conto - o vendedor de flores

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O VENDEDOR DE FLORES FLORENZZO VITRÚVIO Será que as flores amam? Sentem muita falta daquelas que são arrancadas de seus ramos? Não sei. Talvez nunca descubra. Nas últimas semanas essas perguntas martelaram constantemente meu pensar. Todas as manhãs, enquanto rego as poucas que aguentaram os dias de sede do meu jardim, faço as perguntas. Estranho, nenhuma, nenhuma sequer me responde. Apenas sei que serviram, servem e servirão para despertar paixões tão ardentes quanto a chama. Bom, assim aconteceu entre Maria e eu. Por herança dos meus avós, trabalhei com meus pais como vendedor de flores na pequena cidade de Holambra, que há pouco passara a ser chamada assim. Vendíamos de simples buquês a grandes encomendas e todas as flores eram cultivadas com muito carinho por nós mesmos. Tirávamos dali nosso sustento, nunca nos faltou nada. Lembro perfeitamente daquele fim de tarde, aos meus 19, já estava pronto a fechar a floricultura, quando ao segurar a porta de rolo, sem fazer força para baixá-la, observo disfarçadamente um andar apressado com passos longos, um olhar apreensivo e um braço erguido com a mão espalmada, em seguida ouvi. - Espere, seu moço! Preciso de flores. Espere! Cada vez mais apressada, a moça mais graciosa que havia avistado até então. - Com todo prazer. Nessa hora, já não sabia mais o que fazer. Fiquei como estava, sem ação, estagnado, até que ela chegasse à frente da loja. Somente

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Conto - o Vendedor de Flores

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  • O VENDEDOR DE FLORES

    FLORENZZO VITRVIO

    Ser que as flores amam? Sentem muita falta daquelas que so

    arrancadas de seus ramos? No sei. Talvez nunca descubra. Nas

    ltimas semanas essas perguntas martelaram constantemente meu

    pensar. Todas as manhs, enquanto rego as poucas que aguentaram os

    dias de sede do meu jardim, fao as perguntas. Estranho, nenhuma,

    nenhuma sequer me responde. Apenas sei que serviram, servem e

    serviro para despertar paixes to ardentes quanto a chama. Bom,

    assim aconteceu entre Maria e eu.

    Por herana dos meus avs, trabalhei com meus pais como

    vendedor de flores na pequena cidade de Holambra, que h pouco

    passara a ser chamada assim. Vendamos de simples buqus a grandes

    encomendas e todas as flores eram cultivadas com muito carinho por

    ns mesmos. Tirvamos dali nosso sustento, nunca nos faltou nada.

    Lembro perfeitamente daquele fim de tarde, aos meus 19, j estava

    pronto a fechar a floricultura, quando ao segurar a porta de rolo, sem

    fazer fora para baix-la, observo disfaradamente um andar apressado

    com passos longos, um olhar apreensivo e um brao erguido com a mo

    espalmada, em seguida ouvi.

    - Espere, seu moo! Preciso de flores. Espere! Cada vez mais

    apressada, a moa mais graciosa que havia avistado at ento.

    - Com todo prazer.

    Nessa hora, j no sabia mais o que fazer. Fiquei como estava,

    sem ao, estagnado, at que ela chegasse frente da loja. Somente

  • ao v-la de perto soltei o porto, porm meus olhos continuavam fixos,

    no entendia porque motivo eles no queriam ver o resto do mundo.

    - Obrigada por esperar, se no levo esse buqu meu pai me mata.

    - Com toda certeza seria uma desgraa... Deixo escapar pelo

    canto da boca.

    - O qu?

    - Faa dois buqus e um ser de graa!

    Foi o melhor que consegui inventar. Estava totalmente entorpecido

    pela forma com a qual o seu olhar indeciso se perdia por entre as flores.

    Embora eu tenha percebido um singelo sorriso dela na hora que fiz a

    promoo, no sabia ao certo se ouvira o que falei. Na dvida, tentei

    mudar o rumo da conversa.

    - Ento, posso ajudar?

    - Sou pssima para esses assuntos. So tantas. O que me indica?

    - Para que servir o buqu?

    - Meus pais completam 20 anos casados.

    Sugeri, ento, que fizssemos um para o seus pais, partindo do

    clich, com 20 rosas vermelhas, represando cada ano de amor vivido.

    Ela simplesmente adorou a ideia e disse, ainda, que iria mandar o pai

    dela usar isso na hora da entrega. Continuava apressada, pagou-me e

    j estava saindo, quando a chamei.

    - Se esqueceu da promoo?

    - Verdade! Mas no posso chegar com outro buqu em casa.

  • - Ento, leve pelo menos um lrio branco, fao questo.

    No podia deixar que fosse embora sem que levasse uma

    lembrana minha. Aquela altura, estava eu completamente embebido

    por sua beleza, estava to atordoado que mal lembrei de perguntar o

    seu nome. Depois de algum tempo, tentando voltar ao meu normal, me

    perguntando como faria para encontr-la novamente, eu precisava a

    todo custo saber o seu nome. Por sorte, ou destino, ou simplesmente

    muito descuido dela, sua bolsa havia ficado no balco. No me cabia de

    tanta felicidade, tinha certeza de que ela voltaria. E voltou uma vez,

    duas vezes, trs vezes, quatro vezes. Comeamos a nos encontrar mais

    vezes do que possivelmente eu esperava nos meus mais otimistas

    sonhos. Tudo foi to repentino e ao mesmo tempo inacreditvel. Quando

    mal percebi, me tornara um algum dependente do meu sentimento. Eu

    acordava Maria, andava Maria, respirava Maria... vivia Maria!

    Mesmo sem aprovao do seu pai, Maria continuava me

    encontrando, at o dia que decidimos no sair mais de perto um do

    outro. Ela veio morar comigo na casa da fazenda, mesmo sabendo que

    seu pai a deserdara. Isso no impediu que vivssemos momentos

    maravilhosos. E aps quatro anos juntos, nos quais eu garanto que

    amei, amei, amei e amei, era apenas o final de mais um dia qualquer

    para mim, fechei o caixa, a loja e fui embora para casa.

    - Caetano, tenho algo para te contar. Falou Maria ainda na porta.

    - O que houve? No d pra esperar o meu banho?

    - algo srio, tem que ser agora. Sente logo no sof.

    Milhares de coisas passavam em minha cabea no caminho da

    porta ao sof. O que eu havia feito? (Me perguntei). Ela nunca me

  • recebera dessa forma. At ontem estava tudo timo. Ser que

    inventaram algo? (Tentei esquecer as hipteses). Sentei-me para ouvir.

    Ela sentou ao meu lado. Lembro que nessa hora, o silncio era

    absoluto. Eu olhava para ela e ela agia de forma recproca. Ficamos por

    algum tempo daquele jeito. Esperei que primeiro ela falasse. Desviei o

    olhar e, ento, pude ouvir duas palavras escaparem vagarosamente de

    sua boca.

    - Estou grvida.

    Tornei a olhar para ela, que imediatamente deixara um sorriso

    brotar em seu rosto. No consegui falar nada, ainda sem processar a

    informao; feliz, mas sem reao. Abracei Maria muito forte, enquanto

    sussurrava ao seu ouvido.

    - Estava aflito, pensei muitas outras coisas.

    - No gostou da notcia?

    - Na verdade, foi a melhor coisa que eu poderia ouvir.

    No demorou muito para cair a ficha, e a felicidade tomar conta de

    mim por completo. Eu que passara a vida observando e cuidando dos

    ramos para que as flores desabrochassem com todas as suas cores;

    cores, que reluziam, encantavam e que transformavam nossas vistas.

    Agora era minha vez; no caso, nossa. Ns seramos responsveis pelo

    florescer de um lindo broto.

    Depois da notcia a ansiedade me consumira; as semanas

    pareciam meses, meses anos. Embora fizssemos tudo com calma e no

    tempo hbil, contava as horas para o nono ms chegar. Mas j na

    dcima sexta semana, acompanhei Maria at Campinas para mais um

    exame de rotina; e quem diria, que um monitor, em preto e branco,

  • pouco embaado, me traria uma tranquilidade, pelo menos

    momentnea. O mdico olhava para o monitor e descrevia com clareza

    o que estava vendo, nos mostrou o perfil, os braos, as pernas, os ps;

    alm do crebro e o corao, que por sinal ainda o ouvimos bater

    acelerado. Segurava-me para no perguntar ainda se j se sabia qual o

    sexo, at o doutor encerrar com essa pergunta:

    - J escolheram o nome da menina?

    Naquela hora, lembrei-me de uma conversa que tive com Maria

    uma semana antes; estvamos a escolher o nome e chegamos

    concluso de que se fosse menino colocaramos o nome do pai dela,

    que aos poucos tinha aceitado o fato de estarmos juntos; porm se

    fosse menina daramos um nome que remetesse ao de uma flor, no

    entanto no havamos definido qual seria. Lembrei-me de como a

    conheci e respondi ao mdico.

    - Lis!

    Na volta, Maria me questionou sobre a escolha, porm acabara

    concordando comigo que aquele era o melhor nome, depois de ouvir

    sobre os significados do nome de um modo geral e em especial que

    sentido teria para gente.

    Meses foram passando, Maria mudando rapidamente; seu rosto

    estava inchado, seus braos e pernas tambm; a impresso que tive

    que ela ganhara 1 kg a cada semana, mas para mim tudo parecera

    normal. Lembro de que ela me queixava de dores na cabea e algumas

    nuseas, mas o acompanhamento mdico vinha sendo feito.

    Era inverno, tinha ficado at mais tarde na loja para terminar uma

    encomenda que precisaria estar organizada para partir naquela mesma

  • noite; um dia que ser difcil de apagar, tenho lembranas que no me

    deixaro. Chovia enquanto voltava apressado para casa, Maria estava

    prximo do seu oitavo ms de gestao e precisara ainda mais de mim.

    20 de agosto de 2006. Como esquecer da noite mais escura que

    vivi at ento. Ao chegar em casa, por volta das 8:00 da noite, avisara

    que chegaria atrasado, porm achei algo estranho, Maria no me

    esperava na sala como de costume. Fui ao quarto, no a encontrei; fui,

    ento, ao quarto de Lis, que j estava pronto a sua espera e tambm

    no estava. Um cheiro de queimado vindo da cozinha, corri e apaguei a

    boca do fogo que j havia evaporado toda gua da sopa.

    Extremamente preocupado, gritei por Maria, enquanto corria para rea

    de servio, mas ningum respondeu; at encontr-la desmaiada. No

    pensei duas vezes, apesar da situao a coloquei em meus braos,

    levei-a at o carro e, no desespero, fui para o hospital mais prximo, que

    no parecia to prximo assim.

    Maria continuava desacordada e eu muito preocupado. Chamava

    por ela, mas no me respondia; isso acabava comigo. Lembro que

    conversvamos uma semana que antes que seria melhor para ela ficar

    na casa de seus pais. Sabia que era para t-la deixado l. Mas no

    adiantava nada pensar nisso, tinha de chegar logo ao Hospital.

    Minha viso no era das melhores, chovia forte. Minha conscincia

    falava para eu ir devagar, o tempo passava. Minha emoo, a flor da

    pele, fez com que meu p colasse no acelerador. Um cruzamento de

    vias, pista molhada, sinal verde para mim, um claro minha direita, um

    barulho... depois disso s alguns resqucios dessa trgica memria. Vejo

    luzes das ambulncias, sirenes, um grito ao fundo acompanhado de

    lgrimas ainda atormenta meus sonhos.

  • - Valei-me, Deus! Valei-me!

    Torno a conscincia no Leito 08, poucos familiares e flores

    esperavam pelo meu despertar. Mesmo assim, fiquei sem entender o

    porqu de tanta tristeza. Meu pai ficou encarregado de me dar a notcia.

    Veio at mim aos prantos.

    - Graas a Deus! Os mdicos me disseram que est tudo bem

    contigo, mas voc precisa ser forte para o que irei te contar...

    Ele no precisou terminar. Nenhum dos meus ferimentos doa

    mais do que o aperto no peito que me rasgava por dentro, desejei

    morrer naquela hora. Depois de alguns nervosos minutos, remdios

    fizeram o papel de me tirar choque. Somente entorpecido eu no me

    culparia tanto. Os mdicos falaram que fizeram o possvel, mas Maria

    perdera muito sangue no acidente por se encontrar com presso arterial

    elevada, no foi possvel controlar a hemorragia. Lis tambm no

    resistiu. A pancada foi realmente dolorosa, deixara cicatrizes profundas

    na minha alma.

    Flores que eu tanto cuidei, que tanto trazem felicidades aos casais,

    que exalam um perfume puro, serviram para atenuar a dor; embora

    numa beleza jaz, preenchiam friamente a madeira. No conseguia ver

    de perto, e no ltimo momento, com um beijo gelado me despedi de

    Maria, ao tempo que via meu pequeno broto ser enterrado.

    Foram anos difceis esses ltimos. As flores do meu jardim

    morreram, em todos os sentidos. Quase impossvel retomar a vida.

    Cada canto da casa, cada data que comemoramos juntos, os cheiros...

    as flores. A nica certeza que me restou que jamais outra flor no

    seria de longe o que Maria foi para mim; nenhuma Margarida iria me

    fazer apagar aquele sorriso.

  • Hoje, 20 de agosto, depois da minha conversa matinal com meu

    jardim, mantive a tradio: fui a mais um triste encontro com Maria.

    Relembrar o que passou, contar como est a vida, rezar por suas almas

    na esperana de que um dia as encontrarei. Como adoraria encontr-las

    novamente, poder ver minha bela Lis crescer. J estava de sada

    quando notei dois lindos lrios brancos que se espremiam prximo s

    lpides. Ficava me perguntando como nascera ali. Trouxe-os comigo,

    entendi como um presente na forma de perdo; uma flor de Maria e uma

    flor de Lis.