cor o  ciÊncia - universidade de lisboa · de um documento. para luís taborda bara-ta,...

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DOAR O COR ] O Â CIÊNCIA O ensino da anatomia pode usar modelos e programas de computador cada vez mais próximos da realidade, mas eles ainda não substituem a investigação em cadáveres humanos. Qualquer pessoa pode contribuir para melhorar a formação dos alunos de Medicina e médicos doando, em vida, o seu corpo para investigação. VERA NOVAIS E NATALIA VIURINHO TEXTO RUI G AUDENGIO FOTOGRAFIA A utilização de órgãos e cadáveres doados tem um papel importante no ensino das ciências da saúde e na investigação médica

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DOAR O COR ] O Â CIÊNCIAO ensino da anatomia pode usar modelos e programas de computador cada vez mais próximosda realidade, mas eles ainda não substituem a investigação em cadáveres humanos. Qualquer

pessoa pode contribuir para melhorar a formação dos alunos de Medicina e médicos doando,

em vida, o seu corpo para investigação.VERA NOVAIS E NATALIA VIURINHO TEXTO RUI GAUDENGIO FOTOGRAFIA

A utilização deórgãos e cadáveresdoados tem umpapel importanteno ensino dasciências da saúdee na investigaçãomédica

A os 44 anos, Verónica Leal decidiu/\ doar o corpo à ciência. "Já anda-/\ va há muitos anos a pensar nisto,/ \ mas deixava para trás", revela a/ \ bancária nascida na África do/ \ Sul ea viver em Portugal desde/ \ 1991. Não tinha nenhum motivo/ \ em particular para não o fazer,/ \ apenas nunca tomou a iniciativa./ \ Quando finalmente se decidiu,em 2011, e pediu algum tempo ao chefe paratratar do assunto, dizendo-lhe que ia doar o

corpo, ele acedeu prontamente. Doou-o por-que diz que é importante para os avanços damedicina e a formação de novos médicos. Por-

que sabe que há falta de corpos nas escolasmédicas.

Foi a escassez de cadáveres nas instituiçõesde ensino e investigação que levou à criaçãoda legislação que ainda hoje vigora. O decreto-lei 274/99 de 22 de Julho estabelece quais os

procedimentos a adoptar, quem pode receberos corpos doados e que os fins são o ensinoe a investigação. "A utilização de cadáverestem um papel insubstituível na didáctica dasciências da saúde", afirma Duarte Nuno Vieira,membro do Conselho Nacional de Ética paraas Ciências da Vida, que esteve directamenteenvolvido na redacção da lei, na altura co-mo director do Instituto de Medicina Legalde Coimbra.

Desde a publicação do decreto-lei, há quase15 anos, o número de doações e de cadáveres

que tem chegado às instituições é cada vezmaior, apesar de não ser ainda suficiente paramuitas delas. Se algumas instituições recebem50 ou 100 intenções de doação por ano, outrashá em que essas intenções não atingem umadezena. Também a quantidade de cadáveres

que efectivamente chega às faculdades é re-duzida, com algumas a receberem cerca de 12

ou menos por ano.É possível dar o corpo às faculdades de me-

dicina ou de ciências da saúde das universi-dades públicas de Lisboa, Porto, Coimbra eCovilhã. O primeiro contacto pode ser presen-cial, por telefone ou correio electrónico. Regrageral, o doador preenche uma declaração de

doação cuja assinatura deve ser reconhecidapelo notário. Depois de completado o pro-cesso, recebe uma carta de agradecimento eum documento com os procedimentos queos familiares ou amigos devem seguir apósa sua morte.

Verónica Leal escolheu a Faculdade de Ciên-cias Médicas da Universidade Nova de Lisboa(FCM-UNL), uma das seis escolas médicas dopaís que recebem doações, segundo o site daSociedade Portuguesa de Anatomia. "Fiz umapesquisa na Internet para saber onde podiafazer [a doação], contactei a faculdade e envia-ram-me uma carta com as indicações. Foi tudomuito rápido, não foram burocráticos."

Apesar da rapidez do processo, os responsá-veis pelas escolas médicas e gabinetes de do-

ação afirmam que doar o corpo à ciência nãoé um acto que se resuma ao preenchimentode um documento. Para Luís Taborda Bara-ta, presidente da Faculdade de Ciências daSaúde da Universidade da Beira Interior (FCS-

UBI), na Covilhã, doar é uma "parceria" que se

estabelece entre o doador e a instituição. "Énecessário que o potencial doador contactea faculdade, venha visitar-nos e entenda umpouco melhor no que consiste doar o corpo,estabelecendo-se uma certa cumplicidade."

Por vezes, os doadores querem ter um con-tacto mais profundo com as faculdades. Teresa

Sousa, funcionária do gabinete de doação daFCM-UNL, está disponível para esclarecer as

dúvidas dos doadores e dos seus familiares, o

que continua a acontecer muitas vezes depoisde finalizado o processo. Enquanto doadora,Verónica Leal gostaria de continuar a recebernotícias da faculdade: "Podiam enviar infor-

mações, para nos manter actualizados sobrea medicina de hoje em dia, sobre a doação ousobre novas leis", sugere, concordando com a

importância da criação de uma ligação entrea faculdade e o doador.

A doação do corpo, como considera o psi-cólogo Carlos Céu e Silva, é muito mais do queum donativo, é um gesto que pode ser encara-do como um desafio existencial, pois "doar éacreditar num futuro que não nos pertence"e que nunca vamos conhecer.

A doação do corpoé considerada umgesto altruísta que,além de beneficiara ciência, trazvantagens paraa sociedade

Varia

da Purificação Babo, do-méstica lisboeta, de 64 anos,pensou muito no assunto an-tes de decidir doar o seu corpoà FCM-UNL. Decidiu-se final-mente quando soube que umaamiga já o tinha feito. A amigaacabou por morrer seis meses

depois. Tal como Verónica Le-al, Maria da Purificação Babo

acredita na importância das doações para o fu-turo da ciência, em particular da medicina.

Por ser uma decisão tão importante tomadaem vida e com repercussões no futuro, CarlosCéu e Silva acredita, assim como os responsá-veis das instituições que recebem as doações,que doar deve ser uma atitude consciente.Privilegiando deste modo uma convicção pes-soal, o Instituto de Ciências Biomédicas AbelSalazar (ICBAS) da Universidade do Porto temcomo política nunca aceitar doações do corponuma primeira entrevista. "As doações têm deser feitas presencialmente. Quando a pessoavem, é-lhe mostrado o museu e o ambiente das

salas de aula. Depois vai para casa pensar, esó numa segunda fase é que aceitamos a doa-

ção", explica António Sousa Pereira, directordo instituto.

Para as instituições que utilizam os cadá-veres no ensino e na investigação, a doação éum gesto de altruísmo e generosidade. "Todoeste processo beneficia a sociedade, é paraisso que existe, não só no sentido da evoluçãoda ciência mas no sentido da preparação demelhores profissionais de saúde, tanto a nível

pré como pós-graduado", considera DiogoPais, responsável pelo Gabinete de Doação eCadáveres da FCM-UNL.

Verónica Leal concorda que o seu gesto éum "dever para com a sociedade e as pessoasque tratam dos outros", acreditando mesmoque a utilização de cadáveres poderá diminuira experimentação em animais, dos quais se

assume uma defensora.Embora algumas escolas comecem a op-

tar por modelos anatómicos e programasde computador, outras há que consideramque a formação não tem o mesmo valor nemos alunos ficarão tão bem preparados sem ocontacto com os corpos. "Há vários estudos,sobretudo americanos e alguns ingleses, quedemonstram que a falta de contacto dos alu-nos de medicina com a dissecção do corpohumano se saldou numa baixa da formação",afirma António Gonçalves Ferreira, directordo Instituto de Anatomia Normal da Facul-dade de Medicina da Universidade de Lisboa(FMUL).

Contudo, nas universidades portuguesasa opinião é divergente. Enquanto para algu-

mas instituições a utilização de cadáveres éfundamental não só na formação inicial demédicos e outros profissionais de saúde mastambém na formação para as várias especia-lidades ou para a melhoria de determinadastécnicas, para a FCS-ÜBI, as 17 intenções de

doação e os dois cadáveres recebidos desdea sua fundação há 14 anos são consideradossuficientes. Nesta faculdade, o ensino da dis-

ciplina de anatomia, conforme explica o seu

presidente, é diferente do da generalidade das

escolas médicas, estando integrada nos dois

primeiros anos de licenciatura e com recursoa modelos.

Já no Departamento de Anatomia da Facul-dade de Medicina da Universidade do Porto(FMUP), o ensino é baseado no estudo de pe-ças anatómicas e não em modelos, afirma asua directora, Dulce Madeira. Por isso, os 12

cadáveres de que a faculdade dispõe actual-mente, embora sejam suficientes para as aulasde licenciatura, são poucos para os cursos de

especialidade: "Os estudos de pós-graduaçãoimplicam diferentes tipos de dissecção, de-

pendendo dos objectivos do curso", diz DulceMadeira.

Um dos argumentos mais usados pelos de-fensores da utilização de cadáveres humanosno ensino é o das diferenças encontradas de

pessoa para pessoa. "Nos modelos, é tudoigual, nada varia, mas no corpo humano háuma variabilidade anatómica significativa",explica Duarte Nuno Vieira, também professorna Universidade de Coimbra e, até há poucotempo, director do Instituto Nacional de Me-dicina Legal. "Os órgãos não têm, como nosdesenhos, sempre aquela cor tão nítida e nãose diferenciam sempre tão facilmente."

A pesar de algumas religiões reco-/\ nhecerem também a importância/\ da doação do corpo, as crenças/ \ religiosas são muitas vezes apon-/ \ tadas como factores impeditivos/ \ dessa doação./ \ É essa também a opinião de Ve-/ \ rónica Leal. "Uma pessoa católica/ \ pensa que, quando morre, vai pa-/ \ ra o céu." Educada num colégiode freiras na África do Sul, diz que o "cinismo"e a "falsidade" a que assistiu nesses tempos afizeram questionar a sua fé. Tornou-se ateia,influenciada pelo ateísmo do pai. Mesmo Ma-ria da Purificação Babo, católica, assume assuas dúvidas: "Não acredito plenamente navida eterna nem nas coisas que a Igreja querfazer acreditar."

Mas Alfredo Teixeira, teólogo e antropólogodo Centro de Estudos de Religiões e Culturada Universidade Católica Portuguesa, consi-dera que o distanciamento das pessoas face

às doações cadavéricas está mais relaciona-do com elas próprias e com a forma comolidam com a morte do que com as religiõesque professam.

"Se não tivesse havido dissecação de cadá-veres e investigação, certamente que a medi-cina não estaria tão avançada como está ho-

je", considera por sua vez Anselmo Borges,padre da Sociedade Missionária Portuguesa e

professor de Filosofia na Faculdade de Letrasda Universidade de Coimbra. Afirmações queevidenciam que a Igreja Católica reconhece a

importância da investigação com cadáveres.O padre católico admite que a ideia de que a

salvação requer a reanimação do corpo possaser um entrave à doação, mas clarifica: "Tra-dicionalmente, pensava-se que a ressurreiçãoimplicava a reanimação do cadáver. Ora, a fé

cristã, quando é bem compreendida, afirma

que a ressurreição dos corpos não é reanima-

ção de nada."Os actos de generosidade são valorizados

pelas religiões- e algumas consideram a do-

ação do corpo para a ciência como um acto

generoso. Por entenderem que poderá vir a

ajudar outras pessoas, os budistas, segundoPaulo Borges, presidente da União BudistaPortuguesa, não se opõem à doação do corpo."Recomendamos que, para que as pessoas te-nham desenvolvimento espiritual, pratiquemo desapego do corpo."

Desde que o objectivo seja salvar vidas,os judeus admitem a doação de órgãos pa-ra transplantes, no entanto, baseando-se no"princípio da proibição de desfigurar cadá-

veres", não autorizam a doação de corpos às

universidades para investigação, esclarece orabino Eliezer Shai di Martino, da comunidadeisraelita de Lisboa.

Também a comunidade muçulmana emLisboa não exclui a possibilidade da doaçãode órgãos para transplantes porque isso iráajudar outras pessoas. Mas a religião islâmica,que privilegia que o enterro ocorra tão depres-sa quanto possível após a morte, demonstramaior renitência quando se trata de doaçõespara ensino e investigação.

O manuseamento do cadáver ou a morte emsi não são assuntos discutidos facilmente portodos os cidadãos. Apesar da convicção comque tomou a decisão, Maria da Purificação Ba-bo teve dificuldade em comunicá-la à família.O marido e os filhos não gostam de falar damorte. Apesar de ser católica, não quer teruma cerimónia fúnebre. "Detesto, e sempredetestei, cerimónias de morte." Tudo o quepede é que no dia em que morrer não hajatristeza. O mais importante para si é sentir-secelebrada em vida. "Agora é que gosto de rece-

ber flores, depois será um desperdício."O psicólogo Carlos Céu e Silva defende que

os rituais da morte podem ajudar a aceitaruma perda, mas afirma que as pessoas estãocada vez menos envolvidas nesses rituais, en-

tregando a tarefa a uma agência funerária quetrata de tudo. "Entregamos a uma instituição,clinicalizamos a situação, tomamos medicaçãopara superar o eventual trauma, e tudo isso

parece ser um substituto de uma estrutura so-cial que acompanhava a experiência da mortee que já não existe", refere Alfredo Teixeira.Para este teólogo, vivemos actualmente emsociedades onde a ritualidade desempenhaum papel cada vez menor e onde é visível umamaior dificuldade em "lidar directamente comessa experiência crítica da morte".

Porque os rituais e as despedidas fazem par-te do processo de luto, a realização de todasas cerimónias está salvaguardada pela lei, in-cluindo a posterior cremação ou enterro. Con-

tudo, algumas famílias não aceitam entregar o

corpo do seu familiar a uma instituição paraque seja utilizado no ensino e investigação.Mesmo que tenha sido essa a vontade do fale-cido. "A família sente-se no direito de reservarpara ela o corpo", explica Carlos Céu e Silva,"mas a família tem de respeitar o desejo dofamiliar", sob o risco de que o seu desejo de

posse se torne um desrespeito e um "acto de

egoísmo".O respeito pela vontade dos indivíduos faz

parte dos valores promovidos pelas religiões."Se a pessoa ofereceu o seu cadáver para in-

vestigação, isso é um acto cristão louvável e afamília deve respeitar essa vontade", defendeo padre católico Anselmo Borges. O mesmoacontece na comunidade hindu de Portugal:"Cabe a cada pessoa decidir [a doação do

corpo], tal como a doação de órgãos", dizum responsável que prefere não ser identi-ficado. "A [nossa] religião não proíbe, nãohá nada escrito em relação a isso, apesar de

não termos conhecimento de alguém que otenha feito."

Se a família não respeitar a vontade do do-ador e não comunicar a morte à instituição a

que foi doado, estará a violar o respeito éticopela vontade manifestado pela pessoa em vi-da, diz Duarte Nuno Vieira. "Nenhum desejose deve sobrepor ao desejo individual, se o

corpo foi doado conscientemente."Embora os filhos de Maria da Purificação

Babo não se tenham mostrado receptivosquando comunicou a doação do seu corpo,ela acredita que respeitarão a sua vontade.Verónica Leal, filha única e solteira, avisoua mãe, mas admite que no último momentoela poderá opor-se. Espera ainda que, quan-do chegar a altura, os amigos saibam comoagir. Como salvaguarda, leva sempre consigouma cópia da declaração de doação, junto docartão com o tipo de sangue. "Espero quenuma ambulância, um dia, saibam o que é

para fazer."Estando dependentes da informação dada

pelas famílias para tomarem conhecimentoque os doadores morreram, os institutos sa-bem que muitas mortes não chegam a ser co-municadas, ou porque as famílias não querementregar os corpos, ou porque nem sequersabem que houve uma doação por parte do fa-lecido. "Temos doações já muito antigas. Pelaidade dos doadores seria razoável pensar quejá não estarão vivos neste momento, mas defacto não chegaram cá", conta Dulce Madeira,cujo departamento recebe agora cerca de 110

intenções de doação por ano, mas que há 14

anos recebia apenas 15.

Para os responsáveis das instituições, criarum litígio com as famílias que vão contra o

desejo do doador está fora de questão, porisso propõem soluções para esta situação.Uma delas passa por incluir as famílias nassessões de esclarecimento. É importante queas famílias percebam por que é que o familiarvai doar o corpo e como devem proceder apósa sua morte. E acreditam que este gesto possaser preponderante no sucesso das doaçõesem Portugal.

A maior parte das instituições prevê que a

declaração de doação tenha a assinatura dodoador reconhecida em notário. "É uma ga-rantia de que o processo está a ser o mais ri-

goroso possível", explica Luís Taborda Baratasobre o procedimento da Universidade da Bei-

ra Interior. No ICBAS, para além do reconhe-cimento da assinatura, exige-se a presença detestemunhas. "Só aceitamos a doação quandoessa vontade é partilhada com a família. São os

familiares as testemunhas que normalmenteacompanham a pessoa na ida ao notário. E são

eles que depois se encarregam de nos comu-nicar que a pessoa morreu", explica AntónioSousa Pereira.

Os estudosrealizados emcadáveres, poroposição ao usode modelos,evidenciama variabilidadeexistente entreindivíduos

66Sõ aceitamos a doação quandoessa vontade é partilhada coma família. E são eles que depois se

encarregam de nos comunicar

que a pessoa morreu", diz AntónioSousa Pereira, director do ICBAS

A lguns dos doadores da FMUP já/\ questionaram o seu Departamen-/\ to de Anatomia sobre a forma le-/ \ gal de garantir que os familiares/ \ entreguem o cadáver. A obrigação/ \ da família é moral e ética, porque/ \ a lei não contempla esta situação./ \ Duarte Nuno Vieira lamenta que/ \ a lei sobre a doação de corpos/ \ para o ensino e a investigaçãonão tivesse criado um meio de salvaguardaro respeito pela decisão do doador, tomadaem consciência e de vontade própria. "De-veria haver um registo desse desejo e desta

manifestação para que, depois de a pessoafalecer, ao registar-se o óbito, imediatamentese detectasse que a pessoa tinha feito aqueladeclaração em vida."

Alguns dos responsáveis pelos gabinetesde doação também concordam com a revisão

desta lacuna na legislação. "É preciso asse-

gurar que esse é um direito do doador e queé um direito que só pode ser revogado pelopróprio", lembra Luís Taborda Barata. "É umdesejo que tem de ser cumprido, assim como

tem de ser cumprido e respeitado o desejo denão ser doador."

A ctualmente, em Portugal, todos/\ os cidadãos são potenciais doado-/\ res, em primeiro lugar de órgãos/ \ para transplantes e depois de ór-/ \ gãos ou do corpo para ensino e/ \ investigação. Por um lado, todos/ \ os interessados em doar o cor-I \ po para o ensino e investigação/ \ devem fazê-lo junto das escolas/ \ médicas. Por outro lado ainda, to-dos os que não desejem ser doadores devemmanifestar essa vontade inscrevendo-se noRegisto Nacional de Não Dadores (Rennda),uma base de dados informatizada acessívelaos hospitais, institutos de medicina legal eescolas médicas.

A existência de uma base de dados de do-adores, semelhante ao Rennda e disponívelpara as escolas médicas, poderia assegurarque a vontade manifestada em vida pelo do-ador era cumprida. "Não é legítimo que umdireito individual, manifestado em vida, natotal posse das suas faculdades, não seja res-

peitado", defende Duarte Nuno Vieira. Por

outro lado, permitiria que os corpos doados

para o ensino e investigação pudessem serdistribuídos por todas as instituições que de-les necessitassem. "Poderia haver vantagem,porque haverá instituições que têm falta eoutras excesso", salienta Luís Taborda Bara-ta. Por exemplo, o professor de anatomia daFaculdade de Medicina da Universidade deCoimbra (FMUC), António Bernardes, afirma

que os oito cadáveres no seu departamentosão "manifestamente insuficientes".

Embora a Sociedade Portuguesa de Ana-tomia e as instituições que recebem doaçõesdisponibilizem informação nos seus sites, nãoexiste nenhuma campanha de sensibilizaçãoa nível nacional. "Cada vez que Paulo Barbo-

sa, o anterior director [do Departamento deAnatomia da FMUP], ia à televisão e tocavano tema, o número de doações aumentava,o que prova que por vezes as pessoas não as

fazem porque não têm conhecimento", refereDulce Madeira, actual directora.

A divulgação através da televisão, com ac-

ções de sensibilização por parte de figuraspúblicas, em que as faculdades explicassemas vantagens do processo, é aliás uma solu-

ção proposta por Verónica Leal. "Se houves-se mais divulgação, se calhar haveria maisdoações."

Os líderes religiosos poderão ter tambémum papel de esclarecimento. "Se a Igreja Ca-tólica aconselhar os cristãos a oferecerem oseu cadáver, e fizer algo no sentido de influen-ciar essa oferta, também é um acto digno de

louvor", incentiva o padre Anselmo Borges.Em Bruxelas, conta o director do ICBAS, as

doações para a Universidade Católica de Lo-vaina eram promovidas por um bispo. "Ac-

tualmente, têm um programa de doação de

corpos extremamente desenvolvido, em quetodos os anos chegam centenas de cadáveresâ faculdade."

A quantidade de doações ou cadáveres

que chega às instituições depende não só da

divulgação mas também da localização geo-gráfica dos institutos. Inicialmente, VerónicaLeal tentou doar o corpo à Universidade de

Coimbra, zona onde viveu entre os nove e os17 anos, mas foi-lhe dito que deveria fazê-lona sua área de residência, em Lisboa, daí aescolha ter recaído na FCM-UNL.

Na realidade, os cidadãos podem doar o cor-

po a qualquer instituição do país, mas esta-rão a facilitar o processo se optarem pela queesteja mais perto da sua área de residência,porque as instituições que recebem os cadá-veres é que são as responsáveis por asseguraro transporte desde o local onde têm lugar as

cerimónias fúnebres (quando são realizadas)até às suas instalações, contratando uma agên-cia funerária. Além disso, é necessário pagartaxas camarárias por cada concelho por ondeo cadáver passa, explica João o'Neill, directordo Departamento de Anatomia da FCM-UNL."Tem de haver uma racionalização, não po-demos assumir o transporte de corpos queestão mais perto de outra faculdade. São cus-tos brutais."

Desta forma, as restrições orçamentaispodem levar as faculdades a rejeitar ou a re-encaminhar as doações. "Já nos aconteceuter pessoas de fora a quem sugerimos, nomomento da doação, que seria mais fácil sefosse para outra instituição. E já nos aconte-ceu conseguirmos orientar um cadáver parauma outra faculdade", revela Dulce Madeira,acrescentando que, no entanto, quase todosos corpos existentes na FMUP foram genero-samente transportados pelos familiares.

Assim as faculdades ficam, muitas vezes,limitadas às doações da sua região, acabandoas que estão localizadas em Lisboa por aceitaras doações do Sul do país, vindas muitas ve-zes de doadores estrangeiros, principalmenteingleses a residir no Algarve.

Na Universidade Nova de Lisboa, as doa-ções têm aumentado nos últimos dez anos.São já 2185 doações registadas, com cercade 50 cadáveres a chegar à faculdade todosos anos. Para Diogo Pais, este constitui umnúmero suficiente para o ensino e a investi-

gação nesta faculdade. Durante muitos anos,foi a única instituição com capacidade parareceber cadáveres em Lisboa porque o Ins-tituto de Anatomia Normal da Faculdade deMedicina da Universidade de Lisboa estavaem obras.

Inaugurado em Maio de 2013, o teatro ana-tómico (local onde se realizam as dissecções)da Faculdade de Medicina da Universidade deLisboa está preparado para voltar a recebercadáveres desde Setembro do ano passado."[Nos últimos anos] encaminhámos [os ca-dáveres], na medida do possível, para a Fa-culdade de Ciências Médicas da UniversidadeNova de Lisboa, outros para Coimbra ou parao Porto", diz António Gonçalves Ferreira.

Agora que as obras na Faculdade de Medi-cina da Universidade de Lisboa estão finali-zadas, António Gonçalves Ferreira pretendecontactar os mais de 300 doadores que têmem base de dados. "Passámos anos a dizer às

pessoas que não podíamos [aceitar doações]porque estavam a decorrer obras. Agora esta-mos a relembrar-lhes que temos todo o inte-

resse em que contactem connosco."Desde que passou a aceitar novamente do-

ações, a FMUL tem recebido uma doaçãopor semana, pelo que o docente estima queno futuro essas intenções se traduzam em12 a 24 cadáveres a chegar por ano ao de-

partamento.

>^— m Curiosamente, temos cada

I^A^ vez mais doações de gentemuito nova, o que é um bom

sinal", assegura Dulce Madeira,directora do Departamentode Anatomia da FMUP

A existência deuma base dedados nacionalpara doadoresdo corpo poderiaser favorável às

instituições querecebem menosdoações

S" N. s institutos ainda não traçaram o' \ perfil do doador, embora concor-dem que a maioria são mulheresidosas, ou de meia-idade. Mas,diz Dulce Madeira, "temos cadavez mais doações de gente muito

nova, o que é um bom sinal. Secalhar as pessoas compreendem

l J melhor a importância."António Bernardes, professor

de anatomia na FMUC, costuma alertar os alu-nos para a importância das doações. "Todosos anos, na primeira aula de anatomia digo aos

meus alunos que há poucos cadáveres paraensino e investigação comparativamente aonúmero de alunos. Não podem criticar que noensino da anatomia se faz pouca dissecção, en-

quanto não tiverem eles próprios oferecido o

corpo para ensino e investigação."Já as motivações que levam alguém a doar

o corpo passam sobretudo pela contribuiçãopara os avanços científicos ou até como umagradecimento por terem sido salvas pela me-dicina. Embora exista quem aponte a criseeconómica e o custo dos funerais como umamotivação, António Sousa Pereira discorda,referindo que as pessoas que doam o corpoao ICBAS são, muitas vezes, do escalão social

médio-superior."Quando doam o seu corpo, pressupõem

que somos guardiões desse respeito. E somos",afirma por sua vez Diogo Pais. "Uma das pre-ocupações que temos desde 1987 é que todosos anos recebemos os alunos do primeiro anono teatro anatómico e fazemos uma apresen-tação sobre o processo de doação, reforçandoa importância do respeito. Ter tanto ou mais

respeito pelos corpos falecidos como têm pe-los vivos, como se fosse um ente querido, uma

pessoa da família."O respeito é mantido não só na utilização do

cadáver mas também na recepção do corpo,garantido que este é "anonimizado". "Assim

que o corpo entra, é feito um registo compu-torizado, o único sítio onde estão as informa-ções compatíveis sobre o corpo: número deidentidade e número convencional que é atri-buído. A partir desse momento, só funcionao número convencional", esclarece AntónioGonçalves Ferreira.

João O'Neill acrescenta: "Os processos estão

guardados em cofre, completamente sigilosos,e todos os actos de investigação ou ensino quesão praticados naquele corpo são anotados e

arquivados em relatório, como previsto na lei."Uma vez concluídos os estudos, o corpo é nor-malmente cremado, porque a decomposiçãodos corpos embalsamados é mais difícil. Mas se

o doador escolher ser enterrado, isso tambémé possível, diz o director do departamento deanatomia da FCM-UNL.

Embora nem Verónica Leal nem Maria daPurificação Babo desejem uma cerimónia fú-nebre na altura da sua morte, a primeira dizrespeitar demasiado a mãe para se opor a umaquestão religiosa que fosse importante paraela. "Se a minha mãe quisesse fazer [uma ce-rimónia fúnebre], eu aceitaria, pelo respeitoque lhe tenho, mas a religião é-me totalmenteindiferente."

Maria da Purificação Babo, por sua vez, dei-xou explícita a sua vontade numa carta queentregou a cada um dos filhos, juntamente comuma cópia da declaração da doação do corpo."Gosto muito de viver e estou muito contentecom a vida. Se o estudo do nosso corpo servir

para descobrir doenças, porque não?" Se tudocorrer como deseja, as cinzas de Maria da Puri-

ficação Babo serão depositadas no local ondenasceu a sua mãe, no Fundão. É um desejopartilhado com os filhos.

• com João Ruela Ribeiro