corpo e aprendizagem em boris cyrulnik e … · 3 valdemar antÔnio da silva jÚnior corpo e...

Download CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK E … · 3 valdemar antÔnio da silva jÚnior corpo e aprendizagem em boris cyrulnik e em merleau-ponty banca examinadora drª terezinha petrucia

If you can't read please download the document

Upload: dinhcong

Post on 13-Oct-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS DA SADE

    DEPARTAMENTO DE EDUCAO FSICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO-SENSU EM

    EDUCAO FSICA

    ORIENTADORA: PROF. Dra. TEREZINHA PETRUCIA DA NBREGA

    CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK E EM

    MERLEAU-PONTY

    VALDEMAR ANTNIO DA SILVA JNIOR

    NATAL RN 2014

  • 2

    CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK E EM MERLEAU-PONTY

    VALDEMAR ANTNIO DA SILVA JNIOR

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica PPGEF, linha de pesquisa Estudos Scio-Filosficos sobre o Corpo e o Movimento Humano, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Educao Fsica. Orientadora: Dra. Terezinha Petrcia da Nbrega.

    NATAL RN 2014

  • 3

    VALDEMAR ANTNIO DA SILVA JNIOR

    CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK E EM MERLEAU-PONTY

    BANCA EXAMINADORA

    Dr Terezinha Petrucia da Nbrega - UFRN

    Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha - UFPB

    Dr. Jos Pereira de Melo - UFRN

    SUPLENTES

    Dr Rosie Marie Nascimento de Medeiros - UFRN

    Dr Elaine Melo de Brito Costa Lemos UFPB

  • 4

    RESUMO

    CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK E EM MERLEAU-PONTY

    Autor: Valdemar Antnio da Silva Jnior Professora Orientadora: Dr Terezinha Petrucia da Nbrega Esta pesquisa busca identificar as compreenses de corpo e aprendizagem nos autores Boris Cyrulnik e em Merleau-Ponty, para assim traar caminhos reflexivos para o campo educacional em diversas reas, com nfase na Educao Fsica. Nota-se que os autores supracitados apresentam um vasto acervo bibliogrfico, necessitando para a elaborao deste constructo terico uma limitao em suas obras. Portanto, sobre a temtica do corpo, foram utilizados principalmente, os livros Do Sexto Sentido, de Boris Cyrulnik e Fenomenologia da Percepo, de Merleau-Ponty, pois ambos apresentam em seu contexto organizacional um capitulo especifico sobre este assunto. A abordagem fenomenolgica est inserida como caminho a ser percorrido para se arquitetar este estudo, pois se baseia, nas reflexes dirias que o ser humano percebe atravs de suas experincias vividas, com o seu semelhante e a cultura vigente. A reduo fenomenolgica foi realizada a partir das leituras e interpretaes de textos dos autores e de seus comentadores, bem como se aproximando com aspectos da experincia vivda como policial e professor de tica. A interpretao aponta para a compreenso de corpo e aprendizagem que pode ser propagada no mbito da Educao e da Fsica como uma maneira de perceber e aprender os constructos vividos atravs da sensibilidade. A concepo do corpo, de sensaes e afetos de Boris Cyrulnik firma os vnculos empticos entre os seres humanos, aportando confiana para explorar o mundo, aprendendo o novo atravs da ligao estabelecida com o outro. Essa noo aproxima-se da noo do corpo expressivo de Merleau Ponty, que detm intencionalidades em seus gestos (movimentos), entrelaando-se no tempo e espao. Boris Cyrulnik e Merleau-Ponty expressam como o ser humano enigmtico, encontrando-se inserido em um mundo cultural e social, necessitando assim das experincias vividas para traarem sua tajetria existencial e de aprendizagem de forma a enaltercer a liberdade de expresso como mecanismo que pode ser implantado na apropriao dos conceitos e da criticidade do sujeito frente s teorias difundidas (biolgicas, sociais, antropolgicas, entre outras). A partir das reflexes da pesquisa, recomneda-se que a Educao Fsica, como rea epistemolgica que trabalha as aprendizagens provindas dos movimentos corporais deve possibilitar a reflexo em suas prticas, excluindo o fazer por fazer, mas propiciando a criao dos diferentes sentidos e significados a cada atitude corporal.

    PALAVRAS CHAVES: corpo, aprendizagem, epistemologia e fenomenologia.

  • 5

    ABSTRACT

    BODY AND LEARNING IN BORIS CYRULNIK AND MERLEAU-PONTY

    Author: Valdemar Antnio da Silva Junior Guiding Professor: Dr. Terezinha Petrucia da Nbrega This research seeks to identify views of the body and learning the authors Boris Cyrulnik and Merleau - Ponty, thus tracing reflective for the educational field in several areas, with emphasis on physical education paths . We notice that the above authors present a wide collection of books, needing to develop this theoretical construct a limitation in their works. Therefore , on the theme of the body , were used mainly books The Sixth Sense , Boris Cyrulnik and Phenomenology of Perception , Merleau- Ponty , as both present in their organizational context a specific chapter on this subject . The phenomenological approach is included as path to be taken to devise this study because it is based on daily reflections that the human being perceives through his experiences with his peers and mainstream culture. The phenomenological reduction was carried out from the readings and interpretations of texts, writers and commentators, as well as approaching with life aspects of experience as a police officer and professor of ethics. The interpretation points to the understanding of body and learning that can be propagated within the Physical Education and as a way to understand and learn the constructs lived through sensitivity. The design of the body, feelings and affections of Boris Cyrulnik firm the empathetic bonds between human beings, bringing confidence to explore the world, learning through the new link with the other. This notion is close to the notion of expressive body Merleau Ponty, who holds intentions in their gestures (movements), entwining in time and space. Boris Cyrulnik and Merleau-Ponty expressed as the human being is enigmatic, lying embedded in a social and cultural world, so the experiences to traarem existential trajetria and learning need in order to enaltercer freedom of expression as a mechanism that can be deployed in the appropriation of concepts and the criticality of the subject facing widespread theories (biological, social, anthropological , etc.) . From the reflections of the research is that recomneda Physical Education , as epistemological working area apprenticeships stemmed body movements should enable reflection on their practice, other do be done, but enabling the creation of different senses and meanings each body attitude. KEYWORDS : Body, Learning , Epistemology , Phenomenology ;

  • 6

    Dedico a minha professora orientadora Dr Terezinha

    Petrucia da Nbrega, que, atravs de sua sensibilidade,

    conduziu-me para a elaborao e realizao deste

    trabalho acadmico. Durante estes dois anos, vivenciamos

    inmeras experincias perceptivas, as quais ratificaram

    nosso vnculo emptico, apaziguando-me para buscar

    horizontes epistemolgicos, em momentos que

    construram nossa historicidade, habitando tempo e

    espao, fazendo-nos perceber como seres existenciais

    que almejam e expressam suas atitudes a cada interao

    exploratria com outro, a cultura e o mundo.

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Em minha opinio, o ato de agradecer refere-se a uma das atitudes mais

    nobres que o ser humano pode exercer em sua existncia, visto que fazemos parte

    de um mundo no qual nosso Senhor insere verdadeiros anjos em nossas vidas,

    conduzindo-nos para caminhos sbios e responsveis. Portanto, gostaria de

    agradecer a todas as pessoas que fizeram parte deste meu ciclo acadmico,

    contribuindo para que eu ampliasse meu olhar de sujeito sensvel e perceptivo

    mediante as experincias que vivencio cotidianamente.

    Agradeo primeiramente minha me, Eliane Pinheiro, que sempre ser

    minha eterna professora, pois, sem ela, no aprenderia os valores bsicos do ser

    humano, de respeito, solidariedade e justia.

    Agradeo ao meu professor Pereira, pelos valiosos conhecimentos

    repassados durante o perodo acadmico, mas, principalmente, por confiar em mim,

    no meu trabalho. Tenho uma grande admirao por este ser abenoado,

    considerando-o como uma das principais referncias epistmicas na Educao

    Fsica.

    Agradeo ao professor Iraquitan, por aceitar o desafio de embarcar comigo

    nesta pesquisa, detendo um olhar sensvel nestes estudos e mostrando quais

    caminhos poderia seguir. Assim como agradeo ao amigo que sempre esteve ali

    presente para me ajudar, com um sorriso no rosto, dizendo que sou capaz de realizar

    esta pesquisa.

    Agradeo a minha professora Karenine, a qual ilumina qualquer ambiente em

    que esteja, com sua pacincia e conhecimento. Detentora de uma sensibilidade

    impressionante, tem minha profunda admirao.

    Agradeo a minha professora Rosie Marie, que deteve todo um cuidado com

    este trabalho, contribuindo verdadeiramente para a elaborao de um constructo

    digno, de credibilidade e reconhecimento.

    Agradeo a minha professora Isabel, que me incentivou e mostrou este

    percurso da ps-graduao, acreditando em mim como colaborador da rea, na

    busca assdua por novos estudos epistemolgicos.

  • 8

    Agradeo aos demais professores do programa de Ps-Graduao em

    Educao Fsica, que participaram deste momento especial de minha vida.

    Agradeo aos meus amigos que entraram junto comigo no mestrado: Aline,

    Judson, Michele, Hosana e Hellyson, assim como os demais, com os quais tive

    contato durante este perodo de formao: Hudson, Thas, Rodolfo, entre outros.

    Agradeo a minha amiga Rayane Nbrega, pelos excelentes momentos

    vividos, pela cumplicidade construda e dilogos estabelecidos.

    Agradeo a todos os componentes do grupo Estesia, do qual tenho orgulho de

    fazer parte, em especial aos meus amigos: Ana Zlia, Moaldecir, Jefferson, Lcia,

    Liege, Avelino, Luiz Arthur e Raphael.

    Agradeo a minha comandante, Tenente-coronel da Polcia Militar Margarida

    Brando, por incentivar e colaborar com os meus estudos.

    Agradeo aos meus fiis amigos que sempre estiveram presentes comigo,

    escutando meus discursos sobre este trabalho, Jackson Dyon, Themis Duarte e

    Patrcia Luciana.

    Agradeo a todos os funcionrios do departamento de Educao Fsica, desde

    os que entregavam as chaves da base de pesquisas at os que serviam cafezinhos

    quentinhos para nos manter sempre alertas em nossas pesquisas.

    Agradeo a Deus por colocar pessoas especiais em minha vida, pois sei que

    minha jornada est apenas comeando e ainda tenho outros objetivos a serem

    alcanados. Portanto, entrego minha vida, meus anseios ao meu Senhor, para que

    seja feita a sua vontade.

  • 9

    LISTA DE FILMES

    O homem elefante, produzido em 1980, dirigido por David Lynch;

    O Livro de Cabeceira, produzido em 1996, dirigido por Peter Greenaway;

    Patch Adams - o amor contagioso, produzido em 1998, dirigido por Tom

    Shadyac;

    O sorriso de Monalisa, produzido em 2003, dirigido por Mike Newell;

    O Tempero da Vida, produzido em 2003, dirigido por Tassos Boulmetis;

    Vermelho como o cu, produzido em 2006, dirigido por Cristiano Bortone;

    Ensaio sobre a cegueira, produzido em 2008, dirigido por Fernando Meireles;

    Div, produzido em 2009, dirigido por Jos Alvarenga Jnior;

    Amor, produzido em 2012, dirigido por Michael Haneke;

  • 10

    SUMRIO

    INTRODUO ...........................................................................................................11

    CAPTULO 01 CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK....................21

    UM CORPO DE SENSAO E AFETOS ..................................................................22

    APRENDIZAGEM COMO VNCULO..........................................................................56

    APRENDIZAGEM E EMPATIA...................................................................................85

    CAPTULO 02 CORPO E APRENDIZAGEM EM MAURICE MERLEAU-

    PONTY......................................................................................................................106

    CORPO EXPRESSIVO.............................................................................................107

    APRENDIZAGEM COMO PERCEPO..................................................................150

    CAPTULO 03 CORPO E APRENDIZAGEM: HORIZONTES

    EPISTEMOLGICOS...............................................................................................193

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................214

    REFERNCIAS.........................................................................................................221

  • 11

    INTRODUO Os estudos acadmicos sempre foram algo de encantamento durante minha

    formao estudantil, mas ao ingressar na Universidade Federal do Rio Grande do

    Norte - UFRN, especificamente, no curso de Educao Fsica, percebi que estava

    enfrentando, talvez, um dos maiores desafios da minha vida. Este pensamento foi

    internalizado, pois, o campo epistmico da Educao Fsica no era a minha opo

    preferencial no vestibular, mas como no obtive xito no primeiro exame seletivo, o

    qual realizei procurando ingressar no curso de Fisioterapia, fui impulsionado a

    escolher, no segundo processo de seleo da UFRN, um curso que, na minha

    concepo, seja por imaturidade ou medo de outra reprovao, se aproximasse mais

    dos estudos da Fisioterapia. Ento resolvi escolher a Educao Fsica, uma rea que

    acreditava ser o caminho que me possibilitaria um constructo terico para posteriores

    permutas entre campos de saberes.

    Destaco que as minhas compreenses iniciais sobre a Educao Fsica esto

    relacionadas aos momentos vivenciados durante o perodo escolar, desde o ensino

    fundamental at o ensino mdio, ou seja, a execuo e repetio de exerccios

    padronizados, por intermdio dos alongamentos e das atividades esportivas sendo

    estas restritas apenas s modalidades do futebol de salo (para homens) ou

    handebol (mulheres). Os esportes eram transmitidos aos alunos sem uma

    fundamentao terica, com escassos dilogos sobre os gestos que deveriam ser

    executados, ou seja, eram processos de imitaes corporais. Para obter destaque ou

    evidncia nesta disciplina, ou melhor, nas modalidades esportivas, era necessrio

    realizar movimentos precisos, especficos, que permitissem ao aluno ter um bom

    desempenho, melhor rendimento, promovendo uma relao mais prxima com o

    professor.

    Neste cenrio que me cercava, no encontrava interesse nas aulas de

    Educao Fsica, pois fui desprovido de incentivos que me fizessem enxergar o

    esporte de maneira prazerosa, proporcionando-me alegria, bem-estar. Diante desse

    aspecto, sempre fui deixado de lado pelos meus colegas de turma no momento das

    divises das equipes, pertencendo ao time dos excludos, o ltimo a ser escolhido, e

    chegando a nem jogar em algumas aulas.

  • 12

    Este esboo histrico que ilustra minha experincia com a Educao Fsica fez

    com que meu ingresso no curso superior no me apresentasse atrativos para

    conclu-lo, seria apenas a via de acesso para entrar na UFRN e, posteriormente,

    efetuar a troca por outro curso.

    Mas o tempo, ou o aspecto da temporalidade, a melhor resposta para o ser

    humano, o que afirmo fazendo referncia s constantes aprendizagens que temos

    em nossas convivncias sociais, assim como nas diferentes disciplinas nas quais nos

    dispomos a apreender certos conhecimentos, possibilitando o despertar para

    reflexes que ultrapassam as barreiras do cientificismo, baseadas nos conceitos

    universais, invariveis. Confirmo tais premissas mediante as minhas percepes

    acadmicas que foram transformadas e/ou ampliadas, quando, em certo perodo do

    curso, fui aluno da disciplina intitulada de Conscincia Corporal, ministrada pela

    professora Petrucia Nbrega.

    Essa foi uma experincia mpar no curso de Educao Fsica, que me

    despertou para uma reflexo epistemolgica vinculada temtica do corpo, mas no

    o corpo do outro, e sim o meu prprio corpo. Tal reflexo foi abarcada em dois

    mbitos: o primeiro corresponde s vivncias corporais, de antiginstica, eutonia, tai

    chi chuan, entre outras; e o segundo corresponde leitura dos livros O corpo tem

    suas Razes, de Thrse Bertherat, e Tocar o significado humano da pele, de

    Ashley Montagu.

    As vivncias corporais ampliaram a percepo do meu corpo como nunca

    antes tinha imaginado. Senti regies corporais acordarem para a vida, despertarem

    para uma significao sensvel pautada nos meus gestos, nos movimentados

    efetuados, assim como nas leituras que fazia entre os toques que outros alunos

    realizavam em meu corpo. Cada nova descoberta era ratificada com as palavras das

    leituras supracitadas, das quais me lembro como se fossem nos dias de hoje.

    Primeiro Bertherat (2001), relacionando o corpo a nossa morada, ou casa, que

    devemos zelar, ter cuidado; at porque esse corpo no apenas um simples

    agrupamento de msculos, ressalta nossa identidade; e isto me fez pensar o quanto

    desprezava meu corpo constantemente.

    Considerava-me uma pessoa cega e surda de percepo de sentidos, que no

    valorizava a importncia dos meus gestos, das dores sentidas, o que ele (corpo)

  • 13

    queria me falar. Posteriormente, debrucei-me nas fundamentaes de Montagu, que

    realava a importncia do amor nas relaes sociais, expressas atravs das

    palavras, mas principalmente dos gestos, do sorriso, do abrao, do beijo. Montagu

    (1988) destacou os atos altrustas do ser humano, de se preocupar, dar ateno,

    respeitar, ser cmplice uns com os outros, formando assim os laos essenciais em

    todas as fases do desenvolvimento humano, pois, segundo o autor, se for para

    cometer um erro, que seja por excesso desses sentimentos e no por sua ausncia.

    A disciplina de Conscincia Corporal possibilitou o surgimento de um campo

    da Educao Fsica com o qual me identifiquei, originando assim uma razo para

    continuar meus estudos nesta rea de conhecimento.

    Percebi que as disciplinas voltadas aos aspectos reflexivos, sejam as de

    cunho filosfico, sociais ou antropolgicos, seriam o blsamo para construo dos

    meus estudos. Ento, quando fui redigir a minha monografia de concluso de curso,

    tinha pretenses de escrever sobre assuntos relacionados s reas humanas, do ser

    social, que recebe influncia e ao mesmo tempo intervm em seu meio circundante,

    descartando os caminhos biolgicos, de clculos numricos, voltados para

    performance, rendimento, percentual de gorduras, padres gestuais, entre outros.

    Sendo assim, por sugesto da professora Petrucia Nbrega e orientao

    acadmica da professora Isabel, discuti a temtica da Resilincia, ou seja, como

    alguns seres humanos, mesmo diante das adversidades presentes no seu entorno

    (violncia, drogas, fome, misria, corrupo, entre outros), conseguiam estabelecer

    padres comportamentais diferentes dessa realidade. Tal discusso foi algo

    emblemtico para a Educao Fsica, visto que no se tratava de um conhecimento

    especfico da rea (discutida principalmente na Psicologia); bem como um novo olhar

    perante minhas experincias profissionais, visto que sou policial militar e participo de

    um programa chamado PROERD Programa Educacional de Resistncia as Drogas

    , no qual policiais militares ministram aulas, tanto em escolas pblicas como

    privadas, a respeito da preveno contra as drogas.

    Desta forma, ao permanecer nas escolas por um perodo de um semestre,

    destaco, principalmente nas pblicas, as discusses estabelecidas com os alunos

    sobre os malefcios das drogas, em que eles descreviam suas rotinas de vida, os

    problemas do bairro em que viviam, como a incidncia de consumo e trfico de

  • 14

    drogas, bem como a violncia domstica e os assassinatos. E, mesmo neste meio,

    propcio adoo de atitudes desequilibradas, encontravam, em um membro

    pertencente famlia ou escola, uma base segura para continuar vivendo com

    dignidade e respeito.

    A monografia foi baseada preponderantemente em artigos, que descreviam o

    conceito de resilincia, para assim criar um texto que explicasse ou ampliasse tal

    concepo para os profissionais de qualquer rea de conhecimento, em especfico

    para os da Educao Fsica, assim como sua importncia como meio propagador de

    tais atitudes, realando exemplos de vida que se enquadravam nesses perfis. Na

    elaborao deste texto, o autor Boris Cyrulnik se destaca em diversos artigos e suas

    concepes me despertaram para ampliao de tais estudos, acoplados a uma

    Educao Fsica mais sensvel voltada para a preocupao com o prximo e

    baseando-se em suas histrias.

    Diante do exposto, quando me inscrevi no programa de Ps-graduao em

    Educao Fsica UFRN, meu projeto de dissertao tinha como intenes de

    estudos fazer um entrelaamento dos aspectos conceituais do autor Boris Cyrulnik a

    respeito da Resilincia para este campo epistemolgico (Educao Fsica), ou seja,

    desenvolver uma pesquisa preocupada e voltada para um sujeito sensvel,

    transmissor em seus gestos, aes ou atitudes de diferentes sentidos e significados.

    E a linha de pesquisa na qual sabia que encontraria respaldo para estas reflexes

    seria de cunho sociofilosfico, pois assim deteria os elementos necessrios para a

    construo deste projeto, ou seja, os aspectos das reas humanas, filosficas,

    sociais, entre outras.

    Neste intuito, ao entrar no programa de ps-graduao, e aps algumas

    orientaes com minha professora orientadora, Petrucia Nbrega, o projeto de

    dissertao adquiriu uma ampliao acadmica, posto as compreenses entre dois

    estudiosos, tentando proporcionar, a partir de diferentes perspectivas, uma discusso

    conceitual entre reas de conhecimento distintas. Portanto, alm do autor Boris

    Cyrulnik, inseriu-se o autor Merleau-Ponty, na tentativa de estabelecer uma

    dissertao com mais argumentos tericos, que pudesse ser utilizada para

    posteriores reflexes de pesquisas. Nota-se que o autor Merleau-Ponty foi escolhido

    devido ao fato de seus escritos epistemolgicos proporcionarem uma abertura

  • 15

    reflexiva e crtica a diferentes reas de conhecimento, como a Psicologia Clssica e

    a Fisiologia, mas que poderiam ser discutidas nos campos sociais, filosficos ou

    educacionais, como na Educao Fsica, pois seu campo de estudo, a Filosofia,

    difundia principalmente as concepes do corpo e motricidade.

    Boris Cyrulnik (1937) etlogo, neuropsiquiatra e psicanalista francs.

    Desenvolveu suas pesquisas principalmente no campo da Etologia Humana, a qual

    estuda o comportamento do homem em suas relaes sociais, assim como sua

    evoluo no ambiente natural em que est inserido, reforando assim as influncias

    sociais e culturais. Foi um dos idealizadores da temtica Resilincia, a qual investiga

    como o ser humano, que se encontra em situaes adversas em seu meio externo

    (fome, pobreza, drogas), consegue ter respostas positivas, no sendo influenciado

    por tais situaes. Trabalhou as questes do apego nas relaes sociais e como

    estas so relevantes nas atitudes futuras daqueles envolvidos.

    Em seus estudos, ratifica que as experincias vividas marcam a histria do

    sujeito, que so mantidas como cicatrizes no corpo deste, e permanecem presentes

    para serem lembradas com o passar do tempo, a leso est escrita em sua histria,

    gravada em sua memria (CYRULNIK, 2004, p. 03). Assim as relaes com o outro

    podem permitir a abertura de diferentes possibilidades de enxergar o mundo no qual

    esses sujeitos esto situados. Tais percepes foram constatadas, pois Boris

    Cyrulnik vivenciou o perodo da segunda guerra mundial (1939-1945), ocasio em

    que perdeu os seus pais e foi exilado, mas encontrou proteo e abrigo em uma

    outra famlia, possibilitando o desenvolvimento de grande parte de seus estudos em

    relao aos resistentes deste conflito armado e violento que marcou a humanidade,

    assim como suas experincias vividas.

    Deve-se ressaltar que, neste trabalho acadmico, enfatizou-se as abordagens

    de Boris Cyrulnik em relao ao ser humano, no querendo submeter os estudos dos

    demais seres vivos a aspectos inferiores, mas para se elaborar um constructo terico

    que possibilitasse uma discusso mais relacional e convergente com os escritos de

    Merleau-Ponty. Por isso essa delimitao foi realizada intencionalmente apenas nos

    estudos focados no homem, no restringindo outros estudos reflexivos relacionando

    todos os seres vivos.

  • 16

    Merleau-Ponty (1908 - 1961), filsofo francs da contemporaneidade,

    debruou-se nos estudos fenomenolgicos da existencialidade do homem, das suas

    experincias vividas. Este autor, no decorrer de suas observaes, buscou romper

    com o dualismo, promovendo uma relevncia de destaque ao corpo, ao criticar as

    teorias de Descartes, que, baseadas do cogito, desconsideravam o corpo como

    elemento a ser relevante no ensejo da verdade. Observou que o homem, nas suas

    experincias vividas com e no mundo, apreende um conhecimento que anterior ao

    cientfico, que o faz pensar e refletir novas representaes simblicas. Considerando

    que, ao se lanar neste mundo, que, conforme este prprio, autor inesgotvel e

    inacabvel, as experincias vividas, dentro do seu meio circundante, podem atuar

    como fatores preponderantes na aprendizagem, s sentimos que existimos depois

    de j ter contato com os outros, e nossa reflexo sempre um retorno a ns mesmos

    que, alis, deve muito a nossa frequentao do outro (MERLEAU-PONTY, 2004, p.

    48).

    O homem, segundo Merleau-Ponty, firma suas relaes com o mundo, com as

    coisas e outrem (cultura, seu semelhante), atravs da percepo e intencionalidade

    do seu corpo, sendo este corpo inteiramente expressivo, pois, com os seus

    movimentos, sua gestualidade, proporciona o surgimento de diferentes

    interpretaes e representaes epistmicas. Assim o corpo atua no envolvimento

    com o mundo, com o outro, nas relaes de sujeito e objeto, de acordo com cada

    experincia vivida, e, neste entorno de discusso, inserem-se os fatores do tempo e

    do espao, que constroem, em suas dimenses, caractersticas e aspectos nicos

    dessas interaes, e devem ser analisados e descritos.

    Nota-se que a temtica corpo e aprendizagem possui uma representatividade

    nos escritos dos autores Boris Cyrulnik e Merleau-Ponty, sendo, portanto, inserida

    como categoria de estudo neste trabalho, no intuito de estabelecer reflexes sobre o

    conhecimento da Educao Fsica e de outras reas.

    Portanto, esta pesquisa caracteriza-se como uma reflexo epistemolgica dos

    conceitos corpo e aprendizagem, em parte das obras de Boris Cyrulnik e Merleau-

    Ponty.

    Neste contexto, aponta-se que as questes relacionadas ao corpo e

    aprendizagem podem ser percebidas em inmeros discursos acadmicos, em razo

  • 17

    da amplitude dimensional de suas observaes e pontos de vista, como nas reas

    biolgicas, sociais, antropolgicas, psicolgicas, entre outras.

    Conforme supracitado, busca-se nesta pesquisa, refletir sobre os seguintes

    questionamentos: Quais so as compreenses de corpo e aprendizagem em Boris

    Cyrulnik e em Merleau-Ponty? A partir dos constructos tericos destes autores, sobre

    corpo e aprendizagem, quais seriam os horizontes epistemolgicos que poderiam ser

    refletidos para o campo da Educao, em especfico, Educao Fsica?

    A partir destas interlocues, o objetivo deste estudo identificar as

    compreenses de corpo e aprendizagem discutidas pelos autores supracitados.

    A abordagem metodolgica da pesquisa de cunho fenomenolgico, pautada

    na construo de significados atravs da ligao entre diversas reas de

    conhecimento, tais como sociais, polticas, filosficas, entre outras. Neste mbito

    fenomenolgico, busca-se ampliar e projetar pontes para as compreenses sobre as

    temticas do corpo e aprendizagem entre Boris Cyrulnik e Merleau-Ponty.

    A criao de novos sentidos e significados ocorre na valorizao do mundo

    sensvel, que se relaciona intrinsecamente apreenso do conhecimento pelo corpo

    em suas relaes interativas com o mundo, ou seja, atravs das experincias vividas,

    da sua percepo nos relacionamentos firmados com o outrem e com o mundo, a

    percepo no uma cincia do mundo, no nem mesmo um ato, uma tomada de

    posio deliberada; ela o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela

    pressuposta por eles (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 6). Esse mundo citado por

    Merleau-Ponty (2004) sempre existiu e o homem precisa aprender a se relacionar

    com ele, sendo que essa relao ocorre pela intencionalidade das atitudes corporais,

    dos gestos, movimentos, que dificilmente so repetidos da mesma maneira, assim

    como descritos, mas vivenciados. Assim, ser preciso efetuar, neste estudo, a

    reduo fenomenolgica, ou seja, desconstruir a concepo dos conceitos formais,

    cristalizados, distanciando-se deles, e posicionar-se frente ao mundo pr-cientfico,

    pautado nos aspectos sensveis inerentes s experincias vividas, que possibilitam a

    ressignificao das interpretaes atravs da reflexo dos atos percebidos.

    A reduo fenomenolgica foi realizada atravs da leitura e interpretao de

    parte das obras dos autores Boris Cyrulnik e Merleau-Ponty, recorrendo-se tambm a

    comentadores destes autores. Neste processo, considera-se tambm a experincia

  • 18

    vivida no exerccio na funo de policial e como professor de tica e Convvio Social.

    Este exerccio de apropriao conceitual conduziu-me no apenas as compreenses

    dos conceitos dos autores, mas a percepes sensveis pautadas nas relaes

    construdas com o outro e na cultura.

    Deve-se enfatizar que a reduo fenomenolgica no homem deve ser

    considerada como um exerccio contnuo de reflexo, pois este sujeito perceptivo

    encontra diferentes maneiras de ser no mundo, mediante as experincias vividas,

    que so nicas devido ao tempo e ao espao, que se reconfiguram a cada instante.

    Com isso, durante as percepes vislumbradas, no se pode deduzir a formao de

    um conceito fechado, em decorrncia das constantes mudanas que o meio

    proporciona, assim como o fator da subjetividade encontra-se presente no homem,

    pois cada ser humano tem uma maneira de interpretar e interagir com o mundo.

    A nossa relao com o mundo varia constantemente e precisamos estar

    abertos ou sensveis a estes novos aspectos transformadores da nossa vida, para

    que sejamos sujeitos de nossas aes, digo isso pois, quando tinha dezessete anos,

    minha me sofreu um acidente automobilstico e, naquele momento, tive que

    enxergar o mundo no apenas como um adolescente que iria prestar o vestibular,

    mas como uma pessoa que deveria assumir as responsabilidades da sua me,

    exercendo o papel de encorajador e porto seguro para a pessoa que exerce essa

    funo diariamente na minha rotina.

    Destaco ainda que, neste processo de construo e reconstruo

    epistemolgica, a disciplina de Seminrios Avanados, ofertada no programa de ps-

    graduao em Educao Fsica, em 2013, exerceu uma relevncia bastante

    significativa no provimento do constructo terico a respeito das temticas do corpo e

    aprendizagem, visto que, nessa disciplina, foram discutidas as ideias do autor

    Merleau-Ponty sobre tais assuntos, em sua obra Fenomenologia da Percepo. E as

    discusses originadas em sala de aula fizeram com que meu olhar sobre corpo e

    aprendizagem adquirisse diferentes interpretaes, que foram renovadas e

    ampliadas em novas representaes de estudos.

    Como forma de contextualizao da temtica do estudo, realizamos uma

    pesquisa no banco de teses da CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de

    Pessoal de Nvel Superior), a fim de verificar a existncia de trabalhos acadmicos

  • 19

    que abordassem os assuntos, ou palavras-chaves, corpo, aprendizagem e

    fenomenologia (termos referenciais desta discusso). Desse modo, constatou-se a

    presena de nove trabalhos epistmicos, dentre os quais citamos a tese de Luiz

    Anselmo Menezes Santos, intitulada O corpo prprio como princpio educativo a

    partir da perspectiva fenomenolgica de Merleau-Ponty, Universidade Federal de

    Sergipe, 2012; e a dissertao de Maria Isabel Brando de Souza Mendes,

    denominada Corpo e cultura de movimento: cenrios epistmicos e educativos,

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002.

    Outro ponto a ser destacado refere-se delimitao do corpus de estudo, que,

    para anlise e discusso das categorias corpo e aprendizagem, foi devidamente

    recortado; isto mediante a existncia de um grande acervo bibliogrfico dos autores

    Boris Cyrulnik e Merleau-Ponty, almejando-se um embasamento terico conceitual

    mais limitado. Neste intuito, para atender temtica do corpo, foram utilizados,

    principalmente, os livros Do Sexto Sentido, Boris Cyrulnik, e Fenomenologia da

    Percepo, Merleau-Ponty, por apresentarem em seu contexto organizacional um

    captulo especfico sobre o referido assunto. E para as construes argumentativas a

    respeito da aprendizagem, utilizaram-se, preponderantemente em Boris Cyrulnik, os

    livros De Corpo e Alma e Alimentos do Afeto; e, para Merleau-Ponty, foram utilizados

    os livros Fenomenologia da Percepo (especificamente a segunda parte, referente

    ao mundo percebido) e a Estrutura do Comportamento.

    Nesta perspectiva epistmica, este trabalho apresenta-se organizado em trs

    captulos: os dois primeiros descrevendo as compreenses dos autores Boris

    Cyrulnik e Merleau-Ponty, respectivamente, sobre as categorias de estudo, corpo e

    aprendizagem; e o terceiro captulo estabelece associaes das concepes

    supracitadas, apontando novos horizontes reflexivos para diferentes reas de

    conhecimento, especialmente para a Educao Fsica.

    Enfocar a temtica corpo e aprendizagem, conforme esses autores, suscita a

    aquisio de posturas epistemolgicas amplas, que confrontem saberes, firmem

    pontes de conhecimento e possibilitem o ato de pensar, refletir e discutir o mundo

    sensvel. A todo instante somos conduzidos a regrar nossos comportamentos, limitar

    nossos gestos, desprezar e reduzir o corpo a simples aspectos mecnicos. Nesses

    autores, o corpo pode ser percebido de outra maneira, inerente existencialidade,

  • 20

    com as premissas do eu posso, atravs do meu corpo. Por sua vez, a

    aprendizagem ressignificada na experincia vivida, incorporando novos

    comportamentos, visto o pertencimento a um mundo cultural e social, cuja

    explorao inacabada devido aos seus fatores temporais, espaciais e existenciais.

  • 21

    CAPTULO 01 CORPO E APRENDIZAGEM EM BORIS CYRULNIK

  • 22

    Um corpo de sensaes e afetos

    A temtica do corpo para Boris Cyrulnik (1997) esboada como uma das

    principais maneiras que o ser humano detm para se organizar em termos

    relacionais, tanto com o seu meio (cultural, poltico) como com o outro (seu

    semelhante ou um objeto); envolvendo-se com estes atravs de seus aspectos

    sensitivos, representacionais, culturais, entre outros, durante todas as fases de seu

    desenvolvimento, o corpo, o meio ambiente e o artifcio1 constituiro, assim, os

    organizadores da condio humana, antes do nascimento, durante o

    desenvolvimento, depois para alm de si. Falte uma nica etapa e tudo ruir

    (CYRULNIK, 1997, p. 9).

    O corpo do ser humano, mediante essa relevncia organizacional, pode

    proporcionar o surgimento de um encantamento circunstancial para este sujeito,

    baseado nas percepes que os sentidos (olfato, audio, paladar, viso, tato)

    despertam no homem, conforme as experincias vivenciadas no mundo vivo, que

    originam a cada momento da temporalidade a construo de sua histria, oriunda

    das aquisies sensoriais provenientes do outro e do meio, por intermdio das

    gestualidades e representaes simblicas.

    O encantamento do mundo um produto da evoluo: os animais so enfeitiados quando percebem a sensorialidade de um outro, o odor, a cor, a postura, que os governa servindo-se dos cinco sentidos. E os homens, nica espcie que possui seis sentidos, vivem no duplo encantamento dos sentidos e do sentido que a historicidade cria. Nunca vemos o mundo dos outros, mas representamo-lo pelos sinais das palavras e dos seus gestos, que nos enfeitiam ainda mais. (CYRULNIK, 1997, p.8).

    Tal encantamento ou enfeitiamento faz com que Boris Cyrulnik (1997)

    apresente a concepo de corpo vivo, interpretado por suas constantes

    transformaes biolgicas, culturais e/ou sociais ocorridas no decorrer do tempo,

    pois o corpo, ao presenciar e vivenciar suas experincias, adquire certas

    aprendizagens, que se modificam a cada nova situao presenciada. Portanto, essas

    percepes corporais se modificam com a maturidade, assim como o mundo

    presente, que se apresenta em constantes mudanas, correlacionadas s atuaes

  • 23

    do homem. Com isso, o corpo vivo, mesmo no residindo ou habitando um mesmo

    lugar durante seus ciclos de vida, sofrer algumas mudanas, seja organicamente ou

    em seus comportamentos expressivos.

    O corpo, visto que vivo, nunca passivo dentro de um meio estruturado. O desenrolar de um processo biolgico, do nascimento morte, indica que um organismo no pra de procurar aquilo que, para ele ser acontecimento. No , pois, sensvel s mesmas informaes de acordo com a fase da sua evoluo. O que significa que, mesmo se nada mudar no meio ambiente, o simples desenrolar de um processo biolgico torna o corpo sensvel a informaes diferentes, de tal forma que tudo se passa como se o meio mudasse. Um mesmo corpo no vive no mesmo meio em todas as fases da evoluo individual. (CYRULNIK, 1997, p. 12).

    Boris Cyrulnik (1997), como foi visualizado anteriormente, discute a concepo

    de evoluo corporal em seus aspectos temporais, espaciais e nas construes das

    representaes simblicas, em seus campos cognitivos e afetivos, correlacionados

    ao contato com o meio e seu semelhante. Sendo assim, o ser humano apresenta tais

    comportamentos ou atitudes corporais nos dias de hoje de acordo com os resqucios

    oriundos de seus antecessores, que mantiveram padres de relacionamentos entre

    os seres humanos, divididos em distintas classes sociais, marcados pelos diferentes

    corpos que o caracterizam.

    Estes fatos podem ser visualizados nas interpretaes de Gonalves (1994),

    nas quais o homem deixou de estabelecer relaes de respeito natureza, passando

    ao estgio de modific-la e domin-la. E, neste parmetro, o sujeito inicia um

    processo vinculado s hierarquias sociais, ao estabelecimento de classes que

    ditavam as atividades corporais que cada ser poderia fazer, seja nos aspectos

    sexuais, de trabalho ou higinicos, preponderando os meios racionais. O homem

    passa a realizar trabalhos especficos nas linhas de produo, pois seus corpos so

    considerados como objetos a serem manipulados, desprezando assim suas

    percepes sensoriais e firmando os atos repetitivos, distantes do foco humanstico

    do ser. O consumo, oriundo da tecnologia, desperta a superficialidade do corpo e o

    anseio por padres estereotipados de beleza, marcado pelas compras de produtos

    ditados pela mdia como essenciais para uma vida saudvel. Destacando-se,

    conforme a autora, o poder disciplinador dos centros institucionais, como a escola,

  • 24

    indstria, poltica, que beneficiam apenas a minoria da sociedade, revelando a

    existncia e a perpetuao nas desigualdades sociais de um corpo voltado para

    aparncia fsica, limitado nos seus movimentos e principalmente no desprovimento

    de aes crticas do homem. Esses fatos de perpetuao comportamental podem ser

    observados principalmente na rea epistemolgica da Educao Fsica, cuja

    percepo corporal, preponderantemente biolgica, encontra-se em evidncia at

    nos dias atuais, pois o importante no corpo deve ser limitado e reduzido ao ato de

    descrever os dados antropomtricos do homem, ou seja, suas medidas, percentuais

    de gordura, para o melhor desempenho nas atividades esportivas.

    Mas Boris Cyrulnik (1997) afirma que, durante o processo evolutivo, o corpo

    no deve ser visualizado de maneira restrita, mas em diversas perspectivas

    organizacionais e conceituas, de acordo com as linhas de pesquisas, sejam estas

    sociais, biolgicas ou psicolgicas, pois o corpo vinculado formao de um

    campo sensorial, virtual em seu espao, que escapa de suas fronteiras fsicas,

    tornando-se capaz de ampliar suas idealizaes ou representaes intermentais com

    o meio e o prximo.

    No apenas enquanto processo temporal que rege o conjunto do mundo vivo, mas tambm enquanto processos durante os quais as representaes, ao escaparem ao corpo, criam um meio virtual. Todos os organismos inventam o meio que habitam. (CYRULNIK, 1997, p.13)

    O corpo, diante de tais percepes, deve ser considerado como meio difusor

    de um campo sensvel, criador de diversos sentidos e significados, baseados nos

    vnculos firmados no mundo. Promovendo no homem, especificamente, a evoluo

    do mundo e do seu mundo, ou seja, suas aes corporais e representacionais

    interferem em seu meio assim como modificam seu jeito de pensar e agir.

    Se nos treinarmos a pensar a condio humana como um corpo capaz de produzir um mundo virtual e de o habitar sentindo-o realmente, o corpo, o meio ambiente e o artifcio sero concebidos como um conjunto funcional: um indivduo poroso, penetrado por um meio sensorial, que estrutura o artifcio. O homem duas vezes enfeitiado: pela evoluo que molda o seu mundo e suscita o pensamento que molda o seu mundo. (CYRULNIK, 1997, p.14).

  • 25

    Ressalta-se que esse campo sensvel, ou seja, perceptual, originalmente

    criado pelos gestos, ou atitudes comportamentais, para assim, posteriormente,

    relacion-los aos aspectos da fala, do ser falante, e o homem engendra um meio

    composto pelas suas representaes sensoriais, feitas de imagens, e depois verbais,

    que estruturam o seu destino de homem (CYRULNIK, 1997, p.13).

    As significncias perceptuais do corpo ou o campo sensorial se inicia dentro

    do ventre da me, quando os bebs respondem principalmente aos seus estmulos

    de carcias e sons produzidos, realizando movimentos da boca, ento, responderia

    levando boca tudo o que agarrasse, e engoliria todos os dias lquido amnitico,

    provando, deste modo, a me quando a ouvisse (CYRULNIK, 1997, p. 15).

    Essas representaes sensoriais do feto, conforme supracitadas, so

    percebidas tambm atravs das alteraes motoras da me, ou seja, seus

    movimentos (andar, se abaixar, levantar, subir escadas) no mundo externo ao beb,

    interferem em sua sensibilidade intrauterina e o fazem adotar certas respostas

    corporais, o feto j sentira as informaes que o vinham a tocar e a que respondia

    por exploraes comportamentais durante as deslocaes maternas, mudanas de

    postura e grandes rudos (CYRULNIK, 1997, p. 15).

    O nascimento do beb caracteriza-se por uma mudana brusca de ambientes

    sensoriais, em que se desloca do espao intrauterino, ou seja, um meio imerso no

    lquido amnitico, considerado morno e protetor, para um campo perceptual seco,

    sem esta densidade ou proteo viscosa. O beb ento privado do calor

    intrauterino, assim como de saciar sua sede e fome atravs das ligaes diretas com

    a me. Entretanto, este novo mundo sensorial, caracterizado pelas diferenas

    climticas (como a intensidade da luz, o frio, calor) desperta no beb uma simples

    ao comportamental referente ao ato de mamar; pois este foi devidamente

    estimulado por sua me, ainda no perodo intrauterino, por sua voz e toque, a saciar

    suas necessidades vitais, sede e fome, antes mesmo de nascer.

    Aps nove meses de universo aqutico, morno e protetor, em redor do seu corpo, mas tambm na boca e no nariz, houve, subitamente, que secar! Teve frio, teve sede, e estas duas privaes iniciais tornaram-se sensvel tepidez dos braos que o envolviam e humidade do mamilo que lhe apresentavam. Soube prend-lo na boca e representar o inverossmil argumento comportamental da primeira mamada, porque se treinara muito antes de nascer, quando a me, ao falar o

  • 26

    convidara a explorar com a boca e as mos tudo o que flutuava. (CYRULNIK, 1997, p. 15).

    Neste sentido, Boris Cyrulnik (1997) mostra o quanto necessrio esta

    privao do beb ao nascer, pois o torna sensvel ao corpo de sua me, encontrando

    na simples ao da amamentao resqucios de um ambiente aqutico no qual se

    encontrava at pouco tempo.

    Esta privao sensibilizou-o para um objeto sensorial composto pelo corpo morno e abrangente da me e por um mamilo odorfero e que segrega colostro, o primeiro leite diludo que permite ao beb reencontrar um pouco do universo aqutico desaparecido e de nele se humidificar. (CYRULNIK, 1997, p. 16)

    Esse ato de busca pelo seio materno demonstra a vontade de sobrevivncia

    do beb, conduzida pela carncia de alimento do meio externo, tornando-o sensvel

    ao corpo de sua me, que passa a ser incorporado como funo de campo sensorial.

    O autor refora que este momento interativo do corpo da me com o sistema nervoso

    do seu beb refere-se ao primeiro encantamento do ser humano.

    O rcem-nascido que no encontrasse um mamilo no poderia sobreviver, mas, para que se lhe agarre, preciso que uma carncia o tenha tornado sensvel. O primeiro encantamento exige um corpo de me e um sistema nervoso de beb sensibilizado por uma carncia. (CYRULNIK, 1997, p. 16.)

    O entrelaamento entre me e filho constri um caminho voltado para a

    existncia de um mundo vivo antes da linguagem (da verbalizao das palavras), no

    qual a percepo, o lado sensorial quem possibilita a interao com o meio e sua

    significncia, muito antes da conveno do verbo, o mundo vivo estruturado pela

    sensorialidade que lhe d uma forma perceptvel precisa. Este mundo palpvel

    possui um sentido suplementar que lhe dado pela flecha do tempo (CYRULNIK,

    1997, p. 16).

    Quando a palavra surge como meio de comunicao, modificam-se as

    representaes temporais e histricas do homem, em decorrncia das inmeras

    formas de pensamentos encontradas nos grupos, comunidades, povoados ou

    imprios idealizados por este ser (homem), assim que o Verbo aparece, o tempo

  • 27

    muda de natureza. J no a durao que transforma os corpos, a representao

    do tempo, a histria que o mobiliza (CYRULNIK, 1997, p. 17).

    A relevncia da linguagem na histria do homem, em suas descendncias

    organizacionais, profere grandes discusses epistemolgicas sobre o corpo e o

    esprito, da hierarquizao dos saberes difundido pelo dualismo, conforme Boris

    Cyrulnik (1997) cita em suas observaes, sendo essas consideraes entrelaadas

    tambm nos adventos do sagrado, campos medicinais ou religiosos, promulgados de

    acordo com a corrente filosfica dos antigos povos da frica Oriental, bem como os

    mesopotmicos, egpcios, persas, hebreus, hindus, gregos.

    Nota-se que as percepes detidas pelo homem em seu meio sensorial so

    ampliadas e mais representativas quando estes convivem com seus semelhantes,

    isso devido s correlaes biolgicas e sensveis almejadas na companhia do outro,

    que organizam e transformam seus sentidos.

    De maneira geral, aquele que contm os significados mais cativantes um outro da mesma espcie. A proximidade dos congneres cria um mundo sensorial partilhvel. O outro contm em si os sinais que se esperam. A forma, as cores, os gritos, os movimentos e os odores constituem os significantes biolgicos a que um animal da mesma espcie mais sensvel. Na confuso do mundo, um ordenamento de cores ou uma estrutura qumica olfactiva que melhor percebe, porque o sistema nervoso mais sensvel. (CYRULNIK, 1997, p. 23)

    Essas ilustraes do mundo sensorial a partir das interaes com o seu

    semelhante podem ser visualizadas entre bebs humanos, os quais, ao se

    observarem, trocam gestos corporais que promovem a interao de ambos,

    formando-se aqui uma aliana social, superando inclusive a relao proximal entre

    me e filho.

    Os bebs humanos com algumas semanas de idade poderiam fazer o mesmo raciocnio. Basta colocar dois bebs lado a lado para que cada um manifeste uma emoo intensa, expressa por tagarelices, olhares e aplausos. O mido agarra as suas prprias mos e aperta-as contra o peito. Lana pequenos gritos e procura tocar no outro com as mos ou os ps, revelando, assim, uma atraco, uma socialidade, uma intencionalidade espantosamente precoce. (CYRULNIK, 1997, p. 23)

    Boris Cyrulnik (1997) prope ento o fundamento sensorial do encantamento,

    voltado para a ligao, ou atrao, estabelecida naturalmente entre dois seres, ou os

  • 28

    dois corpos, da mesma espcie, que propiciam o surgimento de um campo sensorial,

    proveniente de suas relaes com o seu semelhante. Mas aps esse firmamento dos

    vnculos, cada ser procura manter ou preservar sua prpria identidade, suas

    individualidades, ou seja, os aspectos intrnsecos de sua natureza orgnica e afetiva

    especfica.

    Encontra-se o mesmo fenmeno entre os indivduos de um grupo social. Atraem-se intensamente, o que cria a associao e a manuteno da estabilidade do grupo, depois combatem-se para preservarem sua individualidade. Este conflito permite o equilbrio entre duas necessidades contrrias: estarem juntos para se protegerem e criarem o mundo de biologia perifrica propcio ao desenvolvimento dos indivduos, depois lutarem contra o grupo que nos protege a fim de preservar nele a nossa individualidade, que se arrisca a diluir-se. (CYRULNIK, 1997, p. 24)

    O intuito das especificidades ou individualidades do ser humano pode ser

    interpretado atravs de seus atos motores, cujos gestos ou posturas

    comportamentais delimitam certas intencionalidades de ao, com um significado

    prprio, ou seja, o corpo ostenta mais uma funo, a de ser um campo

    representacional das ideias sociais.

    A evoluo elaborou um conjunto de comportamentos, de gritos, de posturas e de gestos que permite a cada animal modular o seu comportamento social. A ordem reina muito antes da verbalidade, mas governada pela maneira como os corpos exprimem as emoes. (CYRULNIK, 1997, p.26)

    Nessa perspectiva de preponderncias das caractersticas individuais, o

    sistema nervoso consegue organizar esquemas corporais (conforme supracitados)

    oriundos da gestualidade ou das representaes verbais, que podero fornecer

    interpretaes dos signos visualizados, o real tudo se funde, mas, para que no

    fiquemos confundidos, os nossos sentidos devem dar formas, a fim de que as

    percebamos. E os nossos rgos do sentido, tal como os nossos verbos

    (CYRULNIK, 1997, p. 28).

    Tais percepes corporais, oriundas das relaes com o meio ambiente e o

    seu semelhante, reforam a ideia de ruptura dos determinismos comportamentais,

    pois cada ser vivo adquire uma maneira de convivncia em seu entorno, alterando

    seus hbitos e costumes de acordo com as mudanas ocorridas no mundo e fazendo

  • 29

    com que este ser vivencie novas experincias e aprendizagens, que sero

    significativas para sua sobrevivncia.

    Muito antes da existncia do crebro, os organismos evoluem graas a uma breve caotizao. Os determinismos j no esto petrificados. O mundo vivo inventa um incio de ajustamento entre os organismos e o respectivo meio ambiente. O simples facto de viverem implica uma aptido para a inovao. Todos os organismos, para se adaptarem, devem inovar, tentar uma aventura fora da norma, engendrar anormalidade, a fim de ver se corre bem, pois viver correr um risco. (CYRULNIK, 1997, p. 29)

    Tais preocupaes, vinculadas mecanicidade do corpo, sem a difuso de

    novos significados aderentes ao ser humano nas relaes com o mundo, tambm

    so esboadas nas ideias de Porpino (2006), cujo pensamento linear, restrito nas

    exploraes do meio, impede o corpo de se expressar com liberdade, limitando-o a

    padres comportamentais orgnicos, objetivos e repetitivos.

    O corpo instrumento serviu como justificativa para reduzir as mltiplas idiossincrasias dos diversos corpos, pensados como meros mecanismos condutores, indistintamente iguais e passveis de serem entendidos a partir de uma viso mecanicista e homogeneizadora. (PORPINO, 2006, p. 63)

    Conforme as mudanas ocorridas diariamente no meio social, faz-se

    necessrio romper com as lgicas lineares de pensamento e aprofundar-se nas

    diferentes percepes sensoriais que o mundo pode oferecer em suas relaes

    interativas, ou seja, todo ser humano deve estar aberto para os novos sentidos que

    as experincias vividas despertam, para assim proporcionar a construo de um

    mundo simblico, baseada em novas representaes interpretativas.

    Tem de se tocar numa planta e penetr-la para nela provocar um caos criador. Porm, quanto mais o sistema nervoso se torna capaz de tratar informaes no percebidas, mais susceptvel se torna de ser perturbado por representaes. (CYRULNIK, 1997, p. 29)

    Nessa visualizao epistmica de ruptura dos simbolismos, de perceber o no

    percebido, de criar novas significaes, o autor prope que a evoluo humana

    deveria se voltar para os comportamentos da boca, que, em conjunto com o crebro,

    transparece o modo de ser do indivduo em suas interaes sociais e afetivas,

  • 30

    transcendendo, portanto, os parmetros evolucionistas firmados atravs da bipedia

    humana, ou seja, o homem apoiado apenas sobre os seus ps.

    Dentro desta ptica, o marcador mais fivel da evoluo humana j no seria o aparecimento da bipedia, que, ao libertar a mo, d acesso ferramenta e linguagem, mas o enriquecimento dos comportamentos de boca. Entre os animais, este rgo j coordena uma harmonia de pulses parciais: respirar, beber, comer, morder, ingerir, lamber, chamar e ameaar. O conjunto boca-crebro permite categorizar a maneira como um ser vivo percebe o seu mundo e nele actua. (CYRULNIK, 1997, p. 31)

    O ser humano, logo ao nascer, orienta-se para o mamilo de sua me, como

    um objeto a ser explorado pela sua boca. Este momento desperta no beb o

    surgimento do vnculo de apego, pois esta rea (mamilo) que percebe na

    amamentao fornece o alimento necessrio para sua sobrevivncia. A

    temporalidade ser o fator necessrio para que novos cenrios ambientais sejam

    criados, favorecendo o aparecimento das diferentes representaes simblicas,

    como os rituais culturais, mediante a historicidade do sujeito.

    No pequeno homem, o processo de afastamento ou de triangulao est no auge, pois, durante a ontognese, o beb passa, em poucas semanas, da orientao para o mamilo, que d o leite, percepo de uma figura de apego, que d o alimento. Ainda vai precisar de alguns anos para encenar a fico que consiste em brincar s refeies com a me, uma outra criana ou boneca. Dois decnios mais tarde, utilizar esta pulso e teatraliz-la- ao convidar uma pessoa para jantar. (CYRULNIK, 1997, p. 33)

    Conforme supracitado, a regio da cavidade bucal pode ser considerada como

    os primeiros caminhos encontrados pelo ser humano para se comunicar com o

    mundo, fato este observado atravs da amamentao. O ato de fornecer o seio

    criana propaga uma adequao no seu corpo (baseada nos instintos estimulatrios),

    que promovem a sua existncia e explorao do meio, ressaltando as associaes

    que o beb constri a qualquer objeto pertencente ao meio externo com o seio de

    sua me.

    na regio que cerca a boca que o embrio humano responde pela primeira vez a uma estimulao ttil. Portanto, no surpreende descobrir que as primeiras comunicaes com o mundo de fora sejam realizadas, pelo beb, atravs dos lbios e que isto seja feito de modo to gradual. Est demonstrado que estimular o recm-nascido na regio do lbio desencadeia o reflexo de orientao oral, ou seja, abrir a boca e girar a cabea na direo do estmulo. Isto acontecer

  • 31

    quando somente um dos lbios for estimulado unilateralmente. Quando ambos forem estimulados ao mesmo tempo, acontecer o componente de preenso do estmulo, mas cessa a rotao de orientao e se inicia o movimento de suco. Normalmente este estmulo o mamilo e a seguir a aurola do seio materno. Esta conduta de esquadrinhar, como se diz quer dizer, procurar com o nariz e a boca at encontrar o seio -, acontecer da por diante toda vez que o beb for posto em contato com o corpo da me ou com qualquer coisa que lembre seu seio. (MONTAGU, 1988, p. 124)

    A boca, principalmente em seus hbitos alimentares, constri no sujeito um

    campo sensorial que permite o aparecimento dos laos afetivos com o seu

    semelhante, assim como a cultura, que simbolizam encontros oportunos de

    convivncia, por exemplo, durante as refeies dirias.

    O estatuto natural da alimentao permite aos seres vivos estruturarem a alteridade. O homem, que o campeo interespcies, impregna os alimentos de afectividade, de smbolos, de civilizao e de relatos. De tal modo que, quando passamos mesa, um mito de vrias sculos que encontramos nos pratos. (CYRULNIK, 1997, p.33)

    Diante dessas consideraes alimentares, recordo-me como a minha av,

    durante o almoo, fazia questo de preparar meu prato, com feijo, farinha e carne,

    amass-los carinhosamente, formando um bolo, o qual colocava dentro de minha

    boca. Era uma sensao maravilhosa, de respeito, cumplicidade, confiana

    estabelecida entre ns dois, cujo ritual da ocasio, as nossas gestualidades,

    entrelaadas aos sentidos corporais, principalmente da viso e do paladar,

    representavam nosso apego um com o outro, um verdadeiro vnculo de confiana.

    Por isso o ato de se alimentar deveria ser um dos principais caminhos

    utilizados pelo ser humano para firmar seus vnculos amistosos, tanto com seu

    semelhante quanto com o mundo que o cerca, pois a degustao permite ao homem

    explorar e conhecer novas culturas, identificando-se com alguma delas e

    possibilitando, de acordo com suas concepes, dar continuidade s tradies de

    uma sociedade, com a aquisio de sua historicidade.

    Para transformar a necessidade biolgica do alimento numa experincia do fluir, precisamos comear a prestar ateno quilo que ingerimos. espantoso e tambm decepcionante quando convidados engolem uma comida preparada com carinho sem nenhuma demonstrao de terem percebido suas nuanas. Que desperdcio de uma experincia rara refletida nesta insensibilidade! Desenvolver o paladar apurado, como qualquer outra aptido, exige o investimento de energia psquica, mas essa energia devolvida em

  • 32

    dobro, sob a forma de uma experincia mais complexa. Os indivduos que realmente apreciam comer desenvolvem, com o tempo, interesse por uma determinada cozinha, da qual chegam a conhecer a histria e as peculiaridades. Aprendem a preparar suas receitas completas que reproduzem o ambiente culinrio da regio. (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 168)

    Contudo, o homem necessita preservar a cultura original que o permeia, pois

    as tradies devem ser mantidas e valorizadas, respeitando a essncia que

    caracteriza aquela sociedade, no sendo substituda por outras vertentes de

    pensamento que descrevem outras culturas. A identidade cultural algo inerente

    para cada sociedade, devendo ser incorporada por todos os homens que a

    constituem, mesmo diante das facilidades dos meios virtuais do mundo vigente.

    Vivemos num mundo de imagens, atravessando fronteiras on line, um processo avanado de desterritorializao das coisas, das ideias, das pessoas; o anncio de uma cultura global. No entanto, a perda do entorno gera desculturalizao. A cultura fundamental para a preservao da identidade, das referncias. A instantaneidade da informao globalizada e das telecomunicaes aproxima os lugares, possibilita acesso imediato aos acontecimentos, mas sempre uma realidade virtual que no pode substituir a materialidade e a afetividade do entorno e do encontro. (NBREGA, 2010, p. 24)

    Essas representaes sensoriais, provindas da boca, no ser humano, so

    distintas em cada fase do seu desenvolvimento, e adquirem novas interpretaes em

    sua temporalidade, podendo citar a formao da figura de apego, referente

    construo de vnculos com outros seres ou objetos. Tais afirmaes, conforme Boris

    Cyrulnik (1997), tenderiam a uma hierarquizao das funes corporais s

    especificidades provindas da boca (sendo esta auxiliada ao olhar), e o homem rene

    tantos modos de comunicao em redor da boca e dos olhos que poderia esquecer o

    corpo sem prejudicar a relao (CYRULNIK, 1997, p. 34).

    A boca, diante de sua relevncia, merece uma ateno especial, e deveria ser

    analisada em dois aspectos: o primeiro voltado para a percepo do outro, pois se

    observa no semelhante as prospeces sensoriais, que despertam para assimilaes

    significantes; e a segunda refere-se analogia, pois o outro tem uma boca que

    igual a do ser observador. Esses fatos podem ser verificados nos momentos da

    alimentao do ser humano.

    Esta orientao comportamental permite compreender que a boca do outro (homem ou co) um anlogo da sua prpria boca e que a que se introduzem os alimentos. Muito em breve, a alimentao

  • 33

    integrada numa relao de alteridade, graas a um pensamento anlogo: Para realizar esta aco intelectual, preciso perceber uma separao ( a boca do outro) e uma analogia ( uma boca igual a minha). (CYRULNIK, 1997, p. 34)

    Portanto, o ato de se alimentar representa um fator determinante para a

    formao do vnculo entre a me e o seu filho, pois ao terem seus corpos separados

    ou afastados, devido ao nascimento, a me constri um campo sensorial (viso, odor

    e palavras) para firmar com seu filho um lao harmonioso, que o estimular em seus

    movimentos durante as primeiras mamadas.

    Muito antes de nascerem, os corpos separam-se, visto que os ritmos biolgicos da me e do filho comeam a dessincronizar-se. Tece-se um lao entre as palavras maternas e a boca do filho, estruturando, assim, uma biologia perifrica que se ir aperfeioar com a acentuao da separao. A tecelagem deste lao tambm utiliza os outros canais de comunicao, para exibir os comportamentos da boca. Deste modo, existe uma confluncia harmoniosa das pulses parciais, quando a criana posta ao seio. O odor da me constitui uma atmosfera familiar. A voz estimula a oralidade do filho. E a fixao dos olhares imobiliza as posturas da dade. A me cala-se assim que o filho comea a ritmicidade bocal. (CYRULNIK, 1997, p. 36)

    Ressalta-se que, em alguns casos, as relaes entre a me e o filho durante a

    alimentao no so harmoniosas, ocasionando certo desconforto nesse momento

    interativo, em virtude de dificuldades orgnicas ou psicolgicas da me (suas

    histrias passadas), e alterando as percepes que ratificam a parceria com seu

    filho.

    Cada uma destas frases o resultado de uma observao etolgica. Dizer >, implica um dilogo tnico dos parceiros com um ajustamento perfeito dos corpos, todavia, separados. Acontece que este ajustamento possa ser imperfeito e provoque uma perturbao no sistema estabelecido pelos parceiros. Quando a criana se ajusta mal, a me experimenta um sentimento de fadigabilidade cuja explicao no conhece. Pelo contrrio, por vezes, ela mesma que, por razes orgnicas ou psicolgicas, se dispe desajeitamente (inchao no seio, doena, depresso, isolamento afectivo ou social) seja qual for o ponto de partida do mal-ajustamento, o sintoma traduz-se por uma perturbao da mamada. (CYRULNIK, 1997, p. 37)

    No momento da alimentao, quando a me conduz o seu filho ao seio,

    visualiza-se um sincronismo de adaptao e conhecimento corporal entre dois

    corpos, que se entrelaam, envolvem-se, estabelecendo um campo sensorial e

  • 34

    perceptivo, cujo vnculo cria significados para ambas as partes, seja de fascinao,

    ateno, cuidado, proteo, mas acima de tudo de amor.

    O conjunto funcional palavras maternas-boca da criana conhece uma ontognese particular. A me pode falar a quem estiver por ali e ao beb, mas assim que pe a criana ao seio ela cala-se, imobiliza-se e procura o seu olhar. Estas atitudes gestuais captam a ateno da criana, concentram-na na mamada e coordenam as sensaes difusas, o que permite a harmonizao dos dois corpos. A observao directa demonstra que, assim que nasce, o beb exibe movimentos oculares bruscos, comportamentos oculomotores de deteco que acabam por agarrar uma cintilao, um movimento, a trinta centmetros (o que corresponde, aproximadamente, s posturas de aleitamento). Os olhares fixam-se, ambos se imobilizam, a criana mama e a me d uma forma verbal a sensao: > No mundo do beb, esta uma percepo parcial que o fascina e o concentra, enquanto no mundo materno uma sensao qual ela d um sentido: > ou reconhece-me>>. A me vive num mundo historiado, ao passo que o filho est fascinado por uma sensorialidade. Mas em conjunto que funcionam. (CYRULNIK, 1997, p. 38)

    O provimento da amamentao ocasiona uma relao apaziguadora entre a

    me e o seu filho, cujos ritmos biolgicos so compreendidos pelas atitudes

    corporais que cada um dispe neste envolvimento, podendo tais gestos ser

    considerados como os caminhos a serem trilhados para as primeiras representaes

    mentais.

    A partir das primeiras mamadas, organizam-se os primeiros ns do lao harmonizando a histria e a sensorialidade. A ritmicidade constitui a atitude comportamental que permite tornar observveis os primeiros encaixes, as primeiras articulaes do mundo intermental. (CYRULNIK, 1997, p. 38)

    A sincronia entre a me e o filho, por intermdio do campo sensorial criado em

    suas relaes, faz com que a me desenvolva uma sensibilidade decodificadora para

    os diversos sinais comportamentais expressos pela criana, como os da fome e da

    sede. E esse olhar sensvel da me decorrente de suas experincias passadas,

    que envolvem seu filho, gerando uma empatia entre ambos.

    De tal forma que desde as primeiras semanas os choros de uma criana que tem fome esto j estruturados como um cdigo (um

  • 35

    ordenamento de sonoridades que transporta informao), cuja componente biofsica, a intensidade, a melodia e os silncios compem um ritmo que a me aprende a decodificar muito depressa: >, . A criana exprime sinas de alternncia, mas a me que mantm a anterioridade da interpretao. Encontra-se, assim, a ideia de que a me injecta a sua histria no tratamento dos sinais sensoriais, posturais, sonoros ou visuais do seu filho. O que quer dizer que a empatia da me estrutura o campo sensorial que impressiona o filho e o molda em parte. (CYRULNIK, 1997, p. 39)

    Eventualmente, a me no consegue decodificar as mensagens expressas do

    seu filho, fragilizando a relao do apego, da confiana entre me e filho. Nestes

    casos, as crianas expressam comportamentos autocentrados, demonstrando

    atravs destes a necessidade de se buscar estratgias para aproximao dos

    corpos, que no foram ainda institudos em uma harmonia sensorial.

    Por exemplo, observa-se que algumas mes no percebem ou no decodificam os sinais que exprimem a saciedade da criana. Continuam a propor-lhe alimentos, criando nela uma sensao de intruso. A criana manifesta reaces de medo, de desvio ou de hostilidade que a me no compreende. Muitas vezes, no responde imediatamente aos sinais de apelo. Em poucos dias, a criana encontra substitutos masturbatrios, os mais habituais sendo auto-suco do polegar, do lbio ou balanos ritmados. (CYRULNIK, 1997, p. 40)

    Este campo sensorial, promulgado pela me, modelado a partir de suas

    atitudes corporais representadas em seu convvio social (historicidade), as quais

    tendem a direcionar nos comportamentos das crianas, exprime este sentimento por

    meio de gestos, mmicas e palavras que estruturam o campo sensorial em redor da

    criana e molda, assim, determinados comportamentos (CYRULNIK, 1997, p. 39)

    Diante do exposto, as relaes interativas da me com o seu filho so

    fundamentais para as construes dos alicerces temperamentais deste, o

    temperamento da criana , assim, moldado poderosamente durante as interaes

    precoces quando a histria e a biologia do forma relao (CYRULNIK, 1997, p.

    41).

  • 36

    O momento das refeies, portanto, pode ser considerado como um

    verdadeiro campo observatrio do comportamento gestual, enfatizando, nas

    representaes intermentais, a percepo do outro que est a sua frente.

    Um mesmo comportamento de solicitao infantil ser interpretado com alegria ou hostilidade, de tal modo que, desde as primeiras refeies, a alimentao passa a ser o teatro em que se desempenha a encenao do primeiro mundo intermental. (CYRULNIK, 1997, p. 41)

    O mundo intermental entre me e filho desenvolvido quando a criana inicia

    sua alimentao atravs de comidas slidas, pois os corpos so dispostos agora de

    frente um para o outro, a linguagem e o olhar entram em cena para que as interaes

    tenham reciprocidade. Especula-se a formao de um ambiente imaginrio que junta

    posturas corporais, gestos, mmicas e a linguagem para elaborar um espetculo

    envolvente entre estes dois seres humanos, me e filho.

    O guio comportamental muda a partir da primeira refeio slida. Doravante, a dramaturgia da refeio efectua-se frente a frente e j no corpo a corpo. A separao, mais marcada, necessita de um aperfeioamento da estrutura interactiva. A me, que se calava quando punha a criana ao seio, comea a falar assim que lhe prope um alimento slido. Dentro desta nova estratgia interactiva, a palavra junta-se ao olhar. Ao seio, a me captava a ateno da criana pelo olhar. No frente a frente, capta o olhar e estimula a boca com palavras, tal como com a pequena colher. As melodias verbais associam-se s mmicas e aos gestos para solicitar a criana: o espetculo vai comear. (CYRULNIK, 1997, p. 41)

    Frente a este espetculo das refeies, com alimentos slidos, ratifica-se o

    surgimento dos mundos intermentais entre me e filho, dos laos firmados entre

    estes; as atitudes corporais da criana, inicialmente, podem ser ausentes de

    significaes, mas, posteriormente, so dotadas de intencionalidade, atravs das

    representaes formadas sensorialmente com sua me (toque, fala).

    Durante este percurso transitrio, de representaes, os fatores temporais e

    espaciais se tornam mais presentes, devido percepo do espao e tempo que a

    criana institui de proximidade ou afastamento com sua me.

    Durante as primeiras refeies, os mundos mentais da me e do filho encontram-se, enfrentam-se e formam-se. A banalidade do argumento de alimentao permite observar a ontognese do sinal: desde as palavras da me at boca do filho, o que, partida, no passava de

  • 37

    um toque, de um estremecimento dos lbios, organiza-se sob o efeito da separao em argumentos comportamentais. O olhar, o avano dos ombros e, sobretudo, a vocalizao surgem para indicar um objecto que se afasta no espao ou no tempo. Mais tarde, o que no passava de um indcio ser, intencionalmente, feito para agir sobre a representao do outro, a me, esse ser particular, esse gigante sensorial que preenche o mundo da criana. Quanto mais os corpos se separarem mais os comportamentos preservaro o lao. (CYRULNIK, 1997, p. 42)

    Quando a me e o filho estabelecem um mundo intermental, a criana deixa

    de focar as interpretaes em seu prprio corpo, fazendo do contexto vivenciado com

    sua me o momento propcio para o provimento da construo de representaes

    perceptuais desta convivncia. Neste sentido, a alteridade (sentimentos opostos) se

    torna necessria no vnculo institudo entre me e filho, pois, nos laos firmados, a

    aproximao e o distanciamento nos perodos da alimentao retratam a ausncia e

    posterior satisfao de sentimentos oriundos na criana, seja de fome, sede ou

    carinho. Sentimentos considerados opostos, mas que conduzem a criana a aceitar

    momentos distintos, em decorrncia de um lao emptico fortalecido com a me.

    A este nvel da construo psquica, o encantamento j no se passa no corpo, mas no sinal que preenche o entredois. O que leva a pensar que um meio nutritivo, apressado na satisfao imediata dos indcios emitidos por um beb, ao suprimir o atraso que faz sofrer a esperana de satisfao. (CYRULNIK, 1997, p. 42)

    Esse processo de desvinculao do corpo, realizado pela criana, por

    intermdio dos aspectos intermentais, necessrio para concretizar a interao

    recproca da mo com seu filho, pois a criana amplia suas consideraes

    significativas para outros comportamentos gestuais e corporais da me. Contudo, se

    os mundos intermentais no se conectam, no existindo a alteridade de sensaes e

    percepes, a criana permanecer sentindo o seu prprio corpo, no conseguindo

    dispor de outros sentidos e significados expressos nas relaes com sua me,

    restringindo-se a comportamentos fechados e limitados.

    Pode-se imaginar que a criana s sente, ento, o prprio corpo, visto que a alteridade est mal constituda. Experimenta uma perturbao em si, pois no pode nem perceb-la nem imagin-la no corpo de um outro. Talvez seja isto que explica que tantos adolescentes hipocondracos tenham sido antigos bebs sobreprotegidos, ao passo que h muito poucas hipocondrias entre os antigos bebs

  • 38

    abandonados. Antes pelo contrrio, as crianas carenciadas desprezam o corpo, no o embelezam e no esto atentas aos sinais da doena. Quando esto isoladas, preenchem-se a si mesmas, e as incessantes actividades autocentradas (balanos, crculos sobre si mesmas, fungar, autotraficncias...) constituem o seu nico mundo. Quando se deixam morrer de fome no meio das vitualhas, no se pode incit-las a comer a no ser depois de se ter estabelecido com elas uma relao que as convide alteridade. S ento tentam a aventura do alimento slido. A alimentao ainda no para elas fonte de energia, de vitaminas ou de substncias qumicas, mas de meio utilizado para preencher o vazio da relao. vidas do outro, ao mnimo encontro, habitam o mundo dele e desprezam o seu. (CYRULNIK, 1997, p. 43)

    O advento da palavra sensorial na criana transcorre durante essa fase

    intermental estabelecida com a me, sendo conduzida atravs da boca. Mas este

    processo de propagao da linguagem reforado tambm por outros caminhos

    sensveis expelidos pelo corpo, como o odor exalado, o calor dos corpos, as

    palavras sensoriais tocam a boca da criana. Porm, em redor deste canal,

    organizam-se outras vias que o reforam: o odor, o calor, a manipulao e todas as

    informaes utilizadas mais tarde a fim de preparar para o sinal (CYRULNIK, 1997,

    p. 43).

    Neste cenrio, de observaes dos movimentos da boca, ratifica-se como as

    experincias da alimentao e linguagem so importantes nas perspectivas do

    desenvolvimento da criana, pois quando esta (criana) permite ingerir um novo

    alimento, remete-se a abertura para um novo mundo simblico, de novas

    representaes a partir do desconhecido, sendo a criana impulsionada tambm s

    descobertas provindas das sonoridades expelidas (linguagem) pelos membros da

    famlia, que a ajudaro, em cada etapa de sua vida, na internalizao da presena do

    outro, tornando prazerosa essa participao interativa.

    A familiarizao activa do alimento novo testemunha o impulso vital da criana, tal como a familiarizao activa das vocalizaes novas revela que a criana sente um desejo de brincar com as representaes verbais. Assim que a criana tenta comer um alimento novo, revela o prazer em descobrir o mundo, assim que tenta articular sonoridades novas, revela, por este comportamento vocal, que compreendeu que se pode partilhar o mundo mental de um outro e sentir prazer. A primeira actuao intelectual abstracta est muito ligada ao prazer da boca. Neste processo da verbalizao e da alimentao, h uma homologia de desenvolvimento. (CYRULNIK, 1997, p. 44)

  • 39

    Ressalta-se que os msculos da boca esto em consonncia com os

    msculos da faringe e laringe, proporcionando ao ser a aquisio de uma maior

    desenvoltura nas aes comportamentais do comer e falar, sendo estas vinculadas

    diretamente ao equilbrio emocional no meio. Nota-se que os movimentos da boca,

    propagados pelos avanos labiais, transitam de acordo com a maturidade da criana,

    portanto a aquisio da linguagem procede em etapas mais futuras, quando a

    criana desperta para as suas representaes mentais.

    Muito antes da palavra, quando os movimentos da boca se estabelecem, pode-se observar uma perturbao do avano dos lbios. A criana que controla mal as emoes controla mal os msculos da boca, da laringe e da faringe, que permitem a deglutio e a articulao das palavras. Esses msculos devem coordenar-se de maneira espantosamente complexa, a fim de permitir duas funes diferentes expressas pelos gestos bocais. (CYRULNIK, 1997, p. 44)

    As culturas tambm esto includas nos atos da alimentao, pois predispem

    condutas a serem utilizadas nestes momentos exploratrios da boca, trata-se de

    uma situao naturalista que existiria, mesmo se no se observasse. Est,

    naturalmente, normalizada, pois a nossa cultura que fixa as regras das

    aprendizagens alimentares (CYRULNIK, 1997, p. 45).

    Estes fatos podem ser observados desde a preparao do alimento, pois o ser

    humano foi descobrindo, por intermdio de suas experincias, quais so as

    propriedades caractersticas de cada alimento, assim como as combinaes que

    poderiam fazer com outros, ratificando diante de cada cultura suas especificidades.

    A preparao do alimento desenvolveu-se na histria de acordo com os mesmos princpios das outras atividades do fluir. Primeiro, as pessoas aproveitaram as oportunidades para ao (neste caso, as diversas substncias comestveis existentes em seu meio ambiente), e, como resultado de uma ateno meticulosa, eram capazes de fazer distines cada vez mais apuradas entre as propriedades dos alimentos. Descobriram que o sal conserva as carnes, que os ovos so bons para ligar e empanar, e que o alho, apesar do sabor forte, tem propriedades medicinais e quando utilizado com parcimnia propicia um sabor sutil a uma variedade de pratos. Cientes dessas propriedades, as pessoas podiam experimentar com elas e ento desenvolver regras para juntar as diversas substncias nas combinaes mais agradveis. (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, 167)

  • 40

    Boris Cyrulnik (1997) descreve a simplicidade do ato degustatrio em buscar

    e sentir algo novo do mundo, considerado apenas pelo movimento de conduzir o

    alimento boca, j iniciado durante o perodo gestacional. Diferentemente da

    percepo do outro, do mundo intermental, das representaes, que requerem uma

    maturidade temporal advinda das experincias vivenciadas.

    Para descobrir um alimento novo, basta meter na boca um bocado do mundo, tal como fazem os fetos muito antes de nascerem. Ao passo que, para perceber um rosto estranho e o diferenciar dos rostos familiares, so precisas vrias semanas aps o nascimento. (CYRULNIK, 1997, p. 45)

    Pode o ato degustatrio ser considerado como algo de simples prazer e bem-

    estar social, difundido nas culturas, mas, em todas as culturas, o simples processo

    de ingerir calorias transformou-se, com o tempo, numa forma de arte que oferece

    satisfao, bem como prazer (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 166).

    Com o advento da temporalidade (alguns meses), a criana inicia sua fase

    exploratria do mundo, por intermdio das relaes estabelecidas com sua me,

    voltadas s expresses da boca dela. Neste momento, as crianas ampliam suas

    percepes sensoriais da boca para o rosto da me, cujos movimentos so providos

    de aes intencionais, pois estas (crianas) j adquiriram certa memria das

    experincias passadas.

    A criana, que guarda na pequena memria que a boca constitui um modo de relaes privilegiadas com a me, esse ser nico, responde emoo provocada pela percepo do rosto por um movimento exploratrio da boca. Agarra uma parte do nariz, uma parte da face, uma parte do lbio que a me lhe quiser estender. Nessa altura, aquilo que no passava de um reflexo de palpao passa a ser, ao quarto ms, um movimento intencional. (CYRULNIK, 1997, p. 47)

    O vnculo que a me institui com o seu filho refere-se pulso afetiva

    estabelecida com ele, em um jogo recproco de limitaes ou aberturas exploratrias,

    de acordo com a historicidade da me.

    A pulso afectiva est orientada para uma figura privilegiada, mas a interpretao histrica da me deu uma forma humana pulso. Em menos de um ano, a criana aprendeu que devia limitar a mordedura afectiva. A partir desde instante, instala-se a reciprocidade. (CYRULNIK, 1997, p. 48)

  • 41

    E a primeira pulso afetiva dos seres humanos corresponde ao beijo, ou seja,

    aos movimentos espontneos e propulses desta regio corporal, que a criana

    realiza quando so estimulados pela me (sons emitidos), impulsionando seus lbios

    a encontrarem um local para saciar suas vontades e desejos.

    O pequeno ser humano, o comportamento de boca mais ritualizado, aquele que adquire, muito depressa, uma funo de sinalizao, utilizando um movimento espontneo, o beijo. Pode-se descrever o incio da ontognese do beijo como o comportamento de palpao que se observa entre todos os mamferos recm-nascidos e que lhes permite encontrar o mamilo sem qualquer aprendizagem. Procuram por meio de um balano bilateral da cabea. Esta orientao observa-se na ecografia do tero, quando a vocalidade materna, tal como um diapaso que vibra contra a boca, faz avanar os lbios da criana. Esta observao foi feita claramente entre as chinchilas e entre os seres humanos. Durante os primeiros meses, qualquer estimulao peribocal provoca o avano dos lbios, qualquer contacto com um mamilo, um dedo, uma tetina ou uma nariz provoca este mesmo reflexo. (CYRULNIK, 1997, p. 47)

    A fase de buscar o desconhecido (novas representaes extradas do meio)

    pela criana por intermdio da boca (beijo-mordida) refere-se aos seus laos

    empticos com o outro, proporcionando-lhe o acesso s representaes do seu

    semelhante, de um novo mundo a ser interpretado.

    A criana manifesta, desse modo, que acende empatia, s representaes das aces e das emoes dos outros. O jogo do beijo permite ver que, a partir do oitavo ms, um mundo intermental que se engendra pela manipulao recproca do mundo dos outros. (CYRULNIK, 1997, p. 48)

    Este novo mundo poderia ser narrado pelos rituais que conduzem s pulses

    alimentares nas sociedades, caracterizando a diversidade das culturas, suas

    diferentes maneiras organizacionais e estruturais. Nesta perspectiva, o autor relata

    certo receio e privao do homem com o seu mundo, pois, ao invs de explorar suas

    crenas, hbitos, paladares, atravs de sua sensorialidade, limita-se apenas s

    representaes culturais, principalmente as degustativas, que o cercam, restringindo

    experincias que poderiam despertar novas sensaes significantes, ou seja,

    incorporar diferentes aprendizagens. Pode-se mencionar, neste contexto, tambm as

  • 42

    pulses sexuais, que interferem, mesmo em menor intensidade, nos processos

    perceptivos e disciplinadores do homem.

    Os homens consagram ao alimentar um tempo fabuloso, muito superior ao que seria exigido por uma simples incorporao qumica. Este aumento de investimento corresponde ao fabrico do mito. Assim que se come em conjunto, prepara-se um relato. Em redor da pulso alimentar, os indivduos ligam-se, os grupos estruturam-se e as sociedades organizam-se. A pulso sexual, menos vital para o indivduo, organiza representaes ainda mais distantes da percepo: a filiao, a descendncia, o aps-morte e o sagrado. (CYRULNIK, 1997, p. 52)

    At porque, conforme CSIKSZENTMIHALYI (1992), os atos degustativos e

    sexuais referem-se s atividades elementares do ser humano, geradoras de prazer,

    felicidade e bem-estar pessoal, que so concebidas nas experincias vividas, de

    acordo com o tempo. Mas deve-se tomar cuidado para que tais posturas no se

    tornem uma dependncia incontrolvel no homem, visto que a prpria sociedade

    cultua o sexo e a alimentao dentro dos sete pecados capitais, ou mortais.

    Ressalta-se, no advento temporal, o desaparecimento de alguns rituais

    institudos na sociedade, como os hbitos familiares de se reunir na mesa para as

    refeies dirias. Tais atitudes ou posturas comportamentais podem estar envolvidas

    com as mudanas que a sociedade contempornea vem sofrendo, principalmente no

    tocante aos adventos miditicos, como televiso, internet, celular, entre outros, que

    passam a exercer uma influncia to exorbitante que, em certos casos, ultrapassa a

    representativa do pai de famlia.

    O desaparecimento dos ritos de mesa onde o pai reinava torna observvel a modificao das estruturas familiares em que se pode notar a ausncia frequente dos adolescentes, que, actualmente, conseguem evitar este ritual de partilha. Porm, esperemos pelo futuro rito que ir reabilitar a casa familiar. (CYRULNIK, 1997, p. 51)

    Como se pode observar nos discursos de Nbrega (2010), o autor exalta sua

    preocupao com os padres comportamentais externados pela mdia, realando

    principalmente as imposies corporais, propagadas atravs de imagens que

    exprimem modelos de corpos ditos como exemplares, devendo ser buscados a rigor.

  • 43

    Alm disso, deve-se fazer uso das mais diversas tcnicas difundidas no meio social,

    como adoo de prteses, dietas, atividades fsicas, para atender s necessidades

    dos modismos da sociedade, faltando, portanto, uma postura crtica do ser humano,

    frente a estes discursos ditadores, que desrespeitam as individualidades e tratam o

    corpo apenas nos ditames superficiais de suas interpretaes. O corpo expressivo,

    gerador de um campo sensorial, intermental, possui expressividade no meio

    circundante, no pode ento ser mencionado limitadamente, assim como distante

    dos rituais e crenas da cultura.

    O movimento em torno das imagens de corpo refere-se diretamente questo do valor. Nesse contexto, a mdia assume uma funo estratgica de divulgar certo modelo de vida, de padres e de comportamentos. Especialmente em relao ao corpo, o discurso da mdia carece de uma anlise cientfica e de reflexo sobre o estatuto do corpo na contemporaneidade, uma vez que, por meio de sofisticados recursos tcnicos e tecnolgicos, a percepo mutilada. O movimento veloz da mdia em divulgar imagens e modelos de corpo produz uma corrida alucinada aos mtodos e tcnicas de modificao do corpo para adaptar-se moda. O destino do corpo torna-se prtese, seja por cirurgia ou imagem. (NBREGA, 2010, p. 26)

    E um dos rituais preponderantes da humani