continuum 35 - fevereiro-março/2012

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35 fev / mar 12 O REFLEXO DO MATADOR Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz retrospectiva de arte e vida e se afirma em fase de transição GERAÇÃO MULTIFACETADA Os músicos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral conciliam experiências e estilos no coletivo Passo Torto MUITO ALÉM DOS CINCO SENTIDOS Stephan Doitschinoff mostra sua arte místico- política ao mundo IMPULSIONADOS PELA MULTIDÃO O crowdfunding se firma como alternativa para o financiamento de projetos culturais

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A Continuum 35 (fevereiro-março) faz uma homenagem ao cartunista Angeli. Leia o perfil do artista criado pelo escritor Ronaldo Bressane. Veja os desenhos de observação do ilustrador Rafael Coutinho, criados numa tarde de bate-papo na casa de Angeli. E volte no tempo lembrando trabalhos de váriasépocas desse profissional que revolucionou os quadrinhos brasileiros com sua estética underground. Além disso, esta edição tem matérias sobre crowdfunding, videomapping, 90 anos de Modernismo Brasileiro e muito mais.

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fev / mar 12

o reflexo dom at a d o rTrinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz retrospectiva de arte e vida e se afirma em fase de transição

gerAçÃo multifAcetAdAOs músicos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral conciliam experiências e estilos no coletivo Passo Torto

muito AlÉm doS ciNco SeNtidoSStephan Doitschinoff mostra sua arte místico-política ao mundo

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720 Ave Marias (2009), de STEPHAN DOITSCHINOFF | acrílico sobre tela

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COORDENAÇÃO EDITORIALAna de Fátima Sousa

EDIÇÃO EXECUTIVAMarco Aurélio Fiochi

PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE ARTEMarina Chevrand

ASSISTÊNCIA À EDIÇÃO DE CONTEÚDOSRoberta Dezan

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIAAndré Seiti

DESIGNLu Orvat Design

REVISÃOCiça Corrêa

Nelson ViscontiPolyana Lima

APOIO ADMINISTRATIVOIsabella Protta

PAUTAAna de Fátima Sousa

André SeitiEduardo Saron

Jader RosaMarco Aurélio Fiochi

Maria Clara MatosMarina Chevrand

Roberta Dezan

COLABORARAM NESTA EDIÇÃOAngeli

Arthur d’AraujoCarlos Costa

Carol AlmeidaClaudiney Ferreira

Claus LehmannGarapa

Gustavo RanieriLeonardo Calvano

Liane IwahashiLourenço Mutarelli

Micheliny VerunschkPaula Fazzio

Pedro Henrique FrançaRafael Coutinho

Ricardo RafaelRogério Borges

Ronaldo BressaneSabrina Duran

Stephan DoitschinoffTrajano Pontes

AGRADECIMENTOCarolina Guaycuru

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082(dezembro de 2007)

Tiragem 10 mil –distribuição gratuita.

Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de

Comunicação e [email protected]

Jornalista responsávelAna de Fátima Sousa MTb 13.554

capa: angelifoto: andré seiti

CARTA DO EDITOR

A equipe da ConTINUUM tem notado que, a cada número lançado, se repete uma situação não premeditada, mas muito bacana: a aproximação de pautas que, no conjunto da edição, dão um peso maior a algum tema ou área de expressão. Foi assim na revista passada, quando ganhou força a arte urbana. Nesta, são os quadrinhos que dominaram o pedaço.

Na Capa fazemos uma homenagem a Angeli, um dos maiores cartunistas brasileiros. Leia o perfil do artista criado pelo escritor Ronaldo Bressane. Na sequência, o cartunista Rafael Coutinho, que vê em Angeli uma de suas maiores influências, reverencia com desenhos o mestre. Para completar, uma galeria traz trabalhos do cartunista que revolucionaram os quadrinhos. Com esse especial, a revista sai na frente, fazendo um “esquenta” para a exposição Ocupação Angeli, que será aberta, aqui no Itaú Cultural, em São Paulo, no meio de março.

Na sequência, outro fera, Lourenço Mutarelli, encerra sua participação na seção Quadrinhos com o último capítulo da série de HQ Animais em Fuga. Aguarde: na próxima edição, a página passará a ser ocupada por outro nome de destaque das narrativas em tiras. O “tema” rendeu ainda uma reportagem, com um viés bem interessante: território dominado por criadores do sexo masculino, a produção de cartuns começa a ter mulheres à frente de projetos de peso, tanto no Brasil quanto no exterior.

Os músicos paulistanos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral contam, na seção Entrevista, como é o trabalho de criação coletiva que vêm experimentando com o Passo Torto. O grupo soma as bagagens e as concepções musicais dos integrantes num projeto de vanguarda no cenário musical independente paulistano. Ainda falando de música, mostramos a rotina de ensaios e estudos a que os regentes de grandes orquestras se submetem em busca da perfeição.

A seção Práticas Culturais traz um assunto da ordem do dia: o crowdfunding, modelo de financiamento de projetos culturais que utiliza a internet como sua principal plataforma. Saiba como funciona essa ferramenta colaborativa, que vem ganhando adeptos aqui e lá fora. Outra matéria mostra os bastidores de uma modalidade de evento que se firma como alternativa de lazer e cultura: os espetáculos de videomapping, como as recentes edições do Vídeo Guerrilha e do VJ Passport University, que juntaram centenas de pessoas na capital paulista.

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O REFLEXO DOMATADORTrinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz retrospectiva de arte e vida e se afirma em fase de transição

GERAÇÃO MULTIFACETADAOs músicos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral conciliam experiências e estilos no coletivo Passo Torto

MUITO ALÉM DOS CINCO SENTIDOSStephan Doitschinoff mostra sua arte místico-política ao mundo

IMPULSIONADOS PELA MULTIDÃOO crowdfunding se firma como alternativa para o financiamento de projetos culturais

CARTA DO LEITOR

Eu me apaixonei pela revista ContinUUM, do Itaú Cultural. Ilustrações, textos e temáticas simplesmente fantásticas.Camila Costta, pelo Twitter

Gostaria de fazer uma queixa à revista ContinUUM. O conteúdo é excelente, mas não entendi o porquê da alteração do tamanho. Não é sendo um outdoor que a circulação vai aumentar, mas, sim, com qualidade e mais pontos de distribuição.Tatiana Moreno, São Paulo

NE: O formato atual, lançado há um ano, foi pensado para oferecer uma nova experiência de leitura tanto para o público fiel à revista quanto para quem não a conhecia até então. A ideia foi presentear o leitor com um espaço ampliado para as imagens (por isso a cada edição publicamos ensaios fotográficos especialmente produzidos) e para os textos. Foi uma aposta da equipe ao criar algo impactante, que fugisse à mesmice do mercado editorial. E sem gastar mais papel: o formato atual propiciou um aproveitamento de 88,79% do papel utilizado, ao passo que no formato anterior o aproveitamento era de 82,30%.

Mas, como em todo experimento, sempre há apostas que podem ser repensadas. Consciente disso, a equipe da revista já está avaliando as manifestações elogiosas e críticas ao projeto gráfico-editorial. E as questões formato e distribuição, com certeza, têm merecido nossa maior atenção.

Envie seu comentário sobre a ContinUUM para o e-mail [email protected] ou utilize os canais do Itaú Cultural no Twitter e no Facebook. Em caso de publicação na seção Carta do Leitor, a mensagem pode ser editada a critério da redação.

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Baixe o aplicativo da ConTINUUM em seu iPad e veja todas as matérias desta edição e das anteriores, além de vídeos exclusivos.

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R e p O r T A G E M | no reger da vidaDisciplina, estudo, concentração. Resultado: perfeição. Assim é a rotina dos regentes das orquestras brasileiras.

b a l a I O | em pleno verãoQuadrinhos e mais quadrinhos: em Kerouac, o ilustrador João Pinheiro mostra pelo desenho sua visão do grande escritor; e o BIG, grupo dinamarquês de arquitetos, conta em tirinhas a história da arquitetura. Nas dicas de música, Maria Rita interpreta clássicos de Elis Regina em maratona de shows pelo Brasil; e a vida de Raul Seixas é recontada no cinema.

Q u a d r I N h O S | animais em fugaChega ao gran finale a HQ de Lourenço Mutarelli.

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R e p O r T A G E M | saga modernista completa 90 anosA Semana de Arte Moderna ainda ecoa como o principal evento cultural produzido no país.

C A P A | o reflexo do matadorUma homenagem a Angeli em foto, texto e desenho.

R e p O r T A G E M | sapatilhas de arameA produção de quadrinhos sempre foi vista como um território masculino por excelência. Mas esse cenário começa a mudar pelas mãos de mulheres que vêm abrindo seu espaço com garra e delicadeza.

0609p e R F I L | muito além dos cinco sentidosStephan Doitschinoff representa uma nova cara das artes visuais do país: com um trabalho consolidado, ele vê sua arte ganhar espaço em galerias e museus internacionais.

a R T I G O | bate cabelo, down jones!Internet e mídias tradicionais se retroalimentam e, por vezes, uma toma para si o crédito do que a outra inventou.

10 1216M u S e u S D O M U N D O | arte no campo

Versão americana de nosso Inhotim, o Storm King Art Center, próximo de Nova York, apresenta em seus 2 mil hectares de área verde 130 obras de grandes nomes da arte contemporânea mundial.

e n t r E v I S T A | geração multifacetadaRomulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral contam como formaram o coletivo

Passo Torto, considerado a grande revelação da música paulistana no último ano.

C e R t I d à O d E N A S C I M E N T O | enquanto dormem as crianças ladronasConheça a história da criação de Capitães da Areia, clássico escrito

no auge da militância comunista de Jorge Amado.

28 3032p R Á t I C a S C U L T U R A I S | impulsionados pela multidão

O crowdfunding se firma como alternativa para a viabilização de projetos que vão de publicações a inserção de documentário brasileiro no circuito comercial de cinemas americanos.

R e p O r T A G E M | arquitetura vivida no corpoTendência do momento, os espetáculos de videomapping surpreendem tanto pela plasticidade

quanto pelos recursos tecnológicos utilizados.

R e p O r T A G E M | vila boa da humanidadeA Cidade de Goiás comemora os dez anos do título de patrimônio cultural concedido pela Unesco.

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Artista visual paulistano se destaca no cenário internacional com obras repletas de símbolos místicos

M u i t o a l é Md o s c i n c o s e n t i d o s

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Dentro do apartamento-estúdio, no quinto andar de um prédio na região da Bela Vista, em São Pau-lo, Stephan Doitschinoff passa boa parte de seus dias. Na ampla bancada um desenho a lápis está ali há quase dois meses. Os traços no papel são de uma mulher longilínea com símbolos religio-sos cravados em seu corpo e conflitos existenciais evidentes. É sobre ela que o artista visual se de-bruça por árduas oito horas diárias, emprestando ao processo criativo disciplina e rigor. “Meu tra-balho exige planejamento, foco e a mente limpa. Demoro três meses para pintar”, enfatiza.

A simbologia, que ganha forma e intenções nessa obra, é o elemento que fez o artista, também co-nhecido como Calma (corruptela de “com alma”), alcançar status no mercado da arte e alçar pata-mares internacionais. O trabalho de Doitschinoff já circulou por diversos cantos do mundo. Prova disso é a exposição individual Novo Asceticismo, que apresentou 12 telas e desenhos inéditos na ga-leria Jonathan LeVine, em Nova York, de dezem-bro de 2011 a janeiro deste ano.

A exposição internacional faz aumentar a expecta-tiva do público por Brilho do Sol, filme-performance de 25 minutos ainda sem data de lançamento. “É o registro de uma pesquisa sobre as festas popula-res que vieram da Península Ibérica para o Brasil”, adianta ele. Doitschinoff tem planos também de lan-çar, no segundo semestre, um livro de simbologia.

DESCOBERTASNão é de estranhar o fascínio de Doitschinoff pelos símbolos e pela espiritualidade. Nascido em São Paulo em março de 1977, seu pai era pastor evan-gélico, enquanto a avó e a bisavó maternas – essa última ele não chegou a conhecer – eram espíritas.

“Além disso, tinha um centro hare krishna na minha rua e eu brincava com as crianças lá”, conta.

Devido às opções religiosas da família, durante a infância ele e as duas irmãs, ambas mais velhas, fica-vam alguns meses do ano num acampamento evan-gélico. Essa convivência e o gosto por ouvir a mãe contar histórias sobre mitos e contos de fada seriam a peça-chave para a escolha profissional futura.

A religião serviu também para alimentar o princi-pal dom do menino: desenhar. “Era uma criança mais introspectiva”, conta ele, que, apesar de re-cluso, gostava de jogar futebol e andar de carrinho de rolimã. “Meu brinquedo era mesmo giz de cera e guache. Enquanto a maioria das crianças dese-nha bastante e depois para, eu nunca parei.”

Na adolescência, indagações de todas as partes e o prazer cada vez mais profundo pela pintura fizeram Doitschinoff ter uma verdadeira obses-são pelo estudo do fundamentalismo. Revoltas e armas passaram a ser desenhadas constante-mente nos trabalhos que fazia. Nessa fase flertou com a turma do punk, o que abriu as primeiras oportunidades de mostrar sua arte. “Comecei desenhando capas de CD para várias bandas e, com 15 anos, me tornei assistente do [cenógrafo paulistano] Zé Carratu”, relembra.

Enquanto se dedicava a aprimorar sua técnica, sempre de modo autodidata, encarou, dos 15 aos 19 anos, diversos empregos. Trabalhou no Mc Donald’s, foi representante comercial e, por últi-mo, estagiário em agência de publicidade, fruto do curso inacabado de comunicação social.

Em 1998, o artista embarcou para a Itália apenas

com o dinheiro da passagem. Por lá ficou seis me-ses e viveu outros seis com uma namorada em Paris. Nesse período, tornou-se macrobiótico zen. “É a dieta mais radical que existe, e ligada ao taois-mo. Fiquei dois anos sem tomar água e sem gastar energia com a digestão”, diz.

Do interesse pelo taoismo veio a pesquisa do I Ching e de outras manifestações religiosas e es-pirituais. O novo passo foi estudar como as religi-ões controlam o indivíduo, o coletivo e a relação com o governo. “Isso foi um ponto de mudança na minha arte, cuja estética traz elementos reli-giosos, mas o tema maior é a política.”

UMA CiDADE COMO TElAA certeza de que poderia viver de arte veio ape-nas em 2000. Após voltar da Europa, Doitschinoff começou a fazer ilustrações para revistas e livros e aproveitou para, mesmo a distância, travar con-tato com centros culturais ingleses e americanos. Assim, conseguiu suas primeiras exposições, na Inglaterra, além de uma residência realizada por lá em 2002, e, pouco depois, sua primeira mostra nos Estados Unidos. Os olhos do público tenta-vam decifrar as enigmáticas pinturas e o aspecto urbano delas, feitas com adesivos e estênceis. “A partir daí, tudo deslanchou”, conta o artista, que, em 2006, cansado de publicar os símbolos cria-dos ou adaptados por ele – incluindo a famosa e constante caveira – em livros que mal conhecia, determinou que a capa do álbum Dante XXI, do Sepultura, seria seu último trabalho comercial.

Mas o marco incontestável em sua trajetória já havia começado um ano antes, em 2005. Foi quando Doitschinoff migrou para Lençóis, na Bahia – onde sua irmã tem um restaurante –,

TEXTO gustavo ranieri FOTOS andré seiti

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Doitschinoff: punk, macrobiótica, I Ching e taoismo como referência

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assumindo ao longo de três anos uma grande empreitada: comunicar-se e descobrir a cidade, transformando-a em um site-specific, ou seja, uma obra criada para dialogar com determinado ambiente. “Pintei a cidade toda, incluindo a ca-pela e o cemitério.” O trabalho, intitulado Tempo-ral, foi registrado pela produtora Movieart, que o transformou em um curta-metragem homônimo. Também culminou no livro Calma – The Art of Stephan Doitschinoff, publicado internacional-mente pela editora alemã Gestalten.

Em 2007, com rumo mais do que certo e nome em ascensão no Brasil e no exterior, Doitschinoff passou a ser representado pela galeria paulistana Choque Cultural, do curador Eduardo Saretta. “A disciplina na parte técnica e a espiritualidade na parte temá-tica são as principais características do trabalho do Stephan. Me agradam as imagens que remetem à tatuagem e ao ocultismo”, afirma Saretta.

Depois da exposição e do filme Temporal,

Doitschinoff integrou a mostra De Dentro para Fora/De Fora para Dentro, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), entre 2009 e 2010, e foi sele-cionado pelo Ministério da Cultura para instalar a escultura de grandes proporções A Mão nas imediações do Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera, em São Paulo (foto na página 6). Também foi premiado como Artista Revelação pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), em 2009, e emplacou exposição no Museu de Arte Contemporânea de San Diego, nos Estados Unidos.

A partir daí, Doitschinoff aprofundou a análise so-bre os conflitos do ser humano com a performan-ce Cras (Novo Asceticismo), realizada em 2010, na Choque Cultural. A intenção era refletir sobre os tipos de sacrifício e privação que o homem ne-cessita para viver plenamente. “O coração com espinhos é um dos símbolos mais importantes do cristianismo. Ele mostra a purificação e a ilumina-ção através do sofrimento. Mas, no meu trabalho,

acho mais apropriado tirar o espinho e colocar um olho dentro do coração, que é a consciência”, diz o artista, que fez, com base nesse trabalho, o vídeo de cinco minutos Tudo É Vaidade.

Doitschinoff se prepara para lançar seu terceiro filme, Brilho do Sol. “Depois que voltei de Len-çóis, continuei pesquisando muitas das festas populares, como a de Nosso Senhor dos Passos, a do Reisado, mas a que mais me interessava era a Festa dos Caretos, pela tradição das más-caras ibéricas. Fui estudá-la em Portugal, onde até hoje acontece essa celebração em vários locais, e descobri como são feitas as máscaras de madeira e metal, as roupas de palha... Com apoio da Universidade de Belas-Artes de Lisboa, montamos uma performance e a filmamos por lá.” Trata-se de mais um trabalho cujo olhar mira sempre o homem. “Acho que uma das coisas mais importantes na vida é saber que há muito mais para conhecer além do que os cinco senti-dos alcançam.”

“Minha estética traz eleMentos religiosos, Mas o teMa Maior é a política.”

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O artista se prepara para lançar seu terceiro filme, com registro da performance Brilho do Sol

Stephan Doitschinoff

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Filmada diante da Bolsa de Valores, a jornalista, atônita, diz: “Os mercados sambaram o dia todo. As petroleiras arrasaram no pregão da tarde! 5-6-7-8! Já as construtoras erraram o passinho da coreografia ditada pelo FED e o resultado do dia só podia ser um: Dow Jones bateu cabelo à exaustão!”.

A cena é hipotética – talvez forçada... de leve! –, ao menos por ora. Mas, no futuro, talvez possa acontecer, devido ao crescimento da influência da in-ternet, com seus personagens e jargões, a ponto de pautar grandes mídias tradicionais e subverter sua linguagem.

No Brasil, esse movimento é tímido ainda. Em telejornais, aparecem maté-rias amarelas sobre o comercial da Luiza que estava no Canadá e, por isso, ausente do encontro familiar superempolgante ... zzzz... Em outra bancada, menção eterna aos “bons drink” (não) eternizados por Luisa Marilac, que, se até agora não acabaram, só podiam ser mesmo “água geladíssima” e só.

Também já se tomam por fonte de notícia barra entretenimento os rela-tos, vídeos e fotografias publicados por leitores e telespectadores. Mais que isso, eles viram temas centrais de revistas e programas da tarde, quando não se convertem em publicidade. É o caso do vídeo do lindo bebê que gargalha quando o pai rasga papéis.

Verdade que o movimento contrário também ocorre. Mídias tradicionais ainda respondem por grande volume dos debates na internet. Fatos dali re-percutem exponencialmente na rede, transformam-se também em jargões (os tais memes) e regressam, ainda mais mortíferos, ao meio que os conce-beu. Provando o ponto aí está a jornalista Sandra Annenberg, que ganhou uma camiseta escrita “Eu te amo!”, opa!, “Que deselegante!”, seu desabafo no ar, copiado e vomitado nas redes sociais para depois ser repetido pela autora na TV.

ExprEssõEs alEatórias E incontrolávEisO bololô entre receptores e emissores acompanha a evolução da comuni-cação provavelmente desde o seu surgimento. Está longe de ser a última novidade da ciência dos foguetes. Interessante, no entanto, é divagar sobre o ponto mais alto dessa trajetória. Entender ou antecipar, num exercício di-vertido (tão mais divertido quanto menos compromissado e mais infunda-

do), a maneira como poderão influenciar (determinar? um sonho!) a própria identificação do que se entende por notícia, cultura e arte.

Por um lado, a visão tradicional depositava importância no emissor da mensagem, numa quase aplicação do argumento de autoridade aos objetos culturais. Seria arte o que é criado por quem especialistas apontam como ~~artistas~~, detentores de técnicas/habilidades específicas incorporadas à obra. Numa visão oposta, esticando-até-quase-romper a linha da arte con-temporânea, a arte estaria em toda parte, a ser produzida a qualquer hora, ainda que involuntariamente, por todas as pessoas. Quando não também por elefantes pintores da Tailândia ou cachorros bípedes dançarinos de sal-sa e lambada, todos com sua dose de fama no YouTube (Lindos! Fãs dos ritmos tropicais não devem perder!).

O mesmo pensamento pode ser levado à comunicação iniciada na internet e extravasada para os meios tradicionais. No território ainda livre da rede (*suspiro aliviado*), surgem expressões aleatórias e incontroláveis de ~~cultu-ra~~: artistas, tecnologias, formas de mobilização e colaboração, tudo novo ou remixado. Longe de ser ignoradas, podem-se assimilar por outras mídias, por serem curiosas, engraçadas e úteis ou pela simples busca de identificação do meio com seus destinatários em ebulição, ainda que não adolescentes.

Extrapolando a tendência, talvez chegue o curioso dia em que a jornalista de economia encontre na informalidade das pessoas da internet a melhor expressão de suas inquietações com as oscilações do mercado. E por que não? Afinal, desde sempre, vídeos de gatos, cachorros e ursos pandas pa-recem ter o dom de acalmar pessoas. Do mercado e de fora dele. Missão cumprida, foguetes aterrissam, papel rasgado, criança sorri.

que deselegante!se isso é tá numa pior...

bate ca- belo, down jones!Ou: sobre o poder da internet de pautar grandes mídias tradicionais e subverter sua linguagem

trajano pontes, ex-advogado (sim!) e jornalista a caminho, fica on-line tempo demais.

assista aos vídeos citados no artigo: Luiza está no Canadá – bit.ly/Ak1iUxLuisa Marilac – "Bons drink" – bit.ly/nLXGOEBebê gargalhando – bit.ly/xD2OXQSandra annenberg – “Que deselegante!” – bit.ly/tdO4dD – bit.ly/zwidLiElefantes pintores – bit.ly/BtmrCachorro dançando salsa – bit.ly/lzYe6dCachorro dançando "adocica", de Beto Barbosa – bit.ly/voEP1h

TEXTO trajano pontes ILUSTRAÇÃO marina chevrand

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Inaugurado em 1960 pelos visionários empresá-rios H. Peter Stern e Ralph E. Odgen, cofundado-res da Star Expansion Company, o Storm King Art Center está instalado num enorme descam-pado de mais de 2 mil hectares, em Mountainvil-le, Hudson Valley, a pouco mais de uma hora de distância de Nova York, nos Estados Unidos.

Para comemorar meio século de atenção ao que é produzido nas artes plásticas pelo mundo, o cen-tro de arte saiu em 2011, pela primeira vez, de sua zona de conforto e realizou em Governors Island, nos arredores de Nova York, uma mostra especial do artista americano Mark di Suvero. O público superou as expectativas: quase meio milhão de pessoas viu os trabalhos, dispersos por essa loca-lidade, nos três meses em que a exposição esteve em cartaz. O resultado, claro, agradou os organi-zadores, que pretendem repetir o projeto no verão de 2012, na mesma Governors Island.

Apesar dessa experiência promovida pelo museu, ir até a sede do Storm King é programa obrigató-rio para os amantes da arte, além de um agradá-vel passeio ao ar livre – só possível entre os meses de abril e novembro, quando não há neve, o que obriga o espaço a permanecer fechado. E, por fa-lar nisso, como sobrevivem às mudanças climá-ticas as 130 obras instaladas? “Esse é um grande desafio a qualquer instituição que se propõe a exibir arte a céu aberto. Mas muitas das obras aqui expostas já foram pensadas pelos artistas contemplando essa condição, o que facilita sua exibição. De qualquer forma, no inverno as obras menores são levadas para nosso espaço coberto; as maiores são preservadas com materiais de pro-teção”, explica o conselheiro sênior da instituição,

A uma hora de Nova York, o Storm King Art Center reúne 130 obras numa área verde de mais de 2 mil hectares

TEXTO e FOTOS pedro henrique frança

Anthony Davidowitz. Por maiores, leia-se enor-mes, com mais de 6 metros de altura.

Se a questão física é de “fácil” solução, não é tão simples assim manter uma estrutura vultosa como a do museu. Para mantê-la, o Storm King conta com uma vasta lista de membros, doadores e suporte da fundação homônima, além de par-cerias. “Somos muito felizes por termos um am-plo grupo de indivíduos e fundações que apoiam nossas atividades e programas. Eles sintetizam a compreensão da importância de proteger e pro-mover a apresentação única do centro, de sua arte e paisagem. É essa generosidade que permite a conservação desse espaço”, discursa Davidowitz.

Encabeçado por um de seus fundadores, H. Peter Stern, o Storm King não tem fins lucrativos. Seu riquíssimo acervo começou a se consolidar nos anos 1960 com a compra de 13 trabalhos do es-cultor americano David Smith. “Hoje são mais de cem esculturas de alguns dos artistas mais impor-tantes das últimas décadas, incluindo obras reali-zadas especialmente para o centro”, pontua Da-vidowitz. Além disso, exposições temporárias são realizadas para dar visibilidade a novos trabalhos, que, enfatiza o conselheiro sênior da instituição, dialogam com a coleção permanente. “Geralmen-te são obras emprestadas pelos artistas, colecio-nadores ou museus e fundações. E as mostras são complementadas com catálogos especiais.”

Cenário lúdiCoO Storm King faz de sua vasta área verde um ce-nário lúdico, que nos remete às pinturas de Monet ou de Van Gogh, especialmente no outono, quan-do a natureza dá um show à parte, com a folha-

Arte no

gem das árvores em tons vermelhos, roxos e ama-relos. As esculturas que abriga são assinadas por nomes que fazem história na arte mundial, como a francesa Louise Bourgeois, os ingleses Kenneth Campbell e Henry Moore e os americanos Mark di Suvero e Roy Lichtenstein, para citar alguns.

Em meio à valorização da arte contemporânea, com obras negociadas por cifras muitas vezes astronômicas, Davidowitz faz questão de frisar a filosofia disseminada pelo instituto do qual faz parte. “A maioria das novas obras entra em nossa coleção como presente ou encomenda. Nós real-mente não nos concentramos em flutuações de valores de mercado [para montar nosso acervo].” Se essa supervalorização que corre mercado afo-ra valoriza ou banaliza a arte contemporânea, é discussão em que o conselheiro prefere não car-regar nas tintas. “A curadoria do Storm King não é pautada por esses critérios.”

Para 2012, a agenda do centro tem como foco, além da nova edição da mostra realizada em Go-vernors Island, a exposição Luz e Paisagem, que reunirá obras de artistas renomados e outros não tão conhecidos do público. A curadoria vai explo-rar o contraponto entre as obras e a luz natural –aproveitando o generoso tapete verde do parque.

Apesar de ter olhos atentos ao crescimento da visibilididade da produção brasileira em terri-tório norte-americano, o Storm King Art Center ainda não tem nenhum artista do país em seu acervo. “Mas o curador David Collens e o Comitê de Aquisições e Coleções estão constantemente avaliando novos trabalhos produzidos em todo o mundo”, ressalta o conselheiro.

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O StOrm King faz de Sua vaSta área verde um cenáriO lúdicO, que nOS remete àS pinturaS de mOnet Ou de van gOgh, eSpecialmente nO OutOnO, quandO a natureza dá um ShOw à parte, cOm a fOlhagem daS árvOreS em tOnS vermelhOS, rOxOS e amarelOS.

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ServiçoStorm King Art Center – 1 Museum Road New Windsor, NY 12553 – Fone (845) 534-3115. Entrada: 12 dólares (adulto); 10 dólares (65 anos ou mais); 8 dólares (estudante); gratuito (membros da associação do museu e crianças). O espaço está fechado devido ao inverno no hemisfério norte. A reabertura está programada para 4 de abril.Mais informações: <stormkingartcenter.org>.

Arte noMon Père, Mon Père, de Mark di Suvero

Three Legged-Budha, de Zhang Huan

Foci, de Chakaia Booker

Frog Legs

Neruda’s Gate, de Di Suvero

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TEXTO carlos costa FOTOS claus lehmann

(esq. para a dir.) Rodrigo, Romulo, Marcelo e Kiko: sofisticação e reinvenção da música paulistana

MULTIFACETADAgeração

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em meio à decadência da indústria fonográfica, quatro amigos, célebres artistas da cena musical paulistana, colocaram

em prática o princípio da união e, em paralelo às suas carreiras individuais, se juntaram para fazer música independente e

de qualidade. Começaram apenas três, com apresentações numa casa de shows da cidade e, empolgados com o resulta-

do e a receptividade, decidiram entrar em estúdio para registrar o trabalho. Chamaram mais um músico para complemen-

tar a sonoridade e terminaram 2011 entre os destaques nas listas de críticos e especialistas.

Grupo e CD se chamam Passo torto. A banda é formada por Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Ca-

bral, nos violões, no baixo, no cavaquinho e nas vozes contidas que tecem uma sonoridade macia, em composições pró-

prias com harmonias criativas e letras inteligentes. A crítica associa o som do grupo à evolução do samba, à renovação da

música independente de São Paulo, com referências que vão de Adoniran Barbosa (pela criativa crônica do cotidiano) e

Paulinho da viola (pela sofisticação e reinvenção nas composições) a itamar Assumpção (pela inventividade das letras).

Na entrevista a seguir, o Passo Torto na voz de seus integrantes.

Como nasceu o Passo Torto?RoMULo: Queria montar um show na Casa de Francisca (café-teatro localizado no Jardim Paulis-ta, em São Paulo) e, conversando com o proprietá-rio do espaço, sugeri a formação: eu, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos. Não tinha nem falado com eles ainda e a ideia já foi aprovada. O resultado foi po-sitivo e fomos para um estúdio gravar. Foi aí que o produtor, Maurício Tagliari, sugeriu que acrescen-tássemos um baixo acústico e decidimos chamar Marcelo Cabral. Agora ele está começando tam-bém a cantar e a compor com a gente. A amizade e a afinidade estética nos uniram. O trabalho foi desenvolvido com uma despretensão que nos fez arriscar mais, sem medo. Queremos levar essa ca-racterística para nossos outros projetos.

MARCELo: Quando entrei, eles já tinham o re-pertório quase pronto e fui chamado porque to-camos juntos, somos amigos.

RoMULo: A receptividade a esse trabalho nos surpreendeu, porque estamos acostumados a to-

mar muita paulada. Mas, quando nos juntamos, as pessoas acharam mais legal e deram opiniões inesperadas: de que nos assemelhamos a Itamar Assumpção, de que nossa música é o novo samba.

E o nome do grupo, vem de alguma canção?RoMULo: Da letra de “Cidadão” [composta por Romulo Fróes e Rodrigo Campos]. Quería-mos algo que remetesse ao samba, mas não de forma tradicional.

A música do Passo Torto tem sido vincula-da à evolução do samba. Isso é proposital?KIKo: Já associaram o nosso disco ao traba-lho Nervos de Aço, do Paulinho da Viola, que é incrível e faz uma releitura do samba. Mas, no nosso caso, esse conteúdo não foi progra-mático − ele reflete de certa forma a linha da vanguarda paulistana.

RoDRIgo: Tudo vem do samba. Toda a músi-ca brasileira vem do samba. Até na bateria do

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Sepultura tem samba. É a música nacional, e a gente está tentando inventar algo, entortar. O samba funciona como um elemento, uma base. Não é à toa que a bossa nova vem do samba. No entanto, não pensamos nisso. É um alicerce do trabalho, mas não foi proposital.

Vocês quatro são músicos de prestígio na cena paulistana atual e têm em comum a característica de atuar em diferentes pro-jetos. Essa versatilidade é uma constante neste momento da música brasileira?KIKo: Essa característica de ser multifacetado é da nossa geração. Somos os quatro assim e são muitos os outros músicos que também estão aí, tocando com a gente, se virando.

RoMULo: Hoje se pode viver de tocar só o que se quer. Nem é preciso fazer outros estilos. O ta-manho de Tulipa Ruiz e Criolo, por exemplo, é o tamanho que almejo. Tocar no Brasil inteiro sem precisar fazer programa tosco de TV, sem preci-sar ser ídolo popular. No entanto, fora Tulipa e Criolo, não há muitos outros artistas assim. O formato da grande estrela parece ter acabado. No lugar disso, há outro tipo de artista, aquele que pode viver só do que gosta, sem precisar tocar no shopping ou em festas. Essa geração ainda não está grande para viver de trabalhos autorais ex-clusivos, mas está grande o suficiente para que os artistas transitem por bons projetos.

MARCELo: Se for um cara restrito, só tocar per-cussão de samba, por exemplo, você se isola. Se ficar atento ao que está acontecendo e der a cara para bater, vai mais longe. Além disso, eu não ia ficar satisfeito com um trabalho único. Preciso do meu trabalho autoral, como o Marginals [projeto com o saxofonista Thiago França e o baterista Tonny Gordin], e de outros, com Criolo, Kiko, Ro-drigo, senão eu não acho mais graça.

RoDRIgo: É preciso fazer várias coisas, o Pas-so Torto e outros projetos. Quando para um, entra outro. Assim a coisa se movimenta e de-

pende só de você. Se ouvir pessoas de outros meios, a realidade se modifica. Músico que faz baile, evento, por exemplo, ganha melhor que a gente. Ou o que faz trilha. Há mil caminhos. So-mos compositores, com trabalhos próprios, e é assim que estamos vivendo.

Há outros planos?KIKo: Estou preparando um disco novo com 30 minutos de vinhetas. Vai se chamar Kiko Dinucci – Cortes Curtos (Cidade, Desejo, Solidão e Morte). A inspiração veio da rapidez da cidade, da internet.

RoDRIgo: Estou finalizando meu segundo CD, Baía Fantástica, um trabalho repleto de concei-tos. O nome vem de uma metáfora de um monte de coisas, inclusive da morte. Uma baía sobrena-tural. No disco, Kiko atua como guitarrista e pro-dutor; Cabral como baixista e também produtor. E ainda tem a participação de Romulo.

RoMULo: Meu próximo trabalho solo vai se chamar Barulho Feio. Enquanto isso, vou conti-nuar trabalhando em vários projetos e vamos se-guir com o Passo Torto. Temos shows marcados e fomos selecionados para o Conexão Vivo.

Como foi a formação musical de vocês?RoMULo: Sou o único não músico do grupo e, por isso, faço outras coisas para sobreviver, como escrever, mas tudo ligado à música. Meu barato era desenhar. Queria ser desenhista e, para isso, comecei a trabalhar cedo. Fui office boy e fiquei nove anos num banco, enquanto estudava artes plásticas. A música estava sempre presente. Ti-nha uma banda, Losango Cáqui, que fazia um rock “Renato Russo de segunda linha”, e fui por um tempo assistente do artista visual Nuno Ra-mos. Minha relação com a música está relacio-nada à lembrança do meu pai, pessoa de origem humilde do sertão da Bahia, mas um amante da MPB, formado pela Rádio Nacional.

KIKo: Em casa ouvi muita música caipira e MPB. Com 5 anos ganhei um violão. Aos 13 comecei a curtir rock, metal e percebi que algo mudou na minha visão de mundo e na convivência social. A música virou obsessão. Recuperei o violão antigo, que estava quebrado, consertei-o com fita adesiva e comecei a tocar as músicas que ouvia. Mas no local onde eu cresci, em Guarulhos, não se ouvia rock, e isso me isolou. Virei o esquisito. Vivia ou-vindo disco e, quando saía de casa, o pessoal me xingava, jogava pedra... Lembro de uma professo-ra, na sexta série, que me acusou de usar drogas,

Kiko Dinucci“Essa característica de ser multifacetado é da nossa geração. Somos os quatro assim e são muitos os outros músicos que também estão aí, tocando com a gente, se virando.”

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Marcelo Cabral“Se for um cara restrito, só tocar percussão de samba, por exemplo, você se isola. Se ficar atento ao que está acontecendo e der a cara para bater, vai mais longe.”

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Rodrigo Campos“Tudo vem do samba. Até na bateria do Sepultura tem samba. A gente está tentando inventar algo, entortar. O samba funciona como um elemento, uma base, um alicerce do trabalho.”

disse que eu ia virar ladrão, só porque eu ficava quieto, no canto. Continuei ouvindo música e fui conhecendo outros roqueiros do bairro. Viramos um grupo de esquisitos e montamos uma banda. Isso abriu uma janela. Quando fizemos o primeiro show no colégio, os caras que batiam na gente fo-ram à apresentação e curtiram; desse dia em dian-te passaram a nos respeitar. Toquei muito tempo sem ganhar nada. Isso durou de 1990 até 2005, época em que eu vivia de música, mas não ganha-va dinheiro com isso. Quando comecei a compor, a coisa mudou. Um dia, um amigo, Nei Mesquita, armou um show com a dona do Ó do Borogodó [bar da zona oeste paulistana]. Foi meu primeiro cachê. Havia passado por vários trabalhos infor-mais: office boy, entregador de jornal, pintor de parede, desenhista copista. Mas apenas a música me fez achar um horizonte profissional.

RoDRIgo: Toco desde moleque. Comecei nas rodas de samba de São Mateus, experimentan-do, improvisando com os amigos. Com 12 anos montei o primeiro grupo e comecei a estudar cavaquinho. Com 21 optei pelo estudo de mú-sica. Trabalhei como office boy, carregador em uma fábrica de calça jeans, engraxate. Hoje vivo apenas de música. Toco cavaquinho e violão, componho e canto.

MARCELo: Fui esqueitista profissional e de-pois decidi estudar música. No início, dava au-las para ajudar. Há oito anos estou vivendo de música. Toco baixo acústico e elétrico e produ-zo. Entrei na produção musical meio por acaso, porque dispunha de equipamento e gostava. A primeira experiência foi com a cantora Verônica Ferriani e o produtor BiD. Recentemente produ-zi dois discos, um de Lurdez da Luz [em 2010, com Daniel Bozzio] e outro de Criolo [em 2011, com Daniel Ganjaman].

Curta o Passo Torto em <facebook.com/passotorto> e <twitter.com/passotorto> e baixe as músicas no site <passotorto.com.br>.

Os integrantes do Passo torto: formações musicais distintas e carreiras marcadas pela participação em vários projetos

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Romulo Fróes“A amizade e a afinidade estética nos uniram. O trabalho foi desenvolvido com uma despretensão que nos fez arriscar mais, sem medo. Queremos levar essa característica para nossos outros projetos.”

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R io de Janeiro, 30 de setembro de 1937. O general Goes Monteiro anuncia a descoberta de um plano comunista de tomada do poder. Nesse mesmo dia, no Palácio do Catete, sede do governo federal, o presidente Getúlio Vargas decreta estado de guerra contra a ameaça golpista. Cerca de 40 dias depois dá, ele mesmo, um golpe e implanta o Estado Novo, regime ditatorial que ambi-

cionava manter a paz e a unidade da nação perturbada pela ameaça vermelha. O documento que detalhava a ação entrou para a história com o nome de Plano Cohen, um relato falso cujo objetivo real não era outro senão estender a permanência de Vargas no poder.

Salvador, Bahia, 19 de novembro de 1937. Numa grande fogueira em frente à Escola de Aprendizes-Mari-nheiros e sob os olhares dos agentes do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) ardem mais de 1.500 livros, todos exemplares de um mesmo autor, e, entre eles, aquele que havia acendido a faísca da perseguição: a história de crianças delinquentes ou, antes, sobre dias de revolução que se aproximam. O autor é Jorge Amado e o livro em questão é Capitães da Areia, lançado em setembro daquele ano, num momento de efervescência e tensão no cenário político brasileiro.

CArTAS à rEdAçãOÉ sob esse título, “Cartas à Redação”, que o romance se inicia. O autor contextualiza o cenário social de sua obra por meio de notícias e de cartas publicadas no periódico baiano Jornal da Tarde. As manchetes falam das ações criminosas de um bando de crianças de rua e contrapõem a elas suas vítimas, sempre honradas, trabalhadoras, exemplares. Durante todo o desenrolar da trama, o discurso jornalístico cioso da moral e dos bons costumes surgirá como porta-voz das forças opressoras, o Estado, a religião, a família burguesa.

O núcleo da ação é representado pelo líder Pedro Bala, filho de um grevista morto em confronto, por Volta Seca, afilhado de Lampião, e ainda pelos meninos Professor, Sem-Pernas, Gato, Pirulito, Querido-de-Deus, entre outros. Única menina do grupo, Dora os agregará em torno de si representando múltiplas personas: mãe, irmã, amiga, noiva e esposa. Não é possível ler Capitães da Areia e não relacioná-lo a outra obra que trata de “meninos perdidos”. Escrito para teatro por J. M. Barrie, Peter Pan conta a história de crianças perdidas em uma Terra do Nunca em que as regras são dadas por elas mesmas sempre em oposição ao mundo adulto e suas representações na lei, na ordem e nos valores burgueses. Se na obra de Barrie, Peter Pan recusa-se a ingressar no mundo adulto, na obra de Jorge Amado, Pedro Bala o faz levando consigo a centelha da liberdade da infância.

À parte a violência e a erotização implícitas na narrativa, o romance apresenta a humanidade dos persona-gens. Em várias passagens reiteradamente a voz narrativa afirma: são crianças. Os meninos, heróis roma-nescos, não se configuram como marginais, mas como um grupo coletivamente organizado, movido por um ideal de justiça social, regido por uma ética própria e em harmonia com a natureza ao seu redor.

No romance, o embate entre poderosos e oprimidos tem um contexto político bem definido. Assim, não é à toa que o destino de Pedro Bala é o de se tornar um líder revolucionário ao abraçar a causa do operariado. Num Brasil paranoico com supostas ameaças comunistas e às vésperas de um golpe de Estado, nenhum livro poderia ter sido mais perigoso.

COMpANhEIrOS, vAMOS prA luTA!Obra de juventude (seu autor não contava mais de 25 anos quando a escreveu), Capitães da Areia surge como um livro do seu tempo e para além do seu tempo. Jorge Amado, que para escrever o romance foi dormir nos trapiches junto com crianças abandonadas, estava fora do país durante o lançamento e o epi-sódio da queima dos livros. Foi preso ao retornar. Com Capitães da Areia ele não só antecipa “os anos em que todas as bocas foram impedidas de falar”, para citar uma expressão da obra, como denuncia o olhar equivocado que as políticas públicas teriam para as crianças pobres brasileiras por todo o século XX. Pro-fundamente humano e repleto de lirismo, o romance mantém intactos, 74 anos depois de lançado, sua força e apelo por liberdade.

TEXTO micheliny verunschk ILUSTRAÇÃO arthur d’araujo

Há 74 anos, Capitães da Areia anuncia que “a revolução é uma pátria e uma família”

Enquanto dormem as crianças ladronas

Vários eventos vão comemorar o centenário de Jorge Amado em 2012. Confira Capitães da Areia, filme da cineasta e neta do escritor Cecília Amado, em cartaz; a Cia. das Letras lança livro com as cartas que Jorge trocou com Zélia Gattai no exílio. Veja mais em <jorgeamado.com.br/centenario.php>.

Saiba mais sobre Jorge Amado na Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira, disponível em <itaucultural.org.br/enciclopedias>.

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TEXTO leonardo calvano

O ano era 1922. São Paulo ganhava status de metró-pole ao atingir quase 1 milhão de habitantes. A aris-tocracia cafeeira e os imigrantes, que compunham grande parte da população na época, assistiam à expansão territorial e ao crescimento vertical da cidade, representados por edificações simbólicas como a Estação da Luz e as mansões da Avenida Paulista. O centro da cidade ostentava um ar euro-peu. Todo esse ambiente serviu de cenário para o primeiro movimento cultural coletivo da história brasileira: a Semana de Arte Moderna, que mar-caria, em definitivo, o rumo das artes nacionais e a identidade cosmopolita e boêmia da capital.

“Naquela época, a cidade era a que apresentava as melhores condições para a realização de um evento como esse. Era próspera, recebia grande número de imigrantes europeus e se modernizava rapidamen-te, com a implantação de indústrias e a urbaniza-ção”, afirma a historiadora e antropóloga Letícia Via-na. Era também o ambiente perfeito para propostas artísticas transgressoras, diferentemente do Rio de Janeiro – outro polo artístico, impregnado pelas ideias da Escola Nacional de Belas-Artes –, que, por muitos anos depois da Semana, ainda defenderia o academicismo. “Claro que existiam no Rio artistas dispostos a renovar, mas o ambiente não lhes era propício, sendo mais fácil aderir a um movimento que partisse da capital paulista”, completa.

Organizada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos e muitos outros, a Semana, realizada no Teatro Municipal de São Paulo entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, marcou o surgimento do modernismo brasi-leiro, além de ser o ponto de encontro das várias tendências que vinham se firmando mundialmen-te desde a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O evento marcou também as comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil. Reuniu cerca de cem obras e compreendeu três sessões literomusicais noturnas. Consolidou gru-pos e ideias, que passaram a ter espaço cativo em livros, revistas e manifestos. As ideias que dissemi-nou foram legitimadas por completo após alguns anos, quando chegariam a outros estados brasilei-ros: em Minas Gerais, foram acolhidas pelos poe-tas Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Emílio Moura, Abgar Renault e João Alphonsus;

saga modernistacOmpleTA 90 AnOsIdeais da semana de 22 ainda ecoam com força na arte atual

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mário de Andrade (primeiro à esq., no alto), Rubens Borba de moraes (sentado, segundo da esq. para a dir.) e outros modernistas em 1922, dentre eles (não identificados) Tácito, Baby, mário e Guilherme de Almeida e Yan de Almeida prado

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TEXTO leonardo calvano

SEm proGrama EStético dEfinido, a SEmana dE 22 foi muito maiS uma manifEStação dE rEjEição ao conSErvadoriSmo da produção litErária, muSical E viSual do quE um acontEcimEnto conStrutivo dE propoStaS E criação dE linGuaGEnS.

no Rio Grande do Sul, por Mário Quintana, Au-gusto Meyer, Pedro Vergara e Guilhermino César, também poetas; e, no Nordeste, nas obras de José Américo de Almeida, Jorge de Lima e outros.

De acordo com a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, “a Semana de Arte Moderna é um marco por ter sido um evento preparado, e que foi fundamental para os artistas, mesmo se considerarmos que os tra-balhos expostos não são hoje, para nós, revolucioná-rios. Mas significaram um desejo de rompimento”. Aracy observa que o movimento trouxe duas ver-tentes bastante diversas: uma que sinalizava para os valores locais, os ritmos musicais e as tradições po-pulares. Nesse ponto, segundo a historiadora, Mário de Andrade foi um grande agente. A outra vertente foi a das artes plásticas baseadas em temas que re-metem às raízes brasileiras. “É nesse contexto que a pintura Pau-Brasil, de Tarsila do Amaral, emerge com sabor e força, assim como as obras de Di Caval-canti e Cicero Dias, antes de ir para Paris.”

dESconStrução EStéticaSem programa estético definido, a Semana de 22 foi muito mais uma manifestação de rejeição ao conservadorismo da produção literária, musical e visual do que um acontecimento construtivo de propostas e criação de linguagens. Dois dos prin-cipais ideólogos, Mário e Oswald de Andrade, de-fenderam a “recusa à literatura e à arte importadas com os traços de uma civilização cada vez mais superada, no espaço e no tempo”. Em geral todos clamavam em seus discursos por liberdade de ex-pressão, pelo fim de regras na arte e por ideários futuristas, que exigiam a deposição de temas tradi-cionais em nome da nova sociedade.

Na palestra proferida por Mário de Andrade na tarde do dia 15 de fevereiro, posteriormente pu-blicada como o ensaio “A Escrava que Não É Isaura”, em 1925, o autor debateu a importância

de mesclar a estética moderna com as raízes da cultura popular brasileira. A dinâmica entre o na-cional e o internacional se torna a questão princi-pal desses artistas nos anos seguintes.

Vale ressaltar também que, apesar de toda a estru-tura contestadora e anarquista, a Semana não foi um fato isolado e sem origens. Discussões sobre a renovação surgiram na década de 1910, em tex-tos de revistas e em exposições, como a de Anita Malfatti, em 1917. Em 1921, já existia, por parte de Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, a inten-ção de transformar as comemorações do centená-rio em um movimento de emancipação artística. No entanto, é no salão do mecenas Paulo Prado, em fins daquele ano, que a ideia ganhou força, após ele promover um encontro para manifestações artísti-cas diversas, inspirado na Semaine de Fêtes de De-auville, na França. O mesmo Paulo Prado, homem influente, conseguiu o patrocínio dos barões do café para realizar o evento, além de ser fundamen-tal para a adesão de Graça Aranha. A presença do romancista e diplomata, que chegara havia pouco da Europa, legitimou as reivindicações do jovem e ainda desconhecido grupo modernista.

SEmEntE lançadaCriar uma arte baseada nas características do povo brasileiro. Esse conceito foi o principal lega-do deixado pelos modernistas de 1922. O primei-ro sinal de que as coisas nunca mais seriam as mesmas veio em 1928 com o “Manifesto Antro-pófago”, de Oswald de Andrade, que propunha devorar influências estrangeiras para impor um caráter brasileiro às artes plásticas e à literatura. Alguns anos antes, o próprio Oswald e a artista plástica Tarsila do Amaral publicaram o “Mani-festo da Poesia Pau-Brasil”, que enfatizava a ne-cessidade de criar uma arte baseada nas caracte-rísticas do povo brasileiro, com absorção crítica da modernidade europeia.

Nas décadas seguintes, movimentos como o ci-nema novo, com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, mostraram indícios de que a fonte modernista continuaria a alimentar nossa cul-tura. É notório encontrar elementos da estética proposta na Semana em filmes como Terra em Transe e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glau-ber) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), inspirado no romance de Mário de Andrade.

Na música, o ideário modernista reverberaria em movimentos que ocorreriam várias décadas depois, como a bossa nova, com João Gilberto; o tropicalismo, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé; a vanguarda paulistana, com Itamar As-sumpção e Arrigo Barnabé; e o mangue beat, com Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, cuja proposta estética foi fundir ritmos brasileiros como o samba, a música de terreiro, o maracatu e o frevo com elementos estrangeiros como o jazz, a música clássica, o rock e a música eletrônica.

Mais recentemente, o legado modernista pôde ser visto nos movimentos de arte urbana, como na paulistana Cooperativa de Artistas da Peri-feria (Cooperifa). A crítica literária Heloísa Bu-arque de Hollanda acredita que esse é “um dos fenômenos culturais mais importantes destes anos 2000”. Ela é a curadora da série de livros Tramas Urbanas, da Editora Aeroplano, da qual Cooperifa, Antropofagia Periférica, de Sérgio Vaz, lançado em 2008, é o sétimo volume. Criado pelo poeta Sérgio Vaz, o movimento ganhou re-percussão com o Sarau da Cooperifa, que recebe até 500 pessoas para ouvir e declamar poesia, a cada edição, realizada semanalmente em um bar da zona sul da capital. “Achamos importante re-gistrar como surgiu esse encontro e de onde vem esse poeta revolucionário – que, em pleno século XXI, refaz não apenas o caminho antropofági-co da poesia modernista e sua Semana de Arte Moderna, mas recria agora, dono de sua voz, o grande quilombo da poesia paulista”, declarou, na época do lançamento, a pesquisadora.

Consulte <itaucultural.org.br/enciclopedias>.

sarau da cooperifa, eco da proposta libertária dos modernistas

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modErniSmo na rEdEInternet oferece várias opções de pesquisa sobre o movimento deflagrado com a Semana de 22

movimento multidisciplinar, a semana de 22 teve influên-cia não só na literatura, na música e nas artes plásticas, mas também no teatro. se você deseja conhecer mais sobre esse marco histórico da nossa arte, consulte as enciclopédias virtuais do Itaú cultural. na Enciclopédia de Artes Visuais, há verbetes dos artistas que participaram do evento, com textos críticos e obras representativas, e verbetes correlatos sobre o movimento modernista e seus desdobramentos. na de música, biografias de todos os músicos citados nesta matéria, além de textos ana-líticos sobre eles. A de literatura traz, em seus verbetes sobre os escritores brasileiros, a contribuição da estética modernista nas letras desde a década de 1920 até a atualidade. por fim, na Enciclopédia de Teatro, a trajetória de encenadores que puseram em prática a experiência estética moderna, como Zé celso.

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Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos brasileiros, Angeli faz revisão de sua tragetória

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Ao pressentir que determinado tema atinge seu ponto de saturação, ele sim-plesmente passa uma borracha por cima. Como bom punk da periferia, Angeli tem Ph.D. em tocar o foda-se.

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Foi embranquecendo, embranquecendo.... até dar branco total: do cabelo ao traço, Angeli desapa-receu de suas tiras.

“Implodiu”, para usar a expressão de Ruy Castro em referência ao modo como Angeli descons-trói o discurso dos personagens: uma corrosão que parte de dentro. O homem que “suicidou” seu maior sucesso − a doidona Rê Bordosa, cujas histórias serão reunidas em breve em um álbum a ser lançado pela Cia. das Letras − não tem o mínimo pudor em armar para que seus perso-nagens direcionem ranzinzice, mediocridade, raiva e loucura contra si mesmos. Foi assim com Os Skrotinhos, com Bob Cuspe, com Meia-Oito, com Bibelô, para citar somente alguns dos inú-meros anti-heróis criados pelo mais iconoclasta dos cartunistas brasileiros. Ao pressentir que de-terminado tema atinge seu ponto de saturação, ele simplesmente passa uma borracha por cima. Como bom punk da periferia, Angeli tem Ph.D. em tocar o foda-se.

liga/desligaSempre foi assim com esse paulistano nascido no bairro da Casa Verde, há 55 anos. Filho de ita-lianos calabreses e sicilianos, sob o signo de Vir-gem com ascendente em Virgem, o sanguíneo Angeli define-se como ultracontrolador, metódi-co, meticuloso – daí a paúra ao sentir que um ca-minho criativo se esgota: ele mata suas criaturas

no auge. Daí ter parado com as charges “fofas” de personagens controversos como Delfim Netto, Paulo Maluf e José Sarney, na época em que seu traço reinava na poderosa página 2 da Folha de S.Paulo. “Esses caras estavam ficando muito sim-páticos, eu estava dando espaço demais pra eles”, explica. Daí também ter parado com as charges para inventar o espaço de tiras adultas em jor-nais. Hoje, na Folha, divide esse espaço com La-erte, Fernando Gonsales, Fabio Moon & Gabriel Bá, além dos discípulos confessos Allan Sieber, Caco Galhardo e Adão Iturrusgarai. A influência de Angeli – e seu modus operandi liga/desliga – é gigantesca. Ele editou a revista de quadrinhos de maior circulação no país, a Chiclete com Ba-nana, que vendia 120 mil exemplares mensais e frutificou nos títulos Circo (de Laerte e Luiz Gê) e Geraldão (de Glauco), sem falar nos filhos bas-tardos Animal e General, lendárias publicações do udigrúdi paulista, e ainda respingou sua se-mente nos cariocas Planeta Diário e Casseta Po-pular. Uma rede de publicações que emana do espírito multiplamente anárquico do gênio Mil-lôr Fernandes – mentor das Pif-Paf que Angeli lia alucinado quando criança e do Pasquim, que movimentou sua adolescência.

A crise pela qual passa Angeli – a ponto de até mesmo detonar a Série Angeli em Crise – tem fundo estético e emocional. Cada vez mais, ele prefere resguardar seu fôlego para trabalhos

grandes, em detrimento das tiras-em-três-qua-drinhos e da charge. Os personagens das tiras foram rareando. Mesmo estas transitaram de sé-ries seminarrativas, como Lovestórias ou Duas Coisas que Eu Odeio e Uma Coisa que Eu Adoro, a retângulos abstratos, como o Caderno de Esbo-ços ou tiras em que tão somente exibe o traço inconfundível em retratos de jazzmen ou repro-duções dos álbuns favoritos. Curiosamente, para um cartunista ligado ao punk e ao rock ‘n’roll, ele diz já não ter o hábito de desenhar ouvindo música − com ressalva para Bob Dylan, seu ídolo maior (ao lado de Gerald Scarfe e, é claro, Robert Crumb, ambos desenhistas). Ou seja: ele tem passado horas e horas em silêncio sobre a amada prancheta − “adoro ficar sozinho”, diz −, em estado de depuração: se de um lado a tira narrativa pro-gressivamente limpou traço e mensagem, como na série O Imundo Animal, por outro, as charges ganharam impacto, síntese e conceito.

O artista define seu momento como uma “doloro-sa” revisão. “Estou em plena andropausa. Eu me orgulho muito de ter resistido ao tempo sem abrir mão de meus ideais. Mas não escondo que estou em banho-maria”, assume. Para quem conhece sua alma rebelde, é certo que, em breve, ele vai pular do banho-maria para aumentar o fogo no máximo – sem o menor medo de se autofritar.

[Entrevista concedida a Claudiney Ferreira]

"Estou numa bagunça mental e emocional, numa fase de transição", confessa Angeli sobre seu momento atual. Para quem conhece o cartunista, é bom não acreditar: daqui a pouco ele explode − ou se autoimplode

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Há anos angeli passa a maior parte do tempo em seu estúdio, debruçado sobre a prancheta a exercitar um talento incomum de fazer hu-mor com o ridículo da vida alheia. Numa tarde ensolarada de janeiro, o cartunista permitiu uma pequena invasão em sua casa e espa-ço criativo para contar histórias e falar sobre sua extensa trajetória profissional ao progra-ma Ocupação, do itaú Cultural (exposição que ocorre de 16 de março a 29 de abril de 2012). Na ocasião, a convite da ConTinuum, Rafael Coutinho registrou o que viu e recriou a seu modo parte do universo particular de angeli.

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Série Jazz: tiras publicadas na Folha de S.Paulo

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Veja parte da Série Jazz publicada na Folha de S.Paulo e alguns trabalhos que mostram como o cartunista se vê em diferentes fases de sua produção

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Esboço de autocaricatura

Autocaricatura, 1999

Esboço de autocaricatura feita para a capa da Revista TPM Autocaricatura feita para a Revista Trip, 2010

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Quadrinhos sempre foram vistos com reserva por educadores e pais. Para os artistas plásticos, rara-mente essa linguagem era associada a obras de grande qualidade. Esse cenário foi pouco a pouco se modificando, com uma produção maior de his-tórias e o refinamento dos traços de desenhistas mundo afora. Hoje, enfim, as HQs têm seu valor li-terário e artístico reconhecido e consolidado, mas permanecem sendo um território quase exclusi-vamente masculino. Identificada como “coisa de menino”, é uma das únicas formas de expressão pop que ainda arrastam consigo o ranço do dire-cionamento de gêneros.

A boa-nova é: o lado feminino dessa gangorra está começando a se levantar. E a prova disso é a presença cada vez maior de mulheres em todos os segmentos de produção das HQs. De resenhistas a editoras, de quadrinistas a cartunistas e chargis-tas... No mercado brasileiro de quadrinhos há pelo menos 20 mulheres assinando trabalhos, sem con-tar o grande volume de profissionais do sexo femi-nino que atualmente colabora para a série Turma da Mônica e sua derivada, a Mônica Jovem. Por sinal, a principal roteirista desses produtos, edita-dos pela Panini, é uma mulher: Petra Leão.

O número ainda é ínfimo se comparado com o de profissionais do gênero masculino, mas é qua-se 100% maior do que o que se via há breves dez anos. “De memória, com exceção da Erica Awano, que, naquele tempo, estava no começo de seu tra-balho, e da Eva Furnari, não me recordo de mu-lheres criando quadrinhos no Brasil”, diz Sidney Gusman, jornalista especializado no tema e hoje editor dos estúdios Mauricio de Sousa. Em recente projeto para rever os personagens do desenhista, Gusman convidou 150 artistas nacionais para criar quadrinhos e cartuns para três livros. O projeto contou com a presença de dez mulheres no time – 6,6% do total, na precisão matemática. “Posso ga-rantir que essas profissionais estavam no nível de excelência de todos os outros participantes.”

Mas, como numa economia que se retroalimenta, é certo que a presença de mulheres no campo da produção de quadrinhos cresce conforme aumen-ta sua presença na outra ponta do processo: o con-sumo. Mariamma Fonseca, uma das três criadoras do Lady’s Comics [ladyscomics.com.br] – site

Quadrinistas mulheres veem seu trabalho ser reconhecido no Brasil e no exterior, mas ainda fazem parte de uma minoria, num mercado dominado pelos colegas do sexo oposto

O traço de Adriana Melo tenta fugir do estereótipo do mercado

internacional e ressaltar a força das heroínas em vez de seus atributos corporais

sapatilhas de arame

dedicado a meninas que leem e fazem quadri-nhos cujo slogan é “HQ não é só para seu na-morado” –, diz que percebe uma presença cada vez mais constante de mulheres em gibitecas e livrarias e acredita que boa parte desse interes-se cresceu entre e com as meninas (em vez de parar na infância após a inevitável leitura dos gibis da Turma da Mônica) quando os mangás se tornaram populares no país. Mariamma re-cebe vários e-mails de meninas interessadas em ler e fazer quadrinhos, e, para ela, desvin-cular o HQ da questão de gênero, pelo menos do lado de quem consome, ajuda a criar campo para quem produz.

PResTígiO lá fORaJá para as moças que hoje se debruçam sobre a prancheta para criar tirinhas, quadrinhos autorais e até mesmo super-heróis está claro que tudo o que não precisam ver é a produção e o consumo de seu trabalho atrelados ao fato de serem mulheres. Numa conversa com cin-co quadrinistas que trabalham para o mercado brasileiro e estrangeiro e vivem de sua criação, é consensual não existir uma “leitura feminina” que as diferencie dos profissionais homens. “Isso não faz sentido. Não é o sexo que determi-na esse tipo de coisa. São as pessoas, com suas limitações e talentos, que produzem obras con-vincentes, ou não, em suas propostas”, garante a paulistana Erica Awano. Ela começou a dese-nhar seus mangás no fim dos anos 1990 e ga-nhou popularidade ao ilustrar a série brasileira Holy Avenger. Hoje é reconhecida no mercado internacional. São dela, por exemplo, os dese-nhos da versão em quadrinhos de Alice no País das Maravilhas, com roteiro de Leah Mo-ore, filha de Alan Moore, criador de clássicos como Watchmen e V de Vingança.

TEXTO carol almeida

A boneca inflável Amely, criação de Pryscila Vieira: bom humor para falar do universo feminino

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Outra brasileira que exporta seu talento é a também paulistana Adriana Melo. Primeira mulher no mundo a desenhar dois importan-tes personagens da editora Marvel, Homem Aranha e Justiceiro, ela tem uma longa lista de super-heróis americanos no currículo e, de sua casa em Interlagos, São Paulo, envia pela internet aos estúdios america-nos seus desenhos que se tornaram populares naquele país. No caso de Adriana, é ainda mais latente o abis-mo de gênero, não apenas entre os realizadores, mas particularmente na condução muitas vezes sexista da in-dústria que sustenta esses personagens há mais de 70 anos.

Acostumada a desenhar super-heróis homens e mulheres em seus respectivos uniformes colantes, Adriana fala sobre as representações masculinas e femininas nesses produtos: “Infelizmente, acho que o que os quadrinhos americanos mostram é um padrão de beleza impossível. Para mim, é um desafio dar forma a heroínas que fujam disso. O corpo feminino, às ve-zes, é retratado de maneira sexista. Mas de-pende muito do bom senso do profissional em esboçar as personagens”. Para ela, boas histórias e um traço de qualidade, indepen-dentemente do estilo, são suficientes para atrair leitores. “Sempre espero que não exista a necessidade de usar esse tipo de ‘isca’. Tento fugir de ângulos reveladores e, em vez de fo-car nas curvas femininas, desenho as persona-gens em poses interessantes, que demonstrem personalidade e força”, diz.

A paranaense Pryscila Vieira, “mãe” de Amely, uma boneca inflável feminista, engajada e engra-çada que é publicada hoje em tirinhas no jornal Folha de S.Paulo, acredita que não deve haver dis-tinção entre o que as mulheres e os homens podem criar em HQ, mas pondera: “Sou mulher, portanto, acredito que posso falar com maior propriedade so-bre o universo feminino. Mas não compactuo com a ideia de limitações de qualquer ordem na arte”.

CRaTeRa lunaRA fluminense Clara Gomes – outra quadrinista com um vasto trabalho publicado em tirinhas, como os Bichinhos de Jardim [bichinhosdejar-

dim.com] – não acredita em qualquer tipo de “reserva” do mercado editorial em relação às mu-lheres que produzem quadrinhos, mas relativiza: “Existe um preconceito de um modo geral em re-lação ao feminino. Há também uma cultura de que as mulheres precisam escrever necessariamente sobre questões que dizem respeito ao que é fútil, à cosmética, às dietas... Mas definir o ‘mercado’ tal qual uma entidade é sempre perigoso. As publica-ções são extremamente variadas e novos espaços vêm sendo criados”.

“Acho que atualmente acontece o contrário: existe um interesse pelo que as mulheres estão produ-zindo. Como os quadrinhos brasileiros estão num bom momento, com muita gente competente pro-duzindo material de alta qualidade, há uma curio-sidade também pelo trabalho delas, principalmen-te por essa ser uma área dominada por homens.” A opinião é da gaúcha Samanta Flôor, cujos car-tuns têm um estilo inconfundível. Ela foi revelada em 2009, após o sucesso da webcomic Toscomics [cornflake.com.br], tirinhas autobiográficas que chegaram a ser indicadas naquele ano ao HQ Mix, maior prêmio dos quadrinhos no Brasil.

Ainda em minoria, mas cada vez mais requisita-das num mercado em que reinam os prazos cur-tos e os trabalhos cansativos, as mulheres qua-drinistas sabem que há uma cratera lunar que as separa de um cenário de equiparação com os homens. E, claro, levam isso com o senso de hu-mor necessário. “Quando digo que sou cartunis-ta, as pessoas demoram um pouco para assimi-lar. Já teve gente que confundiu ‘cartunista’ com ‘cartomante’ e me pediu para ler cartas sobre seu futuro”, lembra Pryscila. “O pior é dizer que sou ilustradora, porque pensam que trabalho limpan-do móveis”, brinca Clara.

Ao dar seu testemunho sobre essa questão, Adria-na se lembra de uma história engraçada: “Uma vez eu estava numa banca de jornal olhando um monte de mangás. Procurava especificamente um, referência para cenários. Foi quando o dono da banca chegou todo sorrisos e disse: ‘E aí, qual a idade do meninão?’ Olhei para ele meio perdida. Só depois entendi que ele pensava que eu estava comprando gibis para meu filho. Então, respondi: ‘Não é para ninguém, estou escolhendo para mim mesma’. Ele ficou muito sem graça com a gafe”. Mas a quadrinista espera que, em breve, a ideia de que os quadrinhos nasceram apenas com o cro-mossoma Y seja coisa do passado.

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Há aproximadamente dois anos, o cineasta André D’Elia estava em meio ao canteiro de obras da Usi-na de Belo Monte, na cidade de Altamira, no Pará, quando teve a dimensão da grande polêmica que rondava a construção do empreendimento e perce-beu a necessidade de documentar em vídeo o que passava longe dos olhos da população do restante do país. Para isso, pensou em colher depoimentos dos principais envolvidos, entre ribeirinhos, índios, empreiteiros, técnicos e representantes do go-verno, contabilizando, ao final de três expedições ao Xingu e visitas a São Paulo e a Brasília, 87 en-trevistas e mais de 120 horas de imagens. Assim, como ocorre com a grande maioria dos projetos independentes, havia muita história para contar, mas poucos recursos para viabilizar a ideia. Após um longo período de reflexão e pesquisa, surgiu a solução ideal para realizar o documentário Belo Monte – Anúncio de uma Guerra: o financiamento coletivo ou crowdfunding (crowd: multidão; fun-ding: financiamento).

A mais nova onda do empreendedorismo, sobre-tudo cultural, ainda é muito recente no Brasil – co-meçou a funcionar por aqui em janeiro de 2011, com o surgimento do site Catarse (catarse.me) –, mas em poucos meses ajudou a tirar do papel al-guns projetos que, sem o financiamento coletivo, provavelmente estariam fadados a permanecer no campo das ideias. “Queríamos fazer algo diferente e resolvemos pesquisar o que estava acontecendo de interessante em projetos colaborativos em ou-tros países. Acabamos encontrando o Kickstarter [kickstarter.com – maior site de crowdfunding do

mundo] e resolvemos importar a ideia para o Bra-sil. Em menos de um ano conseguimos arrecadar quase 1 milhão de reais, verba revertida em proje-tos como o primeiro disco da Banda Mais Bonita da Cidade, de Curitiba, e o documentário sobre a Usina de Belo Monte”, conta Diego Reeberg, um dos sócios fundadores do Catarse.

A força da plataforma é a mobilização, o engaja-mento de gente impulsionada pelo desejo de ver uma ideia se transformar em realidade − seja ela um filme, seja uma revista, um disco, uma matéria jornalística ou até mesmo um show ou festival de música. A novidade pode até ser encarada como uma reinvenção contemporânea e mais elabora-da da famosa “vaquinha”, e se tornou uma alterna-tiva aos patrocínios tradicionais e aos programas de incentivo à cultura. “O crowdfunding foi inte-ressante para o documentário porque tratamos de um assunto muito polêmico para ter apoio do setor privado e até mesmo para conseguirmos acessar os mecanismos das leis de incentivo, já que assumimos uma posição contrária à constru-ção de Belo Monte. Além disso, quando criamos a campanha na internet [em novembro de 2011] para arrecadar os 114 mil reais de que precisáva-mos, construímos um público engajado em tor-no do filme mesmo antes de ele existir”, observa Daniel Joppert, colaborador do núcleo de mobi-lização de Belo Monte − Anúncio de uma Guerra, que se tornou o maior projeto de crowdfunding do Brasil, com arrecadação final de 140.010 reais doados por 3.429 pessoas de todo o país, e com estreia prevista para o primeiro semestre de 2012.

No entanto, projetos criativos aprovados em leis de incentivo também encontram dificuldades na arrecadação de verbas, especificamente no mo-mento da captação de recursos em empresas. Para não decretar o fim da ideia por pura falta de grana, seus criadores se veem obrigados a repen-sar estratégias e a recorrer a outros tipos de finan-ciamento para realizar protótipos e pilotos que ajudem na obtenção de patrocínios futuros. Esse é o caso da revista Efêmero Concreto, idealizada pelo coletivo responsável pelo site AHH! [ahh.com.br] para ser distribuída gratuitamente. Apro-vado na Lei Rouanet, o projeto não captou a verba necessária para a impressão do primeiro número, justamente por não ter uma edição concluída que incentivasse o apoio das empresas, apesar da qua-lidade e pertinência da proposta. “Muitas empre-sas grandes adoraram a ideia da publicação, mas todas exigiram uma edição concluída para avalia-ção, coisa que não tínhamos por causa do alto cus-to de gráfica. A solução foi fazer uma campanha no Catarse para arrecadar os 18 mil reais necessá-rios para imprimir inicialmente 5 mil exemplares, apesar da nossa meta de tiragem ser 10 mil por edição”, diz Deco Benedykt, um dos fundadores do AHH! e produtor da Efêmero Concreto. Com a colaboração de 205 pessoas, 19.077 reais foram arrecadados e a primeira edição será impressa.

criatividade e transparênciaPara que uma ideia possa contar com a colabora-ção financeira de pessoas comuns, o proponente deve submeter seu projeto à equipe de curadoria do site de crowdfunding escolhido. Geralmente

TEXTO roberta dezan ILUSTRAÇÃO liane iwahashi

Precisamente, o ideal mobilizador da informática não é mais a inteligência artificial, mas sim a inteligência coletiva, a saber, a valorização, a utilização otimizada e a

criação de sinergia entre as competências, as imaginações e as energias intelectuais, qualquer que seja sua diversidade qualitativa e onde quer que se situe.

(LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 167)

IMPULSIONADOS p e l am u l t i d ã o

O financiamento coletivo inverte a lógica da produção cultural ao contar apenas com a mobilização popular para a viabilização de projetos

O p ú b l i c o a s s u m e u m a

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Saiba mais sobre os projetos citados na matéria:Dzi croquettes [kck.st/rqkCBR]Efêmero concreto [bit.ly/sgrGgv]Belo Monte – anúncio de uma Guerra [on.fb.me/z5KuYF]

basta informar o objetivo, a justificativa, o orça-mento, o prazo de captação e as recompensas aos patrocinadores. Quando aprovado, o projeto é pu-blicado e os interessados podem, então, colaborar com qualquer valor, de acordo com as políticas determinadas pelo site em questão. Cada quantia investida se enquadra em uma cota que propor-ciona contrapartidas ao patrocinador. Se o projeto anunciado for um disco, por exemplo, quem aju-dou pode receber uma cópia gratuita em primei-ra mão e, dependendo do valor doado, pode até ganhar um show exclusivo da banda. As recom-pensas são sempre determinadas pelo idealizador e costumam ser decisivas para o sucesso da cam-panha de arrecadação, pois funcionam como uma motivação a mais para que as pessoas se envol-vam e optem pelas cotas maiores. “Para inscrever um projeto no Catarse também é obrigatório fazer um vídeo sobre a proposta e nós sempre reforça-mos a importância de produzir um material que transmita as informações com transparência e cla-reza, pois ele acaba sendo a principal ferramenta de divulgação”, diz Reeberg.

O site Catarse, especificamente, utiliza um sis-tema denominado “ou tudo ou nada”, que sig-nifica que, se a meta de arrecadação não for atingida dentro do prazo estipulado, o projeto será cancelado e todo o investimento integral-mente devolvido aos patrocinadores, seja em espécie, seja na forma de crédito para aplica-ção em outras propostas. Em caso de sucesso, a plataforma on-line retém uma comissão de 7,5% e repassa o restante dos recursos captados ao

proponente, que se responsabiliza pela realiza-ção e pela entrega das recompensas.

Brasil no oscarA vontade de resgatar e registrar a história do revo-lucionário grupo de atores bailarinos Dzi Croquettes levou os produtores e diretores de cinema Tatiana Issa e Raphael Alvarez a realizar, com recursos pró-prios, o projeto Dzi Croquettes (2009). O documen-tário, hoje o mais premiado da história do gênero no Brasil, não teria chegado às telas se não fosse uma parceria firmada com o Canal Brasil. Superadas as dificuldades, o filme foi exibido na Europa, nos Esta-dos Unidos, na Turquia e na Tailândia, entre outros lugares, e causou comoção por onde passou, a pon-to de os fãs insistirem que a obra deveria ser inscrita na categoria Melhor Documentário do Oscar 2012.

Passado o susto inicial, os diretores resolveram le-var a ideia adiante. Para isso, seria preciso veicular comercialmente o filme nas cidades de Los Ange-les e Nova York, por uma semana em cada uma de-las, como determinam as regras da premiação – o que custaria 23 mil dólares. Com os recursos para lá de esgotados, Tatiana e Alvarez passaram a pro-curar alternativas e, por intermédio de uma amiga, conheceram a dinâmica do crowdfunding e o site Kickstarter. “Acabamos sendo pioneiros em vários sentidos, pois escolhemos uma plataforma de arre-cadação ainda inédita no Brasil, captamos recursos para um filme já existente e fomos, até então, o úni-co projeto para qualificação de um documentário para o Oscar. No início as pessoas achavam estra-nho, pois parecia que nós estávamos apenas pedin-

do dinheiro. Mas os fãs do filme foram fundamen-tais para o sucesso da campanha, pois divulgavam nas redes sociais apenas com o intuito de ajudar. Acredito que isso aconteceu porque, desde o come-ço, fizemos tudo na raça, como também acontecia com os Dzi Croquettes”, conta Tatiana. Ao final do prazo de arrecadação, 211 pessoas ajudaram a tor-nar o sonho possível e foram doados 23.993 dólares.

Um dos aspectos mais interessantes é que, com a plataforma, o público assume uma nova função, quase oposta ao que sempre lhe coube, e passa de mero espectador, de consumidor passivo de um produto predeterminado e filtrado pela in-dústria cultural, pelas empresas e pelo Estado, a agente ativo do processo produtivo, defensor de uma ideia, muitas vezes ainda embrionária. Estar no início de tudo, aliás, é uma das peculiaridades positivas e motivadoras do financiamento coleti-vo. “Na nossa sociedade, temos um envolvimen-to muito pequeno com aquilo que consumimos, seja arte, seja cultura ou um produto qualquer que compramos no supermercado e não temos ideia de como foi produzido. O crowdfunding muda esse processo e proporciona uma recone-xão, mesmo que pontual, das pessoas com as coi-sas que as cercam. Há efetivamente a criação de um diálogo com o público. Finalmente saímos da era do monólogo”, acredita Joppert, colaborador do documentário sobre Belo Monte.

IMPULSIONADOS p e l am u l t i d ã o

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No escuro, a apresentação começa. O som é forte, percussão sintetizada, textura musical digitaliza-da. Nosso ouvido se abre. As luzes que vêm em se-quência são linhas finas e coloridas, imagens abs-tratas em movimento, fotos, frases, um mapa da América Latina em tamanho descomunal. Aberto, ele não caberia na sala da sua casa nem em três ou quatro salas da sua casa. Tudo piscando e se mo-vendo em compasso com a música. Nossa mente trabalha reconhecendo aquelas figuras enquanto a boca entreaberta mostra quanto cada pessoa se surpreende com o que vê e ouve. E o mais inte-ressante de tudo é que, sem ninguém nos tocar, nossa pele se arrepia inteira, feito pele de galinha.

Insuspeitável é o que desencadeia toda essa re-ação física: uma apresentação de videomapping (ou videomapeamento), técnica de projeção au-diovisual em grandes estruturas, como edifícios e monumentos, em que as imagens, interagindo com a arquitetura onde são exibidas, ganham vo-lume e contam uma história ao público. No últi-mo dia 17 de dezembro, a fachada que serviu de suporte à projeção foi a alva estrutura externa do Memorial da América Latina, em São Paulo, como parte do Passport VJ University (passportvjuni-versity.com.br), série de seis dias de workshop sobre videomapping. Com organização e cura-doria dos VJs Spetto e Pedro Zaz, ambos do co-letivo internacional United VJs (unitedvjs.org), o Passport reuniu centenas de pessoas durante uma noite quente diante do conjunto projeta-do por Oscar Niemeyer, inaugurado em 1989. Naquela festa, o Memorial serviu de palco para tecnologias avançadas de videoprojeção, usadas com a finalidade de integrar a arte e as pessoas à arquitetura e ao espaço público – uma das princi-pais razões de ser do videomapping.

O pulO dO gatOEmbora as primeiras experiências com videoma-peamento tenham sido feitas no mundo há pouco mais de cinco anos, o conceito que embasa essa arte precede sua execução em mais de um século. “Os futuristas, no início do século XX, já diziam que a fachada devia ser midiática, que o edifício tinha de se comunicar com o entorno”, afirma Spetto.

A luz é a matéria-prima do videomapping. Trans-formada por técnicas de ilusão de óptica e ana-morfose (deformação reversível da imagem), por exemplo, ela ajuda a romper padrões visuais aos quais o olho humano está acostumado há séculos, afirma Omar Calzada, do Telenoika (telenoika.net), um dos mais expressivos grupos de criação audiovisual da Espanha. E é justamente essa rup-tura que surpreende os sentidos de quem vê uma apresentação de videomapeamento.

O “pulo do gato” do videomapping, que inten-sificou sua comunicação com o entorno, foi a projeção volumétrica em contraposição à bidi-mensional. Isso foi possível quando os artistas descobriram – de forma casual e intuitiva – que era viável não só projetar imagens em várias te-las e em espaços bem maiores do que elas, mas que também era possível “dobrar” essas imagens, fazendo, assim, com que todos os detalhes das fachadas – curvas, janelas, portas, torres e o que mais existir – pudessem ser usados como supor-tes em três dimensões para as projeções. Não se trata de projetar uma imagem bidimensional em uma parede plana, mas, sim, de desenhá-la com luz em toda a estrutura cúbica de uma edificação. A comunicação com o entorno passou a ser, en-tão, mais complexa (e completa) e o impacto cau-sado nos espectadores tornou-se mais vivo.

“Sem dúvida, a projeção mapeada tem levado essa arte para um patamar nunca antes imagi-nado. A evolução técnica é muito grande, tanto por parte dos equipamentos quanto dos softwa-res de criação. Hoje, o que define o limite de cada projeto é seu budget e seu tempo de cria-ção. Simplesmente não há mais limites técnicos ou de concepção. Conseguimos fazer de tudo, até o Cristo Redentor fechar os braços”, afirma Dudão Melo, diretor do departamento de comu-nicação e projetos da produtora Visualfarm, res-ponsável pelo projeto artístico Vídeo Guerrilha (videoguerrilha.com.br), que em novembro de 2011 “ocupou” fachadas de edifícios e casas na Rua Augusta, em São Paulo.

Nessa edição, a segunda realizada, mais de uma centena de criadores fez projeções mo-numentais utilizando técnicas de videoma-peamento. “As pessoas não olham mais a paisagem urbana, estão cegas e presas à sua rotina, em que olhar para cima ou para o lado significa perder tempo. Hoje, o êxodo urbano central é uma realidade na maioria das gran-des cidades do Brasil e do mundo. A Rua Au-gusta tem sido um bom exemplo da impor-tância do entretenimento para a recuperação daquela região”, diz Melo.

O atual momento da videoprojeção ratifica, se-gundo Spetto, um postulado do arquiteto italia-no Bruno Zevi em seu livro Saber Ver a Arqui-tetura (WMF, 2009): a arquitetura é algo que se vivencia. “Por mais que você tenha uma plan-ta, uma foto, um vídeo, um memorial descriti-vo, nada disso suplanta a experiência de viver a arquitetura, que é você passar por um portal e sentir uma brisa no rosto, ver a luz do sol se

TEXTO sabrina duran FOTO garapa

Apresentações de videomapping transformam a relação entre homem, arte e cidade

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VJ SPETTO “O videOmApping vem nA esTeiRA de TOdAs As mAnifesTAções uRbAnAs de ARTe. É umA ânsiA dA culTuRA e dA ARTe ATuAl de TRAnsfORmAR A cidAde em que se vive numA cOisA mAis humAnA, Acessível e lúdicA.”

revelar por trás daquilo, ou chegar na frente de uma fachada, olhar as portas e janelas e dizer: ‘nossa, parece a cara de um cachorro, de um homem’”, exemplifica o VJ. Spetto diz que usa os detalhes dos edifícios onde projeta como ele-mentos da dramaticidade. Essa ação artística não se resume, para ele, em um espetáculo de luzes, já que possui uma narrativa passível de ser apreendida e sentida pelo espectador, que dá sua própria interpretação ao que vê.

NOvO, NOvíssimO; aNtigO, aNtiquíssimOO processo de criação do videomapping envol-ve, sem dúvida, uma refinada tecnologia de sof-twares para modelar, editar e mixar as imagens, e de hardwares robustos, capazes de rodar esses programas – em geral, PCs com sistema Macin-tosh, máquinas híbridas montadas pelos pró-prios videomapers. Há também os projetores, suas lentes e a técnica necessária para operá--los. Tudo isso é “novo, novíssimo”, como gosta de dizer Spetto. Mas também há a porção anti-ga, antiquíssima do videomapping. Para dobrar a imagem na fachada tridimensional de um edi-fício usando softwares modernos em hardwares tunados, é preciso ter intimidade com a trigono-metria. Sem um estudo matemático da fachada que servirá de suporte à projeção as contas não fecham e o videomapping simplesmente não pode existir. A arte, com sua virtude integrado-ra, consegue unir extremos de forma orgânica.

Spetto estima que, em todo o mundo, haja cerca de 20 grupos que trabalham seriamen-te com essa nova arte. No Brasil, o videomap-ping segue evoluindo, mas encontra barreiras técnicas por falta de formação profissional e

de equipamentos, que, de acordo com o VJ, são itens caros e difíceis de ser importados. “Mas com o pouco equipamento que há já dá pra fazer bastante coisa”, diz.

O videomapping sustenta a reocupação do espaço público pelas pessoas, desde a facha-da dos edifícios até o ambiente onde os es-pectadores se reúnem para ver as projeções. Naquela noite de sábado no Memorial da América Latina, as centenas de espectadores sentados no chão da parte exterior do edi-fício – algumas até deitadas –, conversando, bebendo e dançando, eram a imagem mais próxima de um ideal de cidade participa-tiva e humana, que se preocupa menos em proibir as coisas e mais em criar condições para que as pessoas desfrutem dela. “O vi-deomapping vem na esteira de todas as ma-nifestações urbanas de arte. É uma ânsia da cultura e da arte atual de transformar a cida-de em que se vive numa coisa mais humana, acessível e lúdica. Todos querem transcen-der”, diz Spetto.

No caso do Vídeo Guerrilha a história por trás da fachada também foi protagonista nas projeções. “Fizemos dezenas de visitas técnicas à Rua Augusta até chegarmos a um formato final para cada edifício. Mas o mais interessante é você pensar que, em cada pré-dio com seus moradores, existe uma histó-ria que pode ser contada. E essa é uma das missões do evento: encontrar a poesia visu-al que está perdida e projetá-la, deixando as cidades e os moradores mais bonitos e orgu-lhosos”, explica Melo.

público assiste à apresentação de videomapping no Passport VJ University, em são paulo

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TEXTO rogério borges FOTOS ricardo rafael

Vila boa da humanidadeEx-capital goiana conserva suas tradições, mas se abre para o mundo através da cultura

Casa das Raízes, Mercado Municipal de Goiás. Ali, um homem com autoridade adquirida e inconteste recebe seus clientes, alguns há dé-cadas. “Mexo com ervas naturais há 32 anos. Aprendi com meu pai, que aprendeu com meu avô, que era escravo”, diz Helios Gomes do Car-mo. Ele anda com dificuldade depois que que-brou o joelho, mas é conhecido por curar os ma-les alheios. “Aqui tem remédio para os rins, para o diabetes, para o estômago”, afirma, mostrando uma prateleira abarrotada de rabo de tatu, casca de ipê-roxo, cipó do índio. “Fui o único da famí-lia a continuar no ramo. Faço tudo sozinho. Vou ao campo colher as ervas, coloco para secar, preparo as receitas. E ensino todo mundo que me pergunta porque não quero que esse conhe-cimento morra comigo.”

A Cidade de Goiás é assim, cheia de persona-gens que a fizeram manter tradições, crenças, costumes e possibilitaram que essa joia colonial encravada no sertão goiano sobrevivesse a tudo e a todos e, dez anos atrás, recebesse da Unesco o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Quando Helios nasceu, há 65 anos, um trauma persistia: capital do estado até 1937, caiu no os-tracismo quando perdeu o posto para Goiânia.

Fundada pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, a cidade, que nasceu Arraial de Sant’Ana em 1727, é emoldurada pela beleza da Serra Dou-rada e cortada pelo Rio Vermelho − de cujo leito saíram incontáveis quilos de ouro. O lugar, que também se chamou Vila Boa, foi capital da Pro-víncia de Goyaz em tempos antigos, cujas marcas se mantiveram no centro histórico − com ruas de pedra, casario de telhados irregulares, prédios e logradouros públicos que guardam tesouros do passado. Antes do título de Patrimônio da Huma-nidade, foi tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, em 1978. Nos anos 1980 a cidade ga-nhou mais visibilidade fora do estado. A cultura local, sobretudo a literatura e as artes plásticas, funcionou como o maior cartão de visitas.

O artesanato de Goiás permanece famoso graças às mãos de gente como Alice Noronha, a “Ali-cinha”, de 65 anos, fada dos potes e panelas de barro. “Essa é a minha profissão desde 1970. Criei meus filhos assim.” Ela integra a Associação dos Artesãos de Goiás, fundada em 1977. “Nosso tra-balho é todo manual. A gente preserva as raízes do ofício. Hoje, fabrico cerca de 50 modelos de peças.” Ela é mais um exemplo de como a terra move esse povo. “Hoje é muito mais fácil. Antes a gente tinha de caminhar vários quilômetros e trazer o barro na cabeça. E, o que era pior, não tinha venda depois de tudo pronto. Agora não. A gente fica até apertada com tanta encomenda.”

Essa força popular que Goiás soube valorizar, com raízes portuguesas, negras e indígenas, se mostrou fundamental para que a cidade se tor-nasse patrimônio mundial. Obras de infraestru-tura foram realizadas, como a instalação de fia-ção subterrânea e a revitalização da iluminação pública, além da restauração de prédios, igrejas e praças. Ao todo, a área tombada compreende cer-ca de 800 imóveis e monumentos, bem preserva-dos em razão da constante atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e de parcerias governamentais.

Turismo e ecologiaA 140 quilômetros de Goiânia e a 330 de Brasília, Goiás ainda tem desafios pela frente. Nos últimos dez anos, a frequência de turistas em seus princi-pais museus mais que dobrou. Até 2001, o Museu da Boa Morte, um dos mais importantes, recebia perto de 8 mil visitantes por ano. Hoje chegam a 18 mil. Pelo Museu Casa de Cora Coralina − antiga residência da poeta e o local mais visitado da ci-dade − em 2011 passaram cerca de 25 mil turistas ante os pouco mais de 10 mil de uma década atrás. Nesse período, também aumentou o número de leitos na cidade de 800 para cerca de 1.500.Eventos importantes começaram a ser realizados e a antiga capital recebe hoje gente de todo o Brasil e do exterior. Um dos picos dessa visitação

ocorre durante a Semana Santa em razão da se-cular Procissão do Fogaréu − encenação da per-seguição a Cristo que ocorre nas ruas de pedra do município. À meia-noite da Quarta-Feira Santa as luzes da antiga capital são todas apagadas e 40 mascarados, chamados de farricocos, iluminam a cidade com tochas e percorrem as principais igre-jas, representando os soldados destacados para capturar Jesus. A cerimônia termina no adro da Igreja de São Francisco, quando o Messias é en-contrado. Goiás também costuma atrair turistas por seu carnaval, em que predominam as marchi-nhas, e pelo festival gastronômico, que ocorre no início de dezembro.

Após a grande enchente de 2001, poucos dias depois da conquista do título internacional, Goi-ás, que sedia o Festival Internacional de Vídeo e Cinema Ambiental (Fica) desde 1999, perce-beu que o meio ambiente, sobretudo no entorno da cidade, necessita de mais cuidados − o que ainda não acontece como deveria. Mas isso não chega a tirar o charme de um lugar que parece ter parado no tempo, preserva seu bucolismo, mantém uma cozinha caseira genuína e sabe dar valor à sua história.

Pessoas como o raizeiro Helios e a artesã Alici-nha representam uma faceta importante da cida-de, aquela que dá vida à antiga Vila Boa e a faz ser do jeito que é. Eles e tantos outros anônimos: os que falam dos vários governadores que habi-taram o Palácio Conde dos Arcos, os que pas-seiam de chapéu de aba larga em frente às facha-das históricas, os que cuidam dos intermináveis quintais e seus pomares, os que dão aula no cen-tenário Colégio Sant’Ana. No Largo do Chafariz, na Praça do Coreto, na Casa da Ponte, em seus becos estreitos e tortos, nos adros das igrejas, Goiás convida todos para mergulhar num passa-do belo, poético, rico em sua simplicidade.

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saiba maisPara conhEcEr mElhor a cidadE dE Goiás

> a capitania de Goyaz foi desmembrada da de são Paulo em 1748, mas o primeiro governador, marcos de noronha, só chegou a Vila Boa de Goyaz cinco anos depois do decreto.> o museu das Bandeiras funciona no prédio que abrigava a cadeia pública. Em seu interior estão os instrumentos de tortura empregados contra presos e escravos.> Fora do centro histórico há o mosteiro da anunciação do senhor, mantido por irmãos beneditinos. local indicado para meditação.> o largo do chafariz é um dos pontos mais agradáveis da cidade, com amplo gramado, muita sombra e uma sinfonia de passarinhos a qualquer hora do dia.> Em Goiás faz muito calor e o clima é abafado. Para se refrescar, uma boa pedida é o picolé de frutas do cerrado vendido na Praça do coreto.> Quase 200 degraus levam à igreja de santa Bárbara. Vale o esforço. a vista de lá é linda.> Preste atenção em como vai chamar esse patrimônio da humanidade. os moradores preferem cidade de Goiás e até aceitam antiga Vila Boa, mas detestam o nome Goiás Velho.

becos que exalam arTea PoEta cora coralina, EscritorEs E PintorEs tornaram Goiás rEFErência Para as artEs

Goiás sempre inspirou poetas, mas ninguém retratou a antiga Vila Boa como anna lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, ou cora coralina. a casa em que ela nasceu em 20 de agosto de 1889 ainda guarda suas lembranças. Às mar-gens do rio Vermelho, a residência, com seu imenso quintal e uma bica no porão, viu a escritora crescer, sair de sua terra natal e retornar em 1956 para viver lá até morrer, em 1985. “naquele ano, um grupo de amigos se reuniu para fazer do imóvel um local em homenagem à escritora”, conta marlene Velasco, diretora do hoje museu casa de cora coralina.

durante muitos anos, cora coralina viveu ali, fazendo doces para sobreviver e escrevendo versos para en-cantar. seus cadernos com folhas pautadas fazem par-te do acervo da instituição. “Eu datilografei originais e sempre brinquei aqui, desde menina”, revela marlene. “as lembranças que tenho desta casa são muito afeti-vas.” Uma ligação que a faz ser uma guerreira em prol do legado da autora. Ela liderou a compra da casa, sua reforma, sua reconstrução após a enchente de 2001. marlene lutou para incluir o nome de cora coralina no museu da língua Portuguesa, em são Paulo. “nós so-mos o museu mais visitado da cidade. E Goiás e cora são indissociáveis.”

na arte, Goiás produziu outros nomes de destaque. no largo do chafariz está a casa onde nasceu hugo de carvalho ramos, autor de Tropas e Boiadas, clássico do regionalismo brasileiro lançado em 1917, que influenciou até Guimarães rosa. no largo do rosário fica a residên-cia que foi de José Joaquim da Veiga Valle, escultor do século XiX que deixou enorme acervo sacro em igrejas da cidade, boa parte dele reunido hoje no museu da Boa morte. no ano passado, Goiás perdeu outra grande ar-tista. aos 95 anos, morreu Goiandira do couto, pintora que fez das areias coloridas da serra dourada seu ins-trumento de expressão e homenagem às paisagens e à história da antiga Vila Boa.

o casario antigo faz de Goiás uma das principais representantes da arquitetura sete-centista no mundo. alice noronha mostra a cerâmica artesanal que deu fama à cida-de, e o raizeiro helios, guardião das tradições locais

A cidAde de Goiás é cheiA de personAGens que A fizerAm mAnter trAdições, crençAs, costumes e possibilitArAm que essA joiA coloniAl encrAvAdA no sertão GoiAno recebesse dA unesco o título de pAtrimônio culturAl dA humAnidAde.

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“Tocar é como cozinhar. Tem de tomar cuidado com o fogo, porque ele pode queimar a comi-da. É preciso cozinhar bem as notas. Cada ins-trumento é um ingrediente e, misturando-os, criam-se os sabores. O maestro está lá para ver o ponto dessa mistura. O público está com fome e quer se servir.” A receita é de Nailor de Azevedo, o Proveta, maestro e professor da Orquestra Bra-sileira do Auditório (OBA), sediada no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Ricardo Bologna, instrumentista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), com-para a profissão de maestro com a de um atleta. “Precisamos manter a forma. Temos de estudar constantemente os instrumentos e a partitura.” Ele complementa que o regente é também um chefe, um empresário. Quando criança, ouvia seu pai, hoje maestro aposentado, falar sobre os problemas da orquestra que regia. Entendeu que não há nenhum glamour nessa profissão e agora concorda com as queixas. “Há muitos problemas, como em qualquer grupo de pessoas. O regente é o catalisador, um líder. Precisa resolver ques-tões administrativas, desentendimentos entre os músicos ou com os superiores...”

Seu colega de Osesp e de regência Wagner Polistchuk concorda com ele: “Os instrumentis-tas não têm ideia dos problemas que o regente precisa resolver”. Ele acredita que essa carreira ajuda a de instrumentista e vice-versa. “Seria ideal se todos tivessem ambas as formações.” O maestro deve conhecer muito bem a estrutu-ra, a história e o contexto da música e também os instrumentos e seu funcionamento. É neces-sário, ainda, dominar algumas técnicas do mo-vimento com as mãos. Maestro Branco, nome artístico de José Roberto Branco, professor e regente da OBA, reforça que alguns músicos populares não entendem os movimentos da ba-tuta. “Tem gente que nem olha para você”, diz.

Componente subjetivoApesar das padronizações, a atividade da regên-cia de orquestras possui um componente subje-tivo muito marcante. O modo de reger varia de um profissional para outro. Mãos que gesticulam, corpos em movimentos suaves ou bruscos e até a boca podem ajudar a traduzir as orientações. “Às vezes algo não dá certo e o maestro reage fa-zendo uma careta. Os instrumentistas percebem e interpretam o que ele quer transmitir”, conta

Polistchuk. Bologna concorda que as expressões faciais são muito importantes e podem guiar o músico, para o bem ou para o mal. No caso de Proveta, foi para o bem. Certa vez, ele foi tocar saxofone com um maestro japonês; estava inse-guro com a sua entrada e acabou se perdendo. “Olhei para ele, que me deu um sorriso. O som saiu. O cara me salvou. Foi o primeiro maestro que me chamou atenção, por esse gesto. A maio-ria dá bronca, mas o público não vê.”

Para ser um bom maestro, na opinião de Prove-ta, é preciso ser um bom observador. “O regente deve saber tudo o que vai acontecer. Mas tam-bém precisa saber como ‘tirar’ o som do músico. É o maestro que deve tocar com a orquestra e não o contrário. No fundo, ele gostaria de estar na posição dos instrumentistas.”

talentos preCoCesPolistchuk, natural de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, ingressou numa escola de mú-sica aos 13 anos. Aos 17 já ganhava seu dinheiro com shows e gravações. Entrou numa banda em que o instrumento disponível era o trombone e com ele segue até hoje, na Osesp, onde está há

Maestros contam como a música entrou em suas vidas e os caminhos que os levaram à regência de orquestras TEXTO paula fazzio FOTOS andré seiti

DA VIDAPolistchuk e Bologna: mesma orquestra, a Sinfônica do Estado de São Paulo, mas estilos personalizados de regência

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Integrantes da Orquestra Brasileira do Auditório em ensaio para o espetáculo que marcou o fim das atividades de 2011

30 anos. Os últimos 13 foram dedicados também à regência na Orquestra Sinfônica da Universida-de Estadual de Londrina, na Camerata Antiqua de Curitiba e na Orquestra Sinfônica de Santo André. Para ele, é possível aprender algumas técnicas de regência apenas pela observação. “A música já estava na minha vida, nunca tive de pensar no que iria fazer. Ela foi me levando e, quando fui ver, já estava na Osesp”, relembra.

Bologna começou a tocar violino aos 8 anos, na Escola Municipal de Música, em São Paulo, e de-pois mudou para o piano, mas aos 13 se apaixo-nou pela percussão. Estudou música na Unesp e fez mestrado no exterior. Até então, não pensava em se tornar maestro, não se interessava por isso. De 1993 a 1999, período em que morou na Suíça, aproveitou para estudar regência e, de volta ao Brasil, prestou concurso para a Osesp.

Maestro Branco, natural de Pederneiras, São Paulo, estudou marcenaria na infância, numa escola in-dustrial de Jaú, interior paulista, e começou a tra-balhar nesse ofício. A música entrou em sua vida quando seu pai, um ferroviário que tocava violão de forma amadora, lhe deu um cavaquinho e lhe

ensinou alguns acordes. Mas não o incentivou a seguir carreira musical e abandonar o trabalho, que ajudava no orçamento da casa. Aos 14 anos, viu uma orquestra ensaiando. “Essa cena mudou minha vida. Procurei um professor e comecei a es-tudar e tocar na orquestra da minha cidade.”

Para ele, “não dá para desviar a atenção de uma banda. O som preenche tudo. Quando se tem a intenção de fazer música, é como um vício, não tem como escapar”. Ao constatar isso, ele juntou dinheiro e comprou um trompete. Convidado para tocar em orquestra, decidiu que seguiria o caminho da música e mudou-se para São Paulo, depois de passar pelas cidades paulistas de Bau-ru, Araçatuba e São José do Rio Preto. Trabalhou como arranjador na extinta TV Tupi, na TV Re-cord e na Rede Globo. Não fez curso universitário; estudou na Europa e nos Estados Unidos, onde trabalhou num cassino. Até hoje, Branco vai dor-mir pensando em notas musicais e lê partituras no metrô. “Eu ainda estudo regência, aos 68 anos”, conta ele. Para o músico, seguir uma carreira na área requer muita coragem. “A não ser que se te-nha alto poder aquisitivo, é muito difícil. Você não sabe o que virá pela frente. Não é fácil chegar lá.”

“O regente deve saber tudO O que vai acOntecer. Mas taMbéM precisa saber cOMO ‘tirar’ O sOM dO MúsicO. é O MaestrO que deve tOcar cOM a Orquestra e nãO O cOntráriO. nO fundO, ele gOstaria de estar na pOsiçãO dOs instruMentistas.”Proveta

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A ligação de Proveta com a música vem de fa-mília. O avô e o pai tocavam acordeão. Ainda em Leme (SP), sua cidade natal, ele começou a estudar música, aos 7 anos. Três de suas qua-tro irmãs também tocavam algum tipo de ins-trumento, todos eram incentivados pelo pai, pedreiro, que os colocou numa escola de músi-ca e lhes mostrou o samba, o maxixe e a músi-ca clássica. “Em 1960, ouvia a Rádio Nacional. Na televisão, programas como o Festival da Record educavam as pessoas, havia mais in-formação musical. É essa história que a gente precisa de volta”, explica.

Aos 15 anos, foi convidado a tocar numa orques-tra em São Paulo, em que a média de idade dos componentes era 40. Daí surgiu seu apelido, jus-tamente na época do nascimento do primeiro bebê de proveta. Toca saxofone alto, tenor, clari-nete e saxofone soprano. Sobre seu lado maestro, diz que aprendeu observando. “Aos 9 anos eu su-bia na cadeira de um coreto em Leme, levantava os braços e regia, era tão natural”, lembra.

apostas no futuroProveta e Maestro Branco são professores de Beatriz Pacheco, de 18 anos, na OBA. A jovem aprendeu flauta doce e saxofone num projeto musical na escola em que estudava, na cidade de São Paulo. Teve problemas na família, mau rendimento na escola, mas diz que a música a reergueu. “Ocupei minha cabeça”, conta. “Tocan-do, consigo fazer as pessoas se sentir bem, tratar delas, mesmo que não estejam doentes”, explica. Para ela, o regente é importante para mostrar que um músico sempre precisa de outro.

Colega de Beatriz na orquestra, Vanessa Kivian, também de 18 anos, aprendeu flauta doce e can-to coral na escola, na capital paulista. Sentiu que tinha apoio da família para seguir carreira mu-sical quando sua flauta transversal, no valor de 3 mil reais – comprada com a bolsa mensal de 300 reais –, foi roubada. Naquela ocasião, os pais reconheceram que aquilo era importante e a in-centivaram a seguir seu sonho. “Eles acreditam cada vez mais em mim”, conta.

Maestro Branco, da OBA: “Aos 14 anos, vi uma orquestra ensaiando. Essa cena mudou minha vida”

“seguir uMa carreira Musical requer Muita cOrageM. a nãO ser que se tenha altO pOder aquisitivO, é MuitO difícil chegar lá.”Maestro Branco

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RoteiRo tRAz dicAs de livRos, documentáRios, show e sites pARA deixAR mAis cultuRAl o início do Ano

LIVROYes Is More, de Bjarke Ingels Group (BIG) (Taschen, 2009)para o escritor e arquiteto dinamarquês Bjarke ingels as cidades devem se adaptar aos homens e não o contrário. ele acredita em uma arquitetura que ajude o ser humano a evoluir. Yes Is More é uma monografia em quadrinhos – ou um arqui-comic, como define o autor – que pretende ser um manifesto da nova arquitetura praticada na europa. o livro apresenta um retrospecto da história da arquitetura, além de métodos, meios e processos criativos calcados na cultura de massas, mas que podem gerar resultados inesperados e positivos.

SHOWViva Elis, com Maria Rita (Auditório Ibirapuera, São Paulo, 17 de março)trinta anos após sua morte, elis Regina continua sendo considerada a maior cantora brasileira de todos os tempos. para marcar a passagem de três décadas de sua ausência, a família da canto-ra organiza o projeto Redescobrir elis, com shows, mostra itinerante, site, livro e documentário. A exposição terá como destaque materiais de arquivo de centenas de fãs, recolhidos em todo o país. mas o ponto alto da homenagem – que começa justamente no aniversário de elis, dia 17 de março − é a turnê que maria Rita (foto) fará em várias capitais brasileiras. A série, batizada de Viva Elis, começa em são paulo, no Auditório ibirapuera, com show gratuito, aberto ao público do parque ibirapuera, onde a casa se situa. A cantora deve se apresentar ainda em Belo horizonte, em porto Alegre, no Recife e no Rio de Janeiro. o repertório foi montado exclusivamente com os clássicos de elis. É a primeira vez que maria Rita, que despontou no cenário musical brasileiro há oito anos, in-terpreta várias músicas imortalizadas por sua mãe. Mais informações <auditorioibirapuera.com.br>.

DOCUMENTÁRIOSRaul Seixas: O Início, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho (Brasil, 2012, 120 min)A trajetória de Raul seixas, considerado o “rei do rock nacional”, é recontada por walter carvalho, cineasta e um dos mais cultuados diretores brasileiros de fotografia cinematográfica. o documentário traz entrevistas com familiares do artista, como o irmão plínio, e parceiros, entre eles o escritor paulo coelho, com quem compôs várias canções. As filmagens ocorreram na Bahia, no Rio de Janeiro, em são paulo, nos estados unidos e na suíça. Raul é o artista póstumo que mais vende discos no país: cerca de 300 mil cópias ao ano. vinte e dois anos após sua morte, a memória do roqueiro é preservada por uma legião de fãs. Autor de clássicos como “metamorfose Ambulante”, “eu nasci há 10 mil Anos Atrás” e “tente outra vez”, Raul mostrou seu vanguardismo não só nas letras, mas também pela mistura de ritmos aparentemente inconciliáveis, como o rock e o baião.

As Praias de Agnès, de Agnès Varda (França, 2008, 100 min)chega aos cinemas brasileiros a autobiografia documental da cine-asta belga Agnès varda, radicada na França, que se tornou interna-cionalmente conhecida por sua militância feminista e pela direção de clássicos como Cléo de 5 a 7, de 1962. imagens de praias, entrevistas, fotografias, reportagens e trechos de suas obras conduzem a uma vi-sita ao universo de Agnès, desde a infância em Bruxelas, passando por seu período como fotógrafa e pelo casamento com o cineasta francês Jacques demy, até a criação de seus filmes.

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o ilustrador e artista plástico paulistano João pinheiro (foto) transformou a vida de Jack Kerouac − um dos ícones do mo-vimento cultural conhecido como geração beat − na graphic novel Kerouac, lançada em 2011 pela editora devir livraria. os acontecimentos da vida do autor de On the Road [na estrada], (lançado em 1957 e considerado uma obra-prima da literatura mundial) são relatados por meio de uma narrativa veloz em formato de história em quadrinhos. nesta entrevista, pinheiro conta como surgiu a ideia de criar o trabalho.

Por que Kerouac?João Pinheiro: Li seus livros quando era adolescente e eles mexeram muito comigo, mudaram minha vida. Passei a me interessar mais pela lite-ratura e pelas outras artes. O que fiz agora foi uma espécie de retorno. Não é exatamente uma biografia, é a minha visão do Kerouac, embora tudo tenha, de fato, acontecido.

Como foi o levantamento biográfico para compor o texto?JP: Li todos os livros do autor que foram lançados no Brasil, as biografias e um livro de ensaios, do poeta Claudio Willer [Geração Beat, L&PM Pocket, 2009]. Para criar a obra, reli essas publicações com um olhar mais seletivo para tentar entender melhor e fazer uma história que não conflitasse com o registro his-tórico. Tentei pegar os fatos reais da vida do autor e também os textos que ele mesmo escreveu e são biográficos. O capítulo “Visões da Estrada” é um trecho de On the Road que trata de uma viagem que ele fez para São Francisco (Esta-

musarara.com.brA revista eletrônica Musa Rara aproveita a internet como um meio de comunicação rápido e eficiente para mostrar, divulgar e apontar cami-nhos artísticos na literatura e suas adjacências, sem depender exclusiva-mente do mercado. Existem as opções de ler ou enviar textos na área de tradução, resenha, prosa, poesia, lançamentos, infantojuvenil, entrevistas, ensaios, crônicas, crítica literária, blogs, artigos e textos acadêmicos. Há, ainda, a TV Musa, um canal de notícias, e a seção “O que Estou Lendo?”, para que os leitores compartilhem suas experiências literárias.

dos Unidos). Eu fragmentei a narrativa, criei em cima e fiz as ilustrações. Fiz um roteiro básico da vida dele, desde o nascimento, e fui decidindo o que era mais relevante para mostrar e que tivesse a fluência da linguagem dos quadrinhos.

Quanto tempo você demorou para fazer o livro?JP: Entre pesquisa, texto e ilustrações foram três anos. Usei as horas vagas, quando não estava fazendo nenhum trabalho.

Na sua opinião, quem é o público-alvo?JP: Não pensei nisso, mas a publicação pode ser vista como uma espécie de iniciação no autor e nos beats.

Saiba mais sobre o livro em <visoesdejackkerouac.blogspot.com>.

(por Paula Fazzio)

DESTAqUE

RetoRnoà estrada

bALAIO.COMopções culturais que você só encontra na internet

albumitaucultural.org.brNo site Álbum, como o nome sugere, está reunida boa parte da produção sobre música já realizada pelo Itaú Cultural. Desde os vídeos de shows e entrevistas de artistas que participaram das edições do programa Rumos Itaú Cultural Música até textos avulsos publicados em títulos como a Continuum . Além desta compilação eletrônica, o site apresenta conteúdos criados exclusivamente para a web − como as seções Pitéu, de receitas gastronômicas indicadas por músicos ou seus familiares, e Tô Assobiando, com playlists temáticas. A página é voltada para todo tipo de públi-co, não somente para quem pesquisa música.

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CURADORES VIAJANTES PARTIRAM RUMO AOSQUATRO CANTOS DO BRASIL PARA DESCOBRIRNOVOS TALENTOS DAS ARTES VISUAIS. Venha conhecer o resultado dessas viagens. 45 artistas, 130 obrasCoordenação-geral de curadoria de Agnaldo Farias

até 22 de abril 2012 terça a sexta das 9h às 20hsábados, domingos e feriados das 11h às 20hENTRADA FRANCA

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Erosões de Luz Acontecem Aqui entre 1817 e 2817 ao Meio-Dia e Dezde 21 de Novembro a 22 de Janeiro, em Belo Horizonte de Raquel Versieux