionado.Emtodososcasos,nósseremos,vocêeeu,autoresdoprazeroudotédioqueolivrolhedará.Em toda obrade imaginaçãoháum relato de si. Em toda autobiogra ia

há um remanejamento imaginário. A quimera nomeada “Ficção” é irmãgêmea de “Relato de si”. Eu nunca menti, eu trabalhei, simplesmentedispus representações do passado que restou nas minhas lembranças afimdefazerdeleumservivo,umarepresentaçãocompartilhável.

Abeleza,aguerraeosofrimento

Pormuitotempomepergunteiporquesofreramenosduranteaguerradoqueduranteapaz.Nãoperdimeupai,poiseutinha2anosquandoelesealistou,e,comominhamãeestavajuntodemim,euaindanãopodiatomarconsciência da falta dele. Quandominhamãe desapareceu, depois demedeixarnaAssistênciaparaqueeunãofossepresojuntocomela,creionãoter sofrido, pois a minha vida mental se apagou. Não sofremos quandoestamos em coma. Sofremos só se estamos vivos. Não sofri com aminhaprisão,poisavivi comoumdiade festa,quandoavidaretornadepoisdelongos meses de isolamento. Não sofri enquanto me acossavam, pois euadmiravaos Justosquemecercavameprotegiam.Nãosofricomos tapasquemederamsemódio,donada,enpassant,poissódoemnahora.Quando apaz voltou e eu encontrei os sobreviventesdaminha família,

sofricomasdecisõesdosjuízesquemecolocavamalternadamentenacasadeMargot, em Bordeaux, e na casa de Dora, em Paris. Cada vez que eutomava o trem, sozinho ou entregue a umviajante anônimo, sofria comocorte de um elo que começava a se tecer. Cada vez que me via, poralgumassemanasoualgunsmeses,emumainstituiçãoondeosadultosnãodirigiam a palavra às crianças, eu me sentia abandonado. Não estavasozinho, pois junto comigo havia outras crianças para preencher o vazio,mas mesmo assim me sentia abandonado, já que, pela primeira vez navida,mepropunhamumeloqueasociedadecortava.

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Dos 7 aos 9 anos, sofri bastante a perda que não sentira durante aguerra.Aturdido,acadaa liçãoeudescobriaumsurpreendenteprazer:eucontavaamimmesmominhahistória!Antesdaidadede7anos,eunãotinhapossibilidadedefazerumrelato

de mim. Pequeno demais, eu me desenvolvia como podia, ao sabor daspessoas queme cercavam. Como não tinha representação do tempo, nãopodiaconstruirumahistória.Depois dos 7 anos, em plena ruína afetiva, descobria o surpreendente

prazer de me contar o que não podia dizer. Assim que icava sozinho,assimquesentiaumaa lição,eumecontavaaglóriadomeupaisoldado,abeleza da minha mãe corajosa, o heroísmo do pequeno Boris preso eevadido, a nobreza dos Bondosos que hoje chamam de “Justos”, a vitóriamilitar de meu colega tenente Pierre Saint-Picq libertando Bègles, e abatalhadeCastillondequeeucorajosamenteparticiparatocandoossinosda igrejadeSaint-Magne.Queprazercontaramimmesmoaepopeiaqueeu conhecia melhor do que ninguém! Que desespero não ser umverdadeiroserhumano!No meu mundo interior, eu projetava o ilme do meu passado,

surpreendia-me, revisava-o, ajustava-o, e quanto mais o repetia mais odeformava, esquematizando-o. Tinha necessidade dessa cripta secreta eluminosa, desse sepulcro subterrâneo onde eu me refugiava durante osmomentos di íceis. Quando as lembranças tristes invadiamminha alma, orelato que eu me fazia dava alívio: contando a mim minha tristeza,projetandoparamimoroteirodacausadomeudesespero,sentiaoprazerque se sente no cinema ao chorar com o herói. O desvio pelo espetáculointerior, no qual eu me via sofrendo e triunfando sobre a desgraça,atenuavameusofrimento.Buscandoaspalavras,acomodandoasimagens,compondoroteiros,euacabavaexperimentandoumsentimentodebeleza.Vocêssedãoconta?Eutransformavaembelezaaguerraeodesgosto!A impossibilidade de testemunhar sujeitava-me à cripta.40 Eu não era

su icientemente forte para falar daquilo tranquilamente. Pode-se falarcalmamente dessas coisas? A frieza administrativa na qual meprecipitaramprovocavaminha hostilidade. Tinha raiva dos relatórios nosquais eu devia expor minha situação familiar. Quando eu deixava aslembranças invadirem minha alma, sentia o peso do começo da tristeza.Contudo, quando as reacomodava para me oferecer um espetáculointerior,quandoasarrumavaparaimaginarminhaquimeraíntima,eume

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sentia feliz. O que provocava meu bem-estar não era a infelicidadepassada,eraarepresentaçãodainfelicidadedominada.Nem todos os feridos da alma reagiram da mesma maneira. Alguns

permaneceramemagoniapsíquica,prisioneirosdopassado,submetidosàsimagensrepetidasdentrodeles.Outrossedefenderampeloódio,comosearaivapudesseprotegê-losdadepressão.Sentimo-nosmenosmalquandoagredimosaquelesaquematribuímosacausadenossasdesgraças.“Eugostavamuitodaculturaalemã”,dizia-meFrédéric.“Recitávamosas

poesias, comentávamos os ilósofos, visitávamos as cidadezinhas. Nasorquestras familiares, só tocávamos música ídiche e alemã. Todos oshomens da minha família combateram no exército deste país durante aPrimeiraGuerraMundial.Quandoumprimonos faloudo crescimentodoantissemitismo, nós o xingamos, não quisemos acreditar. Depois da Noitede Cristal,41 fugimos para a França, onde, anos depois, o exército alemãonos perseguiu e destruiu grande parte daminha família. Cinquenta anosdepois, não suporto a ideia de ver des ilar jovens soldados alemães nosChamps-Élysées.Nãopassapelaminhacabeçacomprarumúnicoprodutoalemão.Aliás,esquecialíngua.”Outros adultos, acometidos pela fúria de testemunhar, quiseram

simplesmentedescreverasérieinacreditáveldeproibiçõesemaus-tratos.Quase ninguém leu a litania de leis que proibiam aos judeus seremhumanos.Uma informação que se repete termina não sendo uma informação. O

amontoadodecadáveres impedeatomadadeconsciênciadequesetratadecorposhumanos.Aoveraprótesedeumaamiga,équeCharlotteDelbocompreendequeéocorpodelaqueestánapilha.42

Escreverparatestemunhar

Escreverparatestemunharnãoéumareceita.Quandoaescritafazvoltaraangústiadopassado,despertaamemóriadohorror. “Aescritame faziamergulhar de novo na morte, submergir nela. Eu sufocava no arirrespiráveldosmeusrascunhos.”43Otempodanegaçãoénecessário.Quandoorelatoajudaadominarumacontecimentovividocomestupor,

oferidodelegaseutraumaaumporta-voz:“Euviviosacontecimentos,eu,eu, eu, entretanto precisava [...] transformar o ‘eu’ em ‘ele’. Sentia-me

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dividido,poucoàvontade,estrangeiro[...],sabiaque,senãoescrevessenaterceirapessoa,nãoescreveriacoisanenhuma.”44Como de hábito, a expressão de si depende de uma transação entre o

queéosujeitoeoqueéseuentorno.Algumaspessoastraumatizadasque,durante a infância, adquiriram uma força do ego e que, após o trauma,foramapoiadas sentiram-se su icientemente tranquilaspara testemunharsemfloreiosesimplesmenteacusar.Outras, menos fortalecidas e não acompanhadas depois do tumulto,

permaneceram prisioneiras de seu passado. A maioria precisou negar,evitaraevocaçãodopassado,antesdeconseguirterforçaparadizer:“ele”éoheróidomeuromance,oporta-vozdo“eu”aquemtudoaconteceu.Ascriançasqueprecisaramseesconderparanãoseremmortas foram

obrigadasa“criptografar”,45comodiziaGeorgesPerec,meuirmãodealma.Demasiadopequenaspara serem fortes, cercadasde relatos coletivosemque ouviam sua condenação à morte, pouco tranquilizadas por pessoasque,parasalvá-las,asisolavamelhespediamquenãodissessemopróprionome, adaptaram-se à estranha transação “compondo uma criptaabsolutamenteprivada,invisívelparaaimensamaioriadosleitores”.46O romance seria para elas uma forma suportável de testemunho, uma

acusaçãocifrada,umaconfissãoenigmática?QuandoPerecescreveWouleSouvenir d’enfance,47 faz uma narração de si na terceira pessoa e umaacusação ao nazismo, descrito por ele nesses Jogos Olímpicos idiotas emque o último é morto por ser o último. E é para “eles, meus paisdesaparecidos”,queescreveLaDisparition,noqualavogal“e”desaparece.Ao inaldeseulivro-testemunhocriptografado,Perecescreveque“Lans

[Villard-de-Lans] é um lugar de penosa lembrança. Ali ele descobriu aomesmotemposuajudeidade,aviolêncialigadaàjudeidadeeaculpaligadaàjudeidade”.48Foi nesse vilarejo que também eu descobri minha judeidade, sua

violênciaesuaculpa,queconvidamtãofortementeàaventuraintelectualeaoengajamentosocial.Eugostariamuitoqueessastomadasdeconsciência,comunsaPerecea

mim,tivessemocorridonoGaiLogis,sombriapensãoatrásdaigrejaondeasimplesdesignaçãopelonome“judeu”meobrigaraa icardepé,atrásdasoutrascriançasajoelhadas,autorizadasarezar.NãopodereicompartilharalembrançacomPerec,pois icosabendoqueelemorava“numapousada[...] subindo à esquerda, logo depois da praça [...], numa rua estreita”.

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Éramosvizinhos,o Igloo “nãoé longeda igreja. Foi láqueGeorgesPerec,nooutonode1941,foimorarcomsuatiaEsther”.49Durante a guerra, corri perigoporumapalavraquedesignavanão sei

quê. Depois da guerra, amesma palavra, pronunciada quandominha tiasobrevivente me encontrou, excluiu-me outra vez do grupo. O que apalavra queria dizer? O que designava? A própria existência eracriptografada.Apalavra“judeu”,pronunciadaemummeio judeu, teriaprovocadoum

deliciososentimentodepertencimento.Amesmapalavra,pronunciadaemum meio não judeu, provocava um sentimento de exclusão (eu não eracomoosoutros),comumapontadeestranhoorgulho(eunãoeracomoosoutros). Privadodeminha família e deminhas origens, o trauma tornavaminha identidadesecreta.Privadode raízes, sentiaoprazerquese senteao viajar por um país desconhecido. Sentindo-me estrangeiro, tudo setornava surpreendente. Meteco viajante, estranhamente na própria casa,eunãopodiaternascidoemoutrolugarsenãoBordeaux,serimpregnadoporoutraculturasenãoadaFrança,nãotersidoexpulsodopaísdaminhainfânciasenãopelosgestapistas,pelosnazistase“pelosvizinhospropensosame denunciar”. Meu olhar exterior fazia demim um visitante emmeuprópriopaís,ummarginalapaixonadopelomundodosoutros.Durante a guerra, tinha sido obrigado ao segredo para não morrer.

Depois da guerra, a “criptogra ia” forçada permitia que eume adaptasseàsreaçõesmórbidasdaspessoasnormais.Eumecalavaporqueninguémpodiaouviroqueeutinhaparadizer.Asreaçõesdaspessoasmecortavamapalavra. Às vezes, a coisame escapava comouma tagarelice banal: “Eufui preso... libertei Castillon tocandoos sinos... entreguei lores ao generalDeGaulle...”Dequeessemeninoestáfalando?Como querem que meu testemunho dê impressão de coerência? Os

adultos integravam minhas tentativas de palavras na banalidade de seucotidiano e diziam: “Pare de se queixar, nós também não tínhamosmanteiga.” A interpretação dos ouvintes, o rebaixamento dos fatosevocados descoloria meu testemunho. Distância demais para percorrer...Palavras demais para pronunciar... Provas demais para dar...Melhor nãodizernada,émaisfácil.

Relatosdesarmonizados

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Primeiro precisei calar-me para não morrer, depois me calei para icartranquilo.50 Quando sucedeu eu ser ouvido, não foi melhor. “Coitadinho”,diziamosadultos,eapiedadedelesmeesmagava.Àsvezes,asperguntasexcessivamenteprecisassobreminhaevasãomefaziamcompreenderqueo ouvinte duvidava e tentavame pegar. Uma vizinha,muito gentil, pediuqueeulhecontassecomotinhasidovioladopelospedó ilos:“Umacriançasozinha, pense bem!” O verdureiro da rue Ordener disse a uma cliente:“Peçaaestemeninoquecontecomoosalemãeserammalvados.”Ohomemme pedia que relatasse um horror para divertir a cliente. Umamoçamefulminou: “Eu, no seu lugar, teriamorrido comminha família.” Ela estavaindignada, acusava-me de ter sobrevivido, de ter abandonado os meus!Durante uma das minhas idas e voltas de trem entre Paris e Bordeaux,Dora pediu a um padre sentado do meu lado que cuidasse de mim.Durante o trajeto, eu disse a ele duas ou três palavras sobre minhahistória, e ele me explicou: “Para ser punido dessa maneira tão terrível,seuspaisdevemtercometidofaltasenormes.”Maisvalecalar-se.As interpretações dos outros me faziam compreender que eu não era

comoos outros. Eu devia calar-mepara parecer normal,mas calando-menãomesentianormal.Portertriunfadosobreamorte,euerainiciado.Masminhavitóriadevia

permanecer muda para que eu pudesse permanecer no mundo com osoutros. Então prometi a mim mesmo que um dia eu contaria. Mas erapreciso que, antes, fosse capaz de falar. Muito cedo acreditei que apsiquiatrialegitimariaminhapalavra,explicandoaloucuradassociedades.Levei muito tempo para compreender que, antes deme arriscar a falar,eraprecisotornarosoutroscapazesdeouvir:“Umavezqueviorostodamorte,queosoutrosnãotiveramaoportunidadedever,umdialhesdireicomoelaé.”51Eunão tinhaódiodosalemães,pois já entenderaqueoqueos tornara

cruéis não fora a malvadez, mas sua submissão a uma teoria absurda:“Enquanto uma instituição se apoia em instintos fortes, ela não admiteinimigos nem hereges: massacra-os, queima-os ou encerra-os. Fogueiras,cadafalsos, prisões! Não foi a malvadez que os inventou, foi a convicção,qualquerconvicçãototal.”52Cioransabedoqueestáfalando,poisconheceuo prazer de se submeter a um fanatismo absurdo, na época em quesaudava Hitler recitandoslogans antissemitas. Depois, assustado com a

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felicidade aterradora, evoluiuparauma liberdade anárquica talentosanaqualseuautocinismosetornouumaformadehumor.Calar-se é fazer-se cúmplice dos assassinos, mas falar é denunciar a

própria intimidade, “desnudar-se”, comoàsvezes sediz.Pode-se “morrerde dizer”, 53 explica-nos Rachel Rosenblum. Não dizer é uma mentira, edizer é um sofrimento. Por isso falava-se do passado tão mal na minhafamíliarecomposta.Eu sentia o sofrimento de Dora quando, em uma curta frase, ela

mencionavaRoseouNadia,minhamãe,suasduasirmãsdesaparecidasemAuschwitz. Sua agonia era maior quando murmurava: “Jeannettedesapareceutotalmente,tinha15anos.”Euentendia,naquele“totalmente”,queelasequerdesapareceraemAuschwitz.Nadaparaserrepresentado.Nada.Doracontavasuaguerracomumaúnicapassagemcemvezesrepetida:

elatrocaracomidaporalgunscigarros.Sabia-se que Jacquot entrara para a Resistência aos 18 anos, e que

participara de várias ações gloriosas. Ele falava dos outros, “seuscompanheiros de Resistência”, que ele via regularmente durantemanifestaçõescomunistasereuniõesdecélula,masnadasesabiadoqueele tinha feito. Quarenta anos depois, uma deminhas pacientes, tambémresistenteaos15anosdeidade,temendoqueeunãoacreditassenela,metrouxe um livro grosso no qual estavam consignados os nomes dosresistentesreconhecidosesuasaçõesmaismarcantes.Eulientãoque,coma idade de 20 anos, à frente de um batalhão, Jacquot participara dainsurreiçãodeVilleurbanne.SobreÉmile,nemumapalavra,nemsequerumaalusão.Nomeuespírito

decriança, eupensava, comoelenãoera judeu,quenão tinhanadaparacontar.Eis como se compunha meu nicho verbal depois da guerra, em 1947.

Margot e sua família permaneciamnaminhamemória,mas se afastavamno cotidiano por causa do con lito com Dora. Achei há algunsmeses umdocumentonoqualMargot,desejandomeadotar,explicavaaojuizquenãoerapossívelcon iarumacriançaaumadançarinasolteira.Doraressentiu-sedela,foinomeadatutoraedesignouÉmilecomotutorsub-rogado.Fiqueicontente por não ter sido adotado, isso me permitia permanecer iel ameuspais.Comessejulgamento,eumetornavaafontedauniãoo icialdeDoraeÉmile.Momentodegrandefelicidade!

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Dora, na Polônia, fora à escola. Mas em Paris, com 14 anos, precisaraajudarospais.Emseguida,aguerra impediraosestudos.Elamediziaàsvezes“Margotéumaintelectual”,oquenãoerabomsinal.NapresençadeÉmile, ela se calava: imagine, um diretor de laboratório! Com os amigosdançarinos ela ria e falava,mas comos colegasdeÉmile ela semantinhaafastada.Assim que Jacquot chegava à rue Ordener, do outro lado da butte

Montmartre para onde nosmudáramos, a alegria, o calor e os discursospolíticosentravamcomele.Émile falavadeseu laboratórionaLMT,pertodos Invalides. Explicava seus trabalhos sobre centrais telefônicas e sobreososcilógrafoscatódicosquepreparavamatelevisão.Euouviamuitofalarde Svoboda, um emigrado tcheco que, se eu entendia bem, trabalhavacomo porteiro no laboratório para pagar o curso de engenharia. Émilefalava dele com estima, ajudava-o a preparar-se para o concurso, masnunca o convidava para vir a casa. Eu me encantava com os enigmascientí icos, com as fotos de esqui, de rúgbi, e com os relatos das viagensque ele fazia para dar conferências nos Estados Unidos e no Brasil. Eraassimquesedeviaviver,sendoalegrecomoDora,comunistacomoJacquotecientistacomoÉmile.Os colegas de Jacquot, antigos resistentes, me pareciam pouco mais

velhos do que os garotos grandes que, no ginásio, se preparavampara obac*ouparaasgrandesescolas.Esses“antigos”combatentesmelevavama reuniões do Partido Comunista, comentavam para mim os artigos deL’Humanité e me apresentavam, como quem apresenta um herói, HenriMartin, que apertava asmãosolhandoparaoutro lugar. Estemarinheiro,mandadoparaaguerradoVietnãemboramilitassecontraocolonialismo,tornou-se um ídolo para os comunistas. Omilitar corria grande risco porter escrito: “Nosso sangue não está à venda [...], marinheiros de Toulon,não nos engajamos para ir morrer na Indochina em proveito dosbanqueirosfranceses.”54Eunãotinhaconsciênciadonãoditodopós-guerra,poisoquede inea

negaçãoéjustamentenãodizer,escamotear,relativizara imdeorientaraconsciência para acontecimentos mais agradáveis de compartilhar.Devíamos, para recomeçar a viver, evitar o passado e projetar o futuro.Para não sofrer a sorte da senhora Lot, era preciso sobretudo não olharpara trás, para as ruínas do passado, onde ainda lamejavam algunsproblemasnãoresolvidos.

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Ocontextorelacionalilustraoqueacriançapõenamemória.Mas,parafazerumahistória,éprecisoharmoniaentreosrelatosdesieosrelatosdoentorno, uma “coerência narrativa”. 55 “Pertencer a uma cultura é [...]realizá-la,aceitá-laouperceberseusobjetivosatravésdosaspectossociaisquepropõemumordenamento.” 56Quandooentornonãoestáprontoparaouvirvocê,ouquandoosrelatosdoentornocontamumacoisadiferentedoquevocêviveu,édi ícileatéperigosotestemunhar. 57Dizeréserexcluído.Calar-seéaceitaraamputaçãodeumapartedaprópriaalma.Eu tinha 10 anos quando iquei sabendo que Pôncio Pilatos lavara as

mãos.Nesse dia, descobri tambémque eu pertencia ao povo quemataraCristo. De imediato, o argumento me pareceu discutível: uma vez quetinham me dito que Deus era todo-poderoso, era ele, portanto, queordenara aos judeus matarem seu ilho. Ele não era tão bom assim. Ouentão sedeviaadmitirqueos judeuserammaispoderososdoqueele!Oolhardosoutrosacabarademefundar judeu.Euaindanãosabiaoqueapalavra designava, mas tinha compreendido que na minha origem haviaum enigma trágico e apaixonante, su iciente para tornar megalômanoqualquermenino!Ainda hoje ico chocado com a incapacidade de limitarmos nosso

pensamento.Mal descobrimosum fato, já o generalizamos até o absurdo.Nossodesejodedescobriras leisgeraisqueregerãonossascondutasnoslevaainventarfábulasàsquaisnossubmetemos.

*Cançãohumorística emvoganos anos1930, acaboupor se tornar expressãoproverbial paradesignaraatitudedecegueiradiantedeumasituaçãodesesperada.(N.daT.)*Sorvetedecremecobertodechocolate.(N.daT.)

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CAPÍTULO4

AMARCADOSOUTROS

NodiadoassassinatodopresidenteKennedy,euestavaemMontpellier,nacasadotiodaminhamulher.Quandoorádioanunciouaabismantenotícia,eu estava de pé na sala, entre o pesado armário normando e umatoalhinhaemcimadamesa.Atoalhinhaeraderendae icavaporbaixodeumvaso.Vejamcomoéumalembrança.Eujánãoouçoavoznorádio,masseiqueelaanunciouoassassinatodopresidente.Emcompensação,vejoaimagem da toalhinha sob um vaso, mas já não vejo o vaso, lembro-metambém do volume escuro do armário. Um fato chocante pode, portanto,ter um efeito de contágio emocional: percebi a toalhinha e a pus namemóriaafimdecontextualizarainformaçãosonoradeumacontecimentoexcepcional.

Relatodotraumaecontextocultural

Algum tempo depois do assassinato, as rádios, os jornais e os rumoresrepetiam, como slogans cotidianos, que os moradores de Dallas tinhamvigiadomalo trajetodopresidenteKennedy.Eramportantoresponsáveispelatragédia.Depoisdeprotestarem,elesconstataramqueaquelapressãoacusatóriaprovocaraumasurpreendentesolidariedade.Nostrêsanosquese seguiramàmortedeKennedy, a cidade conheceuuma surpreendenteexpansão.1 Limparam-se as ruas, construíram-se prédios com aparênciacaprichada, e sobretudo a fraternidade dos habitantes foi claramentereforçada.Generososdoadores inanciaramassociaçõesquecuidavamdospobres e atividades culturais. A ajudamútua coletiva era provavelmenteresultado de ummecanismo de proteção diante de um estresse cultural,uma vez que, aomesmo tempo, os arquivosmostravamum aumento dosinfartos e dos suicídios. Diante da agressão, cada umprotegendo o outrodinamizavaacidade.Oefeitode tranquilizaçãoestimulantecessouapósoassassinatodeMartinLutherKing.FoientãoacidadedeMemphisquesebeneficioudomesmofenômeno!Seja coletiva ou individual, a memória é intencional: ela vai buscar no

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passado os fatos que dão forma ao que se experimenta no presente.Quando, em um grupo, se compartilha um mesmo relato, cada um étranquilizado pela presença do outro. Contar amesma história, acreditarnasmesmasrepresentações, criaumsentimentodegrande familiaridade.É por isso que os relatos compartilhados, os mitos relatados, as precesrecitadasladoaladosãoexcelentestranquilizantesculturais.Otraumacoletivosolidarizaosmembrosdogrupoquesereúnempara

enfrentar o agressor, ao passo que o trauma individual dessolidariza aoensejar relatos impossíveis de compartilhar. O destino do trauma difere,portanto, segundo o contexto verbal: “Um acontecimento traumáticocoletivo é inevitavelmente intermediado, iltrado pelo grupo, pela família,pelaculturaepelasociedade,diferentementedeumaagressãoindividual,que tende a isolar o indivíduo em seu sofrimento.”2 Depois de umdramacoletivo, constatam-se frequentemente um elã de solidariedade e atecedura de elos afetivos entre as vítimas. Porém, “quando o trauma éindividual,orelatocoletivoimpedeatéaelaboraçãoindividual”.3SchaulHarelteveumainfânciacomparávelàminha.NascidonaBélgica,

órfãodaSegundaGuerraMundial, foi recolhidoporuma instituiçãobelgaque, na Libertação, o enviou para Israel. Quando a criança conta aoscolegasdeescolaouaoscompanheirosdoexércitooque lheaconteceu,éapelidada desoap (sabão), em referência ao rumor de que os nazistasfaziam sabão com a gordura dos deportados. Schaul, obrigado a se calarparanãoserdesprezadopelosamigos,estudaraivosamentemedicinaesetornaprofessordeneuropediatriaemTelAviv.Os jovens judeus nascidos na Palestina antes de 1948 ou em Israel

depois da Guerra de Independência4 tinham orgulho de suas vitóriasmilitares. Primeiro tinham combatido os exércitos árabes pró-nazistas 5

organizados sob as ordens deRommel desde 1941 e derrotados emBir-Hakeimem1942.Depoistinhamconquistadoterritóriosem1949,quandoos exércitos árabes invadiram o Estado de Israel acabado de nascer, em1948. Os orgulhosos sabras ouviram estereótipos que diziam que osjudeus europeus se deixaram levar para o abatedouro como carneiros.Ignorandoseuscombates,elesosdesprezavam.Foisóao inaldoanode1961queoprocessoEichmann,“pelaprimeira

vez, chamou a atenção da opinião pública internacional para aShoah”.6 Oprocesso,quetornoupúblicooassassinatodequase6milhõesdepessoasgraçasaumaperfeitaadministraçãoeaumaindústriae iciente,mudoua

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opinião israelense. Os companheiros de Schaul passaram a achar que a“ascensão” de Israel fazia daqueles carneiros soldados vitoriosos:“Mitologiatranquilizadora...insuflavam-nosaoheroísmo.”7MeuamigoHenriParens,expulsodaBélgicapelaadministraçãomilitar,

é encerrado junto com amãe no “centro de reagrupamento familiar” deRivesaltes, perto de Perpignan. Tem 11 anos de idade quando conseguefugir.PegaotremquepassaporMarselhaeolevaaSaint-Raphael,ondeamãelhedeuoendereçodeumacasadaOSE,*queoenviaparaosEstadosUnidos. A família que o acolhe calorosamente indica-lhe o endereço dasinagoga,nocasodeelequereriratélá.8Excelentemúsico,pagaoprópriocurso de medicina e torna-se professor de psiquiatria na Filadél ia. Acripta de Henri mal chegou a existir, pois o novo contexto familiar eculturallhepermitiutomarapalavra.ParaSchaul,acriptaduroualgunsanos,quandoochamavamde“sabão”

para indicar que ele pertencia ao grupo dos vencidos. Mas, assim que acultura israelense mudou, assim que Schaul foi cercado por relatoscoletivosqueexplicavamanecessidadedesesolidarizarparaenfrentarospaíses árabes, os estudantes, os soldados e a mídia lhe devolveram apalavra.No meu contexto familiar do pós-guerra, todo mundo estava ferido. A

menor alusão à perseguição fazia mudar o curso das discussões. Nacultura que me cercava, só se escutavam relatos de resistência, decoragemededesenvoltura.Nenhumaqueixa.Falardoquemeacontecerateria me ajudado a compreender, a tornar coerente aquele real louco, anão me sentir mais um monstro, expulso da condição humana. Calar osanos de morte e rupturas repetidas era “ver-se sozinho, submetido aoacontecimento”.9

Ahistóriaseesclareceàluzdopresente

Oquemeespanta,hojequemeconvidamparacontar,éadi iculdadequemeusouvintestêmdeseguirminhasexposições:–EntãoMargotsecasoucomumcolaborador?–Não,não,aocontrário,elasecasoucomumresistente.–FoiMargotqueeducouvocê?–Não,foiDora.

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–VocêfugiudeAuschwitzcom5anos?–Não,euestavaemBordeauxcom6anosemeio.Até meus cordiais amigos se perdem no encadeamento dos

acontecimentos e no papel dos adultos. Confundemos salvadores comosagressores, os lugares e as datas. O real da guerra é tão incoerente quecompõeparaelesumarepresentaçãoconfusa.Leveimuito tempo para ser claro. Eume enganava com as datas e os

lugares.AchavaquePondaurat erapertodeAvignon.Acreditava ter sidopresocom2anosemeio,masumdia,vendominha ilhadamesmaidadechorar chamando a mãe, compreendi que era impossível. Só ao ver umarquivo que Michel Slitinsky10 me enviou, pude calcular que, durante aprisãoemmassade10dejaneirode1944,eutinha6anosemeio.Preciseilerdocumentoseescutarrelatosexterioresaomeuparametornarcapazdedarcoerênciaàrepresentaçãodomeupassado.A história se esclarece à luz do presente, e o próprio presente é

estruturado por seu contexto. Os relatos do entorno constituem umconjunto de crenças, de lembranças e de comportamentos que podemevoluir segundo os encontros. A chave do passado é o presente. E o queestruturaopresenteénossarelação.11Uma guerra é uma guerra, vocêsme dirão. Eu responderei que é seu

signi icado o que atribui conotação afetiva às lembranças. Os soldadosisraelensesmortosduranteaGuerradosSeisDias12foramsacri icadosporsuasfamíliasepelaculturadopaísporquesuamortesignificava:“Graçasavocê, nós afastamos a invasão dos exércitos árabes que queriam adestruiçãodeIsrael.Vocêmorreuparanósvivermos.”Essa “heroicização” não foi possível durante a Guerra do Líbano em

1982, emenos ainda durante os bombardeios que se seguiram. Amortedos soldados provocou um luto doloroso e não um êxtase místico: “Suasmortes são estúpidas, não há sentido morrer assim, deveríamos ternegociado.”Emtalcontexto,amortedos jovens jánãoéumatoheroico,éumacidentedesolador.“Os ilhosdesobreviventesnascidosnaAméricadoNorte,doSulouem

Israel, ou seja, longe dos locais estigmatizados pelaShoah, nunca tiveramde enfrentar as mesmas crises de identidade [...]. Os jovens francesesparecem bemmais perturbados do que os jovens americanos cujos paisnão passaram por situações que os obrigaram a dissimular a origemjudaica.”13

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As crianças que cresceram nos Estados Unidos, na Inglaterra ou naAmérica do Sul ouviram problemas “bons de pensar”, ao passo que ospequenos franceses ouviram o silêncio, a palavra retida, que elasinterpretavam como uma “proibição de pensar”. 14 A conotação afetiva daShoah dependia dos relatos do entorno: terrível e glori icadanosEstadosUnidos,omesmovozeriotornava-seopressorevergonhosonaFrança.Ninguém falava daquilo. Mesmo os psicanalistas, habituados porém a

ouvirrelatosdeexceção,nãopropunhamnenhumare lexãosobreotema,como se seus analisandos nunca tivessem falado ou como se ospsicanalistas nunca os tivessem ouvido. Os mudos falavam aos surdos,mesmonodivã.Por sorte, eu tinha à minha disposição umpatchwork de identi icação.

Estava cercado de iguras de afeição que compunham um trabalho decosturacomcoresetecidosdiferentes.Cadaummeofereciaumpedaçodemodelo.Dorametraziaumapontinhadefamília:eraairmãdaminhamãe,sabia coisas; umdiame contaria. Jacquot tinha sido herói da Resistência.Nomeuespírito,eleerapróximodomeupai,feridoemSoissons,naLegiãoEstrangeira. Émile representava o futuro: “Quando eu crescer, vou sercientista,jogadorderúgbieviajante.”Eu gostava de Dora por sua proximidade afetiva e sua alegria, apesar

das explosões cada vez mais frequentes. Gostava de Émile pelo querepresentavam sua imagem e sua aventura. O substituto familiarfuncionavabem.

OjazzeaResistência

Nós agora morávamos na rue Ordener. Ele morava conosco? Estavafrequentemente lá, na ponta da mesa. Estava frequentemente lá? Nãotínhamos atividades familiares fora de casa, não saíamos ou tirávamosférias,nemcinemas,nem trabalho,nemamigos,nem famílias emcomum.Nessaépoca,entre10e12anos,eunãomedavaconta,de tãoávidoqueeradaafeiçãoqueelesmedavam.Conheci Émile assim que Dora me recolheu depois da Libertação, por

voltade1946.Nessaépoca,elemoravaemLyon,narueJacquard,emumapartamentosemmóveisemcimadopequeno laboratórioqueeledirigia.Euouviadizer:“Tãojovemejádiretordepesquisa!EntrounaCentraltão

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cedo!”Nãosabiaoque issosigni icava,mas, comoeupercebiaadmiraçãonessasfrases,ficavafeliz.Frequentemente,Émilepunhaparatocarnumavitrolaumgrandedisco

dejazzquesechamavaRagtime.Entãogosteidejazz.Umanoite,nósfomosdançarnaplaceBellecour.Dançava-semuitonaruadepoisdaguerra,naspraçasdascidadesoufechandoasruascommesasecadeiras.Fazia-seumcírculo em volta dos dançarinos e de alguns músicos, e eles eramencorajadoscombatidasdemãos.Eraumgrandemomento.Quando as mulheres rodavam, seus vestidos voavam; quase todas

usavam um chapéu pequenininho que chamavam debibi. Émile tambémdançavamuitobem.Seusgestoseram lexíveiserápidos,comoconvémaojazz, mas sobretudo fazia exibições com as mãos: apontava o indicadorparaocéuebatiaoritmo.Todomundoaplaudia.Euficavamaravilhado.O jazz durante a guerra adquirira um signi icado de resistência, ele

desdenhavadasordensdaprefeitura.Jáqueosjudeustinhamaobrigaçãodecosturarnopeitoumaestrelaamarelaqueosdesignavaàpopulaçãoeàpolícia,algumaspessoasnão judiasdecidiramtambémusá-las.Porém,emvezdecolocarapalavra“judeu”dentrodela,escreviam“papua”,“budista”,“auvérnio” ou“swing”. A maior parte dos jovens não sabia que aquelapalavracondenavaàmorte.Elessimplesmentebrincavamcomaproibição:“Domingo que vem, vamos nos divertir bastante, mesmo os não judeusentre nós usarão ( sic) a estrela.” 15 Algumas pessoas revoltadas com asmedidas antijudaicas usavam a estrela de Davi, como um cartaz duranteumamanifestação.Nãoerararocristãosseinclinaremoutiraremochapéuparasaudarumafamíliajudiaquepasseavacomdignidadeexcessiva.Os“swingers”eramosmaisnumerosos,apontodeosimples fatodese

vestirdezazou*,compaletóscompridosesapatosbicolores,tornar-seumamanifestaçãode simpatiapelos judeus,oqueprovocavaa intervençãodapolícia: “Passei anoitenosporõesdadelegaciadepolícia, numacela comgrades, comoumcriminoso”, testemunhaMichelReyssat, “condenadopor‘porteilegaldeestrelaamarela’.”16“Uma França swing em uma Europazazou”: essa frase, paramim, valia

comoumatoderesistência.Então,naplaceBellecour,quandoeuviaÉmiledançandoswing com o indicador no ar, pode-se bem imaginar que eusentiaporeleaadmiraçãomerecidapelosheróis.Eu me pergunto por que todas as ditaduras consideram a arte e a

psicologia atividades suspeitas. Minha amiga Élida Romano, psicóloga em

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BuenosAires,eseumarido,diretordoOpéra,contamqueapolíciabaixavafrequentemente nos consultórios para con iscar agendas de consultas aimdedescobrirpacientesconsideradoscúmplices.Elatevedefugircomomaridomúsico,estenecessariamenterevolucionário.NaRomênia,“veri icaçõesnasescolaseatéverdadeirasbatidaspoliciais

eram organizadas para identi icar os rapazes que usavam cabelo muitocompridoouasmoçasqueusavamsaiamuitocurta”.17A primeira vez que fui a Bucareste, iquei encantado com a acolhida

afetuosadadapelosromenosaos franceses.Nas livrarias,nasescolas, lia-semuitoÉmileZola,AndréGideeAndréStilporque,diziam,descreviamadecomposiçãodasociedadecapitalista.Fazia-se ila para ir ao teatro ver excelentes peças. Antes das três

pancadas do contrarregra, que anunciavam o começo da peça, doisrapazes e uma moça entraram no palco suingando uma música de jazz.Aquilome lembroumomentos felizes. Alguns espectadores começaram aestalar os dedos e amarcar o ritmo balançando a cabeça. Os três jovensentão icaramdecostasaomesmotempo,ecadaumlevavanascostasumcartazonde sepodia ler: “Eu... sou... umasno.”A sala caiuna gargalhada.Todososnormais,submetidosàditadura,aplaudiram,humilhandoosquecomeçavam a marcar a cadência da música. Quando se suingava naRomênia,oconformismocompactuavacomaditadura.

Aafeiçãoouaideologia

Àsvezes,Dora,compequenasfrases,mecontavaduasoutrêscoisassobrea guerra. Um dia, em Lyon, onde ela morava com Émile, ela estavaesperandoporJacquot,jáengajadonasFTP.Asbatidasnaportanãoeramas de seu irmão. Émile abriu e viu-se diante de dois agentes da Gestapo,queentraramempurrando-o:“Viemosprendera judiaDoraSmulewicz.” 18

Émile levou-os para longe de Dora, cochichou coisas certamenteimportantes. Os agentes o repreenderam, dizendo que não era certoprotegerumajudia.Émilepediuaelesqueesperassemdoisminutos,subiupelas escadas por onde Jacquot chegara para o encontro e fez-lhe sinalpara que fugisse. Émile tinha portanto salvado Dora e Jacquot, mas eupressentiumaespéciedesombra.EuacabaradevoltardoginásioquandoDoramedisseaquelasduasou

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três frases.Émile frequentementeestava lá,masnãoconsigome lembrarsemoravaconosco.Lembro-me,istosim,deque,ao inaldaqueleanofeliz,Dorameanunciouqueelesestavamseparando-se...Um imenso torpor tomou contademim.Doramedisseque eupoderia

continuaravê-lo,poiseleacabaradecomprarumestúdionarueVanneau,perto do laboratório dele. Eu ia até lá de quando emquando,mas já nãotínhamosmuitacoisaparanosdizer.Temiafazê-losofrerfalandodonovorelacionamento de Dora, um homem basicamente simpático, umcomerciante que só falava de esporte, de bicicleta principalmente. Eumecaleicomodehábito.Émile trabalhava cada vezmais. Levantava-se tarde, deixava cair água

quenteda torneira dentrodeuma xícara com café instantâneo, ia para olaboratóriopor voltadas10horas, trabalhava sem interrupçãoaté as10horasdanoite,depoisiaatéumpequenorestauranteondepediaumúnicopratoantesdahoradefechar.Oquemaispossodizer?O vínculo afrouxara-se, mas no imaginário continuava presente. Nos

meus relatos mudos, eu continuava a contar para ele os acontecimentosmarcantesdaminhanovavida,maselenãosabiadenadaporqueeumecalava.Euligavaparaeledequandoemquando.Umdia,asecretáriarecusou-

seatransferirminhaligação.Depoisdeváriastentativas,elaterminoupormedizerqueeleestavahospitalizadonoPitié,naneurocirurgia.Naépoca,eu estava no segundo ano demedicina. Ia vê-lo todas asmanhãs. Estavaafásico e falava cada vez menos, mas, quando conseguiu gaguejar paraumaenfermeira“Soututordele”,Émilemedeuseuúltimopresente.Uma manhã, quando cheguei, o leito estava vazio, o cobertor virado.

Ninguémmeavisou,eunãoeradafamília.A cerimônia aconteceu na igreja de Saint-Philippe-du-Roule. Junto do

caixão estavam pessoas que eu não conhecia, sua família provavelmente.Havia também um homem de bela aparência com um adolescente louroquechorava.CompreendiquesetratavadeSvoboda,oengenheirotcheco,eoadolescentequechoravaeraoa ilhadodeÉmile.Permanecinaentradadaigreja.Nãonosfalamos.Fuiembora.Sozinho.Foialgumassemanasantesdoexamedesegundo

anodemedicina.Nãotinhacomparecidomaisàsaulasdesdequepassaraa visitarÉmile todas asmanhãs, na salaBerger, de neurocirurgia. Eumesentava junto da cama, ele afásico e eu mudo. Dava muita importância

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àquele adeus, eu que não dissera “adeus” aos meus pais. Já não ia àfaculdade,jánãoabriaumlivro,conseguiserreprovadonoexamede inaldeano.Nãoteriasuportadoserfelizdepoisdasuamorte.Anos depois, fui nomeado interno naquele mesmo serviço de

neurocirurgia. No momento da distribuição dos leitos de que nosencarregaríamos, um jovem externo recusou-se a ir para a sala Bergerporque seu pai morrera lá. Eu aceitei encarregar-me daquela salapensando que seria umamaneira de ainda visitar Émile. O fato émenosimportante do que o que evoca namemória: para o jovem externo era aperdadopai,paramimeraumúltimoadeusqueeunãopodiadeixardedar.Háalgunsanos,quandoDorapassoudos90anos, inalmentecontamos

um ao outro nossas infâncias. Gostei de que ela me descrevesse os riosgelados da Polônia, a festa no vilarejo, o perigo do degelo, a rivalidadeafetuosaentreasirmãseasaulasdehebraicoqueaaborreciam.GosteidequeelamecontassecomotioStern,comoeladizia,explicavaqueaFrançaeraopaísda felicidade.GosteidequeelaevocasseavidacotidianaantesdaguerraemBelleville,ondearuaeraumlugardeencontros,de jogosedesocialização.Então contei a Dora o papel importante que Émile desempenhara na

minhainfância.Apesardesuapresençarara,eumeidenti icaramuitocomele.EumetorneimédicoporqueDoramedissequeeraodesejodaminhamãeeacheitambémqueerasu icientementecientistaparaestarpróximodeÉmile.Jogueirúgbiparafalardojogocomele...duasoutrêsvezes.Edepois, acrescentei, durante a guerra, ele também foraumherói. Ele

salvou a sua vida e a de Jacquot.Na Libertação, respondeuDora, os doisagentesdaGestapoforampresosporterlevadoparaamorteumnúmerogrande de lioneses. Émile, chamado a depor, voou em socorro deles edeclarouqueosdoispoliciais tinhamsalvadodois judeus.Elesnão foramcondenados. Émile dizia que izera aquilo “por caridade cristã”. E entãoDoraacrescentou:“EleliaGringoire19eviviaemummeioantissemita.FoioqueeleexplicouaosdoisagentesdaGestapoquandopediuaelesquenãomeprendessem.”À noite, ao chegar a casa, não pude olhar para sua fotogra ia

emolduradana escada. Tambémnão consegui retirá-la. Para apagar essasombra,éprecisoqueeuacompreenda.

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Perder-seemutopia

AsenhoraDescoubès,aenfermeiraquemeajudouafugir,mecontouqueantesda libertaçãodeBordeauxelahaviasidoconvocadapelaprefeitura.Seusamigoslhediziam:“Nãová.Fuja.”Édifícildeixarafamíliaeacasa,emplena guerra. Ao chegar à prefeitura, Maurice Papon 20 recebeu-a muitobem.Eleselevantou,deuavoltaàmesaeapertouamãodamoçadizendo-lhe: “Nós sabemos o que a senhora fez. Meus parabéns.” Estou certo deque ele era sincero ao admirar aquela enfermeira tanto quanto deve tersido ao participar, como alto funcionário, do “Departamento de QuestõesJudias”quemandouprenderedeportarmaisde1,6milpessoas,entreasquaisumacentenadecrianças.21Claro, o vento tinha virado, e, pressentindo a derrocada da Alemanha,

numerosos altos funcionários preparavam a própria reconversão. 22 Mascomo entender que um homem possa se aproximar de Gaston Cusin,Jacques Soustelle e de outros verdadeiros resistentes e, no mesmo dia,assinar o ato de prisão de milhares de pessoas inocentes? Depois deefetuar seu trabalho mortífero, como podia dar parabéns à jovemenfermeiraqueseopunhaàssuasdecisões?Quando nos submetemos a uma representação, a ponto de cortá-la de

qualquer percepção real, realizamos uma abstração utópica. Quandosonhamos emmorar em um não lugar, uma cidade ideal onde as almasseriam perfeitas, experimentamos um sentimento de euforia e deonipotentebeleza.Tal idealizaçãoédiferentedorefúgionodevaneio, 23 noqualsesofremenos fugindodeumreal insuportável.Eumerefugiavanodevaneio quando, criança, fugia da sociedade perseguidora dos homensparameisolaremumsubterrâneoluminoso,afetuosamenteprotegidopormeus amigos animais. Ao contrário, um utopista imagina: “Seriamaravilhoso vivermos juntos em uma cidade pura e justa da qual o malseria erradicado. Nossas relações seriam angelicais. Seríamostransparentes, pois, todos iguais, sem diferenças, sem estrangeiros, nadateríamosporesconder,pensaríamoscomumasóalma.”Em Utopia, toda manifestação íntima é um ato de dessolidarização.

Aquele que faz segredo é um destruidor de sonho, ou até um criminoso,poiscertamenteestáescondendoumatransgressão.Elenãoédosnossos,ele nos destrói. Morte ao estrangeiro, ao negro, ao judeu, ao louco, aoaidético, ao outro, ao diferente que não pensa como nós! Uma vez que

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pensamosoBem,a sociedadeperfeita, a igualdadedasalmaseapureza,os outros diferentes nos conspurcam e destroem nossa utopia, ao nãorecitaremnossasprecesenossosslogans.Assim funcionam as sociedades totalitárias, onde qualquer aventura

pessoal, comoa arte ou a psicologia, é consideradaumablasfêmia contraAqueleque concebeuaCidade Ideal.O relatoutópicoéumenunciadodereceitas de felicidade, às quais se opõem o romance exaltado ou aautobiogra ia obscena que revelam problemas pessoais. O privado nãoexisteemUtopia,vistoque,emnomedaMoral,éprecisoeliminar,torturarereeducartodososque,porsuadiferença,sãoblasfemadores.O discurso das crianças é tão a irmativo quanto uma utopia. A nuance

vem com a idade. Quanto menos conhecimentos temos, mais temoscertezas. Em Utopia não há senão uma representação do mundo, a doChefe venerado que programa nossa bem-aventurança, os amanhãs quecantam e mil anos de felicidade. Assim falam as seitas. Nós adoramos oEstadoenossubmetemoscomalegriaÀquelequesabetudo.Emtroca,elenosdesresponsabiliza,oquenosprotegedaculpaedavergonha.Ofatodesermos todos iguais, normais, usando a mesma máscara e recitando osmesmos slogans, nos dá um delicioso sentimento de pertencimento.Podemos então destruir o outro, o diferente, com desenvoltura. Em ummundosemoutro,comoodosperversos,aculpanãoexiste.Nãoéculpávelpisaremcimadeuminsetoouesmagarumacobra.Narelaçãopessoal,quandosomossomentedoisoutrêseumdenóstem

ummal-estar, é di ícil não socorrer, 24 mas numa relação anônima, numamultidãooumassacoletiva,équasemoralabandonaraquelequeretardaamarcha para a frente. Nos livros escolares da época nazista, as criançastinham de resolver o seguinte problema: sabendo-se que cuidar de umdébilmental,cujavidanãotemvalor,custaopreçodetrêsmoradiasparatrêscasaisdebelosjovens,quedecisãoéprecisotomar?As crianças indignadas decidemabandonar o débil, o inútil, omalvado,

paraosquaisadesgraçachegaquandoelesimpedemtrêscasaisvirtuososdeconhecerafelicidade:oquefoiuma“incitaçãoaoódioeaoextermínioéatraduçãodeumapromessaestataldefelicidadeeigualdadesocial”. 25Foi,pois,emnomedahumanidadequesecometeramtodososcrimescontraahumanidade.Causa espanto que crianças perseguidas tenham se ligado a adultos

partidários da perseguição. Tratava-se de alguma maneira de adultos

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clivados:umapartedesuaspersonalidadesligava-seàcriançarealdaqualcuidavam afetuosamente, e outra submetia-se a uma representaçãoutópicaquenada tinhaquevercomaquelacriança.Quantoàcriança,elaseligavaaumadultocomquempartilhavaocotidiano, ignorandotudodesuautopia.Comonãosetecerumeloentreduaspessoasqueestabelecemumarelaçãoreal,umavezqueautopiaécortadadessereal?Autopiacriminosaexpressava-sefrequentementeporumaatitude,uma

mímicaouumsloganqueescapavadaalmadoutopista:“Nãotemosnadaparacomerporqueos judeusdesencadearamaguerraparaganharmaisdinheiro ainda”, dizia o cordial camponês que cuidava ternamente damenina judia que ele escondia.26 Um indício minúsculo, uma fraseinesperada não impediam a criança judia de se ligar ao simpático avôantissemita.27Inicialmente, os pais são envoltórios afetivos. É preciso esperar anos

para que a criança se torne capaz de representar para si asrepresentações do adulto que cuida dela. Primeiro há o contato entre osdois.Depois,elateráacessoaosmundosmentais.Umacriançadiz“papai”,maneira afetiva de designar um homem. Só bem depois descobrirá quepapai se chama “PolPot”, ou “Stalin”,ou “Himmler”. “Papaiqueriaqueeuestudasse bastante na escola”, diz Mea Sith, ilha de Pol Pot, que icarásabendo anos depois que foi ele quem mandou fechar sua escola edeportar os professores. O doutor Mengele, que, em Auschwitz, torturougrande número de crianças,meninas sobretudo, era um adorável pai defamília,“comodesejavaoFührer”.Quando a identi icação traz felicidade, é doloroso destruir a imagem

daquele com que a pessoa se constrói. A sobrinha de Stalin, KiraAllilouïeva,aos87anosdeidade,continuavaaamardetodoocoraçãootioadoradoquedestruíra sua famíliaeaatiraranaprisão: “Quandocriança,vivi uma época maravilhosa e depois repentinamente tudo [...] setransformou. Passei brutalmentedo sonho aopesadelo [...], não tínhamosideiadoquesepassavadoladodefora”,28diziaela,continuandoaamá-lo.Alexandra Mussolini adorava o avô Benito, o fascista, que na vida

cotidianaeraumhomemcalorosoealegre.“Seuúnicoerrofoifazerguerraao lado da Alemanha.”29 O relato do entorno, familiar ou cultural, fez acriança descobrir que o “pai social era diferente do pai afetivo que elaconhecera”.Quando a criança descobre esse outro pai, sua reação afetiva revela a

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estrutura do elo. Se o elo, antes, foi mal tecido, a revelação serve deexplicação para a alteração: “Agora sei por que eu não gostava dele.”Quando a ilha de Castro descobre aos 12 anos que aquele “homemmalvado em casa” é seu pai, ela se opõe ao regime ditatorial como seopusera àquele homem, seu pai. Quando o pequeno Niklas Frank icasabendoque seupaiqueimoucom lança-chamasos50mil sobreviventesdo gueto de Varsóvia, ele crê compreender a razão da ira de sua mãe.Quando a criança se torna capaz de entender os relatos do entorno, acargaafetivaporelaatribuídaaoquelhecontamdependedaqualidadedoelotecidoanteriormente.Na Argentina, na época da ditadura militar (1976-1983), muitos

torturadores adotaram os ilhos dos pais que eles mataram. Deram-lhesoutronome,educarambemascrianças,eelasseligaramprofundamenteaeles.Victoria tem 27 anos quando uma queixa apresentada pelas “avós da

PraçadeMaio”a fazdescobrirquenãoé ilhanaturaldeGracielaeRaul.ElanãonasceuemBuenosAirescomoacreditava,masnaEscolaMecânicada Marinha, transformada em centro de tortura. Sua mãe, Maria HildaPerez, foi torturada até a morte, e um o icial do centro de detençãorecolheu o bebê. Foi um choque para Victoria: “Mentiram paramim. Fuitraída.”30 Para algumas crianças, a ligação distante que elas sentiamsubitamentetemumaexplicação:“Meuspaisinterpretavamumacomédia,ingiammeamar.”Alguns ilhospreferiramromper:“Euameimonstros,jánão quero amá-los.” A reaçãomais frequente foi a negação da revelação:“Nãoacreditoemvocê.Elessãomeusverdadeirospais.Jamaisfariamumacoisadessas.Sintoraivadevocêpormefazeressarevelaçãomentirosa.”Tal situação não é rara. Os janízaros, no século XV, compunham a

infantaria otomana. Os soldados eram crianças cristãs (búlgaras, russas,armênias) que tinham sido roubadas dos pais e criadas na religiãomuçulmana para transformá-las em guerreiros. Elas se ligaram aos pais-sequestradores que, até o século XIX, algumas vezes as enviaram paracombater seus próprios pais naturais. Esses combatentes amavam seuseducadoresturcosqueos transformaramemguerreiros,adestradoresdecãesouatéaltosfuncionários.Durante a guerra civil naEspanha, estima-se em250mil o númerode

bebêssequestradosdeseuspaisrepublicanosparaseremdadosafamíliasfranquistas.31 As crianças educadas dentro dos princípios burgueses se

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ligaramaospaiseducadores.Imaginoquehojeelasnãosejamcomunistas.

Compartilharumacrença

Mesmo quando uma crença não tem nenhuma relação com a realidade,desempenha umpapel importante na tessitura do elo. Compartilhar umacrença é fazer uma declaração de amor e trabalhar um sentimento defamiliaridade. Acreditando no mesmo deus ou no mesmo ilósofo, juntosnos sentimos em segurança, nos encontramos com regularidade paraefetuar nossos ritos religiosos ou laicos, organizamos eventos quefavorecem encontros entre jovens casadouros, usando assim a pulsãosexual para estruturar o social. Organizamos refeições e festas musicais,ocasiões em que relatos de mais velhos atribuem sentido aosacontecimentos de nossa existência: nascimentos, batismos, casamentos,lutosecomemorações.Asrepresentaçõesdesinumgrupodepertencimentoinscrevem-nosem

uma iliação: “Sou amulher de Jean, o ilho do padeiro. Somos cristãos e,portanto, conservadores.” Os rituais lembram a história do grupo,participamdaidentidadecoletivae,emcasodedesgraça,organizamapoioafetivo e social: crer não é nada! O vínculo do grupo é o que nos dásegurançaenosidentifica.Osconteúdosdecrençasãodiferentes.Os janízaros,osbebêsroubados

naEspanhaourecuperadosnaArgentinanosdemonstramquemudamosdecrençaquandomudamosdemeio,“jánãovemosascoisascomoantes”.Assim, podemos aceitar morrer por uma causa que não teríamoscombatidosenossosencontrosnostivessemfeitoviveremoutromeio.Compartilhei com Émilemaravilhosas crenças: o amor pelas aventuras

intelectuais, as relações humanas e as alegrias do esporte. Nadacompartilhei das representações que ele escondia e que contudotransmitiam uma sombra, o silêncio de suas origens, de sua família, seupassado.Preferime interessarporproblemasacessíveiseagradáveis.Eujáestavapredispostoparaanegação.A crença mais tranquilizadora, mais bela e mais dinamizadora me foi

trazida por Jacquot: o comunismo! Essa ideia constituía não apenas umautopiamaravilhosa,generosaemoral:elatambémestruturavaotempo,osencontroseosprojetosdeexistência.

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JacquoteraparamimumheróidaResistência.Elecostumavame levaràsreuniõesdopartido,nasquaiseuouviajovenssimpáticosinflamarem-sefalando de igualdade, de liberdade, de teatro, de leituras e esportes danatureza.Comoquererqueeunão icasseencantado?Graçasaeles,omundose

tornava bonito. Os “progressistas”, como eles se nomeavam, iam trazer oprogresso (é óbvio, pois eles eram progressistas), enquanto osreacionários se opunham à felicidade do povo, defendendo as própriasposses, fonte de todas as desgraças. Eu tinha necessidade de uma visãoclaradomundo: ali estava ela. Era a continuaçãoda imagem impregnadanaminhamemória, adquirida durante a guerra, quando a sociedade eracindidaentreosbondososquemesalvavameosmalvadosquedesejavamminhamorte.Esse engajamento numa crença encantouminha adolescência e serviu

de escora para um novo desenvolvimento. Eu me bene iciava do efeitotranquilizador e fortalecedor que a certeza produz. Podia tentar umareconstrução.Infelizmente,muitojovemtivegostopeladúvida.Issodáoprazerdenão

sesubmeteràrecitaçãocomum,masprivaaomesmotempodoprazerdese submeter à recitação comum. Pensar por si mesmo é uma grandesatisfação. É uma pena que esse esforço nos prive da alegria de sersustentadoporummitocompartilhável.Ficamospoucoàvontadequandodevemos escolher entre a felicidade na servidão que nos tranquiliza e oprazerdoencaminhamentopessoalquenosisola.Eudeviater11anosquandodeiaDora,noaniversáriodela,umlivrode

GeorgesDuhameldequeumprofessornoginásiohaviafalado.32Queideiaestranha! Eu achava que devia haver nos livros tesouros de felicidade equeriaoferecerumaparteaDora.Gentilmente, ela se abaixounaminhadireçãoparameagradecer eme

explicarquenãoeranecessáriolhedarlivros,quenãovaliaapena.Eumelembro daminha decepção. Durante a guerra, eu tivera de esconder umfantasma na alma. Eu podia falar de tudo, espontaneamente, com acondição de calar minha judeidade desconhecida. A sociedade, naquelaépoca, estava cindida entre salvadores e assassinos. Precisei aprender aestabelecer relações diferentes com cada um deles: calorosa com osbondosos,vigilanteegeladacomosmatadores.Depoisdaguerra,ofervorcomunistaresultounacontinuaçãodaoposiçãoentreosprogressistas,que

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queriamoBem,eosreacionários,partidáriosdoMal.Aomepedirquenãomais lhedesse livros,Dorameencorajava semquerer a estabelecer comelaumarelaçãocompartilhável,enquantoaoutra,maisintelectual,poderiase desenvolver em outro lugar, em segredo para não entediá-la. Aestruturademeumeioestruturouminhaalma.Doracomeçavaavenderjuntocomomaridoegostavadefalardemoda

e de roupas. Com eles aprendi a sentir com a mão a qualidade de umtecido, a tomar asmedidas de uma calça, ame levantar demanhã cedo,montarumabarracadevenda,vigiaramercadoriaexpostaelancharjuntocomosvendedoresdolado.Ao mesmo tempo, eu liaL’Humanité,L’Avant-Garde eVaillant, o jornal

mais cativante, sem jamais falar a respeito com ela. Eu devorava à noite,sob os lençóis e com uma lâmpada, Émile Zola e Jules Vallès, quereforçavam minha visão bastante clara do mundo. Uma distânciaintelectual instalava-seentrenós.Foi sómuito recentemente, algunsanosantesdesuamorte,ocorridanaidadeemquesepodedizertudo,queelameconfessoudocemente:“Vocênosvexavacomseus livros.”Compreendique,semquerer, izeracomelaomesmoqueÉmile:elasecalavaquandoestava perto de cientistas, mas ria e se a irmava na companhia de seusamigosdançarinosouvendedores.Não sabia falar com ela sobre o ginásio de que eu gostava, sobre as

versões latinas que sempre exigiam que carregássemos o grandedicionário Gaf iot, sobre o rúgbi, que eu começava a praticar para meidenti icar com Émile, e sobre a UJRF, 33 onde eu me engajara para meinscrever na iliação de Jacquot. O vínculo se tecia, evidentemente, masamputado de toda a parte compartilhável de nossas representações. Nãosabíamos nos contar nossas histórias de vida. Nem sequer uma palavraacercadaguerraqueatravessáramosseparadamente,nemmesmosobrenossa origem no entanto comum. Ela sabia vagamente o que meacontecera;euignoravatudodesuainfânciapolonesaedesuafamília,queera também a minha. Um curioso modo de comunicação estabelecia-seentrenós, afetuosomasperturbadopelomurmúrio denossos fantasmas.Sucedia-nos encontrar os restos de uma família parisiense, aqui e ali. Eladizia que seus desaparecidos ainda a atormentavam. Eu não tinha nadaquedizer sobremeuspais, dosquaisme restavamduasou três imagensno meu mundo sem palavras. Eu me empenhava para jamais falar deMargotafimdenãoferirDora.

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Odiscursodascriançasmuitovelhas

Fazersegredoemtempodeguerramesalvaraavida,maspoucodizeremtempo de paz alterava nossa afeição. Às vezes encontrávamos uma tiaafastada que eu não conseguia situar na minha estrutura familiardespedaçada.Elameolhavaumpoucoediziaafastando-se:“ScheineYnk.”34Umdia ela deixou escapar que o simples fato deme ver lhe lembrava aguerraeosdesaparecidosdasuafamília.Eueraofilhodosmortos.O único discurso compartilhável era o dos pequenos velhos. Com 11

anos, quando eu explicava a Dora que o marxismo era preferível aocapitalismo,elaiaembora,euaentediava.Ela preferia as declarações afetivas: “Assim que eu soube que estava

vivo,quisencontrarvocê.Eugostavamuitodasuamãe.”Gosteidequeelagostasse daminhamãe, mas deduzia daquela declaração de afeição queelame imaginavamorto antes deme encontrar. Dora estava ali com suasededefelicidade,eeu,emvezdemecomportarcomoo ilhodesuairmã,raciocinava como um pequeno velho. Eu não pulava de alegria, falava demarxismo. Eu era um peso para ela, embora tenha sido junto dela queencontrei a estabilidade afetiva que permitiu que eu lentamente mereconstruísse.Foioqueelamedeu,masnãoeraoqueelaesperava.A maturidade precoce não é sinal de bom desenvolvimento; é na

verdadeumaprovadegravidadeanormalparaumacriança.Osadultosseenganamquandocreemqueacriançaamadureceumuitodepressa.Nãoéexperiência, é perda de vitalidade. Sob o golpe do trauma, as crianças seapagam,eosadultosadmiramsua“maturidade”.Pode-sepensarqueéumcontrassenso.Acriançaacabrunhadanãobrincaeprocuradarumaformaverbal a seu abatimento. Observei o mesmo fenômeno na RepúblicaDemocrática do Congo com os meninos-soldados. Eram polidos,anormalmente gentis, icavamhoras sentados discutindo conosco sobre asociedade ou sobre Deus, não sobre a guerra deles é claro, ela teriaevocadoferidasaindafrescasoucrimesrecentes.Algunspequenosvelhos,de 10 a 12 anos de idade, com faces cavadas e olhares febris,perguntavam-seporqueaspessoassósesentiambemnaigreja.Queriamse tornarpadres oumotoristas dos belos carros dasONGs.Um só garototinha facesredondas,olharsorridenteequeriaser jogadorde futebol.Osoutros estavam acabrunhados por uma gravidade precoce que nósconfundíamoscommaturidade.

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“Essas crianças se tornam ‘cientistas políticos’, ‘ ilósofos’ que a irmamsuas ideias sobre coisas essenciais.” 35 Amaturidade precoce das criançasferidas por doença grave, desgraça familiar ou colapso social estimulacapacidades intelectuaisnãohabituaisemumacriança.Essaperformancedemonstra seu acabrunhamento. “O que chama a atenção é que ascrianças não balançam os braços ao andar [...], têm as sobrancelhascarregadas, uma espécie de tensão que dá a elas uma máscara deseriedade.”36Quandoumadesgraçasocialdespedaçaseumundo íntimo,acriança perde o prazer de viver, mas, antes de afundar por sua vez naagonia psíquica, refugia-se no que ainda permanece com vida: aintelectualidade. Depois da guerra civil na Espanha, depois da SegundaGuerraMundial,ascriançasquenãotinhamsidoprotegidasmanifestaramessamaturidademórbida.37Nãosentiamprazerdeviver,jánãobrincavamdeexploraraexistência,eramobrigadasadecifraromundoa imdenãomorrertotalmente.Nesse torporpsíquicopersistemduasbrasasde resiliência queomeio

podesoprarparafazervoltarachama:compreenderesonhar.Quandoaexistênciaédolorosa,quandoocontextoéperigoso,enquanto

a vida psíquica não estiver completamente apagada, a intelectualizaçãopode ainda construir um mundo abstrato que ajuda a lutar contra atristeza.Enquantotentamoscompreender,aindasentimosalgumprazerdeviver. Mas, quando somos criança, generalizamos muito depressa, nãovivemossuficientementeparaconheceranuança.Quando o trauma isola a criança duradouramente ou as condições

adversasdesgastamsuaalma,olaçoseapaga.Ocaosdosacontecimentos,afaltadeestabilidadeafetiva,arupturarepetidadascolocaçõessucessivasanestesiamaafetividade,oquepermitesofrermenos.38Enquantooprazerde compreender persistir, a brasa de resiliência espera que alguém sedisponhaasoprá-laafimdefazervoltarocalordaexistência.Aoutrabrasa é constituídaporum freneside sonhos.Quandoo real é

desencorajador e sofremos para encontrar o caminho, refugiamo-nos emum devaneio diurno excessivo. Quando o real é amargo, proporcionamo-nossonhosdoces.Durante muito tempo acreditei que o deleite do sonho impedia o

enfrentamento do real. Hoje penso que esse refúgio no devaneio ofereceum substituto de identi icação. Quando um meio não propõe modelo defelicidade, o sonho corrige essemundo intolerável e inventaum romance

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que encenaum ideal por realizar.Os livros, os ilmes e as belas históriastornam-seentãoos“mestresdosonho”, 39oferecendoalgumasamostrasdefelicidade.Durante os anosda guerra, a indiferençameprotegeudo trauma.Não

tendoninguémparaquemviver,eunãotemiaamorte.Osadultosfalavamdaminhacoragemoudaminha forçadecaráter.Eusabianomeu íntimoqueminhamortenãoferirianinguém,meudesaparecimentonãodeixarianenhuma saudade. Sem importância, amorte. Eu simplesmente pedia aodeus que eu inventava que me deixasse viver só até 10 anos, para tertempodeconheceravida.Então eu sonhava e teorizava. Contava muitas histórias de guerra na

quaisencenavaaaventuradosoutros.Eunãocontavaaminhaguerra, jáque não me acreditavam, mas inventava histórias loucas, exageradas,romanceadas, que surpreendiamos adultos, os faziam rir e pensar: “Masondeéqueelevaibuscartudoisso?”Quandotravestiaminhadesgraçaemhistórias engraçadas ou em epopeias exageradas, era aceito nas relaçõeshumanas,eumesocializava.Quandoqueriatestemunharousimplesmentedizer,eumeviasozinho,rejeitado,eàsvezesdesprezado.Asfabulosasquimerasmefaziamtãofelizqueeupensavanelasdediae

sonhava com elas de noite. O tapa-miséria romanesco me oferecia umabreve compensação, algunsmomentos de felicidades imaginárias quemeajudavamasuportarumrealdesolado.

Umaculturaproletária

Assim, modelado por minha história, entrei no ginásio Jacques-Decour,admiravelmente situado entre os desordeiros de Barbès e as prostitutasde Pigalle. Ele acolhia a maioria de crianças do norte de Paris, da porteClignancourt,dazonanãourbanizadadosterrenosvagosdeSaint-Ouenedos“bairrostenebrososdelaChapelleesuasviasférreas”. 40Pesadamentebombardeado por nossos libertadores, o bairro era verdadeiramentemágico.OcircoMedranoadoispassosdoÉlysée-Montmartre,aondeíamosveraslutasdeboxe,Pigallecomsuasmulheresdisfarçadasdeguloseimassexuais que nos importunavam quando passávamos perto delas, oscabarés e suas imagens de dançarinas acrobáticas fotografadasartisticamente por Harcourt. O Café de la Poste nos servia de “sala de

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estudo” quando cabulávamos as aulas ou quando um professor estavaausente. Nós éramos imantados pelo ginásio demeninas, Edgar-Quinet eJules-Ferry.Asclassesnãoerammistasnessaépoca,e,antesdeousarmosfalar com uma menina, íamos nos lavar e pentear, esperando que umadelas aceitasse vir conversar nos jardins do Sacré-Cœur, ondemantínhamosnossoquartel-general.Entrando naquele ginásio, senti felicidade. Havia uma estrutura, um

projeto,colegaseprofessoresquefrequentementeestimávamos.Éestranhodizerque“eumesentia forte”.Éparadoxal,oquenãoquer

dizer “contraditório”. Eu era um paradoxo, um oximoro ambulante, umaaliança de contrários que se reforçam e se opõem. Tinhame sentido tãopequeno, tão sozinho, tão monstro, que compensava refugiando-me naintelectualidadeenodevaneio.Tinhasidotãofracoecoisaperseguida,queosimplesfatodesersobreviventemefaziaacreditarqueeueramaisfortedo que a morte. Tinha icado tão anestesiado durante a guerra, esobretudodepoisdela,queosimplesfatodesentiravidaretornaramimpropiciava o intenso prazer dos começos e a convicção de ser capaz desuportar todasas feridas.Minha infânciamederaumacoragemmórbida.Eu achava que bastava sonhar, decidir e trabalhar para realizar meusdesejos.Orestantenãopassadesofrimentobanal.Umgrupoquenãosabesede inirnãodáapoioaosmembrosdogrupo.41

Na época em que entrei para o ginásio, o apoiome vinha das de iniçõesdiferentes e opostas que me reforçavam: Émile me reforçava com suagentileza, seu amor pela ciência. Dorame reforçava com sua presença esua afeição. Jacquot me reforçava com seu comunismo generoso. E oginásio de pobres para onde eu entrara me reforçava com seu bairrosurpreendentementecultoeosprofessoresqueestimávamos.EntrePigalleeBarbès,ascentenasdeprostitutas,oscáftenselegantese

as boates agitadas eram vizinhos do Trianon lírico, bem em frente doginásio. Nos dias de festa, as barracas se instalavam no boulevardRochechouarteouvia-seoanimadorgritarnoseualto-falante:“Comquemvocêsquerem lutar?”Haviasempreumclienteque levantavaamãoparareceber a luva, o que signi icava que ele encararia o desa io. Comfrequência iaemboracomumolho inchadoeonarizsangrandoemtrocadeumdinheirinhoedeumabelalembrançadabriga.Havia no mínimo vinte cinemas no bairro popular onde íamos verA

batalhanos trilhos, que glori icava os ferroviários,Oboulevard do crime e

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os ilmes americanos em que Orson Welles encarnava o sucesso social,enquanto os comediantes Abbot e Costello costumavam nos decepcionarquando os comparávamos com Charles Chaplin ou com Laurel e Hardy,quenãoparávamosde imitar. FrançoisTruffaut vinha ao ginásio apédePigalle, onde morava, e imagino que aqueles cinemas tenham sido suasprimeirasuniversidades.Nobairrohavia teatrospor todo lado:o teatroFontaine, rueBlanche,e

sobretudo o Atelier, subindo a butte Montmartre, onde esperávamoscruzarcomJean-LouisBarrault.Dançava-semuitonessaépoca.OMoulin-RougeconcorriacomoMoulin

delaGaletteeaCrémaillèrenaplaceduTertre.Com14anos,euiaparalátodososdomingos.Nósnoscotizáramosparapagaraulasdedançaaomaisintrépido de nós, Gérard Gauvain, que, em troca, nos transmitiagratuitamenteoquelheensinavaaprofessoradedança.EumelembrodetangosintensosnapequenacozinhadeGilbertOzun,transformadaemsaladedança:osmóveissofreram!Perambulávamos pelas ruas, trocando algumas considerações sobre

PicassoaopassaremfrenteaoBateau-Lavoir,narueLepic.FalávamosdepoesiadescendoemdireçãoàrueSaint-Vincentaoladodo“LapinàGilles”.Lembrávamo-nos de Paul Éluard na rue Ordener, e às vezes nosreuníamos na casa de Mathilde Casadesus, acima do square d’Anvers,quandoéramosconvidadosporMartine,suafilha.Estou convencido de que esse fervilhar artístico desempenhou papel

importante no excelente desenvolvimento das crianças pobres que nóséramos.Éramos muito politizados nos anos do pós-guerra. A iloso ia não nos

metiamedo,eentrávamosemdiscussõesmuitoacimadenossosmeios.Oque acabo de escrever é falso: nós tínhamos osmeios! Eume lembro deBlumenthal, na sexta série do ginásio, explicando-me que o progressocientí ico não trazia apenas bene ícios. Gostariamuito de saber o que eleachadissohoje.EumelembrodeBéranger,sempreàprocuradobeloedoengraçado.Tornou-secantor.AcabodelercartasqueascriançasdaOSE 42

trocavamdepoisdaguerra: “Omassacredos judeusnãopoderecomeçar.Para isso, sejamos fortes e corajosos no mundo que se abre para nós...Precisamos ser capazes de criar aquilo com que o mundo sonha, aigualdade entre os homens, a liberdade de consciência, a supressão dasclasses.”43AssimfalavaCharlesLew,13anos,dolar“LesGlycines”.

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Edgar Morin, que foi aluno do Jacques-Decour no período anterior àguerra, quando ainda se chamava Lycée Rollin, escreve: “A políticairrompeu na nossa classe de quinta série, em fevereiro de 1934. Nóstínhamos 13 anos [...]. Alguns usavam insígnias na lapela, foice emartelocomunistas...[outros]aflor-de-lismonarquista.”44

Professoresedestinos

Osprofessores participavamdessa efervescência. Sabíamos situar nossosprofessoresno lequedasopiniõespolíticas. Impressiona-meonúmerodecriançasqueforammarcadasporJeanBaby.Eleeraprofessordehistóriaemembro do Comitê Central do Partido Comunista. Eume pergunto porqueeleeratãoamado.Seriasuamagreza,suadistinçãonatural,suagentilautoridade? Bastava que falasse. Creio que era isto o que provocava aafeição: suamaneira de falar. Ele dava a aula, tranquilamente, e nós nãosentíamos nenhuma impaciência. Às vezes ele se interrompia para fazerumaperguntaaumaluno,parasaberseelesesentiamelhor,setinhatidotempodeestudara lição,apanhavaumpapel,punhaumpoucodeordemna mesa desarrumada. Eu me lembro com encantamento das conversaspessoaisqueelemeoferecia(éissomesmo:“oferecia”).“Vocêtemosensodahistória”,elemedizia,“deviaestudarciênciapolítica,éinteressante.”Eunão sabia o que era ciência política, informei-me, explicaram-me que erapossíveltornar-sechefedeestaçãodetremouchefedeproduçãoemumafábricadesutiãs!ApesardomeuamorpelahistóriaedaminhaafeiçãoporBaby,preferisonharcomoutrosprojetos.“O bom professor é aquele que marcou nosso destino”, 45 testemunha

Camus, que depois de receber o Prêmio Nobel escreveu uma carta aosenhor Germain: “Pois bem, eu pensei em minha mãe, mas teria elacompreendido?Nãoconhecimeupai,edissoosenhorsabe.Maspenseinosenhor.”OmeusenhorGermainchamava-seMouzel.Deimediato,tiveprazerem

ouvi-lo. Ele nos falava de latim e de literatura com uma felicidadecontagiante. Nossas relações começaram curiosamente. Minha primeira“dissertação”, como se dizia na época, foi sobre as relações entre oshomenseasmulheres.Nós tínhamos16ou17anos, chegáramosà idadeemqueesseproblemasecoloca.Mouzelnosdisse:“Saibamqueamulher

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comquemvão se casar já nasceu. Ela existe emalgum lugar e vocês vãoviverjuntos.Jápensaramnisso?”Eunãotinhapensado,masachavaqueasmeninaseramseresmaravilhosos,elaserambonitasdeolhareagradáveisde ter por perto. Quanto ao mais, veríamos depois. Foi por isso queorganizeiminharedaçãoemtornodosquadrosqueviranoLouvre(eraláque estava exposto oOlympia, de Manet?). Comparando os retratos dedamas sólidas, de vigorosas lavadeiras e de soldados nas barricadas detodas as revoluções, evitei os estereótipos que tornavam insosso oproblemaeimpediamquesepensassenele.Aodevolver as cópias,Mouzel disse: “Nãodei nota à sua redação. Se a

próxima for boa, vou lhe dar 18 em vinte, se for ruim, vou lhe dar doiszeros. É impossível que você tenha escrito esta redação sozinho.” Creiolembrar-me de ter sentido uma emoção que misturava orgulho epreocupação: prazer de ter zero (minhamelhor nota) e preocupação emconfirmarobomresultado.Elefoiconfirmado.EugostavadeouvirMouzel falarde literaturaoucontar-nosemlatima

vida cotidiana de Roma. Gostava de sua nostálgica gentileza, quasedolorida. Ao me indicar para oConcours général ,* ele não sabia que medava um presente para o resto da vida. Alguém reconhecia meu valor,alguémautenticavameussonhos!EumoravasozinhoemParisnessaépoca,anodobac.Convidavaamigos

todas as noites, a im de que chegassem com biscoitos e garrafas, o queconstituía meu jantar. De manhã, eu esperava a abertura da loja docomerciantedevinhosdarueOrdenerparaentregaraeleasgarrafasemconsignação,cujoreembolsomepermitiacomprarumpedaçodepão,queeu mergulhava na água quente temperada com caldo em cubo. Euaguentavaodiacomisso.NamanhãdoConcoursgénéral,oboulevardSaint-Michelestavafrescoe

silencioso. Lembro-me do cansaço de uma noite sem sono. Eu estavaadiantado. Entrei no café que icava na esquina do boulevard Saint-Germain com o boulevard Saint-Michel, e, incrivelmente feliz, esperei. Oscandidatos estavam reunidos na sala da entrada principal da Sorbonne.Um funcionário nos chamava pelo nome, e nós subíamos um por um aescadaquelevavaàsaladoconcurso,magnífica,tetodemadeiraesculpida,quadrosedificantes,pomposos.Escreviduranteseishoras.Nãoganheinenhumprêmio,masoessencial

metinhasidodado.

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No dia seguinte, Mouzel me disse: “Era um tema para você. ‘CompareBalzaceDostoievski.’”Euaceitavatudodele,mas iqueisurpresoaoouvirque, na sua cabeça, eu vivia na França com Balzac, mas era ligado àsminhas origens russas com Dostoievski. Eu, que sempre me imaginaraapenas francês, descobria que, na cabeça dos outros, podia não ser tidocomo totalmente francês. Entendiaporquemeus colegasde classe, antesde uma partida de futebol França-URSS, tinham me perguntado: “Vocêtorceparaquem?Para aFrançaoupara aRússia?”Eunada sabia sobreestepaísnemsobreminhasraízes russas,masnacabeçadosoutroselasdeviamserminhareferência.Foi uma menina de 16 anos que ganhou o primeiro prêmio, e sua

dissertaçãofoipublicadaemumapáginainteiradoFigaro.Depé,pertodosquared’Anvers,eua lidiversasvezes.Eraextraordinária,clara,simples,e de uma originalidade que me encantava. A laureada explicava que,quandose inventaumpersonagemderomance, jánasegunda linhaéeleque nos leva. Basta segui-lo e comentar o que ele faz. Teria a maiorcuriosidade de reler o artigo sessenta anos depois. Ela, de fato, escreveuaquilo? Ou fui eu que lhe atribuí essa ideia? Não importa, pois ela eramaravilhosaelaureada.Algumas semanas depois,Mouzel, professor principal, devia recolher o

dinheiro da inscrição para obac: mil francos da época, creio. Era pouco,maseunão tinha.Elevirouochapéu,procurounosbolsosepôsalgumasmoedas.Depoiscirculoupelasalaetodasascriançasfizeramomesmo.Não sei o que fazer dessa lembrança. Nuncame senti pobre. Contudo,

quandoMaxmetraziaroupausadadopai,quandomeuscolegasdeclassesecotizavamparapagarminhataxadeinscriçãonobac,quandodepois,naruedeRochechouart,euestudavaparaoexamedemedicinaànoite,juntoda janela, à luz da Lua, porque não tinha podido pagar a conta de luz,logicamente eu devia ser pobre! Mas naminha alma eu não era. Eu eraricograçasaosmeussonhoseaoapoiodeDoraeAdolphe.Quando icavamuito di ícil, eume refugiava na casa deles, em Sannois, na periferia deParis.Semumapalavra,semeuprecisarprestarcontas,elesmeabriamaporta.Em1948,aoentrarnoginásio,eunãoconheciaosdramasquetinhamse

desenrolado.Eucomeçava, inalmente,aterumavidanormal,aencontrarcolegas de 11 anos que tinham os mesmos professores, as mesmasbrincadeiras e asmesmas lições para estudar. Eu não suspeitava que os

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adolescentes das classes adiantadas também tinham conhecido a guerra.Quase todos esses ilhos de pobres tinham pais imigrados judeus daEuropa central, armênios e refugiados espanhóis.Nunca falávamos disso,éramos apenas franceses. Quase todos os garotos grandes das últimasséries tinham se engajado em lutas sociais, inicialmente com palavras,depois com armas. Ao inal da guerra, uma criança em cada trêsdesaparecera. Os judeus tinham sido deportados ou fuzilados durante aResistência.MuitoscristãosquemilitavamnasJEC46pagaramcomsuavida,nos campos de concentração e sob as balas dos pelotões de execução.Alguns adolescentes, desejosos de se engajar, hesitaram entre os FTPcomunistaseasWaffenSS.Estaescolha,hojesurpreendente,nãoerarara.Doriot, dirigente do Partido Comunista, fundou o PPF (Partido PopularFrancês),partidáriodacolaboraçãocomPétainecomosnazistas.Depois,entusiasmado com a guerra, engajou-se no exército alemão, levandoconsigo muitos jovens franceses. Um ginasiano está na idade em que aexaltaçãoétãograndequeelepodeaceitarmorrerporumacausaquenãoteve tempo de estudar. 47 Vários garotos do ginásio Jacques-Decour seengajaramnasWaffenSS.Quasetodosmorreram,abatidosemLyon,ondeaResistênciaera forte,ouenviadosparao frontdoLeste,ondeo frioeoExércitoVermelhomataramosquesobraram.Navoltaàsaulas,ao inaldaguerra,umbancoemcadatrêsjánãoestavaocupado.48Nesse contexto cultural, a coragem ísica era um grande valor.Melhor

morrerdoqueconfessaromedo.Acoragemmórbidatinhaumafunçãodereparação para crianças que necessitavam provar que não eram sub-homens. Os pais louvavam seu corpo musculoso de proletário, as mãesganhavamavidacomseusbraçosdefaxineira,eraprecisoqueascriançastambémdessemprovadecoragem.Ospequenosmoradoresdasperiferiasnãosequeixavamdasquatrohorasdetransportecotidiano.Nãosetocavanoassunto,epronto.Eumeperguntosenãohaviaumapontadeorgulhoem ser pobre e combater em silêncio. Ser ajudado é confessar a própriafraqueza,nãoé?Como tive uma infância anormal, não me dava conta de que minha

adolescência não o era. Anormal não quer dizer patológica. Todos nóstemosumataxadeaçúcarnosanguequedeveestarcompreendidaentre0,90 e 1,10 gramas por litro de sangue. A maioria de nós terá crisehipogligêmica com 0,70 por litro. Alguns, com 0,20 grama por litro,continuarão a viver como se não fosse nada. É uma impressão deste tipo

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que eu sentia: eu tinhaumahistória anormal,masnãome sentiamalsão.Muito pelo contrário: sentia uma espécie de orgulho (mudo,evidentemente) de ter escapado, o que não era verdade. Aquela infânciatinha me empurrado em uma direção onde ainda havia toneladas deproblemas por resolver. Mas a vizinhança constante da morte me derauma coragem mórbida: eu era iniciado. Eu vira a morte e voltara dela.Impossível falar disso, os normais temem a morte, têm medo deassombração.

* OSE (Œuvre de Secours aux Enfants): instituição humanitária que ajudou e salvou criançasjudiasrefugiadasduranteaguerra.(N.daT.)*Zazou: durante a 2ª- Guerra e nos anos que se seguiram, é como eram chamados os jovensapaixonadospelojazzamericanoepelaelegânciaextravagante.(N.daT.)*Concoursgénéral:concursoanualdestinadoapremiarosmelhoresalunosdecursosecundário,emdiferentesáreasdoconhecimento.(N.daT.)

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CAPÍTULO5

PALAVRASDEGELADAS

A família Auriol encantou o começo dos meus estudos de medicina.Florence,queviriaaserminhamulher,eraamigadeJean-Claude,quenosconvidava para aquele bando familiar. Tudo era bonito na casa deles. Osolhos azuis, as explosões de riso, os gestos, as discussões, a maneira defalar, osmóveis, as acomodações, tudo era bonito na casa deles. Nós nosencontrávamos com regularidade no cais Gesvres, à beira do Sena, paratrabalhar, rir, discutir política. Um mainá 1 dentro da gaiola imitava acampainha do telefone, seguia-se a voz de Jacqueline Auriol chamando oilho: “Jean-Paul! Telefone!” O ilho vinha correndo, todo mundo ria, opassarinhoimpassívelnãoacrescentavaumapalavra.

Amarcadopassadodáumgostoaopresente

Umavezpor ano,VincentAuriol recebiadeLuret, sua cidadenatalpertode Toulouse, um enormecassoulet que ele nos convidava a compartilhar.Ele se sentava emumapoltrona, alguémo servia, os adultos pegavam ascadeiras, e os jovens se instalavam onde podiam. A festa culinária,afetuosa,amistosa,easdiscussõesseestendiamaté2damadrugada.Eu voltava a pé para o meu quartinho da rue Rochechouart, perto de

Barbès.Paradormir,enrolavaumapernadacalçanopescoço,aoutraemtornodacabeça,poisasparedeseramgeladas.Odespertadortocavaàs4horas, e eu ia encontrar Adolphe no mercado de Argenteuil. Eu gostavamuito desse contraste, queme dava a impressão de viver intensamente.Umasituaçãosublinhavaaoutra,mascomquemfalardelas?OsAuriolseinteressariampelaminhainfância.Teríamosfaladodeguerra,denazismo,de perseguição, de orfandade e miséria. Eu ainda não era capaz, e teriaquebrado o encanto. Dora e Adolphe também teriam se interessado.Teriammefeitoalgumasperguntase,intimidados,teriampensadoqueeuostraíaporjánãopertenceraomundodeles.Entãoeunãocompartilhavaessaexperiênciaagradável.Nomercado,eueracomerciante.EnacasadosAuriolbancavaointelectual,comentavaovinhocomoconvémechoravade

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rirquandoomaináimitavaacampainhadotelefone.Eu era duplo. Depois de alguns anos di íceis no começo dos meus

estudos, acabei me tornando médico e especialista em neuropsiquiatria,comosonhara.Essesucessopodeseratribuídoaobene íciosecundáriodaminha clivagem neurótica. Se eu tivesse sido equilibrado, não teriaestudado,nãonaquelascondiçõespelomenos.Nãotinhamedodeadoecertrabalhando demais, suportando duras condições de existência. A marcado passado me ensinara que superar o sofrimento leva à liberdade:“Sofrer torna-seuma formade existência, ummodode escapar aopoderdo outro.” 2 Todo sonho com o futuro metamorfoseia a maneira comosuportamosopresente.Issosigni icadizerqueosonhonostornacapazesdedesprezarosofrimento?Numerososestudosforamrealizadosparasaberoqueaconteceucomos

jovens sobreviventes dos campos da morte, cinquenta anos depois.3 NaEuropa, estima-se em 200 mil o número de crianças judias quesobreviveram à guerra (eram2milhões ao inal dos anos 30). Amaioriaconheceu uma infância inacreditável, uma cascata de traumas, deagressões ísicas e psíquicas. Algumas foram felizes durante a guerra, àsvezesatémaisfelizesdoquequandoapazvoltou.SergeErlingerescreve:“CaraRomaine, caroEugène.Como lhes agradecer, hojequevocês jánãoestão aqui, a ternura que me deram durante os quatro anos junto devocês?Mesmoseparadodosmeuspais edomeu irmão, con iadoavocêspelaAssistênciaPúblicaparaescapardabarbárienazista,vivi comvocês,graçasavocês,algunsdosanosmaisbelosdaminhavida.”4Já não me lembro do nome da mulher que me explicou que tinha

passadoquatroanosnoparaíso,sozinhacomamãeemumquartinhoemParis,enquantoopailutavacontraamorteemumcampodeconcentração.Na Libertação, ele voltou magro, desvairado, sombrio, com explosões deviolência. “Ele trouxe o inferno para dentro de casa”, dizia-me ela.“Detestei-o.Acheiqueofatodenãotermorridoeraaprovadequehaviacompactuadocomosnazistas.”AmãedeSergenãotrouxeo inferno,mas,quandofoibuscaro ilhona

épocadaLibertação,elelhedeupontapés,pois,poramaro ilho,elapartiaoeloqueeleteceracomRomaineeEugène.QuandoDoraveiomebuscarnoGaiLogis,emVillard-de-Lans,provocou

semquererminhaexclusãodogruponoqualeueraaceito.Elesrezavamjuntos,enquantoeu,encostadonaparede,meviasozinhooutravez.

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Aestruturadotraumaestruturaopsiquismo,eahistóriaatribuiaumamesmasituaçãosignificadosopostos.Paraamaiorpartedessascrianças,aguerra foiumhorror.Aclivagem

de suas personalidades, sob efeito de uma história e de um contextoameaçadores, deu-lhes uma coragem mórbida: trezentas pessoas foramlocalizadas, em 1994, cinquenta anos depois de terem passado pelotumulto da guerra.5 Quase todas tinham vivenciado, depois da guerra,alguns anos de depressão, salvo as que tinham executado alguma açãoheroica,umatode resistência,ouvividoumacontecimentoque lhesderauma boa opinião sobre si mesmas. Todas experimentavam umahipermemória muda. Depressivas ou não, não pensavam senão nopassado, mas jamais falavam. O trauma de suas infâncias tornara-se umnovoorganizadordoeu,comoumaterrívelestreladoPastorqueorientavasua existência. O “encriptamento” criara ao mesmo tempo um mundopsíquicodolorosoeumsucessopro issionalexcepcional. 6Elasnão tinhammedo do sofrimento e sabiam que, superando-o, ganhariam a liberdade.Triste vitória de um vencedor ferido. Os que foram muito feridospermaneceram prisioneiros do passado, sofrendo sem cessar com umpassado sempre presente. Suas memórias não izeram o trabalho deafastaroacontecimentoparaopassado.Asferidassangramainda.

Algunstutoresderesiliência

Depois da guerra, a escola não tinha a importância que tem hoje. Erapreciso aprender a ler, escrever, contar e rapidamente arranjar umtrabalho. O corpo nos socializava: quando se era camponês, era precisoresistir ao frio, à lama, curvar-se na terra e fazer permanentes esforçosísicos.Quandoseeraoperário,eraprecisopermanecerdepéeexecutarrapidamente movimentos repetitivos. No ginásio, podíamos continuar adesenvolver nossas personalidades, pois tínhamos muitas ocasiões paranos encontrar. Assim, os companheiros damesma idade participavamdoprosseguimento de nosso desenvolvimento. Escapávamos da modelaçãopsicológica de nossos pais tão logo as circunstâncias nos permitiam nosintegraremumpequenobandoextrafamiliar.Aoginásio,localdeinstruçãoprogramada, acrescentava-se, desde os 11 anos de idade, uma educaçãoimplícita7queescapavaaospais.Osprofessoresofereciamfrequentemente

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modelosidenti icadores,eosparespodiamservirdetutoresderesiliênciaimplícita.8Meu tutor de resiliência implícita nos primeiros anos de ginásio

chamava-se Gilbert Ozun. Nós morávamos no mesmo bairro, ele em umgrandeapartamentopertodaporteClignancourt,euemumconjugadonarue Ordener. Dora acabara de se separar de Émile, o que representavapara mim uma centésima ruptura afetiva. Gilbert foi minha primeiraestabilidade amistosa. Voltávamos a pé do ginásio e não parávamos deconversar.Eleerabomaluno,bom jogadorde futebole representantedeturma,sóparaverotipo.Eumatavaasaulasdeginásticaa imdetreinarrúgbi segundomeus própriosmétodos, que eu julgavamelhores. Elemeexplicava que era melhor ouvir o professor, tomar distância e fazerexercícios com os braços para “ icar com as costas bem retas”. Não vãopensarqueele fosseumsubmisso,umalunoapagado!Depoisde tersidobomaluno,decidiu se tornargroom deumgrandehotel, recebeuumpardetabefesdamãe,veioserefugiarnaminhacasa,retomouosestudosesetornouumdosmelhoresnomesdacirurgiaplásticafrancesa.Quando Mouzel me indicou para oConcours général , eu não podia me

preparar porque não tinha livros su icientes em casa. Eu sabia de cor oslivrosmilitantesqueJacquottraziaparameconvencerdadegradaçãodassociedades capitalistas. Vá fazer umConcours général com isso! NabibliotecadaprefeituradoséculoXVIII,pertode Jules-Joffrin, recusavam-se ame emprestar livros explicando que eu só tinha direito à BibliotecaRosa.*Eu,querecitavapassagensinteirasdeZola,deJulesVallès,algumasfrasesdeMarxede JeannetteVermeersch,achavaaBibliotecaRosaumabobagem. O regulamento da biblioteca me protegia da leitura, fonte detodas as poluições morais. Então Gilbert desviava alguns livros dasprateleiras de seu pai, um professor que lia as fábulas eróticas de LaFontaine ilustradas por Dubout 9, nas quais se viam religiosas de toucacopulandocomumasnoepadresdançandoabacanalcommoçasalegres,ou seja, de má vida. Compreende-se por que não obtive prêmio noConcoursgénéral.Foi, de fato, Gilbert quem deu um foco aosmeus anos de ginásio, com

seu trabalho regular, sua aplicação de bom aluno, as horas passadascomigo diante de versões latinas, nossas partidas de futebol e de pelotabascacontraumaparedemaisoumenos lisa,nossospasseiosdebicicletaatéJumeauville,àcasadopaidele,ondeesvaziávamosasgarrafas...sóaté

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ametade.Depoiscompletávamosonívelacrescentandoágua,convencidosdequeelenãoiareparar.Faltavam-nosalgunsprogressosemmatériadeenologia.QuandoDoraeAdolpheforammoraremSannois, iqueiemParis,oque

preservoumeufoco,comMouzel,comoginásioecomGilbert.EuiamuitoaSannois,ondemedavacomoutraturmadeadolescentes.FizemVersaillesaprovadenadadorsalva-vidasa imdeganharumpoucodedinheironoverão,oquemeaproximoudapiscinadeErmont,acidadevizinha.Nesseoutro contexto, eu teria estudado? Os instrutores de natação eramsimpáticos,masoutroscolegasdebairromeexplicavamque“umhomem,umhomemdeverdade,vaiparaaobraganharavidaesustentarafamília.Sóasmoçaseosmaricasestudam”.Não me deixei convencer. Segui meu caminho. Foi di ícil, sobretudo

durante os primeiros anos de medicina. Eu não tinha bolsa, tinha detrabalhareconseguiroutraocupaçãoremuneradacadavezqueoestágionohospitalmudava.Se tivessesidoequilibrado,não teriaprecisadodestesonholouco:serpsiquiatra!Jápensaram?Ademissãoàsvezesmetentou,porqueera tranquilizadora.Vender coisasnãoédesagradável!Teria tidocolegas, teria tambémconstruídoum lar.Na verdade, eu estava alienado,possuído pelo meu sonho, precisava mantê-lo. Gilbert me mostrou ocaminho ao se inscrever em medicina, minha coragem mórbida fez orestante.Cada encontro nos modi ica, mas não encontramos ao acaso. Eu não

encontreiopedreiroquemediziaquesómoçasemaricasestudam,cruzeicom ele, só isso. Ele me surpreendeu, mas não convenceu. Não foi umencontro, pois ele nãome desviou domeu caminho. Ele não deixou umamarcaemmim,salvoadeumafrasesurpreendentequecaracterizavaseugrupodeadolescentes.Mudamosdeestilorelacionalquandotrocamosdeamigos.Alteramosde

projetosquandomudamosdemeio.É claro, amudançase fazapartirdoque já se era. É uma in lexão, não é umametamorfose, mas é su icientepara modi icar o curso de nossa existência. Um verdadeiro encontroprovoca uma in luência recíproca. Dois mundos íntimos interagem, e ummodi icaooutro.10Cadasujeitorespondeà ideiaqueele fazdesimesmo,mas essa representação de si (no sentido teatral do termo) expressa-sediferentemente segundo o contexto familiar e cultural. Com uma mesmahistóriaeosmesmosacontecimentos,umsujeitopodesecalaremummeio

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e falar muito em outro. Mas, quando fomos feridos na infância, é di ícildestrancaracriptaqueseinstalounanossaalma.No ano em que completei 13 anos, morei durante uns meses com os

Sergent, ignoro por quê. Esse casal de jornalistas me hospedou na rueRaynouard, perto do Trocadéro, vocês se dão conta? Diziam que ela erabela como Marlene Dietrich, com sua cabeleira loura que descia até acintura.Eleeramuitosimplesemuitosorridente.Nósnosseparávamosdemanhã, eles partiam para a rádio, eu ia para o ginásio. Nós nosencontrávamosànoite,alguémnosserviaarefeição.Étudo.Aosdomingos,eupegavameuspatinsderodinhaparadescercorrendo

aescadariadoTrocadéro.Encontrava-mecomalgunsgarotosquevinhamde outros bairros para patinar nas esplanadas. As crianças dos bairrosbonsraramenteestãosozinhasnasruas.EmMontmartre,narueOrdener,era na rua que aprendíamos a jogar, a falar e a fazer biscates que nospermitiamganharunstostões.Ànoite,sujosesuadosdepoisdepatinarodia todo, íamos com frequência tomar banho no Sena, junto dos degraus,sobaponteIéna.Outralembrançaaindahojemediverte.OsSergentfalavammuitodeum

cantor que eles queriam gravar para a rádio. Eles instalaram na sala dejantardoseuapartamento,notérreo,umaouduasgrandesmáquinas.Umtécnico plantou-se no meio da rua para avisar caso um carro passasse.Nenhum carro atrapalhou o cantor, e Jean Sablon pôde tranquilamentegravar:

“Porquemarcarencontrocomigosobachuva,Meninadeolhostãodoces,tesouroqueamo?Sozinho,comoumidiota,esperoemeentedioEtenhotambémalgunsproblemas.”

Após alguns meses passados na casa dos Sergent, numa acomodaçãoconfortável de um dos mais bonitos bairros de Paris, voltei com prazerpara o conjugado de Adolphe e Dora. Na casa deles havia mais vida.Apesar de sua gentileza, beleza e cultura, não houve encontro com osSergent,eumoreicomeles,amavelmente.

Períodosensívelquandooventomuda

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Umperíodosensíveldaminha infância,quandode repente se impregnoudentro de mim uma imagem que deu sentido à existência, ocorreu emStella-Plage, uma colônia de férias da CCE.11 Jacquot conseguira umtrabalhodemonitoremeinscreveuparaoverão.Eutinha14anos,epelaprimeira vez na vida vivia em um meio judeu. Nenhuma palavra sobrejudaísmo.Unicamente relatos sobreahistóriadopovo judeu, sua cultura,suas músicas e sonhos de futuro. Uma judeidade sem Deus, como meconvinha. Muitas histórias da Resistência, de iloso ia, de literatura, demúsica. Até então, ninguém me falara assim sobre a condição judaica:magní ica, grave, alegre, apaixonante. Nenhuma palavra sobre oextermínio.Mesmo os que ainda tinham pais não conheciam quase nada do

judaísmo: algumas festas, ditas religiosas, serviam de pretexto paraencontros familiares, algumas citações literárias ou ilosó icas, só peloprazerdesereferiraosgrandeshomensjudeus.Oessencialdosdiaseradedicadoaoesporteeàpreparaçãodasvigílias,

quandoseelaboravamas ideiaseostemasdenossaexistência.Falava-semaisdelutassociaisedehistóriadospovosdoquedereligião.Todosnóssabíamos que éramos judeus, mas ninguém sabia o que era ser judeu.Decididamente,issomeperseguia.Nósnossentíamosemfamília,podíamosportantonosinteressarporoutracoisa.Duasmulheres dinamizavam aquela pequena instituição: Louba e Ana

Vilner.Apresençadelaseraumacontecimento, elasnãoparavamdenosincentivarabrincar,refletiredançar.Ensinavam-nosacantar:

“ÓterradeafliçãoOndedevemossemcessarLabutar...Labutar...MasumdiaavidavoltaráAprimaverareflorirá...”

Eu percebia naquela música uma alusão à balbúrdia da guerra e àesperançarenascente.Gostavatambémdaqueixaídiche:

“Esbrennt,Esbrennt,Obriderler,Esbrennt.”12

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Convinha-mequefalássemosdesofrimento,sobaformadeumaalusãorapidamente transformada emmúsica ou poesia, única maneira de falardele.Relatarosofrimentosemmetamorfoseá-lonãopodiasenãoestimularo sofrimento, como uma queixa. Era preciso, ao contrário, fazer algumacoisacomanossaferida.Paraisso,ocomunismopareciaumaarmae icaz,eemespecialaResistência.Falava-se muito mais das FTP13 do que dosÉclaireurs israélites , não

comunistasereligiososquetinhamcombatidonasFFI.UmamúsicaglorificavaaResistência:

“Amigo,estásouvindoovoonegrodoscorvossobrenossasplaníciesAmigo,estásouvindoosgritossurdosdopaíssendoacorrentadoEia,partidários,operários,camponeses,éoalarme...”14

Esses cantos provocavam em mim uma deliciosa tristeza. Certo, tinhahavidoa guerra, o incêndio, a terradeadversidadeeopaís acorrentado.Mas a primavera re lorescerá, o alarme sairá da palha, os fuzis e ametralhadora da libertação. Uma epopeia, podem crer. A beleza, aliberdade: eis, em termos simples, o que eu sentia quando cantávamosnossasferidascomnossavozdecriança.Duranteodia,eraprecisosemexer,brincarepraticaresporte.Ànoite,

era preciso falar e ver os espetáculos nos quais devíamos encenar ostemasdenossasreflexões.Umatarde,depoisdecaminharmosmuitotempona loresta,ascrianças

se sentaram em volta de Jacquot e ele falou sobre... sua resistência! 15Graves e empolgados, escutávamos sem uma palavra. Eu deveria dizer“eles escutavam sem uma palavra”, porque eu estava desorientado. “Elepodecontarempúblicooquenãodiznavidaprivada!Elepodebuscaraspalavras, os encadeamentos de imagens que lhe permitem compartilharsuaexperiência,aopassoque,navidaemfamília,elenãofazotrabalhodecomunhão da existência!” Eu estava feliz, surpreso e confuso, e portantomudo!EmStella-Plage,pediram-mequedividisseoquartocomumcoleguinha

doginásioJacques-Decour.Nãohesitamos:tornamo-nosamigos.Duranteodia, organizávamos as exposições de pinturas, as decorações lorais nasparedes, asmanifestaçõesa favordosmineiros cujagreve seprolongava.Roland contestava todas as ordens de Louba e de Ana, dizendo que não

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devíamos nos deixar manipular pelos adultos. Eu era muito maisdesapaixonadodoqueele.Seaordemmeconvinha,euaaceitava.Senãome convinha, não a aceitava.Não tinhanecessidadedemeoporparamea irmar.Entãonósdiscutíamos,argumentávamospelasnoitesadentro.Elenãoperdiaumaocasiãoderir,oque,deresto,eraparaeleumaformadecontestação.Quandoumaordem lhedesagradava,quandoumargumentooirritava,eleriatanto,queissolhedavaavitória.Ele gostavade dizer queTopor signi icava “machado” empolonês. “Foi

porissoquemeupaitevedefugirdaPolônia”,acrescentava.“Paranãosermachadado.” Então alguém, inevitavelmente, perguntava: “Ele fugiu dospogroms?” – “Não”, esclarecia Roland Topor. “Fugiu dos judeus piedososque ele não podia suportar.” E tinha uma explosão de riso tonitruante.“Explosão” é a palavra, pois, diante da sonoridade de seu riso, nada sepodiaobjetar.Durante alguns meses dividimos o quarto, os sonhos e as discussões

noturnasquenuncaacabavam.Depoisnossoscaminhosdivergiram.Eume levantava cedo para ganhar um pouco de dinheiro, antes de ir

paraa faculdade.Elese levantavatardeparaganharodele.AlainLavrut,um colegado ginásio, acharaum trabalhode lavadorde chão e tinhamefeito entrar na empresa. Antes dobac, inscrito em PCB,16 bastava melevantaràs4horasdamanhãepedalarànoite,atravésdaParisdeserta,para chegar aos belos edi ícios de Champs-Élysées, onde tínhamos trêshorasparaesfregarosassoalhoselavarosladrilhosantesdaaberturadosescritórios. Em seguida era preciso pular de novo na bicicleta e pedalaratravésdosengarrafamentos,parachegaraJussieuporvoltadas9horaseassistiràsaulasatémeio-dia.Àsvezeseu iaacordarRoland lápelas13horas.Elese levantavae tomava,pelaordem,umcopod’água,umcafé,ecomiaumbifecomfritas.O pai dele era um homem adorável, tinha sempre uma observação

engraçadaparafazer,umaespéciede iloso iadodeboche.Eraartesãodecouro e poeta. Cada vez que vendia um artigo de couro, oferecia aocompradorumapequenacoletâneadepoemasqueelemandaraimprimirpor conta do autor. Roland dizia: “Quantomais carteiras ele vende,maispobresnósficamos.”FoisódepoisdasuamortequedescobriqueRolandtiveraumainfância

comparável à minha.17 Seu pai, polonês apaixonado pela França, queexaltava Chopin e Adam Mickiewicz, teve a sorte de não passar em um

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concurso de escultura. Como ainda estava no segundo ano, em vez dereceberumagrandesomadedinheiroconseguiuumabolsadeseismesespara estudar emParis. O antissemitismo desenvolvia-se tanto na Polônia,que ele preferiu icar na França e tornar-se artesão de couro. Quando aguerra estourou, foi chamado à delegacia pela polícia de seu país deacolhidaenãopeloocupantealemão.FoipresoeencerradoemPithiviers.Rolandfoivisitá-lo,assimcomoeuvisiteimeupaiumaúltimaveznocampode Mérignac. Durante todo o restante da guerra, Roland foi perseguido,comoeutambémfui: “Eunãocompletara5anos”,diráeledepois, “mas játinha todas as polícias da França no meu encalço”. Nós nunca falamosdisso!

Começodaminhacarreirapolíticaaos14anos

Depois de Stella-Plage e sob a in luência de Jacquot, decidime associar àUJRF.18 O comunismo me parecia a única nobreza: a URSS esmagara onazismo, o comunismo falavade igualdade, de amanhãsque cantamedepaz no mundo. Durante esse tempo, os americanos faziam a Guerra daCoreia, depois a do Vietnã, onde lançavam napalm sobre vilarejos decamponeses.Diantedatalescolha,vocêsteriamhesitado?O Exército Vermelho cantava divinamente bem, as festas comunistas

eram um encantamento de amizade e alegria. Na praça do Trocadéro,comboios traziam os operários vindos de Aubervilliers para assistir aLorenzaccio, em que Jean Vilar e Gérard Philipe entusiasmavam asmultidões com um cenário muito simples. Íamos ouvirA ópera de trêsvinténs, praticávamos esportes ao ar livre, camping em Fécamp, escaladaem Fontainebleau, esqui barato em Valloires, e excursionávamos pelaInglaterradecarona,emalberguesdajuventude.Preparávamosareuniãosemanalemumlocal,narueNavarin,pertodocircoMedrano.Asmeninasdos ginásios vizinhos participavam dos debates em que discutíamosgreves, arte,história, aUniãoSoviética, apaze aprosperidadequeela iatrazer ao mundo. Durante esse tempo, os americanos bombardeavam oplaneta e estabeleciam entre os países relações de hierarquia: desgraçadospobres!Comoerapossívelnãosercomunista?Eu gostava muito das reuniões da UJRF. Nós as preparávamos lendo

L’Humanité,indoaoteatro,polemizandocomgentedaextremadireita.Era

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precisodarprovasdeerudiçãoedecapacidadederespostasvigorosas.Eunão sabia que naquele ginásio um aluno em cada três era judeu. Jamaisfalávamos disso, não era um valor. O que contava no pós-guerra eraavançar,tentarumaaventurahumana.Paraadiante!Duas pequenas sombras alteravam contudo essa paisagem idílica. As

reuniões nem sempre eram exaltantes. Às vezes era preciso ver ilmes“realistassocialistas”,e, comoseesperavaque falássemosbem,porvezesolhávamos durante horas uma torneira pingando em uma panela vazia.Era socialismo, porque a panela era de um lar pobre, e era realismo,porque se podiam observar pormuito tempo as gotas caindo dentro. Asdiscussõeserammenosanimadasdepoisdetaisfilmes.“Nos últimos anos, demonstrou-se que um impacto ísico importante é

transmissível a várias gerações por modi icações ditas epigenéticas. Nãoapenasháumatransmissibilidadehereditáriabemprevisívelpeloprópriocontexto familiar, mas também uma transmissão hereditária real,felizmente bastante lábil.”19 Mitchourine e Lyssenko, amigos de Stalin,sustentavamqueomeiomodi icava a hereditariedadedas característicasadquiridas – o que signi icava implicitamente que uma sociedade bemorganizada, ou seja, comunista, fazia as pessoas felizes e com boa saúdeatravés das gerações. Um professor de universidade, biólogo conhecido,vinha nos explicar que o pensamento perfeito de Lenin e de Stalin nosproporcionariasaúdeefelicidade.Durante esse tempo, o jornalAurore publicava testemunhos sobre a

imensamisériasocialeintelectualdospaísescomunistasquecontradiziamoprofessor.Foientãoqueosprimeiros ilmescoloridossaíramnaFrança:eles eram soviéticos, explicavam-nos, provando assim que a tecnologiacomunistaeramelhordoqueadoscapitalistas!20Nosso pequeno grupo de jovens comunistas devia, pois, celebrar essa

vitória.Nosanos1950,haviapertodeBarbèsumimensocinema,chamadoLouxor porque sua decoração lembrava o Egito. Lá se projetaram osprimeiros ilmes soviéticos em cores! Nesses ilmes, tudo era cor pastel,suave e claro como omarshmallow, que émole e açucarado. Em um dosepisódios,viam-sedois jovensdeclararemsuapaixãodiantedeumtratorlaranjae,nofundo,umpôrdosolrosa.Compoucosrecursos,ojovemcasaldecidepedirconselhoaocamaradaStalin.OPaizinhodospobresrecebe-osem seu escritório, trajando uma túnica branca de colarinho fechado, àmodarussa.Depoisdeescutá-losafetuosamente,Stalinlhesdiz:“Antesde

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secasarem,meusfilhos,esperemofimdoplanoquinquenal.”Nós duvidávamos da realidade dessa cena. Mas vários professores

comunistasqueadmirávamosnosexplicaramqueeraassimqueacontecianasdemocraciaspopulares.Atribui-seatéaRogerGaraudyterrespondidoque, segundo a teoria de Ivan Mitchourine, papa da biologia vegetal eamigo de Stalin, a sociedade comunista era tão bem organizada que asvacas produziam mais leite. Não é errado dizer que uma vaca nãoestressadadámaisleite,maséoregimecomunistaqueadeixatranquila?Apósdoisanosdemilitânciaestudiosaedoutasexposiçõesextraídasde

L’HumanitéedeL’Avant-Garde, fuirecompensadocomumaviagemparaofestival da juventude que, em 1953, acontecia em Bucareste. Depois devários dias de viagem durante os quais adoramos nos fazer medo (“Afronteira é intransponível... nós vamos ser presos pelos americanos”),inalmentechegamos.Primeirasurpresanaestação:homensdeprontidão,de roupa azul de trabalho, nos esperavam para carregar nossas malas.Quandoorecusamos,elesnosdisseramquetinhamsidorequisitadosparafazeressetrabalho,eumdeles,emumfrancêsaproximativo,explicouque,uma vez que o comunismo organizara uma sociedade perfeita e elestinhamsidodesignadosparaestarnoúltimodegraudaescada,eranormalqueobedecessem.Na rua, agitavam-se bandeiras, sorriam-nos, balbuciavam para nós em

franco-romeno. Era uma festa. Dormimos na escola politécnica em camasdecampanha,eeupartilhavao“dormitório”comjovensuniversitários.Emalguns dias, decifrando os jornais, eles tinham aprendido númerosu iciente de palavras para se virar em romeno. Na rua, nós éramosfrequentementeatraídosparacantos,onde,comolharesinquietos,alguémnos explicava que a polícia estava em toda parte e depois nos pedia quelhevendêssemosnossobluejeans.

Fimdaminhacarreirapolíticaaos16anos

Apolícia estava, comefeito,presentena rua,nasmanifestaçõese aténosteatros. Uma noite, cheguei atrasado ao espetáculo e todos os lugares játinham sido tomados. Um policial, que pedira meu endereço, quisdemonstrar sua amizade. Ele me fez acompanhá-lo até as melhorescadeirase,comumgestodemão,mandouumespectadorselevantarpara

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mecederoassento.Muitos romenos tinham lutado contra o nazismo nas FTP na França.

Jacquotmederaalgunsendereçosderesistentescomquemeugostariademe encontrar. No corredor, vizinhos me diziam, fazendo com a mão umsinaldeevacuação:“Sanatorium,sanatorium,Militsia.”Eumeespanteicomquehouvessetantostuberculososentreosresistentesepergunteiporqueera necessário que a polícia os levasse para serem tratados. Leveimuitotempo para entender que “sanatorium” signi icava “asilo psiquiátrico”.Alguns antigos resistentes estavam na prisão depois de ter tidoresponsabilidades governamentais, e outros tinham simplesmentedesaparecido.Um domingo de manhã, antes de assistir a um espetáculo político-

esportivo com des iles, estandartes e danças de grupo, fomosinsistentemente convidados para uma manifestação da qual teríamos departicipar.Meus colegas da rua Ulm e eu, jovem ginasiano, nos vimos nomeiodeumamultidãoreunidaporpro issãoemquesegritava:“GeorghiuDedjluptatorpentrupaceșipopor.”21ComoutroscolegasdaRenault,visitamosumafábrica.Aportaprincipal

era cercada de grandes fotogra ias decoradas com louros. Os jovensoperários se interessaram pelo ritmo do trabalho e disseram: “Se osstakhanovistas desta fábrica tivessem de trabalhar na Renault, seriamdemitidos por preguiça.” Nos canteiros de obras públicas, mulherescobertasdelama,vigiadasporumpequenocontramestrequeassoviavaoritmo, suspendiam pesados canos. Outrasmulheres, com pás e picaretas,cochilavam na grama dos jardins. Quando nossa intérprete brincou comelas dizendo “Tudo bem? Não estão se cansando demais?”, elasresponderamrindo:“OEstado ingequenospaga,entãonós ingimosquetrabalhamos.”Ohumoréumaformaderesistênciasobtodasasditaduras.Quis visitar a faculdade de medicina. Alguns estudantes nos contaram

queaprovamaisseletivadamedicinanãoeraadeanatomia,biologiaouclínica como se poderia esperar,mas a dissertação sobremarxismo, queselecionava mais severamente. Alguns estudantes desejosos de setornarem médicos faziam o sinal da cruz antes do exame. Eles sepersignavam às escondidas porque a religião era combatida. Em umabandeirola, podia-se ler: “O cromossomo é uma invenção burguesadestinadaalegitimarocapital.”Lyssenko,parareforçaraideologiadeseuamigo Stalin, proibia a crença na existência de cromossomos, que

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resultaria no risco de evocar uma natureza humana. Só a organizaçãosocialcomunistavaliaapenaserpensada.Curiosomaterialismo.A maior parte de meus amigos da faculdade de educação icou

perturbada. Então umdeles explicou: “Quando se faz a revolução, não sefaz omelete sem quebrar ovos.” Imaginei que os ovos fossemmilhões desereshumanos.Paravam-nos na rua para murmurar frases que eu entendia mal:

“ocupação russa”, “polícia onipresente”, “imposto sobre a carne”, “escolaproibidaparaosfilhosdosburgueses...”Foicontudoumaexperiênciahumanamagní ica.Osromenosadoravam

aFrança, suamúsica era viva, a Berenitza fazia as pessoas dançaremnarua,aóperachinesanosemocionavacomsuabeleza,etodosospassantesexpressavam sua amizade. Voltei para a França amadurecido pelaaventura,masextremamenteabalado.Quando izmeurelatórionaUJRF,nolocaldarueNavarin,osamigosde

quemeugostavaequetinhamencantadominhaadolescênciasecalaram.MesmoJeannette,cujoapoioeuesperava,desviouoolhar.Entãoquisfazeralgumas perguntas aos dirigentes, falar sobre o meu espanto, semagressividade. Paul Laurent, na época secretário nacional da UJRF, merespondeuqueeuerajovemdemaisequenãosouberaver.De volta ao ginásio, falei demeu desconforto a Jean Baby, o professor

que eu admirava. Ele não acreditou em mim e disse que era precisodescon iar da propaganda reacionária. Eu encontrava a mesmaimpossibilidade de falar da minha experiência durante os anos do pós-guerra,quandoquiscontaroquetinhameacontecido.Porém,antesdepartirparaBucareste,lerano LeMondesobreocomplô

dos jalecos brancos denunciado por Beria, diretor da polícia política daURSS que acusava osmédicos judeus de ter assassinado grande númerodedirigentescomunistas.22O processo dos jalecos brancos, em 1953, meu desconforto em

Bucareste e a entrada dos tanques russos em Budapeste em 1956alteravam minha utopia. O real afastava-se da representação idílica. Foidi ícil renunciar a esse encantamento.Quandoeudisse “Nãoé assimquesedevelutar”,perdimeusamigos,tivederenunciaràsleituraseàssaídasquegarantiamumarotinaàminhavidadiáriaeeuforizavammeussonhos.Setivessepodidoconservarafé,meusprimeirosanosdemedicinateriamsido menos duros. Teriam me cercado, reconfortado e encorajado, como

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faziamcomBernardKouchner,jáelegantecomseussobretudosdegoladeveludo e corajoso ao enfrentar os que se opunhamaoClarté,23 jornal dasJeunesses Communistes que ele vendia na rua em frente à faculdade demedicina.Adúvidalheveiodepois,mashavianeleumgermedeceticismo,poismelembrodequecriticavaosartigosdojornalquevendia.Pode-se viver sem mito? Quando uma experiência coletiva é dolorosa,

quandoasituaçãosocialédifícil,quandoomundoíntimoédesesperador,omitonosreúneedásentidoaosnossossofrimentos.24Não se trata propriamente de uma mentira, eu diria que são

experiências reais arranjadas de modo a compartilhá-las e habitar ummundo comum. A quimera da minha infância dava forma a umaexperiência que eu não podia compartilhar. Essa representação de mimpunha ordem em fatos reais quemeu contexto relacional não suportavaouvir. No mito, ao contrário, as experiências são arranjadas a im decompartilharumamesmarepresentação.Minhaquimeragalopavasozinhanasminhas ruminaçõesmudas, ao passo que o compartilhamento de ummitoteriaorganizadoumrelatocoletivonoqualeuestariaemcontatocommeus próximos. Minha quimera dava coerência à representação que eufazia de mim, iniciada na vitória sobre a morte, propiciando-me umaestranha estratégia de existência. Se tivesse podido compartilhar umamemória coletiva, teria sido apoiado e ajudado. Graças às JeunessesCommunistes,pude,contudo, fazerprojetossociaise tersonhosde futuro,atéodiaemqueminhasdúvidasmeprivaramdesseapoio.Aevoluçãoperversacomeçaquandoomitoviradogmaenospedeque

acreditemosquenãoexisteoutraverdade.Apartirdeentão,bastaqueumdenós vislumbre outra evolução, descubrauma experiência diferente ouumarquivoquepoderiaalteraromito,parasertachadodeblasfemador.Quando omito necessário se torna dogma, qualquer opinião diferente,

mesmovizinha,temoefeitodeumatransgressão.Quandoo“eu”éfrágil,o“nós”servedeprótese.Quandoogrupoprecisadeummitoparaservirdesuporte,amenorvariação,sentidacomoumaagressão,legitimaaagressãopretextando legítima defesa. Pode-se deportar, queimar, excomungar oureeducaraquelequenãoestáexatamenteconformeorelato.Mudandodevisão, ele destrói o mito e impede o grupo de viver junto: morte aotransgressor.Omitodofrancêsesperto,resistindoeridicularizandoo“alemãobatata”,

mudou nos anos 1980.Nessa época,minha quimera começou a se sentir

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menossozinhaquandoosrelatosculturais izerammeucírculo icarmaisatento ao queme acontecera (ao que aconteceu com20mil pessoas quetiveramumainfânciaanálogaàminha).25

Palavrasgeladas

Osfatoseramreais,masaspalavraseramgeladas.Rabelaisfezumcontocomaideia.26Seubarconaveganosmaresgelados

do Norte e se aproxima dos mares do Sul: “Em pleno mar nosbanqueteamos, bebemos, contamos histórias e fazemos belos discursos.Pantagruel levanta-se e nos diz: ‘Nada ouvem, companheiros?’... Panurgegrita: ‘Ai de nós, estamos perdidos. Fujamos. Deus do céu, são tiros decanhão...’ Pantagruel, ouvindoabarulho... diz... ‘ondehabitamasPalavras,as Ideias, os Exemplares... no tempo do inverno rigoroso, quando sãoproferidas, elas gelam, congelam com o frio do ar...’ O piloto responde:‘Senhor, não tenha medo. Estamos nos con ins do mar glacial, onde, nocomeço do último inverno, ocorreu grande e sangrenta batalha entre osarimaspianoseosnefelibatas.Naocasião, gelaramnoaraspalavraseosgritosdehomensemulheres,otumultodemaças,ochoquedearmaduras,o relincho de cavalos, todo estrondo dos combates. Passado o rigor doinverno,comoadventodaserenidadeeatempériedobomtempo,elassefundemesãoouvidas...’[Pantagruel],noconvés,atirou-nosmãoscheiasdepalavras geladas... Elas nos parecem palavras licenciosas, algumas com overde dos escudos, algumas azulinas, algumas de areia, algumasdouradas...”Rabelais, no começo do século XVI, apresenta uma questão ainda hoje

debatida. Por que um ferido na alma não pode contar senão o que seucontexto consegue ouvir? Quando o ambiente cultural é gelado, o feridoica sozinho com seu trauma encriptado na memória. Quando o climareaquece, quando ocorre o “advento da serenidade”, o ferido pode seexpressar,érodeado,poderetomarolugarentreosseus.Assim se pode compreender que o que é o outro modi ica a maneira

comofalamosdenossaferida.Segundoapessoaaquemdirijomeurelato,remanejo a representação de meu passado. A pessoa a quem me dirijoparticipadaminhahistória!Seráque,rearrumandoosrelatosemtornodemim,conseguireiexpressarcomserenidadeoquemeaconteceu?

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Quando, durante a guerra, umamenina grande, Anne Frank, escreveuseu diário,27 não fez senão relatar acontecimentos terríveis massuportáveis.Sabe-se,nãosevê.Atensãoemotivaéprovocadapelaesperadamorteenãopeloamontoamentodecadáveres.Namesmaépoca,PrimoLevi,capazporémdepoesiaere lexão,prefere

escreverÉ isto um homem?, porque acha que seu depoimento lhepermitirá vingar-se dos criminosos: “[...] um livro, como um revólver natêmporadosagressores.”28O diário de Anne Frank conta uma história suportável e comovedora.

Primo Levi, depois de ter sido recusado por várias editoras, que lherespondemqueninguémvai se interessarpor tamanhoshorrores, vendeapenassetecentosexemplaresnoanodapublicaçãodeseulivro,em1947.A menina grande, com seu relato deliciosamente triste, degelou muito

mais as palavras do que o sábio que, com seu depoimento insuportável,gelavaosleitoresereforçavaanegação.Parece-me que foi a popularização dos Justos o que reaqueceu a

atmosfera. Em 1953, o parlamento israelense votou uma lei parahomenagearos“Justosentreasnaçõesquearriscaramavidaparaajudaros judeus”.Nenhumecorespondeuaté1961,datadoprocessoEichmann.Os organizadores, temendo que o governo alemão se sentisse agredido,rapidamentedestacaramalgunsalemães“Justosentreasnações”,a imdedeixarclaroquenãoestavamacusandoumpovo.Noanoseguinte,muitasinstituiçõesjudaicaspediramainclusãonahomenagemdeumnúmerotãograndede JustosqueaKnessetprecisou inaugurarumaalade JustosemJerusalém.29No começo dos anos 1980, o degelo das palavras foi manifesto. Eu

escutavaestranhasfrasesemtornodemim.“Parecequeprendiamatéascrianças... Alguns iam à delegacia com sua roupa de domingo e asmedalhasdeguerra...nuncamaisforamvistos.”Nosmeiosdeesquerda,areligião não participava da identidade. Dizia-se que nos campos haviaromenos, húngaros, poloneses ou franceses, mas não se dizia que eramjudeusoucristãos,umavezqueareligiãonadasignificava.Umdia, uma enfermeira do centromédico-social de La Seyne-sur-Mer,

onde eu era médico, me trouxe um número de Historia, no qual MichelSlitinskyescreveraumcurto artigo sobre asprisões emmassadurante aguerra.Podia-selerque“obravosoldadoCyrulnik, feridoemSoissons,naLegião Estrangeira, foi preso no seu leito de hospital pela Gestapo

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bordelesa”. “É alguém da sua família?”, perguntou a enfermeira, senhoraRichard.Quer dizer que estava escrito na revistaHistoria! Meu pai tinha sido

corajoso,feridoemSoissonsepresonacompanhiadeumsoldadohúngarodomesmoregimento.Esseshomenstinhamsidopresosedeportadospelapolíciadopaíspeloqualelescombatiam!Em 1981, em Hyères, Paul Guimard organiza um encontro com Jean-

Pierre Énard, diretor literário a quem eu acabara de remeter meuprimeiro manuscrito. Eles dizem que Maurice Papon, que participou dogoverno Barre, se opõe fortemente a François Mitterrand. Vai havermuitosproblemas,a irmameles,porqueSergeKlarsfeld 30 acabadeachardocumentos autenticando as ordens de requisição assinadas durante aguerraporMauricePapon.Algumas semanas antes, Michel Slitinsky me enviara fotocópias de

decretos prefeitorais nos quais pude ver listas de crianças que a políciadeviaprender.Embaixodemuitosdocumentos,podia-seler“Peloprefeito,osecretário-geral”,assinadoMauricePapon.Tempos depois, quando Slitinskyme enviou seu documento,31 descobri

que,nodia16demarçode1943,MauricePaponassinaraatransferênciadeprisioneirosdo campodeMérignacparao campodeDrancy.MeupaitalvezestivessenessecomboioemdireçãoaAuschwitz.Minha prisão estava programada para o dia 16 de julho de 1942,mas

escapei porqueminhamãeme deixara na Assistência Pública. Em 18 dejulhode1942,eraelaquepartiaparaAuschwitz.O pai de Philippe Brenot, médico em Mérignac, me disse que tivera

oportunidade de ver um documento do campo no qual estava escrito:“Boris Cyrulnik, 5 anos. Evadido.” É impossível. O arquivo se engana, eunão tinha5 anos, não fui ao campodeMérignac anão serumavez, paravermeupai.Margot,poucoantesdemorrer,relatouoepisódioemqueelacuidoude

mim. Descubro que, antes deme recolher em sua casa, elame con iou auma família de Villenave-d’Ornon: nenhuma lembrança. No dia daminhaprisão, ela era professora em Coutras: eu não sabia. Depois da minhaevasão, foiocasalAndréeRenéeMonziequecuidoudemim:euosoubeem 1985, durante um congresso sobre linguagem, quando o senhorMonziepegouomicrofoneparamecontarempúblico.Esses momentos cruciais nada deixaram na minha memória. Em

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compensação, querem que eu conte como Margot me dava torrões deaçúcar quando veio me buscar na Assistência? Eu me lembro de queestavadepéencostadonela,para icarmaispertoda caixaqueela tinhano colo. Eu me lembro do gesto que ela fez quando me disse que tinhaacabado. Querem outros detalhes? Estão aqui, claros e precisos, inscritosna minha memória. “É próprio do acontecimento traumático resistir àhistorização.”32 A memória traumática é uma marca imobilizada. Ela nãoevolui, surge de dia de maneira inopinada, às vezes evocada por umsimplessinalpercebidonoambiente.Denoite,amarcavoltasobformadepesadelos,comoarevisãodeumaterrível liçãoquereforçaamemóriadohorror.O processo de historização é diferente. Ele é intencional, uma vez que

deve buscar lembranças, explorar documentos e provocar encontros quenospermitamremanejararepresentaçãodopassado,mudardeopiniãoedemaneiradeverascoisas.

Amemóriahistóricanãoéamemórianarrativa

A evidência histórica não é a evidência narrativa. Eu precisava dacoerênciademeurelatomudoparameajudaramedirigirdentrodeummundo hostil. Mas, ao me contarem minha infância, descobri um novocontinente.Amodi icaçãoderelatosculturaismodi icoumeurelatoíntimo,eu já não me contava a minha história! Quando o clima se suavizou, aspalavras degelaram, pude ouvir de outra maneira meu passado ecompartilhá-locommilharesdecon identes,falarnormalmente,dealgumamaneira.É claro, o processo Papon tinha uma intenção pedagógica. As mídias

transformaram-seemprofessoresdehistória,osmudosforamconvidadosa falar. Eles contaram, testemunharam, esclareceram, modi icaram suasmemórias feridas. Competia à justiça o papel pedagógico? “Não estariamconfundindoorecintodotribunalcomumcolóquioouumasaladeauladeginásio?”33Esse processome pôs pouco à vontade, embora tenhame bene iciado

dele.Nãosentiorgulhoporagrediremumhomemvelho.Seriaalembrançadomiliciano lentamente linchado no GrandHôtel de Bordeaux durante aLibertação,emsetembrode1944?Teriapreferidomaisnobrezaporparte

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demeuslibertadores,umpoucodedignidadeporpartedaquelesdequemeume sentia próximo e que tinham condenadoPapon antesde julgá-lo.34Em 1981, não se falava de crimes do governo de Vichy. Em tal contexto,Papon não teve di iculdade em constituir um júri de honra para evocarumavaga iliaçãonasForcesFrançaisesCombattantes (FFC).Nessa época,todososmovimentossociais se fortaleciamcomoconformismo,quesabiaprovocar indignações coletivas. Em 1933, a maioria dos alemães votoucontraonazismo.Depois,arotinados sloganslevouessegrandepovo,essabela cultura germânica a se submeter a uma ideologia estúpida: “Oprosseguimento mecânico da vida cotidiana serve de obstáculo contraqualquerreaçãovitalàmonstruosidade.” 35PrimoLevimanifestaamesmaideia: “Os perigosos são os homens comuns.”36 “A cultura do funcionáriopúblicodaépocaéobedecer semseperguntar.” 37 De tempos em tempos,convém programar uma pequena revolta. Todos os funcionários deregimes totalitários aceitam participar do regime, mas regularmente sepermitem uma pequena discordância. “Quase todos os altos funcionáriosdo regime de Vichy começam a prestar serviços à Resistência.” 38Contestavam um pouco a ordem de prender as crianças, pediam aossuperiores hierárquicos que pusessem palha nos vagões de animais quecarregariam os prisioneiros até Drancy e depois para Auschwitz,solicitavam aos chefes que distribuíssem alguns cobertores e algumascaixasdeleitecondensadoàs1.700pessoasqueviajavamparamorrer.Talcomportamento é habitual quando as relações hierárquicas exigem dapessoa a submissão a ordens criminosas. Ela obedece porque éfuncionária, mas acrescenta uma pitada de revolta para preservar aautoestima. A adaptação permite manter o posto e executar as ordenscriminosassemculpa.Édi ícilnãoadotartalestratégia.Quandoumfuncionárioseenvolvesem

criticar, e por vezes até se antecipa às ordens dos carrascos, terá dereconhecerqueparticipoudo crime.Quando, ao contrário, se rebela e searrisca a ser demitido, pode ter de pedir demissão ou refugiar-se naResistência. Todos os que participaram de um regime criminoso e seadaptaram, submetendo-se para manter o emprego, acrescentavam vezpor outra uma ponta de rebelião a im de não se sentirem culpados epoderdizer:“Euapenasobedeci.”MauricePaponfezcomomuitagente.Emabrilde1998,datadoveredicto,algunsinstigadoreshaviammudado

a cultura. Claude Lanzmann foi umdeles quando, no seu ilmeShoah, em

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1985,denunciouocrimedeobediência.Dandoapalavraaoscriminososeàs testemunhas do genocídio, ele foi mais longe do que o enunciado dosfatosealeituradosarquivos.Eledesvelouomundoíntimodoscriminososdemassaquesesentiaminocentes.No imdo ilme,euacheiquesecalarerafazer-secúmplicedessescriminososeseusherdeiros,osnegadores.A era da negação chegava ao im. A França estava reconstruída, os

jovenssabiamqueseuspaistinhamconhecidoumaguerranopassado.DeGaulle jánãopodiadizer: “Acimade todas essasdesgraças, o silêncio eoesquecimento assentam-se melhor do que os choros”, os judeus já nãoqueriam calar-se para não perturbar os outros. Era preciso falar! Ocontexto cultural, suavizando-se, degelava as palavras. Bousquet já nãopodia ser inculpado, uma vez que tinha sido abatido de forma idiota.*Restava Papon. Culpado secundário, condenado a dez anos de prisão,sabendoquenãooscumpriria, foirepreendidopor“quasecrimecontraahumanidade”.Muitos amigos meus tinham trabalhado com ele. Falavam muito bem

dele.Eratrabalhador,confiável,cultoeumcompanheiroagradável.Éclaro,tinha exagerado um pouco durante a guerra. Excessivamente zeloso,tomara algumas decisões que poderia ter evitado, mas, explicavam, nãotinhasidooúnico,emuitospermaneceramnopoder.Amemória de si é fortemente ligada aos contextos sociais. As histórias

que contamosdependemdanossaposição social edos relatosda culturaquenoscerca.39Para não morrer durante a guerra, tive de me calar, fazer segredo.

Depois, parame adaptar à negação cultural dos anos do pós-guerra, tivedefalardeformatorta,poralusões,porsilênciosqueprovocavamnomeucírculo uma sensação de estranheza. A partir dos anos 1980, cedi comalívioaosconvitesparafalar.Omesmoacontecimento,omesmofatosocialfoiinicialmenteimpossíveldecontar,depoisdeformado,edepoisreveladosegundoosrelatosdocontexto.

Odegelodaspalavras

OprocessoPaponmefezumfavor!Naocasiãodesuaprimeirainculpação,em 1981, quando meu nome apareceu em alguns relatórios e algumasrevistas, amigos surpresos me izeram perguntas. Respondia-lhes com

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prazer,masnãoera fácil,umavezqueeles imaginavammalodesenrolardos fatos. Como não tinham nenhum conhecimento daShoah, suasperguntas eram absurdas: “Uma criança não pode entender o que é aguerra”, a irmava-me amavelmente uma jovem professora de direito.Outrameperguntavaansiosamenteoquetinhamfeitocomigoospedó ilos,vistoquesefalavamuitodissonamídiadosanos1990.Umempresáriomeexplicava com admiração que o fato de eu ter conseguido escapar eraprovadaminhaqualidadebiológica superior.Ao inaldeum júride tese,umamulherdaplateiameinterpelouemvozalta:“Lisuahistórianolivrode Slitinsky:40 como o senhor fez para escapar?” Eu acabara de dizer“adeus” à jovem doutora, apressava-me para pegarmeu carro, dispunhadetrintasegundospararesponder!Eunãopodia criticar esses questionadores atrapalhados, uma vez que,

portermecalado,tinhacontribuídoparasuaignorância.Minha infância tornou-sepúblicaquando indiqueiMargotpara receber

amedalhadosJustosem1997.Detemperamentoreservado,elamepediuqueorganizasseumacerimôniadiscreta.Masseumarido,GeorgesLajujie,era pessoa conhecida em Bordeaux, adjunto de Chaban-Delmas, fortepersonalidade, então a cerimônia não podia passar despercebida. Aochegar à prefeitura, vi uns vinte ex-combatentes com medalhas ebandeiras, o comitê de Yad-Vashem, 41 uma dezena de jornalistas e boapartedoconselhomunicipal.A pedido de Margot, respondi vagamente às perguntas, a ponto de

alguns erros cometidos ofenderem a pessoas que eu não queria ofenderde forma alguma. Então eu intervim para reparar os mal-entendidos,dandoassima impressãodequeexpunhaempraçapúblicauma infânciaqueeuescondera.Maseuaesconderaemumcontextoqueexigiaquemecalasse.Apartir

dos anos 1980, quando o contexto culturalmudou graças aos ilmes, aosensaios e aos documentos que relatavam bem, ou não tão bem, aShoah,iquei feliz porme deixar levar pelo degelo das palavras. Por isso iqueisurpreso ao não ser convidado a testemunhar no processo de Papon. Acitação do meu nome foi, ao que parece, seguida de um longo silêncio.Depoissepassouaoutraquestão.Euacreditavatersidooúnicoquesobreviveraàprisãoemmassade10

dejaneirode1944.Achavaqueamulhermoribundaemcimademimnãoconseguirasobreviver,nãotiveraacessoaosarquivos(minhanegaçãonão

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meestimularaapesquisar).Há alguns meses, Michel Achouker me telefonou: “Tenho a sua idade,

estava preso com você na sinagoga de Bordeaux. Quer se encontrarcomigo?”Por que pedi a Yoram Mouchenik 42 que assistisse ao encontro? Esse

jovemuniversitáriore letiasobreapsicologiadascriançasescondidas,euoleracominteresse.Euiapoderconhecermeuúnicocolegasobrevivente.Escrevendo estas linhas, descubro que, inconscientemente, pedi a Yoramque fosse comigoporque temiaquenãome acreditassem,mais umavez!Toda vez que deixara escapar um fragmento de testemunho, tinhaprovocadoadúvida,aincredulidade.Yoram foi, e nós conversamos alegremente com Michel. Vocês leram

direito“alegremente”,éoúnicomeiodefalardisso.Nosanosanterioresàguerra, o pai de Michel era médico no bairro de Faubourg-Poissonière.Comprara umvelho imóvel que reformara empregando operários turcos.Quandoaguerraexplodiu,achouqueParissetornaraperigosaemandouo ilhoparaacasadeumamigopadre,emBordeaux.Foinacasadelequea criança foi presa. Nós tínhamos exatamente asmesmas lembranças dasinagoga:aseleçãonachegada,osaramesfarpadosnomeiodotemplo,osprisioneirosdeitadosnochão,abrutalidadedossoldados.Tinha icadoemcima do cobertor, tranquilizado pela mulher e pelas caixas de leitecondensado. Fora transferido para Drancy nos vagões de animais. Seudestinoestavatraçado.Foientãoqueumoperáriodeseupai,requisitadoparafazerreparosno

espaço que servia de prisão entre os edi ícios, reconheceu o ilho de seupatrão.Elepegouomeninopelamão,aproximou-sedeumguardaedisse:“Estemeninonãoé judeu.Émeu ilho.Eleémuçulmano.” “Então”,disseoguarda,“seéseufilho,leve-o.”Michel,que se tornoumédico, explicou-measdi iculdadesque também

eletiveraparacontartudoisso.Porisso,quandooprocessofoiabertoemBordeaux em 1997, ele pedira para testemunhar. Responderam que nãoprecisavamdele.Eunãosabia,nessadata,queamulhermoribundaemcimademimnão

havia morrido. Soube depois que ela também não fora chamada atestemunhar. Contudo, abalara-se com os relatos que ouvia, quedespertavamotraumareprimido.43Cinquentaanosdepoisdaguerraaindanosfaziamcalar!Masoclimase

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suavizava, as palavras degelavame os jovens começavama se interessarpelaShoah, comoquem se interessa por uma tragédia antiga. Continuavadi ícil falar, porque é complicado integrar um acontecimento anormal emuma representação lógica. Mal uma tragédia é enunciada, já é envolvidapelosestereótiposdocontexto.

Memóriadosfatoseestruturassociais

Em1985, fui convidadoparaoNIMHdeSanDiego,nosEstadosUnidos,44nacompanhiadeJean-DidierVincent,oreputadoneurobiologista.Ao inalda guerra, estávamos na mesma escola, a do senhor Lafaye. O pai dele,igura importante da Resistência bordelesa, desempenhara papelfundamentalna libertaçãodeCastillon.Umanoite,emtornodeumamesaonde relatávamos nossas infâncias camponesas, ele disse sem se dirigirespeci icamenteaninguém:“Você,Boris,foijogadopelajaneladeumtrem.Foi assim que conseguiu escapar dos campos.” Respondi que, com efeito,euevitaraamorteporpouco,masquenãotinhasidojogadopelajaneladeumtrem.Ninguémfezperguntas.Rimosdeoutrascoisas.Jean-Didier sabia provavelmente que eu tinha sido escondido pelo

senhorLafaye,poiseletambémeraaluno.Seupai,afamíliaouaspessoasde Castillon devem ter falado a respeito. Depois, em cima dessa verdadeparcial, ele calcou um estereótipo cultural, uma imagem de ilmeprovavelmente,naqualsevêumamãeatirarumbebêpela janeladeum“trem da morte”. Como frequentemente fazemos, ele condensou duasfontes diferentes de sua memória: uma fala familiar e uma imagemconvencional.Depois do processo Papon, encontrei muita gente que me contou a

infância. Georges Gheldman descobriu o arquivo, o documento o icial docomboio nº- 7 que enviou para a morte sua mãe e a minha no mesmovagão.A senhora Yvette Moch me escreveu uma carta dizendo que me vira

fugir.ElaentraranasinagogagraçasaumaventaldeenfermeiradaCruzVermelhaparatentarsalvaropai,comotestemunhounoprocessoPapon.Porém, esclarece, “assisti à sua ‘evasão’ sob a capa protetora daenfermeira”.45Porqueelapõeentreaspas“evasão”?Poderia tratar-sedeoutracoisa?Masdepois,quandofaleisobreissocomasenhoraDescoubès,

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nósdoisconcordamosclaramente:nuncaestivesobacapadaenfermeira.A senhoraMoch,durante sua corajosa incursãodentroda sinagoga,devetermevistosozinhooutentandomeevadir,poiseu izdiversastentativasantesdaquefoibem-sucedida.Muita gente, falando da minha evasão, evocou a imagem ajustada da

capa da enfermeira. Algumas pessoas, com fantasias mais ousadas,chegarama a irmarque eume escondera sob a saia da enfermeira. Elasizeramacondensaçãodaslembrançasquelevaaumalógicaabusiva:nósvimos três pés de umamesa,masna lembrança vemos os quatro pés damesmamesa.Éumarepresentaçãológica,aindaque,narealidade,amesasesustentassesobretrêspés.A memória traumática é uma lembrança ixa que se repete

continuamente. É uma parada da história, uma memória morta. Mas,quando podemos compartilhar a lembrança de uma provação passada, amemória torna-se outra vez viva. Então nos surpreendemos com osrearranjosquederamcoerênciaàrepresentaçãodeumarealidade louca,fazemos evoluir a lembrança. Vemos as coisas de outra forma quando oambientecrialocaisespecíficosparafalar.Meu contexto nãodegelara em1967, quando conheci PierreMarty. Eu

eraummédicorecém-formadoemneurocirurgianohospitalPitié,quando,uma manhã, por volta das 8 horas, os padioleiros assoberbadosdepositaram no chão uma mulher multifraturada. É um momento degrande atividade em um serviço hospitalar: os médicos assumem seuspostos,asenfermeiraspassamas instruções, lava-seochão,prepara-seavisita, há gente apressada constantemente passando por cima damulherferida.A encarregada me diz que não podemos deixar a mulher deitada na

maca,vamosabrirumasaladeconsultaecolocara feridaemumleitodeexame–oquefoirapidamentefeito.Assimqueomédicochega,explicam-lhe a situação e ele senta-se na poltrona para esperar que o exametermine. Enquanto nós nos atarefamos em volta da ferida, fazendo-lheperguntas, passando instruções uns aos outros, a enfermeira me chamapelo nome: “Senhor Cyrulnik, quer que solicitemos tal exame?” Ao ouvirmeunome,omédicosobressalta-se,eenquantoexaminoa feridaelevemme olhar no rosto: é de fato a expressão correta: “no rosto”. Ao inal doexame,quandoacalmavoltou,eleapontaodedoparamimediz:“Seupaise chamava Aaron.” Como ele podia saber que era esse o nome domeu

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pai? Espantado e feliz, con irmei e perguntei como podia saber o nomedele: “Antes da guerra, nós militamos juntos em um movimentoantifascista.”Euacabaradeencontraralguémquepodiafalardemeupaiemedizercomoeleeranavidareal,enãosomentenumpapel,numacruzdeguerraenumacertidãodedesaparecimentoemAuschwitz.Os pacientes chegavam. Ele me deu seu cartão e me pediu que fosse

visitá-lo.Li:“PierreMarty,psicanalista,boulevardSaint-Germain.”46Jamaisfuivê-lo.Tinhaaimpressãodeque,sefalassecomelesobreamortedemeupai,

acabariaexpondoaperdadaminha família...Oqueeu fariacomtodososdesaparecimentos, as perdas sem luto? Teria enchido a cripta da minhaalma com lembrançasdequeninguémnaquela épocaqueria ouvir falar?Dequeadiantafazerreviverumsofrimentocomoqualnãosepodefazernada?Anegaçãomeprotegiaaumpreçohumanomuitoelevado.Se fosse hoje, eu iria procurá-lo e sentiria alegria em conhecer minha

famíliadesaparecida,como izcomDoraquandoela inalmentepôdefalarde sua infância e da guerra, poucos anos antes de morrer. Ela tambémsentiuprazeremabrirsuacriptaquandoaculturalhedeuapossibilidadedeexpressar-setranquilamente.

Mudançadeclima

Nathalie Zajde, de volta à França (1988), trouxe sua experiênciaamericana com o objetivo de compreender o que um trauma transmiteatravés das gerações. Ao fazer parte de sua banca de tese, ela me fezdescobrirqueonãoditoprotetorpodiaalterarasrelações.47Jacques Chirac, ao reconhecer em 1995 o crime do governo de Vichy,

alterou profundamente amaneira de pensar o genocídio. Vocês vão icarsurpresos, mas eu acho que, quando Maurice Papon em 1998 foirepreendido por “quase crime contra a humanidade”, ele colaborou comessaevolução!Nãoeraoqueelepretendia,masnãoeraohomemqueseestava julgando, era o mistério de um sistema social que permitira aosdirigentes apor ao inal de uma folha de papel uma assinatura quemandavaparaamorte1.600pessoas inocentesedepoisvoltarparacasacom a consciência de trabalho bem-feito e a promessa de uma belacarreira.

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A França dessa época era povoada de várias centenas de pequenosPapons.Eraprecisocondená-los:umadezdiasdeprisãoporterdirigidooônibus que levava ao trem da morte, outro a uma multa por terdatilografadoalistadosquedeveriamserdetidos?Nãoestou falandodosqueseengajaramnasWaffenSSounamilícia; 48

esses combatiam e aceitavam o risco de morrer. Não estou falando dosmilharesdecartasdedenúncianasquaisoautormandavaparaamorteoprópriopatrãoa imde icarcomsualojanoprogramadearianizaçãodosbensdos judeus,oudequemdenunciavaacondição judaicadoprofessorde medicina a im de liberar um posto na universidade.49 Estes foramsoldados ou delinquentes, e a lei se aplica a eles. O queme espanta é ainacreditável submissão de certos homens, capazes de matarsimplesmenteparaobedecer.50OsjudeusquechegaramàFrançanosanos1930acreditavamchegarao

paísdaculturaedosdireitosdohomem,ondeacondiçãohumanaeratãobelaqueDeusmesmotinhaorgulhodesuasobras.Elesnãosuspeitavamaquepontooantissemitismodominavaos relatos.GobineaueDrumont, aoinal do século XIX, já preparavam a opinião pública ao expor anecessidadedoracismo.51Osromances, ilmes,peçasdeteatro,exposições,os jornais e sobretudo as expressões antissemitasda linguagemde todososdiasestruturavamessemovimentocultural. 52AFrançaapaixonadaporPétainnão icouchocadacomaleisobreostatusdosjudeusque,em1940,osprivavadodireitoaotrabalhoeàproteção.ElarecitavaMaurrasnessaépoca, extasiava-se, como ele, com a “obediência serena”, cantandoalegremente: “Eis-nos, Marechal, diante de ti, o Salvador da França”, e operigo da judeidade era denunciado: “Se a escola acolhe um judeu, elesaberá a língua d’oc melhor do que nós. Se aceitarmos esse judeuexcelente... estaremos pondo-nos antecipadamente emmá situação.” 53 Naverdade,opretextodalegítimadefesaserviaparalegitimaraagressãoaosjudeus.Atransformaçãodaopiniãopúblicasedeu,semtransição,depoisda lei

sobreoportedaestrela,em1942.Derepente,arepresentaçãodosjudeusmetamorfoseou-se.Jánãoerapossívelsubmeter-seàimagemdojudeudenariz e dedos recurvados para melhor se apropriar do ouro dos bem-pensantes. Os judeus se tornavam pessoas comuns: senhor Blumen, olouroprofessordematemática, senhorCohen, o alfaiate denariz reto, ouLévi,omúsicodemãoslongas.Essaspessoasreaisjánãoeramsuportede

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fantasiaspersecutórias.AFrançacristã,mudandoderepresentaçãograçasao porte da estrela amarela, voou em socorro dos judeus. O mesmofenômeno aconteceu nos Países Baixos: assim que o porte da estrelaamarela, coma inscrição Jood, foi tornadaobrigatóriaemabrilde1943,apopulaçãoprotegeuosjudeus.EstefenômenonãoaconteceunaAlemanhaou em outros países da Europa central, porque a marcação foi decididaquandoaexterminaçãojáestavaconcluída.OprocessoPaponnãojulgouumhomem.Osquecolaboraramjátinham

respondido em 1945, na ocasião dos 300 mil dossiês abertos: 125 milforamcondenados,dosquais25mil funcionáriospúblicos(deumtotalde700 mil). Houve até 12 mil fuzilados. Quanto aos responsáveisadministrativos, colaboradores econômicos e cientí icos, foram tratadoscombastanteindulgência.Ossubalternospagaram,comodehábito.54O processo não teve o efeito pedagógico esperado: 82% dos sondados

aprenderampoucacoisasobreoperíododaocupação.E62%,ao inaldoprocesso, tinham ideiasmenos claras sobre o papel de Papon durante aguerra.55Oshistoriadores,convocadosaotribunalparadizer“averdade,somente

averdade...”,nãosesentiramàalturadaquelamissão.Algunsrecusaram,como Pierre Vidal-Naquet, Michel Rajsfus e Henry Rousso. Outrosaceitaram, com a condição de serem considerados simplesmente experts,auxiliaresdajustiça,enãogarantidoresdaverdade.56Contudo,apesardessasreservas,oprocessomudounossacultura.Hoje

jánãose julgaacolaboraçãodamesmamaneiraqueem1945.Depoisdaguerra, pensava-se que aqueles aproveitadores tinham armas na mão.Sessentaanosdepois,nósnos indignamoscoma friezaea tecnicidadedeseuscrimesracistas.Oefeitopedagógico foiretardado.Foiprecisoqueoshistoriadores, ilósofos, testemunhas e artistas elaborassem os fatoslevantadospeloprocessoparaquenossaculturaaprendesseafalardeles.

Nemódionemperdão

Eu me bene iciei bastante com esse processo que me perturbou. Quasetodoomundofalavadelecomcuriosidadeeàsvezesindignação.Euouvia:“Nãovaleapena julgarPapon,éprecisoabatê-lo imediatamente.”Aoqueoutrosrespondiam:“Elenãoéculpadodenada,deveserlibertado.”

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Enfim,falava-se!Pessoas me izeram perguntas, interessaram-se, admiraram-se,

maravilharam-se, compadeceram-se: minha cripta já não tinha razão deexistir, uma vez que me davam a palavra. Pude contar, nessa ocasião,quandomevinhaàcabeça,duasoutrêscoisassobrearupturadaminhainfância e sobreminhas tentativas de existência. Expressando-me, eumetornavacomotodomundo.Éestranhoescrever isso,poiscalarprovocavaem mim um sentimento de mal-estar tanto quanto falar. Mesmoexpressando-me, eu não era como todo mundo. Como responder a “Aspessoas que o protegeram abusaram de você? Os Justos que não foramdeportadoscolaboraram?Vocêperdoou?”.Nemódio,nemperdão.Ninguém pediu meu perdão, salvo talvez os jovens alemães que se

sentem ainda culpados dos crimes de seus avós. Por que me pedemperdão?Quandoumhomemviolaumamulher,o ilhodelenãoépostonacadeia.Todasasreligiõespedemperdãoporummalintencionalouinvoluntário

feitoaopróximo.OsjudeustêmoYomKipur(DiadoPerdão).Osortodoxospedemperdãouns aosoutros, telefonam-se e convidam-separa jantar.OCorãoensinaque“umapalavraagradáveleumperdãovalemmaisdoqueumaesmola”(surata2,163).Nãosentimosnecessidadedeconcederperdãoàcatástrofenaturalque

queimounossas lorestasou inundounossascolheitas.Não temosódiodeum fenômeno da natureza, descon iamos dele, só isso. E, para nospreservarmos no futuro, procuramos compreendê-lo para melhorcontrolá-lo.Édiferentedaidenti icaçãocomoagressordealgumasvítimasqueinvejamolugardocarrasco.Identifica-seoagressor,comoocamponêsarruinadoporumjorrodelavaquesetornaespecialistaemvulcões.É umpouco o que sinto quandopensononazismo e no racismo. Esses

homens se submeteram a uma representação cortada da realidade. Nãosuportavamaideiaquefaziamarespeitodosoutros:morteaosparasitas,aos judeus, aosárabes, aosauvérnioseaoszazous. Passaramaoatoparaobedecer a uma representação absurda. A submissão que os unia lhesdavaumaestranhasensaçãode força: “Nossochefeveneradoépoderosograçasànossaobediência.”A escolha não é, portanto, entre punir ou perdoar, mas entre

compreender para ganhar um pouco de liberdade ou submeter-se para

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vivenciar a felicidade na servidão.57 Odiar é permanecer prisioneiro dopassado.Paralivrar-se,émelhorcompreenderdoqueperdoar.

*BibliothèqueRose:coleçãodelivrosinfantiseditadadesde1856,destinadaacriançasde6a12anos.(N.daT.)* René Bousquet, secretário de polícia no regime de Vichy, morreu assassinado em Paris, em1993.(N.daT.)

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NOTAS

CAPÍTULO1:AGUERRAAOS6ANOS

1. Documentos dos Arquivos Slitinski, fornecidos pelo doutor ErikAouizerate2.SemprunJ.,L’Écritureoulavie,Paris,Gallimard,1994,p.149.3. Perec G.,W ou le Souvenir d’enfance, Paris, Denoël 1975; Paris,Gallimard,“L’Imaginaire”,1993.LivrodedicadoaLaDisparition,outrolivronoqualoquedesapareceufoiavogal“e”como“eles,meuspais”.4. Regimento de voluntários estrangeiros. De 11 mil soldados, 7,5 milforammortosem8dejunhode1940,antesdeSoissons.5.CrémieuxR.,“StückeornotStücke”,em Devoirdemémoire:entrepassionetoubli,Revuefrançaisedepsychanalyse,Paris,PUF,2000.tomo44,p.48.6. STO: Serviço de TrabalhoObrigatório.Milhões de homens, prisioneirosdosnazistas,foramengajadosnessetrabalhoforçado.NaFrança,cartazes“convidavam”oshomensaprocurartrabalhonaAlemanha,paraalimentarsuasfamílias.7. Soube muito tempo depois que o estudante se chamava Jacques deLéotardequesetornouadvogado.8.Esta situaçãoé rara.Praticamente todososconventoseaté instituiçõespétainistas esconderam crianças judias. Testemunho:Les Enfants cachés,MemorialdaShoah,1º-dejulhode2012.9.Besouro-da-batata: insetocoleópterocomélitros riscadosdepreto,quedevorava as folhas das batatas, como os alemães, quando requisitavam acolheita.9.10. Valérie Mamou Blanché,Le secret deMamie “Le petit” (O segredo daVovó,“Omenino”),textoqueValériemedeu,2011.11.CyrulnikB.,Jemesouviens,OdileJacob,“PochesOdileJacob”,2010.12.MauriceG.,Unjour.Lesgrandespersonnes ,citadoporRachelDrezdner,doutoranda,Toulon-Nantes,2012.13.StewartS.,Mémoiredel’inhumain.Dutraumaàlacréativité ,prefáciodeJoyceMcDoufall,Paris,CampagnePremière,2009.14.BraunschweigM.,GidelB.,LesDéportésd’Avon.Enquêteautourdu ilmdeLouisMalle,Aurevoirlesenfants,Paris,LaDécouverte,1989,p.35.15.MatotB.,LaGuerredescancres.UnLycéeaucoeurdelaRésistence,Paris,

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Perrin,2012,p.221.16.TestemunhodeCharlesLouisLaCaze,alunodaquintasérie,namesmaclasse de LouisMalle e “JeanBonnet”, in M. Braunschweig e Gidel B.,LesDéportésd’Avon,op.cit.,p.35.17. Testemunho de Guy de Vogue, aluno da terceira série em 1944,depoimentodosalunosdaescoladeensinopúblicodeAvon.18.MatotB.,LaGuerredescancres,op.cit.,p.221.19.LouisMalle, cartapessoal,dezembrode1988.Folheandoosarquivos,descubroque “JeanBonnet” foialunodo liceu Jacques-Decour,paraondeiriadepoisdaguerra,e foipresonodia15de janeirode1944,cincodiasdepoisdemim.20. Schacter D. L.,À la recherche de la mémoire , Bruxelas, De BoeckUniversité,1999,p.24.21.DudleyK.J.,XiangL.,KoborM.S.,KippinT.E.,BredyT.W.,“Epigeneticmecanismsmediatingvulnerabilityandresiliencetopsychiatricdisorders”,NeuroscienceandBiobehavioralReview,2011,35,pp.1549-1551.22.BredyT.W.,BaradM.,“Thehistonedeacetyloseinhibitorvalproicacidenhances acquisition, extinction and reconsolidation of conditioned fear”,2008,15,pp.39-45.23. Gilbertson M., Paulus L., “Williston S., Neurocognitive function inmonozygotic twins discordent for combat exposure: relationship to post-traumatic stress disorder”, Journal of Abnormal Psychology, 2006, 11, pp.485-495.24. Kristin W., Samuelson P. D., “Post-traumatic stress disorders anddeclarative memory functioning: A review”, Dialogues in clinicalneuroscience,2011,vol.13,nº-3,pp.346-351.25. JohnsenG.E.,AsbjensenA.E., “Consistent impairedverbalmemory inPTSD:Ameta-analysis”,JournalofAffectiveDisorders,2008,111,pp.74-82.26.BremnerJ.D.,VythilinghamE.M.,VermettenE.,“MRIandPETstudyinhippocampalstructureand functions inwomenwithchildhoodabuseandposttraumaticstressdisorders”,BioPsychiatry,2003,160,pp.924-932.27.WilliamsJ.M.,BaruhofertT.,“Autobiographicalmemoryandemotionaldisorder”,PsychologicalBulletin,2007,133(1),pp.122-148.28.NowakM.,LaBanquièredel’espoir,Paris,AlbinMichel,1994,p.126.29.SchacterD.,L.,Àlarecherchedelamémoire,op.cit.,p.130.30.LoftusE.F.,PickrellJ.E.,“Theformationoffalsememories”, PsychiatricAnnals,1995,25,pp.720-725.

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31.DenisPeschanski,SéminaireArdix,Paris,6defevereirode2012.

CAPÍTULO2:UMAPAZDOLOROSA

1.ElafoipresaemBordeauxnodia18dejulhode1942esaiudeDrancyparaAuschwitznocomboionº-7.2. Janine Altounian fala também de “mortalha do texto” quando escrevesobre o genocídio armênio. (Altonian J.,La survivance: traduire le traumacollectif,Paris,Dunod,2000.)3. Altounian J., “Passion et oubli d’unemémoire collectivemise au travaildans la crise et l’écriture, témoignage d’une analysante “Héritière dugénocide arménien”, em Devoir de mémoire: entre passion et oubli, Revuefrançaisedepsychologie,2000,tomo44,p.12.4.LeviP.,Sic’estunhomme,Paris,Laffont,1958,p.22.5.FraitagA., “Lepointd’histoire(sainte)”, Avocatsetdroits,2007, janeiro-fevereiro,nº-19,pp.64-65.6.HistoiredelaSainteBible,abadeCruchet,Tours,Mameetfils,1929.7.Esta canção, que empolgoumilhõesde crianças e adultospétainistas, éassinadaporAndréMontagnardeCharlesCourtois.Teriasidoescritaem1941 por Casimir Oberfeld, judeu nascido na Polônia e morto emAuschwitz em 1945. Esse compositor encantou Joséphine Baker,MistinguetteFernandelquandoelecantava“Félicieaussi”.8.Umcerti icado,recentementeencontrado, informaqueéemSaint-Jean-Royan.Nãoseiondefica.9. Kurban M., Swedy N., “Les caractéristiques de l’interventionpsychologique à Baalbeck”, in Myrna Gannagé, Association pour laProtection de l’Enfant de la Guerre, Reunião Beirute, 24 de fevereiro de2012.10. Kurban M., Swedy N., “Les caractéristiques de l’interventionpsychologique à Baalbeck”, in Myrna Gannagé, Association pour laProtection de l’Enfant de la Guerre, Reunião Beirute, 24 de fevereiro de2012.11. Main M., “Epilogue. Attachment theory”, in J. Cassidy, P. R. Shaver,HandbookofAttachment,TheGuilfordPress,1999,p.846.12. Lemay M.,Résister: rôle des déterminants affectifs et familiaux, in B.Cyrulnik,Cesenfantsqui tiennent lecoup,Revigny-sur-Ornain,Hommeset

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Perspectives,2002,p.40.13. Brauner F., Brauner A., J’ai dessiné la guerre, Clermont-Ferrand,PressesuniversitairesBlaise-Pascal,2011.14. Enfants en guerre, photo et dessin , colloque Unesco, Rose Duroux,CatherineMilkovitch-Roux,7-9desetembrode2011.15.RithyPanhcomChristopheBataille,L’Élimination,Paris,Grasset,2012.16. Abraham N., TorokM., L’Écorce et leNoyau , Paris, Flammarion, 1987;2009.17.BerbezeJ.,SéminaireArdix,Paris,1º-defevereirode2011.18. Valéry P,.Mauvaisespenséesetautres, citadoin C. André,Méditer jouraprèsjour,Paris,L’Iconoclaste,2012,p.114.19.BarbinM.G.,Communicationpersonnelle,agostode2010.20. Boulard F., Les Répresentations résilientes “autotutorantes” del’échafaudage des savoirs d’un être socialement détruit , master 2, Nantes,Sciencesdel’éducation,2011.21.BialotJ.,Votrefuméemonteraversleciel,Paris,L’Archipel,2011,p.262.22. A pro issão de educador não existia nos anos do pós-guerra. Dizia-segeralmente “monitor”. Eu emprego a palavra “educador” porque hoje eladesignatalfunção.23.GorwoodP.,Mesurerlesévénementsdevieenpsychiatrie,Paris,Masson,2004,p.110.24.AkiskalH.S., “Newinsights intothenatureandheterogeneityofmooddisorders”,JournalofClinicalPsychiatry,1989,505,pp.6-10.25.BrownG.W.,HarrisT.O.,BirleyJ.L.T.,“Socialfactorsandco-morbidityof depression and anxiety disorders”, British Journal of Psychiatry, 1996,supplement3,pp.50-57.26.FreudS.[1938],Abrégédepsychanalyse,Paris,PUF,1950,eLaplancheJ.,PontalisJ.-B.,Vocabulairedelapsychanalyse,Paris,PUF,1973,p.115.27. Inspirado emBeeH., BoydF., Psychologiedudéveloppement, Bruxelas,DeBorck,2003.28. Philippe Brenot, psiquiatra, antropólogo, diretor de ensino nauniversidade. Excelentemúsico, durante o curso demedicina ganhou umpoucodedinheirotocandoembailesdevilarejo.29.LoftusE.F.,PalmerJ.C., “Reconstructionofautomobiledestruction:anexample of the interaction between language and memory”, Journal ofVerbalLearningandVerbalBehavior,1974,13,pp.585-589.;30. Presente do doutor Aouizerate,La Synagogue de Bordeaux , Bordeaux,

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ConsistoireisraélitedeBordeaux,ÉditionsduBorddel’eau,2002.31.ArchivesSlitinsky:“Listade ilhosdejudeuspresosdenoite,entre1º-e16dejulhode1942.Mãepresaemcasa.Paimutilado,presonohospitalSaint-André.”32.LaSynagoguedeBordeaux,op.cit.,p.44.33. Grhesac,Castillon à l’heure allemande (1939-1945) , Groupe derecherches historiques et sauvetage archéologique du castillonais; eLormierD.,Aquitaine1940-1945.HistoiredelaRésistance ,Montreuil-Bellay,ÉditeurCMD,2000.;34. Témoignage Philippe Naud, Grhesac,Castillon à l’heure allemande(1939-1945),op.cit.,pp.190-191.35. Témoignage Armand Rebeyrol, Grhesac,Castillon à l’heure allemande(1939-1945),op.cit.,p.193.36.Ghresac,Castillonàl’heureallemande(1939-1945),op.cit.,p.188.37.Emalemãoeemídiche,quandosequerfalardeumhomemestimável,chamam-nodeMensch.38.TillionG.,UneopérationàRavensbruck ,Paris,ÉditionsdelaMartinière,introduçãodeClaireAndrieu,2005,p.5.

CAPÍTULO3:MEMÓRIAFERIDA

1. Schank R. C., Abelson R. P., Scripts, Plans, Goals and Understanding,Hillsdale,Erlbaum,1977.2. Nelson K.,Event Knowledge: Structure and Function in Development ,Hillsdale,Erlbaum,1986.3. IonescuS., JacquetM.M.,LhoteL.,LesMécanismesdedéfense,ThéorieetClinique,Paris,NathanUniversité,1997,p.148.4. Lejeune A., Ploton L., “Résilience et vieillissement”, in B. Cyrulnik, G.Jorland,Résilience,Connaissancedebase,Paris,Odile Jacob,2012,pp.127-128.5. Offer D., KaizM., Howard K. I., Bennet E. S., “The altering of reportingexperience”, J. Am. Acord Child Adolescence, Psychiatry, 2000, 39, pp. 735-742.6.TadiéJ.-Y.,TadiéM.,Lesensdelamémoire,Paris,Gallimard,1999.7.BaudelaireC.,LesFleursdumal,1857,Gallimard,“Folio”,2004.8. Thompson S. C., Janigian A. S., “Life schemes: A framework for

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understanding the search of meaning”, Journal of Social and ClinicalPsychology,1988,7,pp.260-2809.HouzelD.,EmmanuelliM.,MoggioF., Dictionnairedepsychopathologiedel’enfantetdel’adolescent,Paris,PUF,2000,p.470.10. Testemunho frequente de crianças judias escondidas, ruandesas ouilhas de republicanos espanhóis, que se surpreendiam com seu súbitodespertar intelectual. Débeis quando o caos destruía seu meio, avivacidade intelectual reapareceu assim que uma segurança afetiva ascercou.11. Ferenczi S.,Le Traumatisme, Paris, Payot, “Petite Bibliothèque Payot”,2006.12. Perec G.,W ou le Souvenir d’enfance, Paris, Denoël 1975; Paris,Gallimard,“L’Imaginaire”,1993.13.BialotJ.,Votrefuméemonteraversleciel,op.cit.,p.166.14.Bolinhadevidromarmóreoimitandoapedracomquesefazcamafeu.15. Patsalides-Hofmann B., “Traversées de silences”,Mémoires, 2012,março,nº-55,p.9.16. Delbo C.,Auschwitz... une connaissance inutile, Paris, Minuit, 1970, eDelboC.,Mesuredemesjours,Paris,Minuit,1971.17.GeorgesPerecéocampeãodasreticências.Cadavezquechegaaumamemóriaimpossível,eleescreve(...).18.ZajdeN.,Enfantsdesurvivants,Paris,OdileJacob,2012.19.Nemsempre.20. FTP-MOI:Francs-tireurs partisans-Main d’œuvre immigrée . Muitosjudeus comunistas da Europa central e armênios lutaram juntos. Seusatentados contra osmilitares eram uma resistência e não um terrorismocontrainocentes.OgrupoManouchianéoexemplomaisilustre.21. Foi em 1985 que o ilme de Claude Lanzmann propôs a palavrahebraica para designar o assassinato em massa dos judeus da Europa.Trata-sedeumdocumentodenovehorase15minutosquerompecomosmodosderepresentaçãoutilizadosatéentão.22.LePèretranquille,filmedeRenéClément,1946.23. Bensousan G., Dreyfus J.-M., Husson E., Kotek J.,Dictionnaire de laShoah,Paris,Larousse,2009,p.229.24.Les Juifs ont résisté en France. 1940-1945 . Colloque d’historiens et detémoins,AACCE,14rueParadis,Paris,2009.25. Fontenay de E.,Acte de naissance.Entretien avec Stéphane Bon , Paris,

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Seuil,2011.26.ZajdeN.,GuérirdelaShoah,Paris,OdileJacob,2005.27.Odibukéumaentidadeasquenaze:éummortoimpedidodesejuntaraosmortos.Entãoele“secola”naalmadeumpróximo,aquempedequerepareseuserros.Nãoémortonemvivo:édesaparecido.28.LaBatailledurail,filmedeRenéClément,1946.29.BialotJ.,Votrefuméemonteraversleciel,op.cit.,p.262.30. Os arquivos relativizam esses números, podem ter sido 11 milfuzilados,aindaassimumnúmeroenorme!31. Carasso J. G.,Nous étions des enfants, DVD, Comité “École de la rueTlemcen”,L’Oizeaurare,2012.32.Nuitetbrouillard,filmedeAlainResnais,1955,EstadosUnidos.33.FilmedeCharlesChaplin:1940nosEstadosUnidos;1945naFrança.34.StevensG.,LeJournald’AnneFrank,1959.35.Schwartz-BartA.,LeDernierdesJustes,Paris,1959.36.ProustM.,Àl’ombredesjeunesfillesenfleur,Paris,Flammarion,1919.37. Vejam só! Eu não ousei escrever “minha prisão, minha perseguição,minhasquebrasafetivas”!Émuitomaisfácilfalardesinaterceirapessoa.Mantémaemoçãoadistância.38. Schacter D. L., “Constructive memory, past and future”, Dialogues inClinicalNeurosciences,2012,vol.14,nº-1,pp.7-18.39. Addis D. R., Pan L., Vu M. A., Laiser N., Schacter D. L., “Constructiveepisodic simulation of the future and the past: Distinct subsystems of acore brain network mediate imagining and remembering”,Neuropsychologia,2009,47,pp.2.222-2.258.40.AbrahamN.,TorokM., L’Écorceet leNoyau ,Paris,Aubier/Flammarion,1978.Estelivroéamelhorteorizaçãopsicanalíticadanoçãode“cripta”.41. No dia 7 de novembro de 1938, um judeu de 17 anos, expulso daAlemanha,matouemParisumsecretáriodaembaixadaalemã.Nanoitede9-10 de novembro de 1938, orquestrado por Goebbels, com o acordo deHitler, um imenso pogrom incendiou 319 sinagogas, linchou milhares depessoaseenviou30miljudeusparaosprimeiroscamposdeconcentração.Aslojasdestruídasexplicamonomedadoaopogrom:“NoitedeCristal”.42. Dayan Rosenman A.,Les Alphabets de la Shoah. Survivre. Témoigner.Écrire,Paris,CNRSÉditions,2007.43.SemprunJ.,L’Écritureoulavie,Paris,Gallimard,1994,p.260.44. Ka-Tzernik,LesVisionsd’un rescapéou le Syndromed’Auschwitz , Paris,

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Hachette,1990.45. Perec G.,Entretiens et conférences 2 , D. Bartelli, M. Ribière (éd.),Nantes,JosephK.,2003,p.172.46. Reggiani C., “Perec avant l’Oulipo”, Georges Perec , revistaEurope,janeiro-fevereirode2012,p.30.47. Perec G.,W ou le Souvenir d’enfance, Paris, Denoël, 1975; Paris,Gallimard,“L’Imaginaire”,1993.48.DelemazureR.,SeitéY., PerecdansleXVIIIsiècle,citadoinGeorgesPerec ,revistaEurope,janeiro-fevereirode2012,p.212.49.BellosD.,GeorgesPerec.Uneviedanslesmots,Paris,Seuil,1994,p.85.50. Cyrulnik B., “Les muets parlent aux sourds”, Nouvel Observateur ,número especial,La Mémoire de la Shoah, dezembro de 2003-janeiro de2004,pp.52-55,eWaintraterR.,Sortirdugénocide,Paris,Payot,2003.51.CioranE.,Cahiers,1957-1972,Paris,Gallimard,1997,p.668.52.CioranE.,Œuvres,Paris,Gallimard,1995;Paris,Gallimard, “Quarto”,p.728.53. Rosenblum R., “Peut-on mourir de dire?”, Revue française depsychanalyse,2000,nº-1.54.VincentG.,“Êtrecommuniste,unemanièred’être”, inP.Ariès,G.Duby,Histoiredelavieprivée,Paris,Seuil,1987,p.431.55. Adelman A., “Mémoire traumatique et transmissionintergénérationnelle des récits de l’holocauste”, Revue française depsycanalyse,Devoirdemémoire:entrepassionetoubli ,marçode2000,tomo64.56.MonteilJ.-M.,Soietlecontexte,Paris,ArmandColin,1993,p.56.57.WaintraterR.,Sortirdugénocide,op.cit.,p.189.

CAPÍTULO4:AMARCADOSOUTROS

1.PennebakerJ.W.,OpeningUp:TheHealingPowerofCon idinginOthers ,NovaYork,Morrow,1990.2. Vitry M., Duchet C., “Résilience après de grandes catastrophes,articulation du singulier et du collectif”, in Serban Ionescu (éd.),Traité derésilienceassistée,Paris,PUF,2011,p.449.3.DuchetC.,PayenA.,“Interventionmédico-psychologiqueinsitu lorsdelaguerrecivileduCongo”,Médicinedecatastrophesurgencescollectives,1999,

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vol.2,nos–5-6,pp.192-196.4.Aguerraárabe-israelensecomeçoucomadecisãodaONUdecriardoisEstados,opalestinoeo israelense,nodia29denovembrode1947.Em7dejaneirode1949,elacessoudepoisde2milárabesmortos,6miljudeusmortose600milpalestinosexpulsosdecasa.4.5. Barnavi E. (dir.),Histoireuniverselledes Juifs , Paris,Hachette, 1992, pp.230-231.5.6. Adolf Eichmann organizou a espoliação e a deportação dos judeus daEuropaparaoscentrosdeextermíniodaPolônia.RefugiadonaArgentina,foi capturadopelos serviços secretos israelenses, julgado em Jerusalémecondenadoàmorteem1962.6.7.FriedlanderS.,Quandvientlesouvenir,Paris,Seuil,1978,p.69.7.8. Parens H.,Le Retour à la vie. Guérir de la Shoah. Entre témoignage etrésilience,Paris,Tallandier,2010.9. Rimé B., “Mental rumination, social sharing and the recovery fromemotional exposure”, in J. W. Pennedaker (éd.),Emotion, Disclosure andHealth,AmericanPsychologistAssociation,1995,pp.271-292.10.SlitinskyM.,L’AffairePapon,Paris,AlainMoreau,1983,p.131.11. Pennebaker J.W., Banasik B. C., “On the creation andmaintenance ofcollectivememories:History as social psychology”, in J.W.Pennebaker , J.Paez, B. Rimé (éd.),Collective Memory of Political Events, NovaYork/Londres,PsychologyPress,1997,pp.3-18.12. Na primavera de 1967, Nasser, o presidente egípcio, reúne seusexércitosnoSinaiparalevarajudaàSíria.ElepedequeosCapacetesAzuis(ONU)partam,fechaoestreitodeTiraneassinaumacordodeguerracoma Jordânia e o Iraque. Israel está isolado no cenário internacional. Empoucos dias, Israel destrói a coalizão árabe e toma o Sinai, Golã, aCisjordâniaeametadeárabedeJerusalém.13) Frischer D.,Les Enfants du silence et de la reconstruction , Paris,Grasset,2008,pp.104-105.13.14.SnydersJ.C.,Dramesenfouis,Paris,Buchet-Chastel,1996.15.RajsfusM.,Opérationétoilejaune,Paris,LeChercheMidi,2012,p.78.16.Ibid,p.94.17. Ionescu S., Muntean A., “La résilience en situation de dictature”, inSerbanIonescu(dir.),Traitéderésilienceassistée,Paris,PUF,2011,p.531.18. O nome da mãe de Georges Perec era Smulewicz, que em ídichesignificaSchule(“escola”)eWitz(“espírito”).

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19. Gringoire: semanário criado nos anos 1930 para servir de apoio àAction Française, favorável ao fascismo. Esse jornal pan letário a irmavaque os judeus tinham provocado a guerra mundial para ganhar maisdinheiro.20.MauricePapon,altofuncionário(1913-2009),condenadoem1998por“cumplicidadedecrimecontraahumanidade”.21. Bensoussan G., Dreyfus J.-M., Husson E., Kotek J.,Dictionnaire de laShoah,Larousse,2009,p.427.22. Boulanger G.,Maurice Papon. Un technocrate dans la collaboration ,Paris,Seuil,1994.23. IonescuS., JacquetM.M., LhoteC.,LesMécanismesdedéfenses,Théorieetclinique,Paris,NathanUniversité,1997,pp.247-256.24.BègueL.,Psychologiedubienetdumal,Paris,OdileJacob,2011,p.47.25. Welzer H.,Les Exécuteurs. Des hommes normaux aux meurtriers demasse,Paris,Gallimard,2007,p.222.26. Palacz A.,Il fait jourà Jérusalem.Exil des orphelins, Jerusalém, Ivriout,2004.27.LeVieilHommeetl’Enfant[Ovelhoeomenino], ilmedeClaudeBerri,comMichelSimon,1966.28. Cyrulnik B., “Mon père était un dictateur...”, Figaro Magazine, 17 dejunhode2006,pp.35-40.29.Ibid.30. Mari Carmen RejasMartin,Témoigner du traumapar l’écriture , thèsededoctoratIIIcycle,universitédeReimas,9dejunhode2011,p.55.31. “Les bébés volés sous Franco”, La Libre Belgique, 2 de fevereiro de2011.32.Acabodeachareste livronaminhabiblioteca:DuhamelG.,Biographiedemesfantômes, Paris,PaulHartmann,1948.Éodiáriodeumestudantedemedicina!33. UJRF:Union des Jeunesses Républicaines de France, organizaçãoprecursoradasJeunessesCommunistes.34.ScheineYnk:“Belogaroto”,emídiche.35.GrappeM.,“Lesenfantsetlaguerre,unregardclinique”, inEnfancesenguerre,Vingtièmesiècle,Revued’histoire ,janeiro-marçode2006,nº-89,pp.93-98.36.GrappeM.,“Lesenfantsetlaguerre,unregardclinique”,art.cit.37. Duroux R.,Milkovitch-Rioux C.,IHaveDrawnPictures of theWar, The

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Eye of Françoise and Alfred Brauner , Presses universitaires Blaise-Pascal,2011.38. O’Connor C., Rutter M., “The English and Romanian adoptees studyteam: Attachment disorder behavior following early severe deprivationextensionandlongitudinal follow-up”, JournalofAmericanandAdolescencePsychiatry,2000,39,pp.703-712.39.BachelardG.,LePoétiqueetlaRêverie,Paris,PUF,1960.40.ModianoP.,prefácioparaMatotB.,LaGuerredescancres,op.cit.41. Tousignant M., “La culture comme source de résilience”, in CyrulnikB.,Jorland G.,Résilience.Connaissancesdebase,Paris,OdileJacob,2012,pp.137-151.42. OSE:Œuvre de Secours aux Enfants. Essa associação salvou durante aguerra um número enorme de crianças. Lá se abordava o problema daperseguição dos judeus, enquanto em outras instituições, como a CCE(Commission Centrale de L’Enfance), se preferia considerar um futuroradioso.43. Lendemains, OSE,Lettres d’enfants publiées de juin 1946 à avril 1948,Paris,2000,tomoI,p.31.44.MorinE.,Mesdémons,Paris,Stock,1994.45. Rufo M.,in N. Mascret,N’oublions pas les bons profs, Paris, AnneCarrière,2012,p.81.46.JEC:JeunessesÉtudiantesChrétiennes.47. Tema deLacombeLucien, deLouisMalle, ilmebastante criticadomasqueexpõeumasituaçãoqueexistiu.48.Matot.B.,LaGuerredescancres,op.cit.

CAPÍTULO5:PALAVRASDEGELADAS

1.Mainá:pássaropretodaMalásia,debicoalaranjado.EleconseguecantarLaMarseillaiseeimitarafalahumanacomumtalentoimpressionante.2. Jeammet P., “Souffrir pour exister: conduites pathologiques àl’adolescence”,AbstractPsychiatrie,abrilde2004,nº-6.3. Weill M., “Camps de la mort: 50 ans après”, Abstract Neurologie etPsychiatrie,nº-120,setembro-outubrode1994.4. Erlinger S.,Parcours d’un enfant caché (1941-1945). Une enfance auxMardelles,Paris,ÉditionsLeManuscrit,2012.

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5.WeillM.,“Campsdelamort:50ansaprès”,art.cit.,p.172.6.RobinsonR.,“Thepresentstateofpeoplewhosurvivedtheholocaustaschildren”,Acta,PsychiatricScandinavia,1994,89,pp.242-245.7.PourtoisJ.-P.,DesmetH.,L’Éducationimplicite,Paris,PUF,2006.8. Emílio Salgueiro (Lisboa) distingue os tutores de resiliência explícita(psicólogos, educadores), que se apresentam à criança. Já os tutores deresiliência implícita são em geral escolhidos pela criança (padres, atletas,artistasoupares).9.EscreviDuboutporqueestáassimnaminhamemória.Vejo-menacasade Gilbert, folheando um grande livro com esse desenho em particular.Mas creio queDubout não ilustrou senãoRabelais, Villon e Pagnol. Devo,como todomundo, ter feito convergir duas fontes diferentes dememóriadaimagem.10.KirkpatrickL.E.,HazanC.,“Attachmentstylesandcloserelationships:Afour-yearprospectivestydy”,PersonalRelationships,1994,1,pp.113-142.11. CCE: Comissão Central da Infância. Fundada depois da guerra paraacolher órfãos judeus e organizar colônias de férias. Cerca de 15 milcriançasforamrecebidasali.12.“Estáardendo,estáardendo;óirmãozinho,estáardendo.”13.FTP:Francs-tireursPartisans,compostosde90%dejudeuscomunistase 10% de armênios, um dos quais se tornou o chefe do famoso grupoManouchian.14.Chantsdespartisans,deJosephKesseleMauriceDruon.15.PeschanskiD.,Desétrangersdans laRésistence , Champigny-sur-Marne,Éditionsdel’Atelier,2002.16.PCB:“ ísica,química,biologia”.Antigamente,oanopreparatórioparaocursodemedicina.17.VaillantF.,RolandToporouleRireétrange,Paris,Buchet-Chastel,2007.18. UJRF: AUnion des Jeunesses Républicaines de France converteu-se noMouvementdelaJeunesseCommunisteem1956.19. Bustany P., “Neurobiologie de la résilience”, in Cyrulnik B., Jorland G.,Résilience.Connaissancesdebase,Paris,OdileJacob,2012,p.59.20.Nósaceitávamosessaa irmaçãoqueevitavacitarRobinHood (1938),OmágicodeOzeEoventolevou(1939).21.“GeorghiuDedj,defensordapazedopovo.”22. Beria não teria planejado o complô, pois era ele o visado. Stalinanunciouocasoem1952,masfoioPravdaquedenunciouo“complô”,em

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umartigode13dejaneirode1953.23. Clarté: jornal daUnion de Jeunesses Communistes que sucedeu aoL’Avant-garde,jornaldaUJRF,noqualsepodialerartigosantiestalinistas.24. Hachet P., “Le mensonge indispensable: le mythe”, Le Journal despsychologues, abril de 2012, nº- 296, e Hachet P.,Le Mensongeindispensable.Dutraumatismesocialaumythe,Paris,L’Harmattan,2009.25.ZadjeN.,LesEnfantscachésenFrance,Paris,OdileJacob,2012,p.14.26. Rabelais F.,Œuvres complètes , Paris, Gallimard, “Bibliothèque de laPléiade”,1994,pp.667-671.27. Anne Frank escreveu seu diário entre junho de 1942, quando seescondeu com a família, e agosto de 1944, data em que foi presa pelaGestapo.28. Levi, P.,É isto um homem? , Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000 (1ª-ediçãoitaliana,1947).(N.doE.)29. Bensoussan G., Dreyfus J.-M., Husson E., Kotek J.,Dictionnaire de laShoah,Paris,Larousse,2009,pp.309-311.30.SergeKlarsfeld,advogado,vice-presidentedaassociaçãoFilseFillesdedéportésjuifsdeFrance.31.SlitinskyM.,L’AffairePapon,Paris,AlainMoreau,1983,p.137.32. Waintrater R., “Ouvrir les images. Les dangers du témoignage”, in J.Ménéchal,LeRisquedel’étranger,Paris,Dunod,1999.33.Poirot-DelpechB.,Papon:uncrimedebureau,Paris,Stock,1998,p.83.34. Entre maio de 1981, data em queLe Canard enchaîné levantou oproblema,eabrilde1998,dataemqueotribunaldeBordeauxcondenouPaponporcumplicidadedecrimescontraahumanidade,passou-sequaseumageração,duranteaqualaculturamudou.35. Haffner S.,Histoire d’un Allemand , Paris, Complexe, 2001; inMémoirevivante,junhode2011,nº-69.36.LeviP.,Éistoumhomem?,op.cit.37.BaruchM.O., “Lacultured’un fonctionnaireestd’obéir sansseposerdequestions”,LeMonde,1º-deoutubrode1997.38.Ibid.39.MarquesJ.,PaezD.,SerraA.E.,“Socialsharingemotionalclimatandthetransgenerational transmissionofmemories”,emW.Pennebaker,D.Paez,B. Rimé (ed.),Collective Memory of Political Events, Nova York/Londres,PsychologyPress,2008,p.258.40.SlitinskyM.,L’AffairePapon,op.cit.,p.131.

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41.InstitutoYad-Vashem,“LeisobreacomemoraçãodeMártireseHeróis,Jerusalém(1953)”,umacomissãoveri icaosdossiêsdedemandadetítulodeJustoentreasnações.42.Mouchenik Y.,Cen’estqu’unnomsur la liste,mais c’estmoncimetière ,Grenoble,LaPenséesauvage,2006.43.Testemunhospessoaisdeseufilhoesuaneta,MamouBlanché.44.NIMH,National InstituteofMentalHealth(InstitutoNacionaldeSaúdeMental),SanDiego,EstadosUnidos.45.YvetteMoch,carta,fevereirode2001.46. Pierre Marty, Michel de M’Uzan, Christian David, Michel Fain,fundadores da escola dita psicossomática de Paris. Foram os primeiros aexplicarqueumafaltadementalizaçãoprovocaumpensamentooperativo,semfantasiasnemefeito,queacabaprovocandodistúrbiosorgânicos.47. Zajde N.,Transmission du traumatisme chez les descendants desurvivants Juifsde l’holocauste, tesededoutorado,Paris-VIII,22de janeirode1993.48. Terrisse R.,La Milice à Bordeaux. La collaboration en uniforme,Bordeaux,Aubéron,1997.49.EpsteinH.,LeTraumatismeenhéritage,Paris,Gallimard,“Folio”,2010.50. Welzer H.,Les Exécuteurs. Des hommes normaux aux meurtriers demasse,Paris,Gallimard,2007.51. Arthur Gobineau comL’Inegalité des races humaines e ÉdouardDrumont comLa France juive desempenharam papel fundamental nodesenvolvimentodonacional-socialismoalemão.52.KlempererV.,LTI,lalangueduIIIReich,Paris,AlbinMichel,1996.53.GiocantiS.,Maurras,Lechaosetl’ordre,Paris,Flammarion,p.161.57.WieviorkaO.,L’Histoire,junhode1998,nº-222,pp.81-82.55.SondagemSofres-Libération,Libération,24demarçode1998.56. Jeanneney J.-N.,Le Passé dans le prétoire. L’historien, le juge et lejournaliste,Paris,Seuil,1998.57. Étienne de la Boétie,Discours de la servitude volontaire , Paris,Flammarion,1993.

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OAUTOR

Boris Cyrulnik nasceu em 26 de julho de 1937 em Bordeaux e possuinumerosos créditos no currículo: psiquiatra, psicanalista, é tambémresponsável porumgrupodepesquisa emetologia clínicanohospital deToulon, matéria que ele ensina. Contribui largamente para fazer(re)conhecer esta disciplina. Deve-se a ele, igualmente, o conceito deresiliência.