cooperativismo e electrificação rural – a cooperativa eléctrica do vale d’este

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Jorge Fernandes Alves - Cooperativismo e electrificao rural a Cooperativa Elctrica do Vale dEste. In Populao e Sociedade, n5, 1999, 80 p. Republicado no Boletim Cultural da Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico, 2000, 17, 11-81

UMA HISTRIA DE ELECTRIFICAO RURAL A COOPERATIVA ELCTRICA DO VALE DESTEJorge Fernandes Alves Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Perfeitamente integrados no esprito do cooperativismo, irmanados pela solidariedade e comunidade de interesses, formemos um todo que nos permita elevar ao mximo a obra proveniente do esforo colectivo de todos ns. Cooperativa Elctrica do Vale D'Este Relatrio e contas, 1938.

Embora o problema, pela sua aparente modstia, deixe indiferentes os que se encantam com as coisas que so grandes e impressionam pela prpria grandeza, no resta dvida de que a electricidade, tornada acessvel a maior nmero de populaes rurais, um factor de conforto, de facilidade de vida e de trabalho, um elemento favorvel fixao do trabalhador na terra em que nasceu. J.N. Ferreira Dias Jr. - Linha de Rumo, II, 218

SUMRIO INTRODUO A ELECTRICIDADE A ELECTRICIDADE EM PORTUGAL As primeiras instalaes A proliferao de pequenas centrais A luta pela rede elctrica nacional A polmica das tarifas A lei de electrificao (lei n 2002) A escassez energtica e os planos de fomento O vazio da electrificao rural Nova organizao do sector elctrico A ELECTRIFICAO REGIONAL E LOCAL - alguns aspectos A COOPERATIVA ELCTRICA DO VALE D'ESTE Uma zona rural: o vale do rio Este O cooperativismo CEVE - os incios A consolidao A renovao das concesses Novo ciclo: as tarifas degressivas As dificuldades dos anos 70 Entre o discurso cooperativista e a prtica oficial: o aperto das cooperativas no ps1974 O direito sobrevivncia e ao progresso CONSIDERAES FINAIS Anexos Bibliografia e fontes

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INTRODUO Luz e sombras! Viajemos, num golpe de asa, aos incios do sculo XX, quando a electricidade se propaga como energia de iluminao. Luz para a cidade, que se assume como um claro, ao lado do manto de trevas nos campos que a rodeiam. Se as casas urbanas se iluminam, se as ruas se tornam claras de noite para o trnsito de pessoas e de viaturas e para criar condies de segurana, se aos poucos as montras das lojas de comrcio emergem como quadrculas mgicas com luz prpria que projectam raios para o consumidor, a ruralidade envolvente da urbe continua imersa na escurido, espao frtil de fantasmas e fantasias na inquietude que se segue ao pr-do-sol. O meio urbano, com a electrificao, prolonga o dia, recuperando a luz ao anoitecer, mas o campo mergulha rapidamente no fludo negro e incerto da noite profunda, uma vez que a electricidade demora a chegar e o breu da noite no se quebra com lamparinas de azeite (mais tarde de petrleo), cuja luz bruxuleante apenas cria penumbras propcias meditao e ao movimento suspeito de sombras. Da a fascinao e atraco da cidade, que representa metaforicamente a claridade do progresso, enquanto o campo continua a mediar-se com a realidade atravs de um vu de trevas difcil de rasgar. Na verdade, e numa perspectiva histrica, a electrificao foi inicialmente uma funo urbana, comeando por centrais locais de pequena potncia para alimentar focos urbanos reduzidos, sobretudo em torno de unidades industriais, das quais sobrava energia para casas prximas. S numa segunda fase, a electricidade se generalizou s populaes urbanas, quando surgiram fontes de energia mais poderosas. Finalmente vieram as grandes centrais trmicas ou hidroelctricas, estas situadas j longe das zonas urbanas e exigindo redes de transporte de energia mais complexas, alargando-se os consumos a povoaes dentro de reas mais alargadas. Mas chegar s populaes rurais dispersas, com casas isoladas, exigia esforos financeiros para instalao de rede que no se compatibilizavam com o rendimento derivado de baixos consumos, pelo que as empresas de energia, pautadas pelo lucro, eximiam-se a esse servio. Se as empresas de electricidade s encontravam viabilidade nas zonas urbanas, de grande densidade, logo assegurando grande nmero de consumidores para uma rede elctrica pouco extensa, o campo no estava necessariamente condenado escurido. No faltava quem, nos campos, ansiasse pela luz que chegava pelo via do progresso tcnico. Por isso, foram surgindo aqui e ali, solues para trazer para as zonas rurais a luz que chegava por cabos, de forma ainda bastante estranha para a maioria dos mortais. Se um ou outro empresrio conseguiu criar ou comprar luz para distribuio local, fenmeno frequentemente ancorado em ncleos industriais dispersos pelo campo, houve os que entenderam que a fora colectiva poderia representar essa possibilidade, quando a iniciativa individual no ousava correr o risco de eventuais prejuzos. E, neste esforo de criao de servios comuns em diversos domnios, sem garantia de lucro, distinguiram-se as cooperativas, soluo baseada na crena da entreajuda e no auxlio mtuo, com grande tradio no meio operrio, mas depois com uma aco alargada a vrios domnios, desde o consumo, habitao e agricultura. Essa atitude cooperativa surgiu tambm algures nos campos agrcolas do Vale d'Este, espao continuado de quintas e quintais, sulcado pelo fio de gua do rio Este, curso que, vindo dos lados da cidade de Braga, ajuda a separar administrativamente os concelhos de Barcelos e Vila Nova de Famalico. a que, em 18.12.1930, um

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punhado de homens decide criar uma Cooperativa com o objectivo de trazer a luz elctrica para o campo em que viviam - a Cooperativa Elctrica do Vale d'Este. * Os fundadores da Cooperativa Elctrica do Vale d'Este pretenderam, ao dar-lhe vida, servir uma regio, distribuindo luz e fora motriz nossa Terra. Assim se exprimia o Conselho Fiscal da Cooperativa em 1969, no relatrio anual, evocando a aco dos pioneiros que ergueram a Cooperativa em 1931. E o Conselho considerava este desgnio cabalmente cumprido, pois a Cooperativa acompanhava de perto o progresso tcnico neste domnio, procurando levar a todos os cantos da sua rea de concesso os "benefcios da energia elctrica". E sem qualquer objectivo de lucro, no obstante o protesto de um ou outro cooperante, que na altura, face ao Cdigo Comercial, assumia o estatuto de accionista, e que gostaria de receber dividendos das suas aces de valor escasso! "Ou distribumos lucros, e no acompanhamos as necessidades sempre crescentes dos consumidores ou seguimos o caminho de servir cada vez melhor", afirmava, revendo-se na aco do Conselho de Administrao, que remetia sistematicamente os lucros da explorao para a ampliao da rede e a melhoria das condies de fornecimento. Por isso, o Conselho Fiscal insistia, ao apelar aprovao de contas: Esta a razo de ser da Cooperativa. Servir nas melhores condies possveis os consumidores. Este livro procura traar o percurso desta pequena mas paradigmtica redistribuidora de electricidade, agora que, ao chegarmos a 1999, mais trinta anos correram sobre a evocao acima referida, completando-se j a bonita idade de 70 anos. E se, com o correr dos anos, tanta gua passou sob as pontes nos circuitos empresariais da electricidade em Portugal, a Cooperativa continua de p, com sede em Louro, a exercer os objectivos para que foi criada, redistribuindo electricidade a um pequeno ncleo de freguesias dos concelhos de Vila Nova de Famalico e de Barcelos. Seria crvel que, se o seu objectivo fosse outro que no o de servir, ainda subsistisse, quando quase toda a rede de produo e distribuio se dilui numa s empresa nacionalizada, a partir de 1975, depois de mesmo anteriormente se ter feito a apologia da concentrao em grandes unidades? Para compreendermos o que a foi a aco desta Cooperativa (e de outras sua imagem, que todavia no sobreviveram, a maior parte, aos ventos da Histria), vale a pena recordarmos o problema da electrificao rural, tal qual ele se colocava em 1957, passados mais de 25 anos sobre o incio da Cooperativa Elctrica do Vale D'Este. Recorreremos para esse efeito ao "Relatrio sobre Electrificao Rural", da autoria de uma comisso de tcnicos nomeada pelo ministrio da economia e que inclua representantes de vrias direces gerais, dos municpios, da lavoura e das empresas concessionrias. O ministrio, em portaria de 13.3.1956, invocava a escassa produtividade da terra portuguesa, a tendncia para o xodo rural ou para a emigrao e apontava a necessidade de criar melhores condies de vida e da criao de novos meios de trabalho para fixar s populaes s suas terras de origem, para cujas finalidades a energia elctrica poderia concorrer, numa altura em que vislumbrava a execuo de um vasto plano de produo de energia hidroelctrica e o fomento da sua distribuio. E pedia um relatrio (no prazo de 180 dias) com solues para o problema, uma vez que o carcter disperso do povoamento rural implicaria um esforo do Estado para concesso de facilidades, compra de material, tarifas de fomento, etc.

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No seu relatrio, datado de Abril de 1957, a comisso comeava por distinguir dois problemas distintos: o da electrificao das povoaes e o da electrificao das exploraes agrcolas. E, embora perorando sobre as conexes da electricidade junto das exploraes agrcolas no que se referia s exigncias de produtividade, a comisso retirava as seguintes concluses: "feliz ou infelizmente, estamos ainda longssimo desta fase do desenvolvimento agrcola, e portanto das aplicaes correlativas da energia elctrica"; o problema vivido no era o da falta de mo-de-obra que a energia ajudaria a colmatar, mas sim a sua "fartura"; nas situaes pontuais em que a fora motriz era mesmo indispensvel, os "motores de combusto interna" surgiam como soluo, quer sob a forma de motores fixos ou transportveis, quer "sob a forma de tractores acumulando com outros os trabalhos correia", os quais "ocupam posies donde a electricidade s os desalojar a longo prazo, e onde prometem oferecer-lhe permanentemente concorrncia". O abastecimento de energia s exploraes agrcolas no seria, pois, seno uma aco de longo prazo, depois de se habituarem as populaes electricidade, pelo que o problema era s um, o da electrificao rural com "uma distribuio suficientemente densa". Portugal comeava a discutir, por esta altura, aquilo que na Europa tinha sido uma discusso de entre as guerras: a electrificao rural. Para cobrir as reas rurais com a electrificao, os pases estrangeiros pioneiros nesses servios recorreram a subvenes estatais ou emprstimos a taxas reduzidas, a taxas a pagar pelos consumidores sobre a venda de energia, a contribuies em capital ou anuidades no custo das instalaes a pagar pelos consumidores rurais ou ao financiamento estatal. Ora, se Portugal no fugiu ao quadro geral de crescimento da electrificao acima enunciado, a verdade que nos finais dos anos 50 estava longe de cumprir a electrificao. Existiam ainda centros populacionais importantes que nem sequer tinham ligao rede nacional e a rede de alta-tenso ainda no cobria o Pas, muitas freguesias rurais (cerca de 2000) no tinham qualquer tipo de abastecimento, ou seja, Portugal encontrava-se ainda, nas palavras da comisso, numa "fase incipiente de electrificao". Havia at localidades fronteirias que eram alimentadas directamente por Espanha (Melgao, Mono, Valena, Freixo-de-Espada--Cinta). E a rede de alta tenso comeava apenas a chegar a cidades como Vila Real ou Bragana, Beja ou Faro, mostrando as lacunas da "grande distribuio" que s ocorria na faixa litoral que unia Braga a Setbal. Os problemas multiplicavam-se nas distribuies em baixa tenso. Em grande parte, as cmaras optavam por assumir a electrificao da sede concelhia, entregando a correspondente s freguesias rurais a pequenas empresas, que se debatiam com nmeros de consumidores reduzidos (algumas no atingiam a centena). A eventual instalao de electricidade domstica nestas condies ficava relativamente cara aos consumidores. A comisso calculava que, nas reas abrangidas pela rede instalada, s uma mdia de 22% das casas (com variaes entre 14 a 50%) recorria electrificao, avanando a explicao dos custos elevados da instalao (incluindo aluguer do contador e manuteno de lmpadas e fusveis) como a grande dificuldade, uma vez que a corrente em si mesma representava um custo mais barato do que as outras solues energticas (lenha includa). Perante esta situao, interrogava-se a comisso, como levar aos interiores domsticos a comodidade, o conforto, a higiene e a limpeza que a electricidade proporciona e o sentimento de igualdade social e de dignificao humana que a electrificao faz sentir? E dava a resposta, porventura inesperada: " indispensvel que se promova por outros meios um aumento substancial do poder de compra e portanto do nvel de vida das populaes rurais". Pagar mais ao trabalhador do campo, compensar melhor a produo agrcola e desurbanizar quanto possvel a indstria, eram os alvitres que a

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comisso deixava ali mesmo. Ou seja, electrificar deveria ser um meio de acompanhamento de outras medidas de desenvolvimento, doutro modo seria "colocar postes e estender linhas de cobre pelo Pas", para atingir percentagens muito baixas de electrificao, revelando a comisso claras preocupaes com a rendibilidade dos investimentos necessrios. Em suma, a comisso considerava que a electrificao rural no seria uma operao rentvel, carecia por isso do auxlio do Estado, ao mesmo tempo que defendia a concentrao da rede distribuidora, dada a m rendibilidade das pequenas redes. Este quadro nacional, que para muitas zonas do Pas se prolongou para l de 1974, s superado quando, depois da nacionalizao da rede, a electrificao foi considerada um servio social urgente, no se adequa ao ncleo de freguesias do Vale do rio Este, servidas pela Cooperativa Elctrica ao longo de sete dcadas. Criada por escritura pblica de 18 de Dezembro de 1930, numa terra ento muito marcada pela agricultura de minifndio, a Cooperativa rapidamente lanou mos obra e, apesar das muitas dificuldades iniciais, antecipou localmente a criao de condies para o crescimento com desenvolvimento que a energia elctrica propicia. Sabe-se a importncia da antecipao nos processos de desenvolvimento, ao permitir que a electrificao no tivesse apenas uma dimenso domstica, mas tambm empresarial, quer nas actividades agrcolas que puderam dispor de energia para trabalhos de rega, para exploraes pecurias e outras, quer para o surgimento de actividades industriais que ali vieram instalar-se ou ultrapassaram a fase de manufactura incipiente. O Vale d'Este um exemplo destas vantagens da electrificao relativamente anterior de outras reas circunvizinhas pelo imagem de crescimento que passou a apresentar depois dos anos 30. Hoje a Cooperativa Elctrica do Vale D'Este considerada a mais antiga cooperativa de distribuio elctrica em todo o mundo. , por essa razo, um elemento valioso do nosso patrimnio histrico, cultural e social, tanto mais que estamos num pas em que o movimento cooperativo, to forte nos pases desenvolvidos do norte europeu, no apresenta grandes motivos de euforia, embora haja toda uma histria do cooperativismo portugus a desenvolver, para evidenciar um dos mais puros movimentos de mutualismo, afastados os preconceitos que conotavam as cooperativas exclusivamente com o socialismo, esquecendo o seu papel de catalisador do bem-estar colectivo. Mas, mais do que isso, a Cooperativa Elctrica do Vale D'Este uma organizao viva, actuante, progressiva no cumprimento dos seus objectivos de sempre e olha a histria como um percurso de dificuldades vencidas que lhe conferem o sentimento do dever cumprido e lhe do alento para continuar fiel aos seus princpios fundadores. Nas pginas que se seguem, procura-se narrar esse percurso de luta pela electrificao rural desenvolvido pela Cooperativa Elctrica do Vale D'Este, integrando-o no quadro mais amplo da electrificao e suas vicissitudes em Portugal. Para a concretizao deste trabalho, o autor tem de reconhecer o papel inicial do eng Lus Machado Macedo e de Monsenhor Cnego Joaquim Fernandes, elementos dos corpos sociais da Cooperativa, bem como enderear um agradecimento particular ao gerente sr. lvaro Ribeiro, memria-viva da Cooperativa ao cabo de 50 anos de trabalho na organizao, pela disponibilidade para informar, documentar e aturar as impertinncias do investigador, contribuies que foram decisivas para a produo deste exerccio historiogrfico de contextualizao e de compreenso de um fenmeno local de electrificao que se desenvolve desde a dcada de 1930.

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A ELECTRICIDADE

Cerca de 100 anos depois de Galvani ter observado um fenmeno estranho que fazia convulsionar os msculos de uma r dissecada em contacto com metal (1785) e de Volta o explicar como um fenmeno de conduo elctrica, da partindo para o primeiro gerador ou pilha (em 1800), a electricidade atingiu finalmente a sua idade madura. Um sculo de experincias e de realizaes no domnio da Fsica, que tambm um tempo de desprezos e incompreenses para com os pioneiros da electricidade, de que hoje todos usufruem numa participao quotidiana impossvel de quantificar. Por isso, h precisamente cem anos atrs, a Revista de Obras Pblicas e Minas, rgo da Associao dos Engenheiros Civis Portugueses, podia j evocar o "cortejo triunfal do sculo" que findava, colocando em lugar de destaque a electricidade no domnio das tecnologias, porque operava maravilhas nas comunicaes e na iluminao. Na telegrafia, nos transportes (tramway, metro), a electricidade andou depressa, mas na iluminao o processo foi mais lento. As experincias do "ovo elctrico" (arco voltaico), em Paris (1813), por Humphry Davy no tiveram continuidade imediata no sentido da superao das dificuldades prticas de produzir luz abundante e barata, remetendo-se a electricidade a um "fenmeno de laboratrio" donde parecia no querer sair. Durante muito tempo, as experincias com a luz elctrica multiplicaram-se, mas limitavam-se a "exibies espectaculosas em exemplos isolados, efmeros, s vezes to somente para abrilhantar uma festa pblica" (ROPM, tomo XXXI, de 1900). Assinale-se a iluminao com arcos voltaicos da cidadela de Cascais, em 1878, para celebrar o aniversrio do prncipe real, a que se seguiram outros episdios, no Chiado, depois em Coimbra (Mariano, 1993: 99) A utilizao aplicada da electricidade, a partir da utilizao de pilhas secas, ocorreu inicialmente na telegrafia, na sequncia dos trabalhos de Ampre, e depois por via do cdigo de Morse e do seu telgrafo electromagntico registado em 1837. E, sobretudo, pela sua imediata utilizao nas linhas de combio, abrindo a primeira rede deste tipo precisamente em 1837 em Inglaterra, tornando-se o telgrafo elctrico um elemento precioso para articular a informao rpida na circulao ferroviria. No entanto, Morse s conseguiu estabelecer a primeira linha de telgrafo elctrico nos Estados Unidos em 1844 (Washington-Baltimore, numa distncia de 64 Kms), mas nas duas dcadas seguintes o progresso foi espantoso, tornando-se o telgrafo um elemento fundamental de comunicao, quer para a imprensa ento tambm em exploso, quer para efeitos comerciais. Em 1851, depois de vrias tentativas, o telgrafo j unia os dois lados do canal da Mancha, mostrando as suas potencialidades submarinas, numa rede que se amplia na dcada de 50, e em 1858 j ligava os Estados Unidos Inglaterra (Alves e Vilela, 1995). O novo salto qualitativo chegou com o dnamo de Gramme, em 1872, gerando uma corrente contnua transmissvel, um marco histrico, enquanto contributo decisivo para o barateamento da energia, h muito procurado, conferindo energia elctrica um futuro industrial (o princpio do dnamo, fora definido em 1831, por Faraday). Estes dnamos foram utilizados para iluminao de edifcios, e o alemo Siemens especializou-se no seu fabrico e aperfeioamento, fazendo surgir na dcada de 80 os geradores. Mas, nas expressivas palavras da publicao dos Engenheiros acima referida, faltava "multiplicar a luz, dividindo-a, fraccionando-a, levando-a at ao domiclio,

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vantagem praticamente vedada ao arco voltaico". Surge, ento, a lmpada de incandescncia com filamento de carvo, por inveno de Edison (1880), que cria tambm o sistema de iluminao com lmpadas em paralelo e outros elementos fundamentais (fios para instalao domstica, cabos subterrneos, contadores para o consumo), executando a "combinao de processos elctricos num amplo sistema de produo e de distribuio de electricidade". Em 1881, estabelece a primeira central elctrica a vapor, em Nova Iorque, que lhe permitiu avanar com a primeira rede de distribuio. O passo seguinte era o de dar dimenso tcnica e econmica electricidade. Deste ponto de vista, o tramway elctrico surgiu como a primeira grande aplicao. Apresentado em 1881 por Siemens, s ganhou dimenso comercial em 1888, com Sprague, na cidade de Richmond (Estados Unidos), operando uma autntica revoluo nos transportes ao substituir a traco animal. Seguiu-se a utilizao fabril da electricidade, com os dnamos e os geradores a serem aplicados s mquinas. Mas, por essa altura, cada sistema montado utilizava directamente um gerador prprio. S em 1891 se fez transporte de energia, em Frankfurt, a 160 km, com uma voltagem de 25000 volt, com poucas perdas, numa experincia que decorreu durante a Exposio Internacional de Electricidade ali realizada, de que ter havido naturalmente ensaios anteriores. E, em 1897, estabeleceu-se nos Alpes o primeiro transporte monofsico a 11000 volt, demonstrando a possibilidade de transportar economicamente a energia a longas distncias com sistemas de corrente alterna e transformadores, tornando possvel criar grandes centrais e servir muitos consumidores (Caron, 1978: 85-89). Assim, se em 1881, por ocasio da I Exposio Internacional da Electricidade em Paris, foram apresentados publicamente a lmpada de incandescncia e o tramway elctrico, em 1891, ou seja dez anos depois, provava-se a transportabilidade da energia a longa distncia, sem perdas deseconmicas. Pelo meio, ficam mltiplas experincias, debates, congressos, exposies, num processo criativo construdo sobre cooperaes e rivalidades, sobre interesses cientficos e interesses econmicos, na medida em que se percebia estar em jogo uma riqueza fundamental ao futuro da humanidade. As duas dcadas finais do sculo XIX so naturalmente marcadas pela acelerao na industrializao da electricidade nos principais pases, desde a fabricao dos elementos necessrios instalao de centrais e de criao de redes elctricas, bem como ao desenvolvimento de outras operaes dependentes da electricidade, como o cinema e os raios X, numa sucesso infindvel de aplicaes, na medida em que praticamente nada se faz at hoje sem electricidade. Foi uma etapa de progresso brilhante no campo da cincia e da engenharia, da aliana entre a cincia e a tcnica, entre o saber e o fazer, na capacidade de transformao do mundo, buscando realizaes inovadoras para utilidades concretas, portadoras de bem-estar e de criao de condies para a criao colectiva de riqueza. No est hoje ao alcance de todos reconhecer a importncia determinante da energia e da luz elctrica, porque muitos de ns nunca soubemos viver sem ela, nascidos j sob o signo da "electrodependncia", na feliz expresso de Mrio Mariano, que, com a sua excelente Histria da Electricidade, contribuiu recentemente para ensinar de uma forma aliciante o maravilhoso percurso da electricidade em geral e das principais linhas de fora da sua implantao em Portugal. Um contributo pedaggico fundamental, porque, como diz este autor, [...] apesar de o seu "produto" mais vulgarizado ser precisamente a "luz" elctrica, a verdade que a electricidade aparece ainda aos olhos do pblico em aparente obscuridade. , por um lado, a complexidade do sistema que participa dos fenmenos desencadeados pelo acto to

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simples de "acender" uma lmpada; e, por outro lado, a natureza "discreta" desta forma de energia, que circula nos fios condutores sem rudo e sem vibraes, e que durante milnios se ocultou no mistrio da sua origem (Mariano,12).

A ELECTRICIDADE EM PORTUGAL

Antes da electricidade, veio o gs de iluminao, j como produto industrial, alimentado por uma rede canalizada, fornecida pelas "fbricas do gaz". Produzido por destilao da hulha, veio substituir as iluminaes de azeite nas cidades oitocentistas, de escassa luminosidade, mas necessrias para dissipar as trevas das ruas urbanas cada vez mais "perigosas" medida que a indstria atraa dos campos candidatos ao operariado e s crises econmicas e se multiplicava a vadiagem. O gs de iluminao foi um progresso assinalvel, "cinco vezes superior chama do azeite" (Mariano:51). As primeiras instalaes Mas a electricidade emergente era de tal forma superior em todos os domnios, que foram muitas vezes as companhias de gs, que tinham contratos de exclusivo de iluminao pblica, quem se apressou a evoluir para a energia elctrica e a divulgar a sua utilizao, sob pena de soobrarem na vaga qualitativa que a energia elctrica representava. Foi o que aconteceu em Lisboa, com o contrato de concesso de 1887 entre a Cmara e a Companhia Gs de Lisboa, atravs do qual se unem as concesses de gs e electricidade numa nica concesso, que propicia a posterior fuso das duas companhias, surgindo as Companhias Reunidas Gs e Electricidade (1892). E a primeira instalao de servio pblico de electricidade ocorre com o posto da Avenida, servindo arcos voltaicos nos Restauradores e Avenida da Liberdade, em 1889, "ano zero da electrificao do Pas", segundo Mrio Mariano. Depois, outras experincias episdicas e "prematuras" surgiram como a iluminao de Braga, em 1893, atravs da Sociedade de Electricidade do Norte de Portugal, ou a electrificao de Vila Real, contratada com a Empresa de Luz Elctrica, em 1894, a qual tambm operava no Porto, nas traseiras do Ateneu Comercial (Mariano, 100101), o local em que, perante a "central que resfolgava", Ezequiel de Campos confessa ter adquirido, ainda jovem estudante, o sonho de vir a ser engenheiro (Campos, 1945). E vale a pena ainda determo-nos um pouco em Emlio Biel, um fotgrafo clebre, que foi tambm um empresrio da electricidade, colaborando com algumas das empresas acima citadas e apostando na publicidade para dar a conhecer a expanso do seu negcio em Portugal, fazendo publicar anncios n' O Comrcio do Porto Ilustrado, a partir de 1892, com listas das instalaes elctricas realizadas. Biel era representante em Portugal da Schuckert & C^, de Nuremberga. Os seus anncios do-nos uma ideia de que como penetrava a electricidade em Portugal, particularmente no Norte, atravs da sua venda de dnamos, motores elctricos, de lmpadas Siemens & Edison e arcos voltaicos. Mas repare-se que fez instalaes em Portalegre e Fafe ou em chalets no Estoril, cobrindo uma rea alargada. Na falta de centrais de produo, a electrificao passava sempre pela instalao de um dnamo prprio, o que explica que quase s estivesse ao alcance de fbricas importantes. Veja-se a lista apresentada em 1895.

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Quadro I - Emilio Biel - Instalaes elctricas efectuadas at 1895Instalaes Nome Indstria Morada Dnamos N Fora em lmpadas de 16 v 1 45 1 45 1 105 1 1 1 1 2 560 250 34 75 75 Lmpadas montadas Incandescnci Arco a voltaico 10-50 v. 1000-2500 v 40 40 40 56 100

H. Andersen H. Andersen C Tabacos Portugal C Tabacos Portugal C Geral Fsforos Abr. Kimpel

de de de

Tanoaria Moagem F Tabacos Lealdade F Tabacos Portuense Fsforos Niquelagem galvanoplastia Niquelagem galvanoplastia Caminho de Ferro e e

VN Gaia VN Gaia Porto Porto Lordelo Porto Porto S. ApolniaLisboa E. Entronca mento Porto Porto Porto Porto VN Gaia Portalegre Fafe Porto Porto Porto Porto Porto Porto Fafe Porto Porto Vila Real Monte Estoril Porto Porto

Custdio Cardoso Pereira & C C C. Ferro Portugueses C C. Portugueses Ferro

Caminho de Ferro

2

450

90

12

Emilio Biel & C Formigal Irmos Fonsecas Emilio Biel Silva Cunha & C F lanifcios de Portalegre F Fiao e Tecidos de Fafe J. Ferreira C Fabril Douro Emp. De Monchique Azevedo Meireles, Irmos C Moagens Harmonia C F. Salgueiros Jos Florncio Soares Andrade Villares Irmos C da Luz Elctrica Emp. De Luz Elctrica C Monte Estoril Baa & Genro C Manufactura de Artefactos de Malha C Fiao Portuense C Fabril do Cvado Associao Comercial do Porto

Fotografia e fototipia Moagem Moagem Litografia e habitao Destilao Lanifcios Txtil Carpintaria Estearina Serrao Lanifcios Moagem Txtil Txtil Moagem, massas, bolachas. Luz Elctrica Iluminao pblica e particular 14 chalets Txtil Malhas

2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 3

560 75 75 30 45 110 300

180 76 60 12 34 105 340

14 2 2

2

75 110 150 110 700 250 75 75 2100

89 149 85 550 238 52 2 2

800 120

16 6

1 1

225 100

95 37

10

Fiao Papel Bolsa

Porto Rues Porto

1 1 1

450 100 300

300 100 40

2

24

Lembra Ezequiel de Campos, um nome incontornvel no militantismo pela electrificao nacional, que foram os estrangeiros a instalar fbricas de gs e as

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primeiras centrais elctricas a vapor em Lisboa e Porto. Depois alguns municpios urbanos seguiram estes exemplos, criando tambm fbricas de gs e centrais elctricas. E, aos poucos, a indstria foi adquirindo geradoras elctricas, substituindo as complexas transmisses por correias para aproveitamento da energia a vapor, por motores individuais. A traco elctrica nos transportes urbanos foi tambm responsvel pela divulgao do poder mgico da electricidade, cabendo a primazia nacional Companhia Carris de Ferro do Porto que, a partir da sua central trmica da Arrbida (em 1915, substituda pela de Massarelos), produziu energia para os elctricos que comearam a rodar na Cidade em 1895. Pouco depois, era a central trmica de Santos (1901), em Lisboa, a fazer o mesmo papel. Depois, para abastecimento pblico, criou-se no Porto a Central do Ouro, em 1908, pela antiga Companhia do Gs do Porto, que fornecia a Cidade, paralelamente a aco idntica da Sociedade de Energia Elctrica, ambas municipalizadas em 1917, para darem origem aos Servios Municipalizados de Electricidade. A primeira dcada do sculo XX , assim, marcada pela instalao de pequenas centrais trmicas, pelas concesses do aproveitamento de quedas de gua e por concesses de servios de iluminao elctrica em vrias cidades atribudas normalmente a empresas industriais que j tinham centrais prprias. Pontualmente, a produo de electricidade torna-se objectivo de fbricas com aproveitamentos hidrulicos: em Famalico, foi exemplo disso a Empresa Txtil Elctrica, de uma sociedade onde pontificava Narciso Ferreira, criada em 1905 com o objectivo expresso de "explorao da indstria de fiao e tecelagem de algodo e de electricidade, e quaisquer outros ramos inerentes". Esta iniciativa teve depois continuidade com a aquisio da central do Varosa, da Companhia Hidro-Elctrica do Varosa, concessionada em 1907 e construda para iluminao da Rgua e de Lamego, vindo a ser transformada, desde 1918, pelo grupo empresarial de Narciso Ferreira, que inaugura, em 1925, a Central do Chocalho e obtm a concesso de uma linha para o Porto. Foi depois construda a central trmica de reserva em Canios, junto ao Ave, criando-se uma rede elctrica mais ampla que, alimentando as fbricas de Riba d'Ave, chega a Guimares, Vila Real e Porto, Barcelos. Paralelamente, foi criada, por iniciativa de Delfim Ferreira, a Hidroelctrica do Ermal, concebida para um sistema de 5 centrais no rio Ave, projecto sustentado atravs da Companhia Hidro-Elctrica de Portugal. Da fuso das duas, pertencentes em grande parte mesma famlia, emergiu, em 1943, a CHENOP - Companhia Hidroelctrica do Norte de Portugal, por influncia do ento ministro Duarte Pacheco que ter feito ver a Delfim Ferreira a importncia de ganhar dimenso empresarial. (Alves, 1997). Em Vila Nova de Famalico, foi A Boa Reguladora, fbrica de relgios mas tambm de serrao, que tendo adaptado a sua mquina de vapor produo elctrica obteve a concesso para a iluminao da Vila, em 1910. A energia hidroelctrica era uma opo pouco aproveitada, face aos elevados capitais de instalao e inexistncia de rede elctrica para a sua distribuio que teria de ocorrer sempre a distncias considerveis. Se houve vrias concesses na primeira dcada do sculo XX, levaram vrios anos a concretizar-se. A primeira central hidroelctrica a funcionar em Portugal foi a da Senhora do Desterro, da Empresa Hidroelctrica da Serra da Estrela, inaugurada em 1909. A do Varosa, tambm concedida em 1907, arrancou tambm em 1909. Mas a de Lindoso, determinante para a regio Norte, apesar de concessionada em 1907, s comeou a funcionar em 1922, fornecendo energia para Porto, Gaia e Braga, permitindo a electrificao de inmeras fbricas e fornecendo os servios municipalizados de gs e electricidade do Porto, uma vez que a Central do Ouro j estava obsoleta e os Servios

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Municipalizados optaram por se tornarem apenas distribuidores, abriram concurso pblico, em 1920, vindo o fornecimento a ser entregue Unio Elctrica Portuguesa, distribuidora da energia do Lindoso. A proliferao de pequenas centrais Se a produo/distribuio de energia avanava lentamente, os industriais no podiam esperar e procuravam a auto-produo. Na segunda e terceira dcada do sculo XX, multiplicam-se as centrais de auto-produo, quer trmicas, quer hidroelctricas. A zona industrial do Vale do Ave, nos concelhos de Famalico, Guimares e Santo Tirso tornou-se exemplar, com mltiplas pequenas centrais, animadas pelos fabricantes locais, que, s vezes, forneciam para o exterior, ajudando a iluminar as localidades em que se inseriam. Assim, surgem cerca de duas dezenas de pequenas centrais quer em afluentes (Vizela, Pelhe), quer no prprio Ave, numa adaptao e ampliao dos pequenos audes de antigamente, muitos deles j antes ampliados para a instalao de turbinas hidrulicas. Esta situao no agradava aos engenheiros da gerao nova, entusiastas do progresso tcnico e com urgncia no cumprimento da sua misso, de que exemplo o ento jovem J. N. Ferreira Dias, que escrevia em 1926: "as nossas centrais, ao presente, so apenas uma imagem microscpica de grandes centrais elctricas: duas pequenas centrais na Serra da Estrela, fornecendo energia para a fbrica de carbureto de Nelas e para a mina da Urgeiria; ao norte, a central de Varosa, prximo da Rgua, alimentando a margem do Douro at ao Porto; mais para noroeste, entre Porto e Braga, uma srie de pequenas centrais de interesse puramente local e, finalmente, no Alto Minho a central do Lindoso, feudo espanhol em terra portuguesa" (Dias, 2 vol, 1998:5). E o desalento comeava com Lindoso, que dois anos antes visitara. De um central preparada para receber quatro grupos turbo-alternadores de 8000 KVA cada um, apenas tinha dois montados, a trabalharem a 50%. E porqu? Porque no havia consumo, o Porto, na sua "petulncia industrial" no consumia mais de 15000 cavalos, da que a energia vendida por Lindoso ficasse a preo superior de Lisboa, apesar de esta ser produzida a carvo ingls nas Companhias Reunidas. Era ento preciso construir um caminho em paralelo: produzir energia e fbricas que a consumissem, duplo objectivo que constituir, na verdade, o grande desgnio poltico de Ferreira Dias. Em suma, no bastava instalar pequenas ou grandes centrais que rapidamente poderiam falir ou vegetar apenas. Era preciso criar o mercado da electricidade, provocar a necessidade de um consumo de que as pessoas ainda tinham medo, de que no conheciam as virtualidades e para o qual no dispunham de utensilagem domstica para a aplicar, era preciso criar de forma sustentada a produo e o consumo, conferindo racionalidade ao sistema e a indstria seria o elemento motor da dinmica da electricidade, da mesma forma que esta seria um catalizador industrial. Quando se chegou a 1928 eram j relativamente numerosas as centrais, mas todas de pequena potncia e grande parte delas para servio particular. Quadro II : Portugal - Centrais Elctricas, 1928 Centrais N de centrais Potncia instalada Produo em Kw milhes de kwh Hidrulicas: Servio pblico 42 28110 57,8 Servio particular 27 5524 10,3

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Sub-total 69 Centrais Trmicas: Servio pblico 116 Servio particular 169 Sub-total 285 TOTAL 354 Fonte: Campos, 1949, 367-372.

33634 67189 34899 102088 135722

68,1 103,6 45,2 148,8 216,9

Centrais a mais e produo a menos, dir Ezequiel de Campos. Disperso e falta de organizao, preciso eliminar muitas das unidades de pequena potncia e concentrar a aco em algumas grandes unidades, para produzir energia abundante e barata. A caracterizao geral da situao faz-se em poucas palavras. Durante muito tempo, a produo de energia elctrica em Portugal fazia-se sobretudo custa de carvo ou de outros combustveis estrangeiros. A microproduo e a disperso explicam a carestia da energia (os custos de instalao eram elevados ao triplo do necessrio para os nveis de produo), a insuficincia de produo impedia a instalao de indstrias de base que exigem electricidade em grande quantidade e barata. Eram de capital estrangeiro as centrais mais produtivas, que forneciam as cidades de Lisboa e Porto (as trmicas de Santos e do Tejo, e a de Lindoso), o que dizia muito em tempos de nacionalismo. Produzia-se energia deficiente, isto , sem correspondncia com as reais necessidades e sem garantias de continuidade, pois eram frequentes as quebras e restries no consumo em tempos de estiagem, com graves prejuzos na indstria (Campos, 1949: 367-372). A defesa de uma rede elctrica nacional As linhas devem multiplicar-se, as centrais sucederem-se, dir Ferreira Dias, que produz a mais consequente teoria da electrificao e ao servio da qual e do Estado Novo coloca o seu talento em mltiplos lugares de administrao ligados directa ou indirectamente electrificao (ver biografia por J.M. Brando de Brito, em Dias, 1998). No 1 Congresso Nacional de Engenharia, em 1931, Ferreira Dias expe uma tese sobre a "Rede Elctrica Nacional" que vai envolver geraes. Importa, assim, relevar as suas concluses (ver caixa), para entendermos os avanos e recuos no seu processo de implementao, pois trata-se de um conjunto de reflexes que vo envolver opes polticas de fundo, nomeadamente uma elevada interveno do Estado, contra a qual se levantam interesses privados, num tenso jogo de bastidores tpico dos meandros de aco poltica do Estado Novo. Concluses intermdias e finais de J. N. Ferreira Dias Jr. na comunicao "Rede Elctrica Nacional, ao 1 Congresso Nacional de Engenharia, 1931 [...] 1. Nos centros consumidores de energia em que a necessidade desta um facto e no uma hiptese, a distribuio de electricidade pode ser uma indstria com condies de vida. [...] 2. Nas regies de consumo escasso a distribuio da energia elctrica no uma necessidade mas uma obra de fomento, mais um meio para criar actividade do que uma forma de servir actividades j criadas; um encargo de escassas

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receitas directas, que visa ao aumento da riqueza pblica e que , logicamente, uma funo do Estado. [...] 3. Em Portugal no h a necessidade instante de energia elctrica para alimentar actividades j criadas e ainda no servidas. Aparte Lisboa e Porto, h um mercado dbil, em grande parte quase virgem, com fraqussimas densidades de consumo. A electrificao de Portugal no se destina a servir mercados; destinase a cri-los. [...] 4. A electrificao total do territrio portugus em condies proveitosas no vivel sem a interveno do oramento do Estado. Abandonada iniciativa particular, essa obra seria muito lenta e com tarifas incomportveis para as condies do trabalho portugus. [...] 5. O estabelecimento de uma central no influi na curva do consumo: este que determina aquele. A concorrncia entre redes usada por sistema invivel e antinacional. Impe-se o alargamento das linhas e a sucesso condicionada dos grandes produtores ao ritmo do consumo. [...] 6. A interveno do Estado nos organismos de produo deve limitar-se ao incitamento pela facilidade de crdito, e s quando for preciso; mas sempre se impor queles a obrigao de alimentar sem restries as linhas de fomento. [...] 7. A interveno do Estado na construo e explorao das linhas deve ser activa e unitria, reservando aos organismos locais o papel de distribuidores sob a sua fiscalizao e assistncia. [...] Resumo das concluses: Aceite a utilidade da Rede Elctrica Nacional como obra de fomento, cumpre ao Estado: 1 Construir e explorar as linhas; 2 Incitar e condicionar a construo de centrais; 3 Incitar e condicionar as distribuies locais. Numa primeira fase, a preocupao do Estado no sector elctrico tinha sido claramente de natureza policial, ou seja, visava acautelar problemas de segurana e eventuais problemas de interferncia nas linhas telegrficas, estando essa fiscalizao entregue Administrao Geral dos Correios e Telgrafos, servios que deram, por exemplo, os primeiros pareceres oficiais quando se instalaram as redes para a viao elctrica em Portugal (1895). Na falta de regulamentao nacional, para a passagem de licenas de instalaes recorria-se normalmente ao regulamento alemo para correntes fortes. S em 1912 (30 de Dezembro) se publicou um regulamento com normas para instalaes, taxas, penalidades, responsabilidades por danos, ensaios, tolerncias de medidas. Em 1919, surgiu a chamada Lei das guas, de 10 de Maio, relativa ao aproveitamento de energia hidrulica e, particularmente, da energia elctrica, regulamentando apenas concesses isoladas, sem preocupaes de gesto global. O resultado foi "a existncia de inmeros concessionrios em situao de pequenos

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monoplios, muitos deles sem condies de rendibilidade, o que levar dcadas a corrigir" (Mariano, 113). E, em 20.10.1926, publicou-se atravs do decreto 12559, a Lei dos aproveitamentos hidrulicos, que exprime preocupao em proteger e promover os aproveitamentos j instalados, propiciando a sua expanso, ou a instalao de novos, com o objectivo de restringir a importao de carvo ao mnimo indispensvel, to penalizador que era para a balana comercial, quando havia recursos hidrulicos no aproveitados. O objectivo era, assim, estimular a produo de energia barata, como condio de base para o florescimento econmico, e normalizar o seu processo de produo, transporte e distribuio, pondo fim diversidade de situaes. Esta lei define pela primeira vez o conceito de rede elctrica nacional, " o conjunto das linhas de transporte de energia no Pas que seja objecto de comrcio em espcie", que passam a ser consideradas de utilidade pblica para efeitos de construo e explorao, tornando-se objecto de concesso. A lei contm ainda outras disposies relativas a concesses, limites de tenses e outros aspectos tcnicos, alm de criar um Fundo Especial de Electrificao para apoiar o seu desenvolvimento. Segue-se vria legislao complementar, criando-se em 1927, o Conselho Superior de Electricidade. No ano seguinte, estabelece-se um modelo-tipo de caderno de encargos e novas regras para concesses (Vasconcelos, 1949:389-391). Esta legislao assumiu um efeito estruturante para o sistema elctrico nacional, estabelecendo-se, nomeadamente, a municipalizao para a pequena distribuio em baixa tenso e a privatizao para a produo e grande distribuio (alta e mdia tenso), bem como princpios para a formao de sistemas elctricos de base regional. Neste contexto, sublinhe-se ainda o Convnio Luso-Espanhol de 1927 que estabelece a regras para o aproveitamento do designado Douro Internacional. Ferreira Dias radicava, mais tarde, na lei dos aproveitamentos hidrulicos, o bero da electrificao, apresentando um plano, ainda que vago, de centralizao e de harmonizao, considerando-a como o diploma onde pela primeira vez a questo fora tratado como "problema nacional" e, sobretudo, porque atravs dela se criou a Repartio dos Servios Elctricos (a partir de 1936, Junta de Electrificao Nacional, por sua vez extinta em 1944 e substituda pela Direco Geral dos Servios Elctricos), numa continuidade que transmitiu aos sucessivos funcionrios "o fogo sagrado de um novo evangelho", vertebrando uma poltica de electrificao portuguesa (Ferreira Dias, 1998, 2 vol: 4). No campo do fomento da electrificao por parte do governo da Ditadura Nacional, chega a haver concurso para algumas concesses importantes: a do rio Zzere, com barragem a construir pela zona do Castelo do Bode, entregue Companhia Nacional de Viao e Electricidade em 1930 e anulada em 1937, uma vez que esta Companhia se recusava a iniciar as obras sem estar definida superiormente a rede de transporte de energia, a que o contrato a subordinava em termos futuros, deixando caducar o prazo de construo; a do Cvado-Rabago, concedida Companhia das Quedas de gua do Norte de Portugal, que teve fim idntico; bem como se abriu concurso em 1931 para o primeiro empreendimento no Douro Nacional, tambm sem sucesso. Ou seja, o primeiro flego electrificador da ento Ditadura Nacional soobrou, continuando a multiplicarem-se as pequenas iniciativas de privados, quase sempre assentes em pequenas centrais trmicas e algumas hidroelctricas. E, apesar de, em 1934, no Congresso da Unio Nacional se aprovarem palavras como as que se seguem, a paralisia governamental foi completa durante mais uma dcada, no domnio energtico:

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A eficincia da poltica rural depende em grande parte da electrificao. Por isso cumpre ao Estado promover a produo de electricidade em larga escala, bem como o respectivo transporte, e assegurar, pela promulgao de frmulas prticas, a sua distribuio a todas as freguesias, mas em condies tarifrias que iniludivelmente garantam o nvel de vida do povo e sejam compatveis com trabalhos de rega e enxugo e fomentem as actividades nacionais, o que no seria possvel com os preos actualmente correntes da energia elctrica em Portugal. (cit. in Dirio das Sesses, n 92:534) Reconhecendo esta inaco da Ditadura/Estado Novo, o deputado Melo Machado, em 1944, perante a incapacidade de avanar para os grandes empreendimentos hidroelctricos, sublinhava as culpas da situao poltica nesta questo, apontando que se deixaram "passar nada menos de dezoito anos sem termos resolvido um dos problemas no qual se devia ter fixado o olhar dos governos, e foi assim que viemos de uma guerra outra encontrando-se o Pas quase nas mesmas condies em que a ltima guerra o tinha deixado" (DS. 15.11.1944: 548). Apesar de tudo, desde 1936, com a criao da Junta de Electrificao Nacional, a que presidiu o eng Ferreira Dias, organismo encarregado de propor medidas e diplomas relativos ao sector, que comeou uma aco mais interventiva do Estado. Surgem ento novas regulamentaes de licenas para instalaes elctricas, novo ordenamento burocrtico, atribui-se ao ministro das Obras Pblicas direitos de interferncia nas concesses municipais, o direito de dispensa de concurso pblico em certas concesses, a aprovao prvia das tarifas. A questo da electricidade no podia resumir-se indefinidamente a uma questo administrativa, sobretudo medida que outros pases se iam desenvolvendo a velocidades vertiginosas e Portugal se distanciava, se atrasava, digerindo as polmicas finisseculares sobre a vocao agrcola ou industrial da nao. A polmica das tarifas Um dos aspectos mais discutidos foi a interferncia da Junta de Electrificao Nacional na chamada poltica das tarifas degressivas. Como o prprio Ferreira Dias conta, foi no Congresso da UNIPEDE (Unio Internacional dos Produtores e Distribuidores de Energia Elctrica) de 1934 que se discutiram vrias situaes de tarifas degressivas e se consagrou o princpio destas tarifas que vinham sendo aplicadas na Europa, o que, para Ferreira Dias, foi a "nota mais sensacional" do Congresso. Dado que at ento a Direco dos Servios Elctricos, no campo tarifrio, se limitava a intervir na alta tenso com dois parmetros - utilizao e factor de potncia - uma das primeiras tarefas da Junta de Electrificao vai ser a de tentar implementar as tarifas degressivas na baixa tenso, para ultrapassar o hbito do preo fixo por kwh. Com efeito, o padro ento vigente no tarifrio de baixa tenso era de 2$50/kwh para consumo em iluminao e de 1$50 para outros usos. Com as tarifas degressivas combinavam-se tarifas para diversos tipos de uso (domsticos, industriais, agrcolas, comerciais, publicidade, aquecimento, etc.), com trs escales em cada tipo, isto , o aumento de consumo permitia saltar sucessivamente para preos mais baratos de energia. Eram tarifas que estimulavam o consumo e a generalizao da electricidade a vrios fins, enquanto a tarifa fixa penalizava o consumidor mais ousado. As Companhias Reunidas de Gs e Electricidade foram o primeiro produtor/distribuidor a aplicar este tipo de tarifas em 1937, suspenso depois durante a Guerra, dado o elevado custo que o carvo atingia (a Central Tejo era trmica), o que aconselhava poupana energtica. E, ento, "pelo lado oficial

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aproveitaram-se todos os cadernos de encargos de novas concesses ou simples ajustamentos de tarifas para impor obedincia aos novos princpios", diz-nos o antigo director da Junta de Electrificao Nacional. Sob modalidades diferentes, a ttulo experimental, as tarifas degressivas foram sendo sucessivamente aplicadas em vrios concelhos do Sul, e finalmente, no Porto, em 1939, a que outros se seguiram. Se na maioria dos casos, o salto no consumo no se verificou, dado ter-se implementado em zonas pobres e no haver colaborao interessada dos distribuidores, o contrrio j se passou no Porto. Pelo novo contrato de 1939, a Cmara do Porto obteve fornecimento de energia com uma reduo de 40% para os nveis anteriores, atravs da interferncia da Junta de Electrificao junto das empresas, o que na altura representava uma poupana de cerca de 4000 contos anuais, com a condio da aplicao de um novo quadro de tarifas degressivas, que ampliou enormemente o consumo do Porto (26 vezes, entre 1939 e 1951), sobretudo pelo grande incremento na tarifa domstica: "o preo mdio de venda da energia na rede destes Servios, que andara roda de 1$40 antes de 1939, caiu nesse para 1$15 e veio em lento decrscimo at $56 em 1950". As tarifas degressivas, provado seu efeito no Porto, vieram a espalhar-se por todo o Pas. Levantou-se depois um murmrio sobre as tarifas do Porto porque, entretanto, veio a inflao com a segunda guerra e os Servios Municipalizados no ousaram fazer o devido e regular ajustamento, criandose situaes caricatas de, em certos casos, as companhias fornecedoras terem de vender a energia aos servios portuenses a valor mais baixo do que o seu preo de custo, com aquelas empresas a desforrarem-se sobre os fornecimentos a outros concelhos, de tal forma que se chegou a dizer "em matria de electricidade, o concelho do Porto vive custa dos outros concelhos do Norte", aspecto este que j no tinha a ver com o modelo-padro das tarifas degressivas. Note-se que pela lei 2002 foi criada uma comisso revisora de tarifas, que deveriam ser expressas em moeda corrente, acabando o regime, que vigorava depois da 1 guerra, das tarifas em ouro, soluo encontrada para o elevado surto inflacionrio que ento se vivia. "Esto a espalhar-se pelo Pas as tarifas degressivas da electricidade, umas melhores que outras, mas, enfim, tarifas que permitem aumentar o consumo domstico. Quer dizer que aquele exemplo que houve no Porto e nalgumas terras do Pas, exemplo de aplicao de material electrodomstico em larga escala, comeou por se estender a todo o Pas incluindo Lisboa. Parece portanto que seria oportuno comear a pensar numa indstria a srio de material electrodomstico", dizia Ferreira Dias, em 1952, numa conferncia no IST (Ferreira Dias, 2 vol.,1998: 155), tanto mais que em 1951 se aplicou em Lisboa novo tarifrio neste sentido. Ou seja, foi muito pela adopo das tarifas degressivas que se criou um mercado da energia elctrica em Portugal, semelhana do que aconteceu noutros pases europeus. medida que as populaes percebiam o seu alcance, multiplicavam-se os consumidores, sobretudo os do meio urbanos, aos quais era mais acessvel a oferta de electrodomsticos. Tal tarifrio era polmico para os produtores e distribuidores na medida em que a actividade electrificadora deixava de ser apenas uma mera questo de mercado para ser um fenmeno econmico e poltico de base, um servio pblico controlado, fiscalizado e intervencionado pelo Estado, que mostrava assim o seu desgnio de levar a luz elctrica a toda a gente, porque tambm havia tarifas para pobres, mas sobretudo aos que gastassem mais, favorecendo-os em termos de preo medida que subia o nvel de consumo. Esta soluo s foi gradualmente aplicada, medida que caducavam os contratos e o Estado no autorizava novas concesses sem obedecerem ao novo padro.

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A lei da electrificao (lei n 2002) Nos anos quarenta, a questo da electricidade deixa de ser apenas a fasca de publicistas iluminados que teimosamente insistiam na riqueza da hulha branca portuguesa, mas no eram ouvidos por uma iniciativa privada sem flego nem pelo governo, para entrar em fora, durante a 2 guerra mundial, no campo dos debates e decises polticas, assustando uns, galvanizando outros para a aco. Os prprios indicadores de consumo se tornam um termmetro do nosso atraso econmico. A capitao nacional de 60 kwh contrastava com os 150 de Espanha, os 300 da Europa Central ou o milhar da Sua ou Noruega: perante estes nmeros "faremos uma ideia exacta no s do nosso estado de carncia mas do nosso atraso, porque o consumo de electricidade significa trabalho, riqueza e conforto", sublinhava o ex-ministro desenvolvimentista Rafael Duque na Assembleia Nacional, convocada para sesso extraordinria por urgente necessidade pblica para debater estas questes e as propostas do governo para lhes dar resposta, assinadas por curiosidade ainda por Rafael Duque como ministro da tutela, entretanto agora apenas como deputado no debate (Dirio das Sesses, 10.11.1944). preciso sublinhar que o mrito deste debate se deveu fundamentalmente ao eng Ferreira Dias, chamado ao governo como Subsecretrio do Comrcio e Indstria, persistente e combativo na sua "linha de rumo", e foi despoletado com a apresentao Assembleia Nacional de um documento intitulado "Notas sobre o problema hidroelctrico". Este documento procura ultrapassar o dilema de nao rica versus nao pobre, antes avaliado sobre a existncia ou no de recursos minerais, para mostrar que os jazigos de carvo e ferro j no marcavam a riqueza das naes, a qual assentava sobretudo na racionalidade com que se aproveitava a actividade humana diversificada: "comeou praticamente a era da electricidade, e de tal modo esta forma de energia exerce hoje a sua influncia que at, nas indstrias pesadas e em outras semelhantes, a proximidade de jazigos carbonferos e de minrios de ferro pode ser factor secundrio" (Dirio das Sesses, 29.3.1944: 340). Evidenciada a importncia da energia elctrica, o elemento fundamental passava a ser o custo da unidade energia, com repercusso sobre todos os custos dos produtos consumidos. E, dada a possibilidade de transmisso da energia a longas distncia, criava-se uma enorme elasticidade nas possibilidades de desenvolvimento regional, da os pases progressivos se cobrirem de uma "malha intrincada de cabos e fios", a rede de distribuio elctrica. Ora Portugal dispunha de considerveis potencialidades hidroelctricas, mesmo quando comparado com outros pases europeus, o que contrastava com a escassez da produo de energia em geral e particularmente da hidroelctrica, a qual poderia produzir-se a preos relativamente baixos e, o que era importante, sem necessidade de sada de divisas, enquanto a trmica recorria a combustveis (carvo ou leo) estrangeiro. Escritas, provocadoramente, num modelo interrogativo, as notas levantavam questes cruciais, como a da articulao entre produo e distribuio: Dever o produtor de electricidade distribuir a energia? Ou haver maiores vantagens na separao das empresas que produzem das que distribuem? Qual mais econmico para o Pas: o trabalho de muitas empresas, cada uma a explorar a sua queda de gua, ou um pequeno grupo de quedas de gua, ou ainda a constituio de fortes organismos que tenham a seu cargo, por exemplo, o aproveitamento de bacias hidrogrficas completas e assumam por

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esse motivo o carcter que as aproxima do desempenho de uma funo pblica? Ou ento ainda se pode acrescentar: Deve a produo de energia hidroelctrica estar a cargo do Estado, exactamente como a rede de estradas, os correios e telgrafos e outras actividades fundamentais? As hipteses so, por consequncia, extremas: ou completa liberdade na produo, ou fortes organismos encarregados da explorao integral de bacias hidrogrficas completas ou, pura e simplesmente, a interferncia directa do Estado por intermdio de um organismo autnomo ou semi-autnomo? Ferreira Dias lanava, desta forma, um debate que chega aos dias de hoje, e para o qual enunciava a diversidade de modelos aplicados nos principais pases estrangeiros, da Inglaterra, aos Estados Unidos, ao Canad. E conclua pela necessidade de uma transformao radical do panorama existente: "quanto produo, no aspecto econmico e poltico; quanto ao transporte, no sentido de coordenar todos os sistemas e construir novos; quanto distribuio, no sentido de reduzir ao mnimo a ineficincia agora notada e estabelecer tarifas que permitam o alargamento do seu consumo". Mas antes de tudo era preciso estabelecer uma ordem clara para a corrente elctrica, isto , definir uma rede elctrica, articulando-a no seus trs sistemas : o primrio, formado pelas linhas de alta tenso; o secundrio, que une o primrio aos centros de consumo; e a rede de distribuio local. Ferreira Dias considerava os dois primeiros como a base da rede elctrica, a cujo conhecimento se deveria subordinar a poltica dos aproveitamentos hidroelctricos, na medida em que deve prever o presente e o futuro, ligar os principais centros produtores com os principais centros consumidores, numa ramificao que devia unir os sistemas hidrogrficos com maior potencial de energia e as localidades de maior consumo industrial e domstico. Assim, sendo a rede elctrica uma "espcie de monoplio" a quem competir a sua propriedade e gesto, bem como o seu financiamento? No se julgue que, apesar de se governar em sistema de ditadura institucionalizada, as decises foram tomadas a direito. Vieram apoios e crticas do interior do regime, confrontado ideias polticas e interesses econmicos contraditrios. Os produtores de electricidade, implicitamente visados em todo o debate, tambm expenderam as suas razes, atravs da respectiva seco da Associao Industrial Portuguesa. A sua argumentao baseava-se na ideia de que havia uma potncia disponvel de 44820 kw, ou seja, a correspondente a cerca de 35% da energia total produzida em 1942, que, se aflusse a uma rede comum, permitiria aguentar os acrscimos de consumo durante oito anos, mdia anual dos anos anteriores, isto , para a Associao, os sistemas existentes ainda no se encontravam saturados. Considerava ento o apoio ao governo no aproveitamento hdrico para aumentar a produo de energia, cujas novas instalaes deveriam estar "prontas a entrar em servio quando as actuais atingirem a saturao". Considerava mesmo haver uma boa rede de ligao, por iniciativa anterior das empresas, que se estendia do Lindoso Central da Cachofarra, em Setbal, e que, apesar de algumas paragens no fornecimento, a situao era superior da Espanha que aplicava na altura um "rigoroso regime de restries de consumo" ( mas no se referiam obviamente diferena de capitao nos consumos entre os dois pases!). E no campo das concesses, cada empresa estava condicionada contratualmente natureza da corrente na sua produo, na tenso, na frequncia, na zona de distribuio, tudo em perfeita ordem, "no h nada a modificar ou a limitar". Repugnava-lhe, assim, a eventual interferncia do Estado ("doutrina condenvel e contrria aos superiores interesses da Nao", invocando-se o artigo 6 do Estatuto do Trabalho Nacional) na rede de ligao ou no repartidor de cargas, na fixao e reviso das tarifas, e muito menos o Estado como accionista, devendo este limitar-se

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"concesso de subsdios, reembolsveis ou no, consoante as circunstncias e a juro sempre baixo". Como explicar ento o baixo ndice de consumo ou de existirem vastas regies por electrificar? Resposta: "As causas destes factos devem ser atribudas, no s tarifas elevadas, mas sim ao baixo nvel de vida da nossa populao, com reduzido poder de compra, e pobreza e fraca densidade populacional das regies ainda no servidas" (Indstria Portuguesa, 201, Novembro 1944: 24-32). Ou seja, na perspectiva empresarial, a culpa da falta de electrificao era dos pobres existentes em Portugal, sem capacidade econmica para pagar tarifas relativamente caras! No se equacionava a possibilidade de multiplicar e embaratecer a energia elctrica, neste jogo complexo de articular interesses empresariais com interesses pblicos! Atendendo-se forte influncia dos grupos de presso dos interesses econmicos, percebe-se agora melhor o sentido de combate dos militantes pela electrificao, como Ferreira Dias e outros. E como, perante os obstculos a ultrapassar, muitos conhecidos adeptos da livre-iniciativa aceitaram aqui a interferncia do Estado no sentido de catalisar o processo, repugnando-lhes ver a electricidade, para alguns to essencial como o ar que se respira, como objecto central de lucro. E assim se deu origem a um grande marco legislativo como a lei n 2002, de 26.12.1944, que estabelece as grandes linhas da electrificao nacional. este diploma que consagra a preferncia pela energia hdrica sobre a trmica, reconhecendo a estas funes de apoio e reserva; que estabelece normas para a regularizao dos rios e seu aproveitamento para fins hidroelctricos; que define princpios de comparticipao estatal no capital das empresas produtoras, de concesso de crditos, de iseno fiscal; que torna obrigatria a interligao das centrais, coordenadas por um "repartidor de cargas"; que cria o princpio da reverso para o Estado dos bens afectos concesso. E consagra um captulo especial "pequena distribuio", a efectuada por municpios ou concesso destes a distribuidoras locais, estabelecendo ainda as frmulas para a venda de energia em alta-tenso e a tutela das tarifas mximas de baixa tenso. A lei 2002, juntamente com a lei 2005 do fomento e reorganizao econmica, foram os dois grandes contributos do eng Ferreira Dias para o desenvolvimento econmico nacional: electrificar e fomentar as indstrias era uma obra a desenvolver em paralelo, dada a imbricao profunda entre as duas vias: os consumos de electricidade eram assegurados pela indstria (em 1940, 80% da energia elctrica era consumida pela indstria), que garantia a viabilidade s produtoras de energia, assim como estas asseguravam o elemento de base para a emergncia das novas indstrias, de natureza qumica, que precisavam de energia abundante e barata. na sequncia destas medidas que emergem os projectos hidroelctricos do Zzere (a barragem de Castelo de Bode, iniciada em Julho de 1948 e terminada em Setembro de 1950) e do Cvado e se cria a Companhia Portuguesa de Electricidade, para construir e explorar as linhas de alta tenso destinadas a ligar todos os centros produtores. Na altura, foi muito criticada a opo imediata do governo pelo sistema CvadoRabago, deixando para mais tarde o sistema do Douro, que muitos gostariam de iniciar de imediato, dadas as suas maiores potencialidades energticas. O sistema Cvado-Rabago surgia como um sorvedouro de dinheiro, dados os mltiplos tneis e canais e os menores caudais, ao qual se reconhecia apenas a integridade nacional da bacia hidrogrfica, isto , no estava dependente de eventuais aces espanholas a montante. Alis as leis de fomento de 1945 ficaram em grande parte pelo caminho, sendo apenas tardia e pontualmente regulamentadas, esvaziando-as de contedo nas suas componentes mais intervencionistas. Note-se que Ferreira Dias saiu do governo em

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1945, transformando a sua "linha de rumo" num livro de memrias de um "discordante" da poltica industrial, testamento poltico publicado em 1945 e que teve seguidores, facto que o leva a demarcar-se politicamente da "oposio" ao salazarismo que ento emergia atravs do Movimento da Unidade Democrtica, porque Ferreira Dias discordava apenas do regime e no queria aproveitamentos na sua passagem pelo "deserto". Curiosamente Ferreira Dias voltar ao governo, como ministro da Economia, em Agosto de 1958, na ressaca das eleies em que brilhou Humberto Delgado, tambm ele um desiludido do regime, que optou pela ruptura. Mas Ferreira Dias continuava a ser fiel ao regime da "ordem". No segundo volume da "Linha de Rumo", s agora publicado postumamente, Ferreira Dias considerava mesmo, amargurado, que a obra ressonante das grandes barragens no era fruto necessrio da lei 2002, pois para tal havia legislao anterior que j as enquadrava, e que o teor da nova lei s deu elegncia e comodidade ao contedo, mas faltava o resto: "no pode deixar de reconhecer-se que tudo que se fez movimenta pequena parcela da doutrina que se contm nas 32 bases da lei. O resto no se aplicou" (Ferreira Dias, 2 vol., 18) preciso ainda dizer que o Plano Marshal, criado para a reconstruo europeia, teve uma palavra decisiva na obra de fomento elctrico depois desenvolvida, libertando fundos para o governo portugus aplicar nos seguintes projectos de electricidade (alm de outros na rea industrial): Sociedade Elctrica do Oeste, para produo e distribuio de energia na zona oeste (Alcobaa, Nazar, Marinha Grande, etc.), 4240 contos; Hidroelctrica do Cvado, para construo da barragem no Rabago, 100800 contos; Hidroelctrica do Zzere, barragens do castelo do Bode e Cabril, 90000 contos; Companhia Nacional de Electricidade, para a rede de alta tenso, 57000 contos. Note-se que a ECA (Administrao de Cooperao Econmica), organismo que geria o Plano Marshall, obrigava os governos auxiliados a depositarem fundos de contrapartida iguais aos valores doados, o que fez com que o Estado portugus acabasse por deter parcelas importantes do capital nas novas empresas criadas, nomeando vrios administradores. Assim, acontecia nas Hidroelctricas do Zzere e do Cvado, em que assumiu a presidncia, como na Companhia Nacional de Electricidade (constituda por escritura de 14.4.1947), sobre cuja composio de capital e de representao houve polmica pblica: com capital de 90 mil contos, 25 mil eram tomados pelo Estado, 15 mil pela Hidroelctrica do Zzere, 15 mil pela Hidroelctrica do Cvado, 15 mil por outros produtores de energia e 20 mil pelo pblico. As empresas tradicionais de capital privado protestaram: o Estado por via directa ou indirecta (Zzere e Cvado) acabou por eleger 4 dos seis administradores e influenciar a eleio dos dois restantes. Sublinhe-se esta situao como propensa criao de uma elite tcnica ao servio do Estado no sector da produo de electricidade, representativa da modernizao sectorial, a elite das grandes barragens, militante pelo fomento atravs da energia e favorvel a solues centralizadoras. A escassez energtica e os planos de fomento Adoptou-se, assim, uma poltica de centralizao na produo de energia elctrica, que criava a tutela estatal e podia originar, quando conveniente, solues de economia mista. Esta opo, como sempre, representava duas faces da moeda: por um lado, estavam definidas directrizes e poderes, apesar de os seus promotores sarem de seguida do governo e substitudos por outros menos entusiastas e mais conformes aos grandes interesses privados; por outro lado, como tudo andava vagarosamente, havia

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falhas graves de energia e as empresas particulares ou mesmo distribuidoras estavam impedidas de instalarem pequenas centrais trmicas de apoio, como era hbito. Assim, os anos de 1948 e 1949, que se enquadram numa fase de crescimento industrial iniciado na anterior conjuntura de guerra, so dolorosos, com suspenses frequentes de corrente e paralisaes que so regulamentadas superiormente, o que originava paralisaes de laborao, desorganizao industrial e elevao de custos e de preos finais. E as decises de cortes selectivos da Comisso de Interligao das Centrais do Norte no deixavam de ser polmicas, porque facilmente caam em contradies. Por exemplo, faziam-se cortes na indstria e permitia-se o incentivo ao consumo na cidade do Porto, que, vindo de anos anteriores, se traduzia em tarifas domsticas mais baratas do que as aplicadas na indstria, situao de que muitos discordavam por acharem que a regularidade do trabalho industrial deveria estar no primeiro lugar das preocupaes oficiais. Vejam-se alguns anncios da Comisso de Interligao das Centrais do Norte, datados de 1949, para nos apercebermos do tormentoso problema que a falta de energia, provocada pela estiagem que paralisava as centrais hidroelctricas, representava.

Aviso da Comisso de Interligao das Centrais do Norte - I O constante agravamento das condies de produo de energia elctrica obriga a impor maiores sacrifcios populao, para manter, at onde for possvel, o actual fornecimento indstria do Pas e aos consumos vitais que no podem deixar de ser assegurados. Por isso, a partir de segunda feira, dia 11, inclusive, so alteradas as restries em vigor, da forma seguinte: 1) Mantm-se os cortes de corrente estabelecidos para as diferentes linhas, sendo a sua durao ampliada de 1/2 hora. 2) Assim, o corte da manh ser das 7 s 13 horas; o corte da tarde das 12h e 30 m. s 18H e 30 m. 3) Em consequncia, o actual horrio de trabalho industrial da manh mantem-se e o da tarde modificado, passando a ter incio s 13 horas e terminando s 18 horas e 30 minutos. 4) A cidade do Porto deixa de estar dividida em duas zonas, passando a corrente a ser cortada a toda a cidade das 7 horas s 13 horas. De novo se recomenda o maior escrpulo no cumprimento do horrio industrial fixado, bem como a maior economia em todos os consumos restantes, pois da observncia rigorosa destes princpios depender, em grande parte, a regularidade do abastecimento e uma maior durao sem agravamento do regime de restries a vigorar. Porto, 8 de Julho de 1949. Aviso da Comisso de Interligao das Centrais do Norte - II Tendo algumas avarias em centrais trmicas reduzido a quase nada a pequena quantidade de gua ainda embalsada, verifica-se a impossibilidade de assegurar o actual fornecimento de energia, o que levou a Comisso de Interligao das Centrais do Norte, na sua ltima reunio, a determinar um agravamento das restries em vigor e a tomar outras medidas que a fora dos acontecimentos impe.22

Assim, fica estabelecido: 1) A partir de segunda-feira prxima, dia 18, proibido o trabalho industrial um dia (24 horas) por semana, nas zonas corogrficas que constam do mapa seguinte: Dias Concelhos Segunda-feira - Porto. Tera-feira - Matosinhos, Gaia, Amarante, Baio, Felgueiras, Gondomar, Valongo, Lousado, Marco de Canavezes, Paos de Ferreira, Paredes, Penafiel. Quarta-feira - Maia, Pvoa de Varzim, Vila do Conde, Santo Tirso. Quinta-feira - Distrito de Braga. Sexta-feira - Distritos de Viseu, Vila Real, Coimbra e Aveiro. Sbado - distritos de Leiria, Santarm, Guarda, Castelo Branco. 2) mantido o regime de cortes, bem como a durao destes, conforme aviso publicado na imprensa de 8 do corrente. 3) mantido o regime em vigor do trabalho nocturno correspondente (aviso publicado na Imprensa de 30 de Junho do ano corrente). 4) Toda a Indstria que possui fora motriz prpria, capaz dea ssegurar em grande parte a prpria laborao ser desligada da rede pblica, mesmo que para essas indstrias seja necessrio estabelecer horrios de trabalho especiais de maior durao. A impossibilidade de cumprimento deste princpio dever ser comunicado Comisso, a fim de ser examinado o caso e procurar-se-lhe soluo. No deixa, por fim, de chamar-se a ateno para o facto de que tanto mais importante o cumprimento rigoroso das determinaes da Comisso, quanto mais reduzidos so os recursos de produo e as ltimas irregularidades verificadas no abastecimento talvez tivessem tido menor amplitude se todos cumprissem, conforme havia a esperar. Porto, 14 de Julho de 1949. A Comisso de Interligao foi criada em 1943 para coordenar e promover de energia entre diferentes empresas e desde 1938 que se ajustavam horrios industriais s condies energticas. Mas se as interrupes de energia constituam um folhetim que se repetia de ano para ano, em 1948 e 1949 a situao foi particularmente difcil, devido forte estiagem. Em 1949, chegou a ser equacionada pelo governo o funcionamento de uma central trmica flutuante, a bordo de um navio em Leixes, vinda dos Estados Unidos. A indstria do Norte de Portugal era normalmente mais afectada, dada a predominncia aqui da energia hidroelctrica, mas assentar em barragens a fio de gua, enquanto no se criaram as barragens de albufeira, ento j em curso no sistema Cvado-Rabago. Nesta conjuntura, os industriais pediam ao Estado a instalao o sistema trmico, previsto para este tipo de situao, solicitando medidas de emergncia com pequenas centrais enquanto o problema no fosse resolvido de raiz. E protestavam com contra a Comisso de Interligao que fazia recair sobre a indstria, afinal a grande consumidora, o grande peso das restries, discordando dos consumos domsticos a preos mais baixos, como era o caso das tarifas do Porto, que a aco conjunta dos Servios Municipalizados e da Junta de Electrificao tinham criado como incentivo a este tipo de consumo, desde os finais

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dos anos 30, e que ento disparara, revelando saciedade que se houvesse tarifas acessveis no faltariam consumidores. Os planos de fomento vieram depois enquadrar e fomentar a grande obra de produo hidroelctrica que teve lugar nas dcadas de 50 e 60, em que se destacam as centrais da "Hidroelctrica do Douro" e novas realizaes no Cvado e Zzere, sem descurarem a termoelctrica. A Central da Tapada do Outeiro, da Empresa Termoelctrica Portuguesa, consumindo carves de S. Pedro da Cova e do Pejo, ficou concluda em 1959, mas era solicitada para funes de reserva e apoio desde 1945, embora a respectiva empresa s ficasse constituda legalmente em 1954. Veja-se o atraso, durante o qual no foi possvel instalar outras centrais trmicas, por ter sido dado o exclusivo Empresa Termoelctrica Portuguesa! A simples constituio de uma empresa era objecto de longas negociaes, porque no se avanava sem o capital do Estado. No caso desta empresa a que se faria a concesso da Central Trmica equacionaram-se vrios cenrios, desde a entrega da concesso Companhia Nacional da Electricidade; ou a uma empresa com produo a fio de gua, portanto mais interessada na compensao trmica; ou a uma nova empresa, com participaes de diversos interesses (Estado, empresas carbonferas e elctricas), proposta esta que veio a vingar. At porque se tratava de uma central com laborao intermitente, dependente dos anos hidrolgicos e que, em princpio, no assegurava rentabilidade dos capitais nem o equilbrio de gesto a partir da sua simples laborao. O capital (90 mil contos) da nova Empresa Termoelctrica Portuguesa ficou constitudo da seguinte forma: Empresas exclusivamente produtoras hidroelctricas............ 10200 contos Empresas transportadoras....................................................... 9800 Empresas Produtoras e distribuidoras ou s distribuidoras.... 10000 Empresas mineiras carbonferas............................................ 10000 Caixas de Previdncia.............................................................. 50000 Como se pode verificar na obra de fomento do Estado Novo vieram a ter um papel determinante os capitais das Caixas de Previdncia, constitudas nos anos 40, e que para alm de alguma melhoria nas condies de vida dos trabalhadores (assistncia mdica, baixas, desemprego), acumularam capital que permitiu ao Estado aplic-los em iniciativas econmicas diversas (atravs de aces ou obrigaes), nomeadamente nas designadas indstrias de base e na electricidade. Sem este impulso estatal dificilmente se canalizariam capitais e atenes para a electrificao nacional. Nos anos 50, a capitao de consumo nacional continuava muito reduzida face aos pases desenvolvidos. Alguns exemplos para o ano de 1952: Noruega - 5670 kwh Canad - 4650 Estados Unidos - 2950 Gr- Bretanha - 2627 Alemanha Ocidental - 1160 Blgica - 1100 Frana - 959 Itlia - 658 Japo - 604 Espanha - 333 Romnia - 178 Jugoslvia - 161 Portugal - 156

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Restava a consolao de Portugal ser um dos que apresentava um mais rpido crescimento na produo/consumo face aos anos anteriores, mas to s porque os outros pases j tinham as suas redes consolidadas e Portugal recuperava de nveis demasiado baixos. E, assim, havia razes para os industriais do sector se congratularem (embora com protestos suaves pela interveno estatal). Eis o que pensavam os produtores de electricidade agrupados na Associao Industrial Portuguesa, em 1954: [...] A electrificao vai assim prosseguindo, porque se vai criando, embora lentamente, uma conscincia nacional dos problemas fundamentais da economia portuguesa. A electricidade constitui a chave da abbada da indstria. E indiferena dos primeiros anos, que transformava em obra de pioneiros os esforos daqueles que se abalanaram a produzir, transportar e distribuir energia elctrica, sucederam um interesse pblico por tudo o que se refere a electricidade e certas facilidades que no existiam de princpio. No incio da era da electrificao os dinheiros afluam com dificuldade, os empreendimentos eram acolhidos como aventuras, as pessoas que acreditavam no futuro da electricidade eram consideradas como lunticas. Os factos encarregaramse de dar razo aos que arriscaram os seus capitais e queimaram as suas energias na indstria incipiente e, hoje em dia, o grande pblico que acarinha e auxilia a obra da electrificao nacional. No esprito portugus, avesso indstria, porque esta pressupe lucros limitados, capacidade de previso e enquadramento perfeito, reside a explicao do atraso em que Portugal se encontra, e que s uma modificao de clima industrial - que parece estar em curso - permitir recuperar (AIP, Relatrio 1954: 145). No geral, a obra dos planos de fomento era gigantesca no nvel hidroelctrico: no quinqunio de 1941-45, a produo anual deste nvel rondou os 100 milhes de kwh; em 1954 j atingia 1490 milhes de kwh; em 1958, ltimo ano de execuo do plano previa-se 2350 kwh. Desde 1951 que o total de produo de energia hdrica (com 81%) superou a de origem trmica, numa inverso estatstica, verificada com a entrada em funcionamento de centrais de albufeira como as de Castelo do Bode, Vila Nova, Belver, ampliao de outras mais antigas (Lindoso, Ponte de Jugais e Santa Luzia), e a ampliao continuava com novos e grandiosos projectos. Era uma situao que apontava finalmente o caminho para a "nacionalizao da energia", no sentido de uma produo baseada essencialmente em recursos internos, objectivo longamente debatido pelos publicistas da electrificao, como Ezequiel de Campos, Ferreira Dias e outros. E aponta tambm para a concentrao empresarial, como se torna evidente pela anlise da legislao sobre electricidade dos anos 60, particularmente o decreto 49211, de 28.07.1969, que autoriza a fuso das empresas concessionrias da rede primria e cria, a este nvel, uma concesso nica, tudo confluindo na criao da Companhia Portuguesa de Electricidade (CPE). O vazio da electrificao rural Mas as realizaes na produo de energia deixavam a descoberto graves carncias no que respeitava ao "fornecimento ao cliente", uma vez que as linhas eram exguas e havia grandes zonas onde nem sequer existiam. Havia distritos que nem sequer eram cobertos por redes de alta tenso, como Bragana, onde s 0,4% das freguesias eram electrificadas, ou vora (8%). E distritos como Porto e Aveiro, no litoral teoricamente coberto, a electrificao no ultrapassava os 77% e 72% das freguesias, respectivamente. A nvel nacional, s 36% das freguesias e 64% da

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populao tinha energia elctrica disposio, comentava o eng Paulo de Barros, numa conferncia na Ordem dos Engenheiros, em 1953, para criticar a exiguidade de verbas para a rede em baixa tenso. Na verdade, o consumo crescia mais depressa do que a rede de distribuio. E, no que respeitava electrificao rural, sem o auxlio do Estado no valia a pena pensar em faz-la a srio: "poderemos apenas abastecer algumas quintas ou pequenas povoaes localizadas perto das linhas existentes" (Indstria Portuguesa, 301, 1953:73-75). Ora importava sincronizar a produo com a pequena distribuio, uma vez que a alta tenso estava a ser objecto de uma poltica de coordenao e fortemente apoiada pelo Estado. Mas deixava a pequena distribuio entregue aos municpios, descapitalizados e sem iniciativa poltica, e aos particulares. Havia em 1955 dez sedes de concelho e 2100 freguesias sem rede elctrica, na altura em que o governo apresentou uma tmida proposta de lei Assembleia Nacional para coordenar o auxlio governamental pequena distribuio, que seria selectivo e nunca superior a 50% dos valores oramentados. O problema da electrificao rural veio a ser objecto de alguma ateno no II Plano de Fomento, reconhecendo-se naturalmente as carncias gritantes em algumas zonas, particularmente nas reas interiores: com excepo da faixa Braga-Setbal, o resto do pas vivia uma electrificao incipiente. Claro que o problema da electrificao rural no estava isolado no resto do sistema elctrico nacional. Este comeava a falhar na ausncia da rede de alta tenso, que durante anos e at 1947 quase s se limitava ligao Lindoso-Porto. S a partir daqui, com a aco da Companhia Nacional de Electricidade a situao evoluiu. Quadro III- Portugal: evoluo da rede de alta tenso (Kms) Designao 1939 1945 1956 Quilmetros de rede por Km2 de territrio At 25 KV 4020 4579 6920 0,078 De 25 a 50 KV 1049 1326 3027 0,034 De 50 a 100 KV 457 387 1033 0,0116 Acima de 100 KV 86 1060 0,0119 Total 5526 6378 12040 0,135 Fonte: Relatrio do II Plano de Fomento, VI,286 Assim, em 1956, apesar dos progressos, a rede de Alta Tenso, com um indicador de 0,135 km por quilmetro quadrado de rea era visivelmente escassa (a Frana apresentava o, 615 e a Blgica 0,835 Km), derivando desta baixa densidade a fraca electrificao rural. Mas outro indicador mostrava que nem tudo dependia da rede de Alta Tenso, pois a razo rede de distribuio/rede de transporte era de 10,36, quando em Frana esse indicador era de 16,72, ou seja, mesmo com as estruturas de transporte existentes a distribuio era susceptvel de forte incremento. Este clima explica que o mercado da electricidade fosse, na realidade, fraco em Portugal: em 1939, o nmero de consumidores de baixa tenso era, na totalidade nacional, de 336220, que salta para 423014, em 1945, e para 789197, em 1956. Nmeros demasiado baixos. E o relatrio do II Plano de Fomento, reconhecia que para electrificaes no rentveis s havia uma soluo, o subsdio no reembolsvel, afirmando que a situao vivida era um ponto de passagem num processo em andamento, pelo que "basta fixar de uma vez para sempre que a electrificao rural s possvel com o auxlio do Estado" (Relatrio, 1958:286-290), mostrando alguma

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incomodidade para dissecar um problema que parecia j estar suficientemente reconhecido. E o relatrio do II Plano recordava ainda que a regulamentao da lei da electrificao (n 2002, de 1944) s fora regulamentada neste aspecto de electrificao rural (Base XXI) em 1955, atravs da lei n 2075 de 21.5.1955 e do decreto 40212 de 30.6.1955, nos quais se definia que o Estado impulsionaria as obras de pequena distribuio atravs de comparticipaes (at 75%) do Estado ou do Fundo de Desemprego, uma vez que as obras pertenciam a municpios. Mas sublinhava-se que a lei no pretendera abranger a "propriedade agrcola isolada", eufemismo que ocultava a real falta de participao ou a extrema lentido do Estado no processo: em 1955, tinham-se concedido 82 comparticipaes num total de cerca de 13 mil contos para este efeito, seguindo-se, em 1956, 69 comparticipaes num total de 10 mil contos e, em 1957, 122 num total de 25 mil contos. Reconhecia-se um crescimento lento, embora houvesse paralelamente apoios em melhoramentos agrcolas, sobretudo em electrobombas para rega e algumas linhas de baixa tenso, porque vantagens diversas se poderiam extrair da electrificao no campo: - facilidade, rapidez, comodidade, oportunidade, segurana, garantia dos trabalhos agrcolas; - s a energia elctrica permite optimizar certas tarefas; - perspectivas de associar s exploraes agrcolas pequenas indstrias transformadoras e de aproveitamento de subprodutos; - a criao de melhores condies de vida e melhores nveis de produtividade e de rentabilidade na agricultura. Em suma, o II Plano reconhecia o problema da electrificao rural, mas achava que os mecanismo para o resolver j estavam criados, embora fosse visvel a sua inoperacionalidade. Assim, a pequena distribuio elctrica, isto , a distribuio em baixa tenso ao domiclio continuou a pertencer s cmaras municipais, quer por explorao directa (atravs de servios municipalizados ou empresas prprias), quer atravs de concesses a qualquer entidade para esse efeito. Mas sabe-se como as municipalidades foram at aos nossos dias instncias demasiado fictcias, sem poder e sem finanas, na sua maioria incapacitadas de promoverem a electrificao rural de forma satisfatria. Nova organizao do sector elctrico A tendncia para polticas centralizadoras e de interveno do Estado perceptvel na legislao relativa electrificao durante o Estado Novo, dela sendo mentor Ferreira Dias e a escola de tcnicos que deixou, quer atravs do ensino de engenharia que praticou, quer dos tcnicos que colocou nos servios oficiais, quer atravs do iderio que legou, de que a obra Linha de Rumo se tornou uma espcie de cartilha. Note-se que Ferreira Dias perfilhava um modelo europeu de poltica energtica, e na poltica de mercado europeu havia espao para a interveno estatal e mesmo para o modelo da nacionalizao da rede, perfilhado depois da segunda guerra por pases como a Frana, a Inglaterra e a Itlia. Nos incios dos anos setenta, em Portugal, sente-se uma alterao na poltica energtica, uma actuao mais uniforme e menos discutida, uma vez criada a Companhia Portuguesa de Electricidade. Assim, consolidada a componente hidroelctrica, avana-se, nesta altura, para a criao de um novo conjunto de grandes

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centrais trmicas para funcionamento permanente (Setbal; Barreiro) e inicia-se a preparao da interligao com a rede europeia. Mas as grandes alteraes surgem em 1975, depois da revoluo poltica de 1974 ter permitido a criao de um clima favorvel s nacionalizaes em vrios domnios econmicos, incluindo o sector elctrico. Assim, a produo e distribuio de electricidade no fugiu regra, com a publicao do Decreto-Lei n 205-G/75, de 16 de Abril, que estabelece a nacionalizao das empresas de servio pblico do sector e cria uma comisso de reestruturao. E, pelo artigo 12 desse decreto, estipulava-se que seriam transferidos para a entidade econmico-jurdica a criar as instalaes e servios de produo e distribuio de energia elctrica na altura exploradas por autarquias locais, directamente ou por intermdio de servios municipalizados ou por federaes de municpios, bem como as de sociedades e outras entidades. O DecretoLei n 502/76 de 30 de Junho concretizou as opes da comisso de reestruturao, criando a Electricidade de Portugal - Empresa Pblica (EDP), que integrou todas as empresas antes nacionalizadas, com o objectivo de prestar um servio pblico que se pretendia em regime de exclusivo. Refira-se que foi com este modelo que finalmente se verificou ao longo dos anos 70/80 a electrificao praticamente total do territrio nacional, para ela garantindo a participao estatal e a harmonizao tcnica das condies tarifrias e comerciais. No que se refere distribuio, o Decreto-Lei n 344 - B/82, de 1 de Setembro, realizado j noutra conjuntura poltica, de reconciliao com o mercado, procurou criar condies para assegurar essa exclusividade, sem cortar abruptamente com as tradies municipais. Embora mantendo a deciso da distribuio em baixa tenso no municpios, estes, quando no optassem pela explorao directa, s poderiam activar o regime de concesso EDP ou a empresas pblicas de mbito local ou regional a constituir, permitindo-se apenas a concessionrias j existentes a sua explorao enquanto subsistisse o perodo de concesso, ou a produtores/distribuidores independentes. Este decreto veio, com veremos adiante, a ser corrigido em 1986, acrescentado-se-lhe a possibilidade de as concesses camarrias tambm poderem abranger as cooperativas. Finalmente, em 1988, permitiu-se de novo a possibilidade de a iniciativa privada participar na produo, transporte e distribuio de energia elctrica para consumo pblico. Depois, transformou-se a EDP numa sociedade annima de capitais pblicos (1991), com vista sua futura privatizao. Mais recentemente (1994), segmentou-se a empresa pblica nica, promovendo-se a sua separao com a criao de um grupo empresarial com exploraes autnomas, e promoveu-se a sua privatizao parcial, ao mesmo tempo que se criava um novo enquadramento jurdico da actividade (1995), criando-se uma nova entidade reguladora, permitindo a criao de um Sistema Elctrico Independente, paralelo ao Sistema de Servio Pblico, encontrando-se este organizado em torno da REN - Rede Nacional de Transporte de Energia Elctrica (Vasconcelos, 1999).

A ELECTRIFICAO REGIONAL E LOCAL - ALGUNS ASPECTOS A aplicao da electricidade como fora motriz e como iluminao comeou a penetrar no Norte de Portugal na ltima dcada do sculo passado, como vimos com as adjudicaes de luz elctrica em Braga (1893) e em Vila Real (1894), ou no Porto, atravs do quadro de instalaes elctricas de Emlio Biel ou ainda com o exemplo da

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Carris de Ferro do Porto, que, em 1895, arranca com a circulao de carros elctricos, utilizando energia fornecida por uma central trmica prpria, a central da Arrbida. Poderamos mesmo ir mais longe e lembrar que o Porto, atravs de A. Galo, teve algum pioneirismo na instalao do primeiro telgrafo elctrico (pelo sistema Brguet), que, em 1853, ligou os edifcios da Associao Comercial e da Associao Industrial, como demonstrao para aplicao ao telgrafo comercial que ligava a Foz ao palcio da Bolsa, o qual foi dado como instalado na verso elctrica em 1856 (Alves, 1995b). Mas, em termos regionais, se nos centrarmos sobre as bacias do Cva