continuum 15 - histórias de deslocamentos

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ITAÚ CULTURAL Histórias de deslocamentos out 2008 | itaucultural.org.br 15

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Um lugar diferente, pessoas novas, uma língua estranha, costumes desconhecidos. Um sonho, talvez um pesadelo, mas sempre uma experiência. A Continuum de outubro de 2008 propõe uma discussão sobre um tema complexo: a migração, seja ela física ou psicológica, espacial ou temporal. Os textos dessa edição não buscam oferecer respostas, mas, sim, reflexões sobre a vida face à mudança de lugar - ou à decisão de jamais sair dele.

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ITAÚ CULTURAL

Histórias de deslocamentos

out 2008 | itaucultural.org.br15

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Migrar é muito mais do que mudar de lugar

Quem escolhe mudar de casa, de cidade, de país busca uma vida melhor: boas jornadas de estudos, oportunidades de renda, realização de sonhos, ver mundos diversos. Outras vezes, porém, quem migra procura ter a segurança de caminhar nas calçadas sem sentir-se persegui-do, quer obter liberdade para expressar religião ou raça sem retaliações, plantar e colher sem medo de tempestades. Quem migra tem a esperança de tempos brandos, dias fartos.

A Continuum Itaú Cultural de outubro, com o título Histórias de deslocamentos, propõe uma reflexão sobre um tema complexo: a migração. Complexo porque trata de entender o que acontece quando uma cultura, cerne da formação de todo ser humano, encontra outra – e passa a conviver com ela. Os textos que compõem esta edição não buscam oferecer neces-sariamente respostas, mas, sim, reflexões sobre a vida face à mudança de lugar – ou à decisão de não sair jamais dele.

O entrevistado especial do mês, o jornalista brasileiro Jaime Spitzcovsky, fala de sua experiência como correspondente internacional e de quanto o simples ato de fazer compras em lugares como Moscou ou Pequim, onde trabalhou, pode representar uma descoberta diferente. Paradoxalmente, também pode constituir uma aventura ser taxista em São Paulo, cidade de vários mundos em um só – como revela uma das reportagens. Um relato vindo da Espanha,

por sua vez, traz depoimentos de imigrantes brasileiros em Madri que dizem mais do que leis

e dados numéricos sobre a restrição à imigração na Comunidade Européia.

As histórias daqueles que apenas observam outros partirem, caso dos velhos mora-dores do município de Passa e Fica (RN), garantiram, por sua vez, doses de poe-

sia à edição. Assim como o ensaio do escritor Antonio Carlos Viana sobre a alegria e a tristeza de tentar se comunicar numa língua diferente da

sua. Na Área livre, o artista paulistano Shima recorre à fotogra-fia para investigar suas origens nipônicas, viajando

entre os diversos tempos de sua vida.

Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Antonio Carlos Viana, Carlos Costa, Cia de Foto, Gaspar Arguello, Helio Herbst, Karla Dunder, Liane Iwahashi, Luiza Fagá, Mariana Sgarioni, Shima, Welington Andrade On-line Augusto Paim, Micheliny Verunschk Agradecimentos Alessandra Casolato, André Viana, Domingos Chiappetta, Isidoro Taddeo, Lucia Udemezue, Márcio Balbino Cavalcanti, Mary Douek, Mayer Mirmovicz, Prefeitura Municipal de Passa e Fica, Rosana Gaeta, Sandra Pinheiro, Susan Pratt (Pratt Contemporary Art)

capa Contêineres no porto de Valparaíso, Chile: partir e chegar são dois rumos da mesma viagem | imagem: Helio Herbst

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

O direito à diferençaA imigração e as particularidades de nossa cultura

Navegar é preciso...Muito além das estatísticas: a vida de imigrantes ilegais na Espanha

Para sempre estrangeiroQuando uma ida à padaria evidencia a condição de forasteiro

A cidade de ChicagoO taxista que muda de personalidade como troca de marcha

Tão longe, tão pertoEm entrevista, o jornalista Jaime Spitzcovsky comenta suas andanças pelo mundo

Personagens andarilhos, palavras migrantesO rei, o cavaleiro e o jagunço que somente encontram a si próprios quando de si fogem

Migrar para melhor se expressarAs mudanças radicais de artistas em busca da satisfação pessoal

O mundo de quem ficaOs personagens de uma cidade onde permanência também é passagem

Continuum on-lineConteúdos exclusivos da revista na internet e fotos vencedoras do concurso Outros Retratos

Área livreO artista visual Shima viaja pela sua origem nipônica por meio da fotografia

15 out 2008

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O direito à diferençaAo se tornar migrantes, as pessoas reinventam sua própria história

Por Mariana Lacerda

“Quem migra carrega consigo a esperança de dias melhores”, diz a psicóloga Maria Angélica Zamora Xavier, cujo trabalho é atender imigrantes que adentram na cidade de Porto Alegre, onde ela vive e tem seu consultório. Para alguns, explica ela, dias melhores são aqueles em que se tem trabalho bem remunerado, simples assim. Ou estudos com qualidade, no caso dos mais jovens. Para outros, dias melhores são aqueles em que se está longe de perseguições políticas e religiosas, das guerrilhas, da luta armada, da guerra civil – essas são “pessoas que lutam pela vida”, diz o ex-seminarista Antenor Rovida, que preside a Cáritas São Paulo, entidade de assistência aos refugiados no estado de São Paulo, ligada à Igreja Católica.

Hoje, cerca de 4 milhões de brasileiros vivem em outras pátrias, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Os Estados Unidos, o Japão, o Paraguai e os países da Europa são os maiores receptores desse fluxo migratório. Uma expressiva imigração portuguesa, argentina e espanhola soma-se à estimativa de 880 mil estrangeiros morando atualmente no Brasil, país que acolhe, ainda, grupos de iraquianos, fugidos do regime que derrubou o ditador Saddam Hussein, e de colombianos contrários a milícias como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Em comum, todos buscam dias melhores e almejam um futuro seguro, senão para si, para seus filhos.

A experiência do deslocamento é um fenômeno que acontece desde que o mundo é mundo. “Desde que a humanidade se dividiu em territórios, encontramos o paradigma do imigrante”, diz Maria Angélica. Quando observado atentamente, ele revela não somente aspectos de nossa história (conflitos, guerras, economias emergentes), mas também algo mais sutil: particularidades da sociedade, expressas nos inúmeros matizes que configuram a cultura.

reportagem

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O nosso espelho

A cultura é o principal motor da formação social. Basta pensar que o comportamento em sociedade é construído por um contexto cultural. As pessoas são criadas dentro dele e aprendem a viver e a se expressar. É como em uma casa, com seus pequenos códigos, muitas vezes implícitos; ou numa religião, que com normas de conduta agrega grupos que agem e vivem de acordo com esses preceitos; ou ainda nas várias regiões de um mesmo país, em que as formas de cultivar a terra e os meios de produção, por serem diversos, estabele-cem, ao longo de anos, relações diferenciadas de amizade e até de parentesco. Guerras, leis, línguas, economia e política determinam, em maior ou menor grau, a formação cultural e o jeito de cada povo.

Por isso, não é simples imaginar as dificul-dades, para dizer o mínimo, quando uma cultura – que determina um jeito de ser – encontra outra. Conflitos raciais e reli-giosos e casos de xenofobia são os exem-plos mais extremos e preocupantes – que geram violência, que levam à migração. O mundo está repleto de problemas como esses e nem é preciso ir muito longe para deparar com eles. A guerrilha entre as fa-velas do Rio de Janeiro serve de exemplo. E o cotidiano de gente como Rovida, da Cáritas, também. Ele e sua equipe de tra-balho acabam de acolher no Brasil 108 refugiados que há quatro anos fugiram do regime instalado no Iraque, e vive-ram em condições sub-humanas no deserto da Jordânia.

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A legalidade no país que o recebe, a nova língua com a qual deverá se expressar, a cul-tura que deixou para trás, a outra que está encontrando e decifrando são as primeiras dificuldades com que um imigrante terá de aprender a lidar. Quem chega a um novo território traz seus hábitos, traços vindos de longe. Quem está no lugar talvez estranhe quem adentre. O entrosamento dos dois la-dos, os códigos invisíveis das duas culturas se diluem apenas com o passar do tempo – muito embora um estrangeiro nunca per-ca essa condição.

Um simples papel

Em solo brasileiro, organizações dão apoio ao imigrante com o intuito de atenuar al-guns impactos. Acolhem, ainda, estrangei-ros na mais traumática situação de desloca-mento: o refúgio. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur, com atuação em 116 países) tem a missão de proteger e de buscar soluções duradou-ras para os problemas dessas pessoas. Já o

Comitê Nacional para os Refugiados (Co-nare, ligado ao Ministério da Justiça) é o

órgão responsável no país por rece-ber as solicitações de refúgio.

Essas instituições contam com o apoio im-prescindível de organizações como a Cá-como a Cá-ritas Rio de Janeiro, a Cáritas São Paulo, a Companhia de Jesus e a Sociedade Antônio Viera, em Porto Alegre, todas ligadas à Igre-ja Católica. Atualmente, a Cáritas São Paulo atende 1.800 refugiados, de 64 nacionalida-des diferentes − congoleses, afegãos, sírios, iranianos e colombianos, por exemplo.

Um simples papel assinado e carimbado. É o que permite ao estrangeiro ter direitos semelhantes aos dos cidadãos do país no qual se encontra. Apesar de simples, a do-cumentação implica a possibilidade de ter acesso a trabalho, moradia, saúde e estudo, preceitos tão necessários à vida, preconiza-dos inclusive pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estar legalizado em um país “traz à tona aspectos da vida dos sujei-tos relativos à percepção dos mesmos e da sociedade, à manutenção e reinvenção de antigas lealdades bem como à criação de novos laços de solidariedade”, escreveu o sociólogo Daniel Etcheverry, em seu artigo A Documentação de Estrangeiros no Brasil: Seus Caminhos e Significados (no livro Cartografias da Imigração, Editora da UFRGS, 2007).

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Num exemplo ex-tremo, talvez tenha sido por

isso que, tão logo completou a maioridade, a escritora Clarice Lispec-

tor, nascida na Ucrânia e vinda para o Recife com meses de idade, escreveu, no

dia 3 de junho de 1942, ao então presiden-te da República, Getúlio Vargas, um pedido para que seu processo de naturalização corresse nas instituições legais o mais rapi-damente possível. Clarice tinha pressa em sentir-se brasileira. Dizia ao presidente não conhecer uma só palavra de russo, mas, sim, ser alguém que “pensa, fala e age em por-tuguês, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos de seu futuro, próximo ou longínquo” (Correspondências, Rocco, 2002).

Uma nova narrativa

Cada língua, até mesmo seus sotaques, contempla significados particulares que são sustentados e reciclados pelas pessoas que a partilham. Assim, é tecido um vai-e-vem de linguagem, uma dança na qual quem fala, quem comunica, sente-se representa-do, reconhecido, participante de um gru-po. Para quem adentra num lugar em que a língua falada não é a natal (ou a língua materna, como se diz) o primeiro impacto é semelhante ao de se ver em um espelho em que sua imagem aparece alterada.

Por isso, para Maria Angélica, também pes-quisadora do Instituto de Letras da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul, é comum ouvir, nos depoimentos dos imigrantes que atende, relatos sobre como se sentem face

a uma nova língua, mesmo que ela não seja inteiramente desconhecida. “Sentem-se como se estivessem voltando à infância, em que é preciso aprender tudo para se expres-sar e se fazer entender”, conta.

A questão pode até passar despercebida mas, como explica Maria Angélica, “a lingua-gem constitui a própria experiência da mi-gração. Pois é por meio dela que o migrante constrói uma representação da própria vida e lhe dá significado”. A psicóloga diz que “na vida, tudo é validado pela experiência coleti-va, que se dá pela comunicação”. É por meio das palavras que o mundo gira, tornando-as, portanto, parte consistente da experiência humana.

Quem migra também está propondo contar uma nova história para si. Essa narrativa, por sua vez, será um “pacto” que, ainda que in-conscientemente, cedo ou tarde, o migrante terá de fazer com o lugar que o recebe. Esse acordo inclui não abandonar suas origens, porque isso representaria esquecer-se de si próprio, mas acolher o que é novo, incorpo-rar hábitos, pontos de vista, formas de viver. “Aquele que não consegue termina voltando ou indo para outro lugar”, diz Maria Angélica. Adaptado, o imigrante ajuda a fomentar, a ampliar a cultura que o recebe, acrescentan-do a ela outras formas de viver, de comer, de vestir e até de falar. Uma nota final: o Brasil é um país cuja história foi marcada pela mis-tura de três culturas – portuguesa, indígena e africana. Talvez seja por isso que Antenor Rovida relate com certo contentamento que, apesar das dificuldades por que pas-sam os estrangeiros que ele acolhe no país, a grande maioria diz não ter empecilhos em se relacionar com os brasileiros. Sentem-se bem-recebidos.

Ilustração: Carlo Giovani

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Navegar é preciso...A Comunidade Européia inibe a entrada de imigrantes de países em desenvolvimento, como o Brasil. O objetivo é reduzir o contingente de ilegais. Mas sobra para todos os lados

Por Carlos Costa, de Madri

Os casos de brasileiros barrados nos aeroportos espanhóis mostram que as restrições à imigração na Comunidade Européia afetam inocentes. Mais de 500 brasileiros foram inadmitidos no aeroporto de Madri, em fevereiro de 2008. O endurecimento das leis sobre expulsão de imigrantes, os programas de estímulo a repatriações, a maior fiscalização nas ruas e mesmo o extremo da violência xenófoba causam impacto. Navegar por esses mares é cada vez mais difícil.

Dados oficiais do governo espanhol contabilizam 41.394 brasileiros com permissão de morar no país. No entanto, cerca de 60 mil brasileiros estão ilegais em solo castelhano.

Fragmentos da vida dos imigrantes brasileiros em Madri, legais ou ilegais, revelam situações que dizem mais sobre a experiência da migração do que os dados. Viver não é preciso...

Viagens desencontradas

Demer M. (anonimato preservado para assegurar privacidade ao entrevistado), de 37 anos, nasceu em Vila Velha, Espírito Santo, e mora há quatro anos em Madri. Ilegal, trabalha como marceneiro. Com documentos falsos, arrenda um bar, no qual trabalham quatro brasileiros clandestinos, e aluga um apartamento de cinco quartos, onde mora com outros dez compatriotas ilegais. Entre eles estava o goiano Cleber da Silva, de 28 anos, que voltou para o Brasil no fim de agosto.

O uso de papéis falsificados foi a opção de Demer e Cleber para poder se integrar à sociedade. Demer conta como os obtiveram: “Sempre aparece alguém, que conhece alguém, que por um preço pode ajudar”. Quanto custa? “Entre 400 e 1.000 euros, tem-se a permissão de trabalho.” Cleber comprou os documentos. Três vezes. Em duas delas foi descoberto e detido. A última vez, cansado de tentar a vida no estrangeiro e com oferta de passagem para o Brasil e de trabalho, trocou a ilegalidade por um celular e voltou para casa. “Não quero viver na Europa assim, nem recomendo isso para nenhum amigo”, diz. “Quem quer vir para cá ou venha com papéis ou com dinheiro para comprá-los. Sem isso não dá”, arremata Demer.

reportagem

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Fabiana Gama Pereira, de 34 anos, psicóloga e doutora em antropologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, conhece histórias como essa. Presidente da Asociación Hispano-Brasileña de Apoyo a los Inmigrantes (Ahbai), declara: “O problema com os brasileiros co-meçou com as inadmissões e agora surge no número cada vez maior de prisões de ilegais. Para piorar, há um forte envolvimento deles com o crime de falsificação de documentos”.

Fabiana imigrou para Madri depois de estudar em Salamanca, onde conheceu o atual mari-do, espanhol. Há um ano espera o resultado da convalidação de seu título para exercer a profissão na Espanha. Enquanto isso, tentou (e tenta) seguir carreira acadêmica, mas se vê perdida num novo mundo. “As coisas aqui são muito diferentes do que ocorre no Brasil.” So-bre a experiência cultural, Fabiana opina que o choque é progressivo. “Quanto mais nos apropriamos dos signos da nova cultura, mais percebemos suas diferenças.”

Sem poder trabalhar com psicologia e cien-te da assistência social falha para imigrantes, público estudado em sua tese de doutorado, a psicóloga iniciou o trabalho da Ahbai – úni-ca ONG em Madri que ajuda brasileiros imi-grantes. Sem recursos públicos ou privados,

a associação está hospedada no edifício da ONG Voluntariado de Madres Domi-

nicanas (Vomade), onde funciona há um ano, e já atendeu cerca

de 300 brasileiros.

Alexandre Souza e Natasha Lopez, ambos de 34 anos, nascidos em São Paulo, são casados há quase dois. Natasha, filha de pai espanhol, casou com o amigo para dar a ele a naciona-lidade espanhola e o direito de poder viver e trabalhar no país.

Ele, produtor de TV, deixou São Paulo há sete anos para morar nos Estados Unidos. Lá, es-tudou fotografia. Quando acabou o curso, aproveitou o visto para permanecer. A cada seis meses se ausentava para não se confi-gurar legalmente morador. Até que resolveu aprimorar os conhecimentos sobre fotogra-fia em Madri. Voltou ao Brasil, pediu um visto de estudante e veio para a Espanha.

Aqui, conheceu Natasha e surgiu a idéia do casamento. Socióloga, ela mora em Madri há quase três anos. Foi para a Espanha obter crescimento profissional e cultural. Gostou da experiência mas, depois de engravidar, resolveu voltar ao Brasil para ter o filho junto da família. Para Souza, que ainda não pensa em voltar, “essa política atual gera xenofobia e complica bastante a vida de muita gente”.

A cidade de Madri: mais de 500 brasileiros barrados no aeroporto | imagem: Gaspar Arguello

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Idas e (não) vindas

O relojoeiro espanhol Gregorio Garcia, 43 anos, namora a brasileira Ana Maria dos Santos Oliveira, 29. O casal foi posto à prova pelos impedimentos à livre navegação nos mares do velho continente.

Em julho, Ana Maria foi passar uma semana na Romênia. Morava ilegalmente em Madri, mas confiou que o livre trânsito dentro da Comunidade Européia impediria que fosse barrada naquele país, que acaba de entrar no grupo. Deu certo. Mas ela não pôde re-tornar à Espanha e foi devolvida à Romênia.

O namorado não entendeu nada. Pois, na Comunidade Européia, uma pessoa ilegal é responsabilidade da nação que a recebeu pela primeira vez. Ana Maria deveria ser en-tregue, portanto, à Espanha. No entanto, fi-cou detida no aeroporto romeno porque o país não assinou o Acordo de Schengen, que permite a livre circulação de pessoas dentro das 22 nações signatárias sem a obrigação de apresentar passaporte nas fronteiras.

Por meio de uma advogada, Garcia pagou uma fiança, liberou a namorada e a aconse-lhou a voltar para a Espanha de ônibus. Ana Maria perdeu o passaporte com o carimbo da inadmissão, fez um novo documento e tentou comprar as passagens. Mas recusa-ram o documento sem visto de entrada na Comunidade Européia.

O namorado mandou-lhe, então, passagens de ida e volta a Lisboa, Portugal. E foi para o aeroporto português buscá-la. Não che-garam a se ver. Ana Maria foi inadmitida e, segundo a polícia portuguesa, ficaria detida até a data da passagem de retorno à Romê-nia, que seria de uma semana.

Pessoas detidas em trânsito e repatriadas não têm acesso à bagagem e ficam confina-das em instalações da Polícia de Imigração, no aeroporto, compartilhando quarto e ba-nheiro, e com alimentação fornecida pela companhia aérea, até a data de retorno.

Garcia, por meio de outra advogada, man-dou para a namorada uma passagem de re-torno ao Brasil para dar fim ao calvário. Agora, planejam o reencontro. Ana Maria está em Redenção, Pará. E o namorado em Madri, de onde se lembra dos parentes que um dia mi-graram para o Brasil após a Segunda Guerra, como outros milhares de europeus.

“Sempre tive muita vontade de ir conhecer meu tio e meus primos que moram no Rio de Janeiro. O que aconteceu com Ana Maria foi uma fatalidade e vai contra todo o dis-curso de liberdade dos governos europeus. A liberdade aqui é uma mentira.”

Entre mares

Assim como a Romênia, outros nove países membros da Comunidade Européia estão fora do Acordo de Schengen e possuem legislação específica sobre imigração: Bul-gária, Chipre, Finlândia, Irlanda, Islândia, Lie-chtenstein, Reino Unido, Noruega e Suíça.

Com o Reino Unido, o Brasil vive uma nova situação de restrição. O governo britânico entregou, no início de julho, uma série de exi-gências aos brasileiros para coibir a entrada de pessoas que se tornam ilegais, ameaçando voltar a exigir o visto de quem queira entrar no país (medida desnecessária desde 1998) caso as exigências não sejam cumpridas em seis meses. A justificativa é a crescente presença de irregulares, estimada em 150 mil.

Em Londres foi assassinado pela Scotland Yard, por equívoco motivado por seu tipo étnico não-europeu, em julho de 2005, o eletricista mineiro Jean Charles de Menezes, aos 27 anos, com oito tiros à queima roupa.

Em Londres, viveu três anos exilado pelo governo militar brasileiro o músico baiano Caetano Veloso, 66, que transformou em música o brado à navegação, perpetua-do pelo filósofo grego Plutarco, repetido pelo poeta português Fernando Pes-soa, e que atravessa eras e terras – “Navegar é preciso, viver não é preciso”.

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As medidas da intolerância

Nova legislação prevê detenção a imigrantes ilegais antes da repatriação

• A nova Diretiva de Retorno do Parlamento Europeu, aprovada em junho de 2008, determina que os Estados-membros estipulem um período de até 18 meses de detenção para os casos de repatriação. E que os menores de idade sejam devolvidos ao governo do país de origem, se os parentes estiverem detidos. Criada para regular a expulsão de imigrantes ilegais, a Diretiva não é obrigatória e foi classificada de transgressora dos direitos humanos por instituições humanitárias, políticas e religiosas.

• O programa de Retorno Voluntário que o governo espanhol colocará em prática neste ano oferece benefícios financeiros a imigrantes legais e ilegais para que regressem a seus países, mediante a assinatura de um termo que os impede de voltar à Europa por três anos. Os benefícios são, para os legais, seguro-desemprego proporcional ao tempo em que trabalharam no país e, para os ilegais, passagem e 400 euros (quase 1.000 reais).

• A revista eletrônica Fortress Europe (fortresseurope.blogspot.com), que compila notícias sobre mortes de imigrantes em fronteiras européias, contabiliza 12.717 óbitos nos últimos 20 anos.

• As mortes ocorrem, sobretudo, em naufrágios de embarcações precárias que tentam chegar à Europa. Também há vítimas de acidentes rodoviários em tentativas de cruzar áreas fronteiriças com desertos e montanhas. Outros perderam a vida em explosões em campos minados ou devido à truculência policial nas fronteiras.

Europeus sinalizam fechar portas aos povos que os receberam no passado | imagem: Gaspar Arguello

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Para sempre estrangeiroA barreira da língua pode transformar o sonho de viver no exterior em pesadelo

Por Antonio Carlos Viana

Há duas formas de ser estrangeiro. A primeira é lúdica, aquela das viagens turísticas, quando se perambula pelas ruas apenas com a preocupação de experimentar o que os guias turísticos aconselham. Pouco ligamos para as grosserias que nos fazem nos guichês do metrô, nos restaurantes, nas lojas de grife. A outra é mais séria, exige reflexão. É quando você sabe que vai para ficar naquele país por alguns anos. Nesse caso, tudo ganha um peso que o turista comum desconhece. Os primeiros dias num novo país são pura euforia. E ela é tanta que, por alguma espécie de milagre, você se faz compreender na língua que será a sua durante um bom tempo. No meu caso, quatro anos. Estava no país sonhado, a França, para fazer um doutorado em literatura. No começo, tudo vai bem, você se comunica à perfeição, acha que domina o idioma, até que um belo dia seu interlocutor estica o pescoço, apura o ouvido e lhe diz indiretamente que não o entendeu. Nesse momento, você sente pela primeira vez o que é ser estrangeiro. Basta um pode repetir? para saber que, dali em diante, você não passará de um ser imperfeito. Aos poucos, você vai tendo a certeza de que nunca falará aquele idioma como pensava que falaria. Não, você nunca irá falar francês como um francês, nunca irá falar uma língua como um nativo, por mais dedicado que você seja.

Desde aquele dia em que senti minha imperfeição lingüística, começou a ruir o mito da terra prometida. Eu não poderia ficar num lugar em que seria interpelado por um pardon! sempre que não me fizesse entender. O desconforto nos toma sempre que temos de nos dirigir ao outro. Desde que você se diferencie pela língua, tudo passa a ser diferente: a cor da pele, o jeito de andar, o modo de comer, de se vestir. Tudo agora é diferença e desconforto. Você vai se recolhendo, sumindo lentamente: resta procurar o refúgio entre os seus. Há os que lutam bravamente, fazendo contorções com a boca para articular determinado som, mas a palavra imperfeição acompanhará sempre cada fonema emitido. É muito difícil conviver com isso.

Pior ainda se você gravar sua voz e ouvir como seus sons nada têm a ver com o que ouve pelas ruas. A garganta aperta, e os rr e ss soam distantes dos originais. Dirigir-se à padaria de manhã cedo passa a ser doloroso. Tudo começa com apenas três letrinhas que antecedem a palavra baguette: une. Porque só um francês consegue pronunciar o artigo indefinido como um francês. Coisas pequenas assim vão nos dando a consciência não só de que somos cada dia mais estrangeiros, mas sobretudo de que, se nos estabelecermos ali, jamais sairemos da condição de seres que se denunciam.

crônica

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O sonho da volta

Como sobreviver com essa decepção? Al-guns recorrem à indiferença. Tudo o que o francês, ou o inglês, ou o alemão diz não me toca. Mas toca, sim, e como! Sobretu-do fere. Outros se recolhem ao silêncio e se resumem a falar o mínimo necessário. Con-tentam-se com ouvir e entender, o que já é muito. Não é fácil conviver com a idéia de que aquela língua lhe escapa em todos os seus movimentos. O que você mais deseja é voltar a falar sem antes ter de pensar em que ínfimo canto da garganta deve colocar tal fonema, num esforço que lhe rouba a paz e as horas. Ao morar num país estrangeiro, criamos uma distância em relação a nós mesmos ao não nos reconhecermos nas palavras que fa-lamos. Nem recorrer a um simples palavrão adianta quando nos sentimos agredidos. Ele sai sem nenhuma força. O significado se es-vai antes da última sílaba pronunciada.

O estrangeiro vive num estado permanente de suspensão, torcendo para que a vida vol-te a ser o que era, simples como o ato de res-pirar. Num país estranho, ela se torna muito mais intensa e consciente. Estamos desen-raizados, por isso ficamos mais vulneráveis a tudo. Sempre pensava nos exilados e sentia por eles. Não é à toa que muitos se casam na esperança de criar novas raízes, o que, creio eu, não resolve o problema. É trazer o abis-mo para dentro de casa.

Ao tomarmos consci-ência de que somos seres em transição, abandonamos pouco a pouco o ideal de nos aproximarmos daquela gente, daquela língua, daquele jeito de ser tão diferente do nosso. Mas sempre há os que fazem de tudo para se inserir naquele contexto, se não pela língua, pelos hábitos. E vemos quão rapidamente alguns se apoderam de uma flor, de uma caixa de bombom, de um vinho nem sem-pre bem escolhido, quando convidados para uma daquelas reuniões em que o que menos se quer é parecer estrangeiro, ten-tando fazer bonito com um gesto que não é bem seu.

Belo mesmo é o dia em que você está com o bilhete de volta na mão, e na porta do avião os comissários de bordo o recebem com aquelas vogais e consoantes tão suaves a seus ouvidos. É um instante brevíssimo que você jamais irá esquecer. Não há momento mais libertador para um estrangeiro do que acomodar a bagagem, sentar-se em sua poltrona e ouvir os cumprimentos da aero-moça na língua que o acompanha desde a infância. Que alívio! Reencontramos nossa perfeição. Estamos salvos.

Antonio Carlos Viana nasceu em Aracaju, Ser-gipe. Mestre em teoria literária e doutor em lite-ratura comparada, é autor de O Meio do Mundo e Outros Contos (1999) e Aberto Está o Inferno (2004), ambos pela Cia. das Letras. Morou na França entre 1982 e 1986.

“ Belo mesmo é o dia em que você está com bilhete de volta na mão” | imagem: André Seiti/Itaú Cultural

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A cidade de ChicagoO taxista que consegue migrar de personalidade a cada nova corrida, sem jamais se perder

Por Luiza Fagá

É requisito vital para quem se arrisca no ofício de percorrer a cidade, abrigando desconhecidos em seu carro, saber lidar com as mais diversas situações e personalidades. No trato com seus clientes, os taxistas se reformulam e se recriam a cada nova viagem – tudo para melhor atender o freguês. Chicago é um exemplo de profissional que se transforma em muitos. Por iniciar sua jornada de trabalho às 2 horas da tarde e virar a madrugada em trânsito (e no trânsito), o motorista atende desde executivos em horário de almoço até jovens saindo da balada. Com uma clientela tão diversificada, ele tira de letra a regra de se adaptar a cada situação, migrando para dentro de si mesmo.

Chicago é alto e magrelo, de rosto redondo e pele castanha. Seu sorriso largo sai fácil: é como se o bom humor e a conversa estivessem inclusos no valor da corrida. Tem 31 anos e há um trabalha como taxista em São Paulo. Chama-se Alvani José dos Santos, mas o apelido – estampado no boné que o rapaz usa − veio do gosto pelo basquete. Como seus ídolos do esporte, o motorista traja sempre tênis e camiseta larga para fora da calça. O celular, que carrega pendurado no pescoço, não pára de tocar – sinal de que ele, apesar do pouco tempo na profissão, já conquistou alguns clientes fiéis.

Diferentemente de parte dos taxistas que costumam pensar bem antes de parar o carro, Chicago não recusa ninguém. “Eu pego cliente de tudo que é tipo”, conta. “Durante o dia tem executivo que vai concentrado com o notebook no colo, trabalhando no carro. No começo da noite é o horário de os casais saírem para jantar, aí eles vão aproveitando seu momento, e eu fico mais na minha. Um pouco mais tarde tem jovens indo para a noite, esses são os que mais gostam de conversar, e às vezes pedem sugestão de um bar pra ir. De madrugada já tem um pessoal voltando para a casa, geralmente estão bêbados, mas alguns puxam uma conversa.” Chicago explica que se adapta, sim, às pessoas, mas sem abandonar sua essência. “Quando alguém fala alguma coisa que não é minha opinião eu não discordo, mas também não concordo.” É como se o rapaz fosse uma cidade inteira e levasse cada novo turista ao bairro que mais lhe fosse agradar.

reportagem

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Ser taxista, afinal, é lidar cotidiana-mente com diferenças e novida-des. Diversos tipos de paulistanos – de várias faixas etárias, profissões, classes sociais e especificidades culturais – passam pelo carro de Chicago todos os dias. O moto-rista, por seu lado, procura aprender com cada um desses diferentes. “Se não entendo um as-sunto deixo a pessoa falar. Aí aprendo alguma coisa e, quando outro passageiro comentar sobre isso, já vou saber do que se trata.” Ao mudar os interesses do interlocutor, os assun-tos e as conversas naturalmente se alteram. “Está na moda falar da lei seca. É quase como falar do tempo ou do Corinthians, um assun-to fácil.” Chicago, porém, nunca aposta nesses temas para iniciar uma conversa. “Prefiro fugir dos clichês, não gosto de falar de futebol, por exemplo. Se for para conversar sobre esporte prefiro falar de basquete. Quando quero que-brar o silêncio, um assunto que sempre fun-ciona é relacionamento.”

Taxista também é conselheiro sentimental

Às vezes, tudo o que o passageiro neces-sita é de alguém disposto a lhe emprestar os ouvidos. Nessas horas, o taxista faz papel de psicólogo ou conselheiro sentimental. É comum, conta Chicago, que mulheres en-trem em seu carro aos prantos. Quando isso acontece, o rapaz assume o sexo dos anjos e tenta acalmar a passageira. “Eu falo: ‘não fica assim, não. Homem é tudo igual, mes-mo, tudo cafajeste’.” Brigas conjugais tam-bém ocorrem com freqüência, mas nesses

casos Chicago prefere não intervir e dirige calado. Há ocasiões, porém, em que os pró-prios passageiros o convidam a participar da discussão como juiz. Uma vez, ele conta, um casal entrou no táxi discutindo. A pedi-do deles, o motorista parou em um caixa eletrônico. O homem desceu e, aproveitan-do sua ausência, a mulher pediu a Chicago:

– Quando ele voltar, vou te perguntar quem está certo e você diz que sou eu, tá bom?

Combinado. O homem voltou.

– E aí, taxista, quem tá certo, eu ou ele?

– Vocês. Vocês dois estão certos! – respon-deu Chicago sorrindo.

O casal riu. “Aí eu já comecei a fazer um monte de brincadeira, né?” Papo vai, papo vem, o taxista ficou sabendo o motivo da briga: em uma festa a mulher, por ciúme, jogara um copo de água no rapaz, que se enfurecera com a atitude.

– Mas jogar água é carinhoso. – argumen-tou o taxista.

– Tá vendo? – concordou a mulher.

No fim da corrida, o casal desceu do carro aos beijos. Briga de casal, porém, não é nem de longe o desentendimento mais grave que um taxista pode presenciar e, às vezes, nesse trabalho, é necessário ser duro e não dócil.

O taxista Alvani José dos Santos veste o boné do time de basquete que lhe deu apelido | imagem: Cia de Foto

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Chicago não tem medo de revólver

Estar preparado para o perigo e saber como enfrentá-lo também faz parte dos ossos desse ofício – sobretudo para os motoristas que op-tam por percorrer as ruas da metrópole duran-te a madrugada. Desde que se tornou taxista, Chicago nunca foi assaltado no trabalho. “Meu maior medo são as multas de trânsito”, brinca, mas conta que já levou alguns sustos. Nessas horas, segundo ele, o melhor a fazer é tratar o suspeito de igual para igual, sem demonstrar medo. “A pessoa tem que pensar que estou prevenido, que já sei o que ela pretende. Na dúvida ninguém arrisca, então se achar que estou preparado para enfrentar não vai tentar nada”, recomenda. E completa com seu lema: “Se tiver que ser, será”.

Uma vez, no centro da cidade, o rapaz pa-rou o carro ao sinal de um homem alto e forte. “Para a Lov.e”, o passageiro decretou. O motorista ficou desconfiado, mas sob hipó-tese nenhuma se negaria a fazer a viagem até essa discoteca paulistana. Ele não tem carro próprio e o aluguel do veículo que usa para trabalhar lhe custa 93 reais por dia. Quando não alcança esse valor, sai no pre-juízo. Chicago seguiu em direção ao Itaim Bibi, onde até abril deste ano ficava a casa noturna a que o passageiro iria. O homem sentado no banco de trás era de poucas palavras, mas contou por que havia chamado o táxi.

– Minha mulher está dormindo. Se ela acorda e não vê meu carro a coisa fica suja, mas se o vir vai achar que eu estou pertinho de casa.

Como bem sabe Chicago, relacionamento é o tema que quebra qualquer gelo. Pelo re-trovisor, o motorista viu que seu passageiro tirara um revólver calibre 38 da cintura, mas procurou manter a calma e agir naturalmen-te. O homem mexia na arma como se fosse um brinquedo. À frente, uma blitz da polí-cia. O motorista, receoso de que um conflito pudesse se iniciar, alertou o passageiro:

– Toma cuidado, esconde isso aí.

– Fica tranqüilo que está tudo em casa.

Nessa hora, o taxista entendeu que levava em seu carro não um bandido, mas um po-licial. Respirou aliviado e seguiu seu rumo. Mas nem todas as noites são tranqüilas, nas ruas de Chicago.

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Um turista em São Paulo

Se a cidade, representada por seus habitan-tes, passeia cotidianamente por seu carro, o oposto também é verdadeiro. O rapaz não tem ponto fixo e passa toda a jornada de trabalho em movimento, muitas vezes trafe-gando sem rumo em busca de clientes, que lhe determinarão o próximo destino. Desde cedo, porém, Chicago aprendeu quais são os bairros que rendem boas corridas. Em seu primeiro dia de trabalho, assim que saiu com o carro da locadora de táxis, ligou para um antigo conhecido, colega de profissão, e lhe perguntou o que devia fazer. “Ele me falou para ficar no centro, porque era lá que tinha gente, então era onde estava o dinheiro.” Chi-cago aprendeu a lição. Atualmente, passa o dia em regiões com muitos escritórios, como o Itaim e os arredores da Avenida Paulista. À noite, migra, com os paulistanos, para perto de bares e casas noturnas, concentrados em bairros como Vila Madalena e Vila Olímpia.

Mas, se o taxista pode escolher

de onde parte, não pode deci-dir para onde vai. Morador do Parque

Novo Mundo, bairro localizado na zona norte de São Paulo, Chicago já rodou por

todas as regiões da cidade. Mesmo assim, a metrópole ainda lhe é estranha. “Conhecer São Paulo inteira é impossível. Nem aque-les que estão há mais de 20 anos na estrada conseguiram.” A condição de estar sempre migrando por diferentes partes de uma cidade que não se pode nunca conhecer completamente o intriga. São Paulo, para ele, é repleta de surpresas. “Outro dia fui até Parelheiros [extremo sul]. Eu não tinha idéia de como era.” De fato, poucos paulista-nos conhecem o bairro rural onde há duas aldeias indígenas. Mas as pequenas des-cobertas também dão ânimo ao dia-a-dia. “Tem bairros em que a gente passa sempre, mas que de repente descobre uma ruazinha nova, uma casa que nunca tinha visto antes.” Como Chicago, São Paulo também é cheia de facetas.

Chicago em seu táxi: “A pessoa tem que pensar que eu estou prevenido, que já sei o que ela pretende” | imagem: Cia de Foto

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Tão longe, tão perto

Por Mariana Sgarioni

O jornalista é, por vezes, tinhoso consigo mesmo. Parece até advogado do diabo. Ele gosta tanto de perguntar, mas tanto, que não poupa nem a si próprio. Por isso, não são raros os momentos em que aparecem aquelas perguntinhas capciosas na cabeça da gente, como “Por que sou jornalista afinal de contas?”. Sempre que esse capeta vem soprar em meu ouvido, penso imediatamente no Jaime Spitzcovsky. Eu posso até titubear ao responder essas perguntas. O Jaime, não.

Imagine uma pessoa que aos 7 anos já sonhava em ser jornalista – acho que ele nem pensava em ser médico, bombeiro ou astronauta, como eu, por exemplo. Talvez ele fantasiasse que seria um incrível e destemido repórter, que viajaria o mundo inteiro com seu bloco de anotações, visitando lugares cheios de neve (e de bonecos de neve), como a Rússia, e outros cheios de bicicletas, como a China. Pois o Jaime é a primeira pessoa que eu conheço que queria ser jornalista quando crescesse. E é a primeira pessoa que fez exatamente suas fantasias se tornarem realidade.

Aos 43 anos, editor-chefe da produtora de conteúdo jornalístico PrimaPagina (www.primapagina.com.br), Jaime Spitzcovsky virou um grande jornalista. Assim como sonhou, sua carreira foi pelo mundo. Ele começou em 1987, quando foi editor de internacional na Folha de S.Paulo. Nessa época, iniciou suas migrações: foi enviado especial do jornal a diversos países, cobrindo eventos de grande importância. Em 1990, partiu para seu primeiro grande desafio: tornou-se correspondente em Moscou, onde ficou por quatro anos. Se ele estranhou a migração? De jeito nenhum. Aprendeu russo, tornou-se quase um nativo. Testemunhou a queda de um império. Deve ter feito bonecos de neve no inverno. E, quando já estava totalmente adaptado, eis que fez as malas e migrou de novo, dessa vez para Pequim, cidade a que nunca tinha ido antes. Mal conhecia os costumes locais e ali aportou para trabalhar durante três anos. E para andar de bicicleta de vez em quando, claro.

Depois de sete anos fora − a mais longa das universidades, como ele mesmo gosta de brincar − em 1997 Jaime voltou ao Brasil, reassumindo o cargo de editor de internacional na Folha de S.Paulo. Na bagagem, trouxe milhões de histórias de idas-e-vindas, que vai contar nesta entrevista. Veio ainda um rico aprendizado que ele fez questão de transmitir para quem estava começando, como eu, que me tornei uma de suas correspondentes no exterior. As aulas do Jaime até hoje ecoam em todos os trabalhos que faço. E me ajudam a responder por que um jornalista pode ser, sim, muito mais bacana do que um astronauta.

entrevista

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Um correspondente, quando chega a um país estrangeiro, não tem muito tempo para se adaptar. Chega e começa a traba-lhar imediatamente. Como foi esse aspec-to para você, que estava num lugar tão di-ferente do Brasil como Moscou?

É um trabalho desafiador. Realmente, a gen-te chega e tem de começar a produzir maté-ria. À medida que se produz, tem-se de ir se adaptando a um universo muito diferente da-quele que se está acostumado, do ponto de vista dos hábitos, da alimentação, da língua. Então é um duplo desafio: construir, ao mes-mo tempo, seu trabalho profissional e suas condições de vida. Esses desafios serviram, porém, como um gigantesco estímulo. Para muitas pessoas, a idéia de adaptação a um lugar estranho parece algo assustador. Mas, para mim, ao contrário, era muito desafiado-ra. As coisas mais prosaicas do dia-a-dia que a gente, no Brasil, acaba ficando chateado de fazer, em Moscou, ganhavam uma dimensão muito diferente. Por exemplo: levantar todo dia para comprar pão no lugar que se está acostumado a viver pode ser uma atividade maçante. Mas quando você está num lugar novo, no qual mal fala a língua, o simples ato de comprar pão o faz descobrir um universo totalmente diferente. Aquela atividade, mais prosaica impossível, se torna uma experiên-cia nova, incrível. Ir ao mercado, conversar com as pessoas, procurar mobília para a casa, comprar roupa, fazer um enxoval para enfrentar o inverno. Para mim, toda essa dificuldade de adaptação representou muito mais o de-safio da descoberta.

Em algum momento se sentiu desamparado?

Essas situações exigem uma capacidade para a solução de problemas muito mais avança-da do que se imagina. Quando se vive na ter-ra natal, pode-se recorrer a diversas pessoas e mecanismos com facilidade. Estar num lugar distante, sozinho, e sem um suporte imediato faz com que se desenvolva melhor a capacidade de se comunicar, de buscar al-ternativas. É mais um elemento, repito, que entra na lista dos desafios. Tenho de resolver esse problema, e agora? Não posso esmore-cer, tenho de ir em frente.

Você pensava que, por mais que tentasse se inserir na sociedade, ainda continuava um estrangeiro?

Eu me sentia estrangeiro o tempo todo so-mente no começo da minha permanência em Moscou. Isso porque havia ainda o regi-me soviético. As diferenças entre um cidadão soviético e um ocidental eram claras e ime-diatas, a começar pelas roupas e sapatos. O soviético olhava e sabia que você era de fora. Um motorista de táxi me disse uma vez que reconhecia um estrangeiro pelo sapato. Na segunda metade de minha permanência em Moscou, depois do fim da União Soviética e quando vieram as reformas que trouxeram o capitalismo, eu me senti menos estrangeiro. Essas diferenças visuais foram lentamente desaparecendo. Acho que, do ponto de vista físico, passo bem por um russo, um eslavo. E já dominava o idioma, já trabalhava em rus-so. Isso foi muito importante.

Jaime Spitzcovsky em sua casa: “No dia seguinte à minha volta [ao Brasil], era como se eu nunca tivesse saído daqui” | imagem: Cia de Foto

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Importante por quê?

Porque em alguns momentos eu não queria ser percebido como estrangeiro. O trabalho de correspondente é fundamentalmente um trabalho de observador. Você fica pra-ticamente o tempo inteiro querendo en-tender como funciona uma sociedade em seus mais diferentes aspectos. Por isso que é muito importante o correspondente se manter mais discreto possível – ele é o ob-servador da cena. Um estrangeiro ao entrar num determinado lugar já muda um pouco o contexto natural das coisas.

Na China não teve jeito de não ser es-trangeiro...

Na China foi outra história. Há a questão físi-ca, você é estrangeiro 24 horas por dia.

Você imigrou de novo, para a China, e voltou a ser estrangeiro. Isso num mo-mento em que finalmente se sentia em casa em Moscou...

Sim, eu já me sentia muito à vontade em Moscou. Até brincava que devia ter alguma memória genética: meus avós vieram da Eu-ropa oriental. Na Rússia, havia muitas refe-rências e coisas que me faziam sentir muito bem ali. Por outro lado, após quatro anos, os desafios já eram menores. As primeiras descobertas não existiam mais, passaram a fazer parte do dia-a-dia. Do ponto de vista noticioso, meu interesse pela Rússia tam-bém tinha diminuído bastante. Eu cheguei em 1990, no auge da Perestroika, quando havia também a luta política entre Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin. As notícias vin-das da União Soviética eram intensas. Em 1994, percebi que o interesse jornalístico na região começava a diminuir. Aí disse ao jornal: “Fiquei quatro anos testemunhando o fim de um império, de um dos grandes personagens do século XX. Quero poder acompanhar a emergência de uma nova potência, seguramente aquele que será

um dos grandes personagens do século XXI, a China”. O jornal achou que valia

a pena. Em meados de 1994 mudei de Moscou para Pequim, onde

fiquei até 1997.

O que significou a chegada ao novo império?

A China era um completo mistério para mim. Nunca tinha ido ao país, meus conhecimen-tos sobre a história e a cultura locais eram limitados. Acompanhava como jornalista, mas estava muito longe de conhecer direito. Foi um desafio ainda maior. Por outro lado, quanto mais dificuldade, mais estímulo eu sentia. Descobrir a China, entender sua ló-gica, conviver com a população, com as di-ferenças, trabalhar naquele cenário era algo cansativo, mas muito desafiador.

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Até que ponto a convivência com os chineses acontecia de fato? Você teve inserção nessa sociedade, assim como em Moscou?

Era muito mais fácil transitar na sociedade russa do que na chinesa. Primeiro porque che-guei a dominar o russo, no entanto não apren-di o chinês. Segundo porque na Rússia em alguns momentos eu passava por um nativo, um local. Há outro aspecto importante: a Chi-na passou muito tempo isolada politicamen-te, sobretudo no período de Mao Tsé-Tung. O país ainda mantinha algumas seqüelas desse isolamento no que se refere ao contato com estrangeiros, no período em que morei lá, de 1994 a 1997. Hoje a situação é bem diferen-te, pois o país faz um gigantesco esforço para se abrir. As Olimpíadas foram o exemplo mais clássico disso. O chinês está mais curioso e menos receoso do contato com o ocidental. Quando estava lá, ainda mais na condição de jornalista, havia certo receio em lidar com um correspondente internacional. Isso porque, durante muito tempo, se cultivou a idéia de que os correspondentes eram enviados de re-gimes inimigos para criar uma imagem nega-tiva da China. O trabalho jornalístico em Mos-cou e em Pequim também foi muito diferente por esse aspecto. Morei em Moscou num tempo de fim do regime soviético, quando os russos estavam muito ansiosos por se co-municar com a mídia ocidental, estavam ex-perimentando maior liberdade de expressão. Na China ainda havia a mão bem pesada do Partido Comunista em relação à liberdade de expressão. Tive uma dificuldade muito gran-de para conseguir entrevistas, ter acesso à informação. Mas até onde sei – e tenho voltado à China – isso tem muda-do gradualmente.

Depois de sete anos de intensas migra-ções, como foi o retorno ao Brasil?

Aconteceu o seguinte: fiquei sete anos fora. No dia seguinte à minha volta, era como se eu nunca tivesse saído daqui. Não tive ne-nhum problema de readaptação. Foi como se tivesse feito uma longa viagem – e só. Claro, percebia algumas mudanças no Bra-sil, mas do ponto de vista pessoal, de me readaptar às pessoas e ao trabalho, foi zero. Nenhum problema. Acho que tenho uma característica pessoal de muita flexibilida-de para situações diversas. Talvez seja esta a conclusão a que chego hoje: um sujeito que mora quatro anos em Moscou, três em

Pequim, volta para São Paulo e não tem dificuldade nenhuma de se adaptar

deve ter um grau de flexibilida-de muito grande.

Spitzcovsky: “Em alguns momentos eu não queria ser percebido como estrangeiro”

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As pessoas hoje migram muito mais do que antes. O mundo está mais prepara-do para receber esses fluxos migratórios ou ainda existem muitas restrições?

No mundo da Guerra Fria, havia um cenário geopolítico dividido em duas partes, e as grandes migrações entre elas eram muito difíceis. Qual era o fluxo migratório do bloco americano para o bloco soviético? E o con-trário? Havia fugas, mas nada significativo do ponto de vista numérico em boa parte do tempo. O que acontece agora é que há um cenário mais homogêneo, uma vez que não há grandes barreiras ideológicas dividindo o planeta. Por isso, a capacidade dos fluxos migratórios se intensificou. A mobilidade é maior no mundo hoje. Com as característi-cas positivas e negativas dessa mobilidade. Os países desenvolvidos, por exemplo, estão claramente inclinados a controlar esse fluxo. Isso deve criar tensões. A principal questão é que os fluxos migratórios são um reflexo do aumento das desigualdades econômicas entre os países. Trata-se de uma busca cada vez maior das pessoas dos países pobres, que querem chegar aos desenvolvidos.

Nesse contexto, qual o principal aspecto dos fluxos migratórios?

Há diversos aspectos, como tráfico de pesso-as, de mulheres, de mão-de-obra. Mas há um ponto que é um dos fenômenos mais impor-tantes dessa virada do século XX para o XXI: a migração dos chineses do campo para a cidade. O aumento da população urbana na China é um dos grandes motores do cresci-mento econômico no país. Quando fui mo-rar lá, em 1994, fiquei surpreso ao saber que 80% dos chineses naquele período viviam no campo. Hoje, a população rural na China está em torno de 65%. Ou seja, caiu muito. Imagi-ne quantos milhões de chineses nos últimos anos pegaram sua malinha, deixaram o cam-po e foram para a cidade?

Isso faz pensar numa crise de abasteci-mento. Quem vai plantar no campo?

Há o lado positivo e o negativo. O positivo é que essas pessoas vão ser mão-de-obra nas cidades, e isso vai ajudar a alimentar o cres-cimento econômico. Elas serão novas con-sumidoras, pois vão ganhar mais e comprar mais, o que aumentará a oferta. Agora, qual é o grande desafio? Oferecer educação, mo-radia, saneamento, transporte a esses mi-lhões de chineses que deixaram o campo.

A acelerada urbanização da China é um fenômeno impressionante. Estamos

falando de muita gente: são deze-nas de milhões de pessoas.

O jornalista com um de seus cinco cachorros | imagem: Cia de Foto

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Houve algo semelhante, em pequenas proporções, na época do chamado “mi-lagre econômico” brasileiro.

Mas tudo na China acontece em escala mui-to maior. Estamos falando em algo em tor-no de 20% da população mundial. Acredito que um dos fenômenos migratórios mais importantes da história é esse que acontece agora na China. Isso raramente aparece na mídia, pois, como é um fenômeno interno, o mundo não acompanha. Mas trará conse-qüências fundamentais para o desenho do que vai ser a China daqui por diante. Se pen-sarmos que o modelo econômico no país sempre esteve muito focado nas exporta-ções, nos últimos anos vem ocorrendo uma crescente demanda do mercado interno. São muitos chineses consumidores. Essa é uma das grandes perguntas do século XXI: quem abastecerá o mercado chinês? Há estimativas que falam de uma classe média de 300 milhões de pessoas. É muita gente.

O que você guarda até hoje de mais pre-cioso de suas migrações?

Essa experiência representou duas coisas para mim. Primeiro, um gigantesco aprendizado. Segundo, ficou muito clara a necessidade que temos de estar abertos para o convívio com o diferente, com uma maneira diversa de se expressar, de ver o mundo, de lidar com as pessoas, com o dia-a-dia. Aprendi muito do ponto de vista pessoal e profissional. Cos-tumo brincar que foi uma universidade longa, de sete anos, mas que me deu uma sensação de ter aprendido demais. Sobretudo em rela-ção ao ser humano.

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Personagens andarilhos, palavras migrantes

Por Welington Andrade

A literatura pode ser entendida como uma grande migração da palavra. Passagem da região dos sentidos ordinários, sensatos, plagiários (uma vez que copiam a língua tal como fixada pelo uso médio) à terra dos sentidos móveis − onde as palavras nunca ficam satisfeitas de estar onde estão.

A partir desse movimento, os leitores também se comportam como turistas ou migrantes. O primeiro grupo inclui aqueles para os quais a viagem não começa enquanto não se garantem certas cautelas. Esses preferem os lugares que os encham de reiterada euforia ao desfrutar textos ligados a práticas confortáveis de leitura. O segundo congrega os exploradores dispostos a ir além. São aqueles cuja viagem os desnorteia por meio da fruição de páginas que desequilibram as bases culturais do indivíduo, a persistência de seus gostos, fazendo sua relação com a linguagem entrar em crise.

De acordo com Walter Benjamin, a origem das grandes narrativas assenta-se sob dois tipos de narradores antigos: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, cujas trocas de experiências atingiram o ápice na Idade Média, fixando as figuras do mestre que nunca saiu de sua aldeia, mas conhece como ninguém a memória local, e do aprendiz migrante, portador do saber das terras distantes.

A grande literatura que se espelhou na antiga arte de narrar está comprometida, a rigor, com o reconhecimento da trajetória humana sobre a Terra. Inseridos em tempos e espaços ambiguamente definidos e figurados, personagens emblemáticos dessas criações partem em busca de um sentido para sua existência, mediados pela tensão dialética que há entre o eu e o outro, o aqui e o acolá, o experimentado e o inexplorado.

Três grandes personagens podem ilustrar a transformação da palavra ficcional em bússola, inestimável instrumento de navegação a ser usado na rota da literatura rumo à celebração do homem: um rei, um cavaleiro e um jagunço − todos desaprumados, errantes. Um dos mais antigos personagens velejadores de que se tem notícia é o rei de Ítaca, Odisseu, protagonista da épica homérica que leva seu nome (Odisséia, Cultrix, 2004). A obra, concebida entre 800-900 a.C., é um poema de regresso, do nostos grego que nos legou a palavra “nostalgia”: a dor produzida pela vontade de retornar.

artigo

Viagens cujos destinos, apesar de ilusórios, conduzem a lugares verdadeiros

Ilustração: Liane Iwahashi/Itaú Cultural

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Marido leal, eterno viajante, anti-herói, Odis-seu usa estratégias para voltar ao lar, não sem antes conhecer paragens fantásticas. A ilha dos ventos, a morada dos mortos, a ter-ra de Circe e o país dos feácios são apenas algumas das estações do percurso traçado por um personagem que também teste-munha a transição do cru para o cozido, da barbárie para a civilização. Portador de um espírito de luta, matizado por uma curiosi-dade pelo desconhecido, Odisseu vai dei-xando para trás o mundo da fantasia, a fim de confrontar sua natureza humana.

Na Espanha da virada do século XVI para o XVII, os 700 anos de luta contra os árabes, as guerras de conquista contra a Itália, as vi-tórias sobre a França e a exploração dos te-souros da América serviram como pano de fundo para a criação de Dom Quixote (Villa Rica, 1997), de Miguel de Cervantes.

O personagem parte de um obscuro lugare-jo em busca da verdadeira pátria, a terra da cavalaria andante, tomando pelo caminho estalagens por castelos, moinhos por gigan-tes, ovelhas por soldados. Mas sua loucura é uma sábia recusa em aceitar o princípio da realidade. Emissário do passado, Quixote busca a sobrevivência, empreendendo uma cruzada contra a morte.

Quanto mais o cavaleiro persegue seu ob-jetivo de enfrentar o mundo, mais este lhe escapa, acentuando o fosso − tragicômico − existente entre o real e sua representação. O Cavaleiro da Triste Figura somente encontra felicidade no exílio auto-imposto, no qual pode erguer o estandarte do homem livre

que almeja ser, mas cujo drama é estar cin-dido entre a existência cotidiana a que

todos à sua volta se apegam e o mun-do ideal para onde somente ele é

capaz de se precipitar.

Viajar e contar para (se) entender

Foi no Brasil desenvolvimentista da década de 1950 que irrompeu o Grande Sertão: Veredas (Nova Fronteira, 2007), de Guimarães Rosa, “uma histó-ria de jagunços, do norte de Minas, narrada pelo ex-jagunço Riobaldo, grande sujeito e brabo”, nas palavras do autor. Em suas andanças pelas paisa-gens de um Brasil agrário, Riobaldo e seu bando vão vivenciando proezas de amor, feitos de guerra e ações memoráveis, mediante as quais a rota da vida se compara à deriva narrativa, porque nem sempre se conta tudo ou se conta certo. Atravessar o sertão da linguagem é aliar o falso ao verdadeiro, embaralhando o conhecimento que o indivíduo tem de si mesmo e do mundo.

O Riobaldo personagem transforma seu pas-sado em texto compreensível, porque o obje-tivo da viagem é a compreensão da trajetória propriamente. Quanto ao Riobaldo narrador, o que lhe cabe é o entendimento da experi-ência por meio da palavra cultivada.

Odisseu, Dom Quixote e Riobaldo são persona-gens-chave da superação de limites, transitando pelos confins da cultura, da razão, da experiência e da sorte. Há cerca de 3 mil anos, outras figuras ficcionais como eles viajam porque se perdem de si mesmos. E há cerca de 3 mil anos também inú-meros indivíduos escrevem por não quererem as palavras que encontram. Em plena sintonia com a utópica tradição de Fernando Pessoa (“Só me encontro quando de mim fujo”), Homero, Cervantes e Rosa são muito hábeis em mostrar que todo o destino é ilusório, e toda a travessia, quimera, desnudando ainda, em chave de mol-dura metalingüística, a mentira por meio da qual a literatura conta sua verdade.

Welington Andrade é doutor em literatura bra-sileira pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo.

Leia a íntegra deste artigo em www.itaucultural.org.br/continuum.

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Migrar para melhor se expressar

Por Karla Dunder

Ir de um lugar para outro, movimentar-se para uma nova região. Um fenômeno tão antigo quanto o próprio homem, a migração também atinge as artes, em tempos de produções híbridas e interação de linguagens. Mesmo sem muitas fronteiras entre as formas de expressão, alguns artistas radicalizam e mudam completamente de rumo. Jum Nakao é um deles. Paulistano, neto de japoneses, técnico em eletrônica e inquieto estilista, abandonou todo o glamour das passarelas para dedicar-se à moda ministrando aulas em universidades, palestras e workshops, além de atuar em outras áreas, como teatro, cinema, ópera, design e artes plásticas.

Nos tempos de estudante, antes de se tornar um pensador da moda, Nakao era um daqueles alunos que interrompiam a aula para entender a origem das fórmulas, e queria criar seus próprios caminhos a ter de decorar regras. “Era bem estranho, quando levantava a mão para perguntar, a classe logo reclamava: ‘Lá vem o qual-é-a-origem?’. O ambiente era inadequado aos meus questionamentos, afinal era uma escola técnica industrial e esse era seu foco. Acabei concluindo o colegial sem as respostas que procurava”, conta. Elas acabariam por surgir com a tecnologia, daí a escolha pelo curso técnico em eletrônica. “Desde pequeno desmontava equipamentos para compreender seu funcionamento. Sempre me interessei em codificar, alterar, montar, desconstruir e reconstruir. Gostava de criar meus próprios brinquedos. Pensei que a tecnologia, por meio da eletrônica e da computação, seria o suporte ideal para minhas idéias, que ela faria a interface entre o homem e o entorno, criando, assim, novas percepções e ampliando essa relação.” Justamente nessa época, Nakao percebeu as roupas, viu como a moda cumpria essa função por meio de seus códigos, ao identificar grupos e hábitos e estabelecer relações. “A roupa é uma extensão do corpo, algo entre o corpo nu e o ambiente.”

A moda, então, foi o meio escolhido para o artista expressar seus questionamentos e inquietações e o instrumento para pensar e refletir sobre o entorno. Em 2004, Nakao promoveu um antológico desfile durante a São Paulo Fashion Week: modelos rasgaram suas roupas feitas com papel vegetal. “As pessoas são expostas a uma série de informações que não digerem, não decodificam, apenas engolem. A idéia era realizar um desfile que questionasse esse conteúdo, o conceito por trás da forma, e mostrasse que um trabalho, mesmo destruído, rasgado e destituído de sua forma, pode permanecer vivo na memória de todos.” O desfile entrou para a história da SPFW.

reportagem

As mudanças radicais empreendidas por artistas na busca pela satisfação pessoal

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Desfile do estilista Jun Nakao, na São Paulo Fashion Week de 2004 | imagem: Fernando Louza

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A irreverência tem seu preço, principalmente

quando a lógica do mercado en-tra em cena. Sem conseguir cobrir os

custos de sua produção, o estilista se viu obrigado a optar. “Subsidiei meus pro-

dutos durante três anos para ingressar no mercado. Chegou um momento em que, para não abdicar de meus ideais, decidi pa-rar e fazer somente aquilo em que acredito. Para que ter marca própria se a economia e a cultura de mercado me obrigam a renun-ciar? Continuo participando ativamente da moda como professor. Visto pessoas no sen-tido metafórico para um dia voltar a vesti-las por meio da metáfora: a roupa.”

Felicidade e realização, porém...

O mesmo jogo de mercado que afastou Nakao das passarelas levou Mariana Mas-carenhas às artes plásticas. Questões bu-rocráticas e administrativas foram algumas das causas apontadas por ela para largar a gastronomia e fechar o bistrô Noz Moscada Culinária, no Rio de Janeiro. “Não encontrei alguém que pudesse cuidar da parte admi-nistrativa, e cuidando dela não podia alçar novos vôos.”

Formada em comunicação social pela PUC/Rio, Mariana decidiu estudar francês em Pa-ris quando concluiu seu curso. Lá conheceu o chef Serge Bréda, detentor do título Meil-leur Ouvrier de France – espécie de Oscar da cozinha francesa –, com quem começou a trabalhar. De volta ao Brasil, ela tentou trilhar seu caminho como produtora em uma rede de televisão, mas desistiu. Os anos felizes na França e as doces lembranças das reuniões em família levaram Mariana à gastronomia. “Em 1994, quando comecei, não havia nem de longe o glamour que existe hoje em torno da gastronomia, que também não era uma profissão tão levada a sério. Venho de uma família grande, que se reunia em volta de far-tas mesas, e esses eram momentos sempre muito felizes. Adorava ficar na cozinha aju-dando, com todos os aromas, as texturas e os sabores em volta, e também arrumando a mesa, com copos, talheres, louças, toalhas, flores, tudo coroado com uma intensa sensa-ção de felicidade e realização. Acho que esse é o verdadeiro motivo que me levou para tal universo: a busca de um caminho feliz e de realizações e não uma escolha racional.”

Mariana abriu seu primeiro restaurante sem fazer idéia de como seria administrá-lo. “Foi um enorme sucesso desde o começo, mas sempre esbarrava na questão administrativa. O negócio cresceu, a marca se fortaleceu, com isso eu passei a ficar muito distante do

Opostos, de Mariana Mascarenhas, obra feita em linho e acrílica sobre tela, de 2005 | imagem: Luciano Bogado

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que realmente era importante para mim: a relação direta e saudável com a criação.” Infeliz com sua escolha, a chef buscou no-vos caminhos. Em 2004, ingressou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. “Foi como se ali, ao longo dos três anos em que freqüentei as aulas, estivesse tudo o que eu havia procurado por tanto tempo. Pela primeira vez na vida tive cer-teza do que estava fazendo e que caminho queria seguir. Um período de mergulho in-tenso no universo das artes plásticas para compensar o tempo perdido!”

A mesma busca pela felicidade e por reali-zação pessoal mudou os passos de Marcelo Sebá. Ele foi produtor da cantora Fernanda Abreu, mas abandonou o mundo da músi-ca para ser gerente de marketing da Ellus. Tornou-se na seqüência diretor de marke-ting da grife Diesel. Mas largou seu posto e optou pela produção teatral. “A felicidade tem seu preço, é preciso ter consciência dos riscos que uma mudança pode acar-retar na conta bancária. Uma amiga disse: ‘Você vai trabalhar mais, ganhar menos e ser mais feliz’.”

O que o levou então para o palco? O desa-fio. “Sou movido pelo novo. O teatro pos-sibilita mostrar ao público minhas idéias. Consigo falar por meio dos persona-gens. Se eu morrer hoje, meu epitá-fio não será apenas ‘ele vendia calças jeans ’ ”, brinca.

Acertos de rota

Nem sempre é preciso ter um motivo certo para mudar. Carlos Vergara deixou seu trabalho em uma refinaria da Petrobras, a atuação de joga-dor de vôlei do clube Fluminense e o ofício de artesão de jóias para tornar-se artista plástico. “Comecei a fazer jóias, mas me vi voltado para a arte quando já tinha a intenção de produzir coisas que contivessem mais que minha habi-lidade manual. Daí migrar para as artes plásticas foi como dizer um simples bom-dia.”

Foi um tropeço, ou melhor, uma contusão no joelho que tirou o então jovem bailarino Pau-lo Szot das sapatilhas. Hoje ele é barítono, um dos maiores cantores de sua geração. Szot começou a dançar na Academia Musical de Ribeirão Pires, escola de sua irmã. “Eu costu-mava passar as tardes fazendo aulas de piano, violino e dança: balé clássico, jazz, sapateado, folclore polonês. Fiz aulas com vários profes-sores, de vários estilos, mas queria ser bailari-no clássico. Com 18 anos, quando recebi uma bolsa de estudos na Polônia, resolvi arriscar. Gostava muito de dançar e, apesar de diaria-mente sentir dores no corpo por causa dos exercícios físicos, não me incomodava.”

Na Polônia, Szot estudou em uma universi-dade em Cracóvia. Obrigado a parar com a dança, devido à contusão no joelho, a música foi sua segunda opção. ”Um professor da uni-versidade me chamou a atenção para a qua-lidade vocal que eu apresentava ainda como cantor de coro. Resolvi, novamente, arriscar e tentar a música.” Entrou para uma companhia estatal daquele país e lá permaneceu por cin-co anos. Ao voltar ao Brasil, fez sua estréia na ópera O Barbeiro de Sevilha, em 1997.

Opostos, de Mariana Mascarenhas, obra feita em linho e acrílica sobre tela, de 2005 | imagem: Luciano Bogado

O ex-bailarino Paulo Szot e a cantora Kelli O’Hara em cena da ópera South Pacific, 2008 | imagem: Joan Marcus

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O mundo de quem ficaA vida e a morte de velhos habitantes do mais jovem município potiguar

Por Thiago Rosenberg

O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo éuma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga,pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja

que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

(Trecho do conto Idéias de Canário, de Machado de Assis, Páginas Recolhidas, 1899)

Foi em 2004 que dona Maria Fernandes morreu. Tinha 83 anos, e seu marido, Celsoares de Oliveira, um ano mais velho, arrumou seus pertences e se mudou. Mudou-se para o quarto ao lado – até então ocupado pelo neto, Almir –, com menos espaço, menos móveis e menos memórias. Era, possivelmente, o máximo que ele poderia fazer: diz que jamais deixaria Passa e Fica, município do agreste potiguar, grudado na divisa com a Paraíba. “Minha alegria é ser passa-fiquense”, conta. “Não tem outro lugar pra mim. Construí família aqui, perdi família aqui. E pretendo morrer aqui também.” Celso Caboclo, como é conhecido na região, só não nasceu em Passa e Fica porque na época, 1920, ela ainda não existia.

“Isso aqui tudo, daqui pra Lagoa d’Anta, era mata”, lembra ele. O local, que pertencia à cidade de Nova Cruz, servia basicamente como passagem, muito utilizada por comerciantes de gado que conduziam seus rebanhos às feiras da Paraíba e de Pernambuco. A idéia de permanência apareceu depois de 1929, quando foi montado na região um estabelecimento que visava dar alimentação e abrigo aos viajantes. Uma comunidade local foi surgindo e, em 1962, o espaço se desmembrou de Nova Cruz. E nasceu Passa e Fica, o mais jovem município do Rio Grande do Norte, ou, como diz a placa que recepciona os visitantes, a “cidade do passado, presente e futuro”. Mesmo que a agricultura e a pecuária continuem movendo a economia local, o município, que conta com cerca de 11 mil habitantes, se orgulha do constante crescimento do território urbano.

Passa e Fica. Passagem e permanência. Se antes a região era palco de travessias, ela é hoje a morada de pessoas como Celso Caboclo, ex-trabalhadores rurais que, sem sair do lugar, migraram do campo para a cidade. Cidade da qual, por vontade ou por falta de oportunidade, não se vêem partindo – ao menos com vida. Passa e Fica não é, como o sertão de Guimarães Rosa, “do tamanho do mundo”, mas é o próprio mundo para essas pessoas: que ficam no mesmo lugar, mas têm consciência de que essa permanência é, também, uma passagem.

reportagem

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A multiplicação dos mundos

Primeiro, Celso Caboclo recorda os dias do passado – quando Passa e Fica era só mata –, época em que ele ganhava a vida como abatedor de gado. “Eu matava boi. O traba-lho era fácil. Matava tudo de bala, bala de espingarda, na testa do bicho.” Segue nar-rando causos do período, fala sobre o ca-valo que então usava, Pé Ligeiro, sobre os machucados que a lida imprimiu em seu corpo. Depois, mira o presente e uma par-cela do futuro, e declara que é uma alegria ver a cidade crescer. Ainda que o trate com aparente carinho, Celso não demonstra so-frer de saudade do passado. O que passou, ao menos, lhe rendeu histórias para contar.

O mundo de seu Celso multiplica-se cons-tantemente. Analfabeto, ele é senhor de um universo de palavras, palavras faladas, inseri-das em histórias, causos, anedotas. “Repare a história”, diz, e o que se segue é a criação de um novo mundo, esteado pela voz do oc-togenário. Em dados momentos da narrati-va – quando Celso está mais instigado, os braços movimentando-se sem parar –, as

palavras embaralham-se, tornam-se su-bitamente incompreensíveis. Incom-

preensíveis como o mundo.

Mas, fisicamente, Celso não tem vontade de conhecer novos mundos, fora de Passa e Fica. Suas expedições limitam-se àquelas ofereci-das pelo rádio e pela televisão. “O repórter tá sabendo do movimento do mundo”, co-menta, referindo-se aos noticiários aos quais assiste diariamente, e que lhe trazem relatos de outras supostas realidades. Ele também freqüenta as novelas, mais descontraídas do que os telejornais. “Gosto da Cabocla, daque-la com o Barão de Araruna...” E, em relação àquelas que se passam na cidade grande, ambientadas em um mundo distante do seu, ele diz: “Dessas eu gosto médio”.

Talvez seja por causa dessa sobreposição de universos – alguns narrados por ele, outros transmitidos pela televisão – que Celso apre-sente diferentes interpretações de mundo. Primeiro, ele declara: “Meu mundo é Passa e Fica”. A seguir, diz que o mundo é o povo. E, depois de pensar mais um pouco, retifica: “O mundo é vida. Nós morremos e não tem mais mundo”.

Seu Celso Caboclo em seu quarto: ele migrou, mas não deixou Passa e Fica | imagem: Cia de Foto

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A alegria dos tempos atrás

Há alguns anos – ela não se recorda exa-tamente quando –, dona Julinha resolveu colocar suas memórias no papel. Queria fa-zer algo como uma autobiografia ilustrada. Pegou um caderno escolar, pautado e sem espiral, e nele redigiu – ora com letra de for-ma, ora com letra de mão, usando aquelas canetinhas hidrográficas coloridas, com tin-ta laranja, azul, amarela, verde – impressões sobre episódios, lugares e pessoas marcan-tes de sua vida. Ao lado de cada trecho es-crito, colou, na falta de fotografias suas, figu-ras recortadas de livros didáticos, jornais e revistas. “Neste caderno eu conto algumas coisa passada na minha vida”, apresenta ela na primeira página. “Como na épo-ca não havia retratista coloco estas figurinhas cada figurinha repre-seta um passado da mi-nha vida.”

Dona Julinha, essa sim, sente falta do passado – dos

passados. Ela tem 74 anos e não sabe ao certo qual é seu nome de nascença.

Quando menina, em Serra de São Bento, Rio Grande do Norte, perdeu a mãe e foi deixada por seu pai com um casal de ido-sos – “o velhinho era Targinho, a velhinha era Chiquinha”, lembra –, que a criou e a edu-cou. Grande parte do caderno faz menção à infância – em suas palavras, “a fase mais bela na vida dos sêres humanos”. Ao lado de uma imagem impressa em papel-jornal, de uma criança que sorri debruçada na janela de uma modesta casa de pedra e madeira, há as seguintes palavras: “Esta menina feliz fáz lembrar qunto eu era feliz aos meus déz anos aos meus onze anos em uma casinha humilde assim dentro dela morava uma rosa esta rosa era eu feliz, sorridete, tritaza não morava comigo”.

Dona Julinha e o passado emoldurado na parede de sua sala | imagem: Cia de Foto

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O caderno traz, ainda, considerações so-bre o trabalho na roça – “na minha època o trabalho na roça não era desonra quase toda moça trabalhava e não havia critica até achava devertido” – e sobre o casamen-to: “Este casal”, referindo-se a um recorte provavelmente retirado de um editorial de moda, “representa a vida de amor de casa-mento [...] me casei por amor foi meu xarme e minha felicidade”. Ela se casou em Serra de São Bento e, em 1973, mudou-se com a família para Passa e Fica, onde teve 13 filhos e trabalhou como professora em uma escola primária. Em 2003, Pedro, seu marido, morreu. E, depois disso, a tristeza foi morar com ela.

Hoje, ela passa os dias sozinha em sua casa e, de noite, por ter medo de dormir desacom-panhada, ocupa um quarto sem janelas na residência da filha Fátima. “Desde pequeni-ninha que sou medrosa”, diz. “Tinha medo de alma; agora o medo é de gente viva.” A morte do marido lhe tirou o ânimo: “Perdi o equilíbrio das coisas”, conta. “Antes de ter sofrido esse desgosto eu saía, visitava as es-colas... Hoje não me sinto muito só, mas não me sinto muito bem.” Pensando em sua vida, ela canta assim:

Tantas lágrimas eu tenho derramado,só em pensar que não posso mais reviver o meu passado.Vivia cheio de esperança, de alegria, eu canta-va, eu sorria.Mas hoje em dia eu não tenho mais a alegria dos tempos atrás.

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Julinha se aposentou do colégio em 1986. Outro pesar em sua vida. Foi em maio, no meio do ano letivo. “Eu entreguei a escola para uma professora nova e me despedi de todos os alunos. Eles tudinho baixaram a cabeça, do lado da minha mesa, enquanto eu ia embora. E um deles, um moreninho, me acompanhou de mãos dadas até a por-ta, chorando, chorando.” Ela não pensa em morar fora de Passa e Fica, mas, se soubes-se por onde anda esse menino, iria até ele e lhe ensinaria o que faltava para concluir aquele ano letivo.

Ao contrário de Celso Caboclo, que passeia freqüentemente pelas ruas da cidade, a qual ele adora ver crescer, Dona Julinha prefere ficar em casa. Mas, nas ocasiões em que

sai, sai sempre com o passado: “Quando eu passo na frente das escolas, ouço as

mesmas cantigas que eu cantava com as crianças, mas as pesso-

as são todas outras.”

O trabalho do tempo

Seu Inácio se chama João. João Ribeiro da Silva. Mas são poucos, além de seus paren-tes e de seus documentos oficiais, os que o conhecem por esse nome. João virou Inácio muito antes de chegar a Passa e Fica, quan-do ainda era um garoto em sua terra natal, Barra de Santa Rosa, Paraíba. Ele adoeceu depois de se expor à fumaça do veneno que seu pai utilizava para dar cabo a uma infes-tação de formigas. E, para tapear a moléstia, sua mãe achou melhor realizar a troca de nomes. “Naquele tempo se acreditava nes-sas coisas”, conta o velho Inácio, aos 83 anos, sem quaisquer seqüelas da enfermidade da infância.

Ele forma, com Amália Maria da Conceição, um dos casais mais longevos de Passa e Fica. Os dois se conheceram na casa de farinha de Serra do Bom Bocadinho, sítio localizado em Barra de Santa Rosa. “A gente moía mandio-ca e namorava, moía mais mandioca e mais namorava”, recorda ele. Casaram-se em 1948, tiveram 12 filhos, e, depois de morar em uma porção de cidades, sempre trabalhando na “farinhada”, se fixaram em Passa e Fica em 1981. Dona Amália garante que nunca tro-caram, dentro ou fora de casa, nenhum tipo de “palavra feia, nome ruim”.

Dona Amália e seu Inácio: um dos casais mais longevos da cidade | imagem: Cia de Foto

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“O mundo é do mesmo jeito que Deus fez; mas o povo é sempre diferente.” Seu Inácio sabe que o tempo, ininterrupto, fará sua parte, substituirá o povo atual – do qual ele, Dona Amália, Celso Caboclo, Dona Julinha e tantos outros fazem parte – por novos po-vos. Mas, enquanto o tempo faz seu traba-lho, seu Inácio quer mesmo, depois de tanto migrar – de uma cidade para outra, de um nome para outro –, é ficar em seu mundo, em Passa e Fica, ao lado de seu povo. “Fora daqui, só quero ir pra um lugar: depois da-quela porta larga, lá onde tem um cabra que bota a gente debaixo da terra e a gente não volta mais.”

***

O cabra que cuida da tal porta larga é José Roberto Pedro, ou Lilita. Passa-fiquense nas-cido em 1965, “cava buraco de cova” desde 1994, quando foi convidado a exercer o car-go pelo então prefeito do município, Ariano da Cunha Lima. E, pelo que tudo indica, é o homem mais adequado para o serviço. Foi aberto, em 1997, um concurso para determi-nar quem seria seu sucessor como coveiro de Passa e Fica. Só uma pessoa se candida-tou: ele mesmo.

Lilita já está acostu-mado com a profissão. Sente pena das pessoas as quais enterra, mas – como bom profissional – nada tão intenso a ponto de impedi-lo de fi-nalizar o trabalho. No cemitério, já quase não há lugar para novas covas, e é tarefa das mais complicadas andar pela terra la-macenta do local sem pisar em “moradas” alheias. Mas Lilita parece estar em casa: ca-minha sem a menor dificuldade, como um gato em cima do muro. E a cidade também já está acostumada a associá-lo à sua profis-são. Para alguns, ele é, simplesmente, “o co-veiro”; para outros, mais criativos, ele é “o de-legado perigoso: prendeu, ninguém solta”. Ainda assim, mesmo que habituado, Lilita chega a perder o sono por causa do serviço. “Eu costumo sonhar com os mortos”, conta ele. “Mas sei que sonho é coisa ilusão.”

Em todo caso, a última migração – física, ao menos – não é vista com temor por muitos dos velhos habitantes de Passa e Fica. Dona Julinha tem medo é de ser enterrada viva. “Nem esperam o corpo esfriar”, diz ela, “e já vão enterrando a pessoa”. E Celso Caboclo é mais destemido: “Não tenho medo da mor-te. Nada. Eu amo a morte”, declara. “Amo a morte porque é uma certeza.”

Silhueta do coveiro Lilita, o “cabra” que cuida da “porta larga” | imagem: Cia de Foto

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Os meus, os seus, os nossosA Continuum Itaú Cultural de setembro trouxe uma reflexão sobre até que ponto a obra de arte resgata memórias de seu criador. Ao abordar esse tema, a revista convidou seus leitores a participar da edição on-line produzindo fotos que representassem sua idéia de família.

Publicamos nas páginas 38 a 41 duas das 376 imagens recebidas. Elas trazem a visão de família dos leitores Ivan Abujamra e Sylvia Sanchez. Outras 54, que traduzem variadas interpretações do tema, podem ser vistas em www.itaucultural.org.br/continuum.

Envie sugestões, elogios e reclamações para [email protected]. Contos, crônicas e reportagens sobre o tema também são bem-vindos. Basta se cadastrar no site.

on-line

ON-LINE

Dark Night of the Soul (detalhe), 1999, de Ana Maria Pacheco | imagem: cortesia National Gallery, Londres

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Elos perdidos e encontrados

Asiático, caribenho, sul-americano, europeu, africano. Ao todo, dez imigrantes residentes em São Paulo contam suas histórias por meio de imagens e palavras. Seus relatos estão na fotorreportagem As faces da travessia, que revela por que essas pessoas escolheram o Brasil para viver.

Saudade, estranhamento, entusiasmo, pertencimento, frustração. Sentimentos como esses preenchem os textos dos blogs daqueles que se deslocam. Tema da reportagem As grandes navegações, a internet reinventa a migração contemporânea ao servir de instrumento de bordo daqueles que mudam de país.

Em entrevista especial (Algum lugar entre), a artista visual brasileira Ana Maria Pacheco, residente em Londres há 34 anos, reafirma sua condição de estrangeira: “Vivo entre dois mundos. Provavelmente, minha tentativa é criar, com meu trabalho, pontes entre eles, que jamais vão se encontrar”. Ana Maria saiu do Brasil em busca de uma linguagem que melhor expressasse sua identidade artística, a qual vem do lugar onde nasceu e cresceu, o centro-oeste brasileiro.

Retrato da imigrante espanhola Marina Meseguer, há três meses no Brasil | imagem: André Seiti

www.itaucultural.org.br/continuum

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imagem: Ivan Abujamra

Outros Retratos

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imagem: Sylvia Sanchez

Outros Retratos

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Homenagem às origens nipônicas: fitas de contenção usadas no Ocidente (amarela e preta) e no Oriente (vermelha e branca) e fotos que mostram a migração através do tempo, na obra do artista visual paulistano Shima | imagens: Luciana Abreu (retrato menor, 2006); Cesar Fujimoto (retrato médio, 2007) e George Pitman (retrato maior, 2008)

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