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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias O curador Paulo Sergio Duarte aponta formas de entender a arte contemporânea. Leia também Invasão e estranhamento em ensaio fotográfico. Tadeu Chiarelli situa três obras no centro da produção contemporânea. De costas para o público: instituições e seus programas de educação para arte. ITAÚ CULTURAL 19 REVISTA O que é isto?

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A arte contemporânea brasileira tem mais de 40 anos e ainda causa estranhamento. É comum ouvir frases de espanto, como "O que é isto?" ou "Isso é arte?", quando se visita uma mostra ou um museu atualmente. Em março, a Continuum procura entender a razão desse sentimento. Pistas foram dadas em reportagens e nas falas de críticos, historiadores e artistas. A partir dessa edição, a revista passa a ser bimestral. Com mais páginas na versão impressa, ela terá também mais atualizações no site. Além disso, foram criadas novas seções, como a Arena, que traz opiniões divergentes sobre um assunto específico, a Mirada, com assuntos latino-americanos, o Balaio, com indicações de livros, músicas e sites, entre outros. E a Área Livre agora é sua. Ela será preenchida, a cada edição, com trabalhos enviados pelos leitores.

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Participe com suas ideias 1

itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias

O curador Paulo Sergio Duarte aponta formas de entender aarte contemporânea.

Leia tambémInvasão e estranhamento em ensaio fotográfico.

Tadeu Chiarelli situa três obras no centro da produção contemporânea.

De costas para o público: instituições e seus programas de educação para arte.

ITAÚ CULTURAL 19REVISTA

O que é isto?

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A arte contemporânea invadiu a vida

A arte contemporânea brasileira tem mais de 40 anos e ainda causa estranhamento. É comum ouvir frases

de espanto, como O que é isso? ou Isso é arte?, quando se visita uma mostra ou um museu atualmente. A

Continuum Itaú Cultural procurou entender a razão desse sentimento. Pistas foram dadas em reportagens,

nas falas de críticos, historiadores e artistas. O curador Paulo Sergio Duarte, em entrevista especial, acredita

que a dificuldade das pessoas venha da falta de experiência: “Quem vai a uma exposição uma vez por ano

não entende de arte. A repetição é fundamental”. Outro curador, Tadeu Chiarelli, em resenha, pontua: “Muito

daquilo que se observa não possui conexão com o que foi ensinado como arte”.

Com mais páginas e novo visual, a revista se reformula

e passa a ter periodicidade bimestral. Foram

criadas seções fixas como Arena, com abordagens

antagônicas para a mesma questão: o professor

Norval Baitello Júnior e a crítica Angélica de Moraes

debatem a morte da arte. Uma Fotorreportagem

também integra as seções permanentes – a

fotógrafa Luana Fischer mostra o estranhamento

de várias pessoas ao ter sua casa invadida por obras

contemporâneas. Ficção trará sempre textos inovadores

na forma ou no conteúdo, como o conto do escritor gaúcho Paulo Scott sobre uma artista inexistente.

A cena latina passa a ter atenção constante, com a seção Mirada, que apresenta artigo do crítico chileno

Justo Pastor.

O espaço do leitor também se amplia. Mande seus trabalhos artísticos, reflexivos e literários, que

poderão ser publicados na Área Livre – veja as regras em Convocação e participe! A versão on-

line da revista passa a disponibilizar a cada semana conteúdos exclusivos que revelam outras

possibilidades para o tema – acesse itaucultural.org.br/continuum.

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Angélica de Moraes, Augusto Paim, Carlos Costa, Cia de Foto, Frederico Ponzio, Gabriel Bitar, Justo Pastor, Laerth Motta, Liane Iwahashi, Luana Fischer, Luciana Veras, Lúcio Carvalho, Mariana Coan, Marcelo Moscheta, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Norval Baitello Júnior, Paulo Scott, Renato Izabela, Rodrigo Silveira, Tadeu Chiarelli, Tatiana Diniz On-line Coletivo Bijari, Guy Amado, Régine Debatty, Solange Monteiro Agradecimentos aos participantes da fotorreportagem, Marcelo Monzani, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Projeto Hélio Oiticica, Romulo Fialdini

capa O estranho na arte e na vida | imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)

Tiragem 15 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554Esta publicação segue as normas de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009

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Entrevista

18. “A arte aponta aquilo que falta em você”

O curador Paulo Sergio Duarte fala sobre a experiência da fruição da arte, ne-cessária à sua compreensão, e do lugar da produção contemporânea brasilei-ra no cenário globalizado.

6. Quem tem medo da arte contemporânea?Do desconforto à perplexidade, da repulsa ao encanto: entenda os motivos por que essa arte é capaz de des-pertar os mais variados sentimentos no espectador.

48. A cidade como telaA arte de rua conferiu uma nova cara ao ambiente urbano. E tornou a discussão sobre a apropriação do espaço público mais atual do que nunca.

56. Um lugar para as velhas novas mídiasDireto da Alemanha, saiba por que um dos mais fa-mosos centros de pesquisa e tecnologia do mundo se preocupa em cultivar cactos.

60. DJs da modernidade em movimentoNada se cria, tudo se recria. O artista contemporâneo é capaz de realizar obras que não sejam releituras do que já foi feito ou é apenas um editor de conteúdo?

64. (Quase) ao alcance de todosDe costas para o mundo: a arte contemporânea igno-rou seu público ou foi o público que a deixou de lado?

Reportagem

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Resenha

12. Considerações sobre arte contemporânea e instituiçõesO crítico e curador Tadeu Chiarelli analisa o porquê de três trabalhos serem fundamentais ao cenário contemporâneo brasileiro.

On-Line

24. Os sentidos e as palavras da contemporaneidadeConfira matérias exclusivas.

Arena

32. Um dia irá acabar?O professor universitário Norval Baitello Jr. e a crítica Angélica de Moraes debatem se a arte está com seus dias contados.

Ficção

42. Distância e explicaçãoUm artista inexistente é o centro da narrativa do escritor – existente – Paulo Scott.

Fotorreportagem

34. A invasãoImagens flagram reações de pessoas ao ter a casa in-vadida por obras contemporâneas.

Balaio

46. Prazeres contemporâneos Livros, filmes, música... As dicas de Continuum para pensar de forma atual.

Mirada

54. Arte chilena, arte de falênciaO crítico chileno Justo Pastor analisa o estado da produção contemporânea em seu país.

Espaço do Leitor

26. ConvocaçãoVocê também pode ser autor.

28. Área LivreA tradicional seção da revista agora é sua. Mande seus contos, ilustrações, poemas, fotos – sempre de acordo com o tema do mês.

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Quem tem medo da artecontemporânea?Conceito, ideia, referência, hibridização, termos que entraram em definitivo no vocabulário da arte, pedem ao espectador outra forma de ver e pensar a produção atual.

Por Luciana Veras

Quem tem medo da arte contemporânea? Se por um lado essa pergunta remete a algo capaz de provocar pavor, por outro retrata um sentimento comum quando o assunto é arte. Não por acaso, tal indagação dá título a um livro publicado em 2007 pela Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, com base em uma série de aulas ministradas pelo crítico de arte e curador Fernando Cocchiarale. E por que a arte contemporânea suscita temores? Porque, como descreve o autor, “habituamo-nos a pensar que a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal e, aliás, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua história”. Assim foi no Renascimento, no século XVIII, e também até meados do século XX, antes de o planeta assistir ao ocaso de sua própria ideia de mundo com guerras e novas tecnologias de produção e comunicação.

Dessa forma, continua Cocchiarale, “a ideia de uma arte que se confunda com a vida é difícil de assimilar porque os nosso repertório ainda é informado por muitos traços conservadores”. Uma primeira conclusão seria, portanto, que a arte contemporânea é a que se produz nos dias atuais, que é impossível dissociá-la das sensações e des-cobertas que torpedeiam o mundo ou mesmo da existência cotidiana de um cidadão. Mas é viável demarcar fronteiras cronológicas para seu surgimento. “De um ponto de vista consagrado em termos historiográficos, é a arte feita a partir do início da década de 1960, quando as certezas e utopias que definiam o projeto da arte mo-derna se esgotam, e outras possibilidades (arte pop, minimalismo, arte conceitual) se impõem como alternativas. É razoável, ainda, defini-la como a arte que se debruça sobre as questões de seu tempo e que problematiza o mundo em que vivemos”, sustenta o pesquisador, crítico e curador Moacir dos Anjos, responsável pela curadoria do Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2007.

Pioneirismo e ambivalência

Por “problematizar”, é saudável entender não uma postura de combate às instituições, mas um tipo de pro-dução que busca na invenção formal uma maneira diferente de analisar tudo o que a cerca. A arte con-temporânea mete medo porque, ao se deparar com algumas de suas obras, o público vê suas convenções embaralhadas. A fruição desses trabalhos pode ser frustrante porque o observador se põe em dúvida, ainda que em breves segundos, sobre o que está à sua frente.

reportagem

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Foi assim em 1917, quando Marcel Duchamp subme-teu Fonte a um concurso nos Estados Unidos. A obra consistia num urinol branco, com a assinatura R. Mutt, ou seja, um objeto trazido da esfera da vida cotidiana para o circuito de museus e galerias. Nascia o ready-

made, e a ousadia do artista causou furor e o colocou em um patamar de destaque em

relação à arte que seria concebida e concretizada em seguida. “Era

um visionário que

prenunciou uma época. O contemporâneo na arte não diz respeito a uma temporalidade específica, e sim a uma espécie de diálogo com o espírito de uma época. Nem tudo o que se faz hoje, por exemplo, é arte contemporânea. Trinta anos depois de Duchamp,

houve a bomba em Hiroshima e o mundo perdeu a inocência. Vieram a crise dos papéis sociais, dos lu-gares das coisas e uma insegurança na classificação das obras de arte. Duchamp antecipa isso ao assinar o mictório, dando ao artista o poder de decidir o

Contemporâneo é o diálogo com o espírito de uma época. Nem tudo o que se faz hoje é arte contemporânea.

Objeto de madeirite Entre, de Amália Giacomini, 2006-2008 | foto: arquivo da artista

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sistema de legitimação”, observa a curadora e crítica Cristiana Tejo, ex-diretora do Museu de Arte Moder-na Aloísio Magalhães, do Recife, e coordenadora de capacitação e difusão científico-cultural da Fundação Joaquim Nabuco.

Para ela, não se pode pensar em arte contemporânea sem o pioneirismo de Marcel Duchamp e a ambivalên-cia de Andy Warhol. A pop art defendida pelo artista é essencial por transformar em matéria-prima o mundo de então. “Ele é cínico e crítico. Ao constatar que, no futuro, todos terão 15 minutos de fama, Warhol falava da vida, da velocidade com que as coisas mudam, do artista que faz do mundo seu ateliê. Na arte contem-porânea, o que importa não é a linguagem, e sim a forma de operar”, pontua Cristiana. As obras passam a dispor de vários suportes, ganham espaço as perfor-

mances, a interação com novas mídias, as instalações – ou seja, algo que não se assemelha a ícones como os quadros de Van Gogh, ou mesmo a Mona Lisa, de Da Vinci, apenas para citar a arte ocidental.

Ideias circulantes

“A característica da arte contemporânea é a multipli-cidade de expressões. Em uma Bienal de Veneza ou na Documenta de Kassel se encontram performan-ces em vídeo, arte conceitual e instalações se con-frontando numa sinergia. Há uma convergên-cia. Se antes as coisas eram mais estanques, a contemporaneidade fez com que essas expressões interagissem em diálogos, interfaces, trocas. O cinema incorpora literatura,

Instalação e performance Série Rua do Futuro, de Kilian Glasner, 2008-2009 | foto: arquivo do artista

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pintura, dramaturgia, e o teatro incorpora o cinema. Há uma circularidade dos formatos e das ideias es-téticas”, argumenta o crítico, professor e doutor em cinema pela Universidade de Sorbonne – Paris 3 Ale-xandre Figueirôa. Na produção cinematográfica, por exemplo, é possível distinguir os autores que rom-peram as estruturas tradicionais. “F. W. Murnau, Luis Buñuel, Dziga Vertov, Jean Rouch, Sergei Eisenstein quebraram paradigmas. Aos poucos o fazer artístico passou a exigir um olhar mais atento e uma abertura por parte do espectador”, pontua Figueirôa.

Tal abertura é essencial para a apreciação da arte em todas as suas manifestações – cinema, literatura, tea-

tro, dança –, pois todas estão conectadas a uma no-ção de contemporâneo. “Desde que se entenda essa noção não como um estilo, mas como um modo de pensar, de organizar os pensamentos que ajudam a formular as proposições artísticas sobre o mundo”, salienta a pesquisadora e coordenadora do progra-ma de pós-graduação em dança da Universidade Fe-deral da Bahia Fabiana Dultra Britto. Ela defende que “as modificações históricas nos modos de pensar e produzir arte” advêm menos de “gênios iluminados” e mais de um “processo contínuo de contaminação

das ideias circulantes em cada contexto”. Pode-se, contudo, rastrear os artistas que catalisaram

“certo modo de pensamento artístico e pro-cedimento compositivo fortemente iden-

tificado com princípios lógicos con-temporâneos, como a não-li-

nearidade, o

acaso, a complexidade”. Na dança, Fabiana cita Merce Cunningham, Trisha Brown, Lucinda Childs, Steve Pax-ton, Jèrôme Bel e Meg Stuart, entre outros.

No cinema, o radicalismo de Jean-Luc Godard e a po-ética de Pier Paolo Pasolini, por exemplo, nem sem-pre agradam; e, no teatro, Samuel Beckett enfrentou resistência com sua visão ácida, da mesma maneira que existem detratores das encenações de Zé Celso Martinez Corrêa. “A suposta ‘dificuldade’ em ‘entender’ a arte contemporânea está em querer medi-la e jul-gá-la a partir de parâmetros que não reconhecem as suas especificidades. Como qualquer outro campo de expressão e de conhecimento humano, as artes

visuais possuem uma história que continuamente (re)constrói convenções sobre as quais operam. É pre-ciso pensar se faz realmente sentido a ideia de ‘enten-der’ a produção contemporânea em artes visuais, já que não cobramos um ‘entendimento’, por exemplo, da música que escutamos no rádio”, pondera Moacir dos Anjos.

A arte contemporânea, portanto, não deve ser enqua-drada em conceitos anacrônicos, e sim sentida como eco de um mundo voraz, múltiplo e vasto. Esse mundo é representado não pela verossimilhança, e sim pela liberdade. A produção atual se dirige a espectadores/fruidores/consumidores que acolhem a pluralidade e exercitam a generosidade no olhar, e oferece a quem se aproxima de uma pintura, uma instalação, um filme ou uma performance um caminho no qual os signifi-cados estão abertos e ainda em construção.

“É preciso pensar se faz sentido ‘entender’ as artes visuais, já que não cobramos um ‘entendimento’ da música que escutamos no rádio.” (Moacir dos Anjos)

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Considerações sobre arte contemporânea e instituiçõesTrês obras que mudaram a forma de ver e entender a arte brasileira atual.

Por Tadeu Chiarelli

Ao sair de algumas exposições em museus, galerias e bienais, muitas pessoas experimentam certo amargor relacionado à sensação de que não são cultas. A razão desse sentimento reside no fato de que muito daquilo que observaram não possui conexão com aquilo que, durante anos, foram ensinadas a entender como arte. Afinal, onde estão as pinturas e as esculturas que aprenderam a apreciar? Muitas vezes, inclusive, o amargor inicial é substituído por um sentimento de desprezo perante aquelas proposições “exóticas”, agora vistas como empulhações, não merecedoras de nenhuma atenção. Está aí a razão para que muitos deixem de frequentar exposições de arte contemporânea.

Essa situação é lastimosa porque muito da produção recente possui conexões com questões atuais que afli-gem a todos, de uma forma ou de outra. Aqui, portanto, a pergunta: por que esse divórcio entre a produção atual e o grande público?

Dentre as várias respostas possíveis, creio que existam duas que podem auxiliar a, pelo menos, adentrar no problema: a primeira diz respeito a uma mudança na arte, ocorrida no século passado; a outra se refere a como as instituições culturais negligenciam essa mudança, quase sempre apresentando duas concepções distintas de arte como se fossem a mesma.

***

Desde, sobretudo, o fim da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas deixaram em segundo plano a relação que se fazia entre arte e objeto estético concebido dentro de padrões estabelecidos (pintura, escultura etc.). Eles passaram a desenvolver propostas em que o artista não mais operava dentro da necessidade de produ-ção de objetos únicos e concebidos para realçar sua “genialidade” e competência, com base em parâmetros estabelecidos pela tradição (mesmo a moderna). A partir daquele período nota-se o avolumar de propostas em que o trabalho do artista, em vez de continuar circunscrito ao universo do “belo” (mesmo que esse último conceito já houvesse se expandido em suas significações), passa a operar em relação a outras demandas socioculturais. Tão ou mais importante do que seguir as preocupações inerentes às vertentes estéticas an-teriores, começa a surgir o imperativo de posicionar-se claramente em relação às diversas instâncias sociais, usando objetos e procedimentos que até então não faziam parte do universo artístico estabelecido.

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A partir desse paulatino abandono das estéticas tra-dicionais (e, por conseguinte, das modalidades já ci-tadas), surgirão inúmeras possibilidades de propostas, o que só aumentaria, é verdade, a sensação de não entendimento do público. Para diminuir esse fosso, talvez fosse necessário buscar os primeiros sinais des-sas transformações. Assim seria resgatada, mesmo que de forma breve, a passagem da produção artística de uma circunscrição a questões puramente estéticas para um campo de experiências em que o observador é chamado a participar não apenas com o olhar, mas com outras ferramentas de percepção.

Se tomarmos o caso brasileiro e, dentro dele, três ar-tistas, serão demarcados pontos notáveis dessa pas-sagem que ainda se processa. São eles Hélio Oiticica, Nelson Leirner e Cildo Meireles. Por mais distantes que aparentem ser – e o são –, Oiticica, com seus

Parangolés (fim da década de 1960), e Leirner, com seu O Porco (1966), propõem duas possibilidades para a arte, fora dos parâmetros das modalidades artísticas tradicionais.

Oiticica desenvolveu uma trajetória que, iniciada no âmbito da pintura, passou por questionamentos que problematizavam a separação entre os territórios da arte e da vida. Tradicionalmente, a arte ocupou duran-te longo tempo um lugar apartado da vida das pes-soas. A serviço do poder instituído, ela sempre se pre-tendeu pedagógica, exemplar e, portanto, afastada do cotidiano. Oiticica, voltado para a transformação des-se fato, rompe com os limites daqueles dois territórios e propõe que o espectador deixe seu estado passivo diante da obra de arte para tornar-se parte dela.

Inserções em Circuitos Ideológicos – 2. Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles, 1971 | foto: Romulo Fialdini/Itaú Cultural

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Os Parangolés (desenvolvimento de suas pesquisas no campo da cor no tempo e no espaço – uma questão pictórica, fundamentalmente) não foram concebidos para ser admirados a uma certa distância respeitosa (como hoje insistem os espaços em que são exibi-dos), mas para ser utilizados. Vestir uma obra e com ela caminhar e sambar é dessacralizar o objeto de

arte tradicional, transformando-o em uma proposição para a ampliação sensorial nos campos do espaço e do tempo reais.

Oiticica quebrou barreiras dentro do campo da arte e parte da produção que se desenvolveu após tal ex-periência é marcada pelo contínuo afastamento dos artistas das proposições convencionais.

Oposição entre natureza e cultura

Se Oiticica cravou uma fissura no entendimento tra-dicional que separava arte e vida, a contribuição de Leirner com O Porco determinou uma série de curtos-circuitos no sistema artístico estabelecido. É impor-tante lembrar um dado fundamental: a um porco em-palhado o artista originalmente agregara um pernil do animal defumado, preso a um engradado por uma corrente. Loucura do artista? Creio que não.

Proposta complexa, O Porco fazia uma referência inci-siva às transformações que a sociedade ocidental pas-sava. Numa operação que ainda guardava muito da noção de arte como representação do real (não apenas aparente), para Leirner o porco empalhado representa-va a natureza, e o pernil essa mesma natureza já instru-mentalizada pela cultura. Em um momento em que a sociedade brasileira passava por grave crise econômica e institucional (vivíamos o início da ditadura militar), são óbvias as possibilidades alegóricas de sua proposta.

É claro que Leirner poderia ter pintado uma tela repre-sentando a oposição entre natureza e cultura. Se assim o fizesse, no entanto, toda a gravidade do problema para o qual chamava atenção corria o risco de ver seu conteúdo reduzido devido às regras pictóricas que ele teria sido obrigado a obedecer. Juntando “simples-mente” um porco empalhado a um pernil, a proposta

do artista ficava clara: havia um circuito que unia aque-les dois objetos e que ninguém se dava conta. A trans-formação da natureza em cultura, do porco em pernil, estava calcada numa série de etapas, de exploração da natureza e, também, do trabalho humano.

Utilizando conceitos de representação (o porco em-palhado representando a natureza) e apresentação/representação (o pernil, como tal e como símbolo da cultura), O Porco, por si, já demonstrava ser outra importante contribuição para uma arte que estava surgindo, não mais preocupada em valorizar apenas o estético.

No entanto, o efeito O Porco não terminaria aí. Ao enviá-lo para o IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em 1967, o trabalho perdeu o pernil que dele fazia parte durante o trajeto São Paulo-Brasília. Mesmo assim, a obra mutilada participou da seleção e foi uma das escolhidas para integrar o salão, cujo júri era composto de alguns dos críticos mais respeitáveis do país.

Ao saber que o trabalho mutilado havia sido aceito no salão, Leirner, em carta aberta ao júri, indagou aos membros quais teriam sido os critérios utilizados para o aceite. Constrangi-do, o júri, por meio de artigos individuais, viu-se obrigado a responder ao ques-tionamento do artista.

Meireles apropria-se de objetos comuns (garrafas de Coca-Cola, notas de dinheiro), imprime neles palavras de ordem e os devolve ao circuito original.

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O sumiço do pernil não foi premeditado. No entan-to, é notável como Leirner, partindo de um irônico cuidado com a “integridade” da obra, ao interpelar o júri, na verdade, a entendia como um processo que ia além de sua materialidade, levando em conta a sua inserção no tecido cultural que a sustentava.

Se o envio do porco empalhado com o pernil pode ser entendido como uma crítica ao conceito de “be-las-artes” e ao processo de “naturalização” da explora-ção da natureza, a interpelação ao júri caía em cheio sobre os complexos critérios que envolvem o circuito de arte. Leirner, antes do episódio, já estava ciente do alto grau de arbitrariedade reinante no circuito ideo-lógico da arte (sua série Você Faz Parte testemunha a afirmação). Com o aceite do júri ele colocou a nu a si-

tuação, inaugurando uma prática artística mais tarde tornada comum: a crítica à instituição arte.

Palavras de ordem

O Porco e o episódio com o júri do Salão de Brasília antecipam ou anunciam, dez anos antes, uma das séries mais significativas da arte brasileira dos anos 1970: Inserções em Circuitos Ideológicos (1971), de Cil-do Meireles.

Ao entender que a ação do artista não deve ou não precisa mais ser canalizada para os meios artísticos

tradicionais, e conscientizar-se de que as pressões vividas pelo país no estado de exceção daque-

les anos faziam com que não se comportasse mais a produção de obras que, no limite,

seriam rapidamente institucionaliza-das, Meireles muda de estra-

tégia: apropria-se de objetos comuns, que integram diversos circuitos dentro da sociedade (garrafas de Coca-Cola, notas de dinheiro), imprime neles pala-vras de ordem e os devolve ao circuito original. Co-locados de novo em circulação, os objetos com as inscrições desnaturalizam o cotidiano dos cidadãos, tornando-os atentos para as sérias questões do mo-mento histórico em que viviam.

Tanto os Parangolés quanto O Porco e as “garrafas” de Meireles, quando expostos, funcionam mais como documentos de uma ação do que como objetos es-téticos “em si”. O público, ao encontrar esses objetos, muitas vezes sem nenhuma intermediação que dê conta de sua contextualização, tende, ao compará-los com outros trabalhos na mesma exposição (pinturas,

esculturas, desenhos etc.), a não entender a razão da presença deles naquele espaço. E isso porque, ao compará-los com base em parâmetros que se utilizam para decodificar as obras ao redor, eles não correspon-dem, não se entregam. Partindo do fato de que essas obras são exibidas como obras de arte tradicionais no meio de outras que de fato o são (e isso, a princípio, não desqualifica essas últimas), não é de se estranhar a razão de o público não as compreender.

A responsabilidade por esse não entendimento não está no artista ou no público e sim nas instituições artísticas que negligenciam os pressupostos dessas obras e as exibem com base em padrões definidos pelo lugar-comum que afirma: “Toda obra de arte fala por si”. Sabemos que essa é uma afirmação equivoca-da, que a obra de arte, seja ela uma pintura do Renas-cimento, seja uma escultura neoclássica, uma gravura de Goya etc., são complexos culturais que, para ser

Para Leirner, o porco empalhado representava a natureza e o pernil, essa mesma natureza já instrumentalizada pela cultura.

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absorvidos em sua integridade, necessitam de estudo e reflexão. Como as proposições de Oiticica, Leirner, Meireles e outros.

Negligenciar as diferenças entre formas distintas de expressão artística, não assumir efetivamente o papel de intermediador entre a proposição do artista e a ca-pacidade de intelecção do público é abdicar de um objetivo que toda instituição, sobretudo no Brasil, não poderia esquecer: o pedagógico.

Hoje em dia, percebe-se o crescimento do número de artistas que se distanciam das questões estéticas tradicionais, aprofundando-se em problemas mais co-nectados com a política, a antropologia e outras áreas. Isso não significa que antes os artistas não se preo-cupassem com essas questões. Seria ingênuo, por exemplo, pensar em Van Gogh ou Lasar Segall como apenas preocupados com as especificidades da pin-tura. O que ocorre hoje, no entanto, é que os artistas, para continuar a debater sobre as grandes questões culturais e políticas, tendem, como mencionado, a abandonar os meios convencionais, apropriando-se de procedimentos de construção e percepção desli-gados das vertentes estéticas tradicionais.

A essa tendência, no entanto, não corresponde uma nova postura das instituições que exibem arte. En-casteladas, na maioria das vezes, em uma compre-ensão elitista e equivocada do que deveria ser o papel da arte em uma sociedade como a brasileira, continuam a aprofundar o fosso entre o público e a produção contemporânea.

Somente com base em um modelo museológico e museográfico atento não apenas a essas novas pro-posições artísticas, mas sobretudo ao público que não as compreende, é que a situação poderá come-çar a mudar.

Tadeu Chiarelli é crítico de arte, curador e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Co-municações e Artes da Universidade de São Paulo.

Conheça mais sobre as obras citadas e a trajetória de seus criadores visitando a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, itaucultural.org.br/enciclopedias.

O Porco, de Nelson Leirner, 1966 | foto: Romulo Fialdini

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“A arte aponta aquilo que falta em você”Por Mariana Sgarioni | Fotos Cia de Foto

Como é possível classificar uma obra de arte? De que maneira essa obra se torna reconhe-cida? E, afinal de contas, o que pode ser chamado de arte? Por mais que estejam presentes em várias discussões sobre cultura, essas questões dificilmente são respondidas de forma objetiva. “Não espere uma resposta certeira e matemática”, brinca Paulo Sergio Duarte, curador da exposição Rumos Artes Visuais – Trilhas do Desejo, que apresenta, até maio, no Itaú Cultural, em São Paulo, os artistas premiados na edição 2008-2009 do programa.

Além de curador, Duarte é crítico, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Des-de 1973, vem se debruçando em leituras e estudos sobre a produção contemporânea. Na época estava radicado em Paris por causa do regime militar brasileiro e escreveu seu primeiro artigo sobre o artista Antonio Dias. A partir daí, publicou livros, deu aulas, e é hoje uma referência no que diz respeito à arte brasileira. Neste mês, lança seu livro, Arte Brasileira Contemporânea – Um Prelúdio (Silvia Roesler Edições de Arte e Plajap), que virá acompanhado de CD-ROM e DVD dirigido por Murilo Salles. “Resolvi explicar a arte para meus amigos engenheiros, advogados e médicos”, diverte-se este bem-humorado parai-bano que mora no Rio de Janeiro, referindo-se ao didatismo de sua obra. Com o mesmo bom humor e um caldeirão de referências históricas, Duarte pontua esta entrevista com observações como “a arte deve nos mobilizar, mostrar que somos incompletos, que nos falta alguma coisa. Isso sim é arte”.

entrevista

Curador independente, Duarte é coordenador do Rumos Artes Visuais

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O que é ser contemporâneo? Qual é o limite da modernidade?

Há fatores que indicam que certos limites foram al-cançados na modernidade. Do ponto de vista moral e ético, há o limite dado por dois fenômenos históricos marcantes: o holocausto e as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O holocausto porque nunca antes uma máquina do Estado havia sido colocada a serviço de uma ideologia que pretendia a pureza étni-ca e que sacrificou 6 milhões de pessoas. O outro limi-te (o das bombas) é dado quando os Estados Unidos, a maior democracia do mundo, a mais avançada es-trutura política e econômica, decidem matar dezenas de milhares de civis em poucos segundos para acabar com a Segunda Guerra. No campo da arte, a maturi-dade da modernidade se dá logo no início do século XX. Vemos três aspectos completamente diferentes. O primeiro é dado por um sujeito da razão. Ele atua na arte acreditando fortemente nas conquistas da ciên-cia e da técnica e pensa que isso pode resultar num universo mais harmonioso, numa vida melhor. Esse horizonte é marcado pelo movimento construtivista. Um segundo ponto é o sujeito da vontade, que criti-ca esse universo da razão, aponta para a sociedade e mostra que toda a ciência e a técnica não melhoraram

a vida. É uma forma de romantismo que se manifes-ta com muita clareza no predomínio dos valores da existência humana sobre os puramente racionais, e que é muito forte no expressionismo alemão. Essa li-nha é bastante clara em todo o século XX. Um terceiro aspecto, que tem grande força até hoje, é o sujeito da crítica radical da cultura. Ele aparece na Primeira Guerra, no dadaísmo, que se desdobra no surrealismo. Trata-se de uma clara negação de que os valores ra-cionais governam o ser humano. Para essa corrente, somos governados por forças interiores às quais não temos acesso. É o inconsciente, impregnado pela des-coberta freudiana. A questão trazida por Duchamp é tão importante que merece um capítulo à parte. Embora ele atue na crítica radical da cultura, também coloca problemas do ponto de vista cognitivo e até epistemológico da arte. Sua contribuição tem sido su-bestimada por diversos críticos, mas seu valor é o de colocar limites no que é arte, onde ela termina e onde começa o que não é arte. É preciso uma leitura mais detalhada de Duchamp do que essa que vem sendo feita hoje – colocam-se as conquistas desse artista de uma forma prosaica, quando não, leviana.

“[A tecnologia] não muda o que temos que exigir de uma obra de arte.”

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Como é possível estabelecer parâmetros de ava-liação para a arte?

Toda avaliação estética foi e vai ser um juízo de va-lor. Se assim é, ela será sempre de natureza subjeti-va. Não existem critérios objetivos, nem houve, nem nunca vai haver, para avaliar uma obra de arte, seja ela qual for. O que existem são consensos, que são es-

tabelecidos por uma coletividade que está de acordo com certos valores. Um exemplo: a Nona [sinfonia] de Beethoven. Pode-se tocar essa música no Japão, na África do Sul, no Marrocos, nos Estados Unidos ou no Brasil que sempre vai haver um consenso. Ou seja: grande quantidade de pessoas estará de acordo que aquela música tem valor, agrada, é importante. An-tes de escutar aquilo, a pessoa era uma. E, depois de escutar, ela virou outra, percebendo ou não essa mu-dança. O critério de avaliação é dado, também, pela experiência da arte. Não há outra forma de acesso à arte que não seja fluindo a sua experiência. Posso ter a experiência da queda de um corpo sem me jogar da janela. Mas não posso “fazer” a experiência de uma música, um poema, um romance, uma pintura, uma instalação sem ter fluido aquela experiência. A des-crição de um poema não é o poema. A fotografia de uma pintura não é a pintura. A escrita da pauta da música não é a música. Com base na experiência da arte se chega aos consensos. Grande quantidade de pessoas percebe que aquela experiência é importan-te, que determinada obra é melhor que outra. Existe a possibilidade de demonstrar isso como uma equa-ção matemática? Não. Mas temos valores históricos estabelecidos em padrões que dizem que uma

obra é melhor que outra. São critérios subjetivos armazenados numa experiência coletiva. Então,

para estabelecer que um trabalho artístico é melhor ou pior que outro, em primeiro lu-

gar é preciso ver a experiência coletiva de um consenso que se reúne

em torno de de-

terminadas obras. Essa experiência da arte só se faz pela repetição. Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. Quem lê um livro de poesia por ano e diz que gosta de poesia não entende desse gênero. Quem gosta de música e não a escuta todo dia por falta de tempo não tem a experiência da música. Pode até gostar, mas não tem a experiência. A repetição é fundamental. Os conceitos se formam

pela repetição da experiência. Portanto: não existe critério objetivo, mas existe a possibilidade de reunir consensos em torno de certas questões.

Como o senhor avalia o cenário da arte contem-porânea brasileira e como o país se insere no con-texto mundial?

A arte contemporânea tem uma história e é um pro-cesso que vem desde cinco décadas. A arte brasileira é uma das que têm mais vitalidade no mundo contem-porâneo. Ela tem o poder de compreender claramen-te o seu tempo. Isso se dá numa experiência radical de passagem da modernidade à contemporaneida-de, materializada na obra de dois artistas: Lygia Clark e Hélio Oiticica. Há outros desdobramentos positivos nos anos 1970, com obras de Antonio Dias, Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Tunga, José Resende e Carmela Gross. São configurações muito poderosas do mun-do presente. Isso veio alimentando as gerações mais jovens, sempre estimuladas por eles, que foram ela-borando suas próprias questões. O que dificulta uma maior clareza da força da arte contemporânea brasi-leira é o vazio institucional que o país vive. A produção contemporânea tem presença rarefeita nos principais museus do Brasil. Coisas estão acontecendo, como o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim (MG), mas ainda falta um peso, uma densidade. No contexto mundial, está começando a haver um reconhecimento, artistas brasileiros estão sendo citados em bibliografias internacionais do universo acadêmico. Hoje já existe um importante acervo brasileiro lá fora. A aquisição da

“Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. Pode gostar daquilo, mas não tem a experiência. A repetição é fundamental.”

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coleção Adolpho Leirner [pelo Museum of Fine Arts, Houston, Estados Unidos] é significativa, e um artista vivo e atuante como Cildo Meireles ter uma exposição retrospectiva na Tate Modern, Londres [encerrada em janeiro], é um reconhecimento da contribuição dessa arte contemporânea. Duas obras que estão entre as melhores de arte contemporânea que vi nos últimos tempos são de artistas brasileiros: a instalação de Tun-ga A Luz de Dois Mundos, no Louvre, Paris, em 2005, e Babel, de Meireles, na Tate. São obras que representam o melhor que existe em arte e política nos dias de hoje: não são panfletárias, são indiretas, com uma crítica contundente à situação do mundo atual.

É possível identificar alguma particularidade da arte contemporânea brasileira no plano global?

Tenho certa dificuldade de indicar traços tipicamente brasileiros na arte mais atual. Existe até um esforço, há gente rastreando isso. Uma das recentes teorias seria a da improvisação, a capacidade de improvisar. Mas isso não é bem brasileiro, é de todo o terceiro mundo. Ocorre em todo lugar, não é uma exclusividade nossa. A “arte da gambiarra”, como se diz, é apontada como uma característica nacional. Eu não acho. Os grandes artistas brasileiros, aliás, não se caracterizam por essa improvisação. Há muito cálculo, estudo. Creio que é brasileiro porque é feito aqui, só por isso.

Qual o caminho que essa arte aponta?

Não tenho capacidade para apontar nenhum ho-rizonte. Mas acredito que haja alguns fenômenos

negativos, entre eles a questão do mercado. Quando a arte se torna uma commodity, ela

é exemplo da mercadoria por excelência, passa a se constituir como um atrati-

vo diferente do que era antes, quando era

somente uma produção de conhecimento que não se podia ter por meio da ciência nem da religião. Quando passa a ser um símbolo de vigor e poder de um tipo de sociedade, ela vira a mercadoria maior. Em segundo lu-gar, há uma entrada muito forte do universo da arte na indústria do lazer e do entretenimento, coisa que não existia antes. Os museus não eram projetados como são agora: a Tate Modern esperava no primeiro ano de funcionamentos 1 milhão de visitantes. Teve 5 milhões. Quando se chega a esses números, evidentemente a arte passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Isso traz coisas muito positivas e muito negativas. Uma das positivas é a dessacralização: vai-se a uma ex-

posição como quem liga o rádio em casa. O lado nega-tivo é que essa massificação não implica a realização da experiência da arte, que falei anteriormente. O fato de passar em frente da Mona Lisa não quer dizer que você a viu. É preciso uma retomada da arte como um co-nhecimento que só ela pode nos dar. Não sei onde vai dar isso. Sinto-me tão perdido quanto qualquer leigo diante do horizonte contemporâneo do mundo.

Mas existem tendências...

Sim, claro. O que vemos agora, por exemplo, é o im-pério da imagem. Seja fixa ou em movimento. Daí o peso enorme da fotografia e do vídeo na arte con-temporânea. São veículos imagéticos que a pessoa olha e se identifica imediatamente. Esse império herdado do mundo da publicidade, da indústria da comunicação, é uma tendência evidente. Outra coi-sa que é muito clara é a vocação para o espetáculo, para o espetacular. Não há como deixar de ver certas coisas. O artista cria uma escultura de 15 metros de altura, o público se mobiliza para vê-la, lógico. Uma queda-d’água numa cabaninha, que se tem de olhar através de um orifício, é uma coisa. Mas uma cacho-eira inteira no Rio Hudson, que custou 20 milhões de dólares, faz com que seja inevitável que vejam aqui-

“A capacidade de improvisar não é bem brasileira, é de todo o terceiro mundo. Os grandes artistas nacionais não se caracterizam por essa improvisação.”

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lo, vai chamar atenção. Há, ainda, uma inteligência cromática característica. O Brasil é herdeiro de uma tradição recente, mas muito rica, materializada nas obras de Volpi, uma grande inteligência cromática. As paletas de hoje são mais decididas, cores que va-cilam menos. Em compensação, perdem em sutile-zas e nuances. São cores afirmativas, vêm da experi-ência cotidiana, do monitor da televisão, do outdoor publicitário. Isso gera outra percepção.

E a tecnologia, também não é uma tendência?

É inevitável que um garoto formado no universo di-gital, que jogue videogame diariamente, ao se tornar artista, transporte essa experiência perceptiva para a obra. São experiências acústicas, sonoras e visuais que

ele teve na infância. Isso não muda em nada o que te-mos que exigir de uma obra de arte: de que maneira aquele objeto altera a minha experiência depois que eu o experimento. O que aquilo me mobiliza, o que anuncia, o que me falta. Muitas vezes o papel da obra de arte é apontar algo que falta em mim mesmo. A obra não vai me preencher, mas apontar que não estou completo, pois sequer eu imaginava que essa experiência seria possível. Ou seja, não sou comple-to como pensava que era. Estou cheio de vazios e a obra está lá para mostrá-los. A graça da arte é apontar para nossas incompletudes e isso in-depende do meio: pode ser uma estátua de mármore grega ou um jogo de videoga-me. Se tiver força poética, a obra vai permitir essa experiência.

“O que dificulta a clareza da força da arte contemporânea brasileira é o vazio institucional que o país vive.”

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Os sentidos e as palavras da contemporaneidadeNa Continuum On-Line (www.itaucultural.org.br/continuum), você encontra matérias exclusivas, fotos, vídeos e dicas de links sobre o assunto tratado em cada edição. Os leitores também podem participar, escrevendo textos (artigos, contos, poemas, crônicas etc.) e enviando fotografias, ilustrações e outros trabalhos artísticos por meio do canal Leitor-Autor. Assim, a discussão iniciada na revista impressa continua na rede. Participe!

***“A expressão é muito precária, não resiste a uma análise.” “Um conceito-arte que usamos vagamente para sinalizar que nas produções atuais vemos algo de arte.” “Ela fica no meio-fio entre o que é permitido e o que é possível e quem são os executores práticos dessas idéias.” A pergunta “O que é arte contemporânea?”, pro-posta a profissionais de diversas áreas, gerou respostas bastante distintas. Confira o que disseram o ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, a doutora em filosofia Márcia Tiburi e a artista Sônia Alves Dias, entre outros, na Continuum On-Line. Aproveite e responda você também à enquete!

on-line

ilustração Ricardo Cammarota

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Instalação, happening, performance, site-specific. A arte contemporânea criou palavras e deu novo sentido a outras. Entendê-las é compreender esse movimento e suas mais variadas vertentes. O crítico, curador e pesqui-sador Guy Amado destrincha alguns desses termos no primeiro Glossário da Continuum On-Line, que trará, além do significado de palavras relacionadas ao tema da edição, indicações no meio virtual é fora dele.

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Uma criança na corda bamba equilibra-se entre a discussão de seus pais. Um halterofilista executa sua rotina de força elevando um imenso cartão de crédito. Pouco realista? Essas são imagens criadas pelo grupo chileno Colectivo Artístico La Patogallina. Já a Compañía Teatrocinema, outro grupo local, tenta transcender o mero uso de recursos da tela nos palcos para fundir as duas artes em uma só. Conheça, em reportagem realizada na capital Santiago, um pouco da criação teatral contemporânea do país.

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Acesse a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, lançada em 2001, que conta com mais de 3 mil verbetes e 12 mil imagens e apresenta biografias e depoimentos de artistas, imagens de obras, dados sobre instituições e análises sobre eventos, movimentos e grupos. Há também definições de termos e conceitos empregados no universo das artes visuais.

Espetáculo Sin Sangre, da chilena Compañía Teatrocinema, em março no Brasil | foto: divulgação

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convocação

Você também pode ser autorSuas ideias têm espaço reservado nas páginas da revista. Fique de olho nos temas dos próximos meses e envie reportagens, artigos ou obras artísticas (contos, poemas, fotos, ilustrações, vídeos etc.) para o e-mail [email protected]. Confira as regras do jogo em itaucultural.org.br/continuum. Fique atento, o tema do próximo mês é Língua. Mande seus trabalhos.

Sua história daria um filme? Com essa pergunta, a Continuum de novembro convidou seus leitores a narrar situações reais que renderiam bons enredos ou cenas de cinema. Foram enviados 224 relatos e o escolhido foi Amor, Substantivo Feminino, de Jesuane Salvador, de Poços de Caldas, Minas Gerais. Leia a história:

Amor, substantivo feminino

Mariana ouvia Nana Caymmi, a voz que tornava tudo justificável. E, então, Canção da Manhã Feliz misturou-se a vozes femininas e, olhando sobre os ombros, ela avistou as outras mulheres que chegavam e tomavam seus lugares no fim da fila. Tapou o sol com as mãos sobre os olhos e, enxugando o suor da testa, pensou: “Já deve passar das 14”.

Desde as 11 ela esperava os portões se abrirem e, apesar da fome, não tocou na sacola de comida que levava para Daniel.

“Abre isso logo, gente! Pelo amor de Deus! Ô, desgraça!” – ouviu a mulher muito magra, de blusa de alças frouxas que deixava à mostra uma tatuagem malfeita, gritar com um cigarro preso no canto da boca.

Nana cantava agora No Analices e Mariana voltou os olhos para a frente, no portão, onde os policiais gri-tavam os números: 26, 27 e 28. Mais três mulheres entraram para a revista. No papel amassado entre seus dedos, 44. Ainda demoraria mais de meia hora.

Mariana sentou-se no meio-fio e refez, em pensamentos, o trajeto que em alguns minutos enfrentaria. Pro-vavelmente entraria com a velha à sua frente e a mocinha que, logo atrás dela, lia baixinho trechos da Bíblia. Visualizou por um segundo a cena tórrida e silenciosa − três mulheres que caminhariam de cabeça baixa pelos corredores da carceragem enquanto portões bateriam, em som grave, atrás delas.

Elas entregariam as vasilhas com comida aos policiais, que esmigalhariam pães e, com uma colher, remexe-riam com força as panelas transformando a comida em uma pasta homogênea.

Mariana, a velha e a jovem moça que rezava seguiriam, então, para a sala da revista. Entregariam, em gestos sonâmbulos, toda a roupa, sutiãs e calcinhas. Nuas, agachariam três vezes sem se entreolhar e, por recom-pensa, poderiam seguir para as celas e abraçar filhos, maridos, amásios e irmãos.

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Um relâmpago chamou Mariana à realidade, anunciando uma chuva de verão. Todas as mulheres correram para perto do muro para evitar os pingos grossos que já começavam a cair e uma delas passou à frente e conseguiu entrar sem ter que ficar na fila.

Enfurecida, Mariana correu para o portão: “O que é isso, por que ela entrou? Ela chegou muito depois de mim”, disse com a voz trêmula pelo cansaço.

“Como é que é? Tá com pressa? Vai agora para o fim da fila”, mandou o policial. Mariana sabia perfeitamente o que aconteceria se respondesse a ele o que realmente desejava e seguiu resignada para o fim da fila en-quanto gotas grossas lhe lavavam de novo o cabelo.

Nana então cantava Meu Silêncio. ***

Agora, começa a segunda etapa da ação História de Cinema. Com uma filmadora, um celular, um software de animação ou qualquer outro dispositivo, interprete “cinematograficamente” a história contada pela leito-ra. Os melhores trabalhos serão publicados na edição on-line da revista e seus autores ganharão o livro En-saios e Reflexões e os catálogos da exposição Cinema Sim e da mostra O Visível e o Invisível. O autor do melhor vídeo também será premiado com uma bolsa em uma oficina de adaptação na Academia Internacional de Cinema (www.aicinema.com.br). Os vídeos podem ser enviados ao e-mail [email protected] ou ao endereço Avenida Paulista, 149, 5º andar, CEP 01311-000, São Paulo até 31 de março de 2009 e devem ter, no máximo, cinco minutos de duração.

Confira o regulamento em itaucultural.org.br/continnum.

ilustração João Pinheiro

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As ideias, os versos, os traços, a arte dos leitores têm espaço reservado nas páginas impressas e virtuais da Continuum Itaú Cultural. Tendo como base o tema da edição, produza textos reflexivos ou trabalhos artísticos (fotografias, ilustrações, contos, poemas etc.) e mande para nós. Confira, a seguir, como os leitores/criadores Frederico Ponzio, Laerth Motta, Lúcio Carvalho, Marce-lo Moscheta e Renato Izabela veem – ou tra-duzem com imagens – a arte contemporânea.

Os demais trabalhos – adequados à temática da edição – podem ser conferidos na versão on-line da revista (www.itaucultural.org.br/continnum).

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Comunicar É Preciso, de Frederico Ponzio

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Boom, de Lúcio CarvalhoComunicar É Preciso, de Frederico Ponzio

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A arte, tal como a conhecemos hoje, poderá morrer? E o que a substituirá? O debate sobre a arte na pós-modernidade é marcado por proposições como essas. Convidados a responder a esse questionamento, o coordenador da área de Comunicação e Ciências da Informação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Norval Baitello Júnior, e a crítica de artes visuais e curadora independente Angélica de Moraes expõem seus pontos de vista – antagônicos, porém complementares.

A arte está morta!Por Norval Baitello Júnior

Nas ciências da cultura aprendemos sempre a temer não a morte, mas o seu conceito, e que ela é o princípio e o fim da própria cultura: foi o que disseram Theodosius Dobzhanski, Edgar Morin, Ivan Bystrina. Dizer que a arte está morta é dizer que ela mudou de status, passou para outro nível. No mundo da cultura a morte não é fim de linha. Ao contrário, é aí que entram em jogo as tramas da memória, uma nova vida por si só. Também entram em cena as criaturas da noosfera, aquelas que nós criamos para que elas nos criassem. São seres de fantasia, mas com onipotência e independência em relação aos de carne e osso. Pode parecer um paradoxo, e só não o é porque os humanos também passaram a viver na noosfera que criaram.

Nada mais pode ser obstáculo para reconhecer que a arte já morreu, e muitas mortes. Georg Hegel e outros já o disseram de distintas formas. Walter Benjamin dá as pistas para uma nova morte. A reprodutibilidade técnica introduz o valor de exposição (em substituição ao de culto). Tal valor não sobrevive se não for alimentado por apelo e repetição. Para manter a exposição há que se adequar aos mecanismos da insistente repetição. Há que se fazer concessões ao tempo breve e à vida na superfície. Pois é esse o reinado da mídia. Aby Warburg, antes mesmo de Benjamin, já estava atento para a importância da imagem midiática (ao estudar o selo postal e as ilustrações de jornais e revistas). Ao render-se à mídia, a arte anuncia no século XX sua própria morte. O que surge depois? Ora, reverberações, imagens alimentadas pelos arautos da reprodutibilidade, ou seja, pela “mídia”. O uso da imagem permanece intocado, apenas se transfere de um universo a outro.

Se um dia a imagem serviu ao sagrado e ao divino, com a função de transcender (durante uma ampla época de produção que hoje indevidamente se chama de arte), emergiu depois um novo uso da imagem, imanente, estético, adequadamente conhecido como era da arte. Hoje vivemos uma nova transcendência nas imagens da mídia, que nos querem transportar a viagens múltiplas fora de nosso tempo, espaço e corpo. Tal nova transcendência continua sendo chamada arte, mas indevidamente, pois se a olhamos com mais cuidado veremos que seus fins e suas metas se encontram numa divindade difusa, onipresente e de imenso poder chamada mercado. Morreu ou não morreu a arte? Claro que sim! Vivam os seus fantasmas que sobrevivem animando a mídia!

arena

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A eterna obsessãoPor Angélica de Moraes

Como resultado da compulsão fin de siècle de balanço, no apagar das luzes do século XX frutificaram teorias de fim dos tempos. Nas artes visuais, o cavaleiro do apocalipse seria o filósofo e crítico de arte norte-americano Arthur Danto e sua tese sobre o fim da arte. Se a Brillo Box (1964), de Andy Warhol, é arte, observou ele, qualquer coisa pode ser. Porque nada a diferencia das caixas comuns de detergente. Assim, não haveria nenhum modo especial de ser da obra de arte. Mas é bom atentar para o desdobramento dessa tese, que coloca as coisas em seus devidos lugares.

Em Após o Fim da Arte: Arte Contemporânea e os Limites da História (Edusp, 2006), Danto esclarece que o fim da arte consiste na tomada de consciência de sua verdadeira natureza filosófica. Ao invés de cancelar a validade do exercício da arte, ele a amplia e distende para abranger um campo ainda mais vasto.

Em entrevista1, Danto frisa que “vivemos uma liberdade inédita, transitamos indefinidamente pela memória da arte, embora prisioneiros do presente”. Com tamanho repertório de signos, a arte contemporânea pode abranger espectro jamais exercitado. Se somarmos a isso os recursos de expressão e circulação trazidos pelos meios eletrônicos e a imagem digital, estamos longe de precisar assumir atitudes soturnas ou crepusculares ao falarmos de arte.

Em posfácio à edição brasileira de Após o Fim da Arte, Virginia Aita expõe o cerne da questão: “O ‘fim da arte em Danto não significa a morte da arte mas o fim das restrições históricas à criação artística e mais especificamente o fim de uma era da arte: a era da estética’ ”.

Essa tese de Danto (Bollin Series, Princeton University Press, 1997) amplia o campo de atuação da crítica de arte, frisando seu papel de crítica da produção simbólica. Porque toda obra de arte está imersa na rede de signos vigentes em sua época. Daí decorre que nem toda arte pode ser arte o tempo todo. Há arte que não ultrapassa sua época porque os elementos para analisá-la não conseguem nos alcançar na atualidade. Isso não significa que não tenha sido arte, e sim que não temos as ferramentas para identificá-la atualmente como arte.

Quanto do que está sendo produzido irá sobreviver ao nosso tempo? Isso jamais saberemos. Mas é fato que, se há crise na análise da arte, não há crise na criação artística. A arte do século XXI vai muito bem. A paradoxal eternidade da arte está exatamente em sua natureza mutável. Ela não morreu nem jamais vai morrer enquanto existir a humanidade e essa fatia que a redime: os artistas.

1. portal.filosofia.pro.br/fotos/File/arthur_danto_entrevista.pdf

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A invasãoFotos Luana Fischer [www.luanafischer.com] Produção Fernando Cachaldora Teixeira

O público, ao visitar uma exposição de arte contemporânea, está, de uma forma ou de outra, preparado para o que o espera no museu ou na galeria. Mas qual é a reação das pessoas quando é a obra de arte que resolve fazer uma “visita” a suas casas? Indivíduos de diferentes idades, classes e profissões têm suas reações flagradas ao se deparar com uma obra de arte contemporânea.

fotorreportagem

Arthur Bispo do Rosário invade Luciana

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Bill Viola invade Carlinhos

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Santiago Sierra invade Tristan

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Joseph Beuys invade Miche e Sabin

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Pina Bausch invade Lola

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Theo Jansen invade Julia e Gabriela

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Beatriz Milhazes invade Jime

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John Cage invade David

Veja mais imagens de A Invasão na Continuum On-Line

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Distância e explicaçãoO trabalho de Rocha Lange, jovem artista brasileira que vem ganhando admiradores e detratores pelo mundo.

Por Paulo Scott | Foto Cia de Foto

No vídeo, a primeira coisa notável foi o pé-direito absurdo do galpão, na verdade uma torre de quatro pare-

des, algo próximo a nove andares, elevando-se do piso plano de cimento queimado de 1.300 metros qua-

drados, é o que informa a homepage do projeto, até o forro, onde há 26 holofotes de estádio de futebol e

também os braços articulados de três guindastes que completam um conjunto de sete com os outros mais

pesados apoiados no chão. Uma estrutura única, dispendiosa e possivelmente capaz de levar ao limite o

significado do termo excentricidade, principalmente por ter sido concebida apenas para ser utilizada na

obra Redução e Queda, nome do projeto recém-concluído por Rocha Lange, esta artista brasileira de 24 anos

que vem acumulando admiradores no mundo todo. Em sua nova experiência, ela decidiu interagir com a

sua obra. Sem dar importância às restrições físicas impostas por sua paraplegia, submete-se a uma arquite-

tura exótica e cheia de interfaces que ganha dinâmica no momento em que a artista é presa a um molde de

poliéster rígido ligado aos cabos de quatro guindastes, recebe pequenos eletrodos que são conectados à

sua cabeça e em seguida é hipnotizada para que (sem perder o discernimento por completo) fique emocio-

nalmente suscetível ao depoimento da modelo-dançarina de um programa da TV aberta que, não coinci-

dentemente, tem sua idade. Por meio de um par de fones de ouvido, a artista escuta a modelo narrando

ficção

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Participe com suas ideias 43

aleatoriamente fatos acontecidos no seu dia anterior.

Os eletrodos ficam ligados a um computador que en-

via as ondas cerebrais para ser interpretadas por um

programa que, segundo seu criador, o professor Reck

Miranda, aprende sozinho e jamais repete os coman-

dos repassados aos sete guindastes. Só depois de es-

sas coisas todas serem postas em ordem, entra um

único observador, que será preso aos guindastes res-

tantes (igualmente controlados pelo computador), a

quem se destina a tarefa de filmar a movimentação da

artista pelos meridianos e latitudes do galpão. A filma-

gem dura 11 minutos ininterruptos; e, enquanto ocor-

re, só a artista e o observador com a câmera ficam no

interior do prédio (o ocorrido será o que ficar registra-

do pela câmera). Para acentuar as idiossincrasias do

projeto, há trilhas sonoras compostas na hora por um

segundo computador, também programado por Reck

Miranda, que, se opondo às soluções da outra máqui-

na, edita a trilha única; e há, com o mesmo destaque,

essa mórbida seleção do observador dentre pessoas

com 24 anos que estejam desenganadas por diagnós-

tico médico conclusivo. Admito que tenho uma parti-

cular dificuldade com esse detalhe. Sei que estou lon-

ge de estabelecer um diálogo pleno e cheio de empa-

tia instantânea com alguém quase 15 anos mais nova

que eu, sei que, no fundo, minha intenção é descobrir

o que de consistente há por trás de tanta badalação,

testá-la para saber se, como diz um de seus detratores,

cujo nome prefiro ocultar, não passa de um clássico

“muito barulho por nada”. Depois que liguei para sua

agente, tive de esperar três semanas até receber um

retorno, isso foi às vésperas do Natal, e acertarmos

uma conver-

sa de uma hora e meia

que, para minha surpresa, não

aconteceria em São Paulo, mas no Rio de

Janeiro, na primeira semana de fevereiro em

um restaurante da Rua Dias Ferreira, uma das

mais badaladas do Leblon. A escolha do local não

me pareceu nada compatível com a mística que se

criara em torno do seu nome, da sua pose introspec-

tiva, da sua dicção e linguagem extremamente corre-

tas (beirando a afetação), porém foi suficiente para

me deixar ainda mais instigado. No dia em que com-

binamos, cheguei vinte minutos antes ao tal restau-

rante, que estava mal iluminado e sem freguês à

mesa. Tive tempo de pedir uma limonada suíça e me

refrescar. O calor, impregnado de uma umidade sufo-

cante, estava além do aceitável. Nas poucas vezes em

que choveu, foi precipitação rala que sequer serviu

para refrescar, eram gotas mornas que mais pareciam

respingos de chá, água de chimarrão. Rocha Lange

chegou pontualmente às 4 da tarde, toda sorridente,

sem perder, contudo, o ar formal que a faz parecer

pelo menos cinco anos mais velha. Veio na minha di-

reção dirigindo sua cadeira de rodas elétrica e, como

se tivesse lido meus pensamentos, pedindo descul-

pas por ter escolhido logo um restaurante para nossa

entrevista. Fez questão de esclarecer que ali era um

dos raros espaços no Leblon onde existe rampa de

acesso para cadeirantes. “Uma vez balneário, sempre

balneário”, foi a expressão que usou para rotular a ci-

dade onde nascera. Sem aguardar manifestação da

minha parte, adiantou-se dizendo que tirou 15 dias

“Arte contemporânea é um ambiente não primordialmente destinado à excelência ou à genialidade, e sim ao experimento, à criação de linguagens.”

Page 44: Continuum 19 - O que é isto?

44 Continuum Itaú Cultural

para descansar, que seu médico a alertara com vee-

mência sobre a possibilidade real de chegar a uma

estafa. Contou que se instalara no apartamento que

fôra dos seus avós, imóvel que a família resolveu

manter por razões afetivas. Aproveitei o ensejo, per-

guntei se o boato de que desmaiara duas vezes du-

rante a montagem da instalação Número Telescópico

Não Próprio tem algo de verídico. Sem confirmar dire-

tamente, disse que costuma se agarrar à própria in-

tuição, que isso lhe provoca uma espécie de ânsia

pelo resultado final, não que isso tenha qualquer rela-

ção com a interpretação que fazem dos seus traba-

lhos. “Compreendo que seja plausível a crítica ter le-

vado um tempo para assimilar os rumos do meu pro-

jeto artístico.” Inquietou-me seu tom professoral. “Sei

que, à primeira vista, não é nada fácil deixar de alinhar

meu trabalho a eventuais charlatanices artísticas.

Mas, sinceramente, apesar de intuitiva, afinal sou uma

brasileira [risos], procuro não embarcar no que o ve-

lho e bom Hans-Georg Gadamer chamou de a ingê-

nua autoestima da atualidade.” Naquele momento

percebi que poderia deixar o gravador ligado e ape-

nas deixá-la falar. “Ir ao extremo das faculdades

mentais para criar este negócio que venho cha-

mando de experiências terrenas de céu, a

partir da crença de que é preciso refun-

dar, reformular o mito do céu, não

deixa de ser um redu-

cionismo prático semelhante, pelo menos na preten-

são [risos], ao praticado pelos renascentistas. Investi-

gar em função de um processo de crítica, de autocríti-

ca, é provocar, precipitar, emparedar novos elementos

para a reflexão. Tenho consciência de que isso tudo

fica ainda mais estrambótico quando agrego à minha

obra a experiência de um pesquisador importante,

como é o caso do Reck Miranda, e torno a manifesta-

ção cibernética um componente essencial do traba-

lho.” O propósito da máquina, nesse trabalho de mani-

pulação completa de uma pessoa por outra, deixada à

percepção e à sorte de uma terceira que conduz a

captura visual, ela explicou, é fracionar o livre-arbítrio,

a racionalidade e as conveniências que orientam o

principal agente/paciente da instalação, no caso ela

mesma, na medida em que conjuga resgate narrativo

e propensão criativa. Pergunto se os seus trabalhos

podem ser rotulados como arte contemporânea. Ela

dá uma olhada no seu relógio de pulso (deixa bem

claro que está controlando o tempo de nossa entre-

vista) e diz, com sisudez acadêmica de quem concluiu

o doutorado tão cedo: “Arte contemporânea é um es-

pectro imenso de manifestações e impulsos sem ava-

lista, um ambiente não primordialmente destinado à

excelência ou à genialidade, e sim ao experimento, à

criação de linguagens”. Dá uma pausa longa e me olha

de um jeito quase inverossímil, como se quisesse me

esganar, como aqueles professores mais exacerbados

“Jogar-me admitindo alguma coerência nos argumentos que expõem a repulsa em relação ao que faço é a forma que encontrei de caminhar em direção à originalidade.”

Page 45: Continuum 19 - O que é isto?

Participe com suas ideias 45

fazem com os alunos menos preparados nas aulas da

graduação. Então, fica em silêncio e, depois de outra

pausa longa, procura o garçom com os olhos e pede

uma água de coco gelada. “Peço uma pra você?”, diz

com elegância barroca, sugerindo que talvez eu te-

nha esquecido algo. Limito-me a dizer que gostaria de

um suco de laranja. O garçom anota os pedidos e sai.

Fico sem saber o que dizer a seguir, talvez porque pre-

fira mesmo aguardá-la. E ela não me decepciona. “O

novo sempre chama muita atenção”, diz, reflexiva,

“acho que este é o momento de brincar com a intui-

ção coletiva, com o seu imediato, como nunca se con-

seguiu fazer antes na história do Ocidente por razões

tecnológicas óbvias”. Termina de falar e fica me olhan-

do, com um sorriso petulante no rosto. É quando per-

cebo que em sua cadeira motorizada há duas micro-

câmeras, uma de cada lado (e talvez haja microfones).

Ela percebe que finalmente descobri sua pequena

provocação, mas não diz nada, talvez esperando que

eu a interpele ou diga algo a respeito. Não digo. O gar-

çom traz as bebidas. “Você já se deixou hipnotizar,

Paulo Scott?”, pergunta, recebendo o coco, envolto

em um pano que parece linho, das mãos do atenden-

te e se esforçando para segurá-lo com capricho, como

se pesasse mais de 20 quilos. Acho que a surpreendi

quando disse que sim, expliquei que no começo da

adolescência fiz terapia tentando curar a gagueira

que me assalta, embora em proporção muitíssimo

menor, até hoje. Então ela me perguntou se não me

incomoda a superexcitação de nosso tempo, essa

pressa de entretenimento capaz de dar importância a

uma deficiente física obsessiva como ela. Retruco que

é o seu público quem pode de fato responder a essa

pergunta. “Quer saber de uma coisa, daqui a um tem-

po editarei os vídeos em uma peça de 22 minutos e

me sentarei para uma sessão solitária, que se repetirá

até eu saber a medida das ligações que foram estabe-

lecidas. Essa re-

leitura, acho que prefiro

chamar assim, será o primeiro passo

para o novo trabalho, cuja exposição acon-

tecerá em papel digital cobrindo paredes e 11

modelos em desfile... Bem, não quero me empol-

gar”, e prossegue, “jogar-me sem ser presunçosa e,

pelo contrário, admitindo a presença de alguma co-

erência nos argumentos que expõem a repulsa em

relação ao que faço é a forma que encontrei de cami-

nhar em direção à originalidade. Quando fiquei para-

plégica, minha família sugeriu que eu me submetes-

se a sessões de hipnose para ajudar na superação do

trauma da imobilidade, que, naqueles meses seguin-

tes ao acidente, acreditavam ser psicológica. O des-

prezo que tive pela ideia foi tão grande que, anos

depois, passei a querer entender a rejeição em si”.

Noto um tom de preleção de auditório lotado na sua

fala, reparo que já não sou o seu interlocutor, talvez

sejam os críticos que a atacam, talvez seja ela própria

tentando se convencer de que sabe aonde exata-

mente quer chegar e não pode dispensar a austerida-

de. Então me sorri com a beleza natural que deveria

ser o status de qualquer pessoa com 24 anos; e aceito

a oportunidade de intervalo, e ficamos ali, enquanto

ela me filma e eu a deixo na estranheza a qual se ha-

bituara e que, espero, sua obra tão promissora con-

siga um dia explicar.

Paulo Scott é escritor, autor do romance Voláteis

(Objetiva, 2005). Mantém o blog Habitante Irreal:

www.pauloscott.wordpress.com

Page 46: Continuum 19 - O que é isto?

46 Continuum Itaú Cultural

Prazeres contemporâneosVeja dicas de obras que fazem pensar de forma atual.

INTERNET

Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro (www.itaucultural.org.br/enciclopedias)Criação coletiva, teatro de grupo, teatro do oprimido, teatro universitário. Esses e outros conceitos e marcos da produção cênica moderna e contemporânea brasileira estão na Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro, dis-ponível no site do instituto. Lançada em 2004, a obra de referência traz 800 verbetes, divididos em Personali-dades; Companhias e Grupos; e Espetáculos, e tem como recorte as criações realizadas em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em Porto Alegre e no Recife. Além das informações organizadas em verbetes, ordenados alfabeticamente, a Enciclopédia possibilita a consulta a dados resumidos sobre aproximadamen-te 15 mil personalidades e cerca de 8 mil espetáculos que integram as bases de dados do Itaú Cultural.

ARTES CÊNICAS

Coletivo As RutesPor meio de contações de história, performances com clowns e outras facetas, o grupo de artistas realiza in-tervenções urbanas que procuram discutir as relações estabelecidas entre os homens e o espaço da cidade. Exemplos curiosos dessa relação podem ser conferidos na instalação O Diário Aberto do Viajante, de 2008, em que, entre outras ações, o coletivo divulga o valor de princípios éticos e morais diante da bolsa de valo-res. Criado em 2007 pela dupla Bê Carvalho e Cristiana Ceschi, o As Rutes desenvolve trabalhos em diversas cidades do mundo, demonstrando o potencial de qualquer centro urbano para construir as mais instigantes histórias provenientes da banalidade do dia a dia. Para conferir as intervenções e saber mais sobre o coletivo, acesse www.coletivoasrutes.blogspot.com.

balaio

Ação Caça-Fantasma – Coleta de Histórias de Assombração, de As Rutes, no Parque da Luz, São Paulo, 2008 | foto: divulgação

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Participe com suas ideias 47

MÚSICA

The Noise Made by People, de Broadcast (Warp, 2000)Há quem acredite que toda produção artística atual não passa de mera releitura do que já foi feito. Sendo assim, o álbum de estreia deste quarteto britânico, formado há 12 anos em Birmingham, é a prova de que a inovação ainda é possível mesmo com um olho no passado. Misturando o que há de melhor do psicodelis-mo dos anos 1960 (o grupo, inclusive, utiliza instrumentos dessa década) e do experimentalismo da música eletrônica atual, a banda apresenta canções ora radiantes ora soturnas. O clima retrô-futurista toma conta de canções como Papercuts e Come On Let’s Go, demonstrando que, apesar do tom nostálgico, o trabalho do Broadcast é uma boa definição de contemporâneo.

Composição Interativa, de Cristiano Figo (Trama, 2005)Músico de formação acadêmica, Cristiano Severo Figueiró, ou simplesmente Cristiano Figo, produziu quatro músicas eletroacústicas para seu trabalho de mestrado, na Universidade Federal de Goiás, lançadas pela gra-vadora Trama. Fruto de uma pesquisa de dois anos, as canções englobam texto, som e software, resultando em uma mistura sonora computadorizada com o toque de alguns instrumentos familiares, como violão, cla-rinete e marimba. Da interação homem-máquina e máquina-máquina, surgem algumas sonoridades pecu-liares como as das músicas Pequi e Caminho Largo, Caminho Estreito, essa última criada por meio do Csound, programa que sintetiza sons. Composição Interativa pode ser baixada gratuitamente em www.tramavirtual.com.br.

CINEMA

Eraserhead, de David Lynch (Estados Unidos, 1977, Lume)Para quem já se perguntou de onde vem tanta bizarrice ao assistir aos filmes de David Lynch aqui talvez esteja a resposta, ou parte dela. Longa-metragem de estreia do diretor norte-americano, Eraserhead conta a história de Henry (Jack Nance), rapaz com um penteado peculiar que vive em uma cidade industrial de aparência pós-apocalíptica. Durante um jantar na casa da namorada, Mary X (Charlotte Stewart), descobre ter tido um filho com ela. A criança, no entanto, é literalmente um monstro que chora incessantemente. Forçado a se casar, ele logo é abandonado pela mulher, que o deixa com o bebê-aberração. Somam-se a isso algumas esquisitices, como a cantora no aquecedor e a vizinha sedutora. Com estrutura nada convencional e narrativa fragmentada, Eraserhead lembra muito os trabalhos de videoarte do início de carreira de Lynch, provando que as excentricidades vistas em Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2006), filmes mais recentes do diretor, vêm de longa data.

LITERATURA

Arte Contemporânea – Uma Introdução, de Anne Cauquelin (Martins Fontes, 2005,170 p.)

Que arte moderna é uma coisa e arte contemporânea é outra parece ser uma afirmação óbvia. Mas o que as diferencia de fato? O livro, ideal para um público não-iniciado, discorre sobre a transição do moderno ao contemporâneo, evidenciando as principais mudanças e procurando compreender as características do novo modelo. Das redes de criação à velocidade de transmissão de informações e da queda do espaço expositivo convencional à sociedade da comunicação, tudo é mapeado pela autora com uma visão crítica sobre a arte contemporânea e suas consequências para o pós-modernismo.

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48 Continuum Itaú Cultural

A cidade como telaArtistas de rua discutem sua arte enquanto dão rosto, cor e caligrafia aos espaços urbanos.

Por Micheliny Verunschk

Não há nada de novo debaixo do sol, diz uma das mais conhecidas passagens da Bíblia que reflete sobre a capacidade humana de reinventar a roda. Assim, não deve ser espantoso para ninguém saber que de egíp-cios a romanos e entre gregos e troianos, para falar apenas de alguns povos da Antiguidade, as inscrições em paredes das cidades, que hoje classificamos como arte de rua (e alguns classificam simplesmente como vandalismo), já eram bem comuns. Desenhos, insultos, protestos, citações, tudo isso fazia parte do repertório daqueles precursores anônimos revelados pelas pás e pinças dos arqueólogos.

A arte de rua como a conhecemos, expressão pop coletiva e individual, é mais recente. Foi o artista ame-ricano Andy Warhol quem primeiro usou a expressão street art para definir a “algaravia visual” das ruas dos grandes centros urbanos, isso ainda na década de 1950. Em fins dos loucos, únicos e criativos anos 1960, um jovem carteiro de Nova York chamado Demetrius entrou para a história do grafite ao espalhar, nos pontos da cidade pelos quais fazia entrega de correspondência, sua tag (ou marca individual): Taki 183. Entrevistado em 1971 pelo jornal The New York Times, virou lenda e referência para grafiteiros e artistas de rua dos quatro cantos do mundo.

reportagem

O dinossauro e a caligrafia infantil que caracterizam a obra de Iaco | foto [detalhe]: arquivo do artista

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Participe com suas ideias 49

Mesmo não sendo exatamente uma novidade, a arte de rua ainda é alvo de muita polêmica, oscilando en-tre aqueles que a defendem como expressão ímpar da contemporaneidade e aqueles que não a veem senão como expressão do vazio em que anda metida a nossa sociedade. Outras questões, como as relações com o poder público e com o mercado institucional, também fazem parte da pauta do dia e ninguém me-lhor que os próprios artistas para discutir os rumos e as especificidades daquilo que fazem.

Percursos de uma caligrafia

Talvez não haja quem, andando pelas ruas de São Pau-lo, nunca tenha notado a tag de Iaco Viana escrita em caligrafia quase infantil. A referência visual é também dada pela letra i, marcada sempre por três traços acima do pingo, ou por um simpático dinossauro que, vez por outra, acompanha a assinatura. Não raro mensagens coladas ao nome despertam a atenção do transeunte, coisas como iacodiscreto, iacosó ou iacofalso.

S e g u n d o Viana, que fez escola téc-nica e faculdade de arte, a qualida-de lúdica do seu trabalho tem duas in-tenções: primeiro, o diferencia da pichação e, depois, desperta o olhar do espectador, fazendo com que ele se aproprie da cidade de outra forma. “Meu trabalho se define sozinho. Para cada um que vê iaco por aí, a interpretação é feita de maneira pes-soal, adequada ao momento da cidade. Mas não dei-xa de ser uma mistura de publicidade com tipografia lúdica. Acho importante esse apelo devido ao fato de São Paulo ser uma das maiores cidades do mundo e meu trabalho fazer com que as pessoas a observem, fujam um pouco do seu cotidiano para reparar nos muros e nas transformações por que ela passa.”

Intervenção urbana seguida de registro fotográfico Metabiótica 16, de Alexandre Orion, 2004 | foto: arquivo do artista

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50 Continuum Itaú Cultural

Embora não veja restrições na exposição visual do artista de rua, afirmando que o que importa é a ideia e o jogo de palavras com os quais lida, Viana opta por não mostrar o rosto.

Mas arte de rua é arte?

Offend. Emprolde. Stok. Onesto. Esses são alguns dos 72 nomes com que Alex Hornest (também um pseudônimo) assina seus trabalhos pelos muros de São Paulo, do Brasil e do mundo afo-ra. Hornest, para quem a cidade ideal seria aque-la sempre limpa para que ele a pudesse utilizar, afirma que a diferenciação entre o que é arte e o que é vandalismo nas ruas é subjetiva: “Quem define isso é o olhar de cada um, que é particular.

Depende do potencial que ‘eu’ vejo naquilo. No caso da pichação, por exemplo, vejo uma cali-grafia muito autêntica, que sem ser baseada em qualquer forma ou estética dá outra identidade a uma parede, a um prédio”.

Alexandre Orion, conhecido, sobretudo, pelo seu trabalho Ossário, uma série de crânios pin-tados na poluída passagem subterrânea entre as avenidas Europa e Cidade Jardim, na capi-tal paulista, em 2006, concorda: “O parâmetro

para definir quando a arte institucionalizada ‘é ou não é’ arte é ‘estar ou não estar’ em uma

instituição, o que implica uma aprovação curatorial que usa parâmetros subjeti-

vos, quando não duvidosos. Para a arte de rua ‘ser’ é ‘estar’ em

um sentido mais

“Para estar na rua, uma obra depende somente da intenção do autor, por isso rompe com o espaço institucional da arte.” (Alexandre Orion)

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Participe com suas ideias 51

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52 Continuum Itaú Cultural

objetivo. Para estar na rua, uma obra depende so-mente da intenção do autor e é por isso que essa linguagem rompe não apenas com o espaço institu-cional da arte, mas também com os parâmetros que a definem”.

Para Orion, a polêmica em torno da pichação, apro-veitando o eco da prisão de Carolina Pivetta que, com um grupo de 40 pessoas, invadiu e pichou o pavilhão da Bienal de Arte de São Paulo, no segundo semestre de 2008, passa por questões políticas, econômicas e sociais: “A discussão não se trata de arte versus van-A discussão não se trata de arte versus van-dalismo, mas, sim, do que o sistema considera ou não suportável. Tanto o grafite quanto os stickers têm, em sua maioria, explícita influência estrangeira, já a picha-ção tem uma estética única no mundo que caracteriza a cidade de São Paulo e é um dos maiores fenômenos sociais do século”.

Museus, gale-rias e até o mercado pu-blicitário andam de olho nas ruas e em seus artistas. Casos como o do artista britânico Bansky, cuja marca é o engajamen-to sociopolítico em questões contemporâneas, e o dos brasileiros Osgemeos, cujas obras são al-tamente cotadas pelo mercado, não são raros. Hor-nest, por exemplo, começa a frequentar, com sua arte, esse tipo de espaço. Expondo em lugares como a Jonatham Levine Gallery, de Nova York, e partici-pando de individuais e coletivas em Lisboa, Firenze e São Francisco, o artista é incisivo ao separar os dois universos. “Venho de uma época em que ninguém entendia a arte de rua, ninguém se interessava. Hoje, ela se consolida como um movimento artístico. Mas veja bem, na galeria eu sou um pintor, um escultor. Na rua, eu sou um artista do grafite. Não dá para fazer grafite num espaço fechado, porque além da técni-ca tem todo um contexto que a rua dá. O grafite é o

Galeria de Adesivos, Salvador | foto: divulgação

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Participe com suas ideias 53

resultado da técnica com a performance, que são os meios que o cara tem para conseguir pintar a parede, que vão desde burlar as leis até conseguir a autoriza-ção do proprietário.”

Orion, que também transita entre a rua e o cubo bran-co, complementa: “A aceitação institucional não enfra-quece a arte de rua. Em alguns casos, é a aceitação do artista à instituição que enfraquece sua própria obra. Quando se altera o espaço/suporte também se alte-ra o conceito, e cabe ao artista sustentar seu discurso dentro ou fora da instituição”.

O exemplo de Salvador

Nem toda instituição precisa, necessariamente, seguir os moldes tradicionais. Da ideia de uma artista de Sal-vador, nasceu a primeira galeria especializada em arte de rua da América Latina. Trata-se da Galeria de Adesi-vos, cujo principal produto de exposição são os stickers, aqueles adesivos que, por sua repetição em muros, postes, caixas de energia elétrica e orelhões, parecem nos seguir ao longo dos nossos trajetos pela cidade.

Andrea May, idealizadora do espaço, fala como se deu a criação da galeria e sua marcante qualidade de rom-pimento das formalidades: “A Galeria de Adesivos foi uma das melhores coisas que já me propus a fazer, porque foi divertido e estimulante para todos que par-

ticiparam da sua criação. O projeto se desenvolveu de forma muito fluida, contando com a coletividade e o altíssimo nível artístico de nomes fundamentais na técnica dos stickers. O processo foi rápido, pois ha-via um espaço ocioso e cheio de boas intenções para movimentos contemporâneos em Salvador. Logo, por meio da internet, foi feita a divulgação e chove-ram envelopes e arquivos, daí rolou uma produção no local (pintura, iluminação, sinalização) e um even-to de abertura. A notícia se espalhou e os olhos dos artistas urbanos brilharam ainda mais, numa fase em que se iniciava a verdadeira contemplação ou valori-zação desse movimento nacionalmente”.

Embora esteja afastada das ruas, Andrea continua, se-gundo suas palavras, “maquinando ações para elas”. Ela ressalta que a mudança de cenário em relação ao crescente interesse de instituições e órgãos governa-mentais pela arte de rua nem sempre encontra eco entre os artistas na cidade. “Ainda considero fraca a representatividade por parte dos crews (comunidade de artistas de rua que engloba grafiteiros e stickers, entre outros). Talvez por questões financeiras ou cul-turais, temos poucos e bons artistas de rua atuantes.”

Todas essas questões servem para alertar que as de-mandas da arte de rua não passam apenas pelos conflitos com as autoridades e, eventualmente, com os proprietários de imóveis. Para além do seu caráter atuante, é uma arte que pensa e que, so-bretudo, se pensa. Talvez seu diferencial seja o fato de que isso acontece enquanto a cidade é usada como tela.

“Vejo na pichação uma caligrafia muito autêntica, que dá outra identidade a uma parede, a um prédio.” (Alex Hornest)

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Arte chilena, arte de falênciaO caminhar da contemporaneidade no Chile.

Por Justo Pastor | Tradução Josely Vianna Baptista | Ilustração Rodrigo Silveira

Em meados de 2008, uma revista feminina chilena convidou-me a participar de seu número de aniversário, pedindo-me que respondesse com 700 palavras a uma questão formulada por sua editora. A pergunta pro-curava saber qual era, presentemente, a obsessão dos artistas chilenos. Na mídia, o termo “obsessão” acabou por tornar-se um sinônimo da busca daqueles grandes motivos que mobilizam os artistas. Com isso, revelou sua eficácia para tratar das dificuldades de construção de um olhar sobre o cenário atual da arte chilena.

O que faltava e o que sobrava aos “nossos” artistas para serem felizes? Confrontei-me primeiramente com o fato de que aquilo que lhes fazia falta e o que supostamente lhes sobrava não agiam no mesmo registro simbólico. A falta, entendida como ausência de algo, transformava-se numa falha geológica determinante. Ao repensar os termos da resposta que sustentei naquela ocasião e reelaborar meus argumentos para agora adequá-los ao espaço brasileiro, não pude deixar de pensar numa associação com uma locução da língua portuguesa que acaba sendo de uma exatidão abissal: curador de massas falidas. Ou seja, aquilo que em espanhol jurídico seria um síndico de quiebras. E que, numa transposição precária, seria um “editor de falta”, no sentido de falha simbólica básica. De maneira que, para escrever sobre a cena artística chilena, é preciso concebê-la como uma cena originária em que a falha-de-ser organiza sua possibilidade de ser. Assim, as obras não conseguem nem mesmo projetar as so(m)bras que poderiam antecipar seu vazio.

Utilizo esse jogo de palavras, sugerido recentemente por meu amigo e colega Miguel Ángel Hernández-Na-varro, pesquisador do Centro de Documentação e Estudos Avançados de Arte Contemporânea (Cendeac, Múrcia, Espanha), num colóquio na República Dominicana. As obras de arte projetam sua sombra institu-cional como (s)obras de sua forma de inscrição. Por meio dessa sequência em que os termos podem ser intercambiáveis, tento responder ao falso dilema exposto inicialmente, sobre o que falta e o que sobra aos artistas chilenos; como se fosse possível distinguir entre aquilo que necessitam e aquilo que desejam; prin-cipalmente quando as exigências para satisfazer o primeiro estão institucionalmente impedidas de comple-tar-se, e a figuração fantasmal do segundo não pode nem mesmo se estabelecer como representação.

Arte de professores

A organização desse sistema de existência da arte chilena não é uma situação que se deva lamentar. Ao con-trário, é uma construção na qual gerações investiram grandes esforços. Por certo, a origem da organização da retenção está no domínio que a universidade exerce no desenvolvimento do ensino de arte, de 1932 em diante, ao encaminhar-se para o nascimento da maior arte de professores de que se tem notícia. De fato, David Siqueiros, o muralista mexicano que em 1941 realizou um extraordinário mural na Escuela México, em

mirada

54 Continuum

Page 55: Continuum 19 - O que é isto?

Participe com suas ideias 55

Chillán, cidade situada ao Sul do Chile, a quase 500 quilômetros da capital, afirmou num texto explosivo de 1943 que o principal obstáculo para a inscrição da arte chilena na contemporaneidade era sua depen-dência dessa arte de professores que, como se não bastasse, declarava com orgulho ter impedido a ins-talação no país daquilo que ela denominava “moder-nismo à outrance” e da arte da propaganda. O autor re-feria-se, certamente, ao afogamento, no academismo pós-cézanniano, da “influência” tanto das vanguardas históricas quanto do muralismo mexicano.

O que relato anteriormente ocorre entre 1932 e 1962, período no qual o espaço universitário começa a ex-perimentar o princípio de uma reforma que em 1965 vai redimensionar, antecipadamente, o espaço polí-tico do país. Nesse momento sobrevém a queda do sistema pós-cézanniano, substituído pela contempo-raneidade de uma pintura de filiação informal. Nesse ano acelera-se a transferência de informação contem-porânea, num cenário que entre 1932 e 1965 passara por um processo organizado de postergação de refe-rentes modernos.

Enquanto no Chile os setores universitários se empe-nham em atrasar a modernidade, no Brasil Oswald de Andrade, em 1944, publica Marco Zero II – Chão (Globo, 2008), no qual retoma e amplia um debate em torno da relação arte e política. Se no início dos anos 1960 a arte brasileira é marcada pela discussão entre concretos e neoconcretos, o discurso plástico da arte chilena se organiza – por sua vez – em torno das “artes de la huella”. Do meu ponto de vista, esse será o primeiro momento de transferência forte da contemporaneidade chilena. Se fosse preciso pensar num artista como figura central desse momento, esse

seria José Balmes, quando pinta a série intitulada San-to Domingo, como uma indicação crítico-pictórica à intervenção dos marines na República Dominicana, em abril de 1965.

Então ocorre o segundo momento de transferência forte, nos últimos anos da década de 1970, em tor-no da obra de Eugenio Dittborn, num processo que qualificarei como “artes da escavação”, dominado pe-los procedimentos de recuperação arqueológico-po-licial da imagem, numa conjuntura política fortemen-te marcada pela subtração e pela produção do de-

saparecimento de corpos declarados punitivamente exemplares pelos agentes do Estado. Desse modo, como uma declinação das “artes da escavação”, sur-gem, no final dos anos 1990, as “artes da disposição”, em que a aparição de objetos-pensamento define o momento mais transicional de cena plástica chilena. Mario Navarro, Ivan Navarro, Patrick Hamilton e Pablo Rivera estão entre os artistas cujas obras sustentam essa última estratégia de produção de cena.

Em termos estritos, é esse modo de distinguir dois momentos de transferência forte e três complexos processuais de organização das (s)obras residuais de um campo – no qual essas obras críticas antecipam a sombra de seus conceitos projetados corrosivamente no imaginário político – que permite à arte chilena ser pensada como o reverso da crise de falência a que me referi no início desta exposição.

Justo Pastor, crítico de arte, realizou curadorias de representações chilenas nas bienais de São Paulo, de Lima, do Mercosul e de Veneza.

...para escrever sobre a cena artística chilena é preciso concebê-la como uma cena originária em que a falha-de-ser organiza sua possibilidade de ser.

Participe com suas idéias 55

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56 Continuum Itaú Cultural

Um lugar para as velhas novas mídiasNa Alemanha, um centro inovador mostra que a palavra conservação pode (e deve) ser usada também com a arte contemporânea e a arte eletrônica.

Por Augusto Paim, de Karlsruhe, Alemanha (texto e fotos)

Quando o visitante chega ao balcão para pedir informações, uma luz circular o encontra. Vai-se para o lado, a luz vai junto. Não há como fugir dela. O visitante foi pego. Logo, uma voz fala. As pessoas ao redor não estão prestando atenção. Sim, só ele a ouve.

A cena se passa na cidade de Karlsruhe, na Alemanha, mais especificamente no saguão de entrada do Zen-trum für Kunst und Medientechnologie – ZKM (Centro de Arte e Mídia), e a iluminação que sai do teto é ape-nas a primeira instalação do Medienmuseum, o Museu de Mídia, um dos inúmeros espaços de produção, exposição, conservação e pesquisa de arte contemporânea e eletrônica existentes no prédio. A luz, só para esclarecer, obedece a um sensor de movimento. No teto, a dezenas de metros de altura, uma caixa de som direcional faz com que só a pessoa focada escute a voz em alemão. Não é magia. É ciência. E arte.

Segundo um folheto de divulgação do museu, o lugar foi pensado para proporcionar “uma interação entre homem e obra de arte” e o visitante “não consumirá passivamente os trabalhos expostos”. Durante horas, é possível entrar em contato com obras de arte eletrônica apertando botões, mexendo o corpo para ser de-tectado por um sensor, interagindo com (e não apenas recebendo) áudios e vídeos. Tudo em clima de brin-cadeira, pois o museu, que conta com uma área de 6.344 metros quadrados, pretende mesmo ser lúdico.

reportagem

Centro desenvolve formas de preservação de acervos de arte tecnológica

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Perambulando pelo local, o público pode parar na sala onde está a obra The Interactive Plant Growing, de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau. Lá há cin-. Lá há cin-co vasos com plantas, entre elas um cacto. Ao se en-costar nas folhas, uma planta virtual começa a crescer numa tela projetada na parede. Caso alguém resolva arrancar um pedaço do vegetal, por acreditar que ele não seja de fato real, verá que está enganado. Mas de que jeito essas plantas podem sobreviver nessa sala escura? O que há por trás disso tudo?

Tecnologia em preservação

Com o desenvolvimento da arte eletrônica, surgiu a necessidade da existência de me-

dia centers, lugares para exposição de obras que utilizam as mídias

mais modernas do

nosso tempo. O Museu de Mídia do ZKM é um des-ses media centers do mundo, mas não só isso. Ele é um farol para os demais, pois lá se trabalha com um conceito até então associado a coisas velhas, o con-ceito da “preservação”. Afinal, a arte eletrônica não nasce pensando que um dia vai se tornar velha. “Qual-quer pessoa, olhando para obras de arte eletrônica, tecnicamente perfeitas, provavelmente não gaste muito tempo pensando como as futuras gerações poderão compartilhar a mesma experiência”, comen-

ta Christiane Fricke, jornalista especializada em arte, em artigo sobre o problema da conservação da arte eletrônica. ”A opinião popular parece dizer que tudo que vai para um museu e é reconhecido como uma conquista cultural merecedora de preservação e de acesso público deve ter certa durabilidade.“ Acontece que as novas tecnologias ficam velhas muito rápido. O que fazer com elas?

...as novas tecnologias ficam velhas muito rápido. Como manter a memória de um momento artístico em meio a tanta velocidade?

Obras expostas no Museu de Arte Contemporânea do ZKM

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Em uma sala do museu, estão reunidas dezenas de aparelhos de vídeo de todas as épocas. Em outra, a coleção é de videogames. Também há muitas outras mídias, que foram altas tecnologias em determinado período e hoje se tornaram lixo. Mas não para o ZKM, que treina continuamente técnicos para operar esses equipamentos, não importa quão arcaicos sejam. Obras de arte que usam mídias ou software que já caíram em desuso são decodificadas para outro for-mato, mas paralelamente a isso os equipamentos do formato antigo são mantidos.

Uma história dos bastidores do Museu de Mídia conta a situação de um videoartista que usava um projetor antigo em seu trabalho. O uso de um equipamento novo alterava o esquema de cores da obra. A solução foi treinar alguém para consertá-lo e mexer no apare-lho. O ZKM faz isso para cada obra nova que chega, conforme a necessidade.

De plantas e de munição

A artista Lenara Verle, doutoranda em arte ele-trônica na Universidade de Frankfurt, fez

residência por três meses no ZKM, em 2005. Nesse período, teve acesso

a todos os setores do cen-tro. Numa sala

de convivência, notou diversos vasos de plantas. Al-gumas estavam um pouco deterioradas, com folhas arrancadas; outras estavam em pleno vigor; outras, ainda, eram apenas brotos. Alguém explicou a Lenara que ali repousavam as plantas usadas em uma obra do Museu de Mídia. Elas descansavam do “trabalho” exaustivo, pois salas escuras não são lugares para ve-getais. Outras eram preparadas para substituir as que estavam atualmente na exposição.

O que acontece nessa sala do ZKM é uma metáfora para todas as atividades do centro: nada é jogado fora, nada é descartável, e as atividades de sustenta-ção ocupam um vasto espaço físico e exigem muita energia. Além disso, como se já não bastasse o esforço dispensado em conservação e exposição, o ZKM pro-duz, e muito.

Em 1986, um grupo de políticos e representantes do meio acadêmico e cultural da cidade de Karlsruhe se reuniu com a intenção de fundar um centro de no-vas mídias. O projeto pensava o centro na forma de três círculos de atuações interconectados: pesquisa e desenvolvimento; evento e disseminação; e educação e suporte. Fundado sob lei pública, a inauguração foi em 1989, com atividades mantidas por verba munici-pal e estadual e também por terceiros.

Interação faz parte do propósito da instituição

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Em 1997, o ZKM foi reunido em uma antiga fábrica de munição da Segunda Guerra Mundial. É lá que ele permanece até hoje, com dois museus (o de Mídia e o de Arte Contemporânea), quatro institutos de pes-quisa e produção e outras atividades de sustentação e conservação. No prédio também estão a Galeria Municipal e a Faculdade de Design, Mídia e Artes, que não pertencem ao ZKM mas são parceiras em muitos projetos. Hoje, o tripé de valores mudou um pouco, embora siga o espírito inicial: pesquisa e produção; exibições e eventos; e coleções e arquivos.

Um centro descentralizado

O ZKM possui coleções de terceiros, mas também produz por meio dos institutos. O Instituto de Mídias Visuais foi fundado em 1991 e trabalha com o que há de mais moderno em tecnologias de vídeo. Projetos com ambientes imersivos e novas tecnologias de edi-ção são desenvolvidos lá. O Instituto de Cinema pro-duz filmes, preferencialmente documentários e obras filosóficas, em parcerias internacionais. O Instituto de Mídia e Economia realiza eventos para refletir sobre o processo da arte contemporânea em geral. Por meio dele, o ZKM conseguiu trazer filósofos como Guy De-bord, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard e Paul Virilio para discutir arte, mídia e sociedade.

O Instituto de Música e Acústica é responsável por uma construção moderna do lado de fora da antiga fábrica de munição. Nesse espaço, conhecido como

Cubo, são feitas apresentações e performances com vídeo e música eletroacústica. Os limites dos espaços tradicionais de execução musical são expandidos por meio de um sistema diferenciado de som: 47 alto-falantes estão dispostos na forma de um globo, de modo que a música chega ao público de várias dire-ções, criando, assim, um ambiente imersivo. “É como se numa orquestra os músicos não ficassem parados, mas, sim, rodando pela sala com seus instrumentos”, explica Ludger Brümmer, diretor do instituto.

O ZKM é chamado de centro porque reúne uma sé-rie de atividades, não apenas a museologia. Como diz Brümmer: “A maioria dos museus se preocupa apenas com a parte de exposição. Nós também produzimos, conservamos e pesquisamos”.

Atualmente, o centro desenvolve o AmaZoneWar. Tra-ta-se de um projeto de videoarte que envolve artistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil. A cola-boração é interinstitucional (em parceria com a Bienal de Munique e instituições como Goethe-Institut São Paulo, Ministério da Cultura do Brasil, Petrobras/Cen-pes, Sesc-SP e Hutukara Associação Yanomami, de Boa Vista) e também multimídia: o CD do projeto é resultado do trabalho conjunto do Instituto de Música e Acústica e do Instituto de Mídias Visuais. Sem falar que é interdisciplinar, pois a obra se preocupa com o problema da devastação da Amazônia. Afinal, o ZKM nunca vai deixar as plantas serem jogadas fora.

Saguão de entrada do media center

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DJs da modernidade em movimentoA referência e a edição seguem como procedimentos estéticos, seja no passado, seja na contemporaneidade.

Por Carlos Costa (com colaboração de Roberta Martinho) | Ilustração Mariana Coan

Arte (rubrica: estética)

Produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana.

Derivações: por extensão de sentido: 1 – O talento, a contribuição própria da inteligência e da sensibili-dade de um artista, 2 – A tendência geral e/ou a totalidade das manifestações artísticas em determinada

época, fase, lugar etc.

(excertos do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

A avalanche do modernismo e do pós-modernismo destruiu os conceitos estabelecidos sobre a arte. O cará-ter, o suporte e até o significado do vocábulo foram questionados e reorganizados. No meio da confusão, o papel do artista também foi interpelado e o exercício do fazer artístico buscou novos parâmetros. Para parte da crítica especializada o artista passou a ser classificado como editor de conteúdos.

Um exemplo vem do crítico de arte e curador francês Nicolas Bourriaud, que escreveu o ensaio Postproduc-tion: Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World (em livre tradução, Pós-Produção: Cultura como um Roteiro: Como a Arte Reprograma o Mundo), editado em 2002 (Sternberg Press, Estados Unidos). Para ele, a atividade de um disc jockey (o DJ) é comparada ao trabalho do artista contemporâneo. Em linhas gerais, o texto de Bourriaud analisa a produção das artes visuais pós-1990 no contexto da cultura globalizada da era da informação, e ressalta a interpretação, a reprodução e a reexibição, cada vez mais frequentes, de outras obras nos trabalhos artísticos atuais.

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Editores, não criadores

A ideia ecoa no Brasil. O crítico e pesquisador de arte contemporânea Guy Amado, quando questionado sobre a classificação do artista como editor, cita o trabalho de Bourriaud e completa, “apropriação, re-ciclagem, colecionismo, reordenação de conteúdos; métodos e procedimentos se confundem e alargam a acepção mais clássica da noção de edição, permitindo um leque de práticas em que o artista passa, às vezes, a ser associado à figura de um DJ esquizofrênico” [leia na versão on-line o Glossário de arte contemporânea criado por Amado].

Agnaldo Farias, professor, crítico de arte e curador, valida a comparação. “Hoje, como sempre, o artista segue mais como um editor de conteúdos do que como um criador.” Farias recorda que criar é um ver-bo empregado pelos românticos com o propósito de mistificar a arte. ”Produz-se olhando para a história. É assim em qualquer campo – da odontologia à nave-gação; da medicina à astronomia −, por que na arte haveria de ser diferente?”, questiona.

Seguindo a mesma linha de pensamento, o crítico de música e de arte e professor Lorenzo Mammi acres-centa: “Os artistas sempre trabalharam a partir de conteúdos ou códigos. A dificuldade da arte atual, creio, consiste em não haver mais um terreno em comum que garanta a co-municação das obras entre si“.

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Feitos de referências

E os artistas contemporâneos, o que acrescentam ao debate? Leya Mira Brander, gravurista e desenhis-ta selecionada em 2002 pelo programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais e participante da última Bienal de São Paulo, opina: “Não sei como seria criar algo do nada. Somos feitos de referências e isso acontece em qualquer área, não só no campo da arte”.

Nelson Leirner, renomado artista multimídia na pro-dução contemporânea brasileira, rebate a compa-ração entre edição e criação, afirmando que é tudo uma questão de significado e interpreta-ção, e prefere responder com seu trabalho. “Vocês decidam e eu sigo meu cami-nho”, opta.

Ponto de vista similar apresenta o pintor, desenhista e professor Dudi Maia Rosa. “É preciso experiência, cal-ma e abrir mão dos preconceitos para que as coisas se aclarem e mostrem seu valor ou inconsistência. Já errei muito me precipitando. Prefiro deixar o trabalho existir e ir me entendendo com ele.”

Arte rupestre

Leirner e outros artistas, como Lourival “Cuquinha” Ba-tista, também selecionado pelo Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, na edição de 2007, comentam que a arte rupestre é a referência inicial de toda a produção humana. “A arte pré-histórica vai ser sempre uma re-ferência, apenas mudam os objetivos”, afirma Leirner. “Desenhar vai ser sempre uma releitura dos primeiros desenhos rupestres”, reforça Cuquinha.

“O artista segue mais como um editor de conteúdos do que como um criador.” (Agnaldo Farias)

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O crítico, curador e professor Tadeu Chiarelli [leia a re-senha do autor na página 12] entra no coro e ressalta que a presença das referências na produção artística é normal, recordando gênios renascentistas e moder-nos. “Pegue qualquer artista considerado ‘gênio’ – Da Vinci, Pontormo, Rubens – e tente encontrar obras deles que não sejam citações, reinterpretações de obras passadas. Picasso, Cézanne e tantos outros

modernos também pautaram muitas de suas obras em referências do passado e em releituras.”

Para o escultor Luiz Hermano, a arte vive em expansão e retração, assim como o univer-

so. “Julgamentos sobre seu valor são sempre reacionários”, arremata.

Modernidade em mudança

Outro indício de que a produção artística não cessa e a subjetividade humana não cala é a trienal de artes visuais da Tate Britain, Altermodern, que Bourriaud or-ganizou neste ano, em Londres. Iniciada em fevereiro e com eventos programados até 26 de abril, a trie-nal está baseada na tese de que o pós-modernismo morreu. Vivemos agora o que poderá se chamar de altermodern, neologismo forjado pelo crítico para dar nome ao estilo de arte da década de 1990 em diante.

Altermodern une as palavras de origem latina alter e modern, e poderia ser traduzida como modernidade alterada, modernidade em mudança. Ao explicar o termo, o crítico ressalta o significado de mobilidade da palavra alter: o movimento inerente a uma altera-ção, a uma mudança. Esse aspecto é reforçado pelos

títulos dos prólogos (blocos temáticos compostos de colóquios, happenings e exibições) que ocorrem na trienal, para fomentar a discussão sobre essa arte atu-al. O primeiro é homônimo à mostra. Os demais, em português, seriam Exílio, Viagens e Fronteiras.

Assim, Bourriaud amarra a discussão à questão da imigração em seus múltiplos significados no mundo globalizado que habitamos. E o grande desafio atual do artista, nessa perspectiva, seria estar inserido no contexto globalizado, mantendo com vida e sotaque próprios sua produção. A conclusão sobre arte con-temporânea, seu valor e seu legado caberá ao tempo. Ou, no dizer de Dudi Maia Rosa, “vamos ver quem tem pernas para ir mais longe”.

“Desenhar vai ser sempre uma releitura dos primeiros desenhos rupestres.” (Cuquinha)

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(Quase) ao alcance de todosAcusada de dar as costas ao público, a arte contemporânea envolve artistas e instituições no desafio de erguer mais pontes para o “mundo lá fora”.

Por Tatiana Diniz | Fotos Cia de Foto

Uma sala vazia onde o que está exposto e à venda é o ar. Um falso crânio humano cravejado de diamantes. Um vídeo de 32 minutos nos quais meio tomate é lentamente esfregado sobre um corpo nu. De um lado, o resultado do processo criativo do artista contemporâneo, acompanhado de suas devidas explicações con-ceituais. De outro, o olhar do espectador, muitas vezes seguido de uma interrogação evasiva. No meio, o esforço criativo das equipes de instituições de arte, que tentam unir as duas pontas e fomentar mais diálogo sobre a relação.

O desafio não é simples, assim como a distância entre arte e público não é novidade. Mas se torna ainda mais complexo no caso da produção contemporânea, em que a reduzida popularidade de muitas mostras acirra discussões. “Indagações como ‘para que serve?’ ou afirmações de que ‘isso não é arte’ são reações comuns das pessoas. Em comparação a outras manifestações humanas, a arte sofre uma falta de reconhecimento por parte do público em geral”, observa Mila Chiovatto, coordenadora de ação educativa da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Embora o hábito de frequentar exposições tenha aumentado e os espaços destinados a elas tenham se multiplicado, pouco se observa de real aproximação entre público e arte, dizem os especialistas. “O que há hoje é uma proliferação de galerias e museus, inclusive algumas vezes o próprio prédio é a grande atração. O hábito de frequentar esses lugares cresceu, mas isso não é sinônimo de uma aproximação da arte con-temporânea com o público. Há, sim, uma dificuldade nessa relação”, observa Marisa Mokarzel, professora de história da arte da Universidade da Amazônia e membro do conselho curador do Museu da Universidade Federal do Pará.

Em um dos mais famosos desses prédios-atração, a Tate Modern, de Londres, a meta de alargar as portas de entrada diversificando o perfil dos visitantes e facilitando a interação do público com a produção artística é perseguida há nove anos pela equipe de Projetos Públicos (Public Programmes), setor do departamento educativo da instituição. “Nosso papel é desenvolver iniciativas que possam envolver o público adulto por meio de um diálogo participativo sobre todos os aspectos da cultura visual. Com mais de cem eventos por ano, de palestras e seminários a oficinas e cursos, o objetivo é atingir mais audiência”, explica Sandra Sykorova, documentarista, mestre em antropologia visual pela escola de arte londrina Goldsmith College e curadora assistente do departamento. Anualmente, 200 mil pessoas participam de atividades baseadas na Tate e outras 500 mil fora dela, via website e projetos externos. Mas certeza de sucesso não há. “A pergunta permanece: estamos conseguindo? Mesmo com estatísticas dizendo que somos uma das mais populares

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galerias de arte moderna e contemporânea do mun-do, a dificuldade de dialogar com aqueles que vivem no nosso entorno ainda existe”, admite Sandra.

A barreira experimentada na Tate se reproduz em di-ferentes escalas e aponta para uma relação ainda mar-cada pela distância do público, em que a produção artística segue ocupando um lugar de isolamento na sociedade. Em outras palavras, a arte contemporânea continua sendo assunto “para poucos”. Apesar disso,

mais e mais investimentos são destinados à visibilida-de dela, como ressalta Mila: “Há hoje nítido interesse em mostrá-la, verificável pelas grandes exposições, pelos maciços investimentos e pela manutenção e proliferação de exibições internacionais”, descreve.

Microgeografias de esperança

Essa contradição vem alimentando um questionamen-to sobre a função das instituições públicas, “responsá-veis pela circulação e formação de novos valores ar-tísticos”, como descreve Luiz Guilherme Vergara, coor-

denador da graduação em produ-ção cultural da Universidade Federal Fluminense, para quem o momento é de “mudanças de paradig-mas em relação à ressignificação das insti-tuições com base nas práticas e nos processos artísticos contemporâneos”.

De acordo com Vergara, pistas sobre possíveis ru-mos dessa ressignificação estariam latentes nos princípios de resistência estética presentes na pró-pria produção contemporânea, em movimentos que ele chama de “microgeografias de esperança”. Ele explica que o panorama atual não concentra mais “propostas artísticas monumentais ou revolu-ções estéticas formalistas, mas princípios éticos de construção coletiva de experiência, narrativa e me-mória. As teorias e os processos de criação artística propõem princípios híbridos – para atuação das ins-tituições e dos artistas”, define.

“Jovens carentes são muitas vezes mais aparelhados para um engajamento na arte contemporânea do que os da classe média.” (Guilherme Vergara)

Mediação é a palavra-chave para o entendimento

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Mediação pode ser a palavra-chave, embora igual-mente não sejam poucas as críticas à função do mediador. Maria Tornaghi, ex-coordenadora do de-partamento educativo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e do Núcleo de Crianças e Jovens da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, comenta que, desde que foi separada do artesanato no século XVIII, a arte ganhou autonomia, mas, simul-taneamente, afastou-se do cotidiano. “Esse talvez seja um fator responsável pela dificuldade de comunica-ção com o público. Isso teria fortalecido o papel de um mediador: um crítico, um educador, um curador. No entanto, há quem diga que nada pode substituir a experiência do contato direto com a obra.” Para ela, o não reconhecimento por parte do público também reflete traços da proposta contemporânea: “Pode ser que arte e vida tenham ficado tão parecidas que arte não seja mais reconhecida como tal”.

Menos pode significar mais

Em meio ao fogo cruzado, um inegável potencial inclusivo tem permitido à arte contemporânea exercitar novas maneiras de encarar o público e se esquivar da recorrente acusação de dar as cos-tas ao “mundo lá fora”. Isso derruba o argumento de ser essa uma arte difícil ou presunçosa por seu excesso de conceitos e abstrações. “A natureza con-ceitual e abstrata da arte não é por si uma barreira, já que uma experiência está presente. Por exemplo, o trabalho de Cildo Meireles contém múltiplas re-ferências intelectuais e um refinamento conceitual preciso, mas é capaz de dialogar com diversos tipos de pessoas, independentemente de idade, educa-ção, classe e bagagem cultural. Isso porque a obra se manifesta como uma experiência, um momen-to de reconhecimento com o qual a humanidade

pode se relacionar, criando uma relação sensorial e perceptiva”, afirma Gabriela Salgado, curadora

do departamento educativo da Tate Modern.

Some-se a isso o fato de que interações e respostas vindas de camadas

sociais que não são fre-

quentadoras de espaços expositivos também surpre-endem e se inserem como característica crescente nos circuitos. Na complicada equação da receptivida-de ao discurso artístico contemporâneo, menos pode significar mais: “Jovens de camadas sociais carentes, excluídos, são muitas vezes mais aparelhados ou disponíveis existencialmente para um engajamento multissensorial/polissêmico na arte contemporânea do que muitos jovens bem-alimentados e nutridos das benesses e dos confortos da classe média”, diz Vergara.

Na busca por mais pontes, espaços expositivos têm investido em fórmulas que destranquem prédios fechados e enfatizem mais contato entre visitantes e obras, deixando para trás os “iniciados” como sua principal audiência. Na Tate Modern, Gabriela assina a curadoria de eventos como The Fight (2007) e Meshes of Freedom (2008), que envolvem diferentes comu-nidades de Londres para que a arte vá às pessoas e vice-versa.

No MAM/RJ, o preparo para receber visitantes tem se diversificado: deficientes auditivos já contam com monitorias pensadas para eles, e universidades e empresas figuram como parceiros na intenção de alargar o circuito. Na Casa das Onze Janelas, no Pará, uma combinação de análises quantitativas e qualita-tivas mapeou a relação do visitante com o acervo. O esforço resultou na criação de caixas multissensoriais com réplicas de determinada obra e uma gaveta com instrumentos e fragmentos do procedimento de sua feitura, para que o visitante possa sentir o processo.

Iniciativas como essas não apenas revelam possi-bilidades de mais diálogo entre arte e sociedade. Também evidenciam que o fomento desse diálogo pode enriquecer a abordagem das instituições na sua acrobática missão de atrair mais público sem cair na tentação de achatar a originalidade da produção artística a fim de torná-la meramente digerível. Afi-nal, é clara a necessidade de maior democratização de uma linguagem reconhecida como exercício de liberdade, mas ainda pouco empregada como artifí-cio de libertação. A

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