continuum 25 - quem procura acha - abr/mai 2010

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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias ITAÚ CULTURAL 25 REVISTA Quem procura acha O curador britânico Guy Brett reflete sobre a produção contemporânea e o legado de Hélio Oiticica. E mais: Crônica de Eliane Brum mostra uma vida construída com fragmentos de histórias alheias. Em conto inédito, Daniel Galera traz diferentes signi- ficados para uma foto. Striptease também é arte? Nesta edição, a Continuum fala sobre a arte “escondida” no dia a dia.

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Nas ruas e ladeiras, dentro das casas, no metrô, em um gesto. A arte está em todo lugar, basta apropriar-se dela, todos os dias. Pensando nisso, a Continuum Itaú Cultural aborda as diversas formas da arte como elemento perene em nossa vida. A edição se inicia com uma reportagem que mostra que não existe arte sem a participação do espectador. Esse debate também está na entrevista com o curador britânico Guy Brett, um dos responsáveis pela projeção da produção contemporânea brasileira na Europa. Na Crônica, a jornalista Eliane Brum conta de que forma histórias de vida constituem o motor de sua existência. Outro destaque é a intervenção realizada pelos cenógrafos Kiko Canepa e Valdy Lopes Jn. e pela artista visual Edith Derdyk em trechos de São Paulo, Salvador e Belém, por meio de desenhos e da manipulação de imagens.

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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias

ITAÚ CULTURAL 25REVISTA

Quem procura acha

O curador britânico Guy Brett reflete sobre a produção contemporânea e o legado de Hélio Oiticica.

E mais:

Crônica de Eliane Brum mostra uma vida construída com fragmentos de histórias alheias.

Em conto inédito, Daniel Galera traz diferentes signi-ficados para uma foto.

Striptease também é arte?

Nesta edição, a Continuum fala sobre a arte “escondida” no dia a dia.

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Arte é participaçãoNas ruas e ladeiras, nas platibandas, dentro das casas, no metrô, em um gesto. A arte está em todo lugar, basta apropriar-se dela, todos os dias. A ideia, aparentemente simples, foi centro da reflexão e de obras de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark. “O museu é o mundo; é a experiência cotidiana”, escreveu Oiticica em 1966. Pensando nisso, a Continuum Itaú Cultural aborda as diversas formas da arte como elemento perene em nossa vida – ela está em todos os lugares, a todo o tempo, apenas à espera de um olhar atento que a faça despertar.

Com o título Quem procura acha, a edição se inicia com uma reportagem que esclarece não existir arte sem o olhar do outro, a participação de um espectador. O debate de que toda arte é participativa também está presente na entrevista com o curador britânico Guy Brett, um dos responsáveis pela projeção da produção contemporânea brasileira na Europa.

Ter os ouvidos atentos às narrativas simples, registrá-las e fazer delas pequenas peças literárias é o trabalho da jornalista gaúcha Eliane Brum, que, na Crônica, conta de que forma histórias de vida constituem, também, o motor de sua existência. A fotorreportagem traz a investigação de três fotógrafos brasi-leiros acerca de detalhes corriqueiros de casas que remetem a estilos da arte, a exemplo do barroco, do rococó e até mesmo do contemporâneo.

A cidade imaginada como um imenso espaço expositivo, lugar em que é possível a um curador rearranjar vo-lumes ou alterar cores da paisagem urbana. Esse foi o desafio proposto aos cenógrafos Kiko Canepa e Valdy Lopes Jn. e à artista visual Edith Derdyk. Eles reinventaram, respectivamente, trechos de São Paulo, Salvador

e Belém, por meio de desenhos e da manipulação de imagens.

E confirmando a tese de que a arte está em todos os lugares a Continuum comemora a grande participação dos leitores na seção Área Livre. Ao todo, foram recebidos 64 trabalhos, entre de-

senhos, fotografias, charges, textos e poemas visuais. Parte deles está na edição impressa, e o conjunto completo você vê no site da revista. É uma prova de que o exercício

de descondicionar a forma de viver o cotidiano, enxergando a arte que existe em todos os cantos, é algo não só prazeroso como tam-

bém pode trazer bons resultados. Experimente você também!

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Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André Seiti, Thiago Rosenberg Produção editorial Caio Camargo Revisão Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim, Casa de Marimbondo, Daniel Galera, Daniel Marenco, Diogo Sponchiato, Edith Derdyk, Eliane Brum, Henrique Manreza, Ivan Pires, Jean-Frédéric Pluvinage, Kiko Canepa, Manuela Eichner, Marcelo Rampazzo, Marcio Banfi, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Paula Desgualdo, Phamela Dadamo, Tatiana Diniz, Theo Firmo, Valdy Lopes Jn., Valéria Simões, Vânia Medeiros, Wilson Inacio Agradecimento Antônio Macena Valentim, Carla Guagliardi, Cecília do Val, Flávio Teodoro Marques, Francisco das Chagas dos Santos, Gabinete de Arte Raquel Arnauld, Luca Bueno, Olivia Brett e Orides de Moraes

capa ilustração: Liane Tiemi Iwahashi | foto: André Seiti

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

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Entrevista

30. Interseção infinita

O curador britânico Guy Brett fala sobre como a arte brasileira é vista – e apreciada – no exterior, e afirma: “Arte é vida mediada pelo artista”.

Reportagem

6. A vida como obra de arteO legado de Hélio Oiticica. Saiba por que e como cada canto do mundo pode se transformar em um museu.

12. Um flerte de longa dataDe Adão e Eva a Arthur Bispo do Rosário, passando por Coco Chanel e Leonilson: como a arte esteve e está presente na moda.

22. O remédio está nas tintas...Quando a música, a literatura, a pintura, a fotografia e outros meios de expressão se aliam à medicina para proporcionar bem-estar.

42. Ninguém veio para cá por outro motivo, além de nósUm repórter e uma coreógrafa visitam uma casa no-turna em busca da resposta para a seguinte questão: striptease também é arte?

58. Casa em obrasLar, doce lar: os artistas que fazem de suas residências espaços expositivos, trazendo para o cotidiano um quê de arte.

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Intervenção

16. A cidade em exposiçãoA convite da Continuum, Edith Derdyk, Kiko Canepa e Valdy Lopes Jn. elaboraram projetos para recriar o espaço urbano de três grandes cidades brasileiras.

Crônica

26. “Minha vida dá um romance”O ato de ouvir histórias alheias atentamente pode transformar nossa própria história.

Fotorreportagem

36. Onde vive a arteUma sala com móveis que lembram a arquitetura mo-derna, um quintal com o desenho das calçadas de São Paulo, paredes de celas presidiárias que parecem pinturas. Imagens revelam os segredos guardados nos interiores.

Balaio

56. A arte de cada diaAs dicas de livros, filmes e músicas da Continuum.

Ficção

50. Cavalo amarrado a bicicletaUma praia, um enquadramento, uma fotografia e uma história. Em conto inédito, o escritor Daniel Galera narra um acontecimento banal, com diferentes significados.

Espaço do Leitor

Deadline

46. A arte narrativa na vida digitalO estudante de jornalismo Jean-Frédéric Pluvinage escreve sobre como os games on-line de RPG mudaram o jeito de contar e viver histórias.

62. ConvocaçãoSaiba como ser um repórter da revista e fique por dentro do tema da próxima edição. Você pode ainda mandar cartas ou e-mails com sugestões, críticas e, é claro, elogios.

63. Área LivreOs trabalhos artísticos de leitores que buscaram – e encontraram – a arte escondida no dia a dia.

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reportagem

Ao lado, Hélio Oiticica com Bólide B33 Caixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo, 1965/1966, de sua autoria | foto: Cláudio Oiticica

A vida como obra de arteNão é preciso estar em um museu para contemplar uma obra. Ao seu redor há um mundo feito de arte, que só aparece a quem participa dele.

Por Mariana Sgarioni

Existe uma célebre frase, atribuída ao líder indiano Mahatma Gandhi, que diz algo como: “A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte”. Essa ideia é discutida não apenas por quem pensa o comporta-mento humano, mas também por artistas e por quem reflete o papel da arte no nosso cotidiano. Não se trata de questionar apenas o que é a arte e sim onde ela está e de que maneira diz respeito a nós, espectadores.

O artista brasileiro Hélio Oiticica foi um dos principais responsáveis por tirar essa discussão do meio aca-dêmico e trazê-la para o grande público. No início da década de 1960, ele publicou o texto “O Museu É o Mundo”, no qual questionava o lugar da arte. Até então se falava apenas nas quatro paredes de um museu. Para Hélio, não era preciso entrar em um para vê-la. Ela estaria no dia a dia, nas ruas, nas casas, nas atitudes, no mundo. “Pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas. Isto seria um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de exposição – ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo; é a experiência cotidiana”, escreveu Oiticica em 1966. Curiosamente, a curadora Lisette Lagnado lembra que, ao mesmo tempo que o brasileiro falava dessa experiência aqui, nos Estados Unidos outro autor dizia exatamente o contrário: o mundo é um museu, defendendo o caráter estático da arte.

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E o que isso quer dizer? Para Oiticica, tudo ao nosso redor poderia ser uma obra de arte. Parece meio estranho pensar isso em relação a um lápis ou um chaveiro jogado na mesa, mas a ideia está longe de ser tão simplista. “Para o artista, o dia a dia de alguém pode ser uma obra de arte. É só descondicionar seus hábitos, como beber um copo de água de uma maneira diferente”, observa Paula Braga, crítica de arte e autora do livro Fios Soltos: A Arte de Hélio Oiticica (Perspectiva, 2008).

Oiticica mostrava que as coisas estão ali, no mundo, prontas para ser experimentadas e se tornar arte. Com a série de trabalhos chamada Bólides (a partir de 1963), ele deixou essa marca bem clara. Trata-se de recipientes simples (caixas, sacos, latas, bacias) com materiais elementares e manipuláveis que induzem à experimentação. O Bólide Lata-Fogo, por exemplo, mostra que a lata pegando fogo não precisa estar dentro de um museu para se tornar arte. Ela está no mundo, na vida. E é arte porque toca, chama atenção.

Nós no papel de artistas

Ao desenrolar o conceito de que o museu está por toda parte, outra noção veio à tona: a de que o público não seria apenas um espectador que vê passivamente a obra, e que a arte só se concretiza quando existe integração.

Segundo o próprio Oiticica, “o participador lhe empresta os significados correspondentes – algo é previsto pelo

artista, mas as significações emprestadas são possibilida-des suscitadas pela obra não previstas, incluindo a não participação nas suas inúmeras possibilidades também”. Ou seja, o artista nunca sabe ao certo qual resultado a obra terá, tudo vai depender de quem participa dela.

De certa forma, esse conceito se aproxima da pedagogia proposta por Paulo Freire, que criticava a passividade do aluno perante o professor, o qual seria o detentor do conhecimento. Freire acreditava que o professor deveria propor seu conhecimento aos estudantes, assim como Oiticica propunha sua obra ao público. O resultado final aparecia quando ocorria a chamada integração entre as duas partes.

Integrar, no caso da arte, significa usar todos os sentidos e não apenas a visão – assim, os trabalhos de Oiticica ultrapassam a mera contemplação das obras ao misturar a visão ao olfato, ao tato, à audição e ao paladar. Nesse ponto, uma referência importante foi o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, que afirmava que nossa percep-ção do mundo se dá por meio da integração dos cinco sentidos e não de cada um separadamente. Oiticica ampliou a ideia: não existe a audição sozinha, nem o tato sozinho e assim por diante. Da mesma maneira,

Integrar, no caso da arte, significa usar todos os sentidos e não apenas a visão – assim, os trabalhos de Oiticica ul-trapassam a mera contemplação das obras ao misturar a visão ao olfato, ao tato, à audição e ao paladar.

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não exis-te a arte sozinha, nem a política, nem a sociologia. Tudo está misturado. É como se perguntava o sociólogo francês Roland Barthes: “A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação?”

“Com os Núcleos, de 1960-1963, espaços definidos por planos ortogonais dependurados do teto por fios, Oiticica inaugurou a construção de um espaço de cor que podia ser penetrado pelo espectador. Daí o termo penetráveis, que o artista usaria até o final de sua carreira. Esses ambientes exigem mais do que um espectador: a obra só faz sentido quando experimen-tada, habitada”, diz Paula Braga.

Quem experimenta e quem habita? Ora, o corpo. Oiticica passou a ter um contato diferente com o próprio corpo ao começar a frequentar o Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. Teve aulas de dança e tornou-se passista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Descobriu que seu corpo era muito mais do que um mero receptor de estímulos sensoriais, ele era parte do ambiente. Foi daí que nasceu sua mais famosa série de obras, os Parangolés, feitos a partir de 1964, os quais exigem um corpo que dança e se movimenta.

Diversos artistas têm bebido dessas referências para compor suas obras. Marcelo Cidade, por exemplo, usou na intervenção Eu-Horizonte seu próprio corpo como matéria-prima para reivindicar um horizonte na capital paulista. Até que ponto um horizonte é importante no contexto urbano? Em uma performance, o artista

Aonde chegariam os conceitos “oiticiquianos” hoje? De que maneira eles conduziriam a relação da arte no mundo, da participação do indivíduo, da coautoria? Oiticica deixou essas questões em aberto. Uma obra em aberto, prestes a ser construída por algum de nós.

aparece nu, suspenso, em uma movimentada esquina da zona leste de São Paulo. Apesar de admitir a refe-rência dos anos 1960, Marcelo acredita que se Oiticica estivesse vivo a discussão seria outra. “Naquela época, tratava-se de um mundo polarizado, entre ideologias de direita e esquerda. Atualmente, discutimos como podemos viver eticamente”, afirma.

Aonde então chegariam os conceitos “oiticiquianos” hoje? De que maneira eles conduziriam a relação da arte no mundo, da participação do indivíduo, da coautoria? Será que qualquer um poderia vir a ser um artista do seu próprio dia? Não se sabe ao certo. Oiticica deixou essas questões em aberto. “Hélio imaginava a arte como um elástico, que sempre pode ser esticado para um lado que ainda não foi”, explica Paula Braga. Talvez esse lado seja justamente uma obra em aberto, como ele deixou, prestes a ser construída por algum de nós. Ve

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reportagem

Um flerte de longa dataComo a arte está presente na criação de alta-costura e como a moda é referência em vários projetos artísticos.

Por Micheliny Verunschk | Ilustração Marcio Banfi

E Deus criou o homem e a mulher, que comeram do fruto proibido e já foram inventando moda e arte. Afinal, nada mais performático do que aquela folha de parreira com que Adão e Eva se deram a desfilar nas passarelas do paraíso. Brincadeiras à parte, moda e arte vêm traçando caminhos paralelos praticamente desde que o mundo é mundo. Das túnicas da nobreza egípcia aos drapeados da corte espanhola retratada por Velásquez, passando por Coco Chanel e desaguando em nomes como Hélio Oiticica e Arthur Bispo do Rosário, para ficar apenas nos brasileiros, as relações e os diálogos entre moda e arte vêm há anos rendendo panos para mangas e resultados inimagináveis.

Conforme explica a curadora e especialista em arte moderna e contemporânea Cacilda Teixeira da Costa, no seu livro Roupa de Artista – O Vestuário na Obra de Arte (Imprensa Oficial, 2008), a moda, como a entendemos hoje, surgiu em meados do século XIV, quando reis e nobres da Europa medieval, irritados por suas roupas serem copiadas pela burguesia em ascensão, passaram a usar modelos diferenciados que logo eram descartados após serem novamente imitados. Dentro desse ciclo infinito de repetições, o ato de vestir-se vem ganhando uma importância crescente, avalizada, embora não exclusivamente, pelas artes visuais.

Das telas às ruas

Segundo o jornalista especializado em moda Ricardo Oliveros, a moda existe para estar na vida: “É nas ruas, não nas passarelas, nem nas revistas, que a moda completa seu ciclo e é para estar lá que ela existe. Porém, ela vem ganhando outros significados desde que deixou de ser sinônimo de roupas e passou a ser um objeto, no sentido filosófico, que está sendo estudado por diferentes saberes. Eu penso a moda como um dos mais importantes e confiáveis documentos para entender o espírito de cada tempo”, afirma.

Um trabalho que ilustra perfeitamente a posição de Oliveros é a tela Mulheres no Jardim, do pintor impres-sionista francês Claude Monet. As saias das personagens-título, avolumadas pela crinolina – armação feita de algodão e crina de cavalo trançada –, representam bem a ascensão do estilo vitoriano e do romantismo no século XIX, seja pela sobriedade dos trajes, seja pela aura de distanciamento da figura feminina. Ou como observa Alison Lurie, no seu livro A Linguagem das Roupas (Rocco, 1997), “a saia rodada parecia dizer que os homens não podiam se aproximar, nem para beijar a mão da mulher. Mas é claro que esse distanciamento era uma grande enganação. A saia rodada era um instrumento de sedução”. E é esse clima de desejo e in-terdição, malícia e suposta inocência que o pintor acaba por capturar para dentro do seu trabalho.

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De outro lado, e puxando para a contemporaneidade, Hélio Oiticica levou ao extremo da vitalidade o diálogo arte-moda-rua ao criar os Parangolés, obras de arte vestíveis que só ganham sentido ao se apoderar do movimento dos corpos que as levam. Bandeiras de vestir, pinturas de dançar, os Parangolés resumem o que diz Cacilda ao afirmar que “a moda em grande parte se alimenta da arte e, em alguns momentos, essa relação pode se reverter, acontecendo de ambas transitarem por opções semelhantes e de grande cumplicidade”.

Contemporâneo de Oiticica, Arthur Bispo do Rosário, interno da Colônia Juliano Moreira, instituição para doentes mentais localizada no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, confeccionou, entre várias obras, mantos bordados com pingentes, palavras e cordões, entre outros materiais e expressões, de grande beleza plás-tica e que dialogam com os mantos dos caboclos de lança do maracatu rural pernambucano. Essas vestes, concebidas pelo artista como roupas de se apresentar a Deus, são bons exemplos do trânsito e intimidade entre arte, vida e o sagrado.

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A relação entre a moda, a arte e o transcendente está presente também na pungente obra do artista visual cearense Leonilson, morto em 1993, que fez da biografia o principal motivo de sua arte. Sua última obra, uma instalação na Capela do Morumbi, em São Paulo, na qual cadeiras vestidas com camisas do próprio artista com mangas torna-das mais compridas que o usual, alude não apenas à fragilidade da vida e à ausência de materialidade do corpo, mas também à efemeridade de tudo o que faz o mundo. Inclusive a moda, podemos acrescentar.

Moda e literatura

Nem só de artes visuais vive o namoro entre arte e moda. A literatura busca reproduzir em palavras os brilhos, as texturas, as sedas e os cetins do vestuário de um sem-número de personagens. É o que afirma a professora e especialista em moda e literatura Genetti Tavares: “A moda como demarcador de um tempo, de uma época, como forma de leitura social e cultural de um indivíduo é amplamente explorada na literatura. A construção do personagem ficcional se apoia muitas vezes nesse traço da moda”.

Genetti, que pesquisou as formas de apresentação da moda na literatura de Machado de Assis, explica: “O leitor de suas crônicas vai se deparar com uma infinidade de referências ao vestuário e à moda sem-pre parecendo acaso, mas comumente associando essas referências às características da época, a acon-tecimentos inesperados. Ele [Machado] também era muito dedicado às leitoras e sabia que as mulheres, mais que os homens, pelo menos no século XIX, gostavam da moda. Isso sem falar nos dândis. A obra de Machado retrata as cores do Brasil de sua época, e a moda também é para ele estratégia narrativa”. A professora cita Dom Casmurro (1899), em que a indumentária é usada para delinear os personagens e torná-los mais reais, enigmáticos e ambíguos. “[O personagem] José Dias, por exemplo, é apresentado pelo narrador também por meio do seu vestuário, reafirmando ali seus trejeitos, defeitos e qualidades.”

A moda e o ato de representar andam de mãos dadas. Para muitas pessoas, vestir-se é encarnar um personagem, é transitar entre o real e o fantástico. O estilista francês Christian Lacroix, por exemplo, radicaliza essa ideia seja em suas coleções, seja na paixão que o move em direção às coxias do teatro. Foi criando figurinos para óperas, balés e peças como Otelo, Carmem e Fedra que Lacroix despontou para o mundo da moda. Responsável por reeditar elementos do barroco na alta-costura,

A moda vai ao teatroFigurinos de peças são uma prova de que a moda certamente é arte.

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Direito à beleza, à poesia

A moda sofre influências que vão do gosto pessoal às necessidades de mercado e, talvez por isso, nem sempre seja encarada com seriedade. Citando o filósofo norueguês Lars Svendsen, Oliveros credita esse fato à ausência de uma crítica especializada. Escrever sobre moda, segundo Svendsen, ainda é fazer marketing de uma ou outra marca, de um ou outro estilista e é isso que, possivelmente, afasta a moda, mesmo a alta-costura, da aura de objeto de arte.

Assim como a arte, a moda é linguagem, expressão que, muito embora seja de caráter coletivo e de larga escala, acena com promessas de individualidade. E é desse modo que a publicitária e blogueira Cris Guerra define sua relação com o tema. Deixando-se fotografar diariamente com as roupas com que vai ao trabalho, no blog Hoje Vou Assim (http://hojevouassim.blogspot.com/), Cris se tornou uma referência no assunto: “A

relação que temos com a moda é diferente da relação que temos com a arte. A moda é mais democrática. Nem todo mundo faz arte, mas todo mundo faz moda, de uma forma ou de outra. Até quem diz não estar nem aí para a moda é um fazedor dela. Quando abro meu armário e não sei o que vestir ou até mesmo quando fecho os olhos e escolho qualquer peça estou fazendo moda, porque não escolher também é uma escolha. Se eu sair nua, estou fazendo moda e esse talvez seja o jeito mais fácil de parecer que estou fazendo arte!”.

Cris define esse trânsito entre arte e moda pela poé-tica: “Moda é acima de tudo um jeito bonito de viver. É fantasia no meio do cotidiano. É transcender a uti-lidade da roupa e colocar poesia nela. A moda acaba tornando a arte próxima de mais pessoas. Indo além: a moda é uma extensão de cada um, ela reforça a nossa identidade. A moda, como a arte, torna a vida mais suportável”, conclui.

“Nem todo mundo faz arte, mas todo mundo faz moda. Se eu sair nua, estou fazendo moda e esse talvez seja o jeito mais fácil de parecer que estou fazendo arte.” (Cris Guerra)

quando criança o estilista costumava desenhar os figurinos das peças a que assistia.

Essa característica dramática da roupa em cena é possível encontrar também fora do palco. No Brasil, Experiência N. 3, performance realizada por Flávio de Carvalho em 1956, na qual o ar-tista desfilou pelas ruas de São Paulo com um saiote verde, uma blusa de mangas bufantes com aberturas nas axilas e uma meia arrastão, não apenas expôs a teatralização das calçadas onde todos os dias desfilam os mais inusitados estilos, como refletiu sobre a influência da moda na arte e, consequentemente, na vida.

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Poemas urbanosNas intervenções a seguir, a região central de três capitais brasileiras é pensada como a sala de um museu ao dispor de um curador com o poder de rearranjar a posição de edifícios, praças, lugares históricos e a própria geografia como se fossem obras de arte que integrassem uma exposição.

intervenção

SãO PAULO Curadoria, fotos, desenho e texto Kiko Canepa – cenógrafo

O centro de São Paulo abriga constru-ções interessantes, mas muitas delas localizadas em meio a uma confusão de volumes, de maneira que sua apre-ciação se torna difícil. Nesta curadoria, trabalhei a harmonização de edifícios e as estruturas com o seu entorno.

O Edifício Martinelli, na Rua Líbero Ba-daró, é obra que viu crescer à sua volta todo tipo de construção, encontrando-se hoje espremido entre uma rua e uma curta ladeira. Falta-lhe a perspectiva que tinha outrora. Alguns prédios poderiam ser demolidos para dar lugar ao mais antigo arranha-céu de São Paulo. Dessa forma, o edifício voltaria a ser visível tanto do Viaduto do Chá quanto do Viaduto Santa Ifigênia, e ao longo de todo o Vale do Anhangabaú.

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A prefeitura funciona em um edifício com um visual bonito, porém com um desenvolvimento vertical truncado, como se lhe faltasse algo. A solução para tanto estava ali por perto, o belo edifício do desativado Othon Hotel, na esquina da Rua Líbero Badaró com a Praça do Patriarca. Aproveitando certa coerência com o estilo das duas obras, resolvi juntá-las. O resultado dá à prefeitura a imponência que lhe convém e devolve ao hotel uma função de destaque. O famoso jardim no topo do edifício foi mantido.

Gosto muito do pórtico branco da Praça do Patriarca (foto), criado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Quando o vi pela primeira vez, no entanto, eu me perguntei o que aquela bela e imponente estrutura estava fazendo ali. Imaginei que seu desenho pedia um lugar mais elevado. Ao passar pela Biblioteca Mário de Andrade, na Rua Xavier de Toledo, percebi que o edifício poderia abrigar o pórtico em sua cobertura, de onde se desfruta a vista da copa das árvores da Praça Dom José Gaspar.

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SALVADOR Curadoria, desenhos e texto Valdy Lopes Jn. – cenógrafoFotos Valéria Simões

Escolhi a região conhecida como Cidade Baixa, onde se localizam o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a escultura de Mário Cravo, entre outros atrativos.

A ideia da curadoria é se desfazer das construções que descaracterizam os casarões históricos. Imaginei toda essa arquitetura, inclusive os pontos turísticos, pintada de branco: busca pela neutralidade do olhar, para destacar sobretudo minha segunda intervenção sobre a topografia da colina que articula a Cidade Baixa e a Alta.

Ao longo de sua história, várias das ladeiras de Salvador foram territórios de liberdade e tolerância. As ladeiras, becos e baixas constituem espaços de sociabilidade. Para reforçar a vontade de olhar para essa geografia urbana, tudo é tingido de vermelho intenso, que chama atenção para esses percursos.

Por fim, uma cidade toda branca cortada pelo vermelho pulsante da colina, de onde se enxerga o azul das águas da Baía de Todos os Santos, espelhada pelo céu de um azul constante.

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Cidade que começa pelas bordas. Encontro de rios que indicam as rotas de entradas e saídas. Os fundos das primei-ras edificações da Rua Siqueira Mendes se dirigem para o rio. E do monte mais alto de Belém se avistam as vindas de fora. Trata-se de um monte de pouca altura e, diante daquela linha horizontal que se alonga, surge uma ponte de terra que vira ponte para o mundo. E desse lugar nasce o mercado: fluxo aberto, trânsito livre, idas e vin-das de barcos. A feira do açaí inaugura a manhã. Casas, barcos, mercadorias, homens, caixas: ingredientes para uma instalação humana, efêmera e constante. Ao lado do Mercado Ver o Peso, a cada hora que passa a paisagem humana pede passagem.

BELÉM Curadoria, fotos, desenhos e texto Edith Derdyk – artista visual

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reportagem

O remédio está nas tintas......nos livros, nas canções, nos filmes. A arte se alia às ciências da saúde para resgatar o bem-estar de quem encara uma doença.

Por Diogo Sponchiato e Paula Desgualdo

Desde que o homem peregrina em busca de um sentido à vida, a arte e a ciência são usadas para minorar os males do corpo e da alma. Apesar das diferenças, esses dois campos do conhecimento caminham lado a lado desde o seu berço, a Antiguidade. E o Renascimento que revolucionou a visão artística também demarcou o surgimento da medicina moderna. Mas se mais tarde o Iluminismo ensinou que a base científica continha a solução para os tormentos do homem, a história mostrou que nem sempre esse preceito tinha validade. “Depois da Segunda Guerra Mundial, a humanidade percebeu que a ciência e a tecnologia também podiam dar margem ao horror”, contextualiza a psicoterapeuta Selma Ciornai, coordenadora do departamento de arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Por que, então, a arte não poderia ser empregada como um recurso para ajudar o ser humano a restabelecer-se física e mentalmente? Embora seu valor terapêutico atravesse séculos, foi só depois das tragédias do século 20 que o recurso artístico ganhou aval do meio médico.

Hoje, não faltam pesquisas que o apontem como um aliado no tratamento de diversos problemas de saúde. “Trata-se de uma poderosa ferramenta de humanização da medicina, que ganha cada vez mais credibilidade”, opina o médico e músico Paulo Campelo, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco. Desde 1996, Campelo lidera o projeto A Arte na Medicina Às Vezes Cura, de Vez em Quando Alivia, Mas Sempre Consola, que promove, por meio de atividades como oficinas de conto de fadas para crianças com câncer e encontros para divulgação dos dons artísticos de médicos e pacientes, a integração das duas disciplinas. A música, claro, não fica de fora. No hospital da universidade, as gestantes dão à luz ao som do seu compositor preferido e o bebê é recebido no berçário pelos acordes de Vivaldi e Mozart.

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As melodias também aceleram a recuperação de quem está internado. “Elas atuam diretamente no cérebro, estimulando a liberação de analgésicos naturais”, explica Eliseth Leão, coordenadora de musicoterapia do Hospital Samaritano, na capital paulista. Além disso, combatem o estresse, fator que desencadeia e amplifica uma série de enfermidades. Tamanho potencial tem sido explorado como coadjuvante no tratamento de males do sistema nervoso. Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo demonstraram, em um estudo recente, que a musicoterapia aprimora a qualidade de vida de portadores da doença de Parkinson, problema neurodegenerativo marcado por tremores. “A prática musical minimiza os sintomas do problema, que, de início, amedrontam seus portadores, familiares e amigos”, diz o musicista Pedro Lodovici Neto, um dos autores do trabalho. Para o especialista, que faz parte há 52 anos de um grupo de jazz, a São Paulo Dixieland Band, tocar ou ouvir uma canção são maneiras de desmistificar e encarar a doença.

A cura vem do verbo

“Além do território da emoção humana, médicos e escritores compartilham um instrumento comum: a palavra”, afirma o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar, no livro A Face Oculta – Inusitadas e Reveladoras Histórias da Medicina (Editora Artes e Ofícios, 2001). Narrar e ouvir histórias constituem preciosos recursos terapêuticos. Não por acaso, há uma lista de profissio-nais da saúde que, em algum momento da carreira, se dividiram entre o ofício e a literatura. Entre os mais famosos, figuram Guimarães Rosa e Anton Tcheckov, que também enxergavam na arte uma forma de resolver conflitos psicossociais.

Não só ler, mas produzir textos auxilia pacientes a reaver a autoestima e a esperança necessárias para se recupe-rar. Experiências realizadas nos Estados Unidos atestam que pessoas com câncer que registravam seus medos e sonhos em um diário lidavam melhor com o proble-ma e deixavam o hospital mais rápido. Essa espécie de diário-terapia, já adaptada à internet, é vista como um recurso de grande impacto. “Na tela ou no papel, os doentes se libertam de uma avalanche de sentimen-tos, trabalhando a angústia e a ansiedade durante o tratamento e ganhando qualidade de vida”, observa a psico-oncologista Luciana Holtz de Barros, presidente do Instituto Oncoguia (www.oncoguia.com.br).

Narrar e ouvir histórias constituem preciosos recursos terapêu-ticos. Não por acaso, há uma lista de profissionais da saúde que, em algum momento da carreira, se dividiram entre o ofício e a literatura.

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Tratamento por imagem

Nem todo mundo encontra nas palavras conforto para as aflições. Nesse caso, entram em cena as artes visuais. Arteterapeutas se valem de oficinas de pintura, desenho e fotografia para minimizar o estresse e a depressão que acometem os pacientes. “Eles conseguem expres-sar por meio de imagens o que não estavam aptos a verbalizar”, afirma Selma Ciornai. Até mesmo o fato de contemplar a obra recém-criada apazigua os ânimos e reinsere o indivíduo na rota do autoconhecimento. Quando as figuras ganham movimento, a imersão em um enredo mais complexo possibilita reflexões bastante apuradas sobre os desafios impostos pela realidade. É o que acontece nos encontros mensais do Cine Debate, outro projeto do Hospital Samaritano, voltado não apenas a pacientes, mas a qualquer interessado. “Não existe manifestação que provoque mais insights do que a arte”, diz a psiquiatra June Megre, que coordena a iniciativa. “Por meio do cinema, abordamos questões

da mente humana”, conta. O filme A Bela da Tarde, de Luis Buñuel, inspira discussões acerca da sexualidade. Já Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, baseia diálogos sobre esquizofrenia – transtorno caracterizado por alucinações frequentes.

A resolução dos conflitos da mente também se dá em cima de um palco. Ou em uma terapia que se apoia nas artes cênicas: o psicodrama, técnica que nasceu na década de 1920. Nesse caso, a experiência pode exigir que o indivíduo vista uma persona. “O objetivo é fazer o paciente se colocar no lugar do outro”, diz a psicóloga Jane Maciel Settembre, da Associação Brasileira de Psi-codrama e Sociodrama. Assim, é possível sobrepujar

conflitos internos que não raro atrapalham o convívio social, e até se livrar de um quadro depressivo. Seja

como protagonista, seja como espectador, a catarse proporcionada pela arte é capaz de

afastar as angústias e contribuir para manter mente e corpo sãos. E não há ciência

que prove o contrário.

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O caminho inverso

Se por um lado a arte trabalha pela ciência, os artifícios do meio médico e da biologia molecular podem inspirar criações. Imagine tubos de ensaio se transformando em esculturas, ou receptáculos onde se cultivam micróbios se tornando telas. É com base nessa filosofia de interface entre arte e ciência que a bióloga e artista plástica portuguesa Patrícia Noronha compõe suas obras. “Desconstruindo e deslocando

esses objetos do seu espaço próprio, o laboratório, eles podem ser olhados de um modo diferente”, acredita. Patrícia desenvolve hoje um trabalho batizado de biopintura. “É uma técnica que permite a utilização de células vivas como pigmentos”, conta. A imagem ao lado é resultado dessa experiência, em que células fornecem as cores para a obra. E é a mais pura expres-são do conceito de art-science. Essa interação entre os dois campos do conhecimento, aliás, não é uma novidade. Leonardo da Vinci, para ficar no exemplo mais conhecido, lançou mão de estudos de anatomia para alcançar a perfeição de seus retratados. De lá para cá, essa parceria cresceu, a ponto de se usar algo trivial em um centro de pesquisas, uma porção de células, como matéria-prima artística. “A vida pinta-se a ela própria, recriando-se e surpreendendo”, sentencia Patrícia.

Não só ler, mas produzir textos auxilia pacientes a reaver a autoestima e a esperança necessárias para se recuperar. Experiências realizadas nos Estados Unidos atestam que pessoas com câncer que registravam seus medos e sonhos em um diário lidavam melhor com o problema e deixavam o hospital mais rápido.

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“Minha vida dá um romance”Conte-me que eu escuto

Por Eliane Brum | Fotos Ivan Pires

Ele olha para a plateia – nós –, estufa o peito, faz uma pausa teatral e diz: “Minha vida dá um romance”. Concentra-se em um ponto invisível na mesa. Ou numa imperfeição nas unhas. E espera os aplausos na forma de oh! e ah!

Para muitos, essa é a hora de pedir a conta e escapar correndo da mesa do bar. Ou mudar de lugar no ôni-bus. Ou lembrar um compromisso inadiável. Ou pedir o divórcio. Ou se inscrever como cobaia no programa espacial paquistanês.

Prefiro ficar. Digo: “Então me conta”. E escuto. Não porque quero ser canonizada ou porque sou uma maso-quista que só alcança os orgasmos múltiplos propagandeados pelas revistas femininas ao ter os ouvidos torturados. Escuto porque não considero o cara chato. Acho que é um ótimo vivente. E acho fascinante saber como conta seu romance existencial.

Não existe vida. Existe vida contada. O que nos torna humanos não é o polegar opositor. Ou menos de 1% de material genético diferente dos chimpanzés. O que nos torna humanos é a capacidade de contar a vida. E é só como história contada que a vida pode fazer algum sentido.

Vivemos porque somos capazes de reeditar o “Era uma vez...” muitas e muitas vezes. O suicida é aquele que não tem mais forças para reiniciar sua história. Então, para que ainda assim a vida faça sentido, bota um ponto-final. É seu último ato criativo. Humano. A vida contada acaba aqui. E, assim, não apenas fui. Mas sou.

Com alguma honestidade, você pode admitir que bem lá no fundo – ou nem tão no fundo assim – sua vida dá um romance. Só que você disfarça. É wit rir de si mesmo. Exercer um cinismo intelectual contra o próprio autor, você. Faz bem à construção do seu personagem neste romance tão contemporâneo. Mas, secretamente, você

crônica

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se conta todos os dias. Do contrário, não teria forças para sair da cama e encarar um mundo que, não fossem os enredos inventados, seria apenas o que é: caos.

Sou uma vampira de romances alheios. Desde criança intuo que só as narrativas podem me salvar da falta de sentido que é estar condenada à morte – e saber disso. É a consciência do fim que nos leva a contar histórias, desde os bisões flechados na parede das cavernas, como uma forma desesperada de fazer o inescapavelmente efêmero, de algum modo, permanecer. Ainda que seja na lembrança de outro quando você já não está.

Faço isso. Registro as histórias de outros – e com os fragmentos de todas essas vidas contadas construo o enredo de minha própria existência. Coleciono retalhos de memória e com eles teço a corda onde me agarro para não desaparecer no abismo.

Ao anunciar que sua vida vale um romance, o cara não é mais um chato. É apenas um desesperado, como todos. Talvez mais sincero que a maioria de

nós. Escutá-lo o salva. E nos salva.

O que fazemos todos os dias, seja da forma tosca como o cara que anuncia de peito aberto que

sua vida dá um livro, seja de mil maneiras mais sofisticadas, algumas delas reco-

nhecidas como arte, é apenas isto: nos contar.

Ida e vinda

Na arte do viver, o real e a ficção são inseparáveis. Não se sabe onde termina um e começa a outra. A verdade está nessa síntese. Seria menos real a fantasia que fez nosso coração acelerar? Ou menos fantasiosa nossa aniquilação por um fato? O que é mais verdadeiro, o acontecimento ou nossa interpretação? Não há o que aconteceu, só interpretação e múltipla escolha. É mais verdade o que desejo ou o que alcanço? Como separar? A narrativa é essa busca onde ficção e real se confundem – e se alimentam. A história é movimento.

Anos atrás, entrevistei um suposto louco que cavalgava um cabo de vassoura numa exposição de cavalos e gado de raça. Perguntei a ele: “Você é louco?”. Ele me olhou como se fosse eu a louca: “Você acha que não sei que meu cavalo é um cabo de vassoura? É claro que sei”. E seguiu cavalgando seu bucéfalo pelos campos da exposição. Fiquei parada ali, estarrecida. E um pouco apavorada porque agora era eu quem enxergava crinas e um focinho onde antes havia um cabo de vassoura.

Faço isso. Registro as histórias de outros – e com os frag-mentos de todas essas vidas contadas construo o enredo de minha própria existência. Coleciono retalhos de memória e com eles teço a corda onde me agarro para não desapa-recer no abismo.

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Só existimos como indivíduos quando nossa mãe nos constitui como história contada que não é ela. Mas um outro, nós. Esse reconhecimento tem de seguir acon-tecendo em olhos outros ao longo de nossa trajetória. Não mais ou apenas a mãe que nos reconhece, mas um amor, um amigo, um parceiro de sonhos ou proje-tos. Se dependesse de nossa carência, a humanidade inteira. Quando esse olhar que reconhece nossa vida como história falha, nosso coração invisível esquece uma batida. Só a vida contada pode tornar a morte suportável. Se não é contada, a morte já é, ainda que o coração de carne bata em perfeita sincronia.

Quando cruzamos com escombros humanos pelas esquinas do mundo, a eles não falta apenas comida ou água ou teto. Até falta, mas não é essa a ausência que os reduz a farrapos. O que lhes aniquila o espírito é não se reconhecer nos nossos olhos. Não há ninguém para ouvir sua vida que dá um romance. E, assim, sem espelho em nenhuma íris, duvidam da própria existência. Transformam-se em espectros de uma vida sem vida.

Em Porto Alegre existe o Boca de Rua, jornal escrito por garotos sem-teto. Alice, a ONG que o inventou, percebeu que daqueles meninos haviam tirado mais do que qualquer materialidade. O que lhes haviam arrancado era a possibilidade de uma história. Para eles, só havia chance se pudessem reescrever sua vida, tão literalmente como era literal sua falta de tudo. Ao reinventar a existência pelo concreto das letras, com papel e caneta, era possível finalmente se inscrever no mundo. Salvar-se.

Lembro de um deles, Mercedes. O nome de rua do me-nino era a marca do caminhão que o havia atropelado. No início, Mercedes cuspia no chão do lugar onde se realizavam as reuniões do jornal. Então, começou a escrever o romance da sua vida. Resgatou seu nome para além do Mercedes ao qual sobreviveu: Luciano Felipe da Luz. Inventou então que era um filho da luz. Deu-se uma maternidade que não era abandono. E assim passou a se apresentar. Dono da própria his-tória, esse filho da luz – e também de um caminhão Mercedes – sobreviveu a mais 11 atropelamentos, um tiro na cabeça, algumas facadas e, por muito tempo, à aids. Quando morreu, guardava sua história em jornais numa caixa. Ele era. É.

Pegar a vida à unha é assumir o protagonismo de nosso romance singular, único. Quando acompanho a trajetória de tantas celebridades que naufragam em drogas e infelicidade, tenho a impressão de que sucumbem à mesma impossibilidade de reconheci-mento dos meninos e loucos de rua que acompanhei.

Pelo avesso. Possuem tudo o que nos convencem que é preciso ter para escrever um romance que

valha a pena, mas não têm o principal. A elas falta a autoria da vida, algo que sempre

procuramos e nos escapa, mas só existe nessa busca. Tanto é dito e escrito

sobre as celebridades

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que não sabem mais quem são. E, quando se veem nos olhos de tantos fãs e curiosos e paparazzi no mundo inteiro, não se reconhecem. Tão assustador quanto não encontrar um olhar que o reconheça é não se reconhecer nos olhos da multidão que olha para você, mas só reflete a si mesma.

Nossa época é a soma dos romances contados por nós. E a capacidade de nos sentir vivos depende da coragem de nos reinventar depois de cada ponto e vírgula. Começar de novo, enxergar-se de outro ângulo, criar outros sentidos para nosso estar no mundo. É pela arte na construção dessa narrativa que nos tornamos mais ou menos vivos. E não pela qualidade de nossos exames de colesterol e triglicérides e eletrocardiogramas.

Quando alguém anunciar com olhos temerosos, carentes de reconhecimento, que sua vida dá um romance, não hesite. Não tema. Diga-lhe: “É verdade, sua vida é um romance”.

Assim, quem sabe, num novo dia, depois de um ponto quase final, seu romance ficará tão bom que valerá uma vida.

Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios, 1994), A Vida que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, 2006) e O Olho da Rua (Globo, 2008).

Na arte do viver, o real e a ficção são inseparáveis. Não se sabe onde termina um e começa a outra. A verdade está nessa síntese. Seria menos real a fantasia que fez nosso coração acelerar? Ou menos fantasiosa nossa aniquilação por um fato? É mais verdade o que aconteceu ou nossa interpretação?

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entrevista

Interseção infinitaPor Tatiana Diniz

O curador britânico Guy Brett é um nome de peso na crítica internacional de arte. Um dos responsáveis pela projeção da produção contemporânea brasileira na Europa, introduziu por lá trabalhos como os de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape. Foi também um dos organizadores da exposição de Cildo Meireles, em 2008, na Tate Modern, Londres. Brett coleciona memórias de suas visitas ao Brasil, a mais antiga de meados da década de 1960, quando, aos 22 anos, veio ao país pela primeira vez entusiasmado com a audaciosa ar-quitetura de Brasília. Ao chegar, deparou-se com uma produção artística original e enérgica, que explorava e diluía as fronteiras entre arte e vida. Conta que seu olhar sobre a arte brasileira sempre foi o de um outsider, pois sua percepção se estruturou a partir de estadas curtas no Rio de Janeiro e em São Paulo; e que conhece o Brasil mais por meio de trabalhos artísticos do que viajando por aqui. Ao falar de nossa arte, prefere não se estender sobre Hélio Oiticica, alegando já ter escrito “várias vezes” sobre ele – a exemplo dos livros Oiticica in London (coautoria de Luciano Figueiredo, Tate Publishing, 2007) e Brasil Experimental (Contracapa, 2005). Nesta entrevista, contudo, Brett explica como o espírito de uma “poética da vida” despertado pelo artista abriu possibilidades de manifestações infinitas.

O senhor pode nos dar uma visão geral da sua carreira?

Escrevo sobre arte e organizo exposições desde os anos 1960. Não obtive qualificações acadêmicas além do ensino médio, e não fui educado formalmente em história da arte. Comecei a escrever a partir do jornalismo, mas a arte me cercou desde a infância. Meu pai era arquiteto, urbanista, pintor e poeta ocasional. Minha avó materna era pintora profissional de retratos. Para minha mãe a pintura se tornou uma paixão como resultado de um processo terapêutico junguiano durante um período de crise pessoal. Meus verdadeiros professores foram artistas, aprendi vendo seus trabalhos e conversando com eles sobre. Trabalhei por dez anos como crítico de arte para o Times, em Londres, durante os anos 1960 e 1970, muitas vezes surpreendendo uma instituição meio conservadora com reportagens sobre avant-garde.

Sempre amei experimentalismo em arte, novos materiais, novos conceitos, novos entendimentos sobre a vida. Mais tarde, entrei para uma revista semanal de esquerda, também em Londres, chamada City Limits, na qual editava a seção de artes até que a falta de financiamento obrigou-a a parar. Desde então tenho trabalhado basicamente como freelancer. E reuni alguns dos meus textos em livros. A maior parte do que escrevi nos últimos anos foi para catálogos e faço isso em paralelo com meu trabalho frequente como curador. Gosto de me envolver no design dos catálogos e dos livros que escrevo. Sou fascinado pela relação entre palavras e imagens, e dou a ambas igual importância.

Brett: “Minha imagem inicial do Brasil foi a de modernidade” | foto: Olivia Brett

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A arte brasileira está muito presente em seu per-curso profissional, assim como seus pensamentos dispararam várias reflexões sobre ela. Como essa ligação começou?

Fui apresentado ao Brasil pelo [artista plástico] Sergio Camargo, que conheci em seu estúdio em Paris em 1964, quando eu tinha 22 anos. Eu sabia muito pouco sobre o Brasil, embora estivesse muito empolgado com sua arquitetura moderna, que me parecia mais audaciosa do que qualquer coisa na Inglaterra. Então ouvi atento quando ele falou que Oiticica, Lygia Clark, Mira Schendel, Lygia Pape e outros artistas do Rio e de São Paulo estavam fazendo trabalhos interessantes. No ano seguinte, cobri a Bienal de Artes de São Paulo para o Times e conheci os artistas sobre os quais Camargo

falara. O trabalho deles me impressionou profundamente. Na verdade, passei mais de 40 anos pensando sobre. Eu não via aquilo como um eco nem como uma versão provinciana do que estava acontecendo na Europa, mas como um lampejo autônomo de energia e inteligência crítica (feito a partir de uma conexão transformativa e não imitativa com a arte europeia). Pareceu-me que Oiticica e Clark aliavam o sensorial ao cerebral, o corpo à mente, num trabalho de responder a uma necessidade profunda na cultura contemporânea.

O que mudou no universo das artes brasileiras desde que o senhor começou a vir ao país na década de 1960?

Na verdade, só conheço São Paulo e o Rio. Também fui a Brasília, quando a cidade estava sendo construída, o que foi muito empolgante para mim. Mas pouco viajei para o interior ou para outras cidades brasileiras. Mantive conexões bem próximas com brasileiros, com artis-tas, mas nunca pude ficar no país durante muito tempo. A última vez que estive em São Paulo foi há cerca de três anos, para uma conferência. E fui ao Rio há dois anos trabalhar para a exposição de Cildo [Meireles]. Nos anos 1960, o mundo da

arte no Brasil era bem pequeno, quase não havia galerias, e as que existiam não pretendiam durar para sempre – eram galerias de vida curta. Tudo isso era muito inte-ressante porque havia uma atividade artística tremenda, mas pouca infraestrutura. Todo mundo conhecia todo mundo e ocorria essa rivalidade entre o Rio e São Paulo. Era também um período de muito otimismo, o Brasil estava crescendo com muita energia, e com muita desigualdade social. Quando vim para o Brasil, o que queria ver era a modernidade de uma arquitetura que me parecia incrível. Mas ao chegar logo percebi quão complexo o país era. E acho que conheci muito do Brasil por meio de trabalhos de arte. Desenvolvi uma amizade muito grande com Lygia Clark e Oiticica, que conheci em 1965. Os dois eram mais velhos que eu, que era muito jovem na época.

Há uma interseção entre arte e vida? O senhor consegue distinguir as fronteiras?

Esse é um assunto cheio de dilemas. Não há nada neste mundo que não seja parte da vida para nós que a vivemos. Toda arte é participativa. Quando olhamos uma pintura, trazemos para ela nossa carga subjetiva. Arte é vida mediada pelo artista, e é impossível escapar de alguma forma da mediação. Porém tem havido pe-riodicamente, e especialmente nos tempos recentes, um desejo forte de “quebrar a barreira entre a arte e a vida”. Lygia Clark disse isso muito cedo em sua carreira. E disse também: “Acredito firmemente na busca de uma fusão entre arte e vida” (1956). Tanto ela quanto Oiticica se inspiraram em Mondrian no começo de suas carreiras e entenderam suas pinturas não tanto nos termos formais, mas como uma busca pela fusão entre arte e vida. Numa anotação antiga, Oiticica o colocou desta forma: “A solução não seria arte mural nem aplicada, mas algo expressivo, algo como a ‘beleza da vida’ ”; algo que ele não conseguia definir porque ainda não existia.

Um desejo assim só pode nascer da percepção, ou do sonho, de que há algum destino mais eficaz para o tra-balho do artista do que o oferecido pelas instituições de

Sempre amei experimentalismo em arte, novos materiais, novos conceitos, novos entendimentos sobre a vida.

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arte hoje – o museu, o mercado de arte, a mídia sobre arte. O “não toque” do museu, a especulação do mercado e a reprodução das imagens, entre outros fatores, dispararam contraestratégias, sendo uma das mais notáveis o conceito Vivo Dito, do argentino Alberto Greco. Numa empreitada quase quixotesca, ele desenhava bem rápido com giz um círculo ao redor de um transeunte na rua e assinava esse círculo. Era um procedimento arriscado, absurdo e até engraçado. O mesmo Greco disse: “O artista não mostrará mais com o quadro, mas com o dedo”.

E aqui o dilema começa. Como em nossa cultura até mes-mo gestos anti-institucionais terminam como objetos em museus (poderiam ser fotografias de ações efêmeras, por exemplo), quando removidos de seu contexto tendem a parecer isolados, “fora de ação”, ainda que funcionem de modo compreensível à condição dos museus (e às vezes até mesmo cometem essa condição com ironia). Pode ser que o espectador veja apenas através de um relato da vitalidade rebelde original.

Se arte e vida se fundissem na “beleza da vida”, nós nem saberíamos que são categorias contraditórias, então esse questionamento não seria feito. Mas, da maneira que é, invocar “vida real” é apontar para aquilo que não

é predefinido, pois como disse Paul Klee: “Curiosidades se tornam realidades, realidades artísticas que ajudam a elevar a vida de sua mediocridade”.

Quais foram as características predominantes na arte produzida durante as décadas de 1960 e 1970? Que diferenças ou semelhanças há na produção de hoje?

Escrevi quase inteiramente sobre artistas individuais, entre eles Cildo Meireles, Tunga, Antonio Manuel, Wal-tercio Caldas, Regina Vater, Anna Bella Geiger, Roberto Evangelista, Jac Leirner, Ricardo Basbaum, Mauricio Dias, que trabalha com Walter Riedweg, Brígida Baltar. Produzi muito pouco no sentido de uma visão geral sobre um assunto tão vasto e variado como a produção artística brasileira. Há artistas que respeito e admiro muito, mas ainda não fui capaz de escrever sobre, como Antonio Dias e José Resende.

Inevitavelmente, esses textos seguem as percepções de um outsider, um integrante do público interna-cional de arte que não viveu nem vive o Brasil do dia a dia. Apesar disso, porém, entendi intimamente o fenômeno que caracterizava uma grande produção de trabalhos: constantes ecos e diálogos entre artistas, numa reprodução de sensibilidade. Um exemplo seria a correspondência estranha e rarefeita entre o trabalho de Oiticica intitulado Nas Quebradas (1979, reconstruído

Metaesquema, 1956, (à esq.) e Bólide Vidro 14 Estar, 1965/1966, de Hélio Oiticica | fotos: Vicente de Mello e César Oiticica Filho

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em 2002) e o de Waltercio Caldas chamado Sono (2001). E vejo que isso continua a acontecer com os artistas das gerações mais novas: penso no traço da elasticidade e do corpo-realidade de Lygia Clark no trabalho de Carla Guagliardi intitulado O Lugar do Ar (2004), por exemplo. É maravilhoso descobrir essas ressonâncias de diálogo. Talvez haja aqui um paralelo com a música brasileira: referências se cruzam de modo sutil e intricado, num clima geral de inovação e invenção que produz um caráter inconfundível de totalidade.

Artistas como Oiticica e Clark exploraram ampla-mente as fronteiras entre arte e vida. Também ques-tionaram a natureza dos espaços “propícios” para exposições, sugerindo a influência do e no mundo “lá fora”. Embora esses aspectos sigam inspirando a produção contemporânea hoje, uma distância entre arte e público também segue existindo. O que afasta a arte do público?

Lygia disse uma vez que o trabalho dela devia ser mos-trado em grandes quantidades às pessoas nas ruas. E Oiticica falou de sua “imensa relação” com as ruas do Rio: “Praticamente vivi minha vida na rua, tenho uma

facilidade imensa em fazer amizade com pessoas que não conheço”. Frases sincréticas misturando arte e vida e conceitos em formação desabrochavam com muita facilidade do cérebro de Oiticica: “Delirium ambulato-rium”, “situações para ser vividas”, “o dia a dia experimen-talizado”. Esses aspectos continuam sendo uma fonte de inspiração muito forte. A noção de espaços “propícios” para exposições foi claramente subvertida por Lygia Pape quando ela pediu ao [artista visual] Maurício Cirne que fotografasse as páginas abstratas e geométricas do seu famoso Livro da Criação, em cenas cotidianas no Rio. Por exemplo, A Descoberta do Fogo num boteco entre duas garrafas da [cachaça] Fogo Paulista. Esse é o espírito de uma “poética da vida”, e as possibilidades de manifestá-la são infinitas. Incidentalmente, tendo feito esse comentário sobre mostrar seu trabalho nas ruas, Lygia Clark mais tarde gravitou em uma concepção de

público aparentemente oposta, privada, numa rela-ção um a um com o outro em seu extraordinário

processo de terapia, mediado por seus objetos relacionais. Assim ela escapou de qual-

quer prescrição dogmática ou noção pré-formulada de fusão entre

arte e vida.

O Lugar do Ar, 2004, de Carla Guagliardi | foto: Uwe Walter

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Carnaval e futebol são representações muito as-sociadas à identidade do Brasil no exterior. A arte contemporânea brasileira soma outras represen-tações? Que imagens do Brasil o senhor nutre?

Como eu disse, minha imagem inicial do Brasil foi a de modernidade. Mas, de fato, recordo que, em uma das minhas primeiras visitas ao país, fiquei muito impres-sionado com a qualidade das fotografias de futebol publicadas nos jornais. Os fotógrafos de esporte tinham a habilidade de capturar belos momentos de balé, com corpos voando ou caindo e a bola em algum lugar no meio daquilo tudo... Quando questões em torno

da identidade cultural começaram a ser amplamente debatidas nas décadas de 1970 e 1980, em resistência à dominação cultural norte-americana, muitas pessoas foram levadas a ver o Brasil com cara de samba, futebol, Carmen Miranda, cariocas na praia.

O trabalho de Oiticica tocou nisso. Quando fez Tropicália, em 1967, ele incluiu materiais do cotidiano brasileiro (areia, papagaios, vegetação tropical, o quintal popular) em resistência à pop art dos Estados Unidos. Mas ele viu essas imagens típicas ser usadas fora daquele con-texto como símbolos de fácil consumo, ignorando-se o que ele considerava a parte mais importante do seu trabalho: penetrar no labirinto para seguir os sons que vinham do centro dele (uma cadeira e uma TV ligada). Em uma crítica explícita ao consumo de imagens, em seu próximo grande projeto Éden (1969), ele esvaziou cada uma das cabines penetráveis, dei-xando apenas elementos sensoriais muito diretos (andar descalço numa área coberta por água, por exemplo), oferecendo lacunas a ser preenchidas pela imaginação. Oiticica penou um pouco tentando manifestar o que

chamava de Brasil Raiz, ao mesmo tempo que rejeitava qualquer interpretação folclórica. Ele chamava o Brasil de uma cultura em formação, “a possibilidade aberta de uma cultura”.

Contudo, nutro, sim, uma imagem das minhas pri-meiras visitas às praias do Rio. Fiquei maravilhado por me tornar parte daquele aglomerado gigante de humanidade sem roupa! Gente linda (homens e mu-lheres), velhinhos enrugados, dos corpos esculpidos aos mais fora de forma, gente pobre se misturava à gente rica nos espaços públicos curvilíneos que eram Copacabana e Ipanema.

O que o senhor tem a dizer sobre a destruição recente de parte do acervo de Hélio Oiticica?

Fiquei realmente chocado ao saber dessa notícia trágica e ainda acho difícil de acreditar. As peças de Oiticica se tornaram parte do nosso mundo e não parece possível que pudessem deixar de existir. Lamento por ter estado longe demais e não ter tido como acompanhar de perto esse desastre. Mas aconteça o que acontecer o pensamento de Oiticica está vivo como nunca e continuará a influenciar pessoas.

Em que projetos o senhor está envolvido atualmente?

Trabalhei recentemente com o Museu Reina Sofía, em Madri, numa exposição do visionário artista do século 20 Georges Vantongerloo, encerrada no dia 22 de fevereiro. Focamos a produção de trabalhos menos conhecidos dele. Antes, colaborei com o [diretor da Tate Modern] Vicente Todolí numa grande exposição de Cildo Meireles em Londres, que despertou muito interesse geral. Também estou trabalhando em um livro sobre uma artista britânica incrível, a performática Rose English.

Não há nada neste mundo que não seja parte da vida para nós que a vivemos. Toda arte é participativa. Quando olha-mos uma pintura, trazemos para ela nossa carga subjetiva.

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Onde vive a arte Os fotógrafos Daniel Marenco, do Rio Grande do Sul, e Henrique Manreza, de São Paulo, registraram ambientes internos em que elementos artísticos afloram involuntariamente.

fotorreportagem

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Inspirado no livro A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio, Marenco registra celas do Presídio Central de Porto Alegre, onde os detentos deixaram fragmentos de arte. Estão lá os princípios da pintura e da colagem com imagens singulares nas paredes.

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Nas residências fotografadas por Manreza, é possível encontrar uma referência ao estado de São Paulo no chão do quintal da casa paulistana, cuja organização dos ladrilhos hidráulicos é a mesma das calçadas da cidade; e o móvel na cozinha lembra a arquitetura moderna de Brasília.

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reportagem

Ninguém veio para cá por outro motivo, além de nósHá arte no striptease – e nas demais modalidades de shows eróticos?

Por Thiago Rosenberg | Ilustrações Theo Firmo

Quando chegaram ao local, por volta das 23 horas de uma quinta-feira, uma garota já se apresentava no palco. Loira, esbelta, bela. E nua – com exceção da bota de cano alto. A música country e o chapéu de caubói repousado num canto do tablado indicavam que a moça iniciara seu espetáculo vestindo trajes, ainda que mínimos, de vaqueira, ou boiadeira, ou cowgirl, que seja. Atravessando o olhar atento dos espectadores – homens jovens e velhos, solteiros e, pelo que indicava a aliança no anular da mão esquerda, casados –, o repórter e a coreógrafa se dirigiram a uma mesa. Sentaram-se e assistiram, com uma atenção de uma natureza diferente da dos demais membros da plateia, à performance da rapariga.

O repórter era quase um leigo absoluto em questões ligadas à dança, seja a clássica, seja a moderna ou a contemporânea. Sua única ligação com tal universo foram os seis meses – pouco frutíferos, por sinal – durante os quais frequentou um curso de dança de salão. Resolveu então convidar a coreógrafa, Thelma Bonavita, para uma visita a uma casa noturna, dessas que pululam na região central da capital paulista e que, além de servirem como ponto de encontro para uma noite de sexo casual, e pago, costumam apre-sentar uma variada programação de shows eróticos – desde o básico striptease até coreografadas cenas de coito. Com tal convite, o repórter tinha a intenção de encontrar uma resposta à seguinte pergunta: há arte nesse tipo de espetáculo?

Performances e performances

“Quando uma performance, como essa da stripper”, questionou o repórter à coreógrafa, “pode ser considerada artística?”. “Quase tudo no nosso dia a dia pode ser visto como uma performance”, respondeu ela. “Diz-se, por exemplo, que um orador desempenhou ‘uma ótima performance’ diante de seu público, que a performance de um médico superou as expectativas, ou que um automóvel tem uma performance acima da média. E por aí vai... Mas ela só é artística quando causa um deslocamento, quando mostra ao espectador uma nova maneira de enxergar a realidade, transformando o banal, o cotidiano. E isso não ocorre aqui.”

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Passando as opiniões da coreógrafa para seu bloco de notas, o repórter sentiu uma pontada de frustração. Queria ouvir que sim, que há arte no striptease; era isso o que ele esperava afirmar, com base na fala de um especialista, em sua matéria – que talvez recebesse o título “A arte nua”, ou coisa do gênero. Como ocorre com certa regularidade, os dados apu-rados nem sempre correspondem à premissa inicial da pauta, da reportagem. “Mas há uma coreografia! A moça ensaiou seus movimentos para mostrá-los ao público!”, diz o repórter, tentando salvar sua tese inicial. “Sim, ela os ensaiou”, respondeu a coreógrafa, “mas, até aí, há crianças que ensaiam suas falas para as pecinhas promovidas pela escola, por exemplo, ou profissionais que realizam ensaios para uma entrevista de emprego... E não é por isso que podemos chamar essas crianças e esses profissionais de artistas, não?”.

O repórter engoliu sua frustração e seguiu ouvindo as palavras de Thelma. Ela dizia que, no século XIX, com o teatro burlesco, a semente do que viria a ser o striptease ao qual hoje nos acostumamos poderia ser considerada como arte, já que causava aquele tal deslocamento, opunha-se à moral da época; mas, na sociedade atual, essas apresentações já se tornaram corriqueiras, não causam mais surpresa.

O repórter queria ouvir que sim, que há arte no striptease; era isso o que ele esperava afirmar, com base na fala de um especialista, em sua matéria.

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Potências de arte

Nisso, as luzes voltaram a se concentrar no palco; e deram início ao segundo espetáculo da noite. Dessa vez, é uma dupla que se apresenta ao público. Um casal, um casal feminino: uma mulher – esbelta e bela como a anterior, mas ruiva – e outra se fazendo de homem, com terno, gravata, chapéu e calça social. Essa, a que se faz de homem, se senta num banquinho e, como um senhor confortavelmente acomodado em sua poltrona, põe-se a ler uma revista – uma revista Caras. A ruiva se mostra desapontada com a falta de apetite sexual de seu parceiro e, com o

Todos os presentes já sabiam, ao entrar na casa, o que en-contrariam por lá: não questionamentos ou novas visões do mundo, mas, sim, shows concebidos para alimentar seu apetite sexual.

intuito de ganhar sua atenção, começa a provocá-lo, despindo-se lenta e sensualmente – não custa lembrar que, em português, o termo striptease significa algo como “despir-se de maneira provocante”. O senhor, inicialmente, não dá a mínima bola, mas, pouco tempo depois, cede. Levanta-se, caminha em direção à ruiva e tira rapidamente a roupa social, revelando seu corpo feminino. E então, ao som de uma espécie de tecnogregoriano, as duas começam a – nas mais diversas e inusitadas posições – se beijar, se lamber, se acariciar, se esfregar...

“Isso tem um quê daquele teatro burlesco, não?”, per-guntou o repórter, com a esperança de, por fim, fazer a coreógrafa admitir que havia um elemento, ainda que sutil, de arte sobre o palco. Ela concordou, “com certeza, há muito do teatro burlesco nessa apresentação”, disse, “mas, aqui, neste espaço, a função é outra: elas não que-rem questionar nada, não há espaço para a dúvida, para proposições, para a arte. A intenção é simplesmente excitar a plateia, excitar para lucrar”. De fato, por mais curioso que fosse o espetáculo, ele não fugia do óbvio.

Todos os presentes já sabiam, ao entrar na casa, o que encontrariam por lá: não questionamentos

ou novas visões do mundo, mas, sim, shows concebidos para alimentar seu apetite se-

xual. “Veja só”, continuou a coreógrafa, “ninguém veio para cá por outro

motivo, além de nós”.

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“Bem notado”, refletiu o repórter. “Potências de arte!”, pensou, mais alegre dessa vez. Mas, cansado, apenas disse: “Acho que já tivemos uma boa discussão. Se você não quiser dizer mais nada em especial, podemos ir”. E se foram. Ela, levando consigo algumas “potências de arte” que, quem sabe, possam inspirá-la em trabalhos futuros. E ele, por sua vez, pronto para se sentar em frente ao computador e, bloco de notas em mãos, começar a redigir sua matéria – cujo título não será mais “A arte nua”, mas, talvez, algo como “Ninguém veio para cá por outro motivo, além de nós”.

***

Thelma Bonavita, a coreógrafa e bailarina convidada a participar desta reportagem, foi premiada pela Asso-ciação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em 1995, 1997 e 2009. Frequentou, como estudante convidada, a School for New Dance Development (SNDO), em Amsterdã, e foi uma das fundadoras do estúdio Nova Dança, de São Paulo. Atualmente, desenvolve suas atividades artísticas por meio da Associação Desaba, criada em parceria com Cristian Duarte.

Antes de se dar por vencido, o repórter deu sua última cartada: “E quanto ao conceito do belo? A beleza em si já não é arte?”. “Era”, foi a resposta da coreó-grafa. “Mas o belo pelo belo já não se enquadra na arte contemporânea. Desde o impressionismo [movimento artístico surgido, inicialmente no campo da pintura, na Europa do século XIX], a arte deixou de reproduzir, ou representar, o belo – e passou a discuti-lo, questioná-lo.”

“Ainda assim”, comentou a coreógrafa – e, neste mo-mento, o repórter vislumbrou alguma esperança de ver confirmada a sua tese –, “este lugar está repleto de ‘potências de arte’ ”. “Potências de arte?”, perguntou ele. “Sim. Objetos, pessoas, situações que podem vir a inspirar trabalhos artísticos”, disse ela. E deu alguns exemplos: a decoração do local; a moça seminua que dançava, talvez mais para ela mesma do que para seus possíveis clientes, em frente a um dos vários espelhos da casa; os restos de pipoca caídos no chão (“Imagina! Pipoca num lugar deste!”, notou ela); e, é claro, os shows propriamente ditos.

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deadline

A arte narrativa na vida digital Os jogos digitais alteram a arte de contar e viver histórias ao criar uma relação entre autor, personagem e leitor.

Por Jean-Frédéric Pluvinage

Na Ilíada, uma das mais belas e antigas narrativas da história, heróis travam guerras épicas sem conseguir escapar de seus fins trágicos, traçados pela lei do destino. Destino que sempre foi controlado pelo maior dos deuses: o autor. Dos poemas gregos às telenovelas, ele sempre esteve presente, desenhando o fio da história. Mas agora a narrativa de simples contos ou fatos passa por uma revolução: no videogame o personagem escolhe seu destino. O Aquiles moderno escapou da linearidade. E, independente do seu criador, pode morrer lutando ou então se casar e ter filhos.

O videogame, ou jogo digital, é a nova face da arte de contar uma história. Suas qualidades lúdicas se apropriam da linguagem hipertextual: imersão, interatividade e conteúdo multimídia. Sua narrativa pode se adaptar às decisões do jogador/leitor de tal forma que é preciso perguntar: Se o personagem tem liberdade em sua própria história, então qual a função do autor? A narração digital irá matar o roteiro?

Qualquer julgamento é precipitado. Mas é bom lembrar que a modernidade da narração digital resgata a flexibilidade dos contos orais, que têm como característica o contato direto entre o autor e seu público. Enquanto a história progride, o autor ou contador de história se certifica da reação de seus ouvintes, perce-bendo quais passagens geram mais interesse e adaptando seu enredo de acordo. Porém, essa flexibilidade se perdeu nos impressos, nos filmes e em outros produtos audiovisuais. Ce

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Os primeiros videogames, surgidos na década de 1970, não resgatam de imediato a fluidez das histórias orais, embora introduzam um enredo próprio cujo resultado depende da ação do jogador. A partir do Colossal Cave Adventure, de 1975, surgiram as ficções interativas, que são versões digitais dos livros-jogos – em que é possível chegar ao final escolhendo os caminhos dis-tintos ou mesmo morrer tentando chegar ao fim. Os primeiros jogos digitais de RPG (jogos de interpretação de personagens) permitiram ao jogador a imersão em histórias complexas, apesar de ainda limitadas pela programação. “O que chamamos de interativo é visto por Raymond Williams, acadêmico galês que pesquisou a interação na mídia televisiva, apenas como reativo, ou seja, uma escolha entre opções preesta-belecidas”, alerta Julia Stateri, designer e mestra com especialização em narrativa dos videogames. “Intera-tividade implica escolhas não programadas”, diz ela.

Uma narrativa livre, interativa e colaborativa surge com os MMORPGS (jogos on-line de RPG para múltiplos jogadores). São games sem roteiros lineares, em que é oferecido basicamente um cenário. Cabe ao jogador escolher o que irá fazer e criar a própria história. “O autor, contudo, não morreu”, explica Roger Tavares, pesquisador

do Centro Universitário Senac, doutor com especialização em videogames e fundador da comunidade virtual Gamecultura (gamecultura.com.br). “O segredo está em dar ferramentas para a atuação do jogador, mas sabendo limitar suas ações. Se-não todos seriam invencíveis. O jogo precisa dessa diferença de potencial, de você receber ora prêmios, ora punições”, diz Tavares.

Câmbio

Essa criação coautoral dos jogos digitais provém da cibercultura. As primeiras teorias da comunicação definiam que um emissor envia uma mensagem a um receptor. Com o surgimento da cibercultura, todos são emissores e receptores de informação ao mesmo tempo, como nos softwares peer to peer nos quais filmes e músicas são distribuídos por uma rede de colaboradores. No caso do MMORPGS não há um só

“O segredo está em dar ferramentas para a atuação do jogador, mas sabendo limitar suas ações.” (Roger Tavares)

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Os jogadores são criadores e leitores simultâneos de suas histórias no jogo Myst Online: Uru Live | imagem: Cyan Worlds Inc.

autor: o gamedesigner (criador de um jogo) elabora o cenário, os limites e as missões, mas todos interagem entre si e cada um faz parte do jogo, da história e da experiência do outro.

O jogador de um MMORPGS, por meio do avatar (sua representação virtual), está livre para lutar contra monstros, formar clãs, vender produtos e serviços, fazer festas e se casar. São jogos tão complexos que simulam a vida real, com sociedades e economias autônomas. O próprio programa Second Life se define como um mundo digital, com a presença de empresas, embai-xadas e lojas reais, e onde casais podem se encontrar, namorar e até fazer sexo.

O futuro do autor na mídia digital ainda reserva muitas inovações, principalmente no meio empresarial. “O jogo interativo é uma ferramenta estratégica para formular equipes no mundo corporativo, com roteiros que priorizam cenários de aproximação e relacionamento humano”, explica Julio Freitas, designer e pesquisador

do Centro Universitário Senac, no

Laboratório de Pesquisa em Am-bientes Interativos. Outra tendência é a

coautoria na criação dos roteiros. Caso dos jogos Spore Galactic Adventures e Little Big

Planet, cujas missões e aventuras são elaboradas pelos próprios jogadores. Já o MMORPG Myst Online:

Uru Live se tornou um jogo de código aberto, ou seja, sua programação permite que todo usuário possa adicionar cenários e objetivos em seu mundo virtual. Assim, o jogador se torna criador e leitor simultâneo de suas histórias. Já não há mais diferença entre Homero, seu ouvinte e Aquiles: autor, leitor e personagem se fundiram na vida digital.

Jean-Frédéric Pluvinage é estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação e Artes do Centro Universi-tário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP), Campus V de Salto (SP). É editor do jornal da faculdade, O Arauto. Adora games, em especial o jogo Thief: The Dark Project.

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ficção

Cavalo amarrado a bicicletaA história de uma fotografia e seu significado.

Por Daniel Galera | Ilustração Manuela Eichner

Viu quando o garoto chegou pela esquerda, pedalando a pequena bicicleta cross e puxando atrás de si o cavalo. O conjunto em movimento projetava uma curiosa sombra na areia da praia, como se um dragão planasse na grande altura contra o sol das 5 da tarde. A bicicleta descrevia uma trajetória sinuosa e os joelhos do garoto giravam em alta frequência, abertos para fora, distantes do quadro pequeno demais para as suas pernas. Vestia apenas um calção azul com listras brancas nos lados, estava também descalço. Tinha uns 14 anos. Uma das mãos controlava o guidom enquanto a outra puxava o animal pelas rédeas, e o cavalo trotava com patadas curtas e nervosas, o pescoço muito rijo e apontado para a frente, parecendo tenso e quem sabe prestes a sucumbir a alguma espécie de desespero. Não chegaram a passar diante da sua cadeira de praia; o garoto parou um pouco antes disso, dando um cavalinho de pau abrupto que levantou uma fronha de areia parda e forçou o cavalo a travar as patas dianteiras para não atropelar o dono.

O garoto desceu da bicicletinha, apoiou um dos pedais numa pedra perdida na praia, pegou o travesseiro branco e fino que cobria o selim e o dispôs no lombo do cavalo como uma sela. Passou a mão na cabeça do cavalo e disse alguma coisa para ele enquanto parecia segurar seu focinho. Depois agarrou a crina com uma das mãos e montou com um salto desenvolto, aterrissando sobre o travesseiro como se não pesasse nada. Firmou as pernas nas costelas da montaria e nem precisou, pelo que pôde perceber, cravar os tornozelos nas ancas do cavalo para que ele saísse a galope pela areia em alta velocidade. O brilho de sua pelagem marrom era quase tão intenso quanto o de um espelho.

“Tá vendo isso?”, perguntou à esposa deitada na espreguiçadeira a seu lado. Ela desviou o olhar do romance que lia e ajeitou um pouco a perna engessada para escondê-la mais uma vez da invasão sorrateira do sol da tarde. Entre os dois havia uma mesinha de madeira com restos de lagosta.

“Pode cavalo na beira da praia?”, ela disse, acompanhando com a cabeça o animal a galope.

“Acho que o moleque não tá muito preocupado. Tá galopando sem sela, olha só. Ele é bom.”

“É. O cavalo é bonito. Parece que tá possuído.”

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E era verdade, o cavalo era lindo, tinha o porte de um cavalo de corrida só que menor, seu pelo marrom era impecável e reluzia de maneira que parecia artificial. A certa distância o garoto freou o cavalo bruscamente e o fez mudar de direção. Deu algumas guinadas e o fez girar como um cavalo de desfile, e depois disparou na direção contrária, novamente em direção ao quiosque do qual podiam contemplar o mar azul-cinzento.

“Merda, deixei a câmera na pousada.”

Ela não disse nada, voltou ao romance. O cavalo passou em disparada diante deles e seguiu para o outro lado da praia, como se não pretendesse parar nunca mais.

“Você trouxe a filmadora?”

A mulher suspirou e pegou a bolsa de palha. Reme-xeu um pouco ali e tirou a pequena câmera digital embrulhada em uma canga azul. Ela fez menção de entregar-lhe a câmera, mas grunhiu alguma coisa e abriu o compartimento da fita.

“Tá sem fita, Renato.”

“Como assim?”

“Tirei a fita ontem à noite, tinha acabado. Esqueci de pôr outra.”

“Porra.”

Ela o encarou por alguns instantes mas ele não viu, estava com a cabeça voltada para o outro lado, para o cavalo que ainda se afastava a galope pela faixa larga de areia. Não havia mais ninguém na praia, com a exceção de um buggy que tinha estacionado não muito longe deles e abrigava dois homens que bebiam cerveja em lata olhando o mar e escutando forró baixinho no rádio. A mulher voltou ao romance. Ele viu o garoto dar meia-volta de novo, a distância.

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Participe com suas ideias 53

“Queria outro coco”, disse a mulher.

Ele olhou para trás e não viu o dono do barzinho.

“O cara deu uma saída, parece. Quando ele voltar eu busco.”

O garoto passou meia dúzia de vezes diante do quios-que, sempre a galope. O cavalo bufava e já não parecia desesperado. O garoto dava a impressão de estar sorrindo o tempo todo, e lá pelas tantas concluiu que ele estava mesmo sorrindo quase o tempo todo, olhando à frente, perfeitamente integrado com a montaria, segurando as rédeas com apenas uma mão, o corpo um pouco projetado para a frente, as pernas agarradas ao bicho e os pés livres. A coisa toda tinha algo de primitivo e transmitia uma imagem de felicidade que ele não conseguia explicar a si mesmo, mas parecia um enigma passível de ser desvendado se ele observasse a cena com atenção por tempo o bastante.

“Renato, acho que quero ir embora.”

Ele demorou um pouco a responder, compenetrado no garoto.

“Já vamos. Tô meio cansado também. O sol tava muito forte hoje.”

Agora, ao se aproximar da bicicleta estacionada na areia, o garoto puxou a rédea e pôs o cavalo a passo. O animal soprou ruidosamente pelas narinas, andando em círculo.

“Não, eu quero ir embora pra casa. Pra São Paulo.”

O garoto deslizou pela areia, desmontando com a mesma ausência de esforço com que havia montado.

A coisa toda tinha algo de primitivo e transmitia uma imagem de felicidade que ele não conseguia explicar a si mesmo, mas parecia um enigma passível de ser desvendado se ele observasse a cena com atenção por tempo o bastante.

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“Não é a perna”, disse a mulher.

Mas ele não ouviu, ou não registrou. O garoto tinha começado a nadar e ele o observava fascinado. Nadou bem para o fundo e depois começou a costear a praia. Não era um nado elegante, nada comparável a seus dotes de cavaleiro, mas ele girava rápido seus braços finos e avançava numa velocidade considerável, ba-tendo pernas com força, sumindo e ressurgindo por trás das marolas.

“Marília, a tua câmera tira foto também, né?”

“Hein?”

“A filmadora. Ela tira foto, né?”

“Tira, mas tá sem fita, eu disse.”

Ampliada numa cópia de 20 x 25 centímetros, é possível ver claramente pontos rosa e verdes na cor distorcida, pixels que sujam a reprodução mas ao mesmo tempo lhe emprestam um véu nostálgico, ou até místico, ele ousaria dizer.

“Ué. Ainda temos cinco dias.”

O garoto tirou o travesseiro do lombo do cavalo e o acomodou no vão do quadro da bicicleta. Depois to-mou a rédea e a amarrou no guidom. O cavalo parou ali, arquejando, dócil, apaziguado pelo esforço.

“É por causa da perna?”, ele perguntou à mulher. “Deve estar sendo muito chato esse gesso na praia, mas a gente já tá aqui. Não faz muito sentido voltar, né? Sei lá quando viremos ao Nordeste de novo. Podemos passar os últimos dias em Fortaleza, talvez seja melhor.” Ele pôs a mão no braço da mulher, alisou-o um pouco, tentando confortá-la. “Um dia a gente vai se lembrar dessa viagem e pensar pô, apesar do acidente, a gente aproveitou muito.”

O garoto deixou o cavalo ali amarrado à bicicleta e começou a andar em direção ao mar. Ao se aproximar das ondas, deu uma corridinha e um salto mortal meio incompleto, mergulhando na água quente.

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Participe com suas ideias 55

“Não, mas as fotos ficam na memória. Me alcança a câmera?”

Pegou a pequena câmera da mão dela, abriu o visor, acionou o botão de ligar, depois apertou o botão da função de tirar fotos. Apontou a lente para a curiosa instalação que tinha diante de si e foi aproximando o zoom até chegar ao máximo, enquadrando cavalo e bicicleta com alguma dificuldade, já que a aproxima-ção complicava a estabilização do quadro. Tirou uma única foto. A câmera registrou a cena com um ruído simulado de obturador. Ele fechou o visor, desligou a câmera e a devolveu à mulher.

Um pouco mais tarde, depois que o garoto tinha saído do mar, reposicionado o travesseiro no selim da bicicleta e pedalado com o cavalo a reboque até desaparecer na distância da praia quase deserta, ele levantou e comprou dois cocos gelados do vendedor que estivera ali atrás do bar o tempo todo, cochilando numa cadeira. Chegando a São Paulo, ela o deixou.

A imagem digital é extremamente granu-lada e cheia de ruído visual. Ampliada numa cópia de 20 x 25 centí-metros, é possível

ver claramente pontos rosa e verdes na cor distorcida, pixels que sujam a reprodução mas ao mesmo tempo lhe emprestam um véu nostálgico, ou até místico, ele ousaria dizer. A aparência geral é de algo desbotado, e os contornos se borram.

Mas ele gosta mesmo é de ver a imagem na área de trabalho de seu notebook, refinada pelos pontos preci-sos do monitor LCD. O cavalo está à esquerda, de perfil, brilhoso de suor, as patas dianteiras paralelas e retas como estacas, o rabo um pouco afastado, congelado no meio de um abano tranquilo, o pescoço ereto mas descansado. Está amarrado pelas rédeas ao guidom da bicicleta, que está de frente para ele, a roda dianteira bem abaixo da sua cabeça, ocupando o terço direito da composição. A areia molhada reflete o céu azul, e o mar, no alto, é atravessado de um canto a outro pelo tubo de espuma de uma onda que quebra. O garoto não está à vista, mas o cavalo, pensativo, fiel, está à sua espera, sem ansiedade nenhuma, e é como se ele estivesse lá.

Daniel Galera é escritor gaúcho. Autor, entre outros, dos livros Cordilheira (Cia. das Letras, 2008), Mãos de Cavalo (Cia. das Letras, 2006) e Até o Dia em que o Cão Morreu (Cia. das Letras, 2007). Mantém um site pessoal em www.ranchocarne.org.

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A arte de cada diaAs recomendações culturais da Continuum para um cotidiano mais artístico.

Por André Seiti

balaio

CINEMA

Cinemaníaco, de Krzysztof Kieslowski (Amator, Polônia, 1979, Videofilmes)Filip Mosz é um operário que resolve comprar uma filmadora 8 mm para registrar os primeiros dias da filha recém-nascida. No entanto, o que era para ser apenas um hobby se torna uma obsessão. Mosz começa a filmar tudo e todos. Pessoas do cotidiano transformam-se em “astros” de suas produções. Mas não tarda para que o “operário-documentarista” se depare com dilemas éticos, que trarão sérias consequências para ele e sua família.

O Tempo que Resta, de François Ozon (Le Temps Qui Reste, França, 2005, Califórnia Filmes)Um passeio no parque, uma caminhada no-turna, um descanso na praia. Atividades tão banais que ganham novos significados perante a iminência da morte. Romain é um fotógrafo bem-sucedido diagnosticado com câncer. Restam-lhe poucos meses de vida. Diante dessa situação, o mundo e as pessoas ao seu redor passam a ser vistos – e fotografados – de uma maneira diferente.

PRODUZIDO NO PÓLO INDUSTRIAL DE MANAUS E DISTRIBUÍDO POR VIDEOLAR S.A. Av. Solimões, 505, Distrito Industrial, Manaus AM, CNPJ 04.229.761/0004-13. Indústria Brasileira. Sob licença de VIDEOFILMES PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA. Rio de Janeiro RJ, CNPJ 31.179.864/0001-46. Indústria Brasileira. Made in Brazil. 2008. Denuncie a pirataria: [email protected] ou Caixa Postal 593 CEP 01059-970 São Paulo SP. O prazo de validade deste disco DVD é indeterminado, desde que observados os seguintes cuidados: armazenar em local seco e livre de poeira; não expor ao sol; não riscar; não dobrar; não engordurar; não expor a temperaturas superiores a 55ºC e umidade acima de 60g/m3; segurar o disco sempre pela lateral e pelo furo central. ADVERTÊNCIA: Esta cópia em DVD da obra original, incluindo sua trilha sonora, é destinada exclusivamente a exibições domésticas, não sendo permitida nenhuma outra forma de utilização nem reproduções totais ou parciais. A violação dos direitos exclusivos do produtor e do distribuidor sobre esta obra é crime [art. 148 do Código Penal] , punível na forma da lei.

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TÍTULO ORIgINAL

AmatorDIREÇãO

Krzysztof KieslowskiROTEIRO

Krzysztof Kieslowski Jerzy Stuhr ELENCO

Jerzy StuhrMalgorzata Zabkowska Ewa Pokas Stefan Czyzewski FOTOgRAFIA

Andrzej Archacki Krzysztof BuchowiczKrzysztof JachowiczWlodzimierz Krupa Jacek Petrycki Stanislaw Szablowski EDIÇãO

Teresa Miziolek Halina Nawrocka

Após comprar uma câmera cinematográfica caseira para filmar os primeiros dias de sua filha recém-nascida, o jovem e modesto operário Filip Mosz é convidado pelo chefe a registrar uma solenidade na fábrica local. Com o sucesso de seu filme, Filip adquire um fascínio quase obsessivo pela realização cinematográfica, com consequências devastadoras para si mesmo e para sua família. Vencedor do grande Prêmio no Festival Internacional de Moscou em 1979, Cinemaníaco é uma reflexão tragicômica do mestre polonês Krzysztof Kieslowski sobre as complexas relações entre expressão individual e censura, e entre arte e conformismo no meio cinematográfico do Leste Europeu tomado pelo comunismo. Realizado no período de transição entre os documentários de início de carreira e a sólida obra ficcional pela qual o diretor se tornou célebre, Cinemaníaco denuncia de forma bem-humorada o mito da objetividade no cinema documental e coloca em primeiro plano as questões éticas que o ato de ver impõem ao cineasta e ao espectador.

ExTRAS

Entrevistas (Gadajace Glowy/Talking Heads) [1980, 16 min]INFORMAÇãO COMPLEMENTAR

Outros títulos da Coleção VideoFilmes

AS CARACTERÍSTICAS TéCNICAS REFEREM-SE ExCLUSIVAMENTE AO FILME E NãO AOS ExTRAS

Cinemaníaco Krzysztof Kieslowski

Cine

man

íaco

cole

çãov

ideo

film

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IDIOMA FALADO

polonês LEgENDAS

português1979 | COR | APROx 117 MIN

REgIãO 4 | NTSC | MONO

Classificação indicativa Não recomendado para menores de 14 anosContém: consumo de drogas lícitas e relação sexualTema: obsessãoCINEMANÍACOPort. M.J. No 91/2009

JULHO 2009 Produzido no Brasil

WWW.COLECAOVIDEOFILMES.COM.BR

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Grande Prêmio – Festival de Moscou 1979

“Uma excelente introdução à obra de Kieslowski.”Jonathan Rosenbaum, Chicago Reader

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MÚSICA

Concerto para Conserto, de Ricardo Siri (2008)Para que serve um carro? A resposta mais óbvia talvez seja: para a locomoção. Não para o percussionista carioca Ricardo Siri. Nesta gravação de um show ao vivo, Siri faz do tradicional Fusca um de seus principais instrumentos, extraindo do automóvel uma inesperada musicalidade.

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FOTOGRAFIA

Brasil sem Fronteiras, de Cláudio Bojunga (Tempo d’Imagem, 180 páginas, 2001)Cinco fotógrafos percorrem o limite perimetral do Brasil com seus vizinhos sul-americanos. Antonio Augusto Fontes, Celso Oliveira, Ed Viggiani, Elza Lima e Tiago Santana deixam evidentes as diferenças e afinidades culturais, captando no cotidiano dos locais visitados – 42 ao todo – momentos pueris repletos de poesia.

LITERATURA

Crônica Inéditas I, de Manuel Bandeira (CosacNaify, 464 páginas, 2008)Conhecido por seus poemas, o escritor pernambucano Manuel Bandeira também é autor de uma vasta obra em prosa. Neste livro, estão reunidas 113 crônicas, escritas entre 1920 e 1931, publicadas em jornais da época. Bandeira fala – sempre em tom culto – de pintura, cinema, música e da vida no Rio de Janeiro. Destaque para o texto em que o poeta discorre – com humor ácido – sobre o desfile da miss Brasil, no centro da capital carioca, em 1929.

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Casa em obrasAo transformar suas residências em espaços de produção e exposição, artistas dão exemplo de como diminuir a distância entre vida e arte.

Por Augusto Paim

Na última edição da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, em 2009, uma obra se destacava no número 400 da Rua da Praia. Localizada fora dos pavilhões onde ocorre a maior parte do evento, a intervenção do artista plástico paulista Henrique Oliveira transformou um prédio público abandonado numa “casa-monstro”: uma massa disforme, saindo por portas e janelas, impedia a entrada de qualquer pessoa e dava ainda a sensação de que a construção explodiria a qualquer momento.

Esse é um exemplo de quando a casa é tema do trabalho do artista. Mas Henrique não morou na sua obra de arte, como de fato fez o dadaísta alemão Kurt Schwitters (1887–1948) em sua Merzbau. De 1923 a 1937, Schwitters fez intervenções no próprio lar, em Hannover, Alemanha. Sua produção começou num quarto e foi aos poucos aumentando de tamanho, invadindo outros cômodos, criando grutas e cavernas. A casa-obra foi posteriormente destruída por bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Outros artistas modificam a própria casa sem necessariamente alterar todo o espaço. Em 1996, a carioca Brígida Baltar encostou-se numa parede, desenhou o contorno do seu corpo e depois o “recortou”. “Na época eu pensava nas questões sobre o corpo e a identidade, e naquele lugar o corpo preenchia o espaço dos tijolos e se tornava estrutura pura. Trabalhei algum tempo com a ideia da casa como extensão do corpo”, explica Brígida, que completa: “Ali eu estava experimentando uma nova visão, um lugar único no mundo”. O processo de criação foi documentado e exposto por meio de vídeo, fotografias e slides. Os tijolos retirados da parede foram reutilizados por Brígida. “Quando me mudei, precisei restaurar a casa e todos os vãos que eu havia aberto foram fechados”, conta.

A artista gaúcha Glaucis de Morais também fez a obra de arte em casa. Com a ajuda de amigos, ela escreveu repetidamente os versos “amortecendo cavo aconchego” nas quatro paredes de um dos três cômodos de seu apartamento. Intitulada Côncavo, a obra foi feita entre 1999 e 2002 e é fruto da dissertação de mestrado da artista. Permanece lá, na Rua César Lombroso, 146/6, em Porto Alegre, onde Glaucis ainda mora. O cômodo não tem luz elétrica (uma necessidade da obra) nem móvel algum, mas pode ser usado para pequenas tarefas quando não tem ninguém visitando.

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Abre parênteses

Fazer da própria casa um espaço de arte é uma boa ideia? Jailton Moreira, curador, professor de artes visuais e artista plástico, enxerga na pauta mais um exemplo do “movimento para não sair de casa”, estimulado pelo uso da internet. Para ele, é necessário sair do seu território de conforto para ter contato com a arte. “Pois arte é deslocar o local de aconchego e colocá-lo em outro lugar.”

Para Brígida, “a casa é ou deveria ser sempre um espaço prazeroso e propício à convivência consigo mesmo, com familiares, amigos etc.”. Ela acredita que transformar a casa num espaço artístico, se é o que o morador deseja, pode ser também uma tarefa sob encomenda. “Tudo bem se quiser fazer por você mesmo, mas isso não necessariamente é arte ou o torna um artista”, diz. Tanto ela quanto Glaucis ressaltam a importância do estudo e do convívio com o cir-cuito da arte para a formação do profissional.

Os artistas e suas casas

Adriana Matos Alves Duarte, mais conhecida como Xiclet, já expôs em albergue, garagem e numa república em que morou. Hoje ela vive na Rua Fradique Coutinho, 1855, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. “Uma casa dentro de uma galeria e uma galeria dentro de uma casa” é o conceito da Casa da Xiclet, que, além de domicílio, é um espaço de exposição e interação com a arte, inaugurado oficialmente em setembro de 2001. A artista expõe trabalhos de qualquer pessoa, sem seleção nem curadoria. Tudo é pensado para ser uma brincadeira. “Não é underground, é playground” tornou-se um dos slogans. Nesse espaço, há jogos, oficinas, festas e cursos de arte culinária, além do estímulo ao ócio criativo, e por isso é frequentado por artistas que lá podem deixar o pensamento correr solto.

O artista Fernando Peres tem um exemplo parecido, só que em menores proporções arquitetônicas. De janeiro de 2002 a abril de 2008, ele alugou um imóvel que ficou conhecido como A Menor Casa de Olinda. “Inventei do nada esse nome por ela ser muito pequena: uma

Intervenção Abrigo, da artista Brígida Baltar, em sua própria casa | foto: arquivo da artista

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porta (sem janelas) e dentro um triângulo isósceles (a fachada com 3 metros de largura e os dois lados com 11 metros).” Apesar do tamanho, lá dentro cabia uma

cama suspensa, um minimezanino e um banheiro a céu aberto, localizado na ponta do triângulo. Como se o tamanho da construção já não dificultasse bastante a possibilidade de uma pessoa morar lá, Peres ainda transformou o lugar num centro cultural, sediando festas, exposições e performances, e servindo de ateliê. Em 2008, porém, teve de devolver a proprie-dade à dona. Segundo Peres, muito de seu trabalho se relaciona com o conceito “casa” e isso vem antes da mudança para A Menor Casa de Olinda. “Nas minhas duas últimas exposições individuais, levei todos os meus objetos, roupas, plantas, animais, desenhos, pinturas etc. para os museus por um mês”, conta referindo-se às exposições no Instituto de Arte Contemporânea de Recife e no Museu de Arte Contemporânea de Olinda.

Na Serra Gaúcha, no município de Morro Reuter, uma placa dá as boas-vindas ao contrário – “vindo bem” – na entrada da residência Caminho das Serpentes. Passando pelo portão, há uma trilha de mosaico onde se vê um unicórnio à esquerda e diversos painéis à direita, muitos deles feitos com objetos de família que virariam lixo em uma faxina qualquer: relógios quebrados, rendas, lenços, panos, bijuterias e louças velhas. O terreno de 6.195 metros quadrados tem ainda uma pequena biblioteca e um palco feito de mosaicos, para apresentações e performances ao ar livre. O pátio é cheio de esculturas, cada uma assina-da por um autor diferente. Para as crianças, há uma serpente gigante e um miniateliê. Numa construção à esquerda da entrada, o poema “A invenção do olho”, de Vítor Ramil, jaz para ser lido também em mosaico. Tudo, praticamente tudo, é mosaico na Caminho das Serpentes. Até mesmo os banheiros. E, claro, a casa da proprietária.

A artista plástica gaúcha Claudia Sperb mudou-se para o meio da floresta em 1997. De lá para cá, ao mesmo tempo que encheu as construções e o jardim de mo-saicos, ministrou cursos de arte para leigos. Em sua casa há, por exemplo, xilogravuras feitas por operários da

construção civil de Novo Hamburgo. Arte-educadora, Claudia agora deseja levar seu conhecimento de arte contemporânea a quem não costuma ter acesso. Por isso decidiu fazer de sua casa uma paragem para amigos, conhecidos, estranhos, enfim, pessoas que estejam procurando aliar repouso ao aprendi-zado do mosaico e da xilogravura, ao se inspirar, de alguma forma, com o que fez em sua própria casa.

A arte pertence à humanidade desde todos os tempos, é inerente, e por isso acho que as experiências são ou deve-riam ser profundamente livres e para todos.” (Brígida Baltar)

Antiga casa de Fernando Peres, em Olinda | foto: Cia de Foto

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Fecha parênteses

Quando o período de apuração para esta reportagem se encaminhava para o final, Brígida Baltar escreveu ao repórter:

“Você já deve ter escrito sua matéria, mas fiquei refle-tindo ainda sobre o que você investiga. Na verdade fiquei lembrando que quando somos crianças todos desenhamos muito, e por que mais tarde paramos de fazer isso? Seria tão bacana que as pessoas continuas-sem a se expressar através do desenho, por exemplo. Fiquei lembrando também que tenho um amigo que é designer, e sempre que chega em casa toca um

cavaquinho, para relaxar, sei lá, por prazer puro, por necessidade espiritual. A arte pertence à humanida-

de desde todos os tempos, é inerente, e por isso acho que as experiências são ou deveriam ser

profundamente livres e para todos. Essa é minha resposta mais generosa

e menos defendida.”

Glaucis de Morais observa Côncavo | foto: arquivo da artista (acima) e Playground no quintal da Casa da Xiclet | foto: arquivo da artista (abaixo)

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convocação

Seja um repórter da ContinuumA seção Deadline é um espaço voltado exclusivamente para reportagens feitas por estudantes universitários – de qualquer curso e de todos os cantos do Brasil.

As reportagens devem estar pautadas de acordo com o tema de cada edição. E vá se preparando, o assunto do próximo bimestre (junho-julho) é Periferia.

O Regulamento e a Convocatória, que estabelecem os prazos e as condições para a participação do leitor estudante, estarão disponíveis em breve no site itaucultural.org.br/continuum. Após lê-los, o interessado deve enviar um projeto de reportagem à redação da revista. Apenas um projeto será selecionado.

***

Agora, se você não é estudante ou não quer saber de escrever matérias, mas deseja participar da revista, não se preocupe. A seção Área Livre é o lugar certo para você mostrar seu talento. Contos, artigos, poemas, fotos, ilustrações... Envie seu trabalho – que deve seguir o tema da edição – para [email protected] e, após análise, poderemos publicá-lo.

Reiterando, o tema de junho-julho é Periferia (prazos de envio: revista impressa, até 10 de maio; revista on-line, até 10 de julho).

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Em tempo: em nosso último número, foi anunciado o lançamento do blog da revista, o Continuando... Devido a forças ocultas, ele não pôde ir ao ar, mas, em breve, estará aí, sendo atualizado a cada semana. Aguardem!

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Durante um ano, o Itaú Cultural possibilitou aos interessados receber a revista pelo correio. No entanto, esta ação se encerra a partir deste número devido ao esgotamento da capacidade de envio. Mas os exemplares da atual edição (bem como das futuras) podem ser retirados gratuitamente na recepção do instituto (Avenida Paulista, 149 – São Paulo, SP).

Devido às baixas de estoque, não são distribuídos ou enviados pelo correio exemplares de edições anteriores.

Dúvidas, sugestões ou críticas? Escreva para [email protected] e contate a equipe da revista.

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área livre

Vernissage (acima) e Picasso, cartuns de Marcelo Rampazzo

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64 Continuum Itaú CulturalFotos da série Ausência, de Phamela Dadamo

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Participe com suas ideias 65

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66 Continuum Itaú CulturalFotos da série Ballet em Foco – Bailarinas Fora do Palco, de Wilson Inacio

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Participe com suas ideias 67A Máquina de Escrever Azul, registro fotográfico de intervenção do coletivo Casa de Marimbondo

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O programa Rumos Itaú Cultural promove o intercâmbio

entre artistas, intelectuais e agentes culturais,

incentivando a pesquisa e propondo novas maneiras

de produzir arte no país.Um programa perene, mas que a cada edição é repensado

e reformulado, adaptando-se às rápidas transformações

do cenário cultural.Com mais de 20 mil projetos inscritos, 900 apoiados

e um público de mais de 2 milhões de pessoas,

o Rumos Itaú Cultural deposita sua confiança na

cultura como força promotora de transformações.Inscrições abertas

Rumos TeatroInscrições até 30 de junho de 2010Rumos MúsicaInscrições até 30 de junho de 2010Rumos LiteraturaInscrições até 31 de julho de 2010Rumos PesquisaInscrições até 30 de junho de 2010

Saiba mais em itaucultural.org.br/rumos

entrada francaavenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] terça a sexta das 9h às 20h sábados domingos e feriados das 11h às 20h

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