construção histórico-filosófica do conceito de infância e sua educação

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Resumo O presente trabalho objetiva discutir e analisar a influncia da educao escolar na formao e construo da identidade sociocultural da criana, de forma que possibilite a reflexo sobre as varias dimenses da educao infantil, as aes, a prticas e os discursos institudos pelos profissionais que atuam nessa educao especifica. Prope em um primeiro momento, uma discusso sobre o pressuposto histrico-filosfico da infncia e os seus diversos rostos e suas respectivas formas educao. Essa discusso nos remete necessidade de pesquisas na rea que possam aprofundar e elucidar as questes da infncia e as suas transformaes, principalmente no que diz respeito s concepes da condio da criana enquanto ser social, sujeito ativo, uma criana concreta que ocupa um lugar na histria atravs de relaes sociais que se estruturam a cada dia. Dessa forma, pensar a criana na histria significa consider-la como sujeito histrico, e isso requer compreender o que se entende por sujeito histrico. Para tanto, importante perceber que as crianas concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da histria e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes momentos.

Palavras-chaves: Educao, infncia, Histria

INTRODUO

CAPITULO I INFNCIA E EDUCAO INFANTIL: ASPECTOS HISTRICO, FILOSFICO. 1.1 1.2 1.3 Introduo. A infncia: uma compreenso histrico-filosfica. Histria da infncia: reflexes acerca de algumas concepes correntes.

1.4 A representao imagtica da criana nos vrios processos histricos sociais e sua identidade ameaada pela cultura globalizada

CAPITULO I INFNCIA E EDUCAO INFANTIL: ASPECTOS HISTRICO, FILOSFICO.

Felicidade a gente poder olhar para trs e encontrar esse vago mundo em sol menor que se chama infncia.

Adivinhao da vida. Bem sei que com muita gente, acontece essa coisa estranha: torna-se adulto sem ter sido criana. Ou, o que pior: ter sido criana sem ter tido infncia. A infncia para mim no apenas e simplesmente uma idade, mas justamente aquele mundo de pequeninas coisas que tornam inconfundvel na lembrana um tempo de alegria, um tempo em que conhecemos a felicidade sem ao menos nos apercebemos dela. JG de Araujo Jorge

1.1

INTRODUO

Foi abordado nesse capitulo a compreenso de infncia segundo as perspectivas histricafilosfica. Comeam por fazer algumas indagaes, quais sejam: O que infncia? O que ser criana? Que compreenso tem de infncia? Infncia e criana significam as mesmas coisas? Como os filsofos clssicos e medievais compreendiam a infncia? Que compreenso se tem da infncia hoje?Mudou alguma coisa, ou tudo permanece como antigamente? No se tem todas as respostas para esses questionamentos, mais pode discutir um pouco a compreenso de infncia em algum momento da filosofia e da historia. Pode se refletir sobre algumas idias dohistoriador Philippe Aris, que, atravs de pesquisa realizada utilizando como fonte historiogrfica a iconografia religiosa e leiga da Idade Mdia, aponta que a construo do sentimento de amor pelas crianas foi, durante muitos sculos, despercebido, sufocado, chegando mesmo a no existir. Sua tese indica o surgimento da noo de infncia apenas no sculo XVII, junto com as transformaes que comeam a se processar na transio para a sociedade moderna. Na histria da construo do sentimento de infncia, retratada pelo autor, percebese que a trajetria da criana marcada pela discriminao, marginalizao e explorao. Tais premissas podem ter seu contraponto atravs de autores como Moyss Kuhlmann Jr., Jacques Glis, Daniele Alexandre- Bidn e Pierre Rich, que apontam os limites dessa tese e encaminham uma discusso que revela a existncia social da criana, dentro de espaos sociais como a famlia e a escola, antes mesmo do sculo XVII. Discuto, partindo das reflexes dos autores revisados, a construo de uma concepo de infncia que ressalta a importncia da criana nas relaes sociais ainda na Idade Mdia.

1.2

A INFNCIA: UMA COMPREENSO HISTRICO-FILOSFICA

Observamos que, na histria da filosofia, a criana no tinha um lugar. Embora traga aqui uma discusso do pensamento platnico sobre criana, importante lembrar que Plato no escreveu uma obra especifica para as crianas e sua educao. Infncia, criana no eram temas de discusso desse filosofo. Em vrios de seus dilogos, vimos discusses sobre justia,

amor, conhecimento, dever etc. As poucas referncias em relao infncia ou educao estavam relacionadas com o projeto da cidade idealizada- a polis. Na obra A Republica, Plato (428/27-347 a.C.), em dialogo com Scrates, Glauco, Polemarco, Adimanto etc., no discutem especificamente a respeito de criana/infncia. Fala sobre a construo de uma cidade. Nessa obra manifestada uma preocupao com a constituio da polis, como se construiria essa cidade idealizada por Scrates. O que se discute o conceito de justia. O que era justia, qual a sua essncia? O que era ser injusto ou justo? Nessa discusso, eles comeam a ponderar como seria uma cidade com governantes justos. Para pensar em uma cidade justa, uma polis com guardio justo, era preciso pensar em educao das crianas. No era uma preocupao com a criana em si, com as caractersticas prprias da infncia, mais uma preocupao poltica, isto com o cidado que governaria a cidade. Quando procuramos a criana nesses estudos, a encontramos como uma preparao para atuar na polis, na cidade. Como se daria a formao dos guardies dessa cidade? Esse era o questionamento de Scrates e Glauco. O que seria necessrio para educar essas crianas de modo que elas se tornassem bons guardies da polis? Como estaria sendo moldada a natureza da criana para esse projeto poltico?

1.3

HISTRIA DA INFANCIA: REFLEXES ACERCA DE ALGUMAS CONCEPES CORRENTES.

Resgatar os antecedentes histricos da infncia dar voz a diferentes documentos hoje pesquisados e que em determinados perodos testemunharam o papel da criana na sociedade. Reis, padres, professores, pais, mes, vizinhos, gente rica, gente pobre so portavozes da construo da infncia no passado e continuam a ser no presente. Ou seja, a concepo de criana vivida e apreendida a partir das construes feitas pelos adultos, nas quais, muitas vezes, a criana no pode discursar defender-se ou falar sobre si mesma. Se pudssemos dar voz s crianas que esto nas casas, ruas,instituies,buscando a construo de sua prpria histria, possvel que elas nos relatem situaes que envolvem sentimentos e sensaes diferentes da perspectiva do adulto. Sabemos que a histria da criana registrada a partir do olhar dos adultos, pois a criana no pode registrar sua prpria histria. Se fosse o caso de darmos voz a essas crianas, certamente ouviramos histrias de crianas relatando momentos de alegria, encontrados no amor da famlia, no direito respeitado, nos espaos para brincadeiras, enfim, nos encantos de sua vida, a partir da vivncia de situaes agradveis e felizes. Por outro lado, ouviramos, tambm, histrias de incompreenses sofridas, tristezas, atos de injustia, violncia fsica e moral, desamparo, enfim, o desencanto com a vida a que um grupo grande de crianas est exposto. Diante disso, temos uma indicao de que a infncia no acontece da mesma forma para todas as crianas e as histrias se diversificam a cada experincia. A viso sobre a infncia, atualmente, como um perodo especfico pelo qual todos passam uma construo definida no momento presente. A questo de que todos os indivduos nascem beb e ser crianas at um determinado perodo, independente da condio vivida,

inegvel, entretanto, tal premissa nem sempre foi percebida dessa maneira e por diversos perodos se questionou qual era o tempo da infncia e quem era a criana. O pesquisador francs Philippe Aris, em sua obra Histria Social da Criana e da Famlia, publicada em 1960, vai apontar que o conceito ou a idia que se tem da infncia foi sendo historicamente construdo e que a criana, por muito tempo, no foi vista como um ser em desenvolvimento, com caractersticas e necessidades prprias, e sim como um adulto em miniatura. Nesse sentido, a histria da infncia surge como possibilidade para muitas reflexes sobre a forma como entendemos e nos relacionamos atualmente com a criana. Assim, gostaramos de discutir a respeito da construo do conceito de infncia a partir de duas perspectivas: a de Philippe Aris, de que o sentimento da infncia teria surgido apenas na Modernidade, e dos apontamentos tericos de Moyss Kuhlmann Jr., Jacques Glis, Daniele Alexandre-Bidn e Pierre Rich, que, em suas pesquisas, indicam a presena de uma preocupao com as crianas em perodos anteriores, como a Idade Mdia. A discusso sobre a importncia e o surgimento da infncia est presente em pesquisas no campo da Histria, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Biologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras, sendo possvel o entrelaamento de diferentes olhares e autores, entre eles, FARIA (1999), DEL PRIORE (1996-1999), KISHIMOTO (1988), FREITAS (1997), BADINTER (1985), POSTMAN (1999), MONARCA (2001), ROSEMBERG (1995), GAGNEBIN (1997), ABRAMOVICH (1983), CORAZZA (2000) e tantos outros que vm contribuindo para enriquecer o conhecimento sobre a questo. Justificasse, portanto, consider-la como essencial para todos ns que trabalhamos com crianas em diversas instituies de atendimento. ARIS considerado o precursor da histria da infncia, pois foi atravs de estudos realizados por ele com variadas fontes, como a iconografia religiosa e leiga, dirios de famlia, dossis familiares, cartas, registros de batismo e inscries em tmulos, que surgem os primeiros trabalhos na rea de histria, apontando para o lugar e a representao da criana na sociedade dos sculos XII ao XVII. Baseando-se na histria das mentalidades2, ARIS (1981, p. 26) afirma:

(...) sempre, quer ou no, uma histria comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado . com, a condio de, a seguir, considerar o modelo novo, construdo com o auxlio dos dados do

passado, como uma segunda origem, e descer novamente at o presente, modificando a imagem ingnua que tnhamos no incio.

A histria da criana contada por Philippe ries no perodo de grandes transformaes histricas, no caso, do sculo XII ao XVII, foco de localizao de sua pesquisa, a infncia tomou diferentes conotaes dentro do imaginrio do homem em todos os aspectos sociais, culturais, polticos e econmicos, de acordo com cada perodo histrico. A criana seria vista como substituvel, como ser produtivo que tinha uma funo utilitria para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida na vida adulta e tornava-se til na economia familiar, realizando tarefas, imitando seus pais e suas mes, o acompanhado em seus ofcios, cumprindo, assim, seu papel perante a coletividade.Com relao s idades da vida humana, a pesquisa de ARIS aponta que a forma de representar a cronologia humana passou por vrias mudanas, indicando diferentes formas de representar esses perodos. Tais representaes utilizariam principalmente os elementos da natureza, estudo dos astros, aspectos das crenas populares, fenmenos naturais e sobrenaturais, os quais faziam parte de um contexto governado pelas leis da teologia, enfatizando uma viso mstica. Dessa forma, as representaes da idade do homem pareciam abstratas, alm disso, muitos morriam antes de percorrer todos os ciclos da vida. No caso da infncia propriamente dita, o autor, partindo de relatos e textos dos sculos XII ao XVIII, demonstra que as pessoas definiam a idade da criana como... A primeira idade a infncia que planta os dente, e essa idade comeam quando nasce e dura at os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce chamado de enfant (criana), que quer dizer no falante, pois nessa idade a pessoa no pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras.... (ARIS, 1981, p.36). Nessa perspectiva, a fase da infncia seria caracterizada pela ausncia da fala e de comportamentos esperados, considerados como manifestaes .irracionais.. A questo da ausncia da racionalidade tambm apontada por PLATO, SANTO AGOSTINHO e DESCARTES (GANEBIN, 1997). Nesse sentido, a infncia se contrape vida adulta, pois os comportamentos considerados .racionais., ou providos da razo, seriam encontrados apenas no indivduo adulto, identificando, assim, o adulto como o homem que pensa, raciocina e age, com capacidade para alterar o mundo que o cerca; tal capacidade no seria possvel s crianas. Observa-se que a passagem da vida infantil para a vida adulta seria uma condio a ser superada: .... a passagem da criana pela famlia e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razo de forar a memria e tocar a sensibilidade.... (ARIS, 1981, p. 10). A infncia nesse contexto seria comparada

velhice, pois se, de um lado, temos a infncia constituda pela falta de razo, por outro, teramos a velhice marcada pela senilidade... Porque as pessoas velhas j no tm os sentidos to bons como j tiveram, e caducam em sua velhice (...) o velho est sempre tossindo, escarrando e sujando.... (ARIS, 1981, p. 37). As demais idades, no caso, a juventude e a vida adulta, caracterizar-se-iam pela sua fora, virilidade e principalmente pelas funes produtivas dentro da vida social e coletiva. Entende-se que foi uma poca voltada ao poder da juventude. Considerando essa questo, percebemos que, ainda hoje, na nossa sociedade, essa situao recorrente, medida que h uma nfase na valorizao do indivduo produtivo, excluindo-se crianas e idosos de diversos setores e espaos sociais. Assim, a histria da criana contada por ARIS, destaca que as crianas foram tratadas como adultos em miniatura: na sua maneira de vestir-se, na participao ativa em reunies, festas e danas. Os adultos se relacionavam com as crianas sem discriminaes, falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras, todos os tipos de assuntos eram discutidos na sua frente, inclusive a participao em jogos sexuais. Isto ocorria porque no acreditavam na possibilidade da existncia de uma inocncia pueril, ou na diferena de caractersticas entre adultos e crianas: .... no mundo das frmulas romnticas, e at o fim do sculo XIII, no existem crianas caracterizadas por uma expresso particular, e sim homens de tamanho reduzido.... (ARIS, 1981, p. 51). Dessa forma, as crianas eram submetidas e preparadas para suas funes dentro da organizao social. O desenvolvimento das suas capacidades se d a partir das relaes que mantm com os mais velhos. Portanto, percebe-se uma distncia da idade adulta e da infncia em perspectiva cronolgica e de desenvolvimento biolgico, pois a infncia retratada pelas afinidades que o adulto estabelece com a criana, ou seja, tudo era permitido, realizado e discutido na sua presena. O autor destaca, ainda, que foram sculos de altos ndices de mortalidade e de prticas de infanticdio. As crianas eram jogadas fora e substitudas por outras sem sentimentos, na inteno de conseguir um espcime melhor, mais saudvel, mais forte que correspondesse s expectativas dos pais e de uma sociedade que estava organizada em torno dessa perspectiva utilitria da infncia. O sentimento de amor materno no existia, segundo o autor, como uma referncia afetividade. A famlia era social e no sentimental. Nessa passagem, possvel apreender tal idia: ....uma vizinha, mulher de um relator, tranqilizar assim uma mulher inquieta, me de cinco .pestes., e que acabara de dar luz: Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu ters perdido a metade, e quem sabe todos..... (ARIS, 1981, p. 56). Assim, as crianas sadias eram mantidas por questes de necessidade, mas a mortalidade tambm era algo aceito com bastante naturalidade. Outra caracterstica da poca era entregar a criana para que outra famlia a educasse. O retorno para casa se dava aos sete anos, se sobrevivesse. Nesta idade, estaria apta para ser inserida na vida da famlia e no trabalho.

Nesse contexto, as mudanas com relao ao cuidado com a criana, s vm ocorrer mais tarde, no sculo XVII, com a interferncia dos poderes pblicos e com a preocupao da Igreja em no aceitar passivamente o infanticdio, antes secretamente tolerado. Preservar e cuidar das crianas seriam um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres, no caso, as amas e parteiras, que agiriam como protetoras dos bebs, criando uma nova concepo sobre a manuteno da vida infantil,... Como se a conscincia comum s ento descobrisse que a alma da criana tambm era imortal. certo que essa importncia dada personalidade da criana se ligava a uma cristianizao mais profunda dos costumes.... (ARIS, 1981, p. 61). Dessa forma, surgiram medidas para salvar as crianas. As condies de higiene foram melhoradas e a preocupao com a sade das crianas fez com que os pais no aceitassem perd-las com naturalidade. No sculo XIV, devido ao grande movimento da religiosidade crist, surge a criana mstica ou criana anjo; ....essa imagem da criana associada ao Menino Jesus ou Virgem Maria, causa consternao, ternura nas pessoas..(OLIVEIRA, 1999, p. 22). A representao da criana mstica, aos poucos, vai se transformando, assim como as relaes familiares. A mudana cultural, influenciada por todas as transformaes sociais, polticas e econmicas que a sociedade vem sofrendo, aponta para mudanas no interior da famlia e das relaes estabelecidas entre pais e filhos. A criana passa a ser educada pela prpria famlia, o que fez com que se despertasse um novo sentimento por ela. ARIS caracteriza esse momento como o surgimento do .sentimento de infncia., que ser constitudo por dois momentos, chamados por ele de paparicao e apego.A paparicao seria um sentimento despertado pela beleza, ingenuidade e graciosidade da criana. E isto fez com que os adultos se aproximassem cada vez mais dos filhos. Assim, os gracejos das crianas eram mostrados a outros adultos, fazendo da criana uma espcie de distrao, tornando-se .bichinhos de estimao., como cita ARIS (1981, p. 68): ....ela fala de um modo engraado: e titota, tetita y totata..... E (.). Eu a amo muito. (...) ela faz cem pequenas coisinhas: faz carinhos, bate, faz o sinal da cruz, pede desculpas, faz reverncia, beija a mo, sacode os ombros, dana, agrada, segura o queixo: enfim, ela bonita em tudo a que faz. Distraio-me com ela horas a fio... Por essa necessidade de manter uma pessoa provida de tanta beleza e graa, surgem medidas para salv-la e garantir sua sobrevivncia. As condies de higiene foram melhoradas e a preocupao com a sade das crianas fez com os pais no aceitassem perder seus filhos com naturalidade e, os que perdiam, aceitavam como sendo a vontade de Deus, segundo a orientao religiosa da poca.Este sentimento, despertado primeiramente nas mulheres, no era compartilhado por todas as pessoas; algumas ficavam irritadas com a nova forma de tratar as crianas. ARIS cita, em suas referncias, a hostilidade de MONTAIGNE com o novo comportamento adotado: ... No posso conceber essa paixo que faz com as pessoas beijem as crianas recm-nascidas, que no tm ainda movimento na alma, nem

forma reconhecvel no corpo pela qual se possam tornar amveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente.... (MONTAIGNE3 , apud ARIS, 1981, p. 159). O sentimento de apego surge a partir do sculo XVII, como uma manifestao da sociedade contra a paparicao da criana, e prope separ-la do adulto para educLa nos costumes e na disciplina, dentro de uma viso mais racional. Assim, foi dentro desse contexto moral que a educao das crianas foi inspirada, atravs do posicionamento de moralistas e educadores e, principalmente, com o surgimento da famlia nuclear gerada dentro dos padres da cria: o modelo de famlia conservadora, smbolo da continuidade parental e patriarcal que marca a relao pai, me e criana. A preocupao da famlia com a educao da criana fez com que mudanas ocorressem e os pais comeassem, ento, a encarregar-se de seus filhos. Conseqentemente, houve a necessidade da imposio de regras e normas na nova educao e a formao de uma criana melhor doutrinada atendendo nova sociedade que emergia. Tal concepo de indivduo que aparece faz com que a criana seja alvo do controle familiar ou do grupo social em que ela est inserida. Com o surgimento desses. Novo homem., .moderno., aparecem tambm as primeiras instituies educacionais, permitindo a concepo de que os adultos compreenderam a particularidade da infncia e a importncia tanto moral como social emetdica das crianas em instituies especiais, adaptadas a essas finalidades.... (ARIS,1981, p. 193). Com a evoluo nas relaes sociais que se estabelecem na Idade Moderna, a criana passa a ter um papel central nas preocupaes da famlia e da sociedade. A nova percepo e organizao social fizeram com que os laos entre adultos e crianas, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criana comea a ser vista como indivduo social, dentro da coletividade, e a famlia tem grande preocupao com sua sade e sua educao. Tais elementos so fatores imprescindveis para a mudana de toda a relao social. Um olhar diferente sobre a infncia de Aris No podemos negar a contribuio de Phillipe ARIS histria da criana e a indicao de que ela s aparece na Idade Moderna, no entanto, contrapondo-se a essa proposio, Moyss KUHLMANN JR., em sua obra Infncia e Educao Infantil:

uma abordagem histrica, referenciada por Pierre RICH e Daniele ALEXANDREBIDON, alm de Jacques GLIS, aponta novas re-interpretaes em suas pesquisas procurando a infncia em perodos anteriores. Esses autores, dando voz a diferentes documentos histricos, consideram que a percepo da infncia pelos adultos existia em idades mais remotas, ou seja, havia a preocupao com a sobrevivncia da criana, com a sua educao, sua religiosidade, os cuidados com o seu corpo, com sua alimentao, enfim, com uma poca de aprendizagens, com brinquedos, roupas e construo de mveis e objetos apropriados criana. Esse cruzamento de olhares nos leva a pensar em outras perspectivas sobre a concepo da infncia. KUHLMANN JR. (1998, p. 22) nos d pistas para compreendermos o perodo quando ele diz: .O sentimento de infncia no seria inexistente em tempos antigos ou na Idade Mdia, como estudos posteriores mostraram. Em livros escritos pelos historiadores Pierre Rich e Daniele Alexandre-Bidon (...), fartamente ilustrados com pinturas e objetos, arrolam-se os mais variados testemunhos da existncia de um sentimento da especificidade da infncia naquela poca.. KUHLMANN JR. salienta que a construo da infncia de ARIS uma percepo generalizante e linear, pois sua pesquisa fundamenta-se em fontes de famlias abastadas e o historiador francs pressupe que o sentimento do amor pelas crianas surge primeiramente no interior dessas famlias, principalmente a partir da particularizao da educao de filhos homens. Ficaram margem as fontes histricas populares, com poucos registros da sua infncia, devido precariedade das condies econmicas. Mesmo em abordagens que tomam a infncia em sua referncia etimolgica, como os sem-voz, sugerindo uma certa identidade com as perspectivas da histria vista de baixo, a histria dos vencidos, essa viso monoltica permanece e mantm um preconceito em relao s classes subalternas, desconsiderando a sua presena interior nas relaes sociais. Embora reconhecendo o papel preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as fontes disponveis, como, por exemplo, o dirio de Lus XIII, utilizado por Aris, geralmente favorecem a interpretao de que essas camadas sociais teriam monopolizado a conduo do processo de promoo do respeito criana. (KUHLMANN JR, 1998, p. 24). Neste sentindo, percebe-se que a histria apontada por ARIS uma histria

de meninos ricos, confirmando uma educao diferenciada s duas infncias, da criana rica para a criana pobre. Por um lado, temos a criana rica, evidenciada principalmente na particularizao da educao de meninos, enclausurados num espao ntimo com sua famlia, ocupados com aprendizagens para a vida social, com regras de etiqueta e de moralidade que deveriam saber e seguir, bem como a aprendizagem de msica, dana, leitura e a utilizao de roupas adequadas s caractersticas da criana. Temos tambm os chamados. Precoces. ou .prodgios. por uma elite que acelerava o desenvolvimento de seus filhos homens, para fazer demonstraes de seus dotes. Por outro lado, possvel inferir a existncia da infncia pobre percebida nas crianas do povo, filhos de camponeses e arteses, vivendo em espaos compartilhados com todos, participando das conversas com os adultos, nas praas com seus folguedos infantis, nas reunies noturnas, sem modos e talvez vestidas como adultos. Esta caracterizao das crianas do povo como indivduos sem modos, livres, com comportamentos inadequados, deve-se ao fato de que o conceito de pudor e vergonha so valores que foram sendo construdos a partir das relaes das famlias abastadas, sendo uma relao que se constri verticalmente das classes altas para as baixas. Todavia, isso no quer dizer que o sentimento ou a educao, mesmo informal, das crianas pobres no existisse. Portanto, as aprendizagens ocorriam nas famlias de todas as crianas, pobres e ricas, e a cultura dessas duas infncias tem como parmetro os laos com o mundo dos adultos, possibilitado, principalmente, pela liberdade em espaos compartilhados; a criana presenciava experincias que resultavam dessas relaes: aprendia convivendo. Nessa tica da importncia das relaes familiares com a criana, Jacques GLIS vai destacar que tais relaes eram muito importantes, pois todos compartilhavam em tudo, ou seja, um dependia do outro: .nesse imaginrio da vida e do corpo, a criana era considerada um rebento do tronco comunitrio, uma parte do grande corpo coletivo que, pelo engaste das geraes, transcendia o tempo. Assim, pertencia linhagem tanto quanto aos pais. Neste sentido, era uma criana. Pblica... (GLIS, 1991, p. 313). Diante disso, observa-se que a presena da criana no seio familiar era muito significativa, pois ela marca a sucesso parental e, sendo ela considerada pblica, evidenciase a preocupao que a famlia tinha em garantir a sobrevivncia da criana e, principalmente, sua educao, pois, influenciada pelos familiares ou vizinhos, a infncia era uma poca de aprendizagens: .as aprendizagens da infncia e da adolescncia deviam, pois, ao mesmo tempo fortalecer o corpo, aguar os sentidos, habilitar o indivduo a superar os revezes da sorte e, principalmente, a transmitir tambm a vida, a fim de assegurar a continuidade da famlia. (GLIS, 1991, p. 315). Diante deste contexto, o pai e a me seriam os responsveis por esta primeira educao, diferente do que ARIS destaca em sua pesquisa. A famlia e principalmente a me no possuiriam a sensibilidade ou o apego pelos seus filhos.

Assim, no podemos generalizar afirmando que toda a sociedade medieval. pais, mes, enfim todos que habitavam com as crianas . Visse as crianas apenas como servidora e sujeito produtivo, numa perspectiva utilitria da infncia, nem que todo o sentimento, no caso, o amor, envolvido nestas relaes ficasse alheio a elas ou no existisse. Quanto a isso, o autor vai dizer que .a indiferena medieval pela criana uma fbula e, no sculo XVI, como vimos, os pais se preocupavam com a sade e a cura de seu filho. Assim, devemos interpretar a afirmao do .sentimento da infncia. no sculo XVIII.. (GLIS4 apud KUHLMANN JR, 1998, p. 23). Sendo a educao ou a institucionalizao da criana responsabilidade da famlia, percebe-se que os filhos so frutos da possibilidade da ascenso social. Pais enxergam atravs de seus filhos a possibilidade da administrao dos bens familiares e, conseqentemente, a ampliao dessa possesso. A educao seria, pois, o cerne desse processo de elevao. Observa-se que, mesmo que as crianas ricas tivessem alguns privilgios com relao sua educao, as crianas das classes populares possuram tambm proteo, mesmo no sendo especificadamente da famlia: .se difcil encontrar registros das classes populares, h um amplo conjunto de documentos no mbito da vida pblica, envolvendo as iniciativas destinadas ao atendimento aos pobres e aostrabalhadores.. (KUHLMANN JR, 1998, p. 25). Neste sentido, o sentimento da afetividade dos pais pela criana parece ser expressivo. Ainda que o amor materno seja um fator muito particular de cada mulher, inegvel que a capacidade de gerar filhos s possvel a ela. Entretanto, o cuidar das crianas ou a preocupao com sua educao passa a ser uma das responsabilidades atribudas mulher em uma sociedade que emergia. Nesse contexto, concordamos com GLIS quando ele aponta que .por certo, .a natureza. continua a falar em favor do filho criado pela me; porm esta tem apenas deveres; doravante pretende ter tambm o direito de viver e recebe a aprovao do marido quando manifesta o desejo de manter um corpo ntegro e atraente. (GLIS, 1991, p. 321). Portanto, as referncias nos indicam que vnculos foram estabelecidos, pois seria improvvel que os adultos ficassem tantos sculos entorpecidos sem manifestarem qualquer sentimento pelas crianas.