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Convergência JULHO/AGOSTO 2015 • ANO L 483 Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB ISSN 0010-8162

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ConvergênciaJULHO/AGOSTO2015 • ANO L

483

Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB

ISSN 0010-8162

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Convergência ISSN 0010-8162

Diretora: Irmã Maria Inês Ribeiro, madEditor: Irmão Lauro Daros, fmsRedatora: Irmã Rosa Maria Martins Silva, mscs – MTb 0010693/DF

Conselho Editorial: Frei Moacir Casagrande, ofmcap Irmã Helena Teresinha Rech, sst Irmã Vera Ivanise Bombonatto, fsp Jaldemir Vitório, sj João Edênio Valle, svd

Projeto gráfico: Manuel Rebelato MiramontesCoordenação de revisão: Marina MendonçaRevisão: Mônica Elaine G. S, da CostaImpressão: Gráfica de Paulinas EditoraIlustração da capa: Anderson Augusto de Souza Pereira

DIREÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃOSDS, Bloco H, n. 26, sala 507 – Ed. Venâncio II70393-900 - Brasília - DFTel.: (61) 3226-5540 - Fax: (61) 3225-3409E-mail: [email protected] na Divisão de Censura e Diversões Públicas do PDF sob o n. P. 209/73

Sumário

Editorial

Convergência, 60 anos 445

Mensagens

Bodas de Diamante da Revista Convergência 448

Convergência celebra 60 anos 450

Mensagem do Papa

“Viver em Cristo segundo a forma de vida do Evangelho” 454

Informes

Nota da CNBB sobre o momento nacional 457

Pequeno roteiro de um grande Congresso 461

Via-Sacra do Xingu 466

Artigos

A caridade fraterna na Vida Consagrada: contribuições de Dom Luciano Mendes de Almeida Francesco Sorrentino 472

Exercício do poder: grande desafio para a VRC Frei Moacir Casagrande 479

“Onde estão os religiosos, existe alegria!”: o profetismo do Papa Francisco para a Vida Religiosa Consagrada Pe. Jaldemir Vitório 500

Vida Consagrada – Chances Entrevista com o Irmão Nery FSC 524

O campo religioso brasileiro no Censo de 2010 Faustino Teixeira 533

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445Editorial

Convergência, 60 anos

Em julho de 1955, há 60 anos, nascia a primeira Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil. Ir. Jardelino Me-negat, em nome da Diretoria, e Pe. Edênio Valle, em nome do Conselho Editorial, escrevem mensagens à VRC sobre o aniversário da nossa Revista.

Ir. Jardelino expressa: “Quando uma pessoa ou uma ins-tituição celebra jubileu é motivo para agradecer pelo bem realizado. A Revista Convergência merece nosso agradeci-mento e reconhecimento pelo bem realizado ao longo de 60 anos de história”.

Pe. Edênio escreve que “não são muitas as revistas brasi-leiras – da Igreja ou de outras organizações – que podem se orgulhar de chegar a sessenta anos de existência ininterrup-

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CONVERGÊNCIA – Ano L – Nº 483 – julho/62(aER)1gost(C)1o 2015

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Convergência, 60 anos

Geral, em Aparecida-SP, no período de 15 a 24 de abril de 2015. A CNBB avaliou, com apreensão, a realidade brasi-leira, marcada pela profunda e prolongada crise que ameaça as conquistas, a partir da Constituição Cidadã de 1988, e coloca em risco a ordem democrática do País.

Pe. Rubens Pedro Cabral, coordenador da CRB-SP, faz um “pequeno roteiro de um grande Congresso”. Ele se re-fere ao Congresso Nacional da VC, realizado em Apare-cida, de 7 a 10 de abril. Escreve o autor: “Imagine, por um momento, o imenso Santuário Nacional de Aparecida, imerso na maior penumbra possível, sem perder sua vocação acolhedora de Casa de Oração, recebendo as religiosas e os religiosos, do assim consensualmente denominado: Primeiro Congresso Nacional da Vida Consagrada do Brasil”.

Fernando López denuncia a drástica realidade no rio Xin-gu, com o texto “Via-Sacra do Xingu”. Assim se inicia o Informe: “Sexta-Feira Santa, o rio Xingu foi sentenciado à morte, está sendo cortado e agoniza. Sua indômita e fecun-da liberdade milenar é acorrentada pela Hidroelétrica Belo Monte, ‘feio monstro’ – apelido dado pelo povo. Com ele morrem culturas milenares e simbologias sagradas, fontes espirituais de vida, ilhas e várzeas, igarapés e florestas, plan-tas e animais. E são violados e feridos todos os habitantes da região: indígenas e ribeirinhos, populações urbanas, todos os povos banhados e alimentados pelas águas do Xingu e seus afluentes desde tempos imemoriais”.

O primeiro texto da seção Artigos vem com o tema “A caridade fraterna na Vida Consagrada: contribuições de Dom Luciano Mendes de Almeida”. O autor Francesco Sorrentino destaca que “no testemunho de Dom Luciano ficou patente que a caridade fraterna passa pelo ‘lava-pés’. Foi essa a ideia fixa constantemente presente em seus ensi-namentos”. O autor destaca ainda a importância do perfil cristão do bispo jesuíta para a VC e encerra apresentando alguns desdobramentos para o Ano da VC.

Frei Moacir Casagrande aborda o poder. No texto “Exer-cício do poder: grande desafio para a VRC”, parte da di-mensão apontada por Jesus: “se alguém quer ser grande

dentre vós, seja vosso servo, e se alguém quer ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos”. Para a VRC a referência do poder e o modo de exercê-lo é Jesus e sua prática.

“Onde estão os religiosos, existe alegria! O profetismo do Papa Francisco para a Vida Religiosa Consagrada” é o Ar-tigo do Pe. Jaldemir Vitório, destacando o Papa e o Ano da VC. Para o autor, “A voz do Papa Francisco tornou-se profecia para a Vida Religiosa Consagrada (VRC)”, ao con-clamá-la a voltar às suas raízes, deixando-se “interpelar pelo Evangelho” e redescobrindo Jesus como “verdadeiramente o primeiro e o único amor”.

Irmão Nery oferece interessantíssima entrevista sobre o Ano da VC, com perguntas muito bem selecionadas, res-pondidas com precisão e sabedoria. Diz: “Sou grato a Deus por tantos privilégios ao longo de meus 76 anos. No caso específico da Vida Consagrada, primeiramente o dom de ter optado muito cedo por ser Religioso Irmão”. Expressa também que “ser Religioso Irmão é pura graça de Deus”.

Em 2010 houve um Censo sobre as Religiões no Brasil. Faustino Teixeira faz uma abordagem sobre o tema. O autor já tinha tratado do assunto de forma mais ampla num livro que organizou com Renata Menezes: Religiões em movimen-to. Neste texto, ele retoma a análise dos dados que desenvol-veu no artigo de abertura desse mencionado livro.

Não há sentido em correr, se estamos no sentido errado. A direção é mais importante que a velocidade. Que a VRC divise o horizonte do Reino para que caminhe com tran-quilidade, segurança e alegria no sentido correto.

Ir. Lauro Daros, FMS

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448 449Bodas de Diamante da Revista Convergência

as dimensões geográficas do país, e isso é um motivo a mais para nos alegrarmos e agradecermos, pois tantas religiosas e religiosos missionários fora do país também estão tendo acesso aos benefícios que esta publicação oferece, bem como outras Conferências de Religiosos(as) de outros países.

Para muitas comunidades do interior do Brasil a Revis-ta Convergência é o subsídio formativo mais esperado e de-sejado, pois outros meios de formação não são acessíveis nos recôncavos mais distantes onde se realiza a ação dos(as) religiosos(as).

Os 60 anos da Revista Convergência são anos de graça, bênção, fidelidade, criatividade e testemunho. São 60 anos durante os quais muitas pessoas dedicaram sua vida para dar vida a esta revista; pessoas que trabalharam na sua confecção e pessoas que a valorizaram com suas leituras, meditações e partilhas.

Certamente, nestes 60 anos não faltaram provações, in-compreensões e tensões. Apesar de tudo isso, felizmente, hoje, podemos celebrar as conquistas e alegrias, sabendo que em qualquer caminhada estamos sujeitos a avanços e recuos.

Em nome da Diretoria da CRB Nacional queremos nos solidarizar, alegrar e agradecer pela passagem dos 60 anos de existência deste maravilhoso veículo de comunicação que tanto bem vem prestando, principalmente, aos Religiosos e Religiosas do Brasil.

Ir. Jardelino Menegat, fsc Vice-presidente da CRB NACIONAL

Mensagem

Em 2014, a Conferência dos Religiosos do Brasil comple-tou 60 anos de existência. Em julho de 2015 será a vez da Revista Convergência celebrar seus 60 anos de presença e co-laboração na vida das pessoas, de modo especial na vida das Religiosas e Religiosos, como um subsídio incontestável de formação e reflexão.

Quando uma pessoa ou uma instituição celebra jubileu é motivo para agradecer pelo bem realizado. A Revista Con-vergência merece nosso agradecimento e reconhecimento pelo bem realizado ao longo de 60 anos de história.

O primeiro número da Revista Convergência foi publicado no Rio de Janeiro, onde funcionava a Sede da Conferência dos Religiosos do Brasil, em julho de 1955, no mesmo ano em que se realizava o XXXVI Congresso Eucarístico In-ternacional, que marcou um ressurgir da fé e das virtudes cristãs em todo o Brasil.

A Revista Convergência destina-se especialmente à Vida Religiosa Consagrada, mas há sempre artigos de interesse de todos os públicos, pois a Revista oferece textos para re-flexão nas mais diversas áreas, como ecologia, política, ecu-menismo, Bíblia, missão, Vida Religiosa, Igreja, cultura, antropologia, psicologia etc.

Por estes 60 anos de história e de formação continuada para os consagrados, este veículo de comunicação/informação/formação merece o nosso reconhecimento pelo bem que prestou e continua prestando à Vida Religiosa Consagra-da, particularmente do Brasil. Hoje, a Revista transcende

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450 451Convergência celebra 60 anos de autoridades, bem como de divulgador de congressos e de decisões organizacionais. Há uma preocupação em dizer quantos são, quem são, onde estão e o que fazem os religio-sos do Brasil. Um bom espaço ocupam também os serviços que a CRB começa a oferecer às congregações, com desta-que para os chamados “procuratórios”. Aqui e ali começam a ser publicadas pequenas reflexões escritas por articulistas daqui, fazendo-se notar nelas uma abertura aos impulsos de mudança que o Papa Pio XII tentava imprimir à Vida Consagrada mundial, após séculos de defesa do patrimônio recebido do passado.

A segunda fase tem início no momento em que a Igre-ja é sacudida pelo Concílio Ecumênico (1962-1965). Pela mesma época o Brasil vive a revolução militar que altera substancialmente as relações entre Igreja e Estado. Interes-sante notar que até 1968 não são fortes na Revista os ecos desses dois fatos. O que se discutia no pós-concílio com repercussão nos Generalatos sediados na capital da Igreja leva algum tempo até chegar mais ostensivamente às pági-nas da Revista. No seio da Igreja brasileira, contudo, graças à CNBB, com a qual a CRB agia conjuntamente, dá-se uma aceleração das iniciativas, como se pode ver na cria-ção do CNP (Conselho Nacional de Pastoral) e na ERP (Equipe de Reflexão Teológica ) da CRB. Em minha lei-tura dos fatos era como se o sopro novo do Espírito tocasse inicialmente mais os bispos e aos poucos fosse incendiando também os religiosos e religiosas, cujas condições efetivas de ação e disponibilidade eram mais imediatas.

O estalo se deu graças à clarividência de um jovem jesuíta que por três vezes, providencialmente, presidiu a CRB, o Pe. Marcello Azevedo, SJ. Foi ele quem não só reconsti-tuiu a nossa agremiação dos sérios impasses que atravessava, como colocou a CRB em movimento, rumo a duas dire-ções fundamentais: uma, a acima mencionada fundação da Equipe Teológica, e, outra, a reorientação de noventa graus da Revista, principal instrumento de comunicação com as nossas bases. Foi então que ela recebeu um novo nome: Convergência. Era o mês de julho de 1968. Pe. Marcello,

Em nome do Conselho Editorial de Convergência.Não são muitas as revistas brasileiras – da Igreja ou de

outras organizações – que podem se orgulhar de chegar a sessenta anos de existência ininterrupta, sem falta de um único número, graças a um sem-número de colaboradores e editores que nela viam um guia para as turbulências e a bonança de uma caminhada de meio século. Nossa Conver-gência faz parte, assim, desse grupo seleto e tem toda razão para se orgulhar de seu passado e, muito mais, para se ale-grar pelo inestimável serviço que prestou à Vida Religiosa no Brasil. Nesse período nem sempre tranquilo ela foi uma espécie de cérebro pensante da VC e um olhar crítico a jogar luz nos novos caminhos que a Igreja apontava para a Vida Consagrada.

Quem compulsa um a um todos os números da Revista, a começar de sua fase embrionária, que durou mais de dez anos (de 1955 a 1968), e das duas que se seguiram, percebe imediatamente que passou por verdadeiras metamorfoses.

A primeira se deu logo após a fundação da própria CRB. Foi do ano 1955 ao de 1968. Nessa etapa inicial o homem--chave foi o Pe. Irineu Leopoldino de Souza, SDB, que, com um empréstimo de cem cruzeiros propiciado por uma Superiora amiga, comprou, como se pode ler na própria Revista, a primeira máquina de escrever de uso exclusivo da mesma Revista. Já o nome dado ao novo veículo era direto e formal: Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil. Seus números inaugurais apresentam certo quê de órgão destina-do a ser transmissor de dados informativos e de mensagens

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Convergência celebra 60 anos

apoiado pela Equipe de Reflexão Teológica e com pleno apoio da Diretoria Nacional, colocou à frente da revista o Ir. Cristóvão della Santa, FSC. Para eles o nome Convergên-cia equivalia a um programa de reflexão-ação, apontado em direção ao fortalecimento da comunhão com a Igreja e ao desejo de entrar em diálogo com o mundo moderno, mas dando prioridade à opção pelos marginalizados da socieda-de, como preconizava a leitura do Concílio Vaticano II feita pelo episcopado latino-americano em Medellín (1968). Era para esses objetivos que a Revista se reprogramou e se re-configurou por inteiro, causando surpresa a quem a tomava em mãos pela primeira vez.

A partir daí ela passou a assumir, divulgar e dar sequência às temáticas desafiadoras do Concílio, das Diretrizes Trienais da CNBB e em especial dos temas das Assembleias Gerais da própria CRB. Foi dessa forma e com esses objetivos que ela entrou no tumultuado decênio de 1970 e 1980, deixando sementes de inquietação e busca até hoje vivas. Foi por essa mesma época que a VC passou a se pensar desde a práxis da inserção, da inculturação e da opção pelos pobres. Questões prementes como a da mulher na Igreja, da juventude, da de-fesa e partilha de vida e presença junto aos afro-indígenas e aos sem-terra, e direitos tomaram corpo. Convergência acom-panhava de perto essa difícil e ainda não completada mudan-ça de lugar social e de prisma de visão de nossa história.

É interessante observar como nessa segunda fase a Revista Convergência modernizou radicalmente seu formato ante-rior. Ela passou a abordar temas que escapavam da pauta eclesiástica de sua primeira fase. Durante alguns anos ela dotou um formato in octavo inteiramente novo que imitava em certo sentido o de outras revistas não religiosas, com fotografias e temas de atualidade, como discussões sobre estruturas e relações Igreja-Estado, secularização, possíveis rumos futuros etc. Era evidente que procurava nesses anos de tateio e busca um veículo moderno de comunicação que estivesse mais à altura da nova situação e desafios.

Essa fase durou apenas poucos anos e, como toda coi-sa realmente nova, encontrou críticas, sendo por alguns

julgada demasiado avançada. Seu custo, além disso, era bem maior. Após avaliações e consultas junto a especialistas e ao público-alvo, Convergência adotou um estilo moderno, mas menos chamativo. É o que ela conserva ainda hoje. No essencial, quanto ao enfoque centrado nas preocupações, experiências, desafios e objetivos que foram suscitando os religiosos e religiosas do Brasil nos anos 1980 e 1990, não houve alterações maiores. Sob a batuta do Pe. Marcos de Lima, SDS, seu mentor por muitos anos, não se abandonou nem o espírito nem a criatividade. A certa altura as capas é que passaram a ser a mensagem de fundo, coloridas, por si-nal, além de desenhadas por artistas religiosos que captavam melhor o sentimento coletivo. Os articulistas não eram ape-nas os membros das Equipes de Reflexão, como também os muitos religiosos e religiosas que emergiam como os novos intelectuais orgânicos da Vida Consagrada no Brasil. Mas é justo que se destaque um nome, o do Pe. João Batista Libâ-nio, SJ, que com suas dezenas e dezenas de oportunos arti-gos chegou a escrever, via Convergência, uma quase peque-na enciclopédia brasileira da Vida Consagrada. Contudo, o que mais admira, em Libânio e nos demais, é a admirável riqueza e variedade dos assuntos que podem ser encontrados nas páginas de nossa Revista.

Imagino que daqui a mais cinquenta anos os historiadores terão condições de, a partir de nossa Revista, levantar um fascinante quadro do que foi a Vida Consagrada brasileira nos anos imediatos ao pós-Concílio e na virada do milê-nio. Dificilmente se poderá encontrar um tema que nela não compareça, em virtude de seu perseverante esforço de aproximar a realidade à vida, e a vida ao seguimento do Senhor que veio para servir e trazer mais vida aos irmãos e irmãs. Nisso Convergência funcionou para todos nós como uma verdadeira escola de vida e missão. Oxalá ela continue sendo essa ponte que nos permite construir uma Vida Con-sagrada que anuncie e sirva com alegria!

Pe. Edênio Valle, SVD Membro do Conselho Editorial da CRB.

Presidente Nacional da CRB – 1989-1995.

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CONVERGÊNCIA – Ano L – Nº 483 – julho/62(aER)1gost(C)1o 2015

454 455“Viver em Cristo segundo a forma de vida do Evangelho”Congresso Internacional de Formadores

à Vida Consagrada

consagração. Eis aqui a importância da missão dos forma-dores, aos quais o Papa recordou: “Vocês não são apenas mestres, mas, sobretudo, testemunhas da sequela de Cris-to, segundo seu próprio carisma, que pode ser redescober-to mediante a alegria de ser discípulos de Jesus. Por isso, cuidem sempre da sua formação pessoal, que nasce de uma forte amizade com o único Mestre”.

Para o Papa Francisco a beleza da Vida Consagrada é “um dos tesouros mais preciosos da Igreja”, e ser formador é igualmente belo porque é “um privilégio participar na obra do Pai que forma o coração do Filho naquele que o Espírito chamou”. Essa tarefa pode ser, por vezes, sentida como um peso, mas o importante é a missão e formar para a missão do anúncio, do ir, com paixão, para onde for necessário, para todas as periferias, anunciar o amor de Cristo aos afastados, aos pequenos, aos pobres e deixar-se também evangelizar por eles. Tudo isso – recordou Francisco – requer bases só-lidas, uma estrutura cristã da personalidade que hoje as pró-prias famílias raramente sabem dar. Algo que aumenta a responsabilidade do formador para a Vida Consagrada.

Pondo depois em realce as qualidades do bom formador, o Papa disse que deve ter um coração grande a fim de poder formar nos jovens corações grandes, capazes de acolher a todos, corações ricos de misericórdia, cheios de ternura. O formador é um verdadeiro pai, mãe, capazes de exigir e de dar o máximo. “Isto só é possível através do amor, amor de pai e de mãe.”

Pondo-se do lado dos jovens que disse entrever em cada um daqueles 1.400 formadores presentes, o Papa afirmou: “E não é verdade que os jovens de hoje são medíocres e não generosos; o que necessitam é sentir que ‘é-se mais feliz no dar do que no receber, que há grande liberdade numa vida obediente, grande fecundidade num coração virgem, grande beleza no não possuir nada’. Daí a necessidade de ser amorosamente atentos ao caminho de cada um e evan-gelicamente exigentes em cada fase do caminho formativo, a começar pelo discernimento vocacional, a fim de que a

Mensagem do Papa

“O Formador é um verdadeiro pai e mãe.” Papa Francisco

A beleza da Vida ConsagradaEm Roma, na Ala Paulo VI, de 7 a 11 de abril, o Papa

Francisco reuniu-se com aproximadamente 1.400 Forma-dores da Vida Consagrada no Congresso Internacional pro-movido pela Congregação para os Institutos de Vida Con-sagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, sob o tema: “Viver em Cristo segundo a forma de vida do Evangelho”, o primeiro do gênero, realizado no âmbito do Ano dedica-do à Vida Consagrada.

“Queria manter este encontro com vocês, pelo que vocês são e representam, como educadores e formadores, e tam-bém porque, através de vocês, vejo os seus e nossos jovens, protagonistas de um presente, vivido com paixão, e promo-tores de um futuro repleto de esperança; jovens que, im-pelidos pelo amor de Deus, buscam na Igreja os caminhos para assumi-lo na própria vida. Sinto a presença deles aqui e a eles dirijo meu pensamento carinhoso.”

Ao ver o numeroso grupo de jovens presente na Sala Pau-lo VI, o Papa disse que “nem parece que há crise vocacio-nal”, não obstante sua clara diminuição na Igreja, que torna ainda mais urgente a tarefa da formação à Vida Consagrada. No entanto, o Pontífice expressou sua convicção de que não haveria crise vocacional se os consagrados fossem ca-pazes de transmitir, com o testemunho pessoal, a beleza da

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“Viver em Cristo segundo a forma de vida do Evangelho”

eventual crise de quantidade não determine a ainda mais grave crise de qualidade”.

“A Vida Consagrada é bela”, frisou o Pontífice! Ela é um dos tesouros mais preciosos da Igreja, arraigado na vocação batismal! É belo ser formador! É belo participar na obra do Pai! Isso não deve ser vivido como um peso, mas como um serviço, uma missão. É importante formar à missão, à paixão pelo anúncio, indo até as periferias do mundo para evangelizar os pequenos e os pobres.

E o Papa concluiu agradecendo aos formadores: “Obri-gado, queridos formadores e formadoras, pelo seu serviço humilde e discreto, pelo tempo que dispensam à escuta, ao acompanhamento e ao cuidado dos jovens. Não pou-pem tempo nem energia nesta missão. Não se desencorajem quando os resultados não corresponderem às expectativas. Isto, aliás, pode favorecer o caminho da formação contínua do formador. Saibam que Jesus os acompanha sempre com amor e a Igreja lhes é agradecida!”

Fonte: PERSCRUTAI. Ano da Vida Consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014. p. 81-83.

Nota da CNBB sobre o momento nacional

Informes

“Entre vós não deve ser assim” (Mc 10,43).

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, reunida em sua 53a Assembleia Geral, em Aparecida-SP, no período de 15 a 24 de abril de 2015, avaliou, com apreensão, a realidade brasileira, marcada pela profunda e prolongada crise que ameaça as conquistas, a partir da Constituição Ci-dadã de 1988, e coloca em risco a ordem democrática do País. Dessa avaliação nasce nossa palavra de pastores convic-tos de que “ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronun-ciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos” (EG, 183).

O momento não é de acirrar ânimos, nem de assumir po-sições revanchistas ou de ódio que desconsiderem a política como defesa e promoção do bem comum. Os três poderes da República, com a autonomia que lhes é própria, têm o dever irrenunciável do diálogo aberto, franco, verdadeiro, na busca de uma solução que devolva aos brasileiros a certe-za de superação da crise.

A retomada de crescimento do País, uma das condições para vencer a crise, precisa ser feita sem trazer prejuízo à po-pulação, aos trabalhadores e, principalmente, aos mais po-bres. Projetos, como os que são implantados na Amazônia, afrontam sua população, por não ouvi-la e por favorecer o desmatamento e a degradação do meio ambiente.

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Nota da CNBB sobre o momento nacional

A lei que permite a terceirização do trabalho, em trami-tação no Congresso Nacional, não pode, em hipótese algu-ma, restringir os direitos dos trabalhadores. É inadmissível que a preservação dos direitos sociais venha a ser sacrificada para justificar a superação da crise.

A corrupção, praga da sociedade e pecado grave que bra-da aos céus (cf. Papa Francisco – O Rosto da Misericórdia, n. 19), está presente tanto em órgãos públicos quanto em ins-tituições da sociedade. Combatê-la, de modo eficaz, com a consequente punição de corrompidos e corruptores, é dever do Estado. É imperativo recuperar uma cultura que prima pelos valores da honestidade e da retidão. Só assim se restau-rará a justiça e se plantará, novamente, no coração do povo, a esperança de novos tempos, calcados na ética.

A credibilidade política, perdida por causa da corrupção e da prática interesseira com que grande parte dos políticos exerce seu mandato, não pode ser recuperada ao preço da aprovação de leis que retiram direitos dos mais vulneráveis. Lamentamos que no Congresso se formem bancadas que reforcem o corporativismo para defender interesses de seg-mentos que se opõem aos direitos e conquistas sociais já adquiridos pelos mais pobres.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, por exemplo, é uma afronta à luta histórica dos povos indí-genas que até hoje não receberam reparação das injustiças que sofreram desde a colonização do Brasil. Se o prazo es-tabelecido pela Constituição de 1988 tivesse sido cumprido pelo Governo Federal, todas as terras indígenas já teriam sido reconhecidas, demarcadas e homologadas. E, assim, não estaríamos assistindo aos constantes conflitos e mortes de indígenas.

A PEC 171/1993, que propõe a redução da maioridade penal para 16 anos, já aprovada pela Comissão de Constitui-ção, Cidadania e Justiça da Câmara, também é um equívo-co que precisa ser desfeito. A redução da maioridade penal não é solução para a violência que grassa no Brasil e reforça a política de encarceramento num país que já tem a quarta população carcerária do mundo. Investir em educação de

qualidade e em políticas públicas para a juventude e para a família é meio eficaz para preservar os adolescentes da de-linquência e da violência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor há 25 anos, responsabiliza o adolescente, a partir dos 12 anos, por qualquer ato contra a lei, aplicando-lhe as medidas so-cioeducativas. Não procede, portanto, a alegada impuni-dade para adolescentes infratores. Onde essas medidas são corretamente aplicadas, o índice de reincidência do ado-lescente infrator é muito baixo. Ao invés de aprovarem a redução da maioridade penal, os parlamentares deveriam criar mecanismos que responsabilizem os gestores por não aparelharem seu governo para a correta aplicação das medi-das socioeducativas.

O Projeto de Lei 3.722/2012, que altera o Estatuto do Desarmamento, é outra matéria que vai à contramão da se-gurança e do combate à violência. A arma dá a falsa sen-sação de segurança e de proteção. Não podemos cair na ilusão de que, facilitando o acesso da população à posse de armas, combateremos a violência. A indústria das armas está a serviço de um vigoroso poder econômico que não pode ser alimentado à custa da vida das pessoas. Dizer não a esse poder econômico é dever ético dos responsáveis pela preser-vação do Estatuto do Desarmamento.

Muitas destas e de outras matérias que incidem direta-mente na vida do povo têm, entre seus caminhos de solu-ção, uma Reforma Política que atinja as entranhas do siste-ma político brasileiro. Apartidária, a proposta da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, da qual a CNBB é signatária, se coloca nessa direção.

Urge, além disso, resgatar a ética pública que diz respeito “à responsabilização do cidadão, dos grupos ou instituições da sociedade pelo bem comum” (CNBB – Doc. 50, n. 129). Para tanto, “como pastores, reafirmamos ‘Cristo medida de nossa conduta moral’ e sentido pleno de nossa vida” (Doc. 50 da CNBB).

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Nota da CNBB sobre o momento nacional

Que o povo brasileiro, neste Ano da Paz e sob a proteção de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, supere esse momento difícil e persevere no caminho da justiça e da paz.

Aparecida, 21 de abril de 2015.

Cardeal Raymundo Damasceno AssisArcebispo de Aparecida

Presidente da CNBB

Dom José Belisário da Silva, OFMArcebispo de São Luís do Maranhão

Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich SteinerBispo Auxiliar de Brasília

Secretário-Geral da CNBB

Pequeno roteiro de um grande Congresso

Imagine, por um momento, o imenso Santuário Nacional de Aparecida, imerso na maior penumbra possível, sem per-der sua vocação acolhedora de Casa de Oração, recebendo as religiosas e os religiosos do assim consensualmente deno-minado: Primeiro Congresso Nacional da Vida Consagrada do Brasil, em uma noite marcadamente fortalecida pelo clima pascal que então a tudo envolvia.

Do altar central a maioria de participantes, sob a inspi-ração do mantra repetidamente entoado “Para ti, Senhor, toda noite é dia...”, se apresentaram, e pequenas e aparen-temente inofensivas velas passaram a ser acesas, num ritmo celebrativo que lentamente se impôs ante a proclamação de Cristo como “luz do mundo, esplendor do pai...”. Luzes lentamente fixadas espantando as trevas, devolvendo cores, para finalizar proclamando, em um templo total e absoluta-mente iluminado, que, ressuscitados com Cristo, podemos, confiantes, partilhar os sinais de luminosidade presentes nas histórias e na vida das nossas Comunidades, visando devol-ver a todos as alegrias existentes na Vida Religiosa Consa-grada, em suas múltiplas e criativas manifestações.

Certamente havia um grande círio original de onde, sim-bolicamente, tais luzes partiram, e esse era o tema geral do encontro: “Assumir o núcleo identitário da vida consa-grada: atitude profética, processo mistagógico”, e um lema escancaradamente exposto ao longo de toda a semana entre 7 e 10 de abril: “Não ardia nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho?” (Lc 24,32). Juntos representavam o desejo da CRB Nacional de animar e fazer arder o coração

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Pequeno roteiro de um grande Congresso

Depois, no mistério, acolhemos o processo Mistagógico apresentado belamente pela Profa Rosemary Costa. Após a conferência inicial, ela recebeu tempo complementar para visualizar na prática, em oito passos, um exercício. Expe-riente no processo, pôde manifestar autoridade ao ensinar.

Lectio Divina, Eucaristia presidida por D. Jaime Spengler, celebração da Luz, conforme o início deste texto; nada de reclamar, apresentar queixas indevidas, dificuldades inúteis ou itinerantes, nada de saudosismos ou tristes “ais”. Cele-bramos um Congresso de oportunidades e perspectivas para a Vida Consagrada no mundo contemporâneo, na integri-dade da missão, nas palavras do Ir. Afonso Murad, FMS, escancarada na face de todos. Ele foi seguido pelo tratado mais ampliado do tema, realizado pela visitante geografica-mente mais distante: Ir. Mercedes Sánchez, FSPS, presiden-te da Confederação Latino-americana e Caribenha de Re-ligiosos e Religiosas (CLAR), trazendo as luzes e esperanças da América Latina.

Naturalmente a esses conteúdos somente poderiam seguir testemunhos: foram tantos, sérios, valiosos, aplaudidos e re-verenciados, somados na Eucaristia presidida por D. Sérgio Arthur Braschi, que a muitos alegrou com seu canto no so-lene envio da Ir. Marlene Avanzi para auxiliar na missão do Haiti. A comunidade fez também gestos concretos de par-tilha com aquela missão, que rendeu quase R$ 25.000,00, fazendo eco à generosidade da CNBB, que destinará parte significativa da Coleta da CF para esse benéfico fim. Um dia assim somente poderia terminar em clima de festa, lan-çamento de livros, o insistente canto da Cigarra, saída da terra, depois de hibernar, recolocada ao sol.

Felizmente, não chegou o momento de fazer tendas e ali acamparmos (Lc 9,28-36) em meio à alegria do evangelho vivido ou do ambiente cordial reinante; era preciso colo-car-se novamente a caminho (sugestão do Papa em missa do dia 10/02), e isso o dia final profeticamente nos recor-dou. Importa “ouvir o gato” na parábola de D. Pedro Brito Guimarães e seguir apressadamente, de missão em missão, o itinerário da vontade desafiadora e inquietante do Deus

que continua a tocar naquilo que é mais profundamente essencial (testemunho de D. João Aviz), fazendo gerar entre todos(as) vida plena e abundante ( Jo 10,10).

Pe. Rubens Pedro Cabral, OMICoordenador da CRB/SP

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466 467Via-Sacra do Xingu na procissão. Os poderosos decretaram sua morte faz anos. Porém, sua verdadeira segurança está, sobretudo, nas Mãos de Deus presente nas centenas de mãos e corações do povo que o ama, cuida e acompanha. Juntos, “como membros de um mesmo corpo que tem Cristo por cabeça” (1Cor 12), bispo e povo sofrem e choram, amam e lutam, denunciam e anunciam, rezam e cantam com teimosia e profecia a vitória da Cruz e da Justiça, da Ressurreição e da Vida sobre todo tipo de morte. O “rio vivo de gente”, ao longo da Via-Sa-cra, anuncia e denuncia: “Jesus caiu e se levantou”.

Quantas pessoas em Altamira caem pelo descaso das au-toridades e não conseguem se levantar por falta de solida-riedade, apoio, estímulo, ajuda? Em nossa cidade há tantas pessoas que precisam de médico! Enfrentam demoradas filas na busca de diminuir suas dores e solucionar seus problemas de saúde. Quantas Verônicas existem em nossa cidade? Há tantos que precisam de alguém para enxugar suas lágrimas, seu cansaço e seu sofrimento: indígenas, ribeirinhos, colo-nos, moradores da periferia de Altamira. Que as mulheres sejam tratadas com carinho e respeito, com dignidade, e não como objetos de consumo e prazer, de espoliação e domínio. Jesus é pregado na cruz quando a sociedade per-mite que crianças, adolescentes e jovens sejam traficados, explorados, envolvidos nas drogas e em processos de vio-lência e morte. Na região do Xingu e em Altamira muitos morrem pelo descaso das autoridades, pelas consequências dos grandes projetos. Porém, a morte de Jesus trouxe para a humanidade a certeza da Ressurreição.

Hoje, os Judas, Pilatos e autoridades corruptas continuam soltos. Dobram-se ao ídolo do poder e do dinheiro. Ven-dem os povos, rios e florestas por “trinta moedas”. Lavam--se as mãos, sentenciam e entregam os justos que defen-dem a Vida. E soltam os Barrabás e seus mandantes, ladrões e bandidos, que espalham a morte na Amazônia. Muitas pessoas já tombaram e foram crucificadas na Via-Sacra do Xingu: a Ir. Dorothy Stang (12/02/2005), missionária nor-te-americana, que atuava junto aos camponeses e campone-sas do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança

Sexta-Feira Santa, o rio Xingu foi sentenciado à morte, está sendo cortado e agoniza. Sua indômita e fecunda liber-dade milenar é acorrentada pela Hidroelétrica Belo Monte, “feio monstro” – apelido dado pelo povo. Com ele morrem culturas milenares e simbologias sagradas, fontes espirituais de vida, ilhas e várzeas, igarapés e florestas, plantas e ani-mais. E são violados e feridos todos os habitantes da região: indígenas e ribeirinhos, populações urbanas, todos os po-vos banhados e alimentados pelas águas do Xingu e seus afluentes desde tempos imemoriais. Toda a vida da região se empobrece. Via-Sacra em Altamira (03/04/2015), cedo na manhã, ao raiar do sol, um “rio de gente” firme e de cabeça erguida avança pelas ruas da cidade. É o povo simples, povo de Deus, que caminha valente rezando e denunciando a injustiça, o abuso e a morte imposta pelos poderosos e seus capangas, amigos dos “Césares”, que veneram ao ídolo di-nheiro e seus faraônicos projetos de destruição da natureza e de escravidão do povo. Acordando a consciência da cida-de, o “rio de gente” avança cantando e anunciando que o Projeto de Vida Abundante de Deus ( Jo 10,10) é mais forte que a morte, que a Justiça vence a injustiça, a Liberdade a escravidão, o Amor o ódio, o Deus da Vida os ídolos de morte, poder e dinheiro.

O bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Kräutler, enca-beça a “Via-Sacra”. Vai à frente, como pastor ao serviço da Amazônia e seus povos, defendendo sua gente, rios e flores-tas, cuidando de toda a vida da Criação, da Mãe Terra que a todos amamenta e sustenta. Dois seguranças o acompanham

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Via-Sacra do Xingu

(PDS Esperança), no município de Anapu, Pará; o casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo (24/05/2011), que lutava desde 2008 contra a devastação florestal e a exploração ilegal de madeira na região de Ma-çaranduba, sudeste do Pará; o agricultor Erenilton Pereira dos Santos (28/05/2011) e tantas outras pessoas assassinadas. Segundo o jornal Correio Braziliense (12/02/2015), “nos 10 anos que se seguiram à morte de Irmã Dorothy a situação permanece praticamente inalterada. De 2005 a 2014, o nú-mero total de assassinatos no campo diminuiu. Foram 334. O Pará, porém, concentrou 118 das mortes, 35,3%. Das 548 tentativas de assassinato, 165 aconteceram no Pará. Das 2.118 pessoas ameaçadas de morte, 617 viviam no Pará”. Várias lideranças ribeirinhas, camponesas e indígenas con-tinuam hoje ameaçadas e marcadas para morrer na região do Xingu. É forte o testemunho e compromisso valente delas, que defendem com suas vidas a Vida da Amazônia e seus povos.

Um ribeirinho extrativista (não damos seu nome por se-gurança), que mora a 400 km por via fluvial de Altami-ra (três dias de voadeira!), partilha sua dolorosa e profética experiência:

“Eu só queria defender minha família e a terra em que vi-vemos. Os madeireiros, grileiros e fazendeiros, quando eles querem tomar uma terra, primeiro entram numa boazinha. Depois, quando pegam tudo, dão um chute em você. Ou você fica de agregado ou vai embora, porque senão eles ma-tam e ficam com toda a terra e suas pertenças. A raiva deles comigo foi porque eu nunca aceitei. O fazendeiro veio em minha casa querendo comprar meu sítio por dez mil reais. Eu não aceitei e ele falou para mim: ‘depois não venha você reclamar!’. Ele passou a invadir e destruir meu castanhal, falando que, como eu não quis vender para ele, o problema era meu”.

Esse irmão extrativista, profeta de nosso tempo, passou mais de um ano sob custódia policial domiciliar na sua co-munidade ribeirinha. Iguais foram os casos de outros mora-dores da região. E como alertou o nosso irmão extrativista,

a Hidrelétrica Belo Monte (CCBM) e a Norte Energia “pri-meiro entram numa boazinha”, inundando com regalias (voadeiras, motores, carros, casas etc.) as comunidades, mas pouco a pouco ficam com tudo. Em Altamira e ao longo do ribeirão as lideranças comentam: “A empresa não infor-ma às comunidades nem conta a verdade. Muita gente está desinformada e com medo do que vai acontecer. É muito difícil lutar contra tanto ‘presentinho’ que bate em cima das muitas necessidades que o povo tem. Como diz o ditado popular: ‘Há que comer a isca, mas não engolir o anzol’”.

Por outro lado, apesar da demarcação das Terras Indígenas e da implantação das Reservas Extrativistas (Resex), conti-nuam os processos de invasão de madeireiras e garimpeiros, de grilagem de terras. E as autoridades sabem o que está acontecendo. Basta que olhem nos informes e nas carto-grafias oficiais sobre desmatamento (se não acreditam nos estudos paralelos feitos por ONGs). Qualquer cidadão com acesso à internet pode olhar em Google Earth (ainda que as fotos não sejam atuais) a gravidade do avanço do des-matamento, em forma de “espinha de peixe”, ao longo das estradas BR 230 (Transamazônica) e BR 163 (Santarém--Cuiabá). Madeireiros, grileiros e garimpeiros não respei-tam nem Resex nem Terras Indígenas. E o governo e suas instituições sabem que essas invasões estão acontecendo... E não fazem nada! Por quê? Incapacidade e ineficiência? Cumplicidade e conivência?

Estas perguntas estão no coração e na mente de cada cida-dão, das famílias ribeirinhas e indígenas que veem invadida e destruída a Mãe Terra que os sustenta, ameaçando assim o futuro de seus filhos e filhas. Também é impressionante a obra faraônica da Hidroelétrica de Belo Monte. O “pa-redão” (barragem) e o “canal” de desvio do rio Xingu em Volta Grande deixarão no “seco” 100 km do leito natural do rio. E agora, na imprensa e nos jornais da TV, está fi-cando a descoberto “o paredão e o canal” da corrupção bilionária desta obra faraônica, “elefante branco” de outros tempos. E o governo? Cúmplice, conivente ou ineficien-te? A ditadura do capital e dos sequazes que o controlam

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Via-Sacra do Xingu

impõe-se. Ao dinheiro fica subordinado tudo: a política, a ecologia, o cuidado e a defesa da vida em todas suas formas. E no meio de toda esta violenta e depredadora realidade desenvolvimentista estão os povos indígenas em situação de isolamento, que vivem na bacia do rio Xingu, dos quais se tem umas dez referências. Eles são os mais vulneráveis. Suas vidas estão ameaçadas.

Com o “ecocídio” provocado pelos megaempreendimen-tos da região está decretado o genocídio destes índios isola-dos! E quem se faz responsável por estas vidas vulneráveis? Onde está o governo para protegê-los? E a sociedade civil, fica calada? O Brasil é o país com maior número de grupos humanos isolados, com mais de 100 referências das 160 co-nhecidas em nível mundial. E a Funai (Fundação Nacional do Índio, Brasil) confirma mais de 80 dessas referências. Os “índios isolados” fugiram para o centro da mata e cabeceiras dos rios devido à violência do sistema colonial de ontem e o neocolonial capitalista e depredador de hoje. Com os me-gaempreendimentos e a crescente pressão sobre os recursos naturais da Amazônia (que concentra 1/3 da biodiversidade do Planeta), os povos indígenas isolados estão ficando sem espaço e pedindo socorro! Muitos são os sinais de morte na Amazônia, mas muito mais fortes são as sementes de vida que continuam germinando no meio das ruas, florestas e rios da região.

Em nível local, os povos continuam de pé, com a cabeça erguida, com dignidade lutando e avançando, pintados e enfeitados, bailando ao som dos maracás a dança da vida. Em nível global a consciência ecológica vai crescendo e também o enfrentamento ao sistema econômico capitalista imposto que semeia a destruição e a morte por toda a re-dondeza da terra. Em nível eclesial, também há fortes sinais de esperança. A Encíclica sobre Ecologia, que nos próximos meses será lançada pelo Papa Francisco, denuncia e anuncia profeticamente a responsabilidade humana com a defesa da vida e o cuidado de toda a Criação. Também em setem-bro de 2014, em Brasília, foi oficializada a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), com o lema: “Amazônia, fonte

de vida no coração da Igreja”. O Papa incentivou e conti-nua apoiando firmemente esta proposta: “A missão da Igreja deve ser incentivada e relançada na Amazônia”. A REPAM é uma iniciativa profética que promove uma missão mais geoestratégica na Pan-Amazônia e no mundo. A Igreja é a instituição mais presente em toda a região. A REPAM está rearticulando a missão da Igreja na Amazônia junto a seus povos. Uma missão que escuta o clamor da vida da região e caminha com seus povos.

A REPAM busca desenvolver sua missão na Amazônia fortalecendo e articulando os serviços institucionais (conec-tividade e estabilidade), com os serviços inseridos (proxi-midade e inserção) e com os serviços itinerantes (conectivi-dade e inclusão), tendo assim uma maior incidência na sua ação profética. Um signo forte dessa capacidade de serviço e incidência da REPAM é a audiência que recentemente teve em Washington-DC (19/03/2015), na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Ali denuncia a violação dos direitos humanos e ambientais que sofrem as comunidades indígenas e camponesas afetadas pelas indústrias extrativas.

O bispo Pedro Barreto, Presidente do Departamento de Justiça e Solidariedade do CELAM, ameaçado também de morte por denunciar a violência da mineração no Peru, afirma no CIDH: “Queremos testemunhar a angústia e o sofrimento de muitos irmãos e irmãs que vivem as conse-quências da devastadora e cada vez mais ameaçante ativi-dade extrativista sem rosto humano e sem ética”. Os povos indígenas, com seus projetos de Bom Viver, são caminhos de ressurreição e vida para a humanidade e o Planeta. Essa é nossa força e esperança: o Bom Viver, a Ressurreição e a Vida vencem a morte! Dando um toque amazônico às pala-vras proféticas de São Romero de América: “Se me matam, ressuscitarei na vida do meu povo”, “se nos plantam, ger-minaremos e nos multiplicaremos na vida das florestas, rios e povos da Amazônia!”.

Fernando López, SJ*

* Fernando Ló-pez Pérez nasceu nas Ilhas Canárias, Espanha, em 1960. Estudou Física na Faculdade de Sevilha, Espanha. Quando concluída, foi para o Paraguai como leigo por meio dos Jesuítas, em janeiro de 1985. Ingressou esse mesmo ano no noviciado dos Jesuítas do Paraguai. Estudou Filosofia no Paraguai e Teologia em Belo Horizon-te-MG. Foi enviado para a Amazônia em 1998, destinado para a Equipe Itinerante (1998-2012). Morou alguns anos na tríplice fronteira amazônica de Brasil-Colôm-bia-Peru, no alto rio Solimões. Na Equipe Itinerante, realizou estudos de antropolo-gia cultural e aprofun-damento do serviço à missão sob a pers-pectiva itinerante. Na atualidade faz parte da Equipe Itinerante do CIMI de apoio aos povos indígenas em situação de isolamento em nível pan-ama-zônico. Tem como comunidade jesuíta de base Assis Brasil (Acre), na trípice fronteira Brasil-Pe-ru-Bolívia. E-mail: [email protected].

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472 473A caridade fraterna na Vida Consagrada

Contribuições de Dom Luciano Mendes de Almeida

Nas páginas que seguem, após delinearmos, brevemen-te, o perfil cristão da caridade fraterna, destacaremos a im-portância da mesma na VC, baseados nas considerações do bispo jesuíta. Encerraremos apresentando alguns desdobra-mentos para o Ano da Vida Consagrada.

O perfil cristão da caridade fraternaSabe-se que a prática da caridade fraterna não é proprie-

dade exclusiva do cristianismo. Outras grandes religiões não cristãs, embora à luz de visões antropológicas e teoló-gicas diferentes do cristianismo, também a promovem. O budismo e o hinduísmo, por exemplo, exaltam a importân-cia da benevolência, do altruísmo e da compaixão. O islã possui como segundo pilar a esmola, à qual atribui um valor meritório para a eternidade. Enfim, o judaísmo, baseado no testemunho do Antigo Testamento, conhece uma trípli-ce direção da caridade: de Deus ao ser humano (Dt 7,6-8; 23,5; Os 11,1; Jr 31,20; Ne 9,17; Is 41,8), do ser humano a Deus (Dt 6,5; 13,4; 30,6; Os 2,11, Am 9,11-15; Sl 18,2-4), e do ser humano ao seu semelhante (Ex 23,6.10; Lv 19,10.15; 25,5-6.35; Dt 15,7-8; 24,10-13).3

Para compreender a originalidade da caridade cristã, é útil lembrar que no grego pré-bíblico o conceito de amor se expressava com três verbos: éran (amar de forma possessiva), philein (amar de forma desinteressada e amigável), agapân (amar com amor de predileção). É justamente através deste último verbo e seu substantivo ágape que o Novo Testa-mento conceitua a plenitude do amor entre Deus e o ser humano e dos seres humanos entre si.4

A caridade “ágape” é um amor como, antes de Jesus Cristo, os homens não conheciam de um modo claro e vívido. A caridade “ágape” é, não o amor de quem procura ter [...], mas é um amor de quem tem e comunica, é o amor que se faz dom, oblação, é o amor desinteressado de si, que busca o bem do outro, é o amor gratuito, amor de graça [...]. Assim é que Jesus Cristo traz para os homens a marca de Deus – o amor [...]. Este amor é aquele que Jesus Cristo revela e revela através de toda sua vida [...].5

3 Cf. SBAFFI, Cari-dade, p. 79-81.

4 Cf. ibid., p. 81.

5 ALMEIDA, Ex-periência da caridade fraterna, p. 3.

Artigos

Francesco sorrentino*

IntroduçãoNa Carta Apostólica “Às pessoas consagradas”, em oca-

sião do Ano da Vida Consagrada, o Papa Francisco, entre outras expectativas, pede, aos consagrados e consagradas, um renovado empenho na vivência da comunhão fraterna, porque “críticas, bisbilhotices, invejas, ciúmes, antagonis-mos são comportamentos que não têm direito de habitar nas nossas casas”.1 O Papa propõe um retorno ao eixo da mensagem cristã, isto é, ao amor gratuito, único “hábito distintivo”, elaborado, diretamente, por Jesus (cf. Jo 13,35).

À luz do apelo de Francisco, o nosso artigo aborda a re-lação entre caridade fraterna e Vida Consagrada (VC). Tal abordagem será norteada por algumas reflexões de Dom Lu-ciano Mendes de Almeida (1930-2006), jesuíta que protago-nizou a renovação da VC no Brasil na época pós-conciliar.

Em março de 1972, o então Pe. Mendes proferiu uma palestra sobre o tema: “Vida Religiosa – Experiência de Caridade fraterna”.2 As palavras deste texto visibilizam a profundidade interior de um religioso que não falava por conhecimento teórico, e, sim, pela experiência direta de uma vida pautada pelo serviço aos irmãos e às irmãs, en-tre os quais os pobres tinham sempre prioridade. De fato, no testemunho de Dom Luciano ficou patente que a ca-ridade fraterna passa pelo “lava-pés”. Foi essa a ideia fixa constantemente presente em seus ensinamentos, e pela qual apontou um caminho concreto para a realização do grande sonho de Deus, isto é, a comunhão entre seus filhos e filhas.

* Pe. Francesco Sorrentino é mis-sionário do PIME (Pontifício Instituto das Missões). Mestre em Teologia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte, 2014). Coordena o Centro Missionário PIME de Macapá-AP, assessora encontros e orienta retiros espirituais. É membro da Comissão Histórica do Proces-so de Beatificação e Canonização do Servo de Deus Dom Luciano P. Mendes de Almei-da. Endereço do autor: Pontifício Ins-tituto das Missões, Av. Pe. Manoel da Nó-brega, 1046, Jesus de Nazaré, Caixa Postal 95, CEP 68906-970, Macapá-AP. E-mail: [email protected].

1 FRANCISCO, Papa. Carta Apostólica às pessoas consagradas: em ocasião do Ano da Vida Consagrada. São Paulo: Paulinas 2014. p. 20.

2 Citaremos os tre-chos que selecionamos como estão na fonte, no formato original, embora pareçam truncados por não te-rem passado por uma correção estilística.

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A caridade fraterna na Vida Consagrada

Conforme nos recorda João, Jesus Cristo é a revelação his-tórica do amor de Deus ou, conforme uma expressão de Dom Luciano, a “grande dicção do amor de Deus”.6 De fato, “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). Toda a vida do Filho de Deus foi uma verdadeira lição do ágape divino. Apresentou-se como aquele que “veio para servir e não para ser servido” (cf. Mc 10,45) e realizou este serviço com um amor descentrado de si, inteiramente vol-tado ao bem do outro, oblativo e gratuito (cf. Mt 5,38-48).7 O amor revelado por Jesus é “amor primeiro”, porque brota exclusiva e diretamente da bondade de Deus. Não é suscita-do pelas qualidades humanas (cf. Tt 3,4-7),

mas pelo contato daquela explosão de bondade que constitui o

outro como bom. A justiça de Deus é aquela que faz o homem

justo, a bondade de Deus é aquela que faz o homem bom. Esta

é a grande mensagem do amor de Deus: Eu vos amo. Sim, Jesus

Cristo revelou isso em sua vida, ensinou isso a seus discípulos,

ele mandou isso a seus discípulos. O mandamento é o amor

novo, o amor novo é esse amor sem fronteira, é amor gratuito.

O grande preceito da vida cristã é: “Amai-vos uns aos outros

como eu vos tenho amado”.8

O perfil cristão da caridade fraterna, portanto, é dado pelo amor gratuito que procede de Deus e se exterioriza, na vida comunitária, como “amor a fundo perdido”9 (cf. Lc 14,12-14), através do serviço, causa da verdadeira felicidade cristã (cf. Jo 13,17). Esse é o amor novo testemunhado pelas primeiras comunidades cristãs (cf. At 2,32-42), “onde a ida-de, a nação, o preparo, a riqueza, a classe social não tiveram mais que pôr barreiras. Houve ali um coração só, uma vida só, colocação até em comum dos bens, [...]”.10

Finalmente, no cristianismo a caridade fraterna não é mera realização de ações benevolentes, embora estas sejam necessárias para manifestá-la, mas a forma peculiar pela qual se expressa a identidade cristã e se cumpre o legado de Jesus

6 Id., Teologia espi-ritual: experiência religiosa cristã, p. 25.

7 Cf. id., Experiência da caridade fraterna, p. 3.

8 Ibid., p. 3.

9 Ibid., p. 4.

10 Ibid., p. 4.

Cristo: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” ( Jo 13,34-35).

Nessa perspectiva se insere a VC, que, ao dizer de nosso autor, “é antes de tudo, uma vida comunitária em que há grande exercício de caridade fraterna. [...] A vida religiosa tem uma grande experiência de caridade fraterna, uma ex-periência qualificada”.11

A caridade fraterna na VCNa VC a caridade fraterna se realiza por meio da vida em

comum, que “não se reduz, de forma alguma, a viver juntos sob a mesma regra e sob o mesmo teto”.12 O Concílio Vati-cano II recomenda:

A vida em comum, a exemplo do que sucedia na primitiva Igre-ja, quando a multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma (cf. At 4,32) alimentada pela doutrina evangélica, pela sagrada liturgia e, sobretudo, pela Eucaristia, persevere na oração e na comunhão do mesmo espírito (cf. At 2,42). Os religiosos, como membros de Cristo, tratem-se uns aos outros com recíproco respeito (cf. Rm 12,10), carregando uns os fardos dos outros (cf. Gl 6,2).13

Segundo Dom Luciano, infelizmente,

[...] para os homens que nos conhecem, nós não somos um sinal evidente disso. Nas nossas comunidades há aspectos de mesqui-nhez, insatisfação, frequentemente as pessoas colocam em causa as vocações, porque não experimentam a comunhão [...].14

A questão não é, meramente, organizativa. Com efeito, na VC, “[...] a caridade fraterna [...] flui, ela deveria fluir de uma convicção, de um acolhimento do amor de Deus para conosco”.15 Isto pressupõe a tomada de consciência de que o amor de Deus nos precede e está na origem do nosso existir (cf. Jr 31,3; Sl 139, 13-16) e, mais, plenifica o vazio da

11 Ibid., p. 1.

12 CALIMAN, Per-fectae Caritatis: texto e comentário, p. 78.

13 PC 15.

14 ALMEIDA, Ex-periência da caridade fraterna, p. 5.

15 Ibid., p. 5.

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existência humana (1Jo 4,8.17-18). Todavia, quando a expe-riência de Deus é fraca, também a consciência da gratuidade do amor dele para conosco se enfraquece e, por conseguin-te, a pessoa consagrada não consegue ser o que Deus a cha-mou a ser, isto é, sinal da bondade divina. Nascem, assim, na comunidade de VC, relações baseadas mais em aspectos externos ou meramente psicológicos, e não no acolhimento do outro à luz de Deus (cf. Rm 15,7).16

Em suma, a experiência pessoal do amor de Deus, que se traduz em gestos comunitários de serviço, possibilita a vivência da caridade fraterna na VC.

[...] Da experiência da gratuidade de Deus para comigo, eu me

torno gratuito no meu amor e assim como Deus é bom e faz

nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e a chuva sobre os gra-

tos e os ingratos, nos perdoa quando nós estamos longe, assim

também essa gratuidade entra em nós e se transforma em gesto

de bondade dentro da comunidade. Então é o acolhimento do

religioso idoso, é o cuidado para o religioso doente, depressivo,

diminuído, é a vontade de colaborar numa tarefa escondida,

é a vontade de não abandonar uma comunidade quando essa

comunidade atravessa momento difícil [...] Se isto renascer nas

nossas comunidades, dentro de nossas casas, nós teremos a ale-

gria do Evangelho: “Sereis felizes”. Essa felicidade que o mundo

não pode dar, mas que nós podíamos chegar a experimentar, é

também intenção de Deus.17

Além disso, na VC, a caridade fraterna não fica enclausu-rada no âmbito da pequena comunidade ou grande congre-gação. Ultrapassa-o, para chegar a reconhecer, em toda pes-soa necessitada, a presença do Senhor Jesus (cf. Mt 25,31-46). Dessa forma, então, ela se põe a serviço da fraternidade universal.

A nossa maior missão não é salvar nossas comunidades [...], mas

é realmente criarmos obras novas para esses homens novos que

surgem hoje, cheios de necessidades e às quais Deus quer esten-

der a sua solicitude paterna e gratuita por esse gesto que somos

16 Cf. ibid., p. 5-6.

17 Ibid., p. 6.

nós, a expressão da solicitude de Deus em comunicar [...]. Assim

também, nós somos esses braços de Deus, atendendo, curando

esses doentes, cuidando dos pobres, entrando na vida dos ho-

mens para fazermos o bem em nome de Deus.18

Sabemos, de fato, que o destino da humanidade é a for-mação de uma única família em Cristo, pelo Espírito (cf. Gl 3,28), e a Igreja representa o estado embrionário desta comunhão (cf. Rm 12,4-5). Na Igreja, pois, a VC, pela as-sunção de um estilo fundamentado na gratuidade, torna-se sinal crível da fraternidade cristã e instrumento de unifi-cação da grande família humana, por meio da evangélica opção preferencial pelos pobres.19 É esse o testemunho que o mundo espera da VC! Caso contrário, será um contrates-temunho. Nesse sentido, Dom Luciano nos deixa um ques-tionamento importante:

Será que nós não somos mais responsáveis pela falta de voca-

ções? Será que apesar da crise social, das mudanças sociais de

nosso tempo, não é a falta de exercício de bondade comunitária

e apostólica que desfigurou a nossa comunidade, a nossa insti-

tuição aos olhos das pessoas com que vivemos?20

ConclusãoAs reflexões de Dom Luciano convidam a superar uma

visão sentimentalista e quase infantil da bondade comuni-tária. Mostram que a caridade fraterna, com perfil cristão, é um ato de fé com dúplice desdobramento. Comporta, de fato, crer na gratuidade do amor de Deus e crer no valor do irmão, até o ponto de servi-lo, por amor.

O Ano da Vida Consagrada, além da dimensão come-morativa, necessita assumir, também, uma dimensão pu-rificatória. Em outras palavras, trata-se de proporcionar às comunidades de VC, durante este Ano, uma purificação daquelas incrustações que não lhes permitem resplandecer com todo o seu brilho. Uma dessas é, justamente, a falta de verdadeira comunhão ad intra e ad extra. Acreditamos, de

18 Ibid., p. 7-8.

19 Cf. ibid., p. 7.

20 Ibid., p. 9.

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fato, que na VC a experiência da caridade fraterna é o crivo pelo qual passa tanto a credibilidade do Evangelho quanto a da consagração de quem sentiu o chamado a ser epifania da bondade de Deus no meio da humanidade. Compreen-demos, então, que não se trata de um aspecto periférico ou opcional. Exige o máximo comprometimento por parte de cada consagrado e consagrada.

Referências bibliográficasA BÍBLIA de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 2003.ALMEIDA, Luciano. Experiência de caridade fraterna. Disponível em:

<http://www.famariana.edu.br>. Acesso em: 26 dez. 2013. Curso, mar. 1972.

______. Teologia espiritual: experiência religiosa cristã. Dom Luciano Mendes de Almeida: formação e magistério. Disponível em: <http://www.famariana.edu.br>. Acesso em: 26 dez. 2013. Curso de cultura religiosa, ago. 1970.

CALIMAN, Cleto. Perfectae Caritatis: texto e comentário. São Pau-lo: Paulinas, 2012.

KLOPPENBURG, Boaventura; VIER, Frederico (Org.). Compên-dio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

SBAFFI, Mario. Caridade. In: DE FIORES, S.; GOFFI, T. (Org.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 78-88.

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Quais são os sinais concretos que confirmam a vi-

vência da caridade fraterna em nossas comunidades e fora delas?

2. Se a caridade fraterna é, realmente, um aspecto essen-cial da VC, que lugar ela ocupa na formação inicial e contínua de nossos Institutos e Congregações?

3. Concorda-se com Dom Luciano que a “falta de bon-dade comunitária e apostólica” contribui, entre outras causas, à diminuição numérica de vocações para a VC?

Exercício do poder: grande desafio para a VRC

Frei Moacir casagrande*

* Frei Moacir Casagrande, OFMcap, nasceu no Rio Grande do Sul. É Frade Menor Ca-puchinho. Atua como assessor e pregador de retiros. Reside em Campo Grande-MS. Escritor e membro do Conselho Editorial da CRB. E-mails: [email protected] / [email protected].

Amplidão do assuntoO poder faz parte da vida. Viver é poder, não poder é

morrer. Onde há vida, há expressão de poder. O poder se expressa de inúmeras maneiras, sempre legítimas, quando direcionadas à realização dos dons que Deus colocou em cada ser, em consonância com o bem dos demais seres. Mas a vida tem vários estágios e condições de transitoriedade que precisam ser entendidos, respeitados e assimilados para o bem do próprio vivente. A relação entre os viventes é também uma relação de poder. Isto pode ser verificado in-clusive em relação aos seres ditos inanimados. O sal, por exemplo, tem um poder de ação sobre os seres animados, sobre os serem vivos. Um poder próprio de sua composição. Vê-se, portanto, a complexidade que existe na abordagem desta realidade.

Nosso foco, porém, é mais específico. Vamos tratar aqui do exercício do poder na Vida Religiosa Consagrada (VRC), partindo da dimensão apontada por Jesus aos discípulos e peregrinando pelas ocorrências do termo em todo o Se-gundo Testamento. “Como sabeis, os que são considerados chefes das nações as mantêm sob seu poder, e os grandes, sob seu domínio. Não deve ser assim entre vós. Pelo contrário, se alguém quer ser grande dentre vós, seja vosso servo, e se alguém quer ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos. Pois, o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão” (Mc 10,42-45).

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Olhando para JesusEvidentemente para a VRC a referência do poder e o mo-

delo de usar o poder é Jesus e sua prática. O que não con-verge para isso, não tem legitimação. O modelo sistêmico adotado pelo mundo, em que vivem Jesus e os discípulos, está completamente fora de propósito. Jesus é enfático ao fa-lar disso com os discípulos: “Entre vós não deve ser assim”. Isto significa dizer: entre vós não pode haver dominação, imposição, controle, coação, prevalecimento de hierarquia, de privilégios, mandato que nunca termina, caprichos etc. A prioridade de quem ocupa a posição de liderança, no mo-delo de Jesus, é servir. Unicamente servir. Grande é quem serve na humildade, pois a grandeza para quem se engaja no Reino de Deus está em servir. Quem serve é capacitado, quem é servido, é necessitado.

Já na narrativa do lava-pés ele nos mostra que:

a) Servir é prioridade. É o serviço que sustenta a unida-de, a comunhão.

b) Para servir ao modo de Deus é preciso se despojar. Ti-rar o manto, distintivo de grandeza, e vestir o avental, sinal de simplicidade e entrega.

c) O serviço precisa ser exercido em rodízio. A rotati-vidade é um antídoto contra os vícios do poder e ao mesmo tempo um desafio para a mútua capacitação e confiabilidade.

d) O serviço deve atingir a todos, de modo que todos sirvam e também sejam servidos. “Vós deveis também lavar-vos os pés uns aos outros. Eu vos dei o exem-plo” ( Jo 13,14-15).

e) Este é o caminho da felicidade, da realização e da humanização. “Sabendo isso, sereis felizes, se o pra-ticardes” ( Jo 13,17), pois a verdadeira realização – a felicidade – está em servir, em dar de si, em sair de si em direção e em favor do/a outro/a.

Mas a coisa não para por aí. Servir não é só fazer algo em favor do/a outro/a; é mais, é doar-se em favor do/a outro/a;

mais ainda, dar a vida pelo bem do/a outro/a. Servir não é só um ato de amizade, de caridade ou de humanidade, é um estilo de vida, um modo de ser: “ser para os outros porque escolheu ser para Deus”. Está claro que não se trata de cada um servir ao seu modo, mas ao modo de Jesus, se-gundo a narrativa do santo Evangelho. E para consagrados e consagradas não se trata de coisa circunstancial, mas de rea-lidade axial, fundamental, central. É nesse sentido que Pau-lo orienta a Igreja de Roma para um sério discernimento: “Rogo-vos, irmãos, que estejais alerta contra os provoca-dores de dissensões e escândalos contrários aos ensinamen-tos que recebeste. Evitai-os. Porque estes tais não servem a Cristo, nosso Senhor, mas ao próprio ventre, e com palavras melífluas e lisonjeiras seduzem os corações simples” (Rm 16,17-18). Paulo não está advertindo a comunidade em rela-ção a pessoas de fora, mas em relação a pessoas do meio dela, que nela ingressaram mediante os ensinamentos cristãos e que agora se aproveitam da comunidade em favor de si. É prudente estar alerta para essa realidade entre nós.

Luzes para a nossa compreensão de poderNo mundo grego encontramos quatro termos para ex-

pressar o poder. Dois deles: “exousia” = autoridade, e “di-namis” = potência, muito usados nas narrativas evangélicas e em todo o Segundo Testamento. Dois deles: “cratos” = poder, e “iskus” = força, com apenas algumas ocorrências nos escritos neotestamentários. Por meio destes quatro ter-mos queremos nos aprofundar na compreensão do poder, segundo a Palavra de Deus.

I – exousia = Autoridade

O primeiro termo é “exousia”, traduzido por autoridade, apa-rece 102 vezes no Segundo Testamento1 e indica o poder de ação recebido de alguém. Tal poder pode ser dado ou herdado por direito natural, direito legal ou ainda pela li-berdade que alguém assume diante de uma situação. Auto-ridade é um poder que pode ser delegado, doado, recebido,

1 Mt 7,29; Mc 1,22; Lc 4,32; Mt 8,9; Lc 7,8; Mt 9,6; Mc 2,10; Lc 5,24; Mt 9,8; Mt 10,1; Mc 3,15; Mc 6,7; Lc 9,1; Mt 21,23.24; Mc 11,28.29; Lc 20,2; Mt 21,27; Mc 11,33; Lc 20,8; Mt 28,18; Mc 1,27; Mc 13,34; Lc 4,6.36; Lc 10,19; Lc 12,5.11; Lc 19,17; Lc 20,20; Lc 22,53; Lc 23,7; Jo 1,12; Jo 5,27; Jo 10,18.18; Jo 17,1-2; Jo 19,10.11; At 1,7; 8,19; 9,14; 26,10.12.18; Rm 9,21; 13,1-3; 1Cor 7,37; 8,9; 9,4-6.12.18; 11,10; 15,24; 2Cor 10,8; 13,10; Ef 1,21; 2,2; 3,10; 6,12; Cl 1,13.16; 2,10.15; 2Ts 3,9; Tt 3,1; Hb 13,10; 1Pd 3,22; Jd 25; Ap 2,26; 6,8; 9,3.10.19; 11,6.6; 12,10; 13,2.4.5.7.12; 14,18; 16,9; 17,12.13; 18,1; 20,6; 22,14.

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partilhado. A autoridade se confirma na eficácia. No caso de liberdade pessoal pode-se também falar de autonomia e/ou de orgulho. Neste último caso entra-se no campo das liberdades individuais que não podem ser dissociadas da corresponsabilidade social. Quando a liberdade individual se dissocia, temos um rompimento do tecido social com prejuízo para todos.

No Segundo Testamento “exousia” é o poder concedido por Deus à natureza e ao cosmos. Poder, força e liberdade de agir, de possuir e de transmitir aos outros, conferido pelo Pai a Jesus e, por ele, a seus discípulos. “Exousia” é um poder delegado.2 Para os cristãos é sempre a expressão do poder de Deus, diante do qual só cabe discernir e acatar. Só Deus tem autoridade própria. “O homem nada pode se arrogar que não lhe tenha sido dado por Deus” ( Jo 3,27). Aí se en-tende a expressão de Paulo: “Ai de mim se não evangelizar” (1Cor 9,16), pois o Evangelho e a missão de evangelizar que ele possui é puro dom de Deus em Cristo Jesus. Podemos ainda valer-nos da parábola dos talentos (Mt 25,14-30) para aprofundar o que estamos tratando.

1) A verdadeira autoridade. A autoridade de Jesus é o que encanta os frequentadores das sinagogas (Mc 1,22; Lc 4,32) e as multidões (Mt 7,28-29). Ambos confrontam com a au-toridade dos escribas, que eram os oficiais do ensino na si-nagoga. Eles estudavam, preparavam-se muito para ensinar a Palavra de Deus e a vontade de Deus nela. Mas, segundo Marcos e Lucas, seu ensino era sem autoridade.

Onde se encontra então a autoridade do ensino? Na rela-ção direta com a prática, em sua simplificação e clareza de aplicação. Os frequentadores da sinagoga estão acostumados com o ensino dos escribas, por isso estão aptos para opinar no confronto com Jesus. Eles encontraram ainda outra di-ferença significativa de autoridade entre os escribas e Jesus. Os escribas nem percebem a presença de espíritos impuros na sinagoga. Diante de Jesus, porém, os espíritos se acusam, são expulsos e saem imediatamente (Mc 1,27). A autoridade de Jesus se impõe pela sua presença, pela sua vivência, pela sintonia com o Pai. Os espíritos não resistem à presença de

2 Cf. Grande Léssico del Nuovo Testamento, vol. III, Paideia, Bres-cia, coluna 639.

Jesus, nem subsistem à palavra dele. Diante de Jesus tudo fica transparente. Isto é absolutamente novo e comprova a verdadeira autoridade, pois esta distingue o mal e liberta dele as pessoas.

2) Autoridade no Templo. A Páscoa se aproxima, Jesus vai ao Templo em Jerusalém, expulsa vendedores e cambis-tas e diz: “Não está escrito: Minha casa será chamada casa de oração para todas as nações? Vós, porém, fizestes dela uma caverna de bandidos” (Mc 11,17). Afinal, quem e o que manda no Templo? Deus, as autoridades, o dinheiro, a oportunidade? No entendimento das autoridades: sacer-dotes, escribas e anciãos, o Templo está a eles subordinado. Jesus está abusando da autoridade, fazendo o que não lhe é permitido e desprezando quem foi instituído como autori-dade. Por isso vão tirar satisfação com Jesus (Mc 11,28; Mt 21,23), mas não querem dar satisfações a Jesus (Mc 11,33; Mt 21,24). Este é um absurdo que continua atrapalhando todas as relações também hoje. Vergonhoso é quando acon-tece dentro de nossas comunidades religiosas e igrejas. Re-ceber e dar satisfação do que está acontecendo e do que se pretende fazer acontecer é absolutamente necessário, um dado básico, para que todos os membros da fraternidade, ou comunidade, exercitem o bem comum.

Abuso de autoridade é o que escribas, fariseus e sacerdotes estão praticando, pois o Templo não está aí para se fazer dele o que se quer, mas o que se deve fazer. Quem não cumpre e não respeita o dever, perde a autoridade. O Templo é casa de oração para todas as nações e não apenas para uma elite escolhida que estabelece quem pode e quem não pode participar, que estabelece os custos, taxas e leis a cumprir no exercício das obrigações religiosas. A autoridade tem a missão de zelar e não tem direito algum de abusar. A prática do abuso desautoriza a autoridade. Fazer o que se quer é mais sinal de arbitrariedade que de autoridade. O Templo não é instrumento de quem lidera, mas graça de Deus para todos. O mesmo se pode dizer da paróquia, da comunidade e da instituição que nos é confiada. À luz do acontecimen-to do Templo podemos analisar como exercitamos nossa

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autoridade em relação às pessoas e aos meios que nos são confiados. Somos missionários ou mercenários?

Outro desafio que o texto nos apresenta diz respeito à no-vidade suscitada por João Batista. Novidade esta que obteve grande adesão do povo, mas as autoridades se recusam re-conhecer nela a mão de Deus (Mc 11,29-33). A autoridade recebida de Deus levou-os a um autoendeusamento. Eles acham que tem a bola de cristal para ver e saber de todos os desígnios de Deus. Se Deus não concordar com eles, nada feito. Assim a espiritualidade cede lugar a um narcisismo e a uma verdadeira exploração comercial. Tentação que persiste ao longo dos séculos enquanto o ser humano existir. Isso, segundo os evangelistas, caracteriza o antievangelho. É o que o diabo gosta de fazer. Tornar absoluta uma autoridade, um poder relativo: “O diabo disse a Jesus: eu te darei toda esta autoridade com a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu dou a quem eu quiser” (Mt 4,9; Lc 4,6). O dom, o poder e a autoridade de Deus a nós concedidos não são para absolutizar nem para nos apossar, mas para solida-rizar, para o serviço da missão.

3) A autoridade de Deus é partilhada. É o que a prática de Jesus demonstra. Ele a partilha com os discípulos, capaci-tando-os para a mesma missão: “Tendo chamado seus Doze discípulos, Jesus lhes deu autoridade sobre os espíritos im-puros, para que os expulsassem e curassem toda doença e toda enfermidade” (Mt 10,1; Mc 3,15; Mc 6,7; Lc 9,1). A au-toridade é dada com um objetivo bem determinado, trata-se do resgate dos necessitados: expulsar espíritos impuros, curar doenças e enfermidades. A mesma atitude é exercita-da em relação ao envio dos setenta e dois: “Eis que vos dei autoridade de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo, e nada poderá vos causar dano” (Lc 10,19). Exorta, além disso, a não se deixarem tomar pelo medo da morte físico-biológica. Ela é normal e natural. Matar as condições de vida da pessoa e/ou de outro ser vivo não demonstra autoridade alguma, mas desumanidade. “Temei aquele que depois de matar tem autoridade de lançar na Geena: sim, eu vos digo, a este temei” (Lc 12,5). A autoridade vinda de

Deus é verdade, justiça e amor. Quanto mais doado alguém se faz, mais autoridade se torna (cf. Mt 16,24-25).

Jesus garante aos discípulos, por ele enviados, assistência até o fim. “Quando vos conduzirem às sinagogas, perante os magistrados e perante as autoridades não vos preocupeis como ou com que defender, nem com o que dizer” (Lc 12,11). A autoridade partilhada, inicialmente para a missão em Israel, é conferida em favor de todas as nações e por todos os séculos. Israel não é o xodó de Deus, mas o ponto de partida de uma responsabilidade universal. O mesmo se diga dos consagrados e consagradas de hoje: “Jesus apro-ximou-se deles e disse: Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Ide, pois, e de todas as nações fazei dis-cípulos...” (Mt 28,18). Nisto há coerência com o Primeiro Testamento, onde podemos ver Deus sempre chamando e enviando os chamados, não antes de conferir-lhes autorida-de (empoderando) para que, em seu nome e na sua finalida-de, exercitem a missão confiada (Ex 3,12; 4,17; 1Rs 17,5-8; Is 6,5-7; Jr 1,4-10).

4) A razão da partilha da autoridade. A autoridade delegada por Deus é claramente para fazer o bem comum. É eviden-temente uma autoridade para servir. Isto se pode apreender da explicação de Jesus, de como será o fim. O senhor, antes de viajar, repartiu e delegou a autoridade de sua casa a seus servos de acordo com cada função. Dentre todas nomeia apenas a do porteiro: “vigiar” (Mc 13,34). Aí está claro que o porteiro é a sentinela de toda a casa. A ele cabe a missão de zelar pela fidelidade à missão e discernir o tempo da chegada do senhor, mas através dele toda a casa estará de sentinela. Não importa a hora que o senhor chega, mas im-porta muito a fidelidade do servo à missão que o senhor lhe confiou. Os servos receberam autoridade do senhor, mas para a finalidade pelo senhor determinada e ponto final.

Enquanto Marcos não nos diz como foi o fim, Lucas narra a situação na volta do senhor. Os que se esmeraram recebe-ram dupla responsabilidade: “Muito bem, servo bom, disse ele, uma vez que te mostraste fiel no pouco, recebe autori-dade sobre dez cidades” (Lc 19,17). Mas quem não se aplicou

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perdeu o pouco que recebeu: “Servo mau, é segundo tuas palavras que te devo julgar. Tirai-lhe a sua moeda e dai-a a quem tem dez” (cf. Lc 19,20-24). Há ainda quem abuse da autoridade ou se ache absoluto, como é o caso de Pila-tos. “Pilatos lhe disse: ‘Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te libertar e te crucificar?’ Jesus disse: ‘Não terias autoridade alguma sobre mim se não te fosse dada do alto’” ( Jo 19,10.11). Outros ainda, como Simão, o mago, querem fazer negócios com os dons de Deus. “Simão ofereceu dinheiro a Pedro e disse: ‘Dai também a mim esta autoridade para que receba o Espírito Santo todo aquele a que eu impuser as mãos’” (cf. At 8,19). O Simão mago quer corromper o Simão Pedro. A proposta dele caracteriza o adultério do poder. O que fazemos nós com a graça da con-sagração pela qual Deus nos chamou a seu serviço? Exerci-tá-la em favor do bem comum é a meta apontada por Jesus: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão” (Mc 10,45).

Paulo apóstolo, escrevendo aos romanos, chega a afirmar que: “Toda a autoridade vem de Deus e a ela as pessoas devem se submeter. Quem se rebela contra a autoridade, se rebela contra a ordem por Deus estabelecida. Isso porque, segundo Paulo, as autoridades são estabelecidas para o bem comum” (cf. Rm 13,1.2.3). Portanto, se uma autoridade es-tabelecida não tratar do bem comum, estará sendo infiel a Deus que lhe delegou tal poder. Ela não pode ordenar o mal, e se ordenar não é de Deus.

5) A autoridade que tem sua fonte em Deus não é imposição. Conforme Atos dos Apóstolos, no comportamento de Pau-lo se pode fazer um bom discernimento. Há uma autori-dade para perseguir, prender e matar, que é a que Paulo recebe dos sumos sacerdotes de Jerusalém (cf. At 26,10-12). Tal autoridade se arroga poderes divinos, que, na realida-de, não passam de interesses humanos. Obrigar as pessoas a seguirem Deus não é projeto de Deus. Deus não precisa disso. No encontro com o Ressuscitado, no caminho de Damasco, Paulo descobre a autoridade da vida que liberta das amarras da lei e oferece a graça da salvação a todas as

nações. Jesus não impõe, ele oferece, não limita, mas amplia (cf. At 26,13-18).

6) A autoridade de Deus se fundamenta na graça e não no direi-to. Paulo é autoridade na Igreja de Cristo. É evangelizador das nações. É fundador da igreja de Corinto, acompanha-a com suas cartas pastorais. Dedica-se totalmente a serviço do Evangelho e da Igreja. Ele tem os mesmos direitos que todos os evangelizadores, mas, no encontro com o Res-suscitado, descobriu que a gratuidade está acima e além de todos os direitos. Outros evangelizadores ou pseudoevange-lizadores exercem autoridade e cobram pelo seu exercício. Não é assim que procede a autoridade do Evangelho segun-do a experiência de Paulo. “Se outros exercem essa auto-ridade sobre vós, não devíamos nós com mais razão? Mas não usamos essa autoridade, ao contrário, suportamos tudo para não criar obstáculo ao Evangelho” (1Cor 9,12). O que prevalece é a autoridade do Evangelho. Por isso Paulo e sua equipe adotam uma nova prática a qual se espera prevale-cer. Não é o Evangelho que está submisso ao evangelizador, mas este ao Evangelho. Tal atitude relativiza muitos atos ou práticas de pessoas, mais dadas ao ciúme do poder que ao serviço de Deus a seu povo. Não fui eu quem adquiriu o Evangelho, mas Jesus que me convidou a entregar-me a ele. Na verdadeira entrega fui tomado pelo Evangelho. Por isso Paulo diz: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Pois a minha vida presente na carne eu a vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Portanto, o meu poder agir é, antes de tudo, graça de Deus.

Assim conclui Paulo: “Qual é então o meu salário? É que, pregando o Evangelho, o faço gratuitamente, sem usar da autoridade que a pregação do Evangelho me confere” (1Cor 9,18). Tem mais. A autoridade precisa também zelar pelos súditos respeitando a condição em que se encontram. “To-mai cuidado para que vossa autoridade não se torne causa de queda para os fracos” (1Cor 8,9). O conhecimento e a certeza dos entendidos, fortes, não deve se impor aos fracos, curtos de inteligência e simples. O que escandaliza, mesmo

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que tenha razão, sempre tem maior culpa que o escandali-zado. A razão não pode violentar a consciência. Abrir mão do direito, tendo clara consciência dele, é expressão de au-toridade, realizada na liberdade cristã.

7) A deturpação do poder. A obediência de Cristo desmas-cara e destrói toda a autoridade rebelde. Há uma crença em Poderes e Autoridades, Principados e Potestades difusos pelos ares, entre o céu e a terra, influenciando a criação e especialmente a humanidade. Tais autoridades e poderes ultrapassam os limites de suas alçadas e se arrogam mais do que na verdade tem condições. “Nele vivíeis outrora, con-forme a índole deste mundo e o Príncipe da autoridade do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência” (Ef 2,2). Esta crença é boa para quem quer jogar a culpa nos outros e continuar na irresponsabilidade. Desde o pecado de Adão e Eva (Gn 3,9-13) ela tem discípulos e discípulas. Como entramos no domínio de tais poderes? Submetendo--nos aos desejos da nossa carne (Ef 2,3). Paulo, escrevendo aos Efésios e aos Colossenses, enfrenta o assunto mostrando que tudo isso, querendo ou não, está submisso a Jesus Cris-to. Ele nos arranca do poder das trevas. “Na cruz ele ( Je-sus) despojou os Principados e as Autoridades, expondo-os em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo triunfal” (Cl 2,15). O cortejo triunfal deles era colocar Jesus na cruz e assassinar. O modo como Jesus assume a cruz tor-na ridículo o cortejo triunfal deles.

Enquanto a humanidade, seguindo tais poderes, desejos, instintos, cai na desobediência e caminha para a ruína, Jesus Cristo por sua humanidade manifesta a riqueza da mise-ricórdia de Deus e nos coloca de novo em condições de superação. “Para dar a conhecer agora aos Principados e às Autoridades nas regiões celestes, por meio da Igreja, a mul-tiforme sabedoria de Deus” (Ef 3,10). Conscientes de que a força de tais poderes é grande e nos pode arrebatar, lança-mos mão da vigilância no Senhor. “Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominado-res deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que

povoam as regiões celestiais” (Ef 6,12). Chega de justificar nossas quedas por conta da fraqueza da carne ou da tentação do maligno. Levantemos a cabeça e coloquemos nosso foco no que realmente pode fazer a diferença. “Ele (Pai) arran-cou-nos da autoridade das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado” (Cl 1,13). “Porque nele foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, as visíveis e as in-visíveis” (Cl 1,16). Tudo por Deus foi criado e a ele vai estar submisso por meio de Jesus Cristo. “Ele é a cabeça de todo o Principado e de toda Autoridade” (Cl 2,10).

Na prática acabaram as desculpas para impor, oprimir, abusar, satisfazer nossas vontades e caprichos, não se im-portando com o bem dos que fazem parte do nosso mundo. Se por um lado somos fracos e caímos pela influência de superpoderes, por outro, nossa adesão a Cristo nos habilitou e capacitou a superar todos os superpoderes. Abusos, ma-nipulações explícitas ou veladas de poder e autoridade não acontecem sem a nossa permissão ou colaboração. A respos-ta mais radical a tais iniquidades é o martírio.

8) Autoridade da autoria, a falácia da imitação. Há uma dra-mática luta entre submissão e rebeldia desde o interior de cada pessoa passando por grupos e organizações em todos os níveis. Não restam dúvidas de que a originalidade esteja com o autor, mas os leitores e comentadores podem dar in-terpretações e vislumbrar luzes, mais além ou aquém da in-tenção do autor. Aí se encontra o permanente desafio entre a obediência e a rebeldia. Nesta verdade, vencedor é quem se encaixa na intenção do autor (Criador) e nela permanece até o fim. “Ao vencedor, ao que observar a minha condu-ta até o fim, conceder-lhe-ei autoridade sobre as nações” (Ap 2,26). Assim, a verdadeira autoridade não está em fazer a própria vontade. A verdadeira autoridade se constrói na entrega à missão de Cristo. Fica evidente a necessidade do cultivo da dimensão espiritual (orante), da relação vivencial com Cristo e com aqueles pelos quais ele deu a vida. O autor de Apocalipse deixa claro que é renhida a luta entre obedientes e rebeldes, mas os obedientes vencerão pela obe-diência, isto é, pela fidelidade ao autor e à originalidade do

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projeto, enquanto os rebeldes sucumbirão pela rebeldia. Os filhos da rebeldia aí têm como símbolo de sua liderança o dragão. “O dragão entregou à besta seu poder, seu trono e grande autoridade” (Ap 13,2). Tal autoridade está totalmen-te em função de si mesma e tem como fim a autodestruição. Os filhos da obediência, por sua vez, são liderados por Jesus e seguem a sua dinâmica. “Felizes os que lavaram suas vestes para terem autoridade sobre a árvore da Vida e para entra-rem na Cidade pelas portas” (Ap 22,14).

9) A força das tentações e o poder que a submete (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13). Orientando-nos pelo confronto de Jesus com as tentações, no deserto, abordamos o uso do poder na satisfa-ção das necessidades básicas da vida. Pois é disso que se trata quando se fala das tentações sofridas por Jesus. Em tudo, a todo o momento, exercitamos o poder. Há um modo sim-bólico, integrativo, potencializador, e um modo diabólico, dispersivo e destruidor. O Espírito proporciona a Jesus rea-lizar, de maneira definitiva, por meio de sua humanidade, para toda a humanidade, o discernimento do caminho que realmente conduz à vida.

a) O uso do poder para saciar a fome (Mt 4,1-4 e Lc 4,1-4). A idolatria e a ortodoxia na relação com os alimentos. A fome, no ser vivo, faz parte da natureza querida e criada por Deus. Todo vivente precisa se alimentar para se manter vivo e ativo. Mas essa necessidade não pode ser satisfeita a qual-quer custo e de qualquer jeito. Há um modo de satisfazê-la sem Espírito, isto é, a qualquer preço como se tudo o mais estivesse a isso subjugado e simbolizado por “transformar pedras em pão”. É o uso do poder de transformar em favor de si, não se importando com a natureza e a ordem das coisas, criadas segundo o desígnio de Deus, que é sempre para o bem comum. Jesus se recusa a usar, desse modo, o poder, mesmo em favor de sua própria sobrevivência, pois há um modo orientado pelo Espírito para fazer isso. É um modo moderado, equilibrado e organizado, de saciar a mes-ma fome na mesma pessoa, simbolizado em “nem só de pão vive o homem...”. Se o pão de trigo alimenta a vida, o pão da instrução pela Palavra garante o sentido dela (cf. Jo 4,32),

um não se sustem sem o outro, pelo contrário, um garante o outro. Há um procedimento de saciar a fome, orientado pelo Espírito e um procedimento sem Espírito. Sentir fome e saciar-se é tão normal, tão natural, que muitos têm difi-culdade de ver nisso uma prática verdadeiramente espiritual e divina. Quem de nós se dá conta disso? É nessas coisas, feitas todos os dias, sem nem mesmo refletir, que disciplina-mos e purificamos o uso do poder ou então anarquizamos de vez e destruímos as relações em todas as suas dimensões. Saciar a fome é uma justificativa nobre, mas isso não dá o direito de lançar mão de práticas miseráveis, predadoras, desumanizadoras. Como exercemos o poder na busca de saciar nossas fomes?

b) O uso do poder para expressar brilho próprio (Mt 4,5-7 e Lc 4,9-12). A idolatria e a ortodoxia no desenvolvimento dos próprios dons. O texto, com pequenas variações, entre Mateus e Lucas, diz que Jesus foi incitado a jogar-se do pináculo do Templo abaixo para obrigar Deus a manifestar seu zelo. Isso pode ser lido como manifestação de poder e como busca de prazer, experimentar adrenalina, chamar a atenção sobre si, mas, na verdade, é a necessidade de apare-cer, ser alguém na vida. Jogando-se abaixo Jesus obrigaria os anjos a acudi-lo, fazendo com que todos vissem o quan-to ele era predileto de Deus. Noutra leitura, isso poderia ser visto como divertimento, lazer. Jesus faz seus caprichos, assistido pelos anjos. Não restam dúvidas de que o texto queira acentuar o modo como Jesus demonstra quem ele é em sua relação com o criador e com as criaturas. Jesus não veio colocar os poderes celestes a serviço de si mesmo, mas para se colocar a serviço do Reino de Deus pelo Pai e pelo Espírito. “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate em favor de muitos” (Mc 10,45). Que fazemos nós com a vida que Deus nos brindou? Colocamos a seu serviço, camuflamos o seu serviço, ou exigimos que ele nos sirva?

Toda pessoa precisa crescer e ser alguém na vida. Todos nascem dependentes e são conhecidos pelo referencial de origem, mas os que são sadios empreendem um processo

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de desenvolvimento que os leva a uma relação interdepen-dente e solidária. No caminho que cada pessoa empreende, para ser ela mesma e construir sua história, sua identidade, pode usar as outras como instrumentos em favor de si e de seus projetos. É o caminho sem Espírito, simbolizado pelo jogar-se do pináculo do Templo para ser acudido pelo Pai e aplaudido pelo povo. É o tipo de filho que apronta o que bem quer porque sabe que o pai pode e vai sempre prote-gê-lo. Nisso se revela a tirania. Mas a pessoa pode também crescer num processo de intercâmbio participativo, de troca solidária, de acolhida e construção mútua, de reconheci-mento e acolhida da presença da outra, como dom, graça, carinho de Deus. É o jeito que revela o Espírito de Deus no humano e o humano no Espírito. As duas atitudes po-dem acontecer, às vezes, até sem muita consciência de nossa parte.

Toda relação que se estabelece, com quem quer que seja, pode ser um maravilhoso ato de espiritualidade ou miserá-vel ato de destruição, depende do modo como a estabelece-mos e do sentido que damos.

c) O uso do poder para ser especial na vida de alguém (Mt 4,8-10 e Lc 4,5-8). A idolatria e a ortodoxia na lida com os afetos. Aqui o texto deixa claro que a questão é: bens em troca de culto, submissão, adoração, exclusividade. Ficar rico possuindo as coisas do mundo, as criaturas, é colocá--las no centro do próprio interesse, ocupar o tempo nobre com elas. Fazer das coisas a razão e a satisfação de viver se constitui um verdadeiro culto. Em vez de nos cultivarmos com elas, nos destruímos por elas, pois elas nos ocupam, sugam, estressam e matam. Também pode acontecer que as destruamos em nosso favor sem a consciência da falta que nos fará no dia seguinte. Por outro lado valorizar as pessoas pelas coisas que dão ou têm significa desfocar o verdadei-ro valor que elas têm. O modo como uma pessoa se torna importante em sua vida ou você na dela pode passar pela relação com as coisas, mas não pode depender delas nem ser alimentado por elas.

Todo ser vivo precisa de cuidado, de afeto, de carinho. Mas a pessoa humana precisa ser amada por outra pessoa. Não é possível manter-se humano perdendo uma relação afetiva livre, espontânea e gratuita. Ninguém pode com-prar ou vender a própria dignidade e o reconhecimento da sua pessoalidade. Ela só pode ser acolhida, reconhecida e cultivada. Dar todos os reinos do mundo para ser adorado é comprar o reconhecimento, é mendigar o afeto. Aí está uma relação sem Espírito, isto é, que desumaniza. “Adorar somente a Deus” é reconhecer a relatividade e a finitude do presente, mas experimentar nesse mesmo presente o sabor da plenitude e da eternidade. Adorar somente a Deus é dis-cernir o passageiro no definitivo e o eterno no transitório.

As necessidades, aqui elencadas, são tão elementares que dificilmente alguém reflete o modo como procede para sa-tisfazê-las, mas é nelas que se encontra a origem da cons-trução ou destruição da humanidade. Dificilmente alguém percebe ação, presença do Espírito aí, mas o texto das tenta-ções enfrentadas por Jesus revela isso. No humano de Jesus, por obra do Espírito Santo, é resgatada definitivamente toda a humanidade. Eis o nosso desafio, discernir e acolher a ma-nifestação cotidiana quase imperceptível do Espírito, isto é, do poder de Deus, que sempre, em todo tempo e lugar, ma-nifesta o rumo da felicidade nos desafiando na fidelidade.

II – Dinamis = Potência

“Dinamis” é o segundo termo grego usado para falar de poder e autoridade, presente 118 vezes no Segundo Testamento.3 “Dinamis” é raiz de muitas palavras usadas por nós e signi-fica potência, capacidade, energia, aptidão para fazer ou criar algo. É daí que vêm as palavras dínamo, dinâmico, dinamismo etc. A “Dinamis” é uma potência que está presente em toda a criação, não somente nos humanos. Para os gregos era o princípio da vida cósmica, a energia divina. Já para o mun-do da Bíblia a “dinamis” tem origem na vontade divina e é por ela governada (cf. Ex 15,6.13). A mesma potência de Javé que move e guia a história, que criou e conserva o mundo, rege também o destino de cada pessoa. Por isso

3 Mt 7,22; 11,20.21; Lc 10,13; Mt 11,23; 13,54.58; Mc 6,2.5; Mt 14,2; Mc 6,14; Mt 22,29; Mc 12,24; Mt 24,29-30; Mc 13,25.26; Lc 21,26.27; Mt 25,15; 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69; Mc 5,30; Lc 8,46; Mc 9,1.39; Lc 1,17.35; 4,14.36; 5,17; 6,19; 9,1; 10,19; 19,37; 24,49; At 1,8; 2,22; 3,12; 4,7.33; 6,8; 8,10.13; 10,38; 19,11; Rm 1,4.16.20; 8,38; 15,13.19.19; 1Cor 1,18.24; 2,4.5; 4,19.20; 5,4; 6,14; 12,10.28.29; 14,11; 15,24.43.56; 2Cor 1,8; 4,7; 6,7; 8,3.3; 12,9.9.12; 13,4.4; Gl 3,5; Ef 1,19.21; 3,7.16.20; Fl 3,10; Cl 1,11.29; 1Ts 1,5; 2Ts 1,7.11; 2,9; 2Tm 1,7; 2Tm 3,5; Hb 1,3; 2,4; 6,5; 7,16; 11,11.34; 1Pd 1,5; 3,22; 2Pd 1,3.16; 2,11; Ap 1,16; 3,8; 4,11; 5,12; 7,12; 11,17; 12,10; 13,2; 17,13; 18,3; 19,1.

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Deus é visto com poder em sua relação com a natureza, com a história e com a pessoa humana ( Jó 12,13-16). A potência de Deus não é puro arbítrio, mas exprime e atua a vontade dele que é essencialmente justiça (Is 5,16). Direito e justiça representam, no campo ético, aquilo que no campo reli-gioso é a santidade. Já para o Segundo Testamento Cristo é a “dinamis” (potência, poder) de Deus. Por isso tudo está e estará a ele submisso.4 Considerável número de autores tra-duzem “dinamis” por milagre, prodígio, força e sinal.

1) Milagre: expressão dúbia do poder de Deus. Segundo os evangelistas, o povo (tanto os esclarecidos quanto os não esclarecidos) tem sede de milagres e vê neles expressão má-xima do poder de Deus. Certas ações de Jesus causavam grande admiração. “Toda a multidão dos discípulos come-çou a louvar a Deus em voz forte por todos os milagres que tinham visto” (Lc 19,37). Mateus mostra como muitos veem aí um indicador da ação divina. Jesus, porém, prova que pregar, profetizar, expulsar demônios e fazer milagres em seu nome não é certificado de salvação nem garantia do Céu (cf. Mt 7,21-23). O que manifesta o poder de Deus na gente não é a invocação de seu nome nem o conhecimento de seu poder, mas o engajamento em sua causa e a entrega (com a dele) ao Pai. “Não basta dizer: Senhor, Senhor! Para entrar no Reino dos céus; é preciso fazer a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). “Muitos dirão: ‘Senhor… não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?’. Eu responderei: ‘Nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que cometeis a iniquidade’” (Mt 7,22). O sucesso por si só não é prova do poder de Deus, mas será prova se vier acom-panhado da justiça, da verdade, da caridade-amor. A maior expressão da ação de Deus não é a do poder de quem faz, nem a admiração causada nos que assistem, mas o engaja-mento da pessoa no resgate da dignidade da criação, in-cluindo a transformação da própria pessoa. E “Dirigindo-se a sua pátria pôs-se a ensinar na sinagoga, de sorte que se maravilhavam e diziam: ‘De onde lhe vem essa sabedoria e esses milagres?’” (Mt 13,54; Mc 6,2). Mas Jesus “não fez ali muitos milagres por causa da incredulidade deles” (Mt

4 Cf. Grande Léssico del Nuovo Testamen-to, vol. II, Paideia, Brescia, Colunas 1473-1555.

13,58; Mc 6,5). Aí está, para quem quiser acertar, uma boa iluminação para o discernimento e uso do poder.

2) Força, energia e magnetismo divinos. A recepção da força acontece na aproximação, na confiança e na entrega a Jesus. Ele é dono de uma energia capaz de devolver o sentido ori-ginal da realidade, desfazendo a adulteração. É disso que fa-lam Marcos e Lucas ao nos apresentar a mulher tomada pela hemorragia, abandonada à própria sorte. “Imediatamente Jesus, tendo consciência da força que saiu dele, voltou-se para a multidão e disse: ‘Quem me tocou?’” (Mc 5,30; Lc 8,46). A experiência da mulher é comprovada pela multi-dão: “Toda a multidão procurava tocá-lo porque dele saía uma força que cura a todos” (Lc 6,19). Não se trata apenas de uma força de cura física, mas de transformação do ser. Paulo experimenta essa força-poder na missão recebida do Ressuscitado. Tal poder supera o medo, levando o evan-gelizador a encarar todas as adversidades da missão. “Na verdade eu não me envergonho do Evangelho; ele é a força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16). “Desse evangelho me tornei ministro, pelo dom da graça de Deus que me foi concedida pela operação de seu poder. A mim, o menor dos santos” (Ef 3,7).

O evangelizador participa da autoridade do Evangelho, que atua nele, à medida que ele se aplica a evangelização. Isso implica, da parte do consagrado (evangelizador, mis-sionário), uma total entrega à causa de Deus. O empode-ramento, o fortalecimento, acontece no exercício oblativo da vida. Daí a necessidade de um constante discernimento entre o poder natural da vida humana e o poder sobrenatu-ral da graça do Senhor que atua, onde encontra docilidade, na vida da humanidade. É nesse sentido que Paulo exorta Timóteo, bispo de Éfeso: “Tens que reavivar o dom de Deus que está em ti desde que te impus as mãos. Pois Deus nos outorgou não um espírito de medo, mas um espírito de força, amor e domínio de si” (2Tm 1,6-7). Como se atua o reavivamento? Pela aplicação na fé. Pois “foi pela fé que também Sara, apesar de idade avançada, foi capacitada a ter

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posteridade porque considerou fiel o autor da Promessa” (Hb 11,11).

3) O empoderamento em Jesus e no Espírito. Segundo Lucas, a concepção virginal de Maria é obra do Espírito Santo. “Como se fará isso se eu não conheço homem algum?”. Ao que ele responde: “o Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com sua sombra...” (Lc 1,35). Acolhendo a proposta de Deus pelo anjo, Maria é empoderada, para que o desígnio dele se realize, mas isso não acontecerá passivamente. A adesão se mostra no enga-jamento e no contínuo discernimento da vontade daquele pelo qual ela se consagrou. O Espírito não atua na passivi-dade, mas na ativa entrega de Maria ao serviço do Senhor (Lc 1,38). Na mesma linha vemos a atuação de Jesus para com os discípulos: “Convocando os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, bem como para curar doenças” (Lc 9,1).

O empoderamento está em função da salvação, o que por isso mesmo implica o aniquilamento das forças do mal e dos agentes de destruição. “Eis que vos dei poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do Inimigo, e nada vos poderá causar dano” (Lc 10,19). Pelo poder e autori-dade concedidos por Jesus, os discípulos têm condições de testemunhá-lo onde quer que estejam e no que quer que façam. “Permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto” (Lc 24,49). “Recebereis uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas... até os confins da terra”(At 1,8).

Daí o cuidado para não se desligar da fonte nem desca-racterizar suas virtudes na pessoa do/a consagrado/e e do/a evangelizador/a. Cuidado este que Paulo demonstra e ex-pressa em sua missão na fundação da igreja de Corinto. “Minha palavra e minha pregação nada tinham dos discur-sos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração feita pelo poder do Espírito a fim de que a vossa fé não se fundasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus” (1 Cor 2,4.5); e no zelo pela igreja de Roma. “Que o Deus da esperança vos cumule de alegria e de paz na fé a fim de

que transbordeis na esperança pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15,13); “Para pedir-lhe (ao Pai) que conceda, segundo a riqueza de sua glória, que vós sejais fortalecidos em poder pelo seu Espírito no homem interior, que Cristo habite pela fé em vossos corações” (Ef 3,16).

III – Cratos = Poder para o bem comum e Iskus = Vigor físico

O terceiro termo é “cratos”, que significa poder e compõe a nossa conhecida palavra composta “demo + cracia”, isto é, “cracia = poder” que emana do “povo = demos” e por ele exercido. O jeito mais puro da democracia no mundo grego é a assembleia popular, e não a representativa. Esta palavra ocorre apenas dez vezes no Segundo Testamento,5 tratando sempre do poder vindo ou exercido por Deus. “Ele (Deus) agiu com o poder de seu braço e dispersou os homens de coração orgulhoso” (Lc 1,51). Mesmo quando em Hb 2,14 fala dos que o diabo detinha em seu poder, que foram, por Jesus, libertados, trata-se do poder de Deus que em Jesus supera outros poderes.

O quarto termo é “Iskus”. Aparece apenas sete vezes6 no Segundo Testamento e significa a força e o vigor físico dire-cionado a Deus, como podemos ver em Marcos 12,30 e Lc 10,27: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e com toda a tua força”.

ConcluindoPara finalizar vejamos o dom de nascença, poder único, vir-

tude constituinte de cada ser, dado por Deus para realização e a salvação de cada pessoa. Nesse sentido, é de expressiva importância para nós a parábola dos talentos (Mt 25,14-30). Ali se ensina que o engajamento no dom que Deus a nós brinda, partilhado em favor do Reino, é a porta da felicida-de eterna. Como administrar em favor da Causa de Deus? Na parábola Jesus nos ensina três elementos fundamentais.

Primeiro: Deus confia nas pessoas. A prova está na entre-ga de talentos. Talentos são traduzidos por: “dom, virtude,

5 Lc 1,51; Ef 1,18-19; Ef 6,10; Cl 1,10-12; 1Tm 6,16; Hb 2,14; 1Pd 4,11; 1Pd 5,11; Ap 1,6 e Ap 5,13.

6 Ef 1,19; 6,10; 2Ts 1,9; 1Pd 4,11; 2Pd 2,11; Ap 5,12; 7,12.

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dote, pendor, bem criador”. “A cada um deu (talentos) de acordo com sua capacidade” (Mt 25,15). Isto está mais pre-cisamente explícito no ensino do apóstolo Paulo: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos... A um o Espírito dá a mensagem de sabedoria... a outro, o poder de fazer milagres” (1Cor 12,10). É preciso lembrar que “talento” não é um “donzinho” qualquer. Ta-lento é uma medida que corresponde exatamente a 34.270 gramas (34 quilos e 270 gramas), geralmente de ouro, ou às vezes de prata. Um talento é um grande potencial, e o mí-nimo que o servo recebe de Deus. Ninguém, absolutamente ninguém vem ao mundo sem dom. Na aplicação ao talento recebido está a felicidade e a realização de cada um.

Segundo: O dom (talento) não é dado para que a pessoa (servo/a) faça o que bem quiser. É dado explicitamente para administrar em favor da causa do dono, isto é, de Deus. Mas sua eficácia depende do engajamento da pessoa que recebe. Pode-se perguntar se a pessoa que recebe está pre-parada para se engajar e atuar o dom. Pela parábola, esta não e a questão de Deus, pois ele oferece, de cara, a cada um de acordo com suas capacidades (Mt 25,15). Assim, a pergunta que cabe é: a pessoa está disposta a se colocar, como dom e pelo dom recebido, a serviço de Deus? O medo que o ter-ceiro servo teve do patrão que ofereceu um talento, a sensa-ção de incapacidade, a falta de confiança explicam, mas não justificam, a falta de engajamento, de resposta e de ação. A cada um é pedido o engajamento na causa de Deus, atuando no que lhe foi oferecido. O apóstolo Paulo manifesta isso de modo bem didático: “Os que Deus dispôs na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos, em segundo profetas, em terceiro mestres, depois o poder de milagres... Acaso são todos após-tolos?... Todos tem o poder de milagres?” (1Cor 12,28.29). Mas cada um contribui com a aplicação do poder, pessoal-mente recebido, em favor do bem de todos.

Terceiro: O dom precisa frutificar. Da acolhida desse dom, do engajamento na causa de Deus e da produção de frutos com ele, dependem a salvação ou a perdição de cada pessoa (Mt 25,24-30). Dar frutos é a meta de Deus plantada em

cada pessoa, e também a realização plena de cada pessoa (cf. Jo 15,8.16). Olhando para a missão de Paulo podemos acrescentar um quarto ponto. O dom de Deus não despreza as fragilidades humanas, nem as faz desaparecer, mas opera não obstante elas ou a partir delas (cf. 2Cor 12,9). Isso está expresso na experiência pessoal de Paulo, que ele entende ser de todos: “Trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não nosso” (2Cor 4,7).

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Que influência tem a prática de Jesus no exercício do

poder da Vida Religiosa Consagrada hoje?2. Quando há conflito entre a vontade de Deus e a mi-

nha, o que faço para prevalecer a de Deus?3. A autoridade de Deus se fundamenta na graça e não

no direito. Como posso aplicar isso em meu dia a dia?

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O profetismo do Papa Francisco para a Vida Religiosa Consagrada

“grande confiança no Deus amor (cf. 1Jo 4,8)”... leva-nos a “testemunhar com alegria a santidade e a vitalidade presen-tes na maioria daqueles que foram chamados a seguir Cristo na vida consagrada”. A meditação do Evangelho deve ser feita “com alegria todos os dias”. “A autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa alegria.” “É a vossa vida que deve falar, uma vida da qual transparece a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo.” Portanto, os motivos que os consagrados têm para se alegrar são espirituais e evangélicos, decorrentes de uma vida toda centrada no Cristo e em seu Evangelho.

A exortação profética de Francisco deverá ser acolhida por nós, consagrados, como apelo de Deus para os nossos tempos. “Que entre nós não se vejam rostos tristes, pessoas desgostosas e insatisfeitas, porque ‘um seguimento triste é um triste seguimento’. Também nós, como todos os outros homens e mulheres, sentimos dificuldades, noites do espíri-to, desilusões, doenças, declínio das forças devido à velhice. Mas, nisto mesmo, deveremos encontrar a ‘perfeita alegria’, aprender a reconhecer o rosto de Cristo, que em tudo se fez semelhante a nós e, consequentemente, sentir a alegria de saber que somos semelhantes a Ele que, por nosso amor, não se recusou a sofrer a cruz.” Palavras sábias que deveriam ecoar no coração de todo consagrado de boa vontade.

O Papa Francisco põe o dedo na ferida da VRC e denun-cia possíveis focos de tristeza dos consagrados, mormente, na vida comunitária. “Não me canso de repetir que críticas, bisbilhotices, invejas, ciúmes, antagonismos são comporta-mentos que não têm direito de habitar nas nossas casas.” Não têm direito de habitar, mas habitam! Daí os desgastes inúteis e as querelas intermináveis causadoras de inimizades, na contramão do nosso ideal de comunhão, tantas vezes referido na carta do Papa. As caras amarradas e os corações amargurados dos consagrados, em geral, resultam da vida comunitária de baixa qualidade humana e espiritual, onde não se vive a “mística de viver juntos”. Sem o perdão e a reconciliação, exigências evangélicas, a alegria estará bani-da do horizonte do consagrado. A conversão torna-se uma

Pe. JaldeMir Vitório*

A voz do Papa Francisco tornou-se profecia para a Vida Religiosa Consagrada (VRC), ao conclamá-la a voltar às suas raízes, deixando-se “interpelar pelo Evangelho” e re-descobrindo Jesus como “verdadeiramente o primeiro e o único amor”. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada,1 de 21/11/2014, recorda-nos a alegria como marca de nossa presença, onde quer que estejamos. Sua afirmação lapidar – “Onde estão os religiosos, existe alegria” – serve de aguilhão para os de-sesperançados, os que perderam o sentido da consagração, os pessimistas e todos quantos levam uma vida sem sabor, incapaz de encantar outros irmãos e irmãs a se consagrarem ao serviço do Reino.

Viver com alegria nossa vocação e nossa missão é sinal profético num mundo onde a tristeza se apossa de muitos corações, a falta de sentido para a vida alastra-se qual erva daninha e a alegria artificial no rosto das top models tem sido o recurso do marketing para vender desde creme dental até carros. Onde encontrar alegria verdadeira na sociedade de consumo? Como se alegrar num mundo onde campeiam a violência e a crueldade passa despercebida no trato com o semelhante? Faz sentido falar em alegria numa cultura de morte, banalizadora da vida humana?

Apesar dos pesares, os religiosos e as religiosas fiéis jamais abrem mão de viver com alegria sua vocação, sem o risco da falsidade e do cinismo, considerando a dureza do mundo. O Papa Francisco explicita os fundamentos da alegria dos consagrados.2 É o “Espírito Santo que nos dá alegria”. A

* Pe. Jaldemir Vitório SJ é pro-fessor de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Hori-zonte-MG. Este artigo vincula-se ao Grupo de Pesquisa intitulado Vida Religiosa: proble-mática atual e teologia – Subgrupo 1: Teologia da Vida Religiosa. E-mail: [email protected]

1 O texto em portu-guês pode ser acessado em http://w2.vatican.va/content/frances-co/pt/apost_letters/documents/papa--francesco_lettera--ap_20141121_lettera--consacrati.html.

2 Este texto foi es-crito pensando nas consagradas e nos consagrados. Todavia, para evitar que se tor-ne pesado, se evitará a linguagem inclusiva. Peço às consagradas a bondade de lê-lo em chave feminina.

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exigência incontornável para quem pretende viver, com um mínimo de dignidade, a condição de consagrado. Sem esta firme decisão, é de se perguntar se adianta insistir num projeto de vida do qual a alegria foi eliminada e a ação do Espírito encontra corações e mentes recalcitrantes em face aos apelos de voltar ao bom caminho do Evangelho, cujo mandamento novo convoca para o amor mútuo nos moldes do Mestre Jesus.

O projeto de VRC oferece aos consagrados mil motivos para viverem a alegria. Tudo dependerá da maturidade es-piritual e psíquica de cada um, somada à solidez da vocação. Pessoas imaturas e sem espiritualidade, vivendo uma voca-ção inconsistente e sem norte, têm tudo para serem infelizes e fazerem infelizes os irmãos e as irmãs de comunidade e de missão. Na direção contrária, consagrados maduros em sua vocação e em sua afetividade têm tudo para serem felizes e tornar a VRC fonte de alegria. Aí, sim, se realiza a profecia de Francisco: “Onde estão os religiosos, existe alegria”. Tra-ta-se de um fenômeno de fácil constatação. Qualquer pes-soa de bom senso, ao contatar uma comunidade religiosa, com facilidade perceberá a quantas anda a alegria do grupo. Basta fitar-lhes nos olhos e ver como os consagrados se re-lacionam. A alegria de quem está feliz com sua consagração está estampada em seu rosto. O modo como trata os irmãos e as irmãs de comunidade completará o quadro. Se houver respeito, valorização, cuidado e atenção, a comunidade só tem motivos para ser alegre. Pelo contrário, havendo indi-ferença, desprezo, zombaria e exclusão, será o império da intriga, do rancor e do ressentimento.

São muitos os motivos de alegria para os consagrados e, consequentemente, para espalhá-la. Sem a pretensão de ser-mos exaustivos e sem enumerá-los em ordem de importân-cia, elencaremos alguns que se mostram fundamentais.

1. A alegria de sermos discípulos e discípulas de Jesus e servidores do Reino. Aqui está o fundamento da alegria dos consagra-dos: saber-se discípulos do Mestre de Nazaré, caminhando na confiança paulina, formulada com a afirmação: “Sei em quem acreditei!” (2Tm 1,12). Um consagrado triste e cheio

de perturbações, com toda certeza, está em crise de fé. Mas, também, o superficial, o mundano, o desfocado, o deso-rientado e o fechado em seu mundinho.

A fé abre-nos o coração para a caridade e para a esperança. A caridade gera a alegria de nos sabermos úteis para nosso semelhante, com quem partilhamos o que somos e o que temos. E, assim, crescemos e nos humanizamos! “Há mais alegria em dar que em receber!” (At 20,35) é fruto da carida-de. Não pode ser triste quem vive para servir ao semelhante, pois no servir está a alegria mais autêntica. A esperança, por sua vez, é fonte de alegria. Descortina-nos horizontes, para além das vicissitudes cotidianas e nos prospecta para a co-munhão com o Pai, meta de nossa caminhada. A esperança jamais se esmorece nas experiências de fracasso, por se focar em Deus, sob cujo olhar caminhamos (Sl 121[120]). O con-sagrado desesperançado e triste perdeu o rumo e se recusa a estar sob a proteção providente de Deus. Ou seja, rejeita a se inspirar no Mestre Jesus, cuja vida se pautou pelo querer benevolente do Pai, em cujas mãos se entregou (Lc 23,46). Centrado em si mesmo e sem motivação para superar os próprios limites, que razão terá para se alegrar?

A alegria dos consagrados, no seguimento de Jesus, asse-melha-se à das multidões das quais teve compaixão e para as quais abriu perspectivas de humanidade ao libertá-las das doenças e de toda forma de escravidão (Mt 4,24-25). Se o Mestre de Nazaré liberta-me, humaniza-me e me convoca a levar adiante a missão de libertador e humanizador (Mt 10,7-8), que razões terei para ficar triste ou cultivar alegrias efêmeras? Antes, minha existência será permeada de alegria por estar ao serviço do Reino, como Jesus.

Portanto, a alegria serena e verdadeira será o termômetro da fé do consagrado. A profundidade da fé determinará a consistência da alegria de quem abraçou a causa do Reino, atendendo ao convite do Mestre de Nazaré.

Os consagrados têm a chance de retomar o caminho da alegria dos fundadores, cujo “ideal era Cristo e aderir a ele, podendo dizer como Paulo: ‘Para mim, viver é Cristo’ (Fl 1,21)”, ao transformar o Evangelho em regra de vida, como

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nos recorda o Papa Francisco. Se nos “deixarmos interpelar pelo Evangelho”, seremos felizes e transbordaremos alegria. O desafio consiste em elaborar “novos modos de viver o Evangelho e respostas cada vez mais adequadas às exigências de testemunho e de anúncio”. Os consagrados, fiéis à sua vocação, com discernimento e abertura de coração, sabem responder com criatividade a provocação evangélica, fonte de alegria para os servidores do Reino.

2. A alegria de pertencer a uma família religiosa, com sua his-tória, carisma e espiritualidade. Só pode ser feliz o consagrado que escolheu a congregação correspondente a seus dons, na qual poderá desenvolvê-los e fazê-los frutificar. Trata-se de um caminho de mão dupla: eu escolho a congregação – a congregação me escolhe e me acolhe. Não basta eu esco-lher a congregação se ela, por sua vez, não me escolher. E vice-versa, de nada adianta a congregação querer-me em seu meio, se não tenho os dons exigidos para aquele carisma específico. Existem consagrados tristes por estarem na con-gregação errada, na qual nunca se encaixam. Existem con-gregações que acolhem pessoas sem o devido discernimento – “aceitam qualquer um!” – tendo como resultado comuni-dades perturbadas por religiosos desajustados. Existem pes-soas que insistem em permanecer na congregação errada. Existem congregações que insistem em manter membros desconectados com seu carisma. A felicidade do consagrado consiste em estar na congregação certa, cujo projeto de vida e de missão é aderente ao chamado do Senhor em seu co-ração. A alegria resulta da empatia entre o consagrado e sua congregação. Consagrado certo na congregação certa! Caso contrário, será um peixe fora d’água. Um triste!

A alegria de um consagrado de pertencer à sua congre-gação constrói-se ao longo do processo de conhecimento mútuo, de seleção, de aceitação, de formação e de acompa-nhamento. E lhe perpassa toda a vida ao constatar o acerto de sua opção congregacional, confirmado de muitas manei-ras e em muitas circunstâncias.

Um sinal da alegria congregacional na vida do consagrado mostra-se no desejo de ver muitos outros jovens ingressando

na congregação, fazendo opção semelhante à sua. No polo oposto, está o consagrado infeliz, desmotivado para propor sua opção a outros jovens e, em casos extremos, capaz de desaconselhar eventuais vocacionados a dar o passo da opção pela VRC. Pessoas assim deverão ser alertadas a repensar sua escolha, pois, com grande probabilidade, estão no caminho errado e impedem pessoas sinceras de fazer uma escolha que corresponde a uma vocação autêntica. Assemelham-se aos escribas e fariseus hipócritas, censurados por Jesus, “porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos homens! Pois vós mesmos não entrais, nem deixais entrar os que o querem!” (Mt 23,13). Valem para eles as palavras duras de Jesus.

A alegria de pertencer a uma família religiosa leva o con-sagrado a se interessar por tudo quanto diga respeito à sua congregação. A vida dos fundadores, o carisma e a espiri-tualidade, a missão, a história, as obras, os projetos e, sobre-tudo, os irmãos e as irmãs com quem compartilha a vida estarão sempre no campo do interesse e das preocupações do consagrado. Ser-lhe-á motivo de alegria ver a congre-gação crescer em número e em qualidade. Constatar-lhe o dinamismo e o vigor missionários. Perceber como respon-de, à altura, os apelos da Igreja e do Povo de Deus. Sen-tir-se membro de uma família bonita, com irmãos jovens e irmãos idosos, com irmãos de distintas nacionalidades e culturas, com irmãos de mentalidades distintas, porém, ca-minhando todos numa mesma direção e cultivando ideais comuns. Quantos motivos para ser feliz e transmitir alegria!

3. A alegria de viver em comunidade como irmãos e irmãs. A VRC é comunitária por natureza. Supõe-se de quem es-colhe o caminho da consagração nesse projeto de vida um forte espírito comunitário e uma decidida disposição a vi-ver em comunidade com aqueles e aquelas a quem o Se-nhor chamar. Deveríamos começar o dia cantando o Salmo 134[133], dizendo: “Veja como é bom, com é agradável ha-bitar todos juntos, como irmãos... porque aí o Senhor envia sua bênção e a vida para sempre”.

A comunidade é o lugar para nos apoiarmos mutuamente. É o espaço de cuidado de uns pelos outros. É o ambiente

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onde restauramos nossas forças apostólicas, partilhamos nossas vidas no que têm de sucesso e de fracasso, escutamos o Espírito e discernimos o querer divino a nosso respeito, desenvolvemos nossas habilidades e aptidões, corrigimo-nos fraternalmente uns aos outros. Enfim, somos uns para os outros o sinal do amor de Deus, que reforça nossa esperança e nos anima a caminhar.

O Papa Francisco recorda aos consagrados o dever de ser “peritos em comunhão”, levando adiante um “projeto de comunhão”, segundo o querer de Deus. “Numa sociedade marcada pelos conflitos... somos chamados a oferecer um modelo concreto de comunidade”, sendo “homens e mu-lheres de comunhão”. O Papa indica a “mística do encon-tro”, enquanto “capacidade de ouvir atentamente as outras pessoas” e “procurar juntos o caminho, o método”, como via para nos tornarmos “peritos em comunhão” e fazer da Igreja “a escola e a casa da comunhão”.

Entretanto, a tendência das comunidades religiosas é a de caminhar numa direção distinta, com muitos conflitos e desgastes. Por quê? São muitas as causas da baixa qualidade de vida comunitária dos consagrados. A mais fundamen-tal é a precária base humana de muitos que são aceitos na VRC. São pessoas cheias de traumas e de bloqueios, com desvios de caráter, não corrigidos no processo formativo, com tendência a se fecharem em seu mundinho e a se basta-rem a si mesmas. Em muitos casos, se trata de pessoas com distúrbios psicológicos não detectados e tratados no devido tempo. Olhando noutra perspectiva, os quiproquós comu-nitários decorrem da falta de fé e de compromisso autên-tico com o Evangelho e a sabedoria que dele brota. Como um consagrado pode nutrir ódio por um irmão de comu-nidade, quando Jesus ensinou o amor mútuo e o perdão? Como pode participar da Eucaristia e rezar, sem peso na consciência, quando está rompido com o irmão, quando Je-sus exigiu a reconciliação antes de qualquer ato de piedade (Mt 5,23-24)? Como pode marginalizar o companheiro de comunidade, quando Jesus revelou o desejo do Pai de que ninguém se perca (Mt 18,14)? Em suma, se o consagrado

assume atitudes contrárias à sabedoria do Evangelho, é claro sinal de ter rompido com a fé e se enveredado por desvios que o afastam de Jesus e seu projeto.

Podem-se detectar outras raízes para os entreveros comu-nitários: estresse pelo excesso de trabalho, contexto difícil da missão, desencontros ideológicos em torno de decisões a serem tomadas, posturas diferentes sobre encaminhamentos de conflitos com autoridades eclesiásticas, visões distintas na condução da pastoral etc. Entretanto, todas apontarão para a carência de humanidade e de fé como causadoras dos desencontros e das inimizades dos consagrados, ao se torna-rem insolúveis e criarem divisões irremediáveis entre eles. Os imperativos da fé deveriam ser suficientes para fazê-los encontrar a via da reconciliação e do entendimento.

Em todo caso, quando a vida fraterna deixa de ser motivo de alegria, o consagrado tem suficientes motivos para rever sua postura no trato com os companheiros e, em muitos ca-sos, consigo mesmo. Problemas pessoais mal encaminhados podem gerar conflitos comunitários, cujas causas reais sejam desconhecidas pelo grupo que sofre sem saber as razões.

Não podemos escamotear a exortação do Papa Francis-co, quando nos diz que “somos chamados a experimentar e mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso coração e fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa felicidade, que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias, dos jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá pleni-tude à nossa vida”. A VRC tem futuro “se nos virem ho-mens e mulheres felizes”. Nas palavras do Papa Francisco: “É a vossa vida que deve falar, uma vida da qual transparece a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo”.

4. A alegria de abraçar juntos a missão. Assim como a vida co-munitária é essencial na VRC, da mesma forma, a vida mis-sionária, em se tratando da VRC apostólica. A comunidade dos consagrados inspira-se em Jesus e seus companheiros de missão. A afirmação evangélica acontece na vida dos consa-grados, de maneira, especial: “Chamou a si os que ele quis,

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e foram até ele. E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar” (Mc 3,13-14). A alegria dos consa-grados missionários consiste em se saberem unidos por Jesus e por causa de Jesus, para levar adiante a missão do Mestre. A comunidade é consciente de ser um grupo de companheiros de Jesus e ao serviço de uma missão cujo iniciador e primeiro interessado é o próprio Jesus. Um grande motivo para se ale-grar é o saber-se estar com o Mestre em missão!

A missão dos consagrados é levada adiante como comuni-dade, com espírito de equipe e colaboração. Os individua-listas, os personalistas, os mandões, os “donos” das obras da congregação, os “iluminados” e personalidades afins es-tão fora do espírito comunitário, fonte de alegria, por se colocarem acima dos irmãos de missão, marginalizá-los e prescindirem deles. A alegria provém do trabalhar juntos, valorizando-se mutuamente e abrindo espaço para o outro crescer e potencializar os talentos pessoais, sem espírito de competição, de inveja e de ciúme. Tais sentimentos mesqui-nhos devem ser banidos da comunidade para a qual a alegria é um valor inestimável, por ser fruto do Espírito.

Grande motivo de alegria na VRC acontece quando a comunidade de irmãos se mantém coesa nas situações onde a missão a confronta com perseguições, calúnias e, em casos extremos, com a morte violenta. Saber-se um corpo apos-tólico unido e consciente das exigências da missão dá se-gurança e revela a abertura para a ação do Espírito, fonte de intrepidez na contramão do medo. O filme “Homens e Deuses” (2010) ilustra, com precisão, esta dimensão da VRC. Quando o consagrado toma consciência de que pode contar com sua comunidade “para o que der e vier”, a ale-gria lhe nasce espontânea do coração.

Na direção contrária, a falta de coesão em contextos di-fíceis da missão provoca duplo sofrimento. Aquele prove-niente do âmbito comunitário onde prevalece o sentimento de insegurança e de incompreensão, fruto da ausência da “união de corações” e, por outro lado, o proveniente do ambiente externo, onde se vive em clima de ameaça e de tensão. Quando uma comunidade de consagrados não se

sente motivada a investir na comunhão, em situações com-plicadas da missão, será preciso rever os fundamentos de sua vocação. Algo de equivocado está acontecendo! Quiçá, há muito tempo, Jesus foi banido de seu meio. Triste realidade para quem “deixou tudo” para seguir o Mestre de Nazaré e se desviou pelo caminho.

5. A alegria de servir aos empobrecidos e marginalizados. A VRC moderna surgiu como resposta aos apelos das muitas clas-ses de pobres, cujas vozes foram ouvidas pelos fundadores de congregações religiosas. Estas surgiram para acudir os doen-tes, os escravos, as crianças abandonadas, os migrantes, os católicos sem assistência da Igreja, as famílias desagregadas, os carentes de instrução e tantos outros necessitados de cuidado e de assistência. As histórias das congregações apostólicas têm um ponto em comum, no tocante aos seus primórdios: um grupo de cristãos ou de cristãs, sob a liderança carismática de alguém – o fundador – lança-se no serviço aos empobreci-dos e marginalizados, sendo também eles pobres e carentes de recursos. Na pobreza, tornam-se servidores dos pobres! Elemento importante é a confiança inabalável na Providência que os leva a enfrentar e superar os embates da missão, muitas vezes, provindos das autoridades eclesiásticas, incapazes de compreender a ação do Espírito.

Pensando nos fundadores, o Papa Francisco questiona os consagrados: “Temos a mesma paixão pelo nosso povo, so-lidarizamo-nos com ele até ao ponto de partilhar as suas alegrias e sofrimentos, a fim de podermos compreender ver-dadeiramente as suas necessidades e contribuir com a nossa parte para lhes dar resposta?”.

Uma marca dos iniciadores das congregações religiosas é a alegria com a qual levaram adiante o serviço aos mais pobres. Atitude compreensível! A tristeza e o pessimismo seriam os elementos mais nocivos aos seus projetos, a ponto de colocá-los em perigo. A fé e a alegria, ao invés, eram a força dinamizadora, que os levava a superar todos os em-pecilhos e reveses. De certo modo, repetiram a reação dos primeiros cristãos, em face às perseguições sofridas pelas co-munidades nascentes. “Quanto a eles, saíram do recinto do

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Sinédrio alegrando-se, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo Nome” (At 5,41).

São muitas as perguntas com as quais os consagrados de-veriam se confrontar: Por que a alegria dos primórdios das congregações se tornou tristeza no presente? Por que o âni-mo e o entusiasmo de nossos pais e mães espirituais se trans-formaram na tristeza e no pessimismo de seus filhos e filhas? Por que, na pobreza e na carência, nossos primeiros irmãos e irmãs tinham motivos para se alegrar e, nós, tendo tudo, banimos o sorriso de nossos lábios?

As respostas a estas e questões afins podem ser dadas em duas direções. A primeira seria: somos tristes porque aban-donamos os pobres a quem deveríamos servir, para cuidar de nossas propriedades e de nossos bens. A atenção às coi-sas levou-nos a descuidar das pessoas. Temos a tristeza dos administradores de patrimônio que estão sempre remando contra a maré, querendo amealhar muito, mas conseguindo pouco. A segunda seria: somos tristes porque, deixando de lado os empobrecidos a quem escolhemos servir, voltamo--nos para nós mesmos e nossas quezilas pessoais e comu-nitárias, de forma a tornar estreitos os nossos horizontes. Enclausurados em nossas questiúnculas, que motivos temos para ser felizes?

A alegria dos consagrados funda-se, nos passos de Jesus, no serviço aos empobrecidos e marginalizados. É a alegria de servir e de ser servidor! É a alegria de sair continuamen-te de si e ser interpelado pelo rosto e pelo olhar do irmão sofredor e se dispor a ser-lhe cuidador, responsabilizando-se por lhe recuperar a dignidade. É a alegria de, confrontando--se com os imensos sofrimentos alheios, tomar consciência de quão pífios são os nossos problemas, sempre a nos asso-berbar! É a alegria de se saber útil e importante para tantas pessoas carentes de misericórdia, de compreensão e de se-rem valorizadas! É a alegria de ter sempre horizontes largos a nos descortinar uma humanidade necessitada de mim, de minha comunidade e de minha congregação, sobre a qual, quais bons samaritanos (Lc 10,29-37), nos debruçamos para curar as feridas!

Quando isto acontece, a presença dos consagrados, onde quer que estejam, será sempre motivo de alegria. São arautos da alegria por serem portadores de esperança e de recons-trução da humanidade. Existe uma associação da sociedade civil chamada Doutores da Alegria, que atua nos hospitais, levando alegria às crianças vitimadas pelo câncer. Os con-sagrados, por serem servidores dos empobrecidos e margi-nalizados deveriam ser, também, doutores da alegria, sem precisarem se fantasiar de palhaços. Sua “fantasia” haverá de ser o amor misericordioso, nos moldes do de Jesus, tão profundo e consistente a ponto de fazer a alegria brotar, por onde passarem.

6. A alegria de ser profetas do Reino. Uma consciência fun-damental do consagrado é a de ter abraçado um projeto de vida marcadamente profético, nos passos do profeta de Na-zaré. A profecia dos consagrados consiste em viver na con-tramão dos valores antievangélicos presentes na sociedade e na cultura, e, por que não?, na Igreja. A vida comunitária dos consagrados, com qualidade humana e espiritual, con-testa o individualismo gerador de pessoas despreocupadas com a sorte dos semelhantes. O serviço generoso aos empo-brecidos e marginalizados põe em xeque certa mentalidade que os descarta e faz deles massas sobrantes, sem qualquer importância. A disponibilidade para assumir missões difí-ceis, em regiões inóspitas, aonde ninguém quer ir ou em contextos sociais de risco, é uma chamada de atenção para os membros da Igreja, mormente, os ministros ordenados acomodados ou contaminados pelo carreirismo e pouco preocupados com a sorte do Povo de Deus. A capacida-de de se abrir a novas culturas e se colocar ao serviço das mais diferentes etnias e raças denuncia os nacionalismos e os etnocentrismos, com suas manifestações de fanatismo e de intolerância, ao custo do sangue de tantos inocentes. A experiência da Transcendência, vivida como engajamento na história e nas culturas, mostra o sem sentido dos muitos ateísmos que pensam a religião e a fé como “ópio do povo” e descartam as Igrejas por serem prejudiciais ao progresso da civilização. Sobretudo, o profetismo dos consagrados,

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engajados na luta pela justiça e pela construção de uma so-ciedade sem oprimidos e marginalizados, denuncia as es-truturas perversas que produzem ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, sem qualquer sentimento de misericórdia. Aqui a consciência de ser profeta deveria ser, de modo especial, fonte de alegria evangélica.

São muitos os componentes proféticos a serem vividos pe-los consagrados. Sem eles, a VRC torna-se sal sem sabor (Mt 5,13) e fermento com prazo de validade vencido (Mt 13,33). Portanto, sem razão de ser! O déficit de profetismo está na origem da tristeza de muitos consagrados, cujos mo-dos de viver são indignos de quem se colocou no seguimen-to de Jesus, “que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).

A alegria, por sua vez, brota espontânea do coração dos consagrados profetas, embora devendo passar por situações semelhantes às do Mestre de Nazaré, servindo-lhes também o provérbio: “Nenhum profeta é bem recebido em sua pá-tria” (Lc 4,24; cf. Jo 4,44). Portanto, nada de ingenuidade ou de alegria superficial. E, sim, autêntica alegria dos servi-dores do Reino. Aliás, a bem-aventurança da perseguição deve estar sempre no horizonte dos consagrados. “Felizes sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai--vos e regozijai-vos porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós” (Mt 5,11-13).

O Papa Francisco sublinhou a dimensão profética da VRC em sua carta, como “nota característica da vida consagrada”. Retomando uma fala aos superiores gerais, afirma: “Esta é a prioridade que agora se requer: ‘ser profetas que testemu-nham como Jesus viveu nesta terra (...). Um religioso não deve jamais renunciar à profecia’”. Realmente, abrir mão da profecia consiste optar pela banalidade e pela conivên-cia com a mundanidade antievangélica, atitude indigna de quem é consciente de ter “escolhido a melhor parte que não lhe será tirada” (Lc 10,42).

Por outro lado, Francisco lança um alerta em relação ao antiprofetismo ou falso profetismo. Repete uma exortação de Bento XVI: “Não vos unais aos profetas de desventura, que proclamam o fim ou a insensatez da vida consagrada na Igreja de nossos dias”. Infelizmente, tais presenças maléficas se multiplicaram na VRC, com tremendas consequências. Quantos consagrados tristes e desmotivados! Quantos con-sagrados infelizes e incapazes de alargar os horizontes e per-ceber as muitíssimas boas obras de tantos consagrados fiéis, cujas vidas brilham como luzes colocadas nos devidos luga-res, motivo para se “glorificar o Pai que está nos céus” (Mt 5,16)! Quantos consagrados críticos mordazes e azedos, mas sem um pingo de autocrítica, insistentes no que a VRC tem de negativo, sem a capacidade de ver o contraponto positivo que, sem dúvida, tem muito mais peso! Este tipo de gente é uma erva daninha – uma tiririca – da qual não é fácil de se livrar. Atitude sensata consiste em fechar as portas da VRC para esses pesos mortos, cujas presenças nas comunidades e na missão são sem serventia, por serem luzes “colocadas debaixo do alqueire” (Mt 5,15).

7. A alegria de ser “reserva de humanidade”, num mundo de desumanidade. Esta fonte de alegria dos consagrados, de cer-ta forma, é desdobramento da anterior, onde se falava do profetismo da VRC. Que significa ser “reserva de humani-dade” e por que os consagrados conscientes dessa realidade são alegres?

A palavra humanidade evoca várias outras, com as quais se identifica: oblatividade, doação, solidariedade, compaixão, misericórdia, ser-para-os-outros e afins. Humano é quem rompe as barreiras do eu e vai na direção do próximo, com a disposição de se fazer solidário, de dialogar e de estabe-lecer relações de respeito e de cuidado. A humanidade se mostra consistente, de modo especial, no trato com os em-pobrecidos e marginalizados, com quem está colocado à margem, carente de proteção e de cuidado. O samaritano da parábola (Lc 10,29-37) é o melhor exemplo de humani-dade. Diante do desconhecido semimorto, encontrado pelo caminho, desdobra-se em gestos de compaixão, esgotando

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todos os expedientes possíveis para ajudá-lo. Humanidade radical! Misericórdia radical! É o que Jesus propõe ao leitor do Evangelho ao exortá-lo: “Vai, e também tu, faze o mes-mo!” Seus discípulos, portanto, devem se caracterizar pela misericórdia. Outro texto evangélico apresenta um gesto de humanidade, motivo de alegria, num contexto bem sim-ples. “Quando deres uma festa, chama pobres, estropiados, coxos, cegos. Feliz serás, então, porque eles não têm com que te retribuir” (Lc 14,13-14). Portanto, o trato com o se-melhante revela a consistência da nossa humanidade. Quem se fecha para o próximo e deixa de lado a solidariedade, é “ser desumano”. A humanidade foi banida de seu coração!

Os consagrados, na vida comunitária e na missão, têm a chance de serem humanos, com grande qualidade e sempre dando novos passos. Por isso, as comunidades religiosas são “reservas de humanidade”, pois seus membros, enquanto discípulos de Jesus, pautam-se pelo mandamento do amor mútuo – “Eu vos dou um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado. Nisso reconhe-cerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” ( Jo 13,34-35) – e são atentos às carências do próxi-mo – “Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos e sa-ciai-vos’, e não lhes der o necessário para a sua manutenção, que proveito haverá nisso?” (Tg 2,15-16). No trato intraco-munitário e nas relações com os sofredores deste mundo, os consagrados revelam o quanto são humanos ou desumanos. Todavia, que sentido faz ser uma comunidade de consa-grados desumana? Ou, então, levar adiante a missão com espírito de desumanidade?

Antes, quem vem ao nosso encontro ou a quem vamos ao encontro, deveria encontrar-nos transbordantes de huma-nidade, num mundo onde campeia a desumanidade, sendo os mais pobres e marginalizados as primeiras vítimas. De-veriam encontrar em nós e entre nós motivos para se reu-manizarem e se tornarem, eles também, construtores de um mundo mais humano e fraterno. Os consagrados deveriam

encontrar aqui razões para se alegrarem. Ver que sua presen-ça gera humanidade e ajuda as pessoas a deixarem de lado o egoísmo; dar-se contas de como sua ação evangelizadora leva os empobrecidos e marginalizados a crescerem na cons-ciência de sua dignidade e a tomarem nas mãos a própria história; constatar, com sua presença e ação, o surgimento do “outro mundo possível”, embora como pequenino grão de mostarda (Mt 13,31-32) são causas de alegria verdadeira para os consagrados.

Tudo isto tem a ver com o que o Papa Francisco diz em sua carta. “Mosteiros, comunidades, centros de espiritualida-de, locais de acolhida, escolas, hospitais, casas-família e todos aqueles lugares que a caridade e a criatividade carismática fizeram nascer – e ainda farão nascer, com nova criatividade –, devem tornar-se cada vez mais o fermento para uma so-ciedade inspirada no Evangelho, a ‘cidade sobre o monte’ que manifesta a verdade e a força das palavras de Jesus”.

8. A alegria de ser presença missionária na Igreja, abraçando as tarefas mais desafiadoras. A eclesialidade da VRC exige dos consagrados extrema atenção aos desafios pastorais da Igre-ja, a serem respondidos com inventividade. Ela existe na Igreja e para a Igreja, entendida como Povo de Deus. Po-rém, como a Igreja está ao serviço da humanidade, o con-ceito de Povo de Deus alarga-se para abraçar, também, os não batizados, aos quais a misericórdia do Pai deve chegar.

Sensíveis às múltiplas situações do Povo de Deus, os con-sagrados escolhem estar entre os mais carentes, em todas as dimensões, onde devem se lançar, sem reservas, no serviço da reconstrução da dignidade humana ou mesmo na supera-ção da marginalidade social, eclesial e outras. O Papa Fran-cisco nutre expectativas em relação aos consagrados. “De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na cateque-se, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente, almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais de acordo com as exigências atuais da evangelização e da cari-dade, a adaptação das obras às novas necessidades”. Quanto

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profetismo, ao lançar aos consagrados e suas congregações o desafio de se colocarem com suas estruturas, consolidadas ao longo dos séculos, ao serviço dos grandes problemas da humanidade, enfrentados pela Igreja, na missão evangeliza-dora. Para o Papa Francisco, “ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre seu modo de responder às incessantes e novas solicita-ções que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres”.

Consagrados em busca de missões fáceis e compensado-ras revelam um desvio de conduta, quando não de perso-nalidade em sua consagração. Se, na raiz de sua vocação, está a disposição para servir, não tem sentido buscarem o menos, o cômodo, o vantajoso e o seguro, em se tratando de responder os apelos do Povo de Deus e da humanida-de. Pelo contrário, deverão se guiar pelo ideal do “magis”: o mais exigente, o mais desafiador, o mais abrangente, o mais desinstalador e o mais arriscado. Nada de se darem por satisfeitos com o pouco, com a mediocridade! E, sim, estar sempre dispostos a irem aonde outros se recusam a ir; a escolherem o que os outros rejeitam; a responderem os clamores provindos dos “porões da humanidade”, na con-tundente expressão de Carlos Mesters. Consagrados com tal disposição só terão motivos para se alegrar, pois estarão onde o Mestre Jesus deseja encontrá-los.

Os consagrados são desafiados a estar em situações especí-ficas: nas periferias, nos interiores, nas fronteiras e nos novos areópagos. São muitos os tipos de periferias. Se pensarmos as periferias socioeconômicas, mormente as das grandes metrópoles, nos confrontaremos com as terríveis contradi-ções dos sistemas econômicos que marginalizam milhões de pessoas e as obrigam a viver em condições subumanas, em meio a toda sorte de carência e de violência, degrada-doras da condição humana. Os exploradores da boa-fé do povo encontram aí terreno fértil para a difusão de propostas religiosas aliciadoras e enganadoras, sem qualquer intenção de promover a dignidade humana dos fiéis. E as periferias existenciais? O Papa Francisco tem preocupação especial com o sofrimento, a injustiça, a solidão, o envelhecimento,

o desprezo social e tantas outras. Os consagrados são con-clamados a estarem atentos aos clamores de tantos irmãos e irmãs e sentir o apelo de se solidarizarem com eles, a quem são chamados, no seguimento de Jesus, a “proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,19). Os interiores são outro desafio importante para os consagrados. Em geral, são o lu-gar da carência e do abandono, campo fértil para a ação de políticos inescrupulosos e corruptos. Ao abandono social, econômico e político, muitas vezes, soma-se o abandono religioso por parte da Igreja Católica. Denominações cris-tãs menos estruturadas e com mais facilidade de multiplicar seus ministros, sem muita dificuldade, fazem-se presentes nos interiores. Percebe-se entre os ministros ordenados – diocesanos e religiosos – da Igreja Católica a preferência pelas capitais e pelas paróquias ricas. Os interiores ficam entregues à própria sorte! Por conseguinte, aí se torna o lugar da ação preferencial dos consagrados, conscientes da vocação abraçada. As novas fronteiras, por sua vez, vão se multiplicando, enquanto as fronteiras geográficas têm cada vez menos importância. Pensemos nas fronteiras culturais, nas fronteiras sócio-político-econômicas, nas fronteiras da cultura científico-tecnológica e tantas outras. Que dizer do mundo sem fronteiras da era cibernética, onde os conceitos de tempo e de espaço não contam! Os seres humanos en-contram-se aí, às voltas com tantas questões éticas e, mais radicalmente, as que dizem respeito ao sentido da vida e ao destino da humanidade, à espera de quem os ajude a deci-frar os enigmas da existência humana e os caminhos a se-rem trilhados. Os consagrados, em sua determinação de se fazerem solidários com os seres humanos, estarão presentes nas fronteiras – lugar da surpresa e da desinstalação – como “peritos em humanidade”, evocando a feliz expressão do Papa Paulo VI, ao se referir à Igreja, na Encíclica Populo-rum Progressio (n. 13). Os novos areópagos devem, também, estar nos horizontes dos consagrados. A expressão, aludindo aos fatos envolvendo o apóstolo Paulo (At 17,16-31), ocor-re na Encíclica Redemptoris Missio (n. 37-38), do Papa João Paulo II. Como o apóstolo dos gentios, os consagrados são

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A alegria dos consagrados missionários ad gentes deve con-tagiar o corpo apostólico de suas congregações, de modo especial, os mais jovens. Serão exemplos de disponibilidade e de coragem apostólicas, contrariando o comodismo, vírus que contamina o corpo apostólico de muitas congregações.

10. A alegria de viver a intercongregacionalidade, como possibili-dade de alargar o campo de missão. Uma novidade na VRC, nos últimos tempos, foi a valorização das ações intercongrega-cionais. No passado, a tendência era a de cada congregação bastar-se a si mesma, sem necessidade das outras. A grande quantidade de vocações garantia a presença dos consagrados nas obras, podendo-se dispensar, inclusive, o recurso à mão de obra fora dos quadros congregacionais.

Tendo mudado a situação, com a diminuição e o enve-lhecimento dos membros, a intercongregacionalidade apre-sentou-se como caminho importante para as congregações, especialmente, em vista da abertura de novos campos de missão. O Papa Francisco almeja “que cresça a comunhão entre os membros dos diferentes institutos”, como “real tes-temunho profético” e “caminho de esperança” que “nos preserva da doença da autorreferencialidade”.

São muitas as experiências bem sucedidas de ações inter-congregacionais em duas direções. A primeira refere-se à formação. A CRB-Nacional desenvolve, há muitos anos, programas intercongregacionais de formação de aspirantes, postulantes, noviços, juniores, juniores em preparação para os votos perpétuos, religiosos veteranos, contemplativos, religiosos da terceira idade. A convivência e a partilha de experiências, em geral, se fazem em clima de muita integra-ção e alegria. O encontro com o diferente permite a cada consagrado tomar consciência de sua própria congregação. A originalidade de cada uma destaca-se na relação com as outras. A segunda refere-se à missão. Tanto a CRB-Na-cional quanto as congregações têm levado adiante missões, possibilitadas pela intercongregacionalidade. Quando várias congregações se unem, muitas vezes, dando de sua pobreza, é possível abrir frentes missionárias, dentro e fora do país, em situações críticas, onde, sem os consagrados, os mais

pobres seriam deixados à míngua. Pensemos em certos in-teriores do Brasil ou países da América Latina e da Áfri-ca! Ações intercongregacionais têm sido, também, levadas adiante no trabalho com a juventude, com os meios de co-municação, com a promoção humana, com a área da saúde e em outros campos de evangelização. O Papa Francisco alerta os consagrados para situações à espera da ação in-tercongregacional dos consagrados. “A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonados, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ri-cos saciados de bens, mas com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divi-no”. Em última análise, são situações idênticas às que esti-veram na origem de nossas congregações, que motivaram os fundadores a criá-las. Hoje, as situações são tremendamente mais graves e exigentes.

A partilha de recursos humanos e financeiros entre as congregações permite aos consagrados serem presença da alegria e da esperança junto à humanidade mais carente. Alegres por estarem juntos com membros de outras con-gregações, os consagrados serão, intercongregacionalmente, mensageiros da alegria.

11. A alegria de envelhecer com dignidade e chegar ao ocaso da vida conservando viva a chama da vocação e da missão. Quem viveu sua vocação com autenticidade e generosidade, va-lorizando tudo quanto lhe foi oferecido ao longo da vida, em vista do crescimento humano e espiritual, só terá mo-tivos para se alegrar, quando chegar ao ocaso da vida. Tais consagrados são facilmente identificados naqueles idosos capazes de superar os achaques da velhice ou da doença e conservar a alegria estampada no rosto. E, mais, o vigor es-piritual e missionário a encantar as jovens vocações e mos-trar-lhes valer a pena entregar-se ao serviço do Reino, em suas congregações.

O envelhecimento com dignidade resulta de uma longa marcha, onde se manteve “os olhos fixos naquele que é o autor e realizador da fé, Jesus” (Hb 12,2), certo de que “a

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esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi der-ramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Uma longa marcha feita em comunhão com os irmãos de comunidade e de congregação, conscien-te de ser uma família de fé e de missão; em solidariedade com os empobrecidos e marginalizados, nos passos de Jesus servo; em sintonia com os desafios missionários da Igreja, com disposição para respondê-los com criatividade e de co-ração aberto; na consciência de ter abraçado uma vocação profética, que rejeita toda injustiça e desumanidade. Enfim, sempre buscando o “magis”, sem se deixar levar por ideais pequenos e irrelevantes. O final de uma caminhada feita nestes moldes só poderá trazer alegria. Onde estiver um consagrado assim, até o final da caminhada nesse mundo, será comunicador de alegria!

A VRC é um carisma importante na Igreja e na Socieda-de. O profetismo do Papa Francisco incentiva-nos a retomar com “grande ânimo e generosidade”, como diria Santo Iná-cio de Loyola, nossa vocação-missão, deixando de lado tudo quanto nos impede de seguir adiante com alegria e esperan-ça. Francisco exorta os consagrados: “Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes se resolverão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando” (grifo nosso!). Quanta profecia para os consagrados que se extraviaram e não encontram razão para serem alegres e comunicar alegria!

Uma vez mais, somos estimulados a escutar a voz do Mes-tre a nos chamar e a nos enviar. É tempo de abrir os corações e acolher, quais servos bons e fiéis (Mt 25,21.23), este apelo que nos confronta com os fundamentos de nossa vocação. Se formos suficientemente corajosos para respondê-lo como positividade, aí, sim, teremos motivos para sermos alegres e portadores de alegria, aonde quer que estejamos. Se temos “uma grande história a construir”, como nos lembrou Fran-cisco, ela passa por aí. Ele nos diz: “Esta é a esperança que

não desilude e que permitirá à vida consagrada continuar a escrever uma grande história no futuro, para o qual se deve voltar o nosso olhar, cientes de que é para ele que nos impele o Espírito Santo a fim de continuar a fazer conosco grandes coisas”.

A resposta generosa aos questionamentos proféticos do Papa Francisco poderá tirar muitos consagrados e congre-gações do marasmo em que se encontram; fazê-los redesco-brir a alegria da consagração e encarná-la, aí onde atuam. E, mais, motivar os consagrados fiéis ao Senhor do Reino a se tornarem, sempre mais, encarnação alegre e radiosa do amor misericordioso que o Espírito derrama abundante em seus corações.

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Repassando a história de sua consagração, verifique as

ocasiões em que experimentou alegria verdadeira, na vida comunitária e na missão, e como a deixa trans-parecer no seu dia a dia.

2. Que outros motivos a VRC oferece aos consagrados para se alegrarem, além dos que foram elencados no artigo? Dentre os que foram elencados, qual ou quais o tocam mais de perto?

3. Que passos podem ser dados para banir a tristeza de nossas comunidades e em nossa missão? Você está dis-posto a colocá-los em prática, como apelos de Deus?

4. Que elementos da profecia do Papa Francisco, referi-dos no texto, parecem-lhe mais iluminadores no atual momento da VRC, seu e de sua congregação?

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524 525Vida Consagrada – Chances Convergência: Considerando o Ano da Vida Consa-grada, há certamente alguns aspectos que lhe interessam e preocupam...

Irmão Nery: Sem dúvida. Estamos tendo, penso, uma preciosa chance de trabalhar seriamente a nossa própria conversão como religiosos e religiosas. Alguns passos a mais no “encontro pessoal e intransferível com Deus” são obvia-mente fundamentais. Nossa razão de ser é Deus, o absoluto de nossa vida, e é, também, a missão de irradiá-lo por nosso testemunho pessoal e comunitário, e por nossa dedicação inteligente e orgânica à expansão do seu Reino, nos cora-ções das pessoas, nos relacionamentos pessoais, na família, na sociedade, na arte, no trabalho, na política, em tudo.

Esta conversão, obviamente, implica uma grande revi-ravolta na vida comunitária religiosa e em nosso jeito de somar forças na evangelização, na pastoral e no mundo do trabalho. Não estamos na vida comunitária para preencher lacunas afetivas ou para fugir de compromissos com a rea-lidade do mundo ou para viver como solteirões e solteiro-nas rabugentos(as), ou criar nosso mundinho à parte. Pelo contrário, cabe-nos o ideal de sermos profecias do amor fraterno do Mandamento Novo de Jesus, por opção de vida e virtude: “Nisto todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros como eu vos tenho amado” ( Jo 13,34-35; 1Jo 4,20-21). E o nosso compromisso na pastoral e no trabalho, obviamente, tem de ter a marca de um jeito especial de tudo fazer, isto é, a de religiosos/as, e não escon-dendo a nossa identidade ou deixando-nos cair na onda, até mesmo da corrupção.

Convergência: As Congregações e as organizações reli-giosas, como o Dicastério Romano para a Vida Consagrada – com duas belas e ricas Cartas aos Religiosos/as já publica-das2 –, e também a CRB, estão oferecendo chances...

Irmão Nery: É verdade. Mas sem querer ser irônico, nossa Igreja Católica é certamente, entre as Igrejas e as Re-ligiões, a maior produtora de documentos, e as nossas Con-gregações Religiosas também produzem muito. A questão principal, porém, é que, em geral, nós, os fiéis – e nós, os

* Irmão Israel José Nery, de Machado--MG, é do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs ou De La Salle ou Lassalistas, devido ao fundador, São João Batista de La Salle (1651-1719), celeste Patrono dos(as) Edu-cadores(as). Formado na Universidade La-teranense, em Roma, tem especialização em Catequética. É escritor com 67 livros publicados. Foi asses-sor da CNBB para ca-tequese, Campanha da Fraternidade, Pastoral Bíblica e Ensino Re-ligioso e, posterior-mente, de Educação, e foi vice-presidente da CLAR.

1 “Religiosos Ir-mãos” é a denomina-ção usada pelo Santo Padre, o Papa João Paulo II, na Exorta-ção Apostólica Vita Consecrata, de 1995, após o Sínodo sobre a Vida Consagrada. Neste documento ele anunciava uma Co-missão Especial para a realidade da Vida Religiosa masculina

entreVista coM o irMão nery Fsc*

Convergência: Com sua larga caminhada como Reli-gioso Irmão Lassalista, certamente tem muito a dizer por ocasião deste Ano da Vida Consagrada.

Irmão Nery: Sim, sou grato a Deus por tantos privilé-gios ao longo de meus 76 anos. No caso específico da Vida Consagrada, primeiramente o dom de ter optado muito cedo por ser Religioso Irmão. E, em minha família, de 20 filhos, muito católica, o questionamento sobre o fato de não ter escolhido ser presbítero apareceu e, obviamente, depois, sobretudo, nas minhas andanças por causa da assessoria em Catequese, em Educação e em Vida Religiosa. O tema era levantado e, com mais insistência, por ter um primo famo-so, religioso-presbítero, o Padre Zezinho, SCJ. Mas nunca me preocupei com esta situação, pois creio que ser Religio-so Irmão é pura graça de Deus. Não mereço ser o que sou.

Sempre estive seguro de que o Religioso Irmão1 tem e deve ter vez no povo de Deus e estou convicto de que em nossa Igreja esta vocação específica e sua missão merecem mais atenção dos fiéis e da hierarquia. E, no contexto brasi-leiro, pelo fato de precisarmos demais de sacerdotes (vinte e quatro mil e quinhentos para atender mais de cento e seten-ta milhões de católicos, sobre duzentos e cinco milhões do total da população do Brasil), considero uma graça especial que tantos jovens optem pela vocação e missão de Religioso Irmão também nas ordens clericais. E o mesmo se diga em relação ao espaço cada vez maior dos leigos e das leigas na Igreja que, em vez de obscurecer a opção pela Vida Consa-grada, a estimula.

dos Irmãos, que infe-lizmente até agora não aconteceu. Espera-se ainda para este Ano da Vida Consagrada que este documen-to, ou algo similar, seja publicado pela Congregação para a Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, da qual o presidente é o Cardeal João Braz de Aviz.

2 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTI-TUTOS de Vida Consagrada e Socie-dades de Vida Apos-tólica. “Alegrai-vos!” Carta aos Consagrados e Consagradas. Ano da Vida Consagrada, 2014; “Perscrutai no caminho os sinais de Deus”, 2015.

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religiosos e religiosas –, pouco lemos e, entre os que leem, poucos levamos a sério o que é publicado. É até oportu-

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calar alguns profetas e algumas profetisas e de intervir em instituições, obviamente, amedrontaram, levando alguns ao desânimo, outros ao comodismo e outros à paciência histó-rica na espera de novos tempos. Com isso, tanto boa parte da hierarquia como de Congregações e de fiéis leigos/as fo-ram se retirando do compromisso com a transformação so-cial, com a opção preferencial pelos pobres e, logicamente, se aburguesando e buscando em correntes espiritualizantes e desencarnadas da realidade ser evangelicamente transfor-mada, especialmente, em termos de justiça social.

A guerra contra uma CNBB alinhada com a Teologia da Libertação e a substituição de bispos eméritos, grandes pro-fetas, por novos bispos alheios a uma Igreja que realmente se inculturava na América Latina e no Caribe – em nosso caso na realidade do Brasil –, fragilizaram nossa presença cristã como fermento transformador. Este fermento atuava no meio da massa, no povo, e era constante como denún-cia e anúncio em relação aos opressores e exploradores do povo, os corruptos e corruptores da ética, da cidadania e do planeta Terra. E também houve acentuada autorreferência e muita concessão ao mundanismo, numa parte da Vida Con-sagrada, e, em outra, um fechamento no conservadorismo, sem incidência sobre a realidade social. E, mais ainda, não levamos suficientemente em conta, como era e é nossa obri-gação, a situação de mudança civilizacional destes últimos cinquenta anos,6 com situações que deixam a muitos de nós aflitos, perplexos e perdidos.

Vale citar, por exemplo, o mundo cada vez mais plural em que estamos; o avanço das tecnologias modernas da infor-mação e da comunicação e seu uso cada vez mais alienante; a exploração comercial de Jesus Cristo e dos valores da fé cristã; as crises geradas pela pedofilia e por saídas de reli-giosos e religiosas; a decadência de numerosas paróquias; o grande trânsito de católicos por outras Igrejas cristãs e religiões; e um direcionamento de muitos católicos para o devocionismo e a piedade intimista e/ou psicocatártica etc.

Mas é preciso acrescentar também a crise interna de mui-tas Congregações que, depois de receber e preparar novos

6 A V Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe, em Aparecida, 2007, teve clara consciência dessas mudanças e apresentou excelentes medidas para a Igreja, tais como a conversão pessoal dos católicos, a conversão estrutu-ral das paróquias, a missão continental, a nova proposta para a formação dos fiéis, mas, sobretudo, a eclesiologia de co-munhão, participação misericordiosa e missionária e a opção preferencial pelos pobres. O Papa Fran-cisco está sabiamente aplicando Aparecida na Igreja toda.

religiosos (com falhas evidentes no processo formativo), não conseguem que as Comunidades, já com anos de caminha-da, lhes deem espaço, vez e voz, nem continuidade à forma-ção inicial. Em contrapartida, veem-se muitos desses jovens mal-formados se envolvendo facilmente no consumismo, em horas e horas dedicadas às redes sociais e fugindo da oração, da vida comunitária e do compromisso evangélico.

É óbvio que temos gestos maravilhosos de renovação e de testemunho, como, por exemplo, no campo da inter-congregacionalidade, na formação inicial e permanente, na reflexão teológica e no investimento nas Novas Gerações. Mas é ainda pouco o que acontece na prática, sobretudo, no campo da união na missão, na opção pelos pobres e na evangelização do mundo da comunicação, da ciência, da arte e da política.

Convergência: Graças a Deus, com o Papa Francisco, iniciou-se uma nova época de primavera na Igreja...

Irmão Nery: É motivo de ação de graças. Mas moti-vo, especialmente, para continuar na batalha pela conversão pessoal, comunitária e missionária, que é, aliás, uma insis-tência do próprio Papa Francisco. Considero como ação do Espírito Santo este início de seu pontificado e a sua insistên-cia sobre assuntos os mais variados, mas sempre na ótica do essencial, voltar a Jesus Cristo, voltar ao Evangelho, voltar à alegria de ser discípulo missionário, voltar ao compromisso com os mais necessitados em todo tipo de periferia, insistir na missão e no serviço.

Chances temos e muitas para a nossa conversão pessoal, institucional e missionária. E a própria maneira como Fran-cisco age e fala, e o que diz, é estímulo para nós todos reto-marmos, com profundidade e coragem profética, a comba-tida “refundação da Vida Religiosa” e a “opção preferencial pelos pobres”, a mística e o profetismo da inculturação e da inserção libertadora no meio do povo sofrido e explorado, particularmente os excluídos sociais. Este ano dedicado à Vida Consagrada é estímulo para tudo isso.

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Convergência: Alguma sugestão para bem viver o Ano da Vida Consagrada?

Irmão Nery: Gostaria muito de que nós, religiosos/as, tivéssemos sinais externos que evidenciem espontaneamen-te algo contagiante do dom de ser consagrados no estilo próprio da Vida Religiosa. Penso, por exemplo, nos olhos que brilhem, no sorriso que expresse o que o Papa Francis-co tanto insiste: a alegria do Evangelho, a alegria de ser dis-cípulo missionário, de viver em profunda intimidade com Deus e na vida fraterna evangélica, de ser feliz na opção realizada (dom de Deus e cooperação nossa). Penso no abra-ço que consola, conforta, transmite fraternidade e alegria, entusiasmo e votos de felicidade.

Penso também na presença simples e ação generosa, cria-tiva, dinâmica e feliz no serviço direto aos mais pobres, aos que sofrem, aos carentes de bens materiais, mas também ca-rentes de bens intelectuais, sociais, espirituais, de valores... Uma encarnação da misericórdia de Deus. Penso que é fun-damental estarmos disponíveis para atender à sede de Deus, à sede de espiritualidade, que paradoxalmente, em meio a tantas mudanças no mundo, vem crescendo e nós, religio-sos/as, devemos ser “mestres de espiritualidade”. Mas espi-ritualidade que nos faz ser abertos à ação do Espírito, que não nos prende a ele e não nos faz manipuladores dele, mas nos faz sair para ir ao encontro dos outros, levar-lhes Jesus Cristo, feliz, dentro de nós, como Maria em sua visita a Isabel; um Jesus Cristo desejoso de estar nos outros e conos-co. Assim viveram e fizeram os apóstolos e a multidão dos que partiram mundo afora para testemunhar e evangelizar, servir e libertar. Portanto, uma espiritualidade que nos en-carne e inculture, solidarize e fraternize, na cooperação de modo criativo e orgânico na expansão do Reino de Deus...

Seria muito bom cada um de nós, religiosos/as, assumir estas importantes palavras do Papa Francisco: “Sejam teste-munhas de um modo diferente de fazer, atuar, viver! É pos-sível, sim, viver de um modo diferente neste mundo. Espero de vocês este testemunho. Os religiosos devem ser homens e mulheres capazes de despertar o mundo!”.7 E para Francisco

7 Cf. em SPADARO, A. “Despertem o mun-do!” Diálogo do Papa Francisco sobre a Vida Religiosa, quando da sua visita à União de Superiores Maiores (USG) e Superioras Maiores (UISG), no dia 29 de novembro de 2013.

isso acontecerá mediante a firme decisão de “sair em mis-são”, porque, como ele mesmo afirma, a saída missionária é paradigma de toda obra de Igreja.8 É esta a mesma mensa-gem do Documento de Aparecida, do qual como Cardeal Mario Bergoglio – o Papa Francisco – foi o coordenador da redação: passar de uma pastoral de mera conservação a uma pastoral decididamente missionária.9

Convergência: Que lugar ocupa a Vida Consagrada na Igreja e no mundo?

Irmão Nery: Interessante esta questão. Acredito que este ano da Vida Consagrada é chance também de, na humil-dade, assumir, com gratuidade e amor-de-entrega plena, o dom da Vida Consagrada, obviamente não como “Estado de Perfeição” ou um estilo de vida no qual nós, religiosos e religiosas, temos mais méritos e somos melhores que os ou-tros. Nada disso! Vivemos apenas uma das modalidades de seguir Jesus Cristo, e isso por chamado gratuito de Deus, e que ele, por sua misericórdia e providência, nos suporta em nossas enormes fragilidades.

Estou convencido, sim, de que, sem dúvida alguma, na multiforme graça de Deus e modalidades de seguir Jesus, a Igreja certamente seria muito menos sem a Vida Consa-grada, de todos os tipos que há e que ainda existirão. Creio profunda e vitalmente na maravilha da Vida Consagrada, especialmente a que tento viver, a de Religioso Irmão, e a que sonho para o hoje-amanhã. Para mim, sem dúvida, a própria sociedade, especialmente a contemporânea, se en-riquece muito com a presença e atuação dos religiosos e religiosas. Falta, por falha nossa, mais eficácia, pois nosso fermento está frágil na massa da sociedade. Estamos muito presos aos nossos mundinhos de sempre. Precisamos atender ao chamado do Papa: “Igreja em saída, missionária”, tanto nas muitas e variadas periferias como nos novos areópagos.10

Ao encerrar, me permito voltar ao essencial: conversão, Evangelho como regra primeira e principal, sólida vida espiritual e comunitária, mais criatividade, comunhão e união na missão. E ouso pedir o favor, a quem teve a pa-ciência de ler esta entrevista, de orar pela minha conversão,

8 PAPA FRAN-CISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 15.

9 DOCUMENTO DE APARECIDA, n. 15. São Paulo/Brasília: Paulinas/Ed. CNBB, 2008.

10 O termo grego Areópago aparece no Livro dos Atos dos Apóstolos 17,16-22: “... Agarraram Paulo e o levaram ao Areó-pago e lhe disseram: “Fale-nos deste novo ensinamento que andas propondo”. E Paulo então se colo-cou de pé no meio do Areópago e disse...”. Trata-se fisicamente da “Colina do Deus Ares”, a oeste da Acrópoles de Atenas. Ali estava a sede do Conselho Areópago, que historicamente tinha muitos poderes na Grécia, mas que na época de Paulo era mais simbólico e tinha algum poder de julgar ações criminais. O Papa João Paulo II, na terceira parte da Exor-tação Apostólica Vita Consecrata (ano 1995), intitulada “Alguns areópagos da missão”,

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mas também de agradecer comigo a Deus pelo privilégio de tanta bênção, ao longo de meus já avançados anos, pois celebro meu jubileu de Votos Perpétuos. Amém.

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recorreu a este termo para algumas situações especialmente desafia-doras à evangelização, como, por exemplo: – mundo da educação e da cultura, – o mundo da comunicação, – o mundo do diálogo hoje (diálogo ecumê-nico, diálogo inter-re-ligioso, uma resposta de espiritualidade em busca do sagrado e da nostalgia de Deus).

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Quais assuntos e provocações me chamaram a atenção

e me impulsionam a prosseguir na conversão-renova-ção de minha vida pessoal, comunitária e missionária?

2. Uns dois ou três temas tocados nesta entrevista que preciso conhecer mais.

3. Passar uns momentos orantes sobre alguns assuntos desta entrevista.

4. Elaborar e aplicar uma dinâmica para trabalhar esta entrevista em reunião da Comunidade e/ou encontro de religiosos/as.

* Faustino Teixeira, PPCIR-UFJF, nasceu em Juiz de Fora, Bra-sil, em julho de 1954. Doutor em Teologia pela Pontifícia Uni-versidade Gregoriana (Roma, 1985), com estágio pós-doutoral na mesma Univer-sidade (1997-1998). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Pesquisador do CNPq e consultor do ISER Assessoria (RJ). Dentre suas linhas de pesquisa destacam-se: Teologia das Religiões, Diálogo Inter-religioso e Místi-ca Comparada das Reli-giões. É autor de vários livros, entre os quais: Ecumenismo e diálogo inter-religioso, Apare-cida: Santuário, 2008; Teologia e pluralismo religioso. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2012; Buscadores de diálogo. São Paulo: Pau-linas, 2012; Buscadores cristãos no diálogo com o islã. São Paulo: Paulus, 2014; Cristianismos e teologia da libertação. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2014; Cristia-nismo e diálogo inter-reli-gioso. São Paulo/Juiz de

Faustino teixeira*

IntroduçãoOs primeiros números do Censo de 2010 sobre as reli-

giões no Brasil foram publicados pelo IBGE no final de ju-nho de 2012. Uma divulgação que ocorreu quase dois anos depois da aplicação dos questionários pelos recenseadores. Uma abordagem ampla sobre esse tema veio destacada no livro que organizei junto com Renata Menezes: Religiões em movimento: o Censo de 2010.1 O que pretendo fazer aqui é retomar a análise dos dados que desenvolvi no artigo de abertura desse mencionado livro.

No prefácio da obra, Religiões em movimento, Pierre Sanchis confirma essa “reemergência” do sagrado na vida social e na experiência pessoal, que se dá “ao lado e articuladamente com a secularização”. Constata ainda o crescente interesse pelo fenômeno religioso no âmbito da academia. Dentre as linhas de mudança apontadas por ele, destacam-se a emer-gência do indivíduo e a crescente desinstitucionalização.2 O autor indica que o universo das experiências religiosas deixa hoje de ser regido por estruturas sólidas e regulado-ras, tornando-se mais fluido, pontuado agora por relações menos totalizantes entre os fiéis e as suas instituições reli-giosas de pertença. Fica, assim, cada vez mais difícil a afir-mação rígida das declarações de pertença religiosa, exigindo do analista uma reflexão mais afinada para dar conta dessa complexidade.

Isso tem uma direta repercussão no debate sobre o lu-gar e a importância do censo para aferir com exatidão o

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predominantes de sem religião encontram-se aqueles que se desvincularam de uma religião tradicional e afirmam sua crença com base em rearranjos pessoais; aqueles que pas-saram por diversos trânsitos mas que não se encontraram em nenhum deles; aqueles que mantêm uma espiritualidade leiga ou secular; aqueles que mantêm uma filiação fluida em razão da indisponibilidade de participação religiosa regular e aqueles que se definem como ateus ou agnósticos.26

No Censo de 2010, foram cerca de 15,3 milhões de pes-soas classificadas nessa categoria de sem religião, ou seja, 8% da população geral.27 E curiosamente, o grupo dos agnósti-cos ou ateus não é o mais expressivo dentre os declarantes, envolvendo respectivamente 124,4 mil (0,07%) e 615 mil (0,32%) pessoas. Regina Novaes, em artigo esclarecedor, destacou nessa categoria uma presença jovem, sendo a idade média em torno de 26 anos. Daí ter privilegiado esse recor-te para o desenvolvimento de seu trabalho. São jovens que “vivem sobretudo nas cidades” embora não estejam ausen-tes no campo, com boa representação no Sudeste. A autora identificou em suas pesquisas a presença, entre os jovens, de “histórias de conversões e de desconversões, de trânsitos e combinações no interior de suas famílias multirreligiosas”. Em sua pertinente análise, Regina reconhece que na traje-tória dos jovens entrevistados pelo IBGE existem, de fato, experiências de desfiliação ou mesmo desafeição religiosa, mas que é problemático generalizações apressadas, pois para muitos jovens as instituições religiosas não perdem o seu valor de locus de agregação, motivação ou afirmação de sen-tido. O que ocorre, na verdade, é a redefinição de víncu-los ou pertencimentos, que se firmam de outros modos, e nem sempre “por dentro dos circuitos institucionais, mas também fora e à margem”. Nesse sentido, “declarar-se ‘sem religião’ pode ser um ponto de partida, um interregno entre pertencimentos ou um ponto de chegada onde se realizam sínteses pessoais combinando elementos de diferentes tradi-ções religiosas e esotéricas”.28

Espíritas e afro-brasileirosAs taxas de crescimento nominal, no Censo de 2010,

também vigoraram para a declaração espírita. Houve na úl-tima década um acréscimo vigoroso de adeptos do espiritis-mo kardecista, que passaram de 1,3% em 2000 para 2,02% em 2010. São hoje cerca de 3,8 milhões de seguidores do espiritismo no Brasil. Como mostra Bernardo Lewgoy, “o espiritismo brasileiro passou, nas últimas décadas, por um processo de transformação, de minoria religiosa perseguida para alternativa religiosa legítima, que oferece explicação de sucessos, conforto para aflições e cura espiritual de infortú-nios, a partir de uma doutrina que se pretende simultanea-mente científica e religiosa”.29

A presença espírita na sociedade brasileira não consegue ser captada satisfatoriamente pelos dados do censo, que tra-duzem simplesmente um olhar de “superfície”. Lewgoy chama a atenção para “as dinâmicas e estratégias de mobi-lidade e afiliação religiosa concreta dos atores sociais” que só com o aporte de pesquisas qualitativas, com bons re-cursos hermenêuticos, conseguem ser delineadas.30 Há que sublinhar, igualmente, um dado reiterado por analistas das ciências sociais a propósito da “impregnação espírita da so-ciedade brasileira”. Como mostrou Gilberto Velho, entre outros, o “transe, possessão e mediunidade são fenômenos religiosos recorrentes na sociedade brasileira”. E não só no espiritismo, mas também nas religiões afro, no pentecosta-lismo e outros grupos religiosos. Esse autor chega a sugerir que em torno da metade da população brasileira “participa diretamente de sistemas religiosos em que a crença nos espí-ritos e na sua periódica manifestação através dos indivíduos é característica fundamental”.31

O sociólogo Cândido Procópio de Camargo, com base nos Censos de 1940 a 1960, sublinhava o papel singular do “gradiente Espiritismo-Umbanda” como “beneficiário” do processo de transição religiosa em curso no Brasil.32 Regi-naldo Prandi lembra essa previsão de Cândido Camargo, e mostra como ela, de fato, não se realizou. O que se destaca

2010. Cf. As igrejas penteconstais..., p. 161.

18 Houve, na verdade, um pequeno decrés-cimo dos evangélicos de missão na última década, que passaram de 4,1% para 4% dos de-clarantes, ou seja, uma queda de 7.686.827 milhões de adeptos.

19 Marcelo Camurça enfatiza a vitalidade dos pentecostais, e em par-ticular da Assembleia de Deus, no sentido de “acompanhar a capilari-dade da geografia social e a mobilidade e o trân-sito de populações para lugares mais recônditos e inalcançáveis do país, através de organismos ágeis, múltiplos e funcionais” (CAMUR-ÇA, Marcelo Ayres. O Brasil religioso que emerge do Censo 2010: consolidações, tendên-cias e perplexidades, In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 78-79).

20 CAMPOS, Leo-nildo Silveira. “Evan-gélicos de missão” em declínio no Brasil, p. 147. No caso do catolicismo ocorreu o contrário, com uma sangria diária na ordem de 465 adeptos por dia na última década. Daí se dizer, com acerto, que o catolicismo é um “doador universal”, o “principal celeiro” da arregimentação de adeptos pelos outros credos ou pelos sem religião (MONTERO, Paula; ALMEIDA, Ronaldo de. O campo religioso brasileiro no

limiar do século. In: RATTNER, Henrique [Org.]. Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p. 330).

21 MATTOS, Paulo Ayres. A relevante queda de crescimento evangélico revelado pelo Censo de 2010. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, p. 30, 2002.

22 Mas mesmo com esse incremento, hou-ve um recuo no peso percentual com respeito ao grupo evangélico, como assinalaram Mariz e Gracino Jr., “passando de 68,65% em 2000 para 60,01% no último censo” (As igrejas pentecostais no Censo de 2010, p. 168).

23 MARIZ, Cecília; GRACINO JR., Paulo. As igrejas pentecostais e o Censo de 2010, p. 163-165. Segundo Ricardo Mariano, em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 30/06/2012, “o inchaço da cate-goria ‘evangélica não determinada’ reduziu artificialmente o cres-cimento pentecostal” (Em marcha, a transfor-mação de demografia religiosa do país).

24 ALTMANN, Wal-ter. Censo IBGE 2010 e religião. Horizonte, p. 1128.

25 PIERUCCI, Antô-nio Flávio. “Bye bye, Brasil”: o declínio das religiões tradicionais no Censo de 2000. Estudos Avançados USP, v. 18,

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nos últimos Censos é um “declínio constante” do conjunto das religiões afro, sobretudo da umbanda, mantendo-se no reduzido patamar de 0,3% da população brasileira. Prandi reconhece que na última década houve uma “pequena rea-ção da umbanda”, que passou de 397.431 adeptos, em 2000, para 407.331, em 2010. Mas adverte que “o fraco cresci-mento observado foi insuficiente para recuperar as perdas sofridas anteriormente”. Trata-se de uma perda que se reve-la progressiva, desde o Censo de 1991, quando a umbanda e o candomblé passaram a contar com estatísticas separadas. O mesmo não ocorre com o candomblé, que em 2000 con-tava com 139 mil adeptos e ganha um acréscimo de 28 mil adeptos em 2010, passando a 167 mil declarantes.33

Mas assim como ocorre no aferimento da declaração dos espíritas, também com respeito às religiões afro-brasileiras há dificuldades precisas de detectar a real presença da um-banda e do candomblé no Brasil. Como indica Prandi, o Censo “sempre ofereceu números subestimados dos segui-dores das religiões afro-brasileiras, o que se deve às circuns-tâncias históricas nas quais essas religiões se constituíram no Brasil e a seu caráter sincrético daí decorrente”. Continua vigente a tendência de adeptos das religiões afro-brasileiras camuflarem sua identidade registrando uma declaração de crença distinta, seja na rubrica católica ou espírita.34

Numa abordagem mais otimista sobre os rumos das re-ligiões afro-brasileiras, as pesquisadoras Luciana Duccini e Miriam Rabelo reconhecem que, apesar de sua reduzida expressão numérica, essas religiões “jogam um papel im-portante em debates sobre formação da sociedade brasileira e na política identitária de segmentos desta sociedade”.35 Na análise dessas autoras, o que o Censo de 2010 revela é “uma recuperação no crescimento dessas religiões, que até então vinham perdendo adeptos”. Se houve um crescimento ne-gativo entre os anos de 1991 e 2000, os dados do último Censo revelam um “incremento de 12,5%”, sobretudo em razão do crescimento do candomblé, que foi da ordem de 31,2%, bem como da umbanda, na ordem de 2,5%.36

Tradições indígenas e outras religiõesOs dados indicados pelo Censo de 2010 com respeito às

tradições indígenas no Brasil revelam um crescimento com respeito à década passada. Enquanto em 2000 os números indicavam 10.723 adeptos de tradições indígenas, no ano de 2010 esse número passou para 63.082. Uma importante observação feita pela pesquisadora Elizabeth Pissolato, em artigo sobre o tema, diz respeito à inadequação da utili-zação da categoria “raça ou cor” para favorecer o autor-reconhecimento indígena para muitos dos adeptos que se autodeclararam indígenas, mesmo não reconhecendo tais critérios como indicativos dessa pertença. Isso denota um componente de “valorização cultural” implicado na inclu-são da categoria “tradições indígenas” na pesquisa censitária a partir de 2000.37 Dentre outros destaques de sua interpre-tação vale registrar a presença significativa de indígenas que se autodeclararam sem religião, em torno de 14,5%; bem como o crescimento daqueles que se autodeclaram evan-gélicos (25%). Quanto aos que se autodeclaram católicos (51%), que é uma porcentagem alta, houve um decréscimo na última década, já que em 2000 eram 58,9%. A autora su-blinha como um traço importante o “aumento extraordiná-rio” ocorrido na última década, e destacado no Censo, das declarações de indígenas em favor da “tradições indígenas” como religião, de 1,4% dos declarantes em 2000 para cerca de 5,3% em 2010.38

Com base nos dados do Censo de 2010 não há como ne-gar a força do referencial cristão na sociedade brasileira. Mas já se começa a perceber nele uma diversificação cada vez mais evidenciada. Junto com essa multiformidade interna ao campo cristão, verifica-se também uma pluralização re-ligiosa cada vez maior, com visibilização crescente. As ou-tras religiões, que no Censo de 2000 concentravam 1,8% da declaração geral de crença, passam agora a responder por 2,7% dessa declaração.39 Essas outras religiosidades podem ser abordadas em quatro frentes: religiões orientais, islamis-mo, judaísmo e circuito neoesotérico.

n. 52, p. 19, set./dez. 2004.

26 Dentre os analistas que buscaram classifi-car os sem religião, cf. FERNANDES, Sílvia. “A (re)construção da identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, p. 24, 2012. E também RODRI-GUES, Denise dos Santos. Os sem religião nos censos brasileiros: sinal de uma crise do pertencimento insti-tucional. Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1137, out./dez. 2012.

27 É curioso constatar o crescimento dos sem religião (também cha-mados de não afiliados) em âmbito mundial: eles abrangem cerca de 16,3% da população mundial, em torno de 1,1 bilhão de adeptos. Sua presença é mais forte na China, Japão e Estados Unidos.

28 NOVAES, Regina. Jovens “sem religião”: sinais de outros tem-pos. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 175-190 (a citação está na p. 189).

29 LEWGOY, Ber-nardo. A contagem do rebanho e a magia dos números: notas sobre o espiritismo no Censo de 2010. In: TEIXEI-RA, Faustino; MENE-ZES, Renata. Religiões em movimento, p. 199.

30 Ibidem, p. 200.

31 VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das socie-dades complexas. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 53-54. Ver também: SAN-CHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, Alberto et al. Nem anjos nem demônios: interpre-tações sociológicas do pentecostalismo. Petró-polis: Vozes, 1994. p. 37; CARVALHO, José Jorge de. Características do fenômeno religioso na sociedade contem-porânea. In: BINGE-MER, Maria Clara L. (Org.). O impacto da modernidade sobre a reli-gião. São Paulo: Loyola, 1992. p. 146.

32 CAMARGO, Cândido Procópio F. de. Católicos, protestan-tes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 24.

33 PRANDI, Reginal-do. As religiões afro--brasileiras no Censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 208.

34 Ibidem, p. 204. Ver também: FOLMANN, José Ivo. Trânsito reli-gioso e o ‘permanente peregrinar’. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, p. 14, 2012. E igualmente o singular livro de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giaco-mini. Presença do Axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC--Rio/Pallas, 2013. As autores trazem dados

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No livro As religiões em movimento, os números relativos às religiões orientais foram trabalhados por Frank Usars-ki.40 Nessa classificação estão envolvidas a tradição budis-ta, hinduísta, as novas religiões orientais (igreja messiâni-ca mundial e outras novas religiões orientais) e as outras religiões orientais. Como assinala o autor, essas tradições religiosas nunca alcançaram um “patamar quantitativamen-te significante” no Brasil.41 Permanecem como “minoria religiosa” no país, envolvendo a estreita parcela de 0,22% da população brasileira.42 Dentre essas tradições, destaca-se o budismo, com 0,13% da população brasileira.43 Segundo Usarski, “a adesão a uma das ‘religiões orientais’ é um fenô-meno relativamente incomum entre brasileiros”, ainda que o cotidiano da nação seja penetrado por símbolos e técnicas culturais provenientes do Oriente. Esse envolvimento não vem, porém, traduzido em disponibilidade de adesão es-pecífica a determinada religião oriental. Com respeito ao Censo de 2000, houve um crescimento na adesão a uma das religiões orientais, expresso no aumento de 32.902 pessoas declarantes. Em termos de localização geográfica, estas tra-dições religiosas estão mais bem representadas no Sudeste, envolvendo 78,5% dos budistas, 66,91% dos adeptos de uma das chamadas novas religiões orientais e 46,4% dos seguido-res das outras religiões orientais. Na avaliação de Usarski, a sociedade brasileira, sensível à interlocução da alterida-de, “oferece boas condições para a ‘evolução’ das ‘religiões orientais’”, embora a afirmação dessa presença religiosa pa-reça ainda improvável num futuro próximo, tendendo a manter sua condição de minoria religiosa.

Quanto ao islamismo, que tem uma pujante irradiação mundial, encontra-se no Brasil com presença mais modesta. Há, porém, que destacar o seu crescimento no país entre os dois últimos censos. No Censo de 2000, o número de de-clarantes muçulmanos foi de 18.592, passando para 35.167 no Censo de 2010. Trata-se de um crescimento considerá-vel, mas que no quadro geral da população brasileira repre-senta apenas 0,02%. A análise destes dados foi trabalhada por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto.44 O autor sublinha

que os dados apresentados pelo Censo não coincidem com os índices apresentados pelas instituições islâmicas presentes no Brasil ou suas lideranças, que indicam um número bem maior, estimado entre 1 a 3 milhões de adeptos. O que se observa, na verdade, indica o autor, é um real crescimen-to das instituições islâmicas no país, que chegam a quase 100 em 2012, com maior concentração nas regiões Sul e Sudeste. O islamismo no Brasil tem um traço bem urbano e um índice importante de presença masculina, com pre-sença mais destacada em São Paulo (42% dos muçulmanos declarados) e Paraná (27%). Registra-se ainda outro dado importante, que é o aumento do número de conversões de brasileiros ao islã.45

O tema do judaísmo foi desenvolvido por Monica Grin e Michel Gherman. Os dados apontados pelo Censo indicam a presença de 107 mil adeptos desta tradição religiosa,46 com um leve aumento com respeito a 2000, quando estavam re-presentados por 101 mil seguidores. Os autores destacam a complexidade da identidade judaica, que não se esgota nos limites da religião, indicando que aqueles que se declaram judeus ao responderem ao censo não são “necessariamente ‘praticantes do judaísmo’”. Sublinham que o traço caracte-rístico do judaísmo no Brasil é a sua diversificação plural, abarcando desde o judaísmo ortodoxo, que vem aos poucos se consolidando, até comunidades mais inovadoras, influen-ciadas por práticas da New Age. Trata-se de um judaísmo “mais multifacetado em suas manifestações do que apenas uma religião monoteísta e de fronteiras tradicionalmente fechadas à conversão de não judeus”.47 A comunidade judai-ca no Brasil, que se destaca dentre as outras comunidades desta tradição nas Américas do Sul e Central, concentra-se sobretudo nos grandes centros urbanos.

O Censo de 2010 sinalizou também a presença das tra-dições esotéricas no Brasil, com um registro minguado de 0,04 de declaração de crença, mantendo o mesmo patamar indicado no Censo de 2000, com um aumento reduzido: de 67 mil declarantes em 2000 para 74 mil em 2010. A aborda-gem desse circuito neoesotérico foi desenvolvida por Leila

bem interessantes a respeito da presença de “Casas de Axé” em nove regiões do estado do Rio de Janeiro (847 casas pesquisadas).

35 DUCCINI, Lucia-na; RABELO, Miriam C. M. As religiões afro--brasileiras no Censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 219.

36 Ibidem, p. 220.

37 PISSOLATO, Elizabeth. “Tradições indígenas” nos censos brasileiros: questões em torno do reconhe-cimento indígena e da relação entre indígena e religião. In: TEIXEI-RA, Faustino; MENE-ZES, Renata. Religiões em movimento, p. 240.

38 Ibidem, p. 242.

39 IBGE. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. IBGE: 2012, p. 92. Há que sublinhar também os dados relativos à declaração de múltipla religiosidade no Censo de 2010, envolvendo 15.379 pessoas, ou seja, 0,01%. Já os dados relacionados às religiões não determinadas ou mal definidas envolvem 628.219 pessoas, ou seja, 0,33%.

40 USARSKI, Frank. As “religiões orien-tais” segundo o censo nacional de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 253-265.

41 Ibidem, p. 253.

42 De forma porme-norizada: budismo (243.966 – 0,13%), hinduísmo (5.675 – 0,003%), igreja messiâ-nica mundial (103.716 – 0,05%), outras novas religiões mundiais (52.235 – 0,03%) e ou-tras religiões orientais (9.675 – 0,005%).

43 Com respeito ao Censo de 2000, hou-ve um acréscimo de 29.093 adeptos.

44 ROCHA PINTO, Paulo Gabriel Hilu da. Islã em números: os muçulmanos no Censo Demográfico de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 267-282.

45 Conversões que tiveram um extraordi-nário crescimento após 2001, em sintonia com a maior visibilidade alcançada pelo islã na sociedade brasileira, em razão de diversos fatores, entre os quais a novela O Clone. E isso pode ser visto, em diferentes proporções, sobretudo nas comuni-dades muçulmanas do Sudeste. Cf. ROCHA PINTO, Paulo Gabriel Hilu da. Islã: religião e civilização: uma abor-dagem antropológica. Aparecida: Santuário, 2010. p. 195-219.

46 O que representa 0,06% da população geral.

47 GRINN, Monica; GHERMAN, Michel. Judaísmo e o Censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em

Page 53: Convergência483 - CRB Nacionalcrbnacional.org.br/wp-content/uploads/2017/12/... · a começar de sua fase embrionária, que durou mais de dez anos (de 1955 a 1968), e das duas que

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O campo religioso brasileiro no Censo de 2010

Amaral.48 A autora mostra com pertinência a tendência hoje em curso do aumento de disponibilidade dos indivíduos para a “experimentação religiosa, para além de seus limites institucionais”. Como parte dessa cultura religiosa errante, inserem-se aqueles que emigraram das religiões institucio-nais, aqueles de religiosidade não determinada ou núcleos daqueles que foram classificados entre os sem religião. Na visão de Leila Amaral, o número reduzido de declarações nesse campo tem também a ver com o fato de que as pessoas que se inserem no circuito neoesotérico não se definem ou se reconhecem nessa rubrica. Ou seja, a classificação esco-lhida pelo IBGE para situar esse “circuito” religioso não dá conta de captar com precisão o fenômeno desses “buscado-res da a”. Em tentativa de explicação, a autora arrisca-se a dizer que os adeptos desse circuito, com base nas pesquisas acadêmicas e qualitativas, estariam “pulverizados por en-tre as diversas categorias identificadas no Censo de 2010”.49 Para além de sua inserção no campo definido das tradições esotéricas, estariam também presentes entre os espiritua-listas,50 os sem religião, e também entre aqueles situados nas tradições religiosas tradicionais, como as cristãs, e no catolicismo em particular. O traço peculiar dessa “cultura religiosa errante” é a experimentação e o trânsito. O que há nela de central “é a suspensão dos comprometimentos identitários que possam se apresentar como um obstáculo para a experimentação de sentido”.51

movimento, p. 283-294 (a citação está na p. 284).

48 AMARAL, Leila. Cultura religiosa er-rante. O que o Censo de 2010 pode nos dizer além dos dados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 295-310.

49 Ibidem, p. 303-304.

50 Houve um cresci-mento na declaração de crença espiritualista na última década: de 39.840 declarantes em 2000 para 61.739 decla-rantes em 2010, e agora representam 0,03% da população geral.

51 AMARAL, Leila. Cultura religiosa er-rante. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em movimento, p. 306.