convívio fraco, forte e radical

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Luciana Eastwood Romagnolli Dramaturgias conviviais: evidenciação do convívio e implicação do espectador no acontecimento teatral O convívio pode ser considerado um fundamento do teatro: a copresença de atores e espectadores partilhando um mesmo espaço-tempo, numa zona de experiência em comum (DUBATTI, 2007). Contudo, há espetáculos em que esse aspecto do acontecimento teatral é trazido à superfície, colocado em evidência e problematizado na dramaturgia – entendida aqui como as conexões de efeitos e sentidos proporcionadas por elementos cênicos como atuação, texto, cenário, iluminação etc (ROMAGNOLLI, 2013). Uma dramaturgia convivial, portanto, poderia ser provisoriamente definida como aquela em que o espectador está. Trata-se de uma tautologia deliberada, considerando que no teatro de quarta parede, por exemplo, o teatro se realiza como se o espectador não estivesse ali, pois sua presença é apagada pelas atuações e demais componentes da encenação. Portanto, não basta que o espectador esteja, mas que o seu estar seja mutuamente reconhecido por atores e espectadores dentro da convenção cênica. Com maior precisão, seria possível propor

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Artigo desenvolve relação entre dramaturgia e convívio

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Page 1: Convívio fraco, forte e radical

Luciana Eastwood Romagnolli

Dramaturgias conviviais: evidenciação do convívio e implicação do espectador no

acontecimento teatral

O convívio pode ser considerado um fundamento do teatro: a copresença de

atores e espectadores partilhando um mesmo espaço-tempo, numa zona de experiência

em comum (DUBATTI, 2007). Contudo, há espetáculos em que esse aspecto do

acontecimento teatral é trazido à superfície, colocado em evidência e problematizado na

dramaturgia – entendida aqui como as conexões de efeitos e sentidos proporcionadas

por elementos cênicos como atuação, texto, cenário, iluminação etc (ROMAGNOLLI,

2013). Uma dramaturgia convivial, portanto, poderia ser provisoriamente definida como

aquela em que o espectador está. Trata-se de uma tautologia deliberada, considerando

que no teatro de quarta parede, por exemplo, o teatro se realiza como se o espectador

não estivesse ali, pois sua presença é apagada pelas atuações e demais componentes da

encenação. Portanto, não basta que o espectador esteja, mas que o seu estar seja

mutuamente reconhecido por atores e espectadores dentro da convenção cênica. Com

maior precisão, seria possível propor a definição de dramaturga convivial como aquela

em que se joga com a presença do espectador – ciente de que toda presença é

copresença em relação a algo, no caso, aos outros espectadores e aos artistas.

Para iluminar essas distinções, recorro a uma analogia com a classificação

forjada pela teórica alemã Erika Fischer-Lichte sobre os graus de presença. O primeiro

seria o “conceito fraco de presença”, relativo a estar “aqui” e “diante do olhar atento de

um outro” (2012, p. 106). Corresponde ao conceito fraco de convívio teatral, isto é, ao

estarem diante do olhar um do outro atores e espectadores. Eis a base da grande maioria

das composições teatrais, salvo exceções fronteiriças com o vídeo, o cinema e a

instalação. O segundo grau seria o “conceito forte de presença”, uma qualidade

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performativa definida pela “habilidade do ator em ocupar e comandar o espaço e atrair a

atenção ininterrupta dos espectadores”, como uma fonte de energia que proporciona

também ao espectador a sensação de “presentificação” (2012, p. 108). Em termos de

convívio teatral, é possível comparar a espetáculos que rompem a quarta parede e

interpelam diretamente o espectador, seja por olhares, gestos ou palavras que

evidenciam o convívio. Nessa listagem, entram os textos performativos, com elementos

dêiticos como “aqui” e” agora”, e a ênfase no eixo extraficcional (BAUMGARTEL,

2011). Entre os muitos exemplos na cena contemporânea brasileira, é possível citar os

espetáculos “Vida”, da Companhia Brasileira de Teatro; “Amores Surdos”, do

Espanca!; “A Primeira Vista”, de Enrique Diaz; “Corte Seco”, de Christiane Jatahy,

entre tantos outros.

Por fim, segundo Fischer-Lichte, a PRESENÇA no sentido radical, grafada em

maiúsculas, “marca a emergência de algo muito ordinário e torna isso um evento: a

natureza dos seres humanos como mentes corporificadas. Então, a existência ordinária é

experimentada como extraordinária – como transformada e até transfigurada”

(FISCHER-LICHTE, 2012: 116). Sem almejar um paralelo perfeito, o sentido radical de

convívio pode ser definido como aquele em que o ordinário da função do espectador é

transfigurado por um gesto relacional (BOURRIAUD, 2009), que o convoca como

participante do acontecimento teatral, seja porque lhe atribuem um papel e/ou tarefas

durante o espetáculo, ou pela demanda por resquícios de memória e outras

informações/sentimentos pessoais que o impliquem diretamente na construção

dramatúrgica. É o caso de “VemVai – Caminho dos Mortos”, da Cia. Livre (RJ),

quando o espectador é incitado a queimar um boneco de papel ao qual atribuíra sentidos

pessoais; de “Talvez Eu me Despeça”, da Cia. Afeta (MG), que se configura como uma

celebração coletiva de adeus e na qual o espectador é convidado a abraçar a atriz e a

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comer bolo; de “A Festa”, do grupo Opovoempé (SP), quando as atrizes calculam

quantos dias cada espectador já viveu até aquele momento e perguntam o nome da

parente mais velha que conheceram; ou de “O Espelho”, da mesma companhia, em cuja

mesa de café sentam-se atrizes e espectadores para uma conversa comum sobre

memórias de infância, e os espectadores são indagados sobre inquietações de seu

momento atual de vida; de “Fábrica de Nuves” e “Clínica do Sono”, dirigidas por

Daniel Toledo (MG), em que o espectador é tratado como aspirante a um emprego; de

“Domingo”, da Cida Falabella (MG), que recebe o público em sua casa e serve-lhe café

e broa; ou ainda de “E Se Elas Fossem para Moscou?”, da Cia. Vértice (RJ), em que a

plateia assume o papel de convidados para uma festa de aniversário e pode dançar no

palco. Mais do que meras estratégias de interação, essas são formas relacionais de

reconfigurar o lugar do espectador no acontecimento teatral.

Este projeto de pesquisa de doutoramento propõe o conceito operativo de

dramaturgia convivial para investigação e análise de dramaturgias textuais e

espetaculares que impliquem o espectador e reforcem a criação de uma zona de

experiência e afetação mútua.

BAUMGARTEL, Stephan. Estruturas Comunicativas na Textualidade Teatral Além

do Drama Rigoroso – a crise do drama em dois textos teatrais brasileiros do fim dos anos

80. In: Sala Preta. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São

Paulo, nº 11, 2011. Disponível em

http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view /1/372. Acesso em

29 jun 2015.

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BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro I: convivio, experiencia, subjetividade. Buenos Aires: Atuel, 2007.

FISCHER-LICHTE, Erika. Appearing as Embodied Mind – defining a week, a strong and a radical concept of presence. In: Archaeologies of Presence: Art, performance and the persistence of being. Org. GIANNACHI, Gabriela, KAYE, Nick e SHANKS, Michael. New York: Routledge, 2012.

ROMAGNOLLI, Luciana. Convívio e Presença como Dramaturgia. A dimensão da materialidade e do encontro nas criações da Companhia Brasileira de Teatro. Dissertação. UFMG, 2013. 157 p. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS-9EGMC8/convivio_e_presen_a_como_dramaturgia.pdf?sequence=1 Acesso em 29 jun 2015.