constitucionalizaÇÃo do direito de famÍlia, sua...

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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA, SUA REPERSONALIZAÇÃO E O VALOR JURÍDICO DO AFETO Cristiane Pereira da Silva 1 Resumo: Os princípios insculpidos em nossa Constituição Federal, decorrentes de uma República Federativa que se constitui em um Estado Democrático de Direito, inspira a doutrina e jurisprudência pátrias a imprimirem em suas decisões, entregando aos cidadãos, uma Justiça que tem na dignidade humana seu valor-fonte. É bem verdade que nem sempre foi assim, pois trazíamos incutidos em nossas mentes que somente as relações matrimoniais legitimavam a constituição da família. No entanto, com um pouco de sensibilidade e bom senso o Direito de Família passou a reconhecer outras relações, especialmente as baseadas no afeto, como unidade familiar, e é sob esta ótica que se deve visualizar as várias espécies de famílias existentes em nossa sociedade, não deixando à margem, relações constituídas entre pessoas que não se entrelaçam em virtude do vínculo jurídico institucionalizado do casamento, e que, sem sombra de dúvida, são baseadas no afeto, no respeito, na consideração, e auxílio mútuo, elementos necessários e suficientes ao reconhecimento da existência de uma entidade familiar, a qual merece guarida do Estado, não só sob o aspecto patrimonial, mas também sob a ótica das próprias relações afetivas existentes entre seus membros. Daí, a importância jurídica da repersonalização do Direito de Família e do valor jurídico do afeto. É neste contexto que devemos compreender, apreender e dar a solução mais consentânea e justa ao caso concreto, especialmente quando da análise de casos que envolvam a adoção e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, as intituladas uniões homoafetivas. Devemos nos despir de quaisquer preconceitos desarrazoados, e ter na dignidade humana um ponto cardeal capaz de nos levar à solução mais justa, como fez nossa Corte Suprema em decisão histórica proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade, à qual foi atribuído efeitos erga omnes e vinculante, o que demonstra a magnitude da matéria tratada, e que, por certo, é crucial no caminho da igualdade das relações familiares. Palavras-chave: Família. Dignidade Humana. Constitucionalização. Repersonalisação. Afeto. União Homoafetiva. União Estável. 1 Professora de Direito Civil e Processo do Trabalho das Faculdades Integradas de Nova Andradina MS; Especialista em Civil e Processo Civil pela mesma Instituição; servidora pública do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul.

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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA, SUA

REPERSONALIZAÇÃO E O VALOR JURÍDICO DO AFETO

Cristiane Pereira da Silva1

Resumo: Os princípios insculpidos em nossa Constituição Federal, decorrentes de uma República Federativa que se constitui em um Estado Democrático de Direito, inspira a doutrina e jurisprudência pátrias a imprimirem em suas decisões, entregando aos cidadãos, uma Justiça que tem na dignidade humana seu valor-fonte. É bem verdade que nem sempre foi assim, pois trazíamos incutidos em nossas mentes que somente as relações matrimoniais legitimavam a constituição da família. No entanto, com um pouco de sensibilidade e bom senso o Direito de Família passou a reconhecer outras relações, especialmente as baseadas no afeto, como unidade familiar, e é sob esta ótica que se deve visualizar as várias espécies de famílias existentes em nossa sociedade, não deixando à margem, relações constituídas entre pessoas que não se entrelaçam em virtude do vínculo jurídico institucionalizado do casamento, e que, sem sombra de dúvida, são baseadas no afeto, no respeito, na consideração, e auxílio mútuo, elementos necessários e suficientes ao reconhecimento da existência de uma entidade familiar, a qual merece guarida do Estado, não só sob o aspecto patrimonial, mas também sob a ótica das próprias relações afetivas existentes entre seus membros. Daí, a importância jurídica da repersonalização do Direito de Família e do valor jurídico do afeto. É neste contexto que devemos compreender, apreender e dar a solução mais consentânea e justa ao caso concreto, especialmente quando da análise de casos que envolvam a adoção e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, as intituladas uniões homoafetivas. Devemos nos despir de quaisquer preconceitos desarrazoados, e ter na dignidade humana um ponto cardeal capaz de nos levar à solução mais justa, como fez nossa Corte Suprema em decisão histórica proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade, à qual foi atribuído efeitos erga omnes e vinculante, o que demonstra a magnitude da matéria tratada, e que, por certo, é crucial no caminho da igualdade das relações familiares.

Palavras-chave: Família. Dignidade Humana. Constitucionalização. Repersonalisação. Afeto. União Homoafetiva. União Estável. 1 Professora de Direito Civil e Processo do Trabalho das Faculdades Integradas de Nova Andradina –

MS; Especialista em Civil e Processo Civil pela mesma Instituição; servidora pública do Tribunal de

Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul.

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1. INTRODUÇÃO

Várias questões relativas ao direito de família, considerando-se esta em sua

mais ampla diversidade de constituição, serão analisadas sob o prisma da Constituição

Federal, seu fundamento no Estado Democrático de Direito, seus princípios,

especialmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas vertentes: o

respeito e o afeto, além da necessária análise sob a égide da igualdade material.

Dada a multidisciplinariedade da matéria, deixemos desde já definido que as

relações de família não podem e não devem ser tratadas unicamente sob a ótica do

Direito, há de nos ajudar e orientar a Psicologia, a Assistência Social e a Medicina

Genética, sem as quais não é possível compreender, apreender e dar a solução mais

consentânea e justa ao caso concreto.

Esclarece-se que as considerações elaboradas neste singelo escrito

acreditam estar em sintonia para com os valores e princípios do Direito de Família

Comtemporâneo e de acordo com as progressivas conquistas na busca da superação

da discriminação desarrazoada.

Dentro deste viés, parte-se de uma constatação cristalina: a mudança que

vem ocorrendo na constituição das famílias, sendo que o Direito não pode desconhecer

esta realidade.

Contudo, as discussões no campo jurídico ainda se encontram norteadas por

vários estigmas que podem traduzir-se na ausência de reconhecimento jurídico, em

muitos casos em franco prejuízo àqueles que deveriam ser os principais protegidos. É o

que se procura delinear ao trazer-se à colação temas como a adoção por

homossexuais e a união homoafetiva.

3

2. FUNDAMENTO E ESTRUTURA DOS PARADIGMAS DO ESTADO

CONTEMPORÂNEO E O INDIVÍDUO-CIDADÃO.

Para entendermos as profundas alterações ocorridas no tratamento jurídico

dado à família necessária uma digressão à estrutura dos paradigmas do Estado

Contemporâneo.

Primeiramente, frise-se que somente se fala em direitos individuais com a

derrocada do Estado Absolutista Monárquico, mediante a promoção das Revoluções

Francesa e Industrial, ocorridas em meados do século XIX e início do XX, porquanto

era o monarca quem exercia todos os direitos, inclusive o direito de vida e de morte sob

os súditos, e, portanto, nenhum direito era conferido ao indivíduo.

Foi por meio dessas revoluções que se firmou o “(...) declínio do absolutismo,

do mercantilismo e dos resquícios do regime feudal (...)” e a ascensão de um novo

modelo de Estado, fundado na “(...) prática do individualismo econômico e no

liberalismo político (...), o Estado Liberal de Direito2.

Hobbes, Locke e Rousseau contribuíram para a fundamentação político-

filosófica do Estado Liberal de Direito desenvolvendo teorias contra o absolutismo

centralizador e destacando o contrato social como fonte de uma autoridade política e

dos poderes do Estado.

A fundamentação jurídica do Estado Liberal de Direito adquiriu contornos de

formalidade e tecnicismo jurídico3, restringindo suas atividades à defesa da ordem e

seguranças públicas, promovendo o ideal burguês do laissez-faire, laissez-passer

quanto aos domínios econômicos e social4.

2 BURNS, Edward McNall, LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental:

do homem das cavernas às naves espaciais. Trad. Donaldson. M. Garsagen. 40ª ed. São Paulo: Globo, 2001, v. 2, p. 478. 3 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p.

07. 4 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o

direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 276.

4

Referida diretriz pautava-se na concepção de que os operadores do direito

deveriam aplicar a lei de forma mecânica, desconsiderando as peculiaridades dos

casos concretos, vez que o valor preponderante, nos termos do positivismo, era o da

segurança jurídica. Sobre essa perspectiva, ressalta Carvalho Netto:

Assim o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado à legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da melhor sociedade autorize a atuação de um Estado mínimo, restrito ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito àquelas fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da vontade do atores sociais individualizados, vedada a organização corporativo-coletiva, configura, aos olhos dos homens de então, um ordenamento jurídico de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1ª geração, uma ordem jurídica liberal clássica. É claro que sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, a questão da atividade hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser evitado e até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados5.

No processo histórico de formulação do sistema de garantias da liberdade

burguesa consagrou-se o reconhecimento de seus direitos fundamentais, tendo em seu

centro convergente os direitos de liberdade: as liberdades civis, com a emergência dos

direitos individuais (vida, segurança individual e propriedade privada) e a liberdade

política, com a consolidação dos direitos políticos (ressalvando-se que à época a

cidadania envolvia apenas o direito de voto) 6.

É neste Estado Liberal de Direito que irá refletir-se o valor preponderante à

época: a liberdade, cujo alicerce teórico foi a propriedade privada dos meios de

produção.

Impende salientar que é neste Estado Liberal de Direito que o Código Civil

que vigeu até 1916 buscou inspiração, ou seja, o indivíduo somente era considerado

5 NETTO, Menelick de Carvalho. “O requisito essencial da imparcialidade para a decisão constitucionalmente adequada de um caso

concreto no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito”. Direito Público. Belo Horizonte: Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, v. 1, n. 1, jan.-jun./1999, p. 103. 6 HORTA, José Luiz Borges. Horizontes jusfilosóficos do Estado de Direito: uma investigação tridimencional do Estado liberal, do

Estado social e do Estado democrático, na perspectiva dos direitos fundamentais. Obra (Doutorado em Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2002, p. 114.

5

como sujeito apto a ter, possuir, o patrimônio e a propriedade eram o centro da

atividade protetiva do Estado.

Nos primórdios do século XX houve incipientes manifestações a favor do

direito às prestações positivas do Estado, o que culminou na passagem do Estado

Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, por meio da consolidação de novos

fundamentos ao sistema capitalista.

Não nos esqueçamos da Guerra Fria a qual ajudou na construção do

paradigma do Estado Social de Direito na Europa Ocidental, em razão da luta de

classes e como estratégia capitalista capaz de oferecer estabilidade e frear a expansão

do socialismo pelas suas fronteiras.

Esclarece Soares que a permanência da estrutura capitalista no Estado

Social de Direito manifestou-se pela preservação artificial da livre iniciativa e da livre

concorrência, compensando-se as desigualdades sociais pela prestação de serviços

estatais e garantia de direitos sociais7.

A presença dos direitos sociais como trabalho, segurança, educação, saúde,

habitação, etc., nessa nova estrutura estatal demonstra o caráter gestor do Estado nas

políticas públicas e a qualidade de cliente do homem enquanto sujeito de direitos.

Nesse contexto, o Estado tornou-se um Estado Administrador,

intervencionista e assistencialista, e o cidadão, um “cidadão-cliente” (adquirindo referida

condição apenas enquanto subordinado aos programas sociais estatais8.

No Estado Social de Direito o valor preponderante passou a ser a igualdade:

correspondente não apenas à igualdade formal, mas, sobretudo, à igualdade material,

ou seja, as leis deveriam reconhecer materialmente as diferenças, propondo

alternativas jurídicas em face da diversidade apresentada. Em função dessa diretriz os

operadores do direito, sobretudo os juízes, incorporam a interpretação finalística ou

7 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como

pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 294. 8 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como

pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 294.

6

teleológica em suas decisões9.

A propriedade passou, teoricamente, a ser condicionada à função social,

sendo considerada um dos fatores condicionantes da ruptura do tradicional esquema do

Estado burguês, no qual as Constituições asseguravam restritamente direitos civis e

políticos.

Ao olharmos a história política, social, cultural e econômica, pode-se afirmar

que o Estado Democrático de Direito é o mais evoluído na dinâmica dos Direitos

Humanos, por fundar-se em critérios de pluralidade e de reconhecimento universal de

direitos.

A concepção desse modelo de Estado revela-se por meio de princípios

basilares, com destaque para o princípio da constitucionalidade, o sistema dos direitos

fundamentais, o princípio da legalidade da Administração Pública, o princípio da

segurança jurídica e o princípio da proteção jurídica e das garantias processuais10.

É verdade que muitos desses princípios já se encontravam presentes em

outros paradigmas de Estado, No entanto, é no Estado Democrático de Direito que

encontrarão maior sustentação teórica e, por isso mesmo, maiores possibilidades de

concretização social.

Observe-se que é no Estado Democrático de Direito que há o

reconhecimento do caráter normativo dos princípios, de sua função normativa própria e

não de simples enunciados programáticos. É no Estado Democrático de Direito que a

Hermenêutica, a Teoria dos Valores ou Axiologia Jurídica, revelará em torno da pessoa

humana, o que significa que no Estado Democrático de Direito o homem é o centro

convergente de direitos, sendo que todos os direitos fundamentais do homem deverão

orientar-se pelo valor-fonte da dignidade.

Com todas essas alterações na estrutura estatal constata-se também uma

nova tônica nas Ciências Humanas, que passa a ser a interdisciplinaridade, bem como

também, há uma extensão do conceito de cidadania, enfatizando, especialmente, seu

9 NETTO, Menelick de Carvalho. O requisito essencial da imparcialidade para a decisão

constitucionalmente adequada de um caso concreto no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito. Direito Público. Belo Horizonte: Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, v. 1, n. 1, jan.-jun./1999, p.105. 10

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional. Op. cit., p. 304-305.

7

efeito espacial, quando o cidadão deixa de ser aquele que possui a capacidade de

exercer direitos, sobretudo os políticos, para ser portador de todos os direitos

fundamentais da pessoa humana, ou seja:

O cidadão deixou de ser a exclusividade de sua aldeia para, sem abandonar

o seu canto, fazer-se universal. Dessa qualidade unge-se a cidadania contemporânea.

As pontes que ligam Estados retratam as linhas universais que ligam todos os

cidadãos, a determinar o compromisso de todos com as causas de todos11.

A cidadania, em sentido estrito e tradicional, pode ser conceituada como o

manifesto exercício dos direitos políticos pelos homens, o direito de votar e de ser

votado.

No entanto, em um sentido amplo e contemporâneo, típica de um Estado

Democrático de Direito, pode ser conceituada como a aptidão do indivíduo em adquirir

direitos, prerrogativas e proteções da ordem jurídica, aptos a qualificá-lo como igual os

seus semelhantes no contexto da sociedade local, regional ou internacional.

No centro deste debate, importa mais uma vez destacar o potencial que a

complexa estrutura globalizada tem de desestabilizar o sentido amplo e contemporâneo

da cidadania, mediante o enfraquecimento da regulação social pelo Estado. Estimula,

em sua dinâmica, a auto-regulação e práticas individualistas, o que naturalmente

desenvolve dimensões de instabilidade e de incerteza em sociedade.

Nessa conjuntura é oficializado um quadro de exclusão social permanente.

Enfim, a estrutura social, ora descrita, promove um dilema histórico e jurídico em face

da diretriz democrática preconizada pelo Estado de Direito.

De toda forma, acredita-se que os fatores de resistência à democracia devem

ser superados pela própria estrutura estatal democrática. O que significa, conforme

ensina Chauí, que no movimento histórico a democracia deve permanentemente

reformular sua estrutura em favor da criação e da ampliação dos Direitos Humanos12.

11

ROCHA. Carmem Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 118-119. 12 Nesse sentido, a autora sustenta: “A democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a

liberdade) e de alterar-se pela própria práxis” (Grifo da autora). Cf.: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 406.

8

Perceba-se que, considerando o indivíduo, juridicamente, ele passa de um

nada, na monarquia absolutista (sujeito apenas de obrigações para com seu rei); para

um proprietário pleno juridicamente protegido no Estado Liberal (sujeito de direitos e

obrigações); para um proprietário juridicamente protegido, no entanto, cuja propriedade

esta condicionada a uma função social, no Estado Social de Direito (sujeito de direitos e

obrigações, porém considerado dentro de uma coletividade); e, num estágio mais

avançado de Estado, o Estado Democrático de Direito, para um proprietário

juridicamente protegido, cuja propriedade continua condicionada a uma função social,

no entanto, esta é temperada por valores jurídicos nos quais o homem é o centro dos

direitos e a dignidade um valor-fonte (sujeito de direitos e obrigações, considerado

dentro de uma coletividade, na qual o valor mais importante é a dignidade humana, e

pela qual, todos os direitos e obrigações do homem devem pautar-se).

Veja-se que é neste estágio de Estado que o homem é centro de direitos e

não mais seu patrimônio, daí a doutrina falar em despatrimonialização do direito.

Vale lembrar que, nesse cenário, o postulado da dignidade humana se torna

o epicentro do grande elenco de direitos civis, políticos, econômicos e culturais, que

vêm proclamados, não só pelas constituições de cada Estado-nação de cunho

democrático, mas principalmente, por meio de instrumentos internacionais.

A trajetória evolutiva do Estado, inspirada em novos conceitos, tem feito com

que o cânone da dignidade da pessoa humana – como um dos fundamentos da

organização nacional – passe não só a ser observado, mas também concretizado,

mediante a adoção de instrumentos direcionados à efetiva realização de uma justiça

participativa. Em outras palavras, por intermédio de um constitucionalismo societário ou

comunitário, busca-se a realização de valores que apontam para o existir da

comunidade13. Isto porque a participação ativa do cidadão – pessoa humana que tem

direito a ter direitos14 – passa a ser um dos fundamentos da sociedade contemporânea

organizada nos moldes do Estado Democrático de Direito.

Aliás, não poderia ser de outra forma, porquanto o Estado Democrático de

13

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999, p. 15. 14

Nas lições de Lafayette Pozzoli, deve-se tomar o conceito atual de cidadania, que atribui à pessoa o direito a ter direitos, in MARITAIN e o Direito. São Paulo: Loyola, 2001, p. 118.

9

Direito está embasado na doutrina do eudemonismo15, doutrina que admite ser a

felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são

moralmente boas as condutas que levam à felicidade.

Vale dizer, que os direitos fundamentais sociais, vinculados ao mínimo

existencial, passam a constituir o núcleo básico de todo ordenamento constitucional,

como metas e objetivos que devem ser alcançados pelo Estado Democrático de Direito,

uma vez validados pela comunidade à qual foram previstos, a formar a consciência

ético-jurídica de seus integrantes.

No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988

é a primeira que integra o elenco dos direitos fundamentais os direitos sociais, antes

distribuídos no capítulo pertinente à Ordem Econômica e Social. Conforme observa

Flávia Piovesan, além de acolher a universalidade e a indivisibilidade dos direitos

fundamentais, a Lei Maior de 1988 acolhe também o processo de especificação do

sujeito de direito, conforme insculpido nos capítulos dedicados à família, à criança, ao

idoso, aos índios, incumbindo ao Estado instituir políticas públicas em prol de um

tratamento diferenciado e especial a tais grupos16. E assim, inspirada nas constituições

democratas do século passado, inscreve o cânone da dignidade da pessoa humana

dentre os fundamentos da organização nacional.

Dispõe nossa Constituição Federal:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e

15

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 15. impressão.Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, p. 592. 16

É o que enfatiza Flávia Piovesan na obra Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 214, aduzindo que “sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos e sociais carecem de verdadeira significação”.

10

científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Eis o contexto estatal que se encontra inserido o indivíduo-cidadão integrante

de uma família.

3. A CONSTITUIÇÃO, O NOVO CÓDIGO CIVIL, A FAMÍLIA E A SOCIEDADE

Tendo a Constituição Federal de 1988 erigido como fundamento da

República a dignidade da pessoa humana, ou seja, como já dito, colocou a pessoa

como centro das preocupações do ordenamento jurídico, todo o sistema, que retira da

Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para a sua proteção, ou

seja, as normas constitucionais (composta de princípios e regras), centradas nessa

perspectiva, conferem unidade sistemática a todo o ordenamento jurídico.

Ensina Luiz Edson Fachin que:

Eis o que sustentamos: opera-se, pois, em relação ao Direito dogmático tradicional, uma inversão do alvo de preocupações do ordenamento jurídico, fazendo com que o Direito tenha como fim último a proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento. Nossa tese, pois, é a de que a Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, em especial do Código Napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegiam a subjetividade, o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais. É por isso que cabe enfatizar a concepção plural de família presente na Constituição, apta a orientar a melhor exegese do novo Código Civil brasileiro17.

Nesses nossos tempos de inquietude, dilemas, exclusão econômica e jurídica

surgem novas situações sociais que influenciam o berço familiar e exigem uma

aplicação do ordenamento jurídico temperado com amor e afeto, porquanto é cada vez

maior o número de uniões não matrimonializadas, dentre as quais, as uniões

homoafetivas que não mais se contentam em ser vistas como uniões meramente civis,

17

FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XVII-XVIII.

11

mas como instituições familiares, que merecem reconhecimento e proteção, proteção

não só com relação ao patrimônio, mas também com relação ao afeto entre os seus

membros.

É neste contexto que se propõe uma hermenêutica construtiva e não

meramente uma reprodução de saberes dogmáticos, pois se identifica o Direito de

Família para além do Código Civil, alçando-o à Constituição Federal.

Pertinente a essa direção escreveu Paulo Luiz Netto Lôbo:

(...) os estudos mais recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. Não se trata, apenas, de estabelecer a necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o direito privado e o direito público, concebida como interdisciplinaridade interna. Pretende-se não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos (...) 18.

Verifica-se, assim, a necessidade de criação jurisprudencial para apreender a

complexidade e paradoxo das novas comunhões existentes em razão das mudanças na

realidade social.

Bem asseverou, a propósito, Francisco José Ferreira Muniz:

(...) nessa medida, a decisão judicial, ao integrar a lacuna para resolver o caso concreto, esboça, para, além disso, o desenho da norma jurídica que o legislador deverá editar para, em futuros desenvolvimentos do sistema, preencher o vazio existente (...) 19.

Diz, ainda, Guilherme Calmon Nogueira da Gama que:

A base constitucional da disciplina legal da família é inegável. A Constituição Federal, como é da tradição brasileira, mais uma vez veio a atender aos anseios sociais no sentido de se modernizar, adequando-se à realidade atual, sem, no entanto deixar de adotar como norma principiológica o reconhecimento da família e do casamento como fundamentais no contexto nacional, merecedores de proteção do Estado que, ao contrário do que muitos pregam, deve envidar esforços no sentido de estimular a vida familiar saudável, responsável, independentemente da forma de sua constituição, sempre tendo como norte a busca do engrandecimento moral, material, cultural do

18

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 36. n. 141, p. 100-109, jan./mar. 1999. 19

MUNIZ, Francisco José Ferreira. Textos de direito civil. Curitiba: Juruá, 1998, p. 116.

12

organismo familiar e de cada um dos seus integrantes20.

Não obstante haja proteção constitucional para as relações familiares, é certo

que a norma constitucional não tece minúcias acerca das várias vertentes em que as

relações de família de desdobram, sendo que nestes tempos de fragmentação

legislativa (o legislador brasileiro quer prever todas as situações possíveis e todas elas

regulamentar por norma), de despatrimonialização do direito privado, e da defesa

principiológica e valorativa das relações de afeto, o que se viu produzir foi o Novo

Código Civil Brasileiro, em vigor desde janeiro de 2003.

Embora seja uma produção legislativa relativamente recente, o Novo Código

Civil já nasceu excludente, porquanto não disciplinou de maneira satisfatória as uniões

estáveis, nada tratou acerca das famílias fraternas (entre irmãos ou irmãs), bem como

silenciou sobre filiação socioafetiva.

É certo que ao juiz é vedado eximir-se de julgar ante a inexistência de norma

que regule a matéria posta sob seu crivo, devendo este decidir o caso de acordo com a

analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, e, é justamente aqui que a

jurisprudência deve se abrir para compreender e empreender os novos desafios, sem

preconceitos ou visões preconcebidas.

A importância da jurisprudência pode ser sentida na evolução histórica do

instituto da filiação, no qual, os juízes passaram a valorizar o estatuto da igualdade

entre os filhos, bem como foi aproximando a verdade jurídica da verdade de sangue e,

também, da verdade sociológica e afetiva da filiação. Tal transcurso revela que no

desate das questões jurídicas a jurisprudência se inclinou para colocar no centro de

suas considerações os melhores interesses da filiação. Com isso, visivelmente,

rechaçou uma percepção calcada na exclusividade das atenções patrimoniais, para

localizar, em torno da pessoa o núcleo de seus afazeres.

Não nos esqueçamos de que os valores que informavam o Código Civil de

1916 era a legitimidade da família e dos filhos fundada tão somente no casamento,

sendo que à jurisprudência e à doutrina coube o papel de substituir estes valores pela

igualdade e pelo afeto, valores estes que mais se amoldam ao princípio da dignidade

20

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: RT, 2001, p. 56.

13

humana.

De fato, conforme escreve Silvana Carbonera “os operadores do direito, com

os olhos voltados para o sujeito, começam a agregar outros elementos àqueles já

relacionados à clássica noção jurídica de família, indicando que, em alguns casos,

somente a formalidade do vínculo é insuficiente” 21.

Nessa esteira, a noção de família vai abandonando a relação outrora

necessária de casamento, vínculo jurídico formal, e se vincula com maior força a sua

dimensão fática, abrindo espaço para discussão acerca do valor sociológico e afetivo

das relações familiares.

Eis a família contemporânea: fundada na igualdade e no afeto entre seus

membros, a qual não mais possui uma única definição22 e que se tornou plural23, sendo

que são essas relações de afeto, solidariedade e de cooperação que regem essa nova

família que justamente demonstram a concepção eudemonista da família, ou seja, não

é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o

casamento é que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua

aspiração à felicidade24.

4. FILIAÇÃO, ASPECTOS JURÍDICOS, BIOLÓGICOS E AFETIVOS.

A primeira relação familiar a ser reconstruída e modelada pelas mãos da

doutrina e da jurisprudência foi a filiação, sendo que a nova vestimenta adveio da

realização de uma interpretação construtiva, colmatando lacunas e relativizando

rigores.

Veja-se que, no que diz respeito à presunção pater is est, no início,

21

CARBONERA. Silvana. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 277. 22

Daí a importância do saber interdisciplinar e multidisciplinar em matéria de Direito de Família, como exposto por Fernanda Otoni de Barros no estudo Interdisciplinaridade: uma visita ao tribunal de família pelo olhar da psicanálise (In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira (org.). Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 781-835). 23

“Longe estamos de acreditar na predominância de um único modelo familiar na vida social atual na sociedade brasileira” - PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 186. 24

MICHEL, Andrée. Modèles sociologiques de la famille dans les societés contemporaines. Archives de philosophie du droit: réforme du droit de la famille. Paris: Sirey, 1975. t. 20, p. 131-132.

14

predominava uma exegese restrita e gramatical do Código Civil de 1916, no qual a

contestação da paternidade realizada pelo marido somente era apta a desconstituir a

presunção de paternidade de filho adulterino a matre, nas estritas hipóteses legais e

desde que nos prazos estabelecidos.

A partir da década de 60, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

passa a admitir que o filho adulterino a matre promova investigação de paternidade,

desde que sua concepção tenha se dado quando da separação de fato dos cônjuges.

Essa investigatória poderia ser proposta mesmo ausente a impugnação da paternidade

pelo esposo.

Essa orientação do Supremo já vinha ao encontro da idéia de que a

paternidade jurídica não se estabelece somente por laços de sangue, passando a

posse de estado a um papel relevante.

Também com relação ao reconhecimento da filiação a evolução

jurisprudencial se manifestou admitindo o reconhecimento, por homem solteiro, de filho

havido com mulher casada25, bem como, também admitiu o reconhecimento de filho

adulterino pelo pai casado, tornando desnecessária a investigação de paternidade pelo

filho após a dissolução do vínculo matrimonial.

Frise-se que a Lei Federal nº 883, de 21/10/1949, autorizava o

reconhecimento de filho adulterino após a dissolução da sociedade conjugal, pela morte

de um dos cônjuges, ou pelo desquite, ou separação judicial, ou seja, a eficácia do ato

de reconhecimento era post mortem. Mas a jurisprudência foi mais longe no

reconhecimento da igualdade entre os filhos, admitindo, desde logo, a partir da

Constituição de 1988, a investigação de paternidade contra pais casados e, na

constância do vínculo conjugal.

25

Recurso Extraordinário nº 46.135, Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Hahnemann Guimarães.

15

Demonstra essa afirmação o primoroso acórdão de lavra do Ministro Sálvio

de Figueiredo:

DIREITO DE FAMÍLIA – FILIAÇÃO ADULTERINA – IVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – POSSIBILIDADE JURÍDICA. I – Em face da nova ordem constitucional, que abriga o princípio da igualdade jurídica dos filhos, possível é o ajuizamento da ação investigatória contra genitor casado. II – Em se tratando de direitos fundamentais de proteção à família e à filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese liberal e construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com o desenvolvimento social e a evolução jurídica.” (Superior Tribunal de Justiça – Resp 7631 – DJ 04/11/1991).

Sobre o assunto, ensina Rose Melo Venceslau que:

O estado que pode vir a ser alterado em razão de dados biológicos é o do filho. Não há status de paternidade. Em virtude disso, entende-se ser o problema da filiação direito do filho. É o filho que pode alterar seu estado de filiação por meio da ação de investigação de paternidade, a qual não encontra obstáculo nem mesmo no vínculo paterno-filial já existente, que em conseqüência da ação positiva o desconstitui. É o filho que tem o direito de impugnar a paternidade estabelecida voluntariamente pelo ato de reconhecimento26.

Percebe-se que a igualdade passa a se impor como elemento decorrente do

respeito à dignidade da pessoa humana, “a busca da eliminação das desigualdades é o

traço dominante desse transcurso, uma longa evolução da bastardia ao estatuto da

unidade”27.

Conforme aduz João Batista Villela, o aspecto biológico cede espaço ao

comportamento, de modo que a paternidade passa a ser reconhecida pelo amor que se

dedica ao bem da criança28.

Nessa mesma perspectiva, observa Sergio Gischkow Pereira:

(...) a paternidade é conceito não só genético ou biológico, mas psicológico, moral e sociocultural. Em grande número de ocasiões

26

VENCESLAU, Rose Melo. Status de filho e direito ao conhecimento da origem biológica. In: RAMOS, Carmen Lucia Silveira et al. (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 399. 27

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 82. 28

VILLELA, João Batista. Família hoje. A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 85.

16

o vínculo biológico não transcende a ele mesmo e revela-se completo e patológico fracasso da relação de paternidade sob o prisma humano, social e ético. Em contrapartida, múltiplas situações e de ausência de ligação biológica geram e mostram relação afetiva, em nível de paternidade saudável, produtiva, responsável. E os milhões de casos de paternidade biológica não desejada? Por outro lado, a paternidade oriunda da adoção é plenamente consciente e desejada29.

Sobre o assunto, conclui Luiz Edson Fachin:

Desse modo, sob a égide da igualdade e da primazia do afeto, caminha a doutrina para o reconhecimento da filiação como realidade em que o aspecto biológico caminha lado a lado com o socioafetivo30.

E continua:

A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade. É à luz de uma hermenêutica constitucional de valorização da dignidade da pessoa humana – princípio fundante da República, conforme se extrai do art. 1 da Carta Magna – que afirma Paulo Luiz Netto LÔBO: “a repersonalização, posta nestes termos (...) é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa do grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade; com o outro”. (A repersonalização nas relações de família. In BITTAR, Carlos Alberto (org.) O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 89). O reconhecimento da filiação socioafetiva se impôs a partir do desenvolvimento da mesma engenharia genética que tornou inegável a verdade biológica. Se, de um lado, a ciência permite a certeza sobre os laços de sangue, ela permite, sob outro aspecto, que tais laços sejam postos à margem diante de uma realidade socioafetiva31.

É inegável o valor jurídico do afeto e seu reconhecimento pela jurisprudência

vem ganhando cada vez mais espaço e, de fato, em algumas ocasiões, está se

sobrepondo ao direito de conhecimento da identidade genética, como no acórdão

abaixo:

29

PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas considerações sobre a nova adoção. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 682, p. 65, 1992. 30

FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 18. 31

FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 20.

17

Pedidos de desconstituição da relação de filiação cumulativamente com investigação de paternidade. Oposição do pai registral. Vínculo socioafetivo. 1 – Cabe apenas ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. Inteligência do art. 1691 do CC/2002. 2 – O filho maior pode impugnar o reconhecimento da sua filiação apenas dentro dos quatro anos que se seguir à maioridade civil, sendo totalmente descabida a ação se proposta quando o filho já contava com 38 anos, é casado e inclusive já possui filho. Art. 1614 CC/2002. 3 – A anulação do registro, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico, ou seja, coação, erro, dolo, simulação ou fraude, o que não se verifica, quando se trata de uma declaração de paternidade feita pelo marido da mãe em relação a filho que foi concebido e nasceu na constância do casamento. 4 – Mesmo que esteja ausente o liame biológico, pelo fato da mãe do autor ter sido infiel ao pai registral, induzindo-o a erro, descabe desconstituir a relação jurídica de paternidade quando resta incontroversa a existência da filiação socioafetiva, e o pai registral (e socioafetivo) não concorda com a desconstituição do registro civil. Recursos providos, por maioria. (TJRS, Ap. cível n. 70.018.883.215, 7ª Câm. Cível, rel. Des. Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j. 27.06.2007)32.

A afetividade faz com que o relacionamento se fortaleça, e ela se revela

muitas vezes por pequenos atos, como um abraço ou uma conversa amigável, por

exemplo. Este sentimento é uma das vigas estruturais de uma família e por sua vez da

sociedade, porquanto uma família saudável tem mais a oferecer a esta.

Outro aspecto relevante que envolve a afetividade pura é o vínculo filial que

se forma pela adoção. Presente se encontra aqui não só a filiação, porquanto se trata

de uma filiação qualificada pela vontade, pelo desejo de dar a outro ser humano amor,

carinho, afeto, pela vontade de dispensar a este ser, todos os cuidados necessários a

um bom desenvolvimento social, econômico, cultural, e, principalmente moral.

É neste cenário que aparece um tema que comporta grandes e acaloradas

discussões jurídicas e sociais: o da adoção por homossexuais.

Lembra Candice de Vasconcellos Pedroso Grams Gentil Fernandes, verbis:

Foi em 1996, que pela primeira vez na História do Brasil que a presença dos homossexuais foi reconhecida em documento oficial, através do Programa Nacional dos Direitos Humanos. É impressionante que em um país considerado entre os cinco primeiros do mundo em homossexualidade, que a data da „oficialização‟ do contingente gay, seja

32

D´ANGELO; Suzi e Élcio. Direito de família. São Paulo: Anhanguera Editora, p. 282-283.

18

tão recente. O Brasil, segundo dados estatísticos, coletado pelo Grupo Gay da Bahia, é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais, com um assassinato de gay a cada dois dias, somente no ano 2000. Parece ser impossível a existência do binômio homossexualidade e cidadania. Será que a opção sexual de uma pessoa retira dela, como na antiguidade bíblica citada, quaisquer vestígios de direitos?33

Trataremos agora tão somente da adoção deixando a discussão acerca da

união homoafetiva para o próximo tópico.

Os conceitos e preconceitos que envolvem o relacionamento entre

homossexuais são diversos daqueles que dizem respeito à adoção de crianças e/ou

adolescentes por um homossexual ou por um casal homossexual. No entanto, na

adoção, o direito mais relevante a ser preservado não é o dos adotantes, mas sim do

adotado, o instituto visa o seu bem estar, pautado pelo seu direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao

respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, colocando-o a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art.

227, Constituição Federal).

A adoção pode ser requerida por uma pessoa e também por duas,

mencionando a lei que, neste caso, os adotantes devem ser marido e mulher ou viver

em união estável (art. 1622, CC/2002).

Na adoção singular, não há óbice legal impedindo um homossexual de

proceder à adoção de uma criança ou de um adolescente, ou mesmo, de uma pessoa

maior de 18 anos, de forma que nada impede que apenas um dos parceiros venha a

realizar a adoção na modalidade singular.

Nesta modalidade, a jurisprudência, mediante cuidadoso estudo psicossocial

por equipe interdisciplinar que possa identificar na relação o melhor interesse do

adotando.

33

FERNANDES, Candice de Vasconcellos Pedroso Grams. Direito das Minorias. Rio de Janeiro: Editora

Forense, 2001, p. 192.

19

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

A afirmação de homossexualidade do adotante, referência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho a adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre e cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens. (Ap. 14.332/98, 9ª Câm. Cív., rel. Des. Jorge de Miranda Magalhães, DORJ, 28/04/1999).

A questão polêmica se instaura sobre a possibilidade de adoção por duas

pessoas do mesmo sexo, na modalidade conjunta.

Não obstante a oportunidade de discussão do tema da união homoafetiva,

como já dito, trataremos do tema no próximo tópico. No entanto, ninguém pode duvidar

que em uma família constituída por um casal homossexual não haja proteção ao

adotando, pois vivendo o adotando com quem mantém vínculo familiar estável, é excluir

a possibilidade de adoção a sua manutenção em instituição, o que só vem em seu

prejuízo.

A doutrina e a jurisprudência, em especial esta última, têm avançado no

assunto tutelando essas uniões e a família por elas constituídas, igualando situações

que necessitam de isonomia, fazendo com que a sociedade venha a crer que os

princípios constitucionais protegem as uniões homoafetivas desde 1988.

Tal posicionamento pode ser conferido em recentíssima decisão do Superior

Tribunal de Justiça:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA MEDIDA. 1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por parte de requerente que vive em união homoafetiva com companheira que antes já adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o caso em julgamento. 2. Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as

20

relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal. 3. O artigo 1º da Lei 12.010/09 prevê a "garantia do direito à convivência familiar a todas e crianças e adolescentes". Por sua vez, o artigo 43 do ECA estabelece que "a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos". 4. Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo. 5. A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças, pois são questões indissociáveis entre si. 6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científicas (realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de Pediatria), "não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores". 7. Existência de consistente relatório social elaborado por assistente social favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da estabilidade da família. Acórdão que se posiciona a favor do pedido, bem como parecer do Ministério Público Federal pelo acolhimento da tese autoral. 8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os menores – sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento. 9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe. 10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da “realidade”, são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade. 11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações. 12. Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de convívio dos filhos com a requerente no caso de separação ou falecimento de sua companheira. Asseguram-se os direitos relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotandos em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela ser professora universitária. 13. A adoção, antes de tudo, representa um ato de amor, desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que

21

ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção, 86% das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas uma criança. 14. Por qualquer ângulo que se analise a questão, seja em relação à situação fática consolidada, seja no tocante à expressa previsão legal de primazia à proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de que, no caso dos autos, há mais do que reais vantagens para os adotandos, conforme preceitua o artigo 43 do ECA. Na verdade, ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores casos não deferidos a medida. 15. Recurso especial improvido.(STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4) - RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO).

Diante de todo o exposto, vemos que nossa doutrina e jurisprudência, ante as

mudanças sociais pelas quais vem passando a família, mudanças essas de certa forma,

severas, porém, paulatinas, têm tentado, por meio da hermenêutica calcada em

princípios constitucionais, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana,

atender ao anseio da sociedade, buscando soluções impregnadas de justiça, fulcradas

na igualdade, afeto, respeito e solidariedade, sentimentos existentes entre os membros

que compõem a família.

5. UNIÃO EXTRAMATRIMONIAL, ASPECTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E AFETIVOS.

A lei não imprime à união estável contornos precisos, limitando-se a elencar

suas características, e faz isso no art. 1723 do Código Civil34: convivência pública,

contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família. Preocupa-

se em identificar a relação pela presença de elementos de ordem objetiva, ainda que o

essencial seja a existência de vínculo de afetividade, ou seja, o desejo de constituir

família35.

34

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de família. 35

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2010.

22

Maria Berenice Dias, ainda assevera:

Com a evolução dos costumes, as uniões extramatrimoniais acabaram merecendo a aceitação da sociedade, levando a Constituição a dar nova dimensão à concepção de família, passando a proteger relacionamentos outros além dos constituídos pelo casamento. Emprestou juridicidade aos enlaces extramatrimoniais até então marginalizados pela lei. Assim, o concubinato foi colocado sob regime de absoluta legalidade36. As uniões de fato entre um homem e uma mulher foram reconhecidas como entidade familiar, com o nome de união estável. Também foi estendida proteção estatal aos vínculos monoparentais, formados por um dos pais com seus filhos (...) A Constituição, ao garantir especial proteção à família, citou algumas entidades familiares – as mais freqüentes -, mas não as desigualou. Limitou-se a elencá-las, não lhes dispensando tratamento diferenciado. O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável, e por último, a família monoparental não significa qualquer preferência nem revela escala de prioridade entre eles. Ainda que a união estável não se confunda com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção. A Constituição acabou por reconhecer juridicidade ao afeto ao elevar as uniões constituídas pelo vínculo de afetividade à entidade familiar. Paulo Lobo sustenta que o caput do art. 226 da CF é cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade37. Não obstante as interpretações restritivas do texto constitucional feitas pelos profetas da conservação, como refere Belmiro Welter, há a necessidade de afastar essa baixa constitucionalidade que se quer emprestar à união estável, desigualando-a do casamento38. A esse tratamento equalizador foram fiéis as primeiras leis que regulamentaram a união estável, não estabelecendo diferenciações ou revelando preferências.(grifos da autora)39.

36

Rodrigues, Silvio. Direito civil: direito de família, p. 263. 37

Lobo. Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas. Disponível em <http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=128> Acesso em: 09 de junho de 2011. 38

Welter. Belmiro Pedro. Estatuto da União Estável. São Paulo: Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 37. 39

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2010, p. 168.

23

Perceba-se que a doutrina citada não exclui NENHUMA união constituída

pelo vínculo de afetividade, portanto, não há que se fazer distinção entre a união entre

homem e mulher (heterossexual) ou entre pessoas do mesmo sexo (homoafetiva).

A união estável existente entre homem e mulher (chamada pela doutrina de

união estável, propriamente dita) já não mais suscita discussões acaloradas e

impregnadas de preconceitos, embora nem sempre tenha sido desta forma. Não se

diga o mesmo das uniões homossexuais (chamada pela doutrina de união

homoafetiva).

As uniões homoafetivas são relações familiares semelhantes ao casamento,

apenas diferenciando-se no que pertine à possibilidade de gerar filhos, o que não é

essencial para a configuração de uma entidade familiar, porquanto é possível a

reprodução sem sexo, sexo sem matrimônio e matrimônio sem reprodução.

Certo é que, preenchidos os requisitos da relação duradoura, pública e

contínua, não há porque excluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo do conceito

de núcleo familiar, sob pena de ser violado o princípio da igualdade.

Paulo Lobo vai além e afirma que todas as entidades familiares devem ser

protegidas, inclusive as uniões homoafetivas, sob pena de violar o princípio da

dignidade da pessoa humana40.

Atualmente, no atual estágio de evolução familiar em que nossa sociedade se

encontra, é impossível não reconhecer a natureza familiar da família homoafetiva. Suas

relações de afeto e entre-ajuda é que interessam para o crescimento do ser humano.

Suas relações de afetividade ultrapassam seu conteúdo patrimonial, e já são

solucionadas no âmbito das Varas de Família com fundamento no direito de família

constitucional. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Em se tratando de situação que envolve relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 599075496, Rel. Des. Breno Moreira Mussi. j. 17/6/1999).

40

Lobo. Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas. Disponível em

<http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=128> Acesso em: 09 de junho de 2011.

24

Na seara jurídico-familiar estão sendo rompidos conceitos e reformuladas

posturas doutrinárias, substituindo a ideologia tradicional, amparada na sagrada família,

por outra mais coerente com a realidade sustentada pelo afeto. Percebe-se então que o

casamento deixou de ser o único legitimador da família e a sociedade conjugal tende a

ser vislumbrada como estrutura de amor e de respeito, independentemente do sexo

biológico e da orientação afetiva de seus elementos.

Aliás, outra não podia ser a conclusão a que a doutrina e a jurisprudência

vêm chegando, porquanto, trata-se de simples interpretação do texto constitucional.

As variantes de ordem sexual encontram-se tuteladas em inúmeros diplomas

relevantes, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 1º, 2º, 3º e 7º,

por exemplo, consagradores da liberdade, igualdade e da não-discriminação) e a

maioria das constituições democráticas, a exemplo da Constituição Federal de 1988,

através da disposição contida nos artigos 5º, caput, e 3º, IV, in verbis:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)

Coroando e, portanto, reconhecendo a existência de uma entidade familiar na

união homoafetiva, nossa Corte Suprema, em decisão histórica proferida na Ação

Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº 132, de 05/05/2011, por votação unânime, “julgou procedente as

ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, autorizados os Ministros a

decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da

publicação do acórdão”. (Grifamos)

Referida decisão é um marco para o Direito de Família justamente porque se

fundamenta em princípios constitucionais inscritos nos artigos 1º, III (dignidade da

pessoa humana); 3º, IV (promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); 5º, caput (igualdade) e VI

25

(inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença); expressando toda a

magnitude constitucional desse ramo do direito, bem como externando sua

repersonalização, além de ressaltar o valor jurídico do afeto nas relações familiares.

Isso sem contar acerca da extensão de referida decisão, em razão da atribuição da

eficácia erga omnes e do efeito vinculante, o que por si só, poderia ser objeto de novo

artigo.

Ante todo o exposto, é inegável a verdade de que a união de pessoas do

mesmo sexo apresenta as características da entidade familiar, porquanto dotadas de

afeto, de respeito, consideração, e auxílio mútuo, de forma que os parceiros encaram a

relação de forma contínua e duradoura, igual a qualquer casal heterossexual, sendo

que estas relações merecem serem reconhecidas e protegidas pelo Estado. Aliás, de

outro modo não poderia ser, porquanto, a República Federativa do Brasil constitui-se

em um Estado Democrático de Direito, e como tal orienta-se pelo valor-fonte da

dignidade.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No atual estágio do Estado Democrático de Direito não há espaço para

discriminações desarrazoadas porquanto a igualdade prevista em nossa Constituição

Federal é uma igualdade material, ou seja, a igualdade que trata igualmente os iguais e

desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Há, portanto, a análise,

caso a caso, da necessidade de aplicação da lei ou de sua integração levando-se em

consideração peculiaridades do caso concreto, sendo que, em questões familiares, há

de ser considerada a pluralidade das relações existentes (família matrimonializada,

extramatrimonializada, monoparental, socioafetiva, etc), seja ela de que forma for, não

importando o nome que lhe seja atribuído: casamento, união estável, união

homoafetiva, filiação biológica, filiação socioafetiva, e mais alguma que esteja por vir;

importando apenas, para ser tratada como uma relação protegida e regida pelo

microssistema do direito de família, que a relação das pessoas ligadas o sejam por um

vínculo de consanguinidade, afinidade ou afetividade. Certo é, que nenhuma realidade

fática, nem ninguém, pode ser excluído da proteção jurídica estatal.

26

Os vetores da justiça, do amor, da igualdade, do respeito à dignidade

humana, da liberdade e do atendimento das necessidades humanas, pelo fato da nova

concepção de família ter a possibilidade de desenvolver todas as potencialidades do

homem, são essenciais a uma sociedade melhor e a mais perfeita organização familiar.

É certo que uma má sociedade apenas por exceção produz boas famílias,

mas famílias más também não originam uma boa sociedade.

Se a família estiver estruturada (calcada em relações de respeito, afeto,

cooperação e solidariedade) e funcionalizada para transmitir aos seus componentes os

valores superiores de convivência, um passo formidável terá sido dado no escopo de

constituir uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, igualitária e libertária. As

transformações porque a família vem passando expressam o ajustamento deste ente

social às novas realidades fáticas e valorativas. Por isso o direito de família vem

mudando tão acentuadamente. E que se fomentem estas mudanças, para o direito não

ser obstáculo ao advento de uma sociedade nova e melhor. O direito deve ser mais um

fator a acelerar as modificações. E o será se o compromisso de seus aplicadores e

exegetas for com os autênticos interesses populares, e não com teorias enclausuradas

nos gabinetes, em regras agasalhadas por uma metafísica platônica correspondente a

um mundo fantasioso e imaginário, que não reflete a realidade de nosso povo.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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