corpo feminino em dialogo

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    Corpo feminino em dilogo

    Anlise da imagem Ateli de Costura (1997), de Elieni Tenrio.

    Vanessa Cristina Ferreira Simes1

    (UFPA / [email protected])

    Resumo: Em uma sociedade mergulhada em imagens que passam, atravessam,frenticas e volveis, faz-se importante perceber as permanncias, o que a viso retmdos momentos de opacidade, dadas em condies de visibilidade culturalmenteinscritas. Nesse sentido, o corpo feminino torna-se signo recorrente das imagenstransmitidas pela mdia e tambm, como no poderia deixar de ser, tema de investigaona arte. Assim, no presente estudo partiu-se da compreenso de Catal Domenchacerca da complexidade da imagem e de como investig-la, a fim de analisar a obraAteli de Costura, da artista plstica paraense, Elieni Tenrio. O objetivo dessainvestigao desvendar os segredos por traz dessa imagem, partindo de sua superfcie,onde so representadas mulheres no ambiente de um ateli de costura, mergulhando naecologia da qual faz parte, onde os sentidos comeam a ser delineados peloestabelecimento da comunicao entre quem produz a imagem (artista) e quem a l(espectador), e finalmente chegando aos possveis desdobramentos da imagem emnovos discursos e apontamentos. O resultado da leitura desta obra de Elieni Tenrio nos

    permitiu refletir sobre as con(tra)dies e complexidades femininas, em interfaces comquestes relativas a trabalho, vaidade e identidades.

    Palavras-chave: Imagem, mulher, ecologia.

    A conduo da anlise da imagem aqui proposta parte da argumentao

    elaborada por Catal Domnech (2011) acerca da necessidade de interrogar a imagem

    diretamente, em sua fenomenologia, para, a partir da, ousar articul-la para outras

    finalidades tericas alm das questes da visualidade em si. Para tanto, o autor afirma a

    necessidade de ir alm da descrio e da interpretao imediata da imagem, na tentativa

    de revelar seus segredos e tramas.

    Isso significa que no se trata s de entender como a imagem composta (sua estrutura), mas tambm saber quais elementos emateriais que a compe no esto diretamente ligados a seumecanismo representativo, a sua funcionalidade que mestiagens ehibridaes, desejos e pulses manifesta ou desperta. Trata-se de iralm do superficial e rastrear os fios que ligam a imagem a outrasimagens e aspectos. Assim penetramos a imagem, vamos alm de suasuperfcie e descobrimos seu substrato inconsciente que a desliga docontexto imediato a que pertence. (CATAL DOMNECH, 2011, p.35)

    1 Mestranda em Artes pelo Programa de Ps-graduao em Artes da UFPA com bolsa da CAPES.

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    Alm disso, o autor defende a necessidade de entender a imagem como parte

    de uma ecologia, isto , sistema em movimento ao qual a imagem se integra,

    modificando-o e sendo por ele modificada. Com isso, ele rejeita o conceito de contexto,

    por entend-lo esttico e indiscriminado, no sentido de que a imagem apenas se situa no

    contexto, que plano de fundo desta, mas no o integra. (CATAL DOMNECH,

    2011)

    A partir dessa considerao, de uma ecologia da imagem, Catal Domnech

    (2011) prope um modelo para uma anlise complexa da imagem, que leve em conta

    sua natureza interativa, o que ele chama de imagem-rede, e v desde a descrio de sua

    composio (fase de penetrar na imagem), passando pela reflexo acerca da ecologia

    que ela integra e siga articulando as interpretaes dos caminhos a que ela nos leva (fase

    de interferncia sobre a imagem). Sempre, contudo, mantendo-a aberta rede de

    significaes que possam vir a interpel-la.

    Tendo isto em vista, o objeto de anlise em questo aqui a fotografia de uma

    obra de arte intitulada Ateli de Costura (1997). Ela foi retirada do livro Rios de

    Terras e guas (2009) que apresenta a obra de seis artistas paraenses, entre eles, Elieni

    Tenrio, autora desta tela reproduzida em fotografia.

    Por se tratar de uma obra de arte, e carregar consigo a figura subjetiva de um

    criador, Catal Domnech (2011) argumenta que a experincia visual que ela

    proporciona pode ser categorizada como de expresso. Entretanto, ele ressalta que esse

    sentido de expresso passa pela sensibilidade ligada a um processo de referncias j em

    movimento no mundo. Conforme o autor, no a autoridade de obra de arte que outorga

    imagem a experincia de expresso, mas sim, sua potencialidade de comunicar

    visualidades que j esto no mundo e de permitir uma tomada de conscincia delas:

    A expresso um fator ligado, pois, obra de arte, no porque estaseja nica em suas descobertas, mas porque a nica capaz de pens-las e express-las de maneira que acabem provocando uma tomada deconscincia sobre mudanas perceptivas que outros meiossimplesmente aplicam sem conhecer. (CATAL DOMNECH, 2011,p. 39)

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    FIGURA 1: Fotografia da pintura em tela Ateli de Costura, de Elieni Tenrio.

    Fonte: LIMA, Janice. Nas suturas dos bastidores de Elieni Tenrio. In: MOKARZEL, Marisa(Coord.); LIMA, Janice Shirley Souza; MOURA, Simone de Oliveira. Rios de terras e guas:navegar preciso. Belm: Unama, 2009.

    Utilizando Dautun (1995), Catal Domnech (2011) tambm reafirma a

    necessidade de analisar a imagem em contedo e suporte, ou seja, considerando aquilo

    que a imagem mostra (contedo) e os meios que utiliza para tanto (suporte), de modo

    que, na viso dos autores, o suporte se constitui em meio e tcnica. Nesse caso, a

    fotografia aqui analisada pertence ao meio fotogrfico e tcnica digital, mas a obra

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    original integra o meio pictrico e utiliza tcnica mista sobre tela, o que proporciona ao

    observador uma experincia completamente diferente da obra.

    Quanto ao seu contedo, a imagem apresenta uma sala de piso vermelho e

    paredes azuis, cores primrias que transmitem sensaes contrastantes de energia,

    vaidade, desejo, poder (do vermelho) e quietude, sutileza, frieza (do azul). Contrastes

    tais que tambm aparecem na expresso das mulheres que se encontram na sala,

    exclusivamente feminina. Um misto de excitao e tdio que se separa aquelas que

    usam o espao para o trabalho e aquelas que o experimentam para consumo de peas de

    roupas e, indo mais alm, de beleza.

    Alm da presena de mulheres e vestidos, os equipamentos e materiais de

    costura tambm se fazem importantes no entendimento de que se trata de um ateli de

    costura, sem contar, claro, com o ttulo da obra que denuncia. So mquinas de

    costura, fita mtrica, carretis de linha e cabides que evidenciam a natureza do espao.

    O tipo de mquina e de mobilirio de modelo mais antigo, bem como a iluminao

    utilizando lmpada incandescente sem luminria e os cabides pendurados em pregos na

    parede, tambm permitem inferir tratar-se de um ateli tradicional e familiar, onde os

    equipamentos no se alteraram com a evoluo dos recursos. O espao tambm conta

    com uma decorao simples e de aparncia familiar, lida pelo uso de um vaso de flores

    e de tapete. Na ambiente encontra-se, ainda, um pequeno provador de menor destaque e

    que nem sempre utilizado, j que algumas clientes trocam de roupa no prprio salo.

    As mulheres que habitam o espao so quase todas jovens ou jovens senhoras,

    com a exceo de uma mulher idosa. A maioria tambm est muito arrumada, usando

    vestidos ricos em detalhes, acessrios nos cabelos e batom nos lbios, o que demonstra

    uma preocupao com a imagem e feminilidade. Seus olhares e posturas corporais

    demonstram ateno ao ofcio da costura, aos detalhes dos vestidos, aos detalhes das

    outras mulheres, ao seu prprio corpo e auto-estima; demonstram tambm estar longedali, com olhares perdidos ou absortos em conversas outras.

    A composio da imagem apresenta-se com uma linha diagonal, o que j insere

    movimento e dinamismo na leitura, e conduz o olhar do observador das mulheres em

    primeiro plano at a outra ponta da tela, onde figura a mulher idosa. Isso nos permite

    inferir que esta mulher idosa um destaque dentre as demais na sala, ainda mais pelo

    fato de que ela se encontra emoldurada pela janela. Ela, provavelmente, a costureira e

    dona do ateli, j que tambm est vestida mais simplesmente e sem adereos, o quedemonstra uma preocupao com o trabalho, e no com a beleza naquele momento. Seu

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    nico acessrio o relgio de pulso, que marca o tempo do trabalho. pela presena

    dela que todas as demais ali esto e que o ambiente existe em sua funo de trabalho e

    consumo.

    Encerrado este momento em que se penetrou na imagem, buscando analisar

    seus elementos e recursos tcnicos, Catal Domnech (2011) prope que se siga a uma

    reflexo da ecologia em que a imagem se insere. Para isso, preciso buscar entender em

    que meio ela se insere e com quais outros universos dialoga. Comeando pelo

    entendimento de que se trata da expresso de uma artista e sua subjetividade, onde ela

    revela e reescreve sua percepo do mundo, mas tambm como parte de um sistema

    social maior, onde o papel da mulher continua em pauta.

    Assim, conhecer a trajetria da artista revela algumas pistas sobre o universo

    de referncias a que pertence esta obra. Filha de costureira, Elieni Tenrio conheceu

    intimamente o universo de um ateli de costura, passando ela prpria a produzir peas

    de uso pessoal durante a infncia. J mais adiante, quando se encontrou artista, percebeu

    no universo feminino um tema farto para suas experimentaes, mantendo ainda o

    vnculo com o espao do ateli de costura em suas criaes (LIMA, 2009).

    Essa intimidade com o espao do ateli e com o prprio ofcio da costura se

    expressa na obra, com riqueza de detalhes em forma de cortes, aviamentos, caimento de

    tecidos, rendados e bordados. Partindo de memrias e prticas muito particulares, Elieni

    reapresenta ao observador um ambiente de trabalho e relacionamento que comunica

    muito sobre o universo feminino. Nesse sentido, ela reconta a luta de costureiras para

    manter seu sustento e a vaidade feminina em busca de um corte que a valorize.

    Realidades vrias que dividem uma mesma sala.

    De vaidades, marcadas nos batons, unhas, laos e presilhas; s desconfianas e

    timidez expostas nos olhares, tudo est l. A mulher que troca de roupa apenas no

    provador, com receio dos olhares das outras, e a mulher que no possui tais pudores ouat prefere ser vista. Os olhares de julgamento e os de cumplicidade. A senhora de idade

    avanada que apesar do problema de vista no deixa sua mquina de costura. A mulher

    detalhista que confere o acabamento da pea com cuidado. As conversas e burburinhos

    sobre a roupa que a sua e o vestido da outra que melhor. O barulho dos tecidos

    arrastando no cho ou sobre o corpo das mulheres, da mquina de costura e dos passos

    das clientes.

    Esse universo do ateli, que parte de um universo maior que diz respeito aessncia e papel da mulher, articula a imagem tambm a um conjunto de reflexes de

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    gnero que reivindicam o direito da mulher a assumir suas mltiplas identidades e

    desejos. Conforme se observa na tela de Elieni, ela tudo: sensual e recatada, vaidosa e

    simples, lutadora e sonhadora. Isso claro nas escolhas das roupas, nas posturas

    corporais, em sua distribuio no espao. Tudo depende do momento que ela

    experimenta e daquilo que ela quer. Querer, desejar e ser so, assim, palavras

    importantes para a ecologia desta imagem.

    Deste modo, respondendo a questo que Catal Domnech (2011, p. 36-37)

    coloca para finalizar a anlise complexa de uma imagem Aonde vai a imagem?, pode-

    se dizer que ela vai ao encontro da alma feminina que, tal como a imagem,

    multirrelacionada. Ela conduz o observador pelos mistrios e segredos do corpo no

    lugar onde as medidas femininas so reveladas e silenciadas e do esprito feminino,

    complexo e imprevisvel, mas sensvel e delicado como a tcnica que deu vida a obra de

    Elieni.

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    REFERNCIAS

    CATAL DOMNECH, Josep M. A forma do real. Introduo aos estudos visuais.So Paulo: Summus, 2011.

    LIMA, Janice. Nas suturas dos bastidores de Elieni Tenrio. In: MOKARZEL, Marisa(Coord.); LIMA, Janice Shirley Souza; MOURA, Simone de Oliveira. Rios de terras eguas: navegar preciso. Belm: Unama, 2009.