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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias O psicanalista francês Serge Tisseron vê a importância da imagem na atualidade. E mais: Um Brasil habitado por criaturas fantásticas, na visão dos primeiros exploradores. A versão genérica do Rei Roberto Carlos. A geografia imaginária da América Latina. ITAÚ CULTURAL 23 REVISTA O mundo se molda Nesta edição, Continuum fala sobre realidades inventadas

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A realidade é formada por camadas de sonhos, interpretações, vieses e visões individuais que juntas formam um todo. Pensando nisso, a Continuum aborda as realidades paralelas, ou como cada um inventa seu mundo. Na fotorreportagem, veja registros de Edu Marin Kessedjian, Fernanda Eva, Flávia Sammarone, Patricia Osses, da dupla Luciana Ohira e Sergio Bonilha e de Gabriela Greeb, que mostram interpretações artísticas para as manifestações sobrenaturais. As diferentes culturas que habitam o mundo, com seus objetos, adornos, estilos arquitetônicos e escolas artísticas, também podem ajudar a criar um mundo à parte. É o que revela a matéria sobre um castelo construído no agreste pernambucano. A literatura é por excelência o espaço da criação de mundos. Veja, em artigo do escritor e tradutor Cláudio Daniel na seção Mirada, as ideias que famosos escritores latino-americanos tiveram ao projetar cidades imaginárias para ambientar suas tramas.

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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias

O psicanalista francês Serge Tisseron vê a importância daimagem na atualidade.

E mais:Um Brasil habitado por criaturas fantásticas, na visão dos primeiros exploradores.

A versão genérica do Rei Roberto Carlos.

A geografia imaginária da América Latina.

ITAÚ CULTURAL 23REVISTA

O mundo se molda

Nesta edição, Continuum fala sobre realidades inventadas

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O que se vê não é de sapê“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.” O ditado é bem surrado e encardido, mas traz uma verdade que vivenciamos no nosso dia a dia. A realidade é formada por camadas de sonhos, interpretações, vieses e visões individuais que juntas e respirando ao mesmo tempo formam um todo não exatamente uníssono e indivisível. Pensando nisso, a Continuum aborda as realidades paralelas, ou como cada um inventa seu próprio mundo.

Com o título O mundo se molda, a edição começa com uma reportagem sobre a fotografia, que no senso comum tem a honrosa missão de reproduzir fielmente a vida, de congelá-la. Mas isso é impossível, pois cada imagem traz a visão do observador que a captura, levando-nos a crer que a realidade é múltipla.

A fotografia também está presente na entrevista com o psicanalista francês Serge Tisseron, que estuda ima-gens há mais de 30 anos. Para ele, essa linguagem é híbrida, pois além da visão do fotógrafo ela incorpora a interpretação do espectador. A fotorreportagem traz registros de artistas contemporâneos que mostram uma forma bem particular de entender manifestações que ultrapassam o limite do visível.

A representação histórica, seja em um quadro famoso como Independência ou Morte, de Pedro Américo, seja em desenhos de artistas viajantes dos séculos XVI e XVII, como André Thevet e Albert Eckhout, também é outro vasto campo de interpretação e de criação de

cenas, no mínimo, oníricas. É o que contam duas reportagens sobre o tema. As diferentes culturas que habitam o mundo, com seus objetos, adornos, estilos arquitetônicos e escolas artísticas, também

podem ajudar a criar um mundo à parte. É o que revela a matéria sobre um castelo construído no agreste pernambucano por um refinado leitor dessas referências.

Caetano Veloso criou um verso sugestivo em uma de suas canções: “Você tam-bém tem que saber se inventar”. Pensando nele e nas histórias que esta

edição traz, convidamos os leitores a também se inventar, na medida do possível, agora e sempre.

Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Thiago Rosenberg Revisão Polyana Lima, Samantha Arana Colaboraram nesta edição Allan Sieber, Beto Figueiroa, Cláudio Daniel, Cynthia Gyuru, Edu Marin, Fernanda Eva, Flávia Sammarone, Gabriela Greeb, Gustavo Bettini, Gustavo Pereira, Heloísa Mourão, Laila Garin, Luciana Ohira, Luciana Veras, Luciano Veronezi, Marcelo Ferranti, Mariana Sgarioni, Mario Ramiro, Micheliny Verunschk, Patricia Osses, Rafael Adaime, Rodrigo Silveira, Sergio Bonilha, Thiago Balbi, Tom Cardoso, Virgílio Neto, Welington Andrade, Wilson Inácio, Xico Sá Agradecimento Chico Daviña, Eder Chiodetto, Instituto Ricardo Brennand do Recife, Julio Cesar de Souza, Museu Paulista da Universidade de São Paulo

capa foto da série Inframargem, de Gustavo Bettini

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

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Reportagem

6. Um mundo por clique

Ver para crer: entenda por que, na fotografia, uma imagem se torna um convite para compreender – e questionar – universos reais e imaginários.

Reportagem

28. A invenção da naturezaO Brasil como morada de monstros peludos e com rosto de criança. Conheça esse e outros desenhos feitos por alguns dos primeiros exploradores europeus que chegaram ao território tupiniquim.

58. A história que ninguém pintouComo Pedro Américo, o pintor do famoso quadro In-dependência ou Morte, retratou essa cena (quase) como ela aconteceu.

Entrevista

16. A imagem entre a realidade e a ficçãoO psicanalista francês Serge Tisseron fala sobre a influência do visível em nossa percepção de mundo.

Perfil

62. Todas as coisas e euMais de 2 mil m², 18 torres, 25 cômodos... Veja quem é o responsável pela construção de um imponente castelo no meio do agreste pernambucano.

46. De Cachoeiro a BelenzinhoO Rei genérico em detalhes: a vida, repleta de tantas emoções, do cover mais notável do cantor Roberto Carlos.

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Artigo

12. Instruções ao leitor-cúmpliceQuando as páginas de um livro se tornam um passaporte para se transitar por mundos paralelos.

Crônica

50. Olhos à prova de lágrimas e decepçõesA mulher sem umbigo: a (re)invenção da beleza – e da feiura – pelo Photoshop.

On-line

22. Os espaços que coexistemNão perca as atualizações exclusivas que você só encontra na versão on-line da revista (itaucultural.org.br/continuum).

Balaio

26. Abra a janela e veja!Continuum faz uma seleção dos Flickr que melhor representam – e inventam – a realidade.

Fotorreportagem

32. O olhar etéreo Imagens exploram o encontro entre o mundo concreto e o “além”.

Ficção

40. O homem que não riQuantos mundos cabem num circo?

Mirada

54. Em busca das cidades imagináriasPraças, ruas, esquinas e casas que nunca existiram. Um passeio nas cidades inventadas pelos maiores escritores latino-americanos.

Espaço do Leitor

23. ConvocaçãoFique por dentro do tema da próxima edição e envie cartas ou e-mails com sugestões, críticas e, é claro, elogios.

24. Área LivreConfira a realidade inventada pelo leitor Wilson Inácio.

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Um mundo por cliqueA fotografia como reprodução, representação e invenção da realidade.

Por André Seiti

Em uma das principais cenas da ficção científica Blade Runner (Ridley Scott, 1982), a personagem Rachael mostra ao caçador de androides Deckard uma foto de sua infância. A imagem provaria a existência desse período de sua vida – não fosse um pequeno detalhe: Rachael nunca fora uma criança. Ela era um androide de última geração e toda sua memória havia sido artificialmente fa-bricada. A fotografia nada mais era do que uma ferramenta forjada para legitimar uma realidade que nunca existiu.

Ao longo de sua história e seguindo inúmeras vertentes, a fotografia serviu para validar – e também questionar – diversas realidades, sejam elas inventadas ou não. Exemplos não faltam. Para mostrar que, em alguns momentos do galope, o cavalo retira as quatro patas do chão, o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge registrou, em 1878, o instante exato em que o animal ficava suspenso no ar. Foi também no século XIX, algumas décadas antes do experimento de Muybridge, que o francês Hippolyte Bayard, numa espécie de fotomanifesto, publicou um autorretrato no qual simulava a própria morte – a nota que acompanhava a foto, inclusive, tinha o teor de um bilhete suicida.

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Esta série de fotos provou que o cavalo fica suspenso durante o galope | imagem: Eadweard Muybridge/Creative Commons

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Reproduzir e representar

Se Bayard inventou uma realidade, Muybridge, por sua vez, a reproduziu como ela é, certo? A resposta não é tão simples quanto parece. O crítico de arte britânico John Berger costuma dizer que a fotografia e a realidade são coisas diferentes. “Entre o momento recolhido na película e o momento presente do olhar que se leva à fotografia, sempre existe um abismo”, afirma. Esse abismo seria provocado pela distância de espaço e de tempo entre a imagem que se vê impressa e o objeto fotografado. Já segundo a filósofa norte-americana Susan Sontag, em seu ensaio Na Caverna de Platão,

“embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos”. Por mais fiel que pareça ser ao real, a imagem inevitavelmente sofre a interferência do fotógrafo.

É o que ocorre, por exemplo, no fotojornalismo. “Trabalha-se para fazer uma reprodução de um fato.

Porém, como autor, você coloca a sua experiência e o seu olhar, transformando a fotografia em

uma representação sua desse fato”, explica o fotojornalista Henrique Manreza, que

comanda a Agência 28mm. Se-guindo uma linha de

raciocínio semelhante, Georgia Quintas − antropó-loga e coordenadora dos bacharelados de fotografia e artes plásticas das Faculdades Integradas Barros Melo, de Olinda − afirma que a relação da fotografia clássica documental ou do fotojornalismo com o tema fotografado resulta tanto em representação quanto em reprodução. “Ela parte de um recorte temporal e espacial e segue a seleção do olhar de quem ‘escolhe’ a cena a ser apreendida. Portanto, ao reproduzir se representa e/ou vice-versa”, explica. “Esses dois aspectos [reprodução e representação] são fortes e presentes em nosso dia a dia”, complementa Manreza. “E, como fotojornalistas, não temos direito nem devemos alterar a realidade, criando algo que não existe.”

A invenção da fotografia

Se, para o fotojornalismo, inventar a realidade seria algo inaceitável, para algumas vertentes da fotografia, como a de arte e parte da documental contemporânea, isso não é problema. “As linhas que definem reprodução, representação e invenção da realidade são bastante tênues”, conta Leo Caobelli, fotógrafo do coletivo Garapa. “A imagem é uma incrível ferramenta de narrativa e

“Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, as fotos são uma interpretação do mundo tan to quanto as pinturas e os desenhos.” (Susan Sontag)

O suicídio de Bayard (em preto e branco) e o conflito na favela de Paraisópolis (SP), registrado por Henrique Manreza

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“Reprodução e representação são fortes e presentes em nosso dia a dia. Como foto-jornalistas, não temos direito nem devemos alterar a reali-dade, criando algo que não existe.” (Henrique Manreza)

A arte de fotografar

O que há de realidade e o que há de invenção nas suas fotografias?

Dois nomes referenciais da nova geração da arte contem-porânea brasileira, Ding Musa e Sofia Borges respondem à questão e discutem o limite entre o real e o fictício.

Para MusaMinha obra é uma invenção que fala sobre a represen-tação das coisas. Na série My View (2007), por exemplo, eu trabalho com imagens dípticas para desconstruir essa ideia de representação, assim como a ideia de ponto de vista. São imagens que têm uma paisagem ao fundo (janelas, portas, fendas na arquitetura), as quais parecem ser as mesmas, mas não são exatamente. Em outras séries, essa questão aparece de forma diferente. Pode ser um simples deslocamento lateral, como em Displacement 1 e 2 (2007), em que cinco fotos − com os mesmos elementos no plano de fundo e que têm o primeiro plano trocado − são justapostas em uma mesma imagem.

Para SofiaMinhas fotografias sempre surgem da observação dos lugares, das pessoas e dos objetos que, de uma maneira ou de outra, estão ao meu redor. O real é para mim uma espécie de matéria-prima, e, num primeiro momento, o que faço ao fotografar é justamente recolhê-la para depois observá-la, decantá-la e, por último, construí-la. Não sei bem responder o que há de fantasioso nas minhas imagens, pois elas representam o meu interesse pelas coisas em si. Contudo, nesse processo de decantá-las e construí-las, talvez a realidade das coisas se enfraqueça e os objetos representados se apresentem mais esvaziados. Não sei se isso acontece de fato, mas é o que eu gostaria que acontecesse… que os significados daquilo que fotografo se perdessem ou se embaralhassem uns nos outros. Pois é aí que está meu interesse na realidade, no fato de ela ser vazia e, a priori, sem sentido nenhum.

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muitas vezes, senão todas, nós [do coletivo] participa-mos dessas histórias”, afirma. “Isso nos transforma em ‘inventores de realidade’, pois intervimos e reagimos, além de registrar.” Caobelli reconhece também que a fotografia documental atingiu hoje um estágio “interessante”: “É no encontro entre o documental e o experimental que gostaríamos de estar, mas para isso sabemos que a estrada é longa”.

Um exemplo claro para ilustrar a invenção na foto-grafia são as fotos de publicidade, que têm o intuito de seduzir o público por meio de realidades extrema-mente longínquas e, por isso mesmo, inalcançáveis – caso das fotos dos editoriais de moda e de beleza. “É possível utilizar fotografias feitas com o enfoque de reprodução ou representação da realidade em um anúncio; porém a grande maioria é uma invenção”, explica Manreza, que também trabalha com publi-cidade. “Elas tentam simular o real em um ambiente totalmente controlado pelo fotógrafo, você cria a situação que quiser.”

Retratando a quase verdade

Criar, alterar, simular... Como já foi visto com o falso retrato suicida de Bayard, não é de hoje que a fotografia inventa mundos além do real. “O dadaísmo e o surrealismo romperam, refutaram a realidade de maneira revolu-cionária. As vanguardas alemãs também deram sua parcela nesse percurso”, explica Georgia. Outro exem-plo dado por ela são os retratos – que, ao mesmo tempo que registram a pessoa fotografada, têm a intenção de descrever identidades e discutir papéis sociais. “Nos retratos”, conclui ela, “temos reprodução, representação e invenção da realidade”.

Provavelmen-te, questionar o que é real seja uma das primeiras coisas que o espectador faz ao se deparar com os autorretratos da fotógrafa e designer Helga Stein. “Se você os chama de autorretratos tem de assumir que já sabe o que é realidade neles”, diz. As imagens de Helga, uma crítica ao consumismo e aos padrões estéticos inatingíveis, têm, de fato, o objetivo de provocar a noção de veracidade. Mas pôr em xeque a realidade, para a fotógrafa, não significa se desprender dela. “Não acredito no conceito de invenção da realidade”, comenta. “Pois a fotografia trabalha com um referente no momento do disparo do obturador. Mesmo que sofra um processo de manipulação bem incisivo, acredito que ainda reste uma relação com esse referente.”

Seja como for, reprodução, representação ou invenção – apenas para citar alguns aspectos dentre os diversos existentes –, a fotografia deu um novo sentido à rea-lidade e ao seu “referente”. Nas palavras de Georgia: “A fotografia foi revista como campo de consciência, de arbitrariedade, de dominação poética dos mecanismos técnicos para a imaginação florescer sem estatutos delimitadores da realidade”. A realidade que, talvez, só se viva na fotografia.

“A fotografia foi revista como campo de consciência, de arbi-trariedade, de dominação poética dos mecanismos técnicos para a imaginação florescer sem estatutos delimitadores da realidade.” (Georgia Quintas)

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Instruções ao leitor-cúmpliceO trânsito para outras realidades proporcionado pela literatura.

Por Welington Andrade | Ilustração Heloísa Mourão

O escritor argentino Julio Cortázar é, sem dúvida nenhuma, um dos grandes mestres da prosa moderna, destacando-se, sobretudo, no conto, gênero que cultivou com maestria e no qual alcançou resultados sur-preendentes. Dono de uma poética inovadora, Cortázar explorou os desvãos daquilo que convencionalmente chamamos de realidade, procurando evidenciar o homem em suas atitudes misteriosas e causas secretas.

Lançando um olhar acurado sobre a vida e as múltiplas formas de manifestação do real, o escritor elegeu como matéria-prima de sua literatura justamente essa investigação sobre os atos imprevistos que pautam os seres humanos, ora em circunstâncias corriqueiras, ora em situações excepcionais.

Em um conto perturbador, Instruções a John Howell (que integra o volume Todos os Fogos o Fogo, de 1966), Cortázar oferece ao leitor mais uma chave para a compreensão de como se confere valor de realidade às coisas. O espectador Rice está assistindo a um espetáculo teatral, quando, insolitamente, no intervalo de um dos atos, é convidado a assumir um dos papéis da peça, mais precisamente o de John Howell, marido da protagonista. No palco, a atriz principal, tomada por uma expressão de terror, sussurra em seu ouvido: “Não deixes que me matem”, levando o espectador/personagem a uma sensação de crescente desespero. O que teria acontecido? Rice ingressou no território ficcional do jogo teatral, mostrando-se despreparado para isso, ou a heroína da fábula penetrou dramaticamente no mundo cotidiano do espectador?

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O enigma que envolve Rice está assentado sobre um intrincado jogo que conduz ao problema dos di-ferentes subuniversos que compõem a rea-lidade. Na superfície, a trama do conto é uma narrativa policial a respeito do planejamento de um crime. Mas o fato de a história girar em torno de um espectador do mundo ficcional evidencia um golpe de ironia quando o autor, explorando os limites de uma atmosfera cuja marca é a imprecisão, leva o leitor a duvidar da veracidade do que de fato aconteceu.

Como homem comum, Rice está submetido à realidade coletiva do ato teatral como os demais espectadores, que lhe servem de testemunhas. Entretanto, ao aban-donar essa posição confortável, ele acaba por se isolar do grupo. Penetrando no mundo dos atores de teatro, cujas regras desconhece, o espectador Rice entra em contato com outra realidade, que lhe parece terrível: um assassinato está para acontecer. Mas, ironicamente, só há uma pessoa com quem ele pode compartilhar essa ocorrência tão singular: a própria vítima, que, a rigor, seria uma atriz ou uma personagem?

O mesmo movimento labiríntico ocorre na esfera da leitura, já que o jogo de armar proposto no conto so-mente poderá ser desmontado pelo próprio leitor, para quem a realidade dos livros é marcada por soluções íntimas e individuais, ainda que possam coincidir com as de outros leitores.

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O falso e o verdadeiro

Com efeito, o palco do teatro, apartado de todas as realidades vividas nas cadeiras da plateia, é o lugar ideal para a construção de realidades imaginárias. E é sob a perspectiva dele (não nos esqueçamos também de que a palavra “teatro” em grego significa “lugar de onde se vê”) que o contista argentino irá construir um mundo irreal, mas possível, no qual uma afirmação pode simultaneamente ser falsa e verdadeira. Rice penetrou em um mundo impossível dentro da realidade coti-diana, mas plenamente possível fora dela. Do mesmo modo, para o leitor, as páginas de um livro, isoladas do cotidiano maçante da vida comum, configuram um lugar ideal para a invenção de realidades outras, calcadas na imaginação.

Cortázar explora com intensidade vertiginosa aqueles incidentes supostamente insignificantes do cotidiano que levam os personagens a determinadas situações-limite. Aliás, a vida banal, para ele, muitas vezes parece constituir um limiar entre o previsível e o espantoso, o trivial e o insólito, cuja transgressão revela ao homem os recantos desconhecidos de seu próprio ser.

Instruções a John Howell trata do problema das realidades simétricas, paralelas, simultâneas que o homem experimenta no dia a dia, sem se dar conta delas. Realidades que, para ser valida-das, necessitam de coparticipação, logo transformada em cumplicidade.

As páginas de um livro, isoladas do cotidiano maçante da vida comum, configuram um lugar ideal para a invenção de realidades outras, calcadas na imaginação.

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Em artigo sobre o Dom Quixote, de Cervantes¹ (o avô espiritual de uma nobre linhagem de fabulistas às voltas com as armadilhas do real, de que fazem parte, além do próprio Cortázar, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares), o ensaísta Alfred Schütz demonstra quão arenosa é a trilha da experiência intersubjetiva (toda e qualquer realidade a ser referendada por dois ou mais indivíduos), da qual dependeria a comunicação humana.

Afirma o crítico que “nossa única esperança e orientação é a crença de que só poderemos chegar a um acordo com este mundo, apesar de todos os objetivos práticos e bons, se nos comportarmos como os outros, se assumirmos que o que os outros acreditam está além de qualquer

questiona-mento”, concluindo logo em seguida: “Tudo isso pressupõe nossa fé de que as coisas continuarão a ser o que foram até agora e de que nossa experiência delas continuará a servir de teste no futuro”.

O que move a escritura de Cortázar é a ideia de que o mundo racional, construído sobre os pilares de tantas certezas e convicções, nada mais é do que um campo minado, palco de uma realidade porosa que só pode ser entendida se ao homem couber a tarefa de passar para outro nível de percepção, no qual ele possa experimentar tempos e espaços diferentes dos usuais.

Na figura do espectador-cúmplice que ouve um pedido de socorro e se surpreende diante do olhar de uma atriz-vítima reside a demonstração de como a realidade é construída de modo compartilhado. A mesma partilha que, aliás, serve de base para o fenômeno literário, quan-do o leitor passa a assumir como seus as convicções, os sonhos e as fantasias de seres de papel, cuja substância é, surpreendentemente, a imaterialidade.

Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo.

Nota

1. SCHÜTZ, Alfred. Dom Quixote e o problema da realidade. In: LIMA, Luiz da Costa (org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2.

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entrevista

A imagem entre a realidade e a ficçãoPor Marco Aurélio Fiochi e Mariana Lacerda | Tradução Laila Garin | Fotos André Seiti

Psiquiatra, psicanalista e professor universitário, o francês Serge Tisseron tem se dedicado há mais de 30 anos a estudos da imagem. Seus trabalhos sobre fotografia, história em quadrinhos e, mais recentemente, ambiente virtual renderam cerca de 30 livros, além de inúmeros ensaios, como os que publica regularmente no blog Squiggle (squiggle.be/tisseron). Diretor de pesquisas da Universidade Paris X, analisa fenômenos como a memória, a vergonha, os segredos de família e a violência a que crianças estão expostas ao assistir TV ou entrar na internet. “Não se deve restringir o acesso [de crianças] a imagens violentas, porque a violência está em toda parte e dificilmente se tem controle sobre esse conteúdo. Mas é importante insistir na cooperação, na compaixão, na solidariedade para que um maior número de crianças evolua”, acredita Tisseron, que esteve em São Paulo em outubro para participar de seminário sobre fotografia contemporânea promovido pelo Itaú Cultural. Esta entrevista, concedida por telefone um mês antes de sua vinda ao país, traz um pouco da visão do pensador sobre o tema: “A fotografia é uma forma de realidade mista, ou poderíamos chamar de realidade híbrida. Ela está ao mesmo tempo ao lado da realidade objetiva e da subjetiva do criador ou do espectador”.

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Quando a fotografia é realidade? E quando é sonho, memória e alucinação?

Quando a fotografia foi inventada, no meio do século XIX, a cultura era dominada pelo livro. Então, ela foi dividida em duas: o registro documental de guerras ou da natureza e as imagens de ficção, como em uma montagem, com a fabricação de uma coisa que não existe, uma encenação. Somente com o desen-volvimento da “cultura das telas” (cinema, vídeo, TV, computador) é que se pôde vislumbrar essa dupla realidade. É preciso admitir que mesmo as fotografias

consideradas jornalísticas contêm uma parte de ficção, porque são fabricadas. A fotografia é uma forma de realidade mista, ou poderíamos chamar de realidade híbrida. Ela está ao mesmo tempo ao lado da realidade objetiva e da subjetiva do criador ou do espectador.

O sonho, a memória e a alucinação são produções que, assim como a fotografia, possuem duas entradas. Nos sonhos retomamos imagens do dia anterior, lem-branças de coisas que vimos, mas que modificamos ao sonhar. Com relação à memória, nós a fabricamos com base em imagens e sons. Na alucinação, a pes-soa vê uma justaposição, espécie de “corte e cole” de coisas reais e irreais. Por exemplo, ela se vê com um rosto monstruoso num espelho de verdade. O sonho, a memória e a alucinação são experiências que po-dem nos fazer entender melhor a realidade híbrida da fotografia. É fácil entender que o sonho modifica as imagens reais, mas é difícil compreender isso em relação à memória, já que temos a pretensão de acre-ditar que as coisas existiram como nos lembramos delas. Queremos excluir o fato de que a memória é também algo misto, um lado realidade, outro lado construção. Na alucinação isso é ainda mais forte. A pessoa alucinada acredita realmente que o que ela pensa estar vendo é realidade, que existe de verdade.

Qual a importância da memória, já que ela muitas vezes não corresponde fielmente aos fatos?

O objetivo da memória é nos ajudar a viver o presente, não nos projetar ao passado. Porque, se nos projetásse-mos ao passado, não poderíamos mais enfrentar o hoje. Ela não tem a função de nos fazer lembrar, mas, sim, de nos fazer esquecer tudo o que não é útil ao momento atual. Se por acaso não me recordo de algo, eu o fabrico e penso que estou lembrando. Eventualmente, a memória ajuda a reconstruir lembranças que não existiram, de maneira que se possa viver bem a atualidade.

Até que ponto a ficção é necessária ao entendimento da realidade?

A ficção opera de forma contrária à da memória. Ela nos faz antecipar o futuro, para também podermos enfrentar o presente. A principal dificuldade do ser humano é conseguir encarar seu presente constan-temente. Porque ele é angustiante, complicado, nos faltam referenciais... Então, ocasionalmente, inventamos referenciais por meio de falsas lembranças e projeções no futuro. O papel da ficção é nos fazer antecipar o que está por vir, mas de maneira que se permita enfrentar o agora. Vê-se isso na adolescência, uma vez que os jovens adoram ficção científica, filmes da série Guerra nas Estrelas, videogames. É sua maneira de compreender o presente como um devir. A ficção é a projeção de um futuro sonhado, temido. É preciso compreendê-la não como um mundo paralelo, mas como um mundo que provavelmente antecipa o que virá.

Você estudou os efeitos de imagens violentas em crianças de 11 a 13 anos. Qual a conclusão da pesquisa?

Foi um grande estudo que conduzi entre 1997 e 2000, subvencionado pelos ministérios da Cultura, da Família e da Educação Nacional da França. Já existiam muitos estudos americanos que chegavam todos à mesma conclusão: que imagens violentas tornariam alguns jo-

A fotografia pode estar ao mesmo tempo ao lado da realidade de verdade e ao lado da ficção de mentira.

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vens mais violentos. A intenção dessa pesquisa foi diferente – com-preender como as imagens violentas agem nos jovens, que justamente não se tornam mais violentos sob o efeito delas. Há, de fato, uma porcentagem de crianças que encontra nessas imagens uma legitimação para ser agressivas. Elas pensam que, uma vez que a brutalidade está em todo canto – nas notícias, na ficção –, têm o direito de ser violentas para resolver seus problemas cotidianos. Em nossa pesquisa, encontramos essas crianças que os estudos americanos apontam. Nós nos interessamos, sobretudo, por aquelas que veem imagens violentas e não se tornam agressivas – apesar de as imagens também lhes provocar algo. As crianças, no entanto, vão evoluir em duas direções bem diferentes: há as que vão se sentir vitimadas, sobretudo as meninas, que podem se imaginar correndo risco de agressão; e há as que, sob efeito dessas imagens, desenvolvem fantasias nas quais atuam em profissões de apoio, para ajudar os outros ou contribuir para a evolução do mundo, com uma melhor gestão dos conflitos – como terapeutas, médicos, psicólogos, assistentes sociais, soldados do exército, bombeiros, diplomatas.

Sob efeito dessas imagens, as crianças podem também se tornar derrotistas, medrosas. Outra percepção que tivemos com o estudo foi que os meios empregados para reduzir os perigos das imagens violentas são diver-sos. Nos estudos americanos, sempre se conclui que é preciso diminuí-las, mas isso é obviamente impossível. No estudo que conduzi, chegamos à outra conclusão: é muito importante valorizar nas imagens de violência sua outra face, a compaixão, a ajuda mútua, a coopera-ção, a solidariedade. Não é útil reduzi-las, porque elas estão em toda parte e dificilmente se tem controle sobre esse conteúdo, menos ainda sobre o que vem da internet. Mas é importante insistir na cooperação, na compaixão, na solidariedade para que um maior número de crianças evolua.

Que tipo de imagem você estudou nessa pesquisa?

Utilizamos fragmentos de programas de televisão. Na-quela época, a internet não tinha a força que tem hoje. Além dos programas, havia notícias sobre violência, mas também momentos não violentos. Havia desenho animado, ficção adulta transmitida em horário nobre e programas infantis. Percebemos que as crianças mentem quando dizem não ser afetadas por imagens violentas.

Para Tisseron, a memória serve para ajudar a viver o presente

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Observamos que elas possuem meios espontâneos de tentar elaborar essa violência, de superá-la. Ou seja, têm o desejo de falar do que viram, de fazer fotos, encenar. Chegamos então à conclusão de que era necessário favorecer esses meios espontâneos, e que as atividades de dramatização seriam muito úteis para liberá-las da dominação das imagens.

Na verdade, essas imagens têm efeitos importantes na dinâmica dos grupos. Na medida em que algumas crianças partem para a brutalidade, outras desenvolvem o medo de ser atacadas. As que se sentem mais frágeis pedem proteção às que são mais fortes, assim se con-figura o fenômeno dos bandos. Essa é a consequência mais preocupante das imagens violentas.

O que é o conceito segredo de família e que ima-gens ele evoca?

Trabalhei com esse conceito no início dos anos 1980. Desde aquele tempo, insisti no fato de que um segredo de família não é algo não dito simplesmente. Para que ocorra um segredo de família é necessário que algo não seja dito e, além disso, seja proibido saber que ele existe. Os mais graves são os que correspondem a

situações nas quais se diz que não existem segredos. Quando numa família se diz “temos um segredo, mas não podemos falar sobre ele”, isso não é tão grave.

O trabalho estudava as consequências dos segredos sobre várias gerações. Atentamos para duas coisas: a primeira é que as crianças que crescem numa família com segredos entendem rapidamente que algo está sendo escondido. Mas o problema é que elas não conseguem compreender a natureza do que é. E isso os psicanalistas antes de mim não tinham entendido muito bem. Eles diziam que, quando existe um segredo numa família, a criança o entende sempre graças ao inconsciente. Eu digo que não. Ela pressente o mistério, mas não pode saber seu conteúdo somente por meio da imaginação. Então ela vai construir hipóteses e, às vezes, acertar. Por exemplo, se escondermos de uma criança que ela nasceu de outro pai, ela pode pensar num dado momento: “Talvez eu tenha nascido de outro pai que não é o oficial”. Porém, também vai tecer outras possibilidades, por exemplo: “Talvez meus pais quisessem uma menina e eu sou um menino”. Ou então vai questionar-se: “Talvez minha mãe esteja me escondendo algo

“Adultos e crianças podem ter a ilusão de estar no mesmo mundo, mas já não vivem num universo semelhante”

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importante sobre uma doença que terei e da qual não tem coragem de falar”. O problema é que todas essas hipóteses vão orientar sua vida. Especial-mente quanto à dificuldade de comunicação, porque ela desiste de fazer perguntas, torna-se dissimulada, sonsa, sente-se frequentemente in-segura, e isso vai marcar seu destino. A principal vítima do segredo é a comunicação. Numa família em que existe um segredo, ninguém mais se comunica. Escrevi Secrets de Famille – Mode d’Emploi [Segredos de família – modo de usar], em 1996, para explicar essas histórias de segredo.

Esse conceito tem alguma raiz na literatura ou no cinema?

Os segredos de família ocupam grande espaço na literatura e no teatro. Há romancistas que escreveram sobre eles, especialmente aqueles que lhes foram impostos. Por exemplo, o francês Romain Gary, que não conheceu a identidade de seu pai. Outro francês, Louis Aragon, que foi criado pela irmã sem saber que ela era sua mãe. O escritor pressentia isso, e tal questão trouxe sérias consequências para ele, que escreveu Le Mentir-Vrai [O mentir verdadeiro], em 1980. Aragon foi um grande mentiroso, e escreveu um livro para se justificar. Ele cresceu numa mentira terrível. Ao mesmo tempo que lhe cegavam os olhos, ele via que sua irmã não tinha um comportamento fraternal, mas, sim, ma-ternal. Isso não o impediu de ser um grande escritor, mas o conteúdo de sua obra seria diferente se ele não tivesse sido marcado por esse segredo.

No teatro, há Ibsen, cujo trabalho, em grande parte, gira em torno dos segredos, sobretudo aqueles terríveis, de estupro, adultério, numa sociedade puritana no início

do século XX. Segredos que hoje parecem banais, mas que nessas peças tinham consequências sérias, porque alguns de seus personagens cometem suicídio. No cinema, Festa de Família (1998), de Thomas Vinterberg, mostra o estupro de um menino por seu pai, e o garoto resolve revelar essa violência em um evento familiar.

Está desenvolvendo algum estudo atualmente?

Estou pesquisando o mundo virtual. Meu penúltimo livro, de 2008, se chama Virtuel, Mon Amour [Virtual, meu amor] e aborda como o ciberespaço altera a maneira de pensar o outro, a alteridade, a si mesmo, o tempo, o conhecimento. Por outro lado, reflete

como a introdução das tecnologias virtuais carrega uma ruptura antropológica, de grande número de referenciais sobre os quais a sociedade está construída, desde a invenção do livro. Essa estrutura é sacudida e transformada.

O problema hoje é o risco de fratura geracional em adultos que utilizam novas tecnologias. Eles têm telefone celular, DVD, iPod, computador, mas cresceram inseridos em uma cultura do livro, então para eles os contrários se excluem, o tempo vai do passado ao futuro, numa flecha. As crianças com 12, 13 anos, no entanto, não estão crescendo numa cultura do livro, e sim da tela, em que os contrários coabitam. O passado, o presente e o futuro estão misturados. Quando olham seus e-mails, leem do mais recente ao mais antigo. Nos mangás e em muitos desenhos animados, a história começa no futuro e volta ao passado. O mesmo com a série Guerra nas Estrelas. Adultos e crian-ças podem ter a ilusão de estar no mesmo mundo, mas já não vivem num universo semelhante, porque os referen-ciais mudaram.

Crianças que possuem 12, 13 anos não cresceram numa cultura do livro, mas, sim, da tela, em que o passado, o presente e o futuro estão misturados.

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on-line

Os espaços que coexistemExiste um mundo escondido, pronto para emergir. Projetos arquitetônicos que mudariam cidades, inovações tecnológicas a serviço da sociedade, invenções científicas que melhorariam a vida. Se certas ideias de gente que trabalha para mudar o mundo se tornassem reais, provavelmente nosso cotidiano seria bem diferente. Conheça algumas delas em reportagem exclusiva na Continuum On-Line (itaucultural.org.br/continuum).

A edição virtual traz ainda uma entrevista exclusiva com a psicóloga e filósofa Viviane Mosé. Ela aborda te-mas como o individualismo e os arranjos sociais e emocionais que existem para que as realidades do mundo particular de cada um de nós coexistam.

Ouça também a canção premiada na ação Canções para Arteiros, em que os leitores foram convidados a criar uma música para as crianças sobre a arte.

***

Fique atento! O site Itaú Cultural e a Continuum On-Line vão ganhar cara nova. Acompanhe a mudança em itaucultural.org.br.

Ilustração [detalhe]: Rodrigo Silveira

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convocação

Participe!A Área Livre da Continuum é o espaço do leitor na revista. Contribua enviando seu trabalho. Um pequeno conto, um artigo, um poema, uma música, fotos, ilustrações... Vale tudo, desde que tenha que ver com o tema bimestral. Veja abaixo qual será o assunto da próxima edição e comece a produzir. As contribuições devem ser enviadas ao e-mail [email protected].

Janeiro-fevereiroSamba (prazos de envio: revista impressa, até 10 de dezembro; revista on-line, até 20 de fevereiro)

***

E a revista inicia 2010 apresentando uma nova seção, a Deadline. Ela é reservada para reportagens feitas por estudantes universitários de qualquer área.

As matérias devem se pautar no assunto de cada edição, que é anunciado no número anterior. Uma convo-catória estará disponível no site da revista no início de cada bimestre. Depois de lê-la, o proponente deve enviar seu projeto de reportagem à redação da revista. Será selecionado um projeto por edição e nossa equipe editorial acompanhará o desenvolvimento da matéria.

Só para reforçar, não é preciso cursar jornalismo para participar, pois a seção é um espaço para que todos os universitários façam o exercício de criar uma reportagem. Estudantes de todos os cursos e instituições do país são bem-vindos!

Conheça o regulamento e a convocatória do bimestre janeiro/fevereiro em itaucultural.org.br/continuum.

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Dúvidas, sugestões ou críticas? Escreva para [email protected] e contate a equipe da revista.

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Wilson Inácio Série Cartão-Postal, 2009

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Abra a janela e veja!A realidade e a ficção em alguns dos mais criativos Flickr – site de compartilhamento de fotos.

Por André Seiti

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Elle Moss (flickr.com/photos/torchlightlms) A norte-americana Elle Moss cria em suas fotos momentos em que mistura cenas cotidianas com situações surreais.

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Daniel Marenco (flickr.com/photos/27868604@N05) Marenco é fotojornalista da publicação gaúcha Zero Hora. Diferentemente da maioria dos profissionais dessa área, não se limita a registrar os fatos, também consegue captar neles momentos que exalam poesia.

Crystal. (flickr.com/photos/crystal-/)Guarda-chuvas e balões parecem ser um dos temas prediletos desta fotógrafa canadense. Em uma das me-lhores sequências, Crystal. registra crianças segurando esses objetos em um cenário onírico.

Rui Palha (flickr.com/photos/ruipalha)No melhor estilo dos fotógrafos de rua, o português Rui Palha flagra, em belos registros em preto e branco, os infinitos “instantes decisivos” do dia a dia.

Brett Walker (flickr.com/photos/brettwalker)Para quem é fã de retratos, a página do fotógrafo inglês Brett Walker é uma das melhores pedidas do Flickr. Algumas de suas fotos, por sinal, lembram as de outro fotógrafo “caminhante”, o norte-americano Walker Evans.

Tatiana Cardeal (flickr.com/photos/tatianacardeal)Os índios e sua cultura são um dos temas mais explora-dos da fotografia. Mesmo assim, é impossível resistir ao trabalho documental de Tatiana, que, além de fotografar a cultura indígena, faz bons registros urbanos.

Cole Rise (flickr.com/photos/antimethod)Paisagens bucólicas com um quê de estranhamento são o ponto forte das imagens do norte-americano Cole Rise. Destaque também para a série de retratos em que os fotografados parecem flutuar.

Merkley??? (flickr.com/photos/merkley)Excesso é o melhor adjetivo para se referir ao trabalho deste fotógrafo norte-americano. Cores gritantes e hi-persaturadas, modelos em poses exageradas, situações bizarras... Enfim, diversão garantida.

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reportagem

A invenção da naturezaAves de bicos maiores que o corpo e monstros com sorriso de criança. Bem-vindo ao mundo dos sonhos do século XVI.

Por Mariana Lacerda

“O ser mais disforme que se possa imaginar, apresentando uma barriga tão grande que chega quase a se arrastar do chão, a cabeça lembra a de uma criança, como também a cara. Quando preso, suspira como uma criança que sente dores. Seu pêlo é cinzento e peludo como o de um ursinho. Patas compridas com quatro dedos, três grandes unhas parecendo espinhas de carpas, com os quais trepa na árvore, onde fica mais tempo do que na terra. Ninguém jamais o viu se alimentando. Vive de vento.”

La Cosmographie Universelle, André Thevet

Na época em que o padre André Thevet escreveu o texto acima, Deus ainda era o único responsável pela criação de todos os seres, mesmo os mais extraordinários, como poderia ser o caso do animal descrito. Autor do relato La Cosmographie Universelle, publicado na Europa em 1575 e um dos primeiros livros escritos e ilus-trados por viajantes franceses que estiveram nestas terras de Vera Cruz, Thevet deixou suas impressões sobre a vegetação farta, os animais incríveis e a gente generosa. A estranheza ao se deparar com um bicho-preguiça instigou sua imaginação e fez surgir em carne e osso aquilo que os europeus apenas sonharam existir do outro lado do oceano antes de atravessá-lo: animais esquisitos, monstros indescritíveis. O bicho-preguiça, e esse é só um exemplo, o levou a crer que estava diante de uma “estranha aparição”, coisa grandiosa para a qual o homem não encontrava nenhuma explicação.

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Olhar e sonhar

Desde o momento em que o europeu chegou ao novo continente, passou a contar com admiração o que via no lugar. Todos os relatos foram importantes. E as notícias geradas pelo grande número de viagens realizadas a partir do século XVI às Américas aumentaram, e muito, a ideia de grandeza de mundo daqueles que estavam do lado de lá do oceano.

Thevet foi um cosmógrafo. Padre franciscano, ele viajava na expedição francesa comandada por Villegagnon, que pretendia fazer da região de Cabo Frio, no Rio de

Janeiro, terras fortemente defendidas por portugueses e índios, um território a que chamariam de França An-tártica. Além do bicho com olhar de criança, Thevet levou ao Velho Mundo o desenho de um abacaxi que hoje, aos nossos olhos, seria um superabacaxi. Constam também em seu compêndio uma “ave de bico tão grosso e comprido quanto o resto do corpo” (um tucano) e tantos outros exemplos.

O que viam aqueles que viajavam no século XVI? Por que seus relatos, então testemunhos fiéis de novas terras, traziam tamanhas estranhezas? “A grande tripartição, aparentemente tão simples e imediata, entre observação, documento e fábula não existia”, escreveu Michel Fou-cault, em seu livro As Palavras e as Coisas (Martins Fontes, 2000). No mundo do século XVI, religião, arte e ciência eram indissociáveis e ainda andavam de mãos dadas.

Os textos de Thevet são apenas um exemplo dentre os de tantos outros viajantes que ficaram maravilhados

com as terras americanas (Américo Vespúcio, mesmo antes de aportar aqui, teria ouvido cantos de sereia ao cruzar os mares). E os seus escritos confirmam e oferecem “prova de significações contidas nas escri-turas sagradas que o homem busca e advinha nos sinais do mundo”, diz a historiadora da arte Ana Maria de Moraes Belluzzo em seu livro O Brasil dos Viajantes (Objetiva/Metalivros, 1998). É de pensar, ainda, que “os desenhos de Thevet obedecem aos aspectos técnicos da época, em que as ideias de proporção ainda eram pouco aproveitadas”, diz Maria Elice Prestes, bióloga e historiadora da ciência do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.

Na época em que Thevet escrevia, contar sobre o mundo era, ainda, compor um tecido único que

continha o que se via das coisas e mais todos os signos que foram nelas depositados. “Fazer a

história de uma planta ou de um animal era tanto dizer quais são seus elementos ou seus

órgãos quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes,

as lendas e as histórias

Na época em que Thevet escrevia, contar sobre o mundo era ainda compor um tecido único que continha o que se vê das coisas e mais todos os signos que foram nelas depositados.

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Reprodução de xilogravuras do padre André Thevet, publicadas no livro La Cosmographie Universelle (1575)

com que se misturou. A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda rede semântica que o ligava ao mundo”, escreveu Foucault.

Olhar e ver

A idade clássica, o iluminismo, a invenção da imprensa, o romantismo. O mundo aos poucos foi deixando de ser de sonhos e fantasias, de crenças e discursos para se tornar cartesiano e se aproximar daquilo que se mostrava como real. Aos poucos, a trajetória da humanidade foi emprestando formas diferentes de entender o mundo. Em meados do século XVII, vão surgindo os olhares minuciosos. Nas terras ainda estranhas das Américas, viajantes como Willem Piso e Georg Marggrave, que junto ao pintor Albert Eckhout acompanhavam a comitiva do conde Maurício de Nassau durante a ocupação holandesa no Nordeste brasileiro (entre 1630 e 1654), passam a entender aquilo que escolhem ver.

Os dois, ao escrever sobre as plantas e os animais de um já nem tão novo Novo Mundo, su-primiram de mais a mais a imaginação. O mesmo se deu nos desenhos de Eckhout, cujos

traços ilustraram as publicações sobre a fauna e a flora brasileiras escritas pelos naturalistas. Deus já não é mais referência, embora ainda exista, e o diferente, ainda que estranho, não toca a fantasia. A forma de entender o mundo estava perdendo o sonho.

“Compreende-se que nessa ‘purificação’ a primeira for-ma de História que se constitui tenha sido a História da Natureza. Os documentos dessa história nova não são outras palavras, textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções, jardins. O lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comentário, de toda linguagem cir-cundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já visualmente analisados e portadores apenas de seu nome”, escreveu Foucault.

Era a história natural prestes a se tornar ciência, mo-mentos que antecederam Lineu, o responsável por criar uma linguagem universal aos seres vivos, a taxo-nomia. Veio Charles Darwin, tirando por fim a autoria de Deus de criador do mundo, que, com suas plantas e aves, seus peixes e crocodilos, ganhou, enfim, suas feições reais.

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fotorreportagem

O olhar etéreo Curadoria Mario Ramiro

As invenções da fotografia, do telégrafo e do rádio coincidem com o período de surgimento de um novo sistema de crenças no mundo ocidental, baseado na possibi-lidade de comunicação entre o mundo concreto e o do “além”. O cinema, os seriados de TV e as telenovelas vêm explorando essa temática, dificilmente encontrada no circuito das artes visuais. Neste ensaio fotográfico, são reunidos trabalhos de artistas brasileiros que parecem dialogar com esse universo misterioso e pouco provável.

Da série Simulacro da Memória Imperfeita, 2008 | foto: Edu Marin Kessedjian [edumarin.com.br]

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Paraíso Fantasmagórico, 2009 | foto: Fernanda Eva [fernandaeva.com]

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Sujeito Oculto (Auto-Residência-Artística), 2009 | instalação e videoperformance: Flávia Sammarone/fotografia: Rafael Adaime

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Purple-Green 8, 2008 | foto: Patricia Osses [patriciaosses.com]

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Espelho de Prata Translúcida, um Armarinho de Banheiro para Nosferatus, 2009 (fotografia digital/objeto) | foto: Luciana Ohira e Sergio Bonilha

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Ophelia, 2009 | videoinstalação: Gabriela Greeb

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ficção

O homem que não riGargalhadas embalam um duelo de olhares, dúvidas e certezas.

Por Thiago Rosenberg | Ilustração Thiago Balbi

1. O palhaço

Ele precisava das risadas. Não dos sorrisos, leves contrações musculares, olhares alegres; isso não bastava. Precisava das gargalhadas, ruidosas, daquelas que criam lágrimas, que fazem doer a barriga, que causam tremores no corpo, que abalam a respiração. Em nada se importava com o dinheiro que não tinha para pagar as contas, ou com a solidão que o aguardava em casa, após os espetáculos, ou com a irritação que o pó com o qual cobria a face lhe deixava na pele. Não se importava com nada disso; contanto que ganhasse, mesmo que por poucos minutos do dia, as risadas do público. Sempre foi uma necessidade pessoal, esta de arrancar dos outros gargalhadas. Cobrava-as dos pais e dos irmãos, na época em que com eles vivia; dos colegas da escola, da rua, do bairro; das garotas que paquerava; dos coadjuvantes de seu cotidiano – garçons de bares e restaurantes, cobradores de ônibus, atendentes de lojas. E, desde que fizera desta busca por risadas seu ofício, um semblante circunspecto lhe indicava sinais de ruína não apenas social, mas também profissional. Não admitia semblantes circunspectos, senão o seu. Dera-se conta, com os anos, de que era justamente se mantendo sério que conseguia as melhores gargalhadas. E, assim, adotou a fórmula: não rir para fazer rir.

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2. O marido

Estava com as chaves do apartamento e do carro em mãos, pronto para sair, caminhando lentamente em volta da mesa da sala de jantar, já com as luzes apagadas. A única luz acesa vinha do fundo do corredor, do quarto, de onde a mulher despontaria, a qualquer momento, também ela pronta para sair. Chegaria com brincos de brilhante e um dos seus vestidos escuros. O cabelo ondulado estaria solto, cuidadosamente penteado. E com ela viria o som das pancadas que o salto dos sapatos produz no piso de madeira, o som dos seus passos apressados. Ele consultava o relógio, conferia se não deixava nenhuma janela aberta, nenhum aparelho ligado. Talvez ignorasse o motivo de sua impaciência. Não tinha pressa para sair, nem estava animado para tal. Circo, pensava ele, meio encabulado, meio inco-modado. Desde quando ela gosta de circo? Nunca demonstrou, para mim ao menos, o menor interesse.

Está cansada dos nossos programas? Dos restaurantes, do cinema? Ela apareceu, repentinamente, na sala, disse pronto, podemos ir. Não estava com o vestido escuro. Usava uma blusinha clara, com estampas de flor; e o cabelo, preso num rabo de cavalo, deixava à vista as orelhas, sem brinco nenhum. E sua chegada não foi anunciada, como ele esperava, pelo som dos passos apressados no corredor. Só mais tarde, durante o espetáculo, entediado com a dupla de malabaristas, o marido chegaria a uma explicação razoável para o surgimento silencioso: olhou para os pés da mulher e percebeu que ela não usava os sapatos de costume; vestia uma sandália leve, quase muda. O que deu nela, ele pensou. Vamos, ela disse. E saíram, deixando acesa a luz do quarto.

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3. A brecha

A dupla de malabaristas encerrou sua impecável – e, talvez por isso, enfadonha – apresentação; e o palhaço, vindo de trás das cortinas, mostrou-se ao público. Ca-minhava lenta e silenciosamente, vestindo traje social e mantendo no rosto, abaixo da grossa camada de pó, o semblante circunspecto. Não precisou de muito tempo

para arrancar da plateia as primeiras gargalhadas; bem como as demais. A sucessão de risadas alimentava sua autoestima, que, por sua vez, deixava-o seguro o bastante para evocar mais e melhores risadas. Já podia afirmar que a performance da noite seria um sucesso – não fosse um detalhe, uma pequena brecha que se abria, emburrada, no meio da risadaria. A princípio,

o palhaço não conseguiu identificá-la, mas sentia, como que por instinto, sua presença. E essa sen-

sação carcomia a autoestima que conquistara até então. Sabia que, de repente, seria sur-

preendido por um rosto solene; um rosto sóbrio que, escondido

na mata densa de

Já podia afirmar que a performance da noite seria um sucesso – não fosse um detalhe, uma pequena brecha que se abria, emburrada, no meio da risadaria.

rostos trêmulos e sorridentes, se preparava para o bote. Correu os olhos pela multidão de espectadores. Onde está você? Sentiu que começava a suar. Apareça! Sentiu que começava a tremer. E no ápice do desespero, pres-tes a desabar, avistou um porto seguro – de blusinha florida e rabo de cavalo. Ela ria sem parar, gargalhava com todos os músculos do rosto, arreganhava os dentes, se lambuzava com as lágrimas. Urrava descontrolada-mente, histérica, frenética. E todo esse descontrole, essa histeria e esse frenesi deram ao palhaço a paz de que precisava para se esquecer do inimigo oculto. Agarrou-se àquele sorriso, àquela gargalhada. Só tinha olhos e ouvidos para ela. Hoje eu estou aqui para você, ele pensou. Só para você.

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4. O duelo

Por que esse palhaço não tira o olho dela? O marido já chegara incomodado ao circo; agora começava a se perturbar. E por que ela ri tanto? Olhava para a mulher, olhava para o palhaço. Eles se conhecem? Via que a mulher agarrava os joelhos com as mãos e contorcia os pés dentro da sandália. Foi por isso que ela me trouxe aqui? Para conhecer seu novo amigo? Sentiu que começava a suar. Por isso colocou essa roupa? Sentiu que começava a tremer. Ela ri de mim? Sabia que, se falasse qualquer coisa, iria irritá-la, transformaria em fúria toda a sua euforia; e, tentando intervir de alguma maneira na situação, repousou o braço direito sobre os ombros da mulher. Foi o bote que o palhaço havia pouco pressentira. Do picadeiro, viu seu porto seguro ser invadido por aquele homem mal-humorado, por aquele homem que, como ele, não ria. Lembrou-se do que havia pouco o atormentava; e um calafrio vibrou em seu estômago. Enfim, você resolveu aparecer. Agora somos nós dois. E você, espero, vai rir por último. Fixou o olhar em seu rival. Uma risada, ao menos uma risada você vai me dar! Nada mais importava. Hoje eu estou aqui para você. Só para você. O marido percebeu que os olhos do humorista se voltavam agora para ele, e isso o deixou, em medidas iguais, satisfeito e aflito. Satisfeito porque, com seu golpe de mestre, confirmou suas suspeitas; e aflito porque suas suspeitas, confirma-das, representavam sua miséria. Certo, ele pen-sou. Eu sou o marido da mulher do palhaço. Vasculhou os olhos que o encaravam do picadeiro, em busca de mais informações, mais

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Fechou os olhos e esfregou

as mãos suadas no rosto, desfa-zendo a máscara de pó. Você é mesmo

muito íntegro, disse, em pensamento, o marido. Tem a decência de mostrar a cara; mas

já perdeu a coragem de olhar na minha cara. Ain-da com os olhos fechados, o homem do picadeiro

deu início ao último ato da apresentação. Agora é a melhor parte, é a parte mais engraçada! Realizou os movimentos impecavelmente. E recebia, pelos ouvidos, o retorno dos espectadores. Cada tropeço gerava uma onda de risadas; cada tombo provocava uma tormen-ta de gargalhadas. Você está rindo; eu sei que está. Estatelou-se no chão – e um som de tambor marcou o fim do espetáculo. As risadas – agora misturadas à salva de palmas – não cessavam. Levantou-se e, sem abrir os olhos, agradeceu ao público. Você está rindo; eu sei que está! E, agarrado a essa certeza, partiu. Eu sei que está! O domador e seu leão já ocupavam o picadeiro. Agora eram eles que travariam um duelo.

Thiago Rosenberg é graduado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduando em cinema documentário pela Fundação Getulio Vargas (FGV/SP).

detalhes da relação sórdida que aquele sujeito mantinha com a sua, até então sua, mulher. Queria descobrir como tinham se conhecido, o que gostavam de fazer juntos, se ainda havia uma gota de culpa em suas consciências. Ele quer brincar o jogo do sério, concluiu o palhaço. Recordou-se de quando era garoto, do desafio que lançava aos colegas – eu olho para você, você olha para mim; quem rir primeiro perde. Ele nunca perdia. Assim o espetáculo corria para o público; e se arrastava para os homens que não riam. Sem parar, sem descanso, o marido cavava, com seus olhos, os olhos do palhaço; mas não conseguia desenterrar as respostas pelas quais procurava. E, como se cavasse não com os olhos, mas com seus próprios braços, pá em mãos, sentia-se cada vez mais esgotado; fisicamente esgotado. Escorria aos poucos pelo assento, deixando preso o braço direito nos ombros da mulher. Ela nem percebe meu braço nos seus ombros. E os ombros do palhaço, até então firmes e erguidos, começavam a vergar, dobravam-se diante do olhar inquisidor do marido. Exausto, tão esgotado quanto o seu oponente, o humorista se deu conta de que não era uma brincadeira, um jogo do sério, o que havia entre os dois. Era um duelo. E duelos, pensou ele, não admitem risadas. Ao contrário de brincadeiras ou jogos, eles celebram a hostilidade, são travados entre inimigos, entre opostos. E, com isso em mente, o palhaço elaborou, nos segundos finais do espetáculo, uma estratégia para mudar a situação.

5. A certeza

O duelo entre palhaço e homem tinha que virar uma brincadeira entre dois homens. Só assim, esperava o hu-morista, o marido poderia vê-lo como semelhante – e se sentir à vontade para, finalmente, rir. O palhaço, portanto, deveria deixar de ser um palhaço; e virar um homem.

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Disco que decora a sala de Nazário e, ao lado, o cover de Roberto Carlos dá uma canjinha à Continuum

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perfil

De Cachoeiro a BelenzinhoA dupla vida de Raul Nazário, cover do Rei.

Por Tom Cardoso Fotos André Seiti

“Meu amigo de fé, meu irmão camarada!” Tomando uma cerveja na padaria em frente do seu apartamento no bairro do Belenzinho, zona leste de São Paulo, Raul Nazário abre os braços em direção ao repórter que acaba de chegar. O goiano de 51 anos, filho de pai pedreiro e mãe dona de casa, ex-hippie e ex-radialista, parece viver em estado permanente de alegria. Não é para menos: Nazário é, desde 2001, o cover mais popular do cantor mais popular do Brasil, Roberto Carlos. A profissão lhe garante de 15 a 20 shows por mês e o prato de comida para ele, a mulher (que se chama Nice, o mesmo nome da primeira mulher do astro), a filha e o cão pastor Steven Tyler (nome do vocalista da banda de rock Aerosmith), que não para de latir do minúsculo terraço do apartamento.

A fama de Nazário não é só a de melhor imitador de Roberto que há na praça. Dizem que apelido dado por ele “pega mais que gripe suína”. A fama é justa. Em poucos minutos de papo, por culpa do anfitrião, o repórter já era chamado por todos da padaria de “Dudu Braga” (o filho do Rei) e o fotógrafo de “Jackie Chan”, o popular comediante chinês.

Além do tom de voz praticamente igual, “sou nasal por natureza física”, há outras semelhanças entre o RC original e o seu animado genérico. A pulseira de prata e a longa cabeleira, com cachos ondulados – e a inde-fectível pena pendurada na orelha esquerda –, lembram o Roberto Carlos dos anos 1970, faltando apenas o

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cachimbo. É assim, meio Roberto, meio Nazário, que ele toma cerveja na padaria, vai ao banco ou anda de metrô. A transformação em Roberto pra valer costuma ser bem mais trabalhosa.

Uma ajuda especial

“Dudu e Jackie Chan, venham comigo!” Nazário atravessa a rua em direção à sua casa, para alegria de Steven Tyler. O apartamento, simples e pequeno, mais parece a sede de um fã-clube de Roberto: pôsteres por todos os lados, discos e CDs do Rei e uma pilha de recortes de jornal – a TV de tela plana da família exibe cenas do filme Roberto Carlos, a 300 Km por Hora, dirigido por Roberto Farias em 1972. Nada, porém, o deixa mais orgulhoso do que o pôster que toma praticamente todo um lado da parede, em que ele aparece abraçado ao homem que mudou para sempre a sua vida. Sim, o próprio: Roberto Carlos.

O encontro entre o Roberto de Cachoeiro de Itape-mirim e o Roberto do Belenzinho ocorreu em 2007,

no Navio Costa Fortuna, no momento em que o Rei cumpria mais uma bem-sucedida turnê por

grandes cruzeiros. Nazário gastara boa parte de sua renda do mês na expectativa

de um encontro com o ídolo. Não havia grandes

esperanças. Na época, Roberto trava-

va uma penosa batalha na justiça para retirar das livrarias sua biografia não

autorizada, escrita pelo jornalista e historiador Paulo César Araújo. “O pessoal da produção, que

costuma sempre ser mais estrela que a própria estrela, já tinha me avisado dentro do navio: ‘nem

tente chegar perto do homem’. ”

Por sorte, Nazário encontrou Dudu Braga, o “Segun-dinho”, nos corredores do Costa Fortuna. Conhecido pela humildade e simpatia, o filho do Rei reconheceu imediatamente o cover mais famoso de seu pai e garantiu: “Vou armar um encontro com o paizão, pode deixar”, conta Nazário. Ele esperou ansiosamente e nada de encontro. Dudu também havia sumido. “Na última noite, já conformado, alguém bateu na porta do meu quarto. Era o mesmo cara da produção que havia descartado o meu encontro no primeiro dia: ‘O Roberto está no camarim e quer conversar contigo’ .’’

Nazário partiu para o encontro da sua vida com o coração na boca. Não conseguiu nem formular uma frase de apresentação ao ídolo. Para vencer o medo e a timidez, resolveu entrar no camarim batendo palmas e cantando Parei na Contramão. Roberto adorou. Soltou uma gargalhada, elogiou o figurino de seu imitador e

Pulseira idêntica à que o Rei usava

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o convidou para uma sessão de fotos. “Só consegui dizer uma frase a ele: ‘Roberto, obrigado por existir. Sem você, eu não garantiria o feijão lá de casa’. “

“Vai o genérico mesmo!”

Nazário deixa o repórter e o fotógrafo na companhia de seu produtor, Isaias Cruz, e vai para o quarto se preparar para a grande transformação. Isaias conta que Nazário se tornou cover de Roberto por acaso. Havia chegado a São Paulo, vindo de Porto Alegre, para trabalhar numa rádio comunitária. A emissora acabou fechada pela

polícia federal e Nazário, desempregado, com mulher e filha para sustentar, passou a procurar trabalho pelas ruas de São Paulo. Naquela tarde, no Metrô Tatuapé, o então repórter da TV Globo Britto Júnior promovia um concurso de covers e notou a semelhança física de Nazário com o Rei. “Ele cantou de improviso Todos Estão Surdos e os caras adoraram”, lembra Cruz. Vinte dias depois, Nazário já estava no Domingão do Faustão como “cover oficial de Roberto”.

Nazário volta à sala. Ou melhor, Roberto Carlos. De blazer e sapato brancos, camiseta azul por baixo e tom de pele do rosto mais claro (ele costuma passar um pó especial na face, para “disfarçar a morenice”), pega o microfone no estilo Roberto e emenda um pot-pourri de canções. Se não fosse pela postura ereta – ele, por respeito, não imita o jeito de mancar do ídolo –, poderia se jurar que Roberto Carlos, em carne e osso, baixara naquela tarde no Belenzinho.

As crianças costumam confundi-lo com o Rei. Outro dia, no metrô, Nazário ouviu uma menina dizer para a mãe:

“Olha quem está sentado ali, mãe: o Roberto Carlos”. A mãe tratou logo de fazer a filha voltar à realidade: “Imagine, filha, o Roberto não anda de metrô. E, se entrasse em um, estaria com segurança”. “Mas olha ali, mãe, ele está com um segurança, sim!” Era Isaias, o produtor. Já os adultos nunca o confundem. “As pessoas que ligam aqui para a minha casa são sinceras: ‘Olha, Raul, já que não posso contratar o original, vai o genérico mesmo!’.” Em tempos de crise, o Roberto original que se cuide. Seu genérico irá fazer o terceiro show do ano nos Estados Unidos.

A fama de Nazário não é só a de melhor imitador de Roberto que há na praça. Dizem que apelido dado por ele “pega mais que gripe suína”.

Nazário, à paisana, anda pelas ruas do bairro do Belenzinho, em São Paulo

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Olhos à prova de lágrimas e decepçõesA força do Photoshop, que ergue e destrói coisas belas.

Por Xico Sá I Cartuns Allan Sieber

Quando você olhar para algum corpoQue não seja tão perfeito

Olhe direitoPois cada olhar contém o seu defeito

(Fernando Catatau, grupo Cidadão Instigado)

Sim, amigo da revista, no Photoshop ninguém é normal, tudo bem, até entendo seu lado, mas não me altere assim a lição de anatomia da guria, por favor, cadê o umbigo da cria da minha costela? Já procurei por todos os vãos e desvãos do corpo da mina... e nada, necas de pitibiriba, por favor, o umbiguinho de volta nas pró-ximas fotos, mesmo que coloquem nas costas, no ombro, na omoplata, no pescoço, o que não pode é uma moça tão linda desumbigada de tudo nesta vida, não acha?

Sacanagem, meu rapaz, agora como devorá-la com os olhos – o melhor dos banquetes de graça cá de casa! – se lhe falta essa protuberante metonimiazinha arredondada?

(Mulher, para mim, saiba, é parte pelo todo, sem dúvida, um umbiguinho, uma verruga, um lóbulo, uma vírgula da orelha, um nariz batatinha, o dedo vizinho maior que o dedão do pé, uma cicatriz de infância, uns defeitozinhos de nada, bem-me-quer, mal-me-quer...)

Agora você me tirou do prumo: tenho que imaginar o meu próprio objeto de desejo com peças originais e carroceria completa como ela veio ao mundo? Não seria mais fácil deixar tudo em cima, como estava, eu vi, eu garanto, frequento a mesma praia da baiana que meu coração arromba!

crônica

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Amigo, devolva o umbigo protuberante da nega, ou no mínimo um buraquinho arredondado, fruto da velha cicatriz malfeita, eu a quero inteira no site e na revista, senão vou ao Procon e imagina como vai ser bonito para a tua cara: o primeiro caso de um macho reclamando pelos defeitos de fábrica de uma deusa!

Embora ela esteja inteirinha aqui em casa, sabe como é que é, né, imagem é quase tudo, quase 100%, manja?

Logo o umbigo, em torno do qual a moça fazia as rotações e translações diárias do seu ego ensolarado de rainha da minha laje?! Aqui em casa não tem essa de “mais por fora que umbigo de vedete”, te liga! A moça é profissa, atriz e modelo, do ramo, mas é séria e da minha alta consideração e estima.

As marquinhas das vacinas, nem se fala, passastes a régua, sem consulta. Não faz ideia do valor

dessas pequenas cicatrizes. Tomara que não aterre, na próxima capa, ó mané desavisado, as covinhas do sorriso.

Lembre-se também: no meu tempo mulher tinha sa-boneteiras, as pontes sobre rios das quais falou Vinicius, sim, o poetinha safado, na sua receita de fêmea.

Só não estou mais brabo porque já me dei por vencido em capítulos mais radicais. Isso mesmo, nem vou falar que homem que é homem não sabe a diferença entre estria e celulite. Causa perdida, se liga! Certo, mais ou menos, digo, tudo bem, ela também modificou, no consórcio de plásticas, um bocado de coisas, peste!, caiu no truque, coitada, era uma chance, um trabalho, um anúncio erótico picareta... E não falemos mais nisso.

Aliás, aqui em casa, a discussão sobre o assunto é per-manente; aproveito agora que ela está cega com uma máscara facial maluca, e com duas rodelas de pepino sobre os olhos, para escrever esta carta-desabafo.

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Umbigada, again

– Você me quer bem feia para que ninguém mais me queira! – ela pula do salto para o nocaute.

– Ridículo esse pensamento, ainda bem que até teu umbigo estão esquecendo de pôr no mesmo canto, só assim compreendes os meus sermões, ingrata.

– O umbigo é meu e eu cuido disso, ninguém nem reparou que lá, no cantinho dele, não estava, só tu, disgramado ciumento até do vazio da existência.

– Se é que ainda tem umbigo mesmo, deixa eu ver, vem cá, levanta a blusa, devem ter aspirado na última lipo.

− Idiota – ela diz, rindo, levantando a blusinha com o charme de sempre.

Meu Deus, que colosso, que regalo, ê, lá em casa, será que é sonho meu Menino Jesus de Praga?

– Vou te proibir de ver meu

corpo sem ser aqui no lar doce lar, porque essa coisa de amor está é

matando minha beleza lá fora – danou-se de novo ela. – Você tem que me aceitar per-

feitinha do jeito que eles querem, poxa!

Sim, o pior é que ela adorava, com ou sem umbigo, com ou sem sinal de vacina, sair lindinha nas revistas e nos sites. Fez até publicidade e propaganda, anún-cio de varejo nos jornais de domingo, Atacadão das Telhas. Benza Deus, como ama um aparecimento!

– Agora, sim, fiquei do jeito que tu gosta! – ela veio, enxerida, com o encarte. – Gostosona de construção mesmo, rainha do andaime!

Taí, gostei da foto, quase sem retoque, só fizeram uma rechapinha no cabelo, deram mais uma alisadinha na

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minha Sonia Braga, é do jogo, mas, deixa ver, deixa eu reparar direito, quase não tem defeito...

– Nunca fui tão feia na vida, nunca saí tão horrorosa, baiana, sabia que ia amar essa desgraça, seu merda!!!

– Linda demais da conta, Nossa Senhora, pela primeira vez tive orgulho de te mostrar aos amigos da firma!

– Vai se arrombar você e todos esses baianos de merda!

– Calma, minha natureza humana, já, já arrancam teu umbigo fora de novo e usam só o teu rosto.

Sabe como é que é, né, imagem é quase tudo, quase 100%, manja?

– Quer dizer que sou tribufu, gorda, e só aproveitam sem retoque a cara?

– Não digo é mais nada.

Sim, ela tem um rosto de anjo, meio safado, mas angelical mesmo, gosto de tudo, mas com essa parte eu alucino.

Enfim, não digo é mais nada, como na minha primeira cantada, repito “se você fosse um hambúrguer seria meu X-Princesa”, chega de treta, dane-se o moço do Photoshop, você é o meu sonho, meu ideal, o resto é o seu trampo, entendo, foi mal, vou cegar de vez pro seu corpo, de agora em diante meu desejo é em braile, no paralelo, mesmo com a luz acesa, dane-se, só acredito no que amo e no que pego/esfrego, é duro entrar numa história apenas com dois olhos bem abertos à prova de lágrimas e decepções. O resto é um mundo inventado.

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Em busca das cidades imagináriasMundos paralelos criados por escritores latinos para ambientar suas tramas.

Por Cláudio Daniel | Ilustração Cynthia Gyuru

O escritor argentino Jorge Luis Borges imaginou uma cidade labiríntica construída no deserto africano, ha-bitada por imortais reduzidos à condição de trogloditas que se alimentavam de carne de serpente. Marco Flamínio Rufo, tribuno romano e narrador da história, conta a sua convivência com essa estranha tribo e a amizade que travou com um de seus integrantes, o poeta grego Homero, condenado à imortalidade e a uma existência quase animalesca após beber das águas de um misterioso rio guardado pelas muralhas da cidade sem nome. Borges descreve a arquitetura do lugar de modo sucinto, mencionando pirâmides, praças, templos e torres, detendo-se mais na descrição do labirinto: “Havia nove portas naquele porão e oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram”. Nessa cidade de pedra, que parecia “anterior aos homens, anterior à terra” e que tinha sido construída por deuses “que estavam loucos” não havia qualquer atividade econômica ou política e os homens, convertidos em feras, desprovidos de linguagem e da noção de tempo, dedicavam-se à mera sobrevivência. Esse conto, O Imortal, foi incluído no livro O Aleph (1949) e pode ser lido como uma fábula moral e metafísica que mistura erudição e ironia para abordar a solidão humana e a necessidade da morte e do esquecimento.

mirada

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A ficção de Borges é um marco na literatura latino-americana, em especial na tradição dos relatos de cidades e mundos inventados (tema que desenvolveu em diversas histórias, como Tlön, Uqbar e Orbis Tertius [Ficções, 1944]). Uma obra notável nesse gênero é Pedro Páramo (1955), do mexicano Juan Rulfo, cuja ação se passa na cidade abandonada de Comala, povoado rural situado próximo às montanhas; lendo esse romance inusitado, ficamos sabendo que o lugarejo possui um rio, uma igreja, uma área urbanizada em que ficam as casas e nada mais. O autor faz pouquíssimas alusões a cenários e ambientes nessa narrativa que é uma su-cessão de monólogos e diálogos em que personagens mortos narram, sem uma ordem cronológica linear, diferentes episódios da vida de Pedro Páramo, cujo falecimento antecipa a extinção da própria cidade.

Cem Anos de Solidão (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, obra bem conhecida pelos leitores brasileiros, também faz uma breve descrição de Macondo, “uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem

Macondo foi inspirada na cidade de Arataca, onde o autor viveu a infância e cujo significado em língua bantu é “banana” (não por acaso, uma das atividades econômicas referidas em Cem Anos de Solidão é justamente o cultivo da banana).

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de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”. Macondo foi inspirada na cidade de Arataca, onde o autor viveu a infância e cujo signifi-cado em língua bantu é “banana” (não por acaso, uma das atividades econômicas referidas em Cem Anos de Solidão é justamente o cultivo da banana).

Habitantes excluídos

O uruguaio Juan Carlos Onetti, por sua vez, é mais generoso na descrição de Santa Maria, cidade portuária que aparece em vários de seus contos e romances, como A Vida Breve (1950). Lendo esse livro fascinante, encontramos referências ao estaleiro, ao mercado, ao cemitério, a um hotel, a bares, a restaurantes, a praças e a prostíbulos por onde circula Juan María Brausen, personagem atormentado pela mono-tonia, angústia e degradação da vida cotidiana. A cidade mitológica criada por Onetti, não menos perturbadora que a Comala de Rulfo ou a Macondo de García Márquez, instiga a

curiosidade dos leitores, que podem se perguntar: “Como o escritor concebeu essa cidade? Ele desenvolveu um plano antes de começar a escrever?”. Em entrevista à Revista Bula, pouco antes de seu falecimento, em 1994, o escritor uruguaio declarou: “Uma vez fiz um plano de Santa Maria com um amigo, mas era só para movimentar melhor os personagens. Eu o perdi quando me mudei de Buenos Aires. A mim, se me ocorre escrever um livro, já tem seu lugar em Santa Maria. Porém, nunca me propus desenvolver um plano. Ou seja: nunca quis escrever uma saga. Esse é já um propósito, e eu não poderia escrever com propósitos”.

O escritor mexicano David Toscana, que publicou em 1998 o romance Santa Maria do Circo − cujo título é uma referência paródica à cidade mítica de Onetti −, adotou uma estratégia criativa bem distinta: “Imaginei o mínimo que uma cidade possa ter no México: praça, igreja e algumas poucas casas. A imaginação me suge-riu depois que na praça devia existir a estátua de um herói desconhecido. Perguntei a mim mesmo se queria algum outro edifício, como escola, hospital, comércio ou fábrica, e disse que não. Preferi manter tudo o mais

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“Imaginei o mínimo que uma cidade possa ter no México: praça, igreja e algumas poucas casas. A imaginação me sugeriu depois que na praça devia existir a estátua de um herói desconhecido.” (David Toscana)

simples possível. No primeiro romance, ocupei-me de uma cidade que ficou abandonada; agora quis o processo inverso: uma cidade abandonada é povoada”.

O romance de Toscana conta a história de um grupo de artistas circenses que, ao chegar a uma cidade deserta, similar à Comala, decide permanecer ali e

fundar outra comunidade, batizada de Santa Maria do Circo. A trupe é composta de figuras bizarras

como Barbarela, a mulher barbada; Natanael, o anão; Hércules, o homem forte; Mandrake,

o mágico; Fléxor, o contorcionista; e Balo, o homem-bala, que decidem

escolher novos ofícios,

mais úteis à construção do novo mundo. Sendo assim, cada membro do grupo escreve em pedaços de papel as ocupações, que depois são misturadas na cartola do mágico e sorteadas ao acaso. Barbarela torna-se médica; Balo, general; Natanael, padre; e Hércules, prostituta.

O fracasso de Santa Maria do Circo é inevitável, devido à escassez de recursos do povoado e à inviabilidade de qualquer ação produtiva. Após inúmeras peripé-cias, similares a farsas circenses, os artistas resolvem abandonar a cidade acompanhando a caravana de outra companhia que passava pelo local. O dono do circo, Don Estevão, porém, recusa-se a levar o anão, a mulher barbada e o homem forte, que são abandonados à própria sorte. Santa Maria do Circo, assim como as cidades criadas por Borges, Onetti, García Márquez e Rulfo, pode ser entendida como uma trágica alegoria da América Latina, que no dizer de Toscana “exclui a maioria de seus habitantes”.

Cláudio Daniel é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros, Fera Bifronte (Lumme, 2009).

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A história que ninguém pintouContratados por monarcas, artistas que retrataram episódios históricos nunca foram fiéis aos fatos.

Por Mariana Sgarioni | Infográfico Luciano Veronezi

Se formos eleger símbolos da virilidade e do orgulho nacional, é bem possível que dom Pedro I encabece a lista. A imagem que temos dele – e que foi cuidadosamente esculpida com o passar dos anos – é a de um homem valente, que rompeu com as tradições de Portugal em nome da soberania brasileira e, do alto de seu cavalo majestoso, desembainhou uma espada e bradou: “Independência ou morte!”. Essa cena – retratada no quadro pintado por Pedro Américo, concluído em 1888 – aumentou ainda mais o poder do monarca no imaginário público.

Agora, pense em quanto seu mundo poderia cair se esse episódio fosse mostrado como algo mais ou me-nos assim: dom Pedro cansado, suado, com mais três ou quatro gatos pingados subindo a Serra do Mar no lombo de mulas, trajando roupas confortáveis, porém sujas de barro. Nada de espada, nada de grito, nada de soldados imponentes. Nada de glamour.

Pois é. Foi assim que de fato ocorreu a Independência do Brasil. Algo muito, mas muito distante do que é suge-rido pela obra de Pedro Américo. Mas, antes de achar que tudo neste país é mesmo uma piada, é importante lembrar que a fantasia não é privilégio brasileiro. Em todos os países, a arte que visa retratar a história é feita de maneira figurativa, com o objetivo de impactar o espectador. Pouca coisa se parece com a realidade. Ou você acredita que Napoleão Bonaparte era exatamente daquele jeito, bonito e altivo, como aparece nas telas?

reportagem

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“Luís XIV, por exemplo, empregou pin-tores para se promover, mas Napo-leão foi o primeiro na história moderna a perceber o poder ilimitado da propaganda, contratando artistas para melhorar sua imagem”, diz Wayne Hanley, autor de The Genesis of Napoleonic Propaganda, 1796 to 1799 [A gênese da propaganda napoleônica, 1796 a 1799]. A tela O Primeiro Cônsul Cruzando os Alpes no Passo de Grand-Saint-Bernard, pin-tada por Jacques-Louis David em 1800, em que o líder aparece heroico, montado em um cavalo empinado, remete a uma realidade bem mais trivial. Napoleão cruzou triunfalmente o Passo, mas montado em um burro e vestindo um casaco verde surrado.

Arte versus realidade

Pedro Américo era um artista brasileiro, reconhecido, que vivia em Florença, na Itália, quando se ofereceu para executar o trabalho, em 1886, numa viagem ao

Brasil. Acabou sendo convidado pelo governo brasileiro para pintar a celebração do episódio da independência. Na época, dom Pedro II e políticos paulistas estavam empenhados na construção de um monumento no Ipiranga, em São Paulo, que demarcasse o lugar da proclamação de 7 de setembro de 1822. O edifício passou a abrigar, desde 1894, o Museu Paulista.

Ao realizar sua obra, o artista se baseou nos princípios da pintura histórica e em uma pesquisa. Para chegar às soluções plásticas que considerou mais adequadas, não hesitou em usar a imaginação. Até porque, con-venhamos, no ano da independência ele nem sequer tinha nascido. No pequeno livro O Brado do Ypiranga. Algumas Palavras Acerca do Fato Histórico e do Quadro que o Comemora, publicado em 1888, ele justifica suas opções estéticas.

“O quadro é uma produção artística. Pedro Américo dizia: ‘A realidade inspira, mas não escraviza o pintor’ ”, afirma Cecília Helena de Salles Oliveira, diretora do Museu

Independência ou Morte, 1888, de Pedro Américo, obra do acervo do Museu Paulista da Universidade

de São Paulo | reprodução fotográfica: Hélio Nobre

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Paulista e professora titular de história da Universidade de São Paulo (USP). Ela lembra outro célebre quadro feito por ele, A Batalha do Avaí, que representou o epi-sódio ocorrido durante a Guerra do Paraguai, em 1868.

Ao pintar a batalha, Pedro Américo procurou valorizar as vitórias do exército brasileiro, mas o majestoso mo-vimento de tropas está longe de ter sido da maneira apresentada. O mais curioso é que, assim como em todas as suas obras, incluindo Independência ou Morte, o pintor se retratou participando da batalha – algo que evidentemente não aconteceu.

Para além das telas

Sem dúvida, quadros históricos ajudam – e muito – a criar nosso imaginário sobre os fatos. No caso da In-dependência do Brasil, por exemplo, a representação feita pelo pintor se transformou na visão mais conhe-cida do episódio de 1822. Não se trata de imprecisão histórica. Entretanto, “não há nenhum registro escrito da declaração da independência. Muito menos de um momento em que dom Pedro tenha desembainhado a espada e feito a declaração”, diz Cecília.

Segundo ela, o que existem são documentos que mostram a viagem de dom Pedro a São Paulo com o objetivo de consolidar o apoio dos políticos paulistas para uma possível separação de Portugal.

E de onde surgiu o 7 de setembro? Ele foi estabeleci-do no século XIX, com a construção do Monumento do Ypiranga e a inauguração do Museu Paulista, em 1895, e com a primeira exibição pública da tela de Pedro Américo. A partir daí, a data passou a ser uma comemoração cívica – antes, nem feriado era.

Da mesma maneira, o Hino Nacional, tal qual cantamos hoje, trocou de letra, por razões políticas, duas vezes até ser oficializado em 1922, por ocasião, justa-mente, do centenário da independência. Afinal, havia de se encontrar algum sentido para o imortal verso: “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...”.

Não foi bem assimConheça algumas curiosidades do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo.

Dom Pedro estava acompanhado de uma pequena comitiva – e não de todo esse batalhão. Eles montavam mulas, que eram mais eficazes para subir a serra, e não imponentes cavalos.

Os soldados da tela, chamados Dragões da Indepen-dência, estão fardados com roupas que não existiam na época. Aliás, nem os dragões existiam – a designação e as fardas surgiram, como o próprio nome diz, depois da independência.

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Não há registro escrito de que o grito tenha acontecido com toda essa sole-nidade. O quadro engrandece a figura de dom Pedro como se a independência fosse ato de sua vontade.

Esta pequena casa servia de pouso para as tropas que passavam pelo caminho que ligava São Paulo a Santos. Chama-se hoje Casa do Grito só porque aparece na tela, mas, na realidade, sua construção data de meados do século XIX – ou seja, não fazia parte do cenário da independência.

Este soldado de chapéu preto e óculos é o próprio Pedro Américo – que nem era nascido no dia do grito.

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Todas as coisas e euO homem que ergueu um castelo no sertão pernambucano.

Por Luciana Veras | Fotos Beto Figueiroa

Em Pesqueira, no fim do agreste pernambucano, existe uma construção de cujo teto despontam uma cruz, uma estrela de David e uma lua crescente com uma estrela. Os símbolos das três religiões abraâmicas – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo – adornam um castelo que pode ser avistado ao longe, da BR-232. A 200 quilômetros do Recife, esse monumento erguido ao sincretismo religioso tornou-se, em razão de seus traços arquitetônicos originais, uma referência na região. Edvonaldo Bezerra Torres, 57, três filhos, bancário, empresário, marido da comerciante Kaline, 30, é o responsável pela construção. Ele é o homem do castelo alto.

Sua formação acadêmica passou por direito, matemática e administração. A arquitetura veio por impulso. Ou destino. “Meu sonho era ser arquiteto. Quando adolescente, tinha fixação por arquitetura. Ainda pretendo fazer”, diz Torres, gerente licenciado da Caixa Econômica Federal. Na cidade onde nasceu, ele é conhecido como “o homem da Caixa, o homem das lojas e o homem do castelo”. E sua casa divide com o Santuário da Graça − erigido em um local da Serra do Ororubá, onde, há nove décadas, uma criança teria visto Nossa Senhora – o título de atração turística municipal.

perfil

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Compreensível e esperado, até. O castelo é imponente. Não por acaso, tem 18 torres. “Conheço Barcelona. Na catedral da Sagrada Família, Antoni Gaudí projetou 18 torres e não conseguiu fazê-las. Aqui, são 18 minaretes com o simbolismo de Gaudí: 12 representam os apóstolos, 4 são os evangelistas, um é Maria e o outro é o próprio Cristo”, explica o aprendiz de arquiteto e engenheiro. Ante os detalhes, os ornamentos e a posição ocupada

pelos minaretes, é impossível não lembrar do arrojado arquiteto catalão, morto antes de finalizar o projeto da catedral. Torres aquiesce: o estilo de Gaudí lhe serviu de norte, assim como os escritos de Fiódor Dostoiévski e Franz Kafka e os ensinamentos católicos da adolescência.

Reforma sem fim

Sua bagagem plural se reflete antes mesmo do acolhe-dor jardim no primeiro dos seis lotes em que se alicerça o castelo. No portão, um brasão de César; na área verde, duas cascatas, uma ponte e cerca de cem árvores – talvez

só ali um pinheiro ladeie um mandacaru, exemplo de tolerância entre vegetações tão díspares. Ao redor da piscina, 12 estátuas de leões alados. “Cristo foi descrito como um animal pelos evangelistas. Era o Cordeiro de Deus e também o Leão de Judá. Aqui, os leões estão posicionados como Jesus e os apóstolos na Santa Ceia”, elucida, com sua voz grave e postura reservada. A célebre imagem da última refeição é recorrente no

castelo. As asas também: das mil estátuas existentes, boa parte é alada. “Pensei nas imagens que retratavam a liberdade logo após a Revolução Francesa”, conta Torres.

Ele mora em outra casa, que construiu há 20 anos. São 300 m² em um único pavimento. “Há mais ou menos cinco anos”, recorda, começou a levantar o castelo, fincado em uma estrutura independente da residência. Concreto, cimento, gesso, vidro, mármore e poliuretano foram os ma-teriais usados para cinzelar 2 mil m² de área construída.

Esse monumento erguido ao sincretismo religioso tornou-se uma referência na região. Edvonaldo Bezerra Torres é o responsável pela construção. Ele é o homem do castelo alto.

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Os vitrais coloridos do castelo

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Intrigante, e ao mesmo tempo con-vidativo, o castelo se espalha por 6 pisos e 25 cômodos. Serão para uso residencial, pois Torres pretende ali se instalar. Quando? “Quando terminar esta reforma sem fim. Estou cansado de obras. Mas sei que não terminou. Às vezes, bate um arrependimento...”

Por que construir? “Porque eu queria, penso em doar ao município. Pode ser um museu ou servir para outras coisas”, responde. Há certa contradição nele: a certeza de uma incompreensão generalizada versus o desejo de elaborar mais um castelo (“se eu tiver as outras variáveis da equação, que são tempo, dinheiro

e saúde, quem sabe?”); e o cansaço por um desafio interminável versus a felicidade por deixar um legado com pedaços dos países que um dia conheceu. Estão lá os anjos barrocos e as bandeiras do Palácio de Versalhes, mandalas vistas na Itália, símbolos do antigo Egito e colunas romanas em estilo jônico. E muito dinheiro. “Não tenho ideia de quanto gastei. Nunca contei. Mas acho que, se hoje tenho 12 lojas, poderia ter o dobro se não tivesse inventado isso”, expõe.

Ousado e discreto

Invenção. Em Pesqueira, com 60 mil habitantes, um deles fabricou um monumento em que todas as crenças são permitidas e as estátuas forjam uma harmonia própria.

Excêntrico ou louco? Nem ele mesmo sabe. “Tem gente que vem tirar fotos. Como não me conhecem, começam a me perguntar, a dizer que é uma loucura alguém gastar dinheiro com isso. Quando falam bem, às vezes me iden-tifico. Quando falam mal, na maioria das vezes concordo. Acho que sou um pouco doido mesmo”, admite.

Assim como o escritor visionário de O Homem do Castelo Alto, clássico da ficção científica concebido por Philip K. Dick em 1962, Torres é ousado por transformar sua realidade em uma fábula cotidiana e discreto por se manter quase à margem da própria obra. Na hora da despedida, um carro chega, alguém saca o celular. Outra foto. Ele fecha o portão e se recolhe, em silêncio. Mas o castelo, inesquecível, fala por si.

Concreto, cimento, gesso, vidro, mármore e poliuretano foram os materiais usados para cinzelar 2 mil m² de área construída. Intrigante, e ao mesmo tempo convidativo, o castelo se espalha por 6 pisos e 25 cômodos.

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