primeira repÚblica brasileira: marco histÓrico do...
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PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA: MARCO HISTÓRICO DO
SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
MONTE, Kalyne Teixeira do.1
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal compreender como a
responsabilidade civil do Estado se assentou na legislação brasileira durante a Primeira
República no Brasil, período compreendido entre 1889 a 1930, tendo como fontes de
fundamento à pesquisa as referências legais, doutrinárias e estudos sobre as ações judiciais
propostas pela sociedade contra o Estado no Rio de Janeiro e debates dos Anais da Câmara
dos Deputados do Rio de Janeiro (ocorridos no mês de março de 1902.
Palavras-chave: 1- Responsabilidade Civil do Estado; 2-Sociedade ; 3- Debates legislativos.
Abstract: The present work aims to understand how the liability of the State sat in the
Brazilian legislation during the First Republic in Brazil, the period from 1889 to 1930, having
as foundation sources to research the legal, doctrinal studies and references on judicial actions
proposed by the company against the government in Rio de Janeiro and debates of the
Proceedings of the House of Representatives of Rio de Janeiro in March 1902.
Keywords: 1 - Liability of the State; 2-Society; 3 - Legislative Debates.
Introdução
No tocante a utilização dos debates legislativos dos Anais da Câmara dos Deputados
deve-se ressaltar a discussão para a alteração do texto do artigo 15 do Projeto do Código
Civil, o qual para alguns estudiosos de época, o texto legislativo do citado artigo não
contemplaria os anseios daquela sociedade. Quando promulgado o Código Civil Brasileiro em
1916, após a alteração textual da lei, o dispositivo foi considerado o primeiro texto legal a
tratar diretamente da responsabilidade civil do Estado. Não obstante, através da leitura do
discurso do Deputado Gastão da Cunha, poder-se-á constatar a importância atribuída ao tema
1 Professora de Direito Civil, Responsabilidade Civil e Direito Previdenciário da Universidade Salgado de Oliveira-Universo
em Recife/PE, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, Graduada em Direito Pela
Universidade Católica de Pernambuco, Mediadora e Conciliadora da Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem do
Tribunal de Justiça de Pernambuco, Membro do Núcleo Docente estruturante da Universo-Recife/PE, Membro da Comissão
Própria de Avaliação da Universo-Recife/PE, Aluna do Curso Intensivo do Doutorado da Universidade de Buenos Aires-
Argentina.
ainda na Primeira República, como também a necessidade de definir uma legislação que
pudesse dar conta das questões, relacionadas ao Estado, que se apresentaram no início da
República.
Através deste trabalho é possível compreender a sociedade no tocante à conduta e aos
limites que deveriam guiar a administração estatal, ou seja, identificar a motivação das
pessoas a processarem judicialmente o Estado, em um momento em que não havia uma
legislação que as respaldasse.
A constatação de que elementos da sociedade recorriam ao Judiciário revelam um
duplo universo que constituem novidade. Primeiramente, há de se destacar os esforços feitos
para que as fracassadas expectativas sociais fossem resgatadas por meio de mecanismos do
próprio Estado. E por outro lado, a credibilidade dada ao Poder Judiciário pela população para
este resolver os seu conflitos. Tal reconhecimento vai além do simples pedido, uma vez que
abarca também o reconhecimento do Estado e de todos os seus aparelhos. Não mais súditos, e
mesmo em condições políticas excludentes, os cidadãos estariam a explorar formas de
defender suas próprias concepções de direitos, ao mesmo tempo em que davam respaldo ao
recém constituído Estado republicano, e a seu Judiciário. Com este estudo fica claro que a
questão da responsabilidade do Estado não foi solucionada na Primeira República, tendo-se
em vista o que determinava a Constituição Federal de 18912.
Desta forma, o primeiro corpo legal que tentou regulamentar os casos de
responsabilização do Estado só foi promulgado no ano de 1916, através do Código Civil.
1 Como surgiu a Responsabilidade civil do Estado no Brasil?
Para obter uma resposta a tal questionamento torna-se imprescindível a realização de
um balanço histórico, pois só assim é possível compreender o porquê de tal sociedade carecer
deste instituto, onde e como ocorreram as suas primeiras manifestações e motivadas por
quem.
De acordo com os juristas citados no decorrer deste trabalho, tem-se de primeiro plano
como principais causas para a implantação da responsabilidade civil do Estado no Brasil o
2 “Os funcionários públicos são strictamente responsáveis pelos abusos e omissões que incorrerem no exercício dos seus
cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.”
liberalismo e a democracia e, consequentemente, é necessário analisar o ideal liberal na
configuração da República brasileira, bem como realizar uma contextualização histórica do
pensamento político da Primeira República.
O desenvolvimento do conceito de responsabilidade civil do Estado foi uma discussão
importada do direito francês para o mundo jurídico brasileiro, em especial por alguns juristas,
entre eles Amaro Cavalcanti e Rui Barbosa. Foi, então, durante a Primeira República que este
debate se tornou mais intenso, à primeira vista por conta da instauração da República, da
ampliação do discurso acerca da democracia e, por consequência, da maior percepção da
atuação do Estado na vida social dos indivíduos.
1.1 Panorama Político da Primeira República
Ao avaliar o pensamento político às vésperas desse período é possível compreender
como foram desenvolvidas as ideias do liberalismo no Brasil e perceber que ao invés de
“liberalismo” seria mais preciso afirmar existirem “liberalismos”, o que traduz também as
disputas políticas e intelectuais pela preponderância de uma forma específica de se
compreender o conceito.
Cumpre esclarecer que os debates constituintes da Primeira República foram feitos às
pressas, para que o país entrasse logo no regime da legalidade. Dois foram os efeitos
decorrentes: primeiro, só foram debatidos os pontos mais fundamentais e mais controversos
para a elaboração da Carta Magna; segundo, este procedimento fez com que estes pontos
controversos continuassem a ser motivo de sérios conflitos durante toda a Primeira República.
Promulgada a Constituição de 1891, seus princípios estavam registrados sob a forma
escrita, o que já fora feito sob os imperativos liberais: os principais grupos políticos que
apoiaram a proclamação afirmavam defender o liberalismo (independente de como
compreendiam esse liberalismo). Com a Lei escrita, iniciava-se então a fase em que disputar-
se-iam as “justas” e “legítimas” formas de se interpretar o que estava registrado. Vejamos,
então, como era compreendido o “liberalismo”.
1.1.1 – Liberalismo e Liberalismos
Adam Smith é considerado o pai do Liberalismo, teoria econômica e social
multiforme, que foi sujeita a interpretações e apropriações conforme os mais diversos
contextos de sociedades específicas. Quando pensada a inserção de um liberalismo em outras
sociedades distintas daquela em que produziu Adam Smith, então, a teoria não só foi
entendida e reproduzida conforme as especificidades histórico-sociais locais, como foi
adaptada direcionadamente para os setores sociais a que seria conveniente a nova teoria.
Enquanto que na Europa havia se discutido e planejado como ocorreria a passagem do Antigo
Regime para o Constitucionalismo, processo este fundamentado fortemente sobre o
Liberalismo e o Iluminismo, nas Américas esse debate apareceu obscurecido pelos processos
das independências nacionais.
Como consequência, um enfoque maior foi desviado para outros debates, entre eles a
construção do Estado e do nacionalismo em cada país. É importante, então, que se considerem
alguns traços marcantes acerca da construção do poder estatal no Brasil. De uma forma geral,
sobre esta construção dois momentos devem ser evidenciados: o primeiro seria a concentração
do poder nas mãos do chefe de Estado, com a autonomia para a implantação da ordem
advinda do acordo das aristocracias rurais; e no segundo ocorreria o exercício do poder pela
aristocracia rural, após o período monárquico.
De certa forma, é possível afirmar que a grande marca dos processos de
independências nas Américas foi o liberalismo em suas diferentes áreas de abordagem.
Acontece, porém, que esta mesma ideologia liberal por si só não constrói um Estado. O
liberalismo foi apropriado e reinterpretado por setores sociais distintos, cada qual entrando em
disputa para ver consagradas suas leituras e seus projetos de Estado. Além de tudo, no Brasil,
diferentemente da Europa, ainda não haviam se constituído grandes cidades ou mesmo uma
população esclarecida do papel que exerceria perante a sociedade. Desta forma, o liberalismo
no Brasil não foi absorvido pela burguesia, como na Europa, mas pelas aristocracias rurais3.
Estas classes dominantes brasileiras, já quando do processo de independência política, tinham
um projeto em que restringir-se-iam os poderes do Imperador, e manter-se-ia o povo sob
3 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007. 8ª
Edição, pp. 134-136.
controle. Para Emília Viotti da Costa, foi neste contexto que o liberalismo foi adotado no
Brasil:
O liberalismo brasileiro, no entanto, só pode ser entendido com
referência à realidade brasileira. Os liberais brasileiros importaram
princípios e fórmulas políticas, mas as ajustaram às suas próprias
necessidades. Considerando que as mesmas palavras podem ter
significados diferentes em contextos distintos, devemos ir além de
uma análise formal do discurso liberal e relacionar a retórica com a
prática liberal, de modo que possamos definir a especificidade do
liberalismo brasileiro.4
No Brasil, no decorrer do século XIX, o liberalismo constituiu uma vanguarda
representada por grupos ligados à economia de importação e exportação, proprietários de
grandes extensões de terras, e de escravos. Estas elites brasileiras pretendiam instaurar o livre
comércio e a descentralização política5. Paradoxalmente, adotaram o liberalismo também para
manter seus privilégios:
As estruturas sociais e econômicas que as elites brasileiras desejavam
conservar significavam a sobrevivência de um sistema de clientela e
patronagem e de valores que representavam a verdadeira essência do que os
liberais europeus pretendiam destruir. Encontrar uma maneira de lidar com
essa contradição (entre liberalismo, de um lado, e escravidão e patronagem,
do outro) foi o maior desafio que os liberais brasileiros tiveram de enfrentar.6
A constituição do liberalismo no Brasil se fez como campo de apropriação pelas
oligarquias brasileiras. Já ao final do Império e em especial durante a Primeira República a
ideologia liberal foi adotada de forma aparentemente contraditória, mas estava em perfeita
consonância com as estruturas políticas e econômicas brasileiras, segundo Maria do Carmo
Campello de Souza:
Dentro dos limites de uma primeira abordagem, algumas considerações
sobre o Estado republicano, nessa fase, podem ser aventadas. Seu caráter
ambíguo, oligárquico, liberal, (…) pode ser explicado, em grande medida,
pelas características do Brasil como país economicamente periférico. A uma
nação dependente, para seu desenvolvimento, do mercado exterior, na
condição de exportador de bens primários, impunham-se e vinham se
impondo no seu passado histórico – o princípios liberais, econômicos e
políticos, vigentes nas relações internacionais. O capitalismo do século XIX,
invocando a filosofia do direito inalienável dos homens para determinar os
4 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., p. 134. 5 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., pp. 135-136. 6 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., p. 136.
limites da interferência do Estado nas relações econômicas, vinculou-se ao
laissez faire. Tal princípio, que se constituiu num amparo ideológico e
institucional das nações mais poderosas, ao ser adotado pelas mais fracas,
passou a garantir o sistema de desigualdade, desenvolvido nas relações
comerciais entre os diversos países.7
Deve-se destacar aqui uma temática dos debates políticos brasileiros: a questão da
centralização política sob o poder do Estado, que no Império seria representado pela figura do
Imperador, e na República, pelo Presidente da República. Este era um dos eixos que dividia
liberais e conservadores: os primeiros tinham apoiado o Ato Adicional de 1834, medida
politicamente descentralizadora, e os segundos não só apoiaram o Golpe da Maioridade do
Imperador D. Pedro II, como a Lei de Interpretação ao Ato Adicional de 1834, em 1840,
promovendo a centralização política.
Assim, para entender o processo que levou à proclamação da República no Brasil, se
faz necessário um retorno aos tempos do Império. Já por volta de 1870 o Império começava a
dar sinais de crise. A partir deste ano se pode afirmar que as maiores oligarquias agrárias,
como as cafeeiras, passaram a abertamente desejar uma maior autonomia política e
administrativa para as suas respectivas províncias. Desta forma, ainda que com ressalvas,
passaram a apoiar o Partido Liberal, o qual defendia um conjunto de reformas que
propunham, entre outras, eleições diretas, descentralização política, autonomia do Judiciário,
extinção da Justiça Administrativa, temporariedade do Senado e a neutralização do Poder
Moderador.8
O discurso liberal havia sido incorporado pelas oligarquias como um meio de legitimar
seus próprios interesses políticos. Cada vez mais este grupo se valia desta ideologia para
apoiar um projeto político a seu favor, para definitivamente obter a autonomia política através
do federalismo republicano. Muito longe de possuir uma vertente única, o ideário republicano
agregou variados setores (militares, aristocratas rurais e liberais urbanos), os quais se
utilizaram deste discurso para privilegiar suas reivindicações diante da insatisfação com o
Império.
Durante os últimos anos do Império ficou nítido que a figura de D. Pedro II não era
mais suficiente para manter a ordem escravocrata no país, frente às pressões internas e
externas. O Brasil passava por um momento de transformação e entre os fatores que
7 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. “O Processo Político-Partidário na Primeira República”. In: MOTA, Carlos
Guilherme (Org.) Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Difel, 1978, p. 167.
8 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. “O Constitucionalismo da Inefetividade: A
Constituição de 1891 no cativeiro do estado de sítio” In: ROCHA, Cléa Carpi da (Coord.). As Constituições Brasileiras.
Notícia, História e Análise Crítica. Brasília: Editora OAB, 2008, p. 26.
motivaram esta mudança no país se encontram a própria dinamização do setor cafeeiro, a
entrada de investimentos estrangeiros, o aumento da importação e da exportação, a
diversificação do setor industrial ligado ao café, a modificação de regime de trabalho e a
modernização e mecanização do campo, como também a construção de ferrovias e portos.
Neste contexto, em que eram latentes as contradições presentes no Império e cada vez mais
desejada a autonomia política para algumas províncias, é que nasceram as propostas
republicanas no Brasil. Desse modo, é possível concluir que a República se concretizou muito
mais por uma insatisfação com a monarquia do que por um projeto estruturado e coeso acerca
do que viria a ser a República no Brasil.9
A República, então, poderia ser caracterizada como o último recurso da aristocracia
rural para se manter no poder, e reivindicar maior autonomia às províncias. Era notório que a
ideia de República não tinha adquirido uma grande popularidade, e seus defensores
inicialmente não possuíam destaque no campo político. Neste sentido, a República, vista
como retomada do poder político pela aristocracia rural a nível nacional, passou a figurar
dentro do horizonte de possibilidades políticas somente a partir da década de 1870, mesmo
que ainda timidamente.
Para que possamos nos situar sobre de que forma esta República foi ganhando um
corpo, é importante que remetamos à ideologia que dirigiu a elite rural do país. A visão
apresentada por este grupo era de cunho liberal conservadora, pautada em ideias difundidas na
Europa pelo conservador inglês Herbert Spencer, um darwinista social. Acreditava
cientificamente na sobrevivência dos mais aptos, e consequentemente na abstenção do Estado
da tutela sobre o indivíduo. Os indivíduos deveriam se sustentar e sobreviver através de
esforços próprios, sem que o Estado tivesse qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito,
sob risco de prejudicar o curso da evolução social. O dever do Estado seria resumido,
cabendo-lhe apenas a garantia das condições propícias a estas competições sociais. “A
pobreza era fruto da incapacidade congênita dos menos aptos na luta pela vida, que por isso
deveriam ser deixados à própria sorte.” Seria legítimo, então, evitar por todos os meios a
participação popular, daqueles inferiores, no processo de construção do Estado10.
No momento em que esta ideologia foi traduzida para o Brasil, a elite implementou,
pelo menos no discurso, um Estado com base no liberalismo. O principal tradutor do
conservadorismo inglês de Herbert Spencer aqui no Brasil foi Alberto Sales. Irmão de
9 FAORO, Raymundo. A República inacabada. Organização e prefácio Fábio Konder Comparato. São Paulo: Globo, 2007, p.
12. 10 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., p. 28.
Campos Sales, era o ideólogo do republicanismo rural paulista. Dentre outras marcas,
defendia a não intervenção do Estado na economia, a adoção do federalismo, a separação
entre o Estado e a Igreja, a ampliação do discurso de liberdade comercial e industrial, sob a
total administração da elite rural paulista, que a rigor se utilizou destes mecanismos como
uma forma de garantir seus interesses. Contudo, para Christian Edward Cyril Lynch e Cláudio
Pereira de Souza Neto11, este discurso liberal, na prática, teria adquirido contornos mais
autoritários do que o liberalismo do Império.
Em resumo, durante o Império era patente que a elite administrativa e burocrática
deveria controlar e consolidar o Estado, para a construção de uma nação. Por outro lado, na
República os imperativos de mercado deveriam rezar as decisões acerca do Estado, o qual não
deveria ser conservador. A República apareceu como uma possibilidade, aparentemente mais
democrática, contudo potencialmente mais oligárquica. Importa também destacar que tal
diferenciação não exclui o fato de ambos os períodos poderem ser considerados elitistas.
Neste cenário, a ação do Estado na Primeira República fora marcada pela forte
presença da oligarquia cafeeira atrelada às novas necessidades do setor econômico. O foco de
poder passou a se encontrar nos estados. No discurso, o poder dos estados se apresentava
enquanto liberal, mas em seu funcionamento de fato era oligárquico. Maria do Carmo
Campello de Souza define o caráter da elite proprietária como: “Assim, a elite proprietária, ao
mesmo tempo que aspirava, do ponto de vista ideológico, a uma democracia liberal, agia de
modo que a participação política se restringisse a seus representantes.”12
Para a citada autora a adoção do liberalismo em países periféricos adquiriu contornos
mais específicos do que nos países desenvolvidos. No Brasil este modelo teria permitido que
um pequeno grupo, ao monopolizar o poder econômico, passasse a garantir o sistema de
desigualdade social. Nesta medida, o liberalismo implementado no país não deveria ser visto
somente como uma imposição externa, mas também como um importante instrumento
utilizado para a manutenção da hegemonia na política brasileira. Afinal de contas, o ideal
liberal garantia a livre iniciativa para os produtores de café no Brasil.
Por outro lado, este mesmo grupo também adotou medidas contrárias aos ideais
liberais quando fosse necessário atender seus próprios interesses. Esse aspecto pode ser
constatado através do desrespeito ao princípio liberal da não intervenção do Estado na
11 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., p. 28. 12 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., p. 167.
economia, já que no Brasil a política de valorização de preços do café foi algo constante na
Primeira República, o que exemplifica o conjunto de políticas de dirigismo econômico.
Novamente vem à tona a aparente contradição entre o discurso e a prática referentes ao
liberalismo. Como já apontado, não se trata de contradição, mas de apropriações discursivas
conforme a especificidade histórica e os interesses de classe, retraduzidos conforme suas
conveniências a partir das possibilidades de utilização da ideologia liberal. Intervenções e
dirigismo econômico estariam em discordância com os princípios da ideologia liberal
original, mas em plena consonância com a sua versão brasileiro-oligárquica. Um elemento a
ser somado é o fato de que no Brasil as elites econômicas tinham maior autonomia, uma vez
que não tinham estrangeiros dentre seus representantes, como ocorreu em outros casos.
Desse modo, muitos intelectuais que anteriormente estavam preocupados com a
elaboração de projetos e textos para o melhor desenvolvimento da República foram, com o
passar dos anos, se decepcionando com a forma obtida por esta. A adoção do modelo liberal
associado a sua manipulação pela elite rural gerou no país uma situação de desencanto e
fracasso político. Tal fato fez com que muitos intelectuais voltassem seus estudos para o
entendimento dos rumos que levaram a República ao fracasso. Exemplos desses intelectuais
foram Rui Barbosa, Amaro Cavalcanti, João Barbalho, dentre muitos outros nomes hoje
reconhecidos, mas que à época criticavam o regime que antes tinham apoiado. Outros, como
Agenor de Roure, foram forçados a assumir alguns fracassos do regime, mesmo que sem
assumir o tom crítico. E, no extremo oposto do campo político, estavam aqueles que tudo
tiveram a ganhar com aqueles moldes republicanos, como Alberto Sales (irmão de Campos
Sales e ideólogo de suas políticas), Alcindo Guanabara (jornalista e voz oficial do governo
Campos Sales), Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros (os três maiores
representantes do federalismo gaúcho), dentre outros. A fim de ilustração, vale citar o
desiludido e revoltado comentário de Rui Barbosa sobre a política republicana. No item
Política e Prostituição, Rui Barbosa escreveu:
Outra coisa não se pratica, hoje em dia, na política brasileira, onde as
doiraduras, as solenidades e as galas do governo constitucional apenas
mascaram desregramentos, contubérnio e orgias não menos maculosos
e desprezíveis. Por trás da fachada, com que as convenções legais
entretêm a hypocrisia de um systema liberal, reina a brutalidade e
impudência da caudilhagem na sua plenitude.13
13 BARBOSA, Rui. Ruínas de um governo: O governo Hermes; As ruínas da Constituição; A crise moral; A Justiça;
Manifesto á nação. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1931, p. 80.
1.1.2 A Política Republicana
Sabe-se hoje que a democracia, a representação legítima, a cidadania ou a união
federalista foram elementos retoricamente reivindicados pelos homens do regime, mas que
não foram construídos na prática; ao menos não dentro dos modelos europeus. Foram
reinventados num país latifundiário, com a escravidão recém abolida, com economia
agroexportadora, e com uma elite permeada pela ânsia de se legitimar através do liberalismo.
O Decreto nº 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal, foi
assinado pelo Presidente Campos Sales, antes mesmo da própria Constituinte. Segundo
Agenor de Roure, o citado decreto foi escrito sob o imperativo da pressa. O Decreto
determinava que as obrigações que cabiam ao Supremo Tribunal Federal, entre outras, eram
as de julgar os conflitos entre os estados, atuar como um poder arbitral, efetuar o controle da
constitucionalidade das leis e por fim salvaguardar a integridade do ordenamento
constitucional para resguardar os direitos fundamentais. Contudo, esta estrutura observada e
desejada por Rui Barbosa enfrentou sérias dificuldades para se concretizar devido à forte
presença e destaque do Poder Executivo nas determinações de última instância.
É importante lembrar que neste período o Supremo Tribunal Federal se encontrava
extremamente cerceado pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo. Aquela instituição
teve o seu papel limitado na medida em que não poderia se pronunciar sobre questões que
versassem a política do país. Tal faceta somente poderia ser apreciada pelos outros poderes.
Desta forma, na maioria dos embates relevantes para os rumos do país, o Poder Executivo
atribuía ao caso a qualidade de questão política, e desse modo obtinha para si a
responsabilidade de deliberar sobre os pontos mais controversos14 da República.15
A República foi, desta maneira, uma forma de garantir um governo orientado pela e
para a oligarquia cafeeira paulista. Neste sentido, os constitucionalistas Christian Edward
Cyrill Lynch e Cláudio Pereira de Souza Neto cunharam o termo “constitucionalismo da
inefetividade” para caracterizar a Constituição Federal de 189116. A Carta Magna teria sido
esvaziada de qualquer caráter liberal progressista, sendo tomada por uma visão liberal
conservadora, principalmente a partir do governo do Presidente Campos Sales. Foi durante o
seu mandato que de fato havia se instaurado e consolidado a Política dos Governadores,
14 Como exemplos podemos citar as diferentes interpretações sobre as temáticas do estado de sítio, a intervenção federal e o
habeas corpus. 15 CAVALCANTI, Amaro. Regime Federativo e a República Brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1900,
pp. 314 e 315. 16 LYNCH, Christian Edward Cyrill. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit.
determinando a formação do que podemos denominar de pacto federalista “ultra-liberal”, ou
seja, o qual atribuía autonomia quase total às antigas províncias, que durante a República
eram unidades da federação. Para Maria do Carmo Campello de Souza, Campos Sales
conseguira estabilizar o regime.
Durante o governo Campos Sales se instituiu toda a estrutura política de dominação e
reprodução das oligarquias rurais: a “Política do Café-com-Leite”, a “Política dos
Governadores”, o fortalecimento do “coronelismo”, e o mandonismo sobre os processos
eleitorais. Ao final do século XIX, foram estabelecidas algumas das principais bancadas
político-eleitorais, e o que importava era a equalização de forças do regime.
Ante o perigo de lutas e de um Congresso fracionado como os anteriores,
decidiu Campos Sales garantir-se o suporte das grandes bancadas de Minas,
São Paulo e Bahia e, fundado em mudança do Regimento Interno da
Câmara, impor ao Congresso uma certa linha de conduta na fase de
reconhecimento dos poderes. Definia-se ela por reconhecer somente os
diplomas dos candidatos eleitos pelas situações no poder naquele momento
dos respectivos Estados, não importando a que grupo pertencessem.17
É exagerado afirmar um pleno equilíbrio e harmonia entre os Poderes, pois consenso
não havia. Entretanto, Executivo, Legislativo e Judiciário eram corporificados por pessoas
imersas nesse meio político. Os conflitos entre Poderes ocorriam quanto a questões pontuais,
mas mantinham o funcionamento geral do regime. Por vezes eram questionados a intervenção
federal, a imigração, a responsabilidade civil do Estado, o problema fiscal, ou a jurisdição
sobre terrenos públicos, mas poucos foram os que criticaram as bases que fundamentavam
esta República oligárquica. Para um retrato geral da Primeira República, as palavras de Maria
do Carmo Campello de Souza são ilustrativas:
O panorama geral da Primeira República que vimos esboçando,
encontra correspondência num sistema político cujo foco de poder se
localiza nos Estados, sob a hegemonia dos economicamente mais
fortes, liberal na sua forma, oligárquico quanto ao funcionamento
efetivo.18
17 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., pp. 182-183. Grifos no original. 18 101 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., pp. 166-167.
2 O surgimento da Responsabilidade civil do Estado sob outra perspectiva
Após esta discussão acerca do caráter político predominante do Estado na Primeira
República, é possível retomar o objetivo maior do trabalho, isto é, pensar o processo de
responsabilização do Estado no Direito brasileiro.
Dentre os principais argumentos apresentados pelos estudiosos do tema havia uma
convergência de que a responsabilidade civil do Estado no Brasil teria advindo na sociedade
brasileira como uma forma de civilidade e igualdade, devido principalmente à adoção do
modelo liberal. Contudo, antes de chegar a tais conclusões, acredita-se ser de vital
importância traçar uma relação entre o desenvolvimento da responsabilização do Estado com
o contexto histórico brasileiro e com as disputas de poder estabelecidas à época.
Primeiramente, é importante avaliar qual seria o grau de autonomia política permitida
ao Poder Judiciário na Primeira República. Mesmo sofrendo inúmeros cerceamentos de atos
pelo Poder Executivo, é notório que em muitos casos o Judiciário se pronunciou na tentativa
de limitar a proeminência do Estado no cenário político. Sobre este aspecto, Amaro
Cavalcanti19 ressaltou os abusos cometidos pelo Poder Executivo, quando feria a Constituição
Federal. Em seus estudos propunha meios de se diminuir os “males da República”, ou seja,
denunciava os excessos cometidos pelo Poder Executivo. Não é sem fundamento que este
jurista, também Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizou um dos trabalhos de maior
relevância quanto à responsabilidade civil do Estado. Desta forma, pensava já em um meio de
limitar a atuação livre e sem consequências do Estado em relação à sociedade.
A partir do debate sobre apropriações do discurso liberal, constata-se que pelo menos
no discurso elaborado pelo Estado prevalecia a ideia de um Brasil liberal, igualitário e livre.
Porém, pelo que foi observado até o momento, pode-se concluir que no Brasil o liberalismo,
ao contrário do que afirmado pelos atuais estudiosos do Direito já citados, não trouxe consigo
um ideal de afirmação ou ampliação de direitos, mas trouxera a consagração da desigualdade
social e de aprofundamento de regime autoritário. Obviamente, não se pode desconsiderar o
fato de que com a adoção do regime republicano promoveu-se, pelo menos em teoria, um
ambiente mais propício à reclamação por via judicial por parte do cidadão.
Desta forma, enquanto são reconhecidas as explicações para o surgimento da
responsabilidade civil do Estado no Brasil, dadas por outros estudiosos, aqui se pretende ir um
19 CAVALCANTI. Amaro. Op. Cit., pp. 294 - 311.
pouco além. A hipótese ora sustentada defende que o debate em torno da responsabilidade
civil do Estado teria advindo na Primeira República em decorrência de fatores que
ultrapassam a adoção do liberalismo. Tal advento não se limita a este único ponto, até porque
poder-se-ia questionar que liberalismo foi esse, ou a quem ele estava favorecendo.
Deste modo, a responsabilidade civil do Estado no Brasil teria suscitado suas
primeiras discussões mais em função da atuação repressiva e autoritária do Estado do que
simplesmente pela adoção do liberalismo no Brasil ou pelo ideal republicano de igualdade.
Como os atuais estudiosos do Direito não contextualizaram política ou historicamente os
conceitos por eles abordados, os significados atribuídos aos vocábulos foram considerados
como aqueles desejados para explicar o argumento. Em geral, os conceitos foram
compreendidos como se tivessem sido retirados de sua origem, como a Europa do século
XVIII. Conforme observado anteriormente, todos os termos políticos, inclusive todo o
conjunto da teoria liberal, foram importados, apropriados, reinterpretados e resignificados
conforme demandava cada situação política específica no Brasil.
Liberalismo, República, igualdade, presidencialismo, federalismo, cidadania ou
democracia são exemplos de conceitos que extrapolam sua utilização em programas políticos.
Podem até constar em documentos, mas se for considerado seu poderio retórico,
percebe-se que estes conceitos eram dotados de um calibre muito mais simbólico e
representativo, do que prático e real. Assim, ao invés de focar a análise sobre o que os
conceitos deveriam significar a partir da realidade acadêmica europeia do século XVIII,
prefere-se aqui abordar os conceitos dentro dos seus efeitos políticos verdadeiramente
esperados por aqueles que os reformularam no Brasil.
3 Das motivações que levaram indivíduos ao Judiciário para propor ações de
indenização contra o Estado pelos danos sofridos.
A partir da pesquisa realizada no Arquivo Geral do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região, pela historiadora Priscila Gonçalves foi possível conhecer inúmeros casos que
especificamente pretendiam responsabilizar o Estado pelos danos causados à sociedade. No
referido trabalho de investigação ficou constatado que o Estado se encontrava envolvido
como réu nos mais diversos processos que diretamente estavam ligados às novas vivências
cotidianas da capital da República – a cidade do Rio de Janeiro.
Em sua dissertação de mestrado em Sociologia e Direito, a historiadora Priscila
Gonçalves ao fazer a leitura de cada caso, identificou doze categorias de demandas judiciais.
São elas: acidente, carregamento não entregue, censura, dano por ato administrativo,
depredação, desapropriação, falha na execução de contrato, negação de isenção de imposto,
rescisão de contrato, prejuízo devido a questão bancária, perseguição política e violência
arbitrária e, por último, funcionalismo público. E observou que havia em todos os casos uma
relação direta ou indireta às mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro e às questões
políticas advindas com a proclamação da República.
Como foi relatado anteriormente, o Estado brasileiro em muitos momentos
apresentou-se de forma autoritária e arbitrária na Primeira República. A necessidade de se
garantir o poder nas mãos da elite cafeeira paulista fez com que este grupo, utilizando-se de
um discurso com base no liberalismo, se apresentasse como poder hegemônico perante os
outros estados do Brasil.
Esta atuação política do Estado conduziu a uma enorme quantidade de atentados, atos
violentos, demissões indevidas, desapropriações ilegais, etc. Como consequência, muitos
indivíduos se sentiram lesados e optaram pelos tribunais para reclamar seus direitos violados
pelo Estado. Desta forma, conclui-se que as próprias atitudes que direcionaram a postura do
Estado na Primeira República, em última instância, também levaram à intensificação do
debate acerca da necessidade de sua responsabilização. Na mesma medida em que
gradativamente aumentava o número de processos que pleiteavam a responsabilização do
Estado, exigia-se dos juízes e dos ministros do Supremo Tribunal Federal um maior estudo e
debate acerca da temática.
Não se pode afirmar que todos estes processos foram julgados positivamente em favor
das partes lesadas pelo Estado. Segundo o referido estudo feito por Priscila Gonçalves, até
1916 a maior parte dos julgamentos indeferiu os pedidos de responsabilização do Estado,
posicionamento que começou a se inverter a partir de 1916. Por ora pode-se atestar que esta
demanda ao Supremo Tribunal Federal trouxe consigo a necessidade de se estabelecer um
entendimento legal acerca do assunto.
Cumpre ressaltar que todas estas reclamações foram feitas em um período em que
ainda não estava completamente assentada a noção de responsabilidade civil do Estado, pelo
menos em termos legais. A Constituição Federal de 1891 ainda estabelecia a responsabilidade
do funcionário perante o dano causado.
4 Discussões a respeito da Responsabilidade Civil do Estado em razão do art. 15 do
Projeto de Lei do Código Civil de 1916
O projeto do Código Civil foi redigido por Clóvis Beviláqua durante o Governo
Campos Sales. Após a sua feitura, em 1902, Rui Barbosa foi eleito para o cargo de relator da
Comissão Especial do Senado encarregada de analisar o projeto em questão. Ao iniciar as
discussões sobre a responsabilidade civil do Estado referenciada no artigo 15 do Código Civil,
na sessão do dia 18 de março de 1902, na Câmara dos Deputados, o Deputado Gastão da
Cunha20 logo discorreu acerca da importância do tema, diante da necessidade de ocorrer a
conciliação entre a independência da administração pública e a liberdade civil.
A principal crítica apresentada pelo Deputado tinha como base a escrita do artigo 15,
que somente considerava o Estado responsável por seus atos de direito privado, não
permitindo a responsabilização do Estado enquanto entidade política, ou seja, pela
manifestação de seus atos políticos. Para ele, esta proposta feria de modo geral a todo o
Código Civil, na medida em que caberia a este garantir um sistema completo de garantias
individuais. Contudo, uma vez que o indivíduo lesado em seus direitos buscasse amparo legal
contra qualquer ato político cometido pelo Estado, este ente encontrar-se-ia irresponsável
perante estas obrigações. Caso a redação do art. 15 do referido projeto de lei fosse aprovada
na sua íntegra, o Poder Legislativo estaria admitindo a possibilidade de cerceamento de
liberdade civil dos indivíduos diante dos abusos cometidos através de atos políticos.
Preocupado com tal possibilidade, Gastão da Cunha defende a necessidade de ajustes
na redação do art. 15 pautando-se no argumento de que toda obrigação de reparar um dano
derivaria da culpa. Como o conceito de culpa apresentar-se-ia de forma idêntica tanto para o
Direito Privado como para o Direito Público, o mesmo princípio deveria regular as relações
entre os indivíduos particulares, assim como entre os indivíduos e o Estado. O que
determinaria uma obrigação quer entre indivíduos ou pessoas jurídicas não seria a qualidade
da pessoa, mas o ato por ela praticado, o seu conteúdo estabelecido. Desta forma, caberia ao
Código Civil formular as regras gerais no que diz respeito à responsabilidade civil, do mesmo
modo que ao direito administrativo seria atribuída a função de restringi-lo ou não, conforme o
20 Deputado Federal pelo estado de Minas Gerais nos períodos de 1900 – 1902 e 1903 – 1905. Foi advogado na cidade de
Belo Horizonte; Promotor Público, Juiz Municipal e Juiz de Direito das Comarcas de Ubá, Tiradentes e Rio Preto, 1885 –
1894; Diretor, Imprensa Oficial da cidade de Ouro Preto, 1895; Promotor Geral do Estado, em Belo Horizonte, 1896 – 1898;
Lente da Faculdade de Direito de Minas Gerais desde 1896; Árbitro do Tribunal Arbitral Brasileiro e Boliviano; Nomeado
para o Tribunal Arbitral Brasileiro e Peruano; Ministro do Brasil no Paraguai; Sub-Secretário de Estado do Ministério do
Exterior, 1915; Embaixador em Portugal. Integrou a delegação brasileira na III Conferência Internacional Americana, 1906;
Membro da delegação brasileira na IV Conferência Internacional Americana, 1910.
seu entendimento. O Direito civil naturalmente apresentaria matérias comuns a ambos os
ramos do Direito por se tratar de uma legislação que regulamentaria as relações individuais.
Esta faceta permitiria que outras modalidades do direito, a partir do que foi pensado no
Código Civil, fizessem as devidas adaptações ou modificações de termos ou palavras.
Fortalecendo o seu entendimento Gastão da Cunha demonstrou a existência da
responsabilidade do Estado, na hipótese do Poder Executivo ser responsável pelos danos
provocados a um inocente condenado injustamente depois de constatada a sua revisão
criminal, conforme estabelecido no artigo 86 do Código Penal e, desta forma, concluiu que
restringir o conceito de responsabilidade do Estado no Código Civil seria no mínimo
contraditório perante o Direito. A construção deste argumento procurava enfatizar que a tese
da irresponsabilidade do Estado já há muito tempo não era aceita no mundo do Direito. Em
seu discurso, o Deputado afirmou que esta tese somente poderia ter vigorado completamente
na antiguidade, quando não era possível conceber uma distinção entre a liberdade civil e a
liberdade política, ou seja, entre o Direito Público e o Direito Privado.
Durante a sua exposição, ao retornar ao debate do artigo 15, conclamou a todos os
presentes a constatarem o retrocesso que permeava a sua escrita. Afirmou que já era notório
na doutrina que o Estado era civilmente responsável pelos danos injustamente causados a
terceiros por seus prepostos, fosse por abuso ou omissão. Consagrar este artigo no Código
Civil seria um enfraquecimento desta tese e consequentemente uma violação da liberdade
civil, declarou Gastão da Cunha.
Apesar da defesa calorosa do Deputado Gastão da Cunha a respeito de uma completa
responsabilidade do Estado, não tardaram argumentos contrários ao seu posicionamento,
como foi o caso do Deputado Luiz Antônio Domingues da Silva21 sob os argumentos de que
não haveria tesouro suficiente para o pagamento de todas as indenizações.
Outro argumento apresentado para furtar o Estado de sua responsabilidade se pautou
na sua correlação com o poder público, o qual necessariamente seria soberano, e esta
soberania o levaria à irresponsabilidade. Neste caso, a soberania estaria confundida com um
poder real. O argumento de defesa discorrido por Gastão da Cunha se baseou na ideia de que
soberania não seria o mesmo que irresponsabilidade, assim como a independência do Estado
para formular a norma jurídica não excluiria a sua submissão a este quadro.
21 Deputado Federal pelo estado do Maranhão nos períodos de 1891 – 1893, 1894 – 1896, 1897 – 1899, 1900 – 1902, 1903 –
1905, 1906 – 1909, 1909 – 1912, 1915 – 1918, 1918 – 1921 e 1921 – 1924.
O Deputado José Manoel de Azevedo Marques22 provocou Gastão da Cunha ao
questioná-lo se o preceito por ele defendido da responsabilidade civil do Estado não estava já
consagrado no artigo 15 do projeto do Código Civil. Para respondê-lo, primeiramente,
esclareceu que o Estado somente seria responsabilizado por danos provenientes de atos
privados e não por atos de direito privado. Tal faceta permitiria a sua responsabilização
unicamente quando agisse igualmente a um ente civil, ou seja, um simples particular.
Para que melhor percebessem esta distinção, Gastão da Cunha os interrogou quanto à
possibilidade de que o Estado, dentro das suas atribuições políticas, violasse o direito
individual, por exemplo reformando ilegalmente um militar ou demitindo professores
vitalícios. Nestes casos, o Estado não estaria agindo em seu caráter privado e da mesma
forma cometeria danos aos direitos de terceiros.
Para Gastão da Cunha, o foco da questão era que a distinção ora entre pessoa privada e
ora entre pessoa pública representaria algo ilógico, pois haveria uma grande dificuldade de se
pensar esta divisão de papéis. O Estado, enquanto um ente único, cuja função seria
administrar, nunca perderia o seu lado de entidade política, pois partir-se-ia da premissa de
que ele sempre agiria em prol dos interesses da coletividade. Desta forma, em nenhum ato
praticado pelo Estado este perderia a sua qualidade política. Então, para o autor, o Estado, que
em determinados momentos somente praticava atos privados, não poderia ser classificado
como Estado.
Após as calorosas discussões, a redação do artigo 15 do Código Civil foi definida e
apresentada no ano de 1916, sabiamente, sem restringir a responsabilidade das pessoas
jurídicas de Direito Público somente sobre os atos de caráter privado praticados por seus
representantes dentro dos limites de suas atribuições, a saber:
As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis
por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a
terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever
prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do
dano.
Cumpre ressaltar que tal legislação foi considerada ambígua à época. Muitos
pensavam que o artigo trazia em seu texto a descrição da teoria da responsabilidade subjetiva,
mas por outro lado alguns defendiam que já anunciava a ideia de responsabilidade objetiva.
Pode ser aqui conjecturado que a imprecisão jurídica suscitada pelas brechas na lei foi mais
22 Deputado Federal pelo estado de São Paulo nos períodos de 1900 – 1902 e 1903 – 1905.
que um erro legislativo. A ambiguidade da lei possibilita exatamente a ambiguidade na
interpretação, e consequentemente a aplicação discricionária, de acordo com os interesses
contextualmente convenientes às elites23.
Evidente que diversas parcelas da população recorreram a várias formas de protesto
contra tais arbitrariedades, inclusive através do Judiciário. Entretanto, este conflito, ao invés
de revelar a pluralidade de concepções políticas convivendo em respeito mútuo, como
permitem entender alguns pesquisadores, mostra justamente que as elites tentavam impor suas
vontades autoritariamente. As reações populares não estavam em igualdade de forças; pelo
contrário, constituíam a exceção que confirmava a regra, perante o poderio de um Estado que
já se consolidava.
Os argumentos defendidos não só pelos juristas, mas também pelo Deputado Gastão
da Cunha, encontravam-se inseridos em um debate maior, acerca da constituição de uma
sociedade liberal. O liberalismo no Brasil foi apropriado pela elite brasileira de forma tão
somente discursiva, transmutando-se num Poder Executivo extremamente autoritário, mesmo
que com poderes limitados. Exemplo que pode ser citado é a elaboração do artigo 82 que
tratava, na Constituição de 1891, da responsabilização civil do Estado, e que foi praticamente
copiado do artigo 179 da Constituição de 1824. Na Lei Maior de 1824 a responsabilização
cabia, a princípio, somente ao funcionário que causasse um dano. Que Estado era esse, que se
afirmava liberal na Carta de 1891, mas que relegava ao funcionário qualquer erro que o
Estado cometesse?
Os juristas atuais atribuem a instauração da responsabilidade civil do Estado à adoção
do sistema liberal. Vimos que o liberalismo nunca foi implementado em sua plenitude, e nem
mesmo figurou entre as intenções das elites (ou mesmo do povo) brasileiras. Em alguns
ambientes, entretanto, o discurso se proliferou.
Mesmo que no Brasil o liberalismo fosse adotado em discurso, mas com uma prática
oposta, havia certamente uma nova tendência intelectual aberta à produção de novas ideias.
23 192 Anteriomente foi citado o trabalho de Maria do Carmo Campello de Souza, para quem o liberalismo brasileiro era
permeado por características próprias, o que foi retraduzido para o próprio caráter do Estado republicano. Para a autora, esse
Estado ambíguo, liberal e oligárquico, foi reflexo do Brasil como país de economia periférica, dependente do mercado
exterior, exportador de bens primários. O liberalismo e as estruturas políticas foram aqui implantadas não como contestação
revolucionária, mas como contestação para manter as elites oligárquicas no poder. Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello
de. “O Processo Político-Partidário na Primeira República”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.) Brasil em Perspectiva. Rio
de Janeiro: Difel, 1978. As referências a “elites” no decorrer deste trabalho obedece não à concepção que classifica as
divisões sociais entre “elite” e “não elite”.
Consideram-se aqui como “elites” as frações sociais detentoras de poder hegemônico sobre demais camadas sociais, poder
este de caráter político e social, mas como reflexo de lugares sociais economicamente privilegiados. Assim, pessoas ou
camadas sociais não compõem “elites” porque assim o desejam, mas porque preenchem condições sociais que lhes permitem
serem reconhecidos com poderes e direitos além de outras pessoas, reconhecimento este não necessariamente consciente,
bastando a ignorância da subordinação social para que se estabeleça a dominação feita pela elite.
Os juristas da época da Primeira República tiveram uma formação que agregou parte daquele
liberalismo de molde europeu, e as novas formulações de “justiça”, por esses juristas,
englobavam o mínimo do liberalismo europeu.
É exagerado afirmar que o liberalismo levou automaticamente à responsabilização
civil do Estado, uma vez que as elites brasileiras não implementaram o liberalismo clássico
durante a Primeira República. Em alguma medida, entretanto, quando os juristas elaboraram
suas teses, o fizeram em boa parte para responder às demandas da população, que interpelava
a produção jurídica através de seus processos judiciais. Menos pelo liberalismo discursivo das
elites, e mais pela formação dos juristas unida à ação da população, é que o Supremo Tribunal
Federal foi obrigado a refletir e a traçar uma linha jurisprudencial sobre o tema, enquanto não
houvesse uma legislação específica que definisse os limites da responsabilização civil do
Estado. Este argumento permite que seja estudado o pensamento jurídico como um elemento
primordial para o mapeamento dos rumos e projetos elaborados pela elite brasileira na busca
pela organização da nação republicana. As normas jurídicas estavam inseridas dentro de um
contexto histórico específico, devendo desta maneira ser pensadas como práticas sociais
historicamente dadas.
Por outro lado, o pensamento difundido pela doutrina foi amplamente amparado pela
sociedade que, como descreveu Amaro Cavalcanti, recorreu à instância do Supremo Tribunal
Federal para reclamar seus direitos lesados. Por conta desta situação não faltaram
regulamentos ou leis esparsas pela legislação brasileira que trataram especificamente de
responsabilidade civil de determinados órgãos estatais. O artigo 60 da Constituição Federal de
1891 foi um exemplo emblemático citado pela maioria dos juristas para legitimar a
responsabilidade do Estado. Para muitos destes juristas o princípio da responsabilidade civil
já se encontrava assentado no país, havendo somente a necessidade de definir alguns tópicos
sobre a questão para de fato afirmá-la na legislação brasileira. Em nenhum momento estes
juristas colocavam em dúvida a necessidade de que tal instituto constasse como regra no
Direito brasileiro. Durante a Primeira República era comum que ocorressem prisões ou
detenções indevidas, assim como intervenções tortuosas da polícia sanitária nos domicílios de
particulares. Muitos também foram os conflitos armados durante o período, sem contar os
transtornos decorrentes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, que provocaram danos à
sociedade. Em uma cidade em processo de expansão não foram poucas as obras e os
processos de implementação de serviços públicos que motivaram prejuízos, muitas vezes
fatais, aos indivíduos que utilizavam estes serviços. Entre elas se podem citar as companhias
férreas e as companhias de bondes na cidade do Rio de Janeiro.
Desta forma, os inúmeros escritos dos juristas citados se tornaram uma fonte
riquíssima de argumentação para todos os advogados que desejavam propor ações contra o
Estado, quando ainda não havia na legislação brasileira nenhuma norma para tal. A forte
presença da sociedade em instâncias do Judiciário também foi um forte fator que levou a
discussão do tema a instâncias como o Supremo Tribunal Federal, que logo formulou, ainda
que precariamente, o seu entendimento sobre a matéria. Todos estes pontos contribuíram para
a configuração de um contexto em que a necessidade do debate sobre o assunto era vital e de
suma importância, já que todos se encontravam diante da possibilidade de sofrer um dano
decorrente de abusos cometidos pelos poderes públicos.
Pode-se concluir, então, que para além de um simples ideário em torno de conceitos
como puramente a igualdade ou a liberdade, havia no Brasil um movimento mais complexo e
dinâmico que motivou a entrada da responsabilidade civil do Estado no rol dos grandes temas
jurídicos discutidos na Primeira República.
Considerações Finais
Apesar da maioria dos trabalhos jurídicos explicarem o surgimento da
responsabilidade civil do Estado no Brasil a partir de conceitos universais, por exemplo o
ideal liberal e igualitário, no presente trabalho foi preferido empreender uma ótica distinta
sobre o tema em seu aspecto histórico, por constatar-se que a explicação pautada sobre o
liberalismo por si não poderia dar conta de explicar a enorme demanda de processos judiciais
que almejavam responsabilizar o Estado durante a Primeira República, bem como a
normatização da responsabilidade civil do Estado no Brasil.
Assim, foi desenvolvida uma contextualização histórica com o objetivo de
compreender as reais influências do liberalismo e iluminismo europeu na política brasileira e
os seus efeitos sociais durante a primeira república.
Como o liberalismo e o republicanismo não trouxeram uma ampliação de direitos,
então explica-se a responsabilização do Estado na primeira república brasileira com os
embates judiciais contra o Estado recém republicano, mas ainda oligárquico e autoritário, e os
intensos debates doutrinários e as ásperas defesas para o cerceamento dos poderes do Estado
no Poder Legislativo.
O Estado na Primeira República se dizia liberal na sua forma, mas na sua essência foi
pautado pela hegemonia política dos estados economicamente mais fortes e marcado pelo
autoritarismo quanto ao seu funcionamento.
Assim, ao longo deste trabalho se demonstrou as diversas formas de intervenção e
atuação do Estado que provocaram danos à sociedade, ou melhor, que feriram concepções de
direito de determinadas parcelas da sociedade, impulsionando-as a uma mudança
comportamental de ir em busca do exercício de seus direitos individuais em face do Estado, e
como não existia legislação específica o Poder Judiciário em suas discussões ao julgar as
respectivas demandas ensejou o Poder Legislativo a estabelecer normas atinentes à
responsabilização civil do Estado.
Um marco para o reconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro quanto à
responsabilidade civil do Estado, após tantas discussões nos âmbitos políticos e sociais
aconteceu através do artigo 15 do Código Civil de 1916, o qual não fez nenhuma menção
restringindo a responsabilidade das pessoas jurídicas de Direito Público somente sobre os atos
de caráter privado praticados por seus representantes dentro dos limites de suas atribuições,
como pretendia a redação do respectivo projeto de lei. Este artigo, hoje, é considerado a
primeira norma a reconhecer a responsabilidade civil do Estado na legislação brasileira.
Nas primeiras décadas da República, então, o longo processo de construção da ideia
jurídica da responsabilidade civil do Estado foi permeado por diversos fatores, tanto em
conflito como em consonância. Certamente não se pode atribuir a apenas um elemento o
surgimento deste instituto jurídico. É importante observar toda a complexa dinâmica política e
social em que se processaram os amplos conflitos. Um Estado autoritário e arbitrário que
provocava danos, um corpo de juristas embebidos em disputas intelectuais liberais, o recurso
ao Judiciário por elementos da sociedade, e a geração de demanda por novas concepções
jurídicas, foram fatores que formaram o instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado,
que, muito além de um conceito, fornece um retrato de uma época.
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