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São Paulo, 18 de Novembro de 2010
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COREOGRAFIAS EMERGENTES EM 2D:
articulações entre imagens e sonoridades para a criação audiovisual com ênfase na
inscrição do movimento e em processos experimentais1.
Andrea Christine Bella Krotoszysnski2
Nome artístico: Lali Krotoszynski
Orientadora: Profª. Drª. Maria Dora Genis Mourão3
Projeto de Mestrado
Área de Concentração: Meios e Processos Audiovisuais
Linha de Pesquisa: Poéticas e Técnicas
Resumo:
Esse projeto de pesquisa pretende abranger o estudo de referências teóricas e artísticas no
campo audiovisual e das novas mídias que privilegiem a interatividade e a inscrição do
movimento e que promovam a emergência de organizações estéticas; assim como a realização de
um trabalho artístico utilizando recursos eletrônico-digitais conforme as mesmas prerrogativas.
Palavras-chave: coreografia; audiovisual; sonoridades; imagens; emergência.
1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA – USP, promovido pelo Programa de Pós-Graduação
em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-
Usp), no dia 18 de novembro de 2010.
2 Possui graduação em Comunicacao e Artes do Corpo pela Pontificia Universidade Catolica (2004). Tem
experiência na área de Artes, com ênfase em Danca, atuando principalmente nos seguintes temas: danca e
tecnologia, composição coreográfica para tela, relação entre cinema e dança, interfaces interativas, arte da
performance e dança.
3 Professora Titular do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da USP, Vice-
Diretora da ECA/USP, Presidente da SOCINE – Sociedade Brasileira de Pesquisa em Cinema e Audiovisual.
Realizou estudos de Pós-Doutorado na Écoles des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, Paris-França na
área de cinema e novas tecnologias. Possui doutorado e mestrado na área de cinema pela USP.
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COREOGRAFIAS EMERGENTES EM 2D: articulações entre imagens e sonoridades
para a criação audiovisual com ênfase na inscrição do movimento e em processos
experimentais.
1- Introdução: do caminho até aqui
Minha trajetória como artista começou nos anos 80 com a dança e a performance.
Desde então, meu apetite pela potência criativa do movimento, do que pode emergir, sem
forma pré-definida me impele a procurar suas configurações dinâmicas através de outros
corpos, mídias, experiências, abarcando outras habilidades, expandindo para além de meu
corpo; o que em si acaba por constituir a coreografia que procuro engendrar.
Nesse contexto, nos últimos anos, tenho explorado o processo de decomposição e
reconfiguração de conjuntos de imagens colocadas em movimento através de mecanismos da
animação e a relação entre estas e estruturas sonoras em experimentos audiovisuais.
Trabalhos como Dance Juke Box (1999), ENTRE (2000-2004), Ocupação (2002-
2003), Bodyweave (2004-2008) e ballet digitallique (2010), são diferentes abordagens
envolvendo os mesmos elementos: imagem, som, movimento, a tensão entre acaso e controle
e sistemas inclusivos abertos à participação do público e à novos desdobramentos.
fig.1: frames das animações no site: http://lcinfo.net/dance/
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fig2: a interface ENTRE e imagens de interação do público com a proposta em diferentes locais
figs.3 e 4: público na instalação de Ocupação
fig.5: ballet digitallique, na exposição Emoção Art. ficial 5.0 Itaú Cultural
www.balletdigitallique.wordpress.com
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Buscando contextualizar e refletir sobre o universo dessas explorações no campo
artístico, ingressei no curso Comunicação e Artes do Corpo na PUCSP em 2000.
A primeira elaboração formal compreendendo o trânsito entre prática e teoria se deu com
minha monografia de conclusão de curso, Performance e Auto-Organização, finalizado no
primeiro semestre de 2004.
Para realizar um trabalho artístico aplicando e aprofundando o conhecimento do
conceito de Auto-Organização em relação ao processo criativo, propus ao Dr. Jônatas
Manzolli, coordenador do NICS-Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora na
UNICAMP, a realização de meu projeto de iniciação científica. Sob sua orientação desenvolvi
a primeira versão da interface de criação de animações sonorizadas, Bodyweave 1.0 e a
pesquisa, intitulada Auto-Organização em Obras de Arte Contemporânea Envolvendo Corpo,
Sonoridades, Interatividade e Novas Mídias, que recebeu apoio da FAPESP e cujo relatório
final foi aprovado em maio de 2005.
Entre 2005 e final de 2008, continuei trabalhando independentemente no projeto
Bodyweave, tendo realizado duas novas versões da interface. Nesse período, o projeto para o
desenvolvimento de sua versão como interface on-line foi premiado com bolsa-residência
para artistas do programa do British Council- Artists Links.
Durante a residência o projeto foi apresentado em locais como a Brunel University,
East London University e University of Plymouth, na Inglaterra. Também em 2008, recebeu a
bolsa fomento para produção artística no 7o. Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia que
permitiu a sua implementação na Internet no endereço eletrônico www.bodyweave.net. Seu
lançamento em setembro de 2008, foi realizado na bienal de arte e tecnologia do Itaú Cultural
Emoção art.ficial 4.0.
ballet digitallique, meu projeto atual, foi selecionado para integrar a 5ª edição da
mesma bienal que abriu, pela primeira vez, uma chamada de trabalhos para artistas
brasileiros.
2- Justificativa
O atual cenário da arte contemporânea não comporta mais uma distinção clara entre
áreas artísticas que antes podiam ser consideradas por especificidades mais facilmente
discerníveis e estáveis. Um novo paradigma vem germinando no amplo território da cultura
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envolvendo não só, todo o conjunto de propriedades antes mais ou menos exclusivas a cada
uma delas (suportes, técnicas, espaços próprios de apresentação, etc...), mas principalmente,
as relações comuns a todas as artes, fundamentalmente, as delimitações entre artista-público e
as relações espaço-tempo.
Na posição de artista, quero iluminar uma relação particular que vislumbro como
pertinente tanto ao campo artístico, quanto como objeto de estudo. Tal relação projeta-se para
a exploração de possibilidades de entendimento e de expressão artística que tem se revelado
um vetor poderoso o suficiente para interceptar completamente minha motivação ao longo de
meus 29 anos de atuação no meio artístico-cultural.
Se por um lado, não encontrei abrigo satisfatório em um modelo referencial prático ou
teórico específico, percebo que o conjunto de diferentes incursões teóricas e práticas em torno
dais quais tenho orientado meu trabalho está consistentemente alinhado às transformações
paradigmáticas citadas acima.
Venho utilizado procedimentos da dança, da performance, das artes visuais, dos meios
audiovisuais e computacionais para promover experiências criativas que envolvem desde
outros artistas e técnicos , até o público. Como artista de dança no Brasil, enxergo como parte
de minha tarefa desenvolver meus questionamentos e promover as articulações entre a dança e
os campos do audiovisual, das artes visuais e das novas mídias, gerando oportunidades de
alimentar o posicionamento crítico e produtivo no âmbito geral da arte contemporânea.
3- Coreografia 2D
A abordagem técnica audiovisual que adotei nos trabalhos citados no item
introdutório teve como base a estrutura da animação. Através dessa técnica descobri uma
forma de me desprender da representação de um movimento já realizado, para, a partir de
imagens estáticas extraídas de seu regístro inicial, criar novos movimentos na tela do
computador. Descobri também, o quanto há para se explorar neste caminho, ao perceber que a
dimensão sonora pode ser fracionada em unidades em correspondência com as unidades de
imagem na animação, ou seja, cada quadro, ou frame. A partir disso, experimentei variações
de duração no tempo entre um frame e seu som correspondente, resultando em pequenas
animações criadas nesse sistema.
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As experiências realizadas com esses trabalhos trouxeram evidências da
potencialidade que proponho continuar desenvolvendo nesse projeto de pesquisa. Ao
relacionar dança e animação, experimentei o confronto de duas linhas distintas de construção
de linguagem. Em geral, na animação, a sucessão de quadros estáticos em determinada
velocidade e ordem, “escreve” uma história conforme um roteiro. A coreografia, por sua vez,
é a arte de “escrever” movimentos no espaço e no tempo com corpos.
A abordagem de dança com a qual trabalho é investigativa e não vem de uma escola
específica. Dos vários estilos e técnicas que pratiquei, o que mais me interessa é a capacidade
de criar movimentos, sem compromisso com a representação de ações, mas de criar um canal
de fluxo motor modelando-o conforme ele mesmo for sugerindo. Muitas possibilidades de
articulação entre uma posição e outra podem ser experimentadas e a mesma investigação
transposta para o processo de animação se tornou meu território de pesquisa.
Não encontrei nos gêneros videodança, filme de dança ou dança para tela,
correspondência que identificasse o que empreendi em meus trabalhos, até porque eles
constituíram-se em interfaces, ou seja, o processo se tornou a obra, com suas infinitas
variáveis incluídas. Coreografia 2D é o nome que parece melhor denominar a idéia de
explorar as possibilidades de inscrição de movimento na superfície bidimensional na tela,
porém, para dar conta da importância da dimensão sonora na proposta e também do aspecto
processual implicado, tenho utilizado os termos audiovisual e experimental .
O projeto prático que proponho é a realização de experiências sistemáticas envolvendo
o trabalho de construção audiovisual com fragmentos sonoros e imagens, introduzindo
diferentes graus de indeterminação ou acaso ao processo na intenção estabelecer um diálogo
com os artistas levantados durante a pesquisa e cuja obra apresente relação significativa
referente às seguintes questões que sintetizam minha pesquisa:
A experiência e o conhecimento provenientes da dança, aplicados ao desenvolvimento de
trabalhos audiovisuais com os recursos eletrônicos/digitais atuais, podem levar ao surgimento
de novas sintaxes audiovisuais?
Como se caracterizaria uma narrativa ou poética cinética?
O que pode surgir ao concedermos mais autonomia aos encontros fortuitos entre imagens e
sons?
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A pesquisa se completará com uma descrição dessas experiências e um contraponto
reflexivo sobre as questões exploradas.
4- Narrativa X Poética Cinética
Nos seus fundamentos, fazer um filme ou fazer uma dança são atividades
muito similares; ambos dizem respeito a dar estrutura à ação. Se você levar
em consideração a linguagem formal do cinema e tirar o foco da atuação e do
texto, você pode ver qualquer filme como filme de dança. Todos os filmes
utilizam imagens de ação e tratam de combiná-las de forma rítmica e
expressiva. Sob este ponto de vista, filme e dança trabalham no mesmo
sentido. (HINTON, D., 2006)
Entendo coreografia como construção de um fluxo de relações dinâmicas entre corpo,
espaço e tempo, circunscritos por características estabelecidas ao longo da própria construção.
Nesta concepção, a presença do corpo que dança, não é o sujeito do fazer coreográfico, mas
sim as relações construídas, ou a ação de construir estas relações. A dimensão sonora, por sua
vez, se entrecruza com as imagens no tempo e no espaço, complexificando as possibilidades
de composição.
Tanto a coreografia, quanto o cinema e o video, tem como matéria-prima as relações
formais da imagem no espaço e no tempo. Porém, em nossa cultura audiovisual
predominante, tais relações transcorrem em um segundo plano, no sentido em que não devem
interceptar a atenção para fora de um perímetro pré-delimitado do universo da representação
organizado pela narrativa. Segundo Tzvetan Todorov, a narrativa estabelece um ponto de
vista de alguém que incorpora o narrador, portanto, é inerente a todo discurso representativo
(TODOROV, 2001).
Contar uma história parece ser o paradigma dominante nas expressões culturais em
geral. Acredito que a questão da representação no cinema tem um papel importante no
estabelecimento de uma certa hegemonia na forma de se ver e se produzir imagem em
movimento. Nascido de uma conjunção de fenômenos físicos e psíquicos, como o da
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persistência retiniana4 e o fenômeno phi
5, o cinema caminhou para se tornar o conhecemos
hoje na sua versão majoritária graças em parte à sua herança das tradições orais, literárias e
pictóricas.
A vocação representativa contida no dote herdado pelo cinema conta com legados da
estrutura narrativa, da suspensão de descrença e do artifício da perspectiva. E, finalmente
para consolidar tal tendência, o momento histórico de seu nascimento coincide com o
nascimento da figura social do cidadão. O desenvolvimento de ambos, portanto, segue em
relação recíproca com forças políticas e econômicas que fomentaram a revolução industrial,
não só na sua constituição física-operacional, mas em igual importância, na formação de uma
nova subjetividade. Como as demais mídias, o cinema também trabalhou à serviço da
construção de novos espaços sociais, novas necessidades coletivas, novos valores e ideologias
reais ou artificialmente implantadas por interesses dotados de poder. O novo aparato cultural
despertava atenção por ser uma grande novidade, mas também era capaz de alcançar uma
população heterogênea que aprendia a conviver em um adensamento demográfico em
formação por meio de estruturas familiares provenientes de formas culturais tradicionalmente
compartilhadas. Assim foram se estabelecendo os padrões predominantes do repertório
audiovisual em nossa cultura, nos ensinando a ver e ler a imagem em movimento de forma a
privilegiar a estrutura narrativa determinada pelo roteiro, colocando o desenho do movimento
das imagens na tela à seu serviço. Por sua vez, a dimensão sonora no cinema, na sua
4 “Tradicionalmente, a mais aceita teoria que explica a sensação de movimento é a chamada Persistência da
Retina, fenômeno pela primeira vez descrito em 1826 pelo médico Peter Mark Roget. Este fenômeno consiste na
capacidade da retina em manter por uma fração de segundo uma imagem, mesmo depois desta haver mudado. As
células fotossensíveis da retina, os cones e bastonetes, transformam a energia luminosa em impulsos bio-
elétricos, e estes são enviados para o cérebro, que então os interpreta como imagem. Por isso, em última análise,
poderíamos dizer que é o cérebro que realmente "vê". Mesmo depois do cérebro ter recebido os impulsos, a
retina continua mandando informações, por aproximadamente 1/10 de segundo após o último estímulo luminoso.
Por este motivo, se uma imagem for trocada numa velocidade maior do que esta, elas tendem a fundir-se no
cérebro, provocando a sensação de movimento contínuo”. (SALLES, F., 2008)
5 "Mas o fenômeno da persistência da retina nada tem a ver com a sintetização do movimento: ele constitui, aliás,
um obstáculo à formação das imagens animadas, pois tende a superpô-las na retina, misturando-as entre si. O
que salvou o cinema como aparato técnico foi a existência de um intervalo negro entre a projeção de um
fotograma e outro, intervalo esse que permitia atenuar a imagem persistente que ficava retida pelos olhos. O
fenômeno da persistência da retina explica apenas uma coisa no cinema, que é o fato justamente de não vermos
esse intervalo negro. A síntese do movimento se explica por um fenômeno psíquico (e não óptico ou fisiólogico)
descoberto em 1912 por Wertheimer e ao qual ele deu o nome de fenômeno phi: se dois estímulos são expostos
aos olhos em diferentes posições, um após o outro e com pequenos intervalos de tempo, os observadores
percebem um único estímulo que se move da posição primeira à segunda." (MACHADO, A., 1997)
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concepção generalizada, conformou-se a este padrão, ou seja, o som direto, as falas e a trilha
sonora atuam na condução do espectador a um único destino, aquele designado pelo
argumento no roteiro. No entanto, a exploração de outras potencialidades dos meios
audiovisuais, desde o cinema incipiente, até os muitos outros recursos disponíveis hoje estão
longe de perder o vigor, como vanguardas históricas e artistas contemporâneos não se cansam
de demonstrar.
No trecho do texto sobre o trabalho interativo on-line de 2006, A Batalha de Argel de
Marc Lafia e Fang-Yu Lin, Daniel Coffeen refere-se a como Gillo Pontecorvo evidencia
justamente este aspecto em seu filme A Batalha de Argel, de 1965.
De fato, um dos argumentos implícitos no filme é que a história, ela mesma, é
um veículo de poder. Pontecorvo não é o primeiro a proferir tal afirmação; ela
tem sido fundamental para a avant-garde pelos últimos 100 anos.
A história e seu arsenal – tanto quanto a identificação e a linha única de causa
e efeito – reduz a complexidade do mundo enquanto coage pessoas e fatos a
permanecerem nos seu trilhos de ação (Daniel Coffeen, 2006).
As inquietações apontadas por Coffeen remontam à infância do cinema, tendo sido
conformadas por Eisenstein e Vertov, entre muitos outros. Eisenstein, por exemplo, chama a
atenção para a importância do Locus na construção de sentidos e teoriza sobre as relações de
contigüidade. Como o lugar em que um conteúdo sonoro imagético se instala no tempo, acaba
por determinar seu caráter e orientar sua leitura. Dziga Vertov, por sua vez privilegia os
elementos cinéticos veementemente:
O cinema é também a arte de imaginar os movimentos dos objetos no espaço.
Respondendo aos imperativos da ciência, é a encarnação do sonho do
inventor, seja ele sábio, artista, engenheiro ou carpinteiro. Graças ao
Kinokismo ele permite realizar o que é irrealizável na vida. O Kinokismo é a
arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à
utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do
material e ao ritmo interior de cada objeto. Os intervalos (passagens de um
movimento para outro), e nunca os próprios movimentos, constituem o
material (elementos da arte do movimento). São eles (os intervalos) que
conduzem a ação para o desdobramento cinético. A organização do
movimento é a organização de seus elementos, isto é, dos intervalos na frase.
Distingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a queda do
movimento (que se manifesta nesse ou naquele nível). Uma obra é feita de
frases, tanto quanto estas últimas são feitas de intervalos de movimentos.
(VERTOV, apud Ismail Xavier, 1983)
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Ambos, apontam para elementos estruturais da arte cinematográfica que são
compartilhados pela dança. É como se estivessem falando em propriocepção e cinestesia,
uma hipótese a ser investigada ao longo da pesquisa a partir da leitura aprofundada desses
autores. A propriocepção e a cinestesia são sentidos que se referem à percepção interna de um
movimento muscular realizado. A propriocepção orienta quanto a posição do corpo no espaço
durante uma ação. A cinestesia é a percepção interna do dispêndio de energia ou aceleração
que está ocorrendo durante uma ação. Exteriorizados, estes sentidos poderiam corresponder às
habilidades necessárias para a ordenação de ações e para a modulação de movimentos no
espaço e no tempo, fundamentos da arte coreográfica.
Como Coffeen sugere, há muito tempo que a vanguarda vem questionando o poder da
história (no sentido de story), o qual relaciona à força dos valores implícitos nas narrativas,
que como uma poderosa órbita, intercepta uma grande parte da dimensão coletiva dos fluxos
da imaginação.
Artistas notáveis como Loie Fuller, Norman Maclaren, Cage, e Cunningham
trabalharam no cinema, na música e na dança, mobilizando forças na direção de fortalecer
outras órbitas. Acredito que esses nomes são alguns exemplos de artistas que operaram para
além, ou prescindindo da dimensão narrativa. Suas obras tocam simultaneamente, ou
sinestésicamente6 outros domínios que também incorporam elementos simbólicos e de
representação, mas que absolutamente, não são regidos por estes.
Gretchen Schiller, artista canadense, denomina seu trabalho como instalações
interativas coreomediadas (choreomediated artistic installations). Tem como motivação
despertar a atenção do público para o estado cinestésico em que cada pessoa se encontra no
momento da interação. Assim, como nos métodos de consciência corporal, a percepção de tal
estado só ocorre através de processos que estimulem diferentes sistemas perceptivos,
lançando mão de interações psicofísicas com feedback ou sistemas de estímulo-resposta.
Trata-se de uma sensibilidade que permanece como pano de fundo na consciência, pois a
dinâmica da vida cotidiana urbana solicita ferozmente que outras qualidades de atenção
6 A palavra sinestesia vem do grego (syn) união +(esthesia) sensação. É tanto uma condição neurológica que
mistura ou relaciona sentidos diferentes, como gosto(paladar) e cor(visão); quanto um termo usado para
descrever uma figura de linguagem.
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permaneçam em alerta. Em seu trabalho de pesquisa, Schiller discute formas com que a arte
interativa baseada em movimento procura introduzir a noção de dança como experiência,
como um processo de despertar do senso cinestésico, em oposição à noção de dança como
espetáculo. Na minha opinião, a noção de dança como experiência, não necessariamente se
opõe ao que gera visualmente. Mas, entendo que neste caso, a colocação se refere à uma
estratégia de Schiller para que seu aspecto cinestésico se torne plenamente evidente.
Na concepção do filósofo português, José Gil, o bailarino é treinado para relacionar a
imagem de seu próprio corpo refletida no espelho em determinada posição, com a sensação
que esta organização imprime em seu corpo. Tal treino possibilita que trabalhe seu corpo no
espaço, navegando simultaneamente interna e externamente, projetando-se no espaço
antecipadamente em relação ao tempo real do movimento, modelando o espaço numa relação
recíproca. Essa relação, que Gil chama de espaço do corpo, origina-se da criação de uma
brecha no espaço/tempo ordinário. É nessa brecha que a dança acontece. Livre de querer
explicar algo, ou representar algo, o espaço do corpo faz surgir a dança como decorrência da
sucessão de tensões, combinações, permutações e surpresas. A dança cria movimentos que
não propõem resposta certa para a pergunta: o que ele está fazendo?
A partir dessas colocações é possível entrever a importância de tais sentidos na criação
de dança, assim como perceber o quanto o meio audiovisual ainda pode ser explorado por
intermédio desses parâmetros. Com esses exemplos procurei traçar um quadro das referências
que estou utilizando e esboçar o campo de investigação que pretendo explorar durante o
mestrado.
A coreografia 2D que vislumbro mistura o plano externo da tela com o plano interno
de cada espectador/participante através de uma espécie de simpatia cinética e por inesperados
diálogos entre imagem e som, falando uma língua própria, sem preocupação em contar
alguma história.
5- Uma vizinhança
Alguns trabalhos do artista norteamericano Marc Lafia parecem compartilhar de um
foco comum à abordagem audiovisual que adotei. Por exemplo, em seu trabalho The Passion
of Joan of Arc, de 2008, que denomina de montagem computacional, selecionou frames do
filme de mesmo nome do diretor Carl Theodor Dreyer, animando-os com um programa que
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lhes imprime uma “assinatura métrica”. O resultado é uma animação cujos frames variam em
duração e modulam o tempo com diferentes acentuações, tanto visuais, quanto sonoras.
Lafia define o papel do cinema, não como um meio para captar a realidade absoluta,
mas como meio de articular a realidade percebida. Sua abordagem com relação à narrativa,
ou enunciados explícitos nos trabalhos originais que reconfigura, é de intervenção, diálogo ou
continuação de um campo. Para isso identifica vetores de imbricamento entre o processo que
utiliza e seus conteúdos sob um olhar ao mesmo tempo estético, político e poético.
Em Ambient Machine, de 1999, por exemplo, Lafia disponibiliza dez pequenos filmes
aos visitantes/usuários, para que sejam manipulados em sua velocidade, tamanho e forma e
encadeados, gerando novos filmes. Uma situação típica de processo criativo do artista,
tornada acessível para o usuário leigo através do sistema que desenhou. Essa é também uma
situação que procuro estabelecer com meus trabalhos.
6- Procedimentos Metodológicos
A metodologia de pesquisa que planejo adotar tem base no processo empírico e seu
encaminhamento. Minha proposta visa iluminar e fundamentar conceitualmente percepções
de um território particular no qual situo meu trabalho como artista, ao mesmo tempo em que
desejo expandir as possibilidades de interlocução e efetiva colaboração no contexto
acadêmico. Pretendo examinar meus trabalhos já realizados e iniciar um novo
desenvolvimento no sentido de reconfigura-los, ou, de realizar desdobramentos
acompanhados de um registro compilando os procedimentos, o conjunto de alternativas e
escolhas tomadas, seguido por uma reflexão contextualizada do processo procurando também
identificar vetores comuns à outras pesquisas e obras no ambiente da arte contemporânea e da
história da arte.
A leitura de métodos de pesquisa em arte de autores como Cecília Almeida Salles e
Sandra Rey se faz necessária como orientação para a condução à uma metodologia definitiva.
Pretendo também abordar o recorte determinado por esse projeto através de entrevistas com
teóricos e artistas que possam trazer reflexões pertinentes referentes a tópicos a serem
levantados na pesquisa. O formato do relatório da pesquisa mais adequado para essa proposta
seria o de um livro de artista em formato virtual na Internet.
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Uma ferramenta conceitual importante nesse processo tem sido a idéia de Auto-
organização. Proveniente da Teoria Geral dos Sistemas, ou Sistêmica (BERTALANFFY,
1968), se propõe a abranger uma perspectiva transdisciplinar entre diferentes ciências
(biologia, matemática, física, astronomia, as ciências humanas como economia, antropologia,
ciências sociais, da informação, as artes e as tecnologias), enfatizando a ordem intrínseca e a
interdependência do mundo em todas as suas manifestações. Assim ocorre auto-organização
em um corpo, um grupo de pessoas, uma obra artística, se considerados como sistemas
complexos que funcionam através da colaboração entre os elementos que os constituem.
Sob certas condições, as várias partes interagem umas com as outras e os
ambientes em volta delas para formar padrões de coordenação dinâmica.
Observe, não existe um "organizador" dentro do sistema ordenando as partes
e dizendo a elas o que fazer para produzir padrões. Nós podemos dizer que a
organização é descentralizada. Em uma escola de peixe, por exemplo,
nenhum peixe individualmente é o diretor executivo que comanda os outros e
diz a eles como e onde nadar. Sistemas auto-organizados são como uma
orquestra sinfônica que toca sem um maestro.
Quando condições externas e internas variam, as muitas partes começam a
cooperar umas com as outras. Então, quando as circunstâncias ultrapassam
um limiar crítico, padrões adaptados de comportamento emergem sem
qualquer instrução. Este é um tipo de transição de fase. Uma forma de
organização se torna instável, e uma nova organização que melhor se encaixa
às circunstâncias emerge. Algumas pessoas se referem a esta auto-
organização como emergência, mas não existe força mística por trás dela. É
somente como as coisas são. Ironicamente, não existe nenhum agente
especializado que contém ou prescreve a ordem que emerge”.(J.A.Kelso,
2003)
Percebo ai um elo entre o processo que se tornou procedimento básico no meu
trabalho e a auto-organização: O vídeo (ou coleções de imagens, movimentos, sonoridades e
objetos) visto quadro à quadro, a seleção de quadros a partir de qualidades estéticas em uma
busca de identificar neles atratores7 capazes de gerar novas configurações diferentes daquelas
que os originaram inicialmente.
Os autores citados nesse item deverão ser revisitados para a elaboração de delimitação
mais precisa entre as relações do conceito de auto-organização e os processo criativos
7Atrator é o estado no qual um sistema dinâmico eventualmente se estabiliza. Um atrator é um conjunto de
valores no decorrer de um processo. Um atrator pode ser um único ponto-fixo, uma coleção de pontos
regularmente visitados, uma alça, uma órbita complexa, ou um número infinito de pontos. Ele não
precisa ser uni ou bidimensional, e pode ter tantas dimensões quanto o número de variáveis que
influenciam o seu sistema.
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inerentes à abordagem dessa pesquisa. Da mesma forma, as disciplinas cursadas no escopo do
programa de mestrado na ECA deverão trazer novas referências e alterar em alguma escala a
seleção de fontes bibliográficas e direcionamento conceitual do projeto.
Outras referencias iniciais a serem investigadas encontram-se nos autores que destaco
a seguir. O trabalho do pesquisador crítico e teórico da literatura e do cinema, Raymond
Bellour, traz um estudo abrangente sobre o aparato audiovisual, em especial, aquele
proveniente do cinema, expandindo-se em novas articulações. Seu livro, Entre-imagens: foto,
cinema e vídeo, de 1997, complementado por material que publicou na Internet, deverá
fornecer algumas referências importantes para a contextualização da proposta e estudo de sua
inserção no universo da arte contemporânea. Ainda, dentro desse mesmo tópico, a pesquisa
deverá incluir a leitura dos autores Lev Manovich, Ismail Xavier, Arlindo Machado, Maria
Dora Mourão e o levantamento e apreciação crítica de trabalhos de artistas como Marc Lafia,
Willian Kentridge e Norman Maclaren, entre outros.
Cito ainda o estudo de autores como Helena Katz, Christine Greiner e José Gil como
fontes de pesquisa em relação à situação da dança no panorama contemporâneo, e o
levantamento de referências do estudioso do movimento Rudolf Von Laban como estrutura de
análise de movimento aplicado, nos trabalhos de autores como Lenira Rengel e Maria
Mommensohn. E, no que se refere à arte contemporânea no panorama atual brasileiro
Ricardo Basbaum e André Parente. Por fim, questões relativas à narrativa devem também ser
abordadas através da pesquisa de fontes ainda a serem melhor definidas, mas que tem como
ponto de partida autores como Tzvetzan Todorov e Roland Barthes.
8- Referências bibliográficas e links
ASHBY, W. R., Uma Introdução à Cibernética, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1970.
BARTHES, R., Análise estrutural da narrativa, São Paulo: Ed.Vozes, 1972.
BASBAUM, R.: de anotações realizadas durante sua defesa de tese de doutorado Você
gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP), na ECA - Escola de
Comunicações e Artes da USP em 2008.
BASBAUM, R., Além da Pureza Visual, Zouk, Porto Alegre, 2007.
BELLOUR, R., Entre-imagens: foto, cinema e vídeo, Papirus Editora, São Paulo, 1997.
BERTALANFFY, L. V. General System Theory. New York: Braziller, 1968.
COFFEEN, D., Film, Play, Power and the Computational, or Byting Celluloid. On Marc
Lafia's and Fang-Yu Lin's The Battle of Algiers. Disponível em:
TATE - INTERMEDIA ART - New Media, Sound and Performance, February, 2006
http://www.tate.org.uk/intermediaart/entry15539.shtm , acessado em março de 2010.
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