primeira repÚblica brasileira: marco histÓrico do...

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PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA: MARCO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO MONTE, Kalyne Teixeira do. 1 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal compreender como a responsabilidade civil do Estado se assentou na legislação brasileira durante a Primeira República no Brasil, período compreendido entre 1889 a 1930, tendo como fontes de fundamento à pesquisa as referências legais, doutrinárias e estudos sobre as ações judiciais propostas pela sociedade contra o Estado no Rio de Janeiro e debates dos Anais da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro (ocorridos no mês de março de 1902. Palavras-chave: 1- Responsabilidade Civil do Estado; 2-Sociedade ; 3- Debates legislativos. Abstract: The present work aims to understand how the liability of the State sat in the Brazilian legislation during the First Republic in Brazil, the period from 1889 to 1930, having as foundation sources to research the legal, doctrinal studies and references on judicial actions proposed by the company against the government in Rio de Janeiro and debates of the Proceedings of the House of Representatives of Rio de Janeiro in March 1902. Keywords: 1 - Liability of the State; 2-Society; 3 - Legislative Debates. Introdução No tocante a utilização dos debates legislativos dos Anais da Câmara dos Deputados deve-se ressaltar a discussão para a alteração do texto do artigo 15 do Projeto do Código Civil, o qual para alguns estudiosos de época, o texto legislativo do citado artigo não contemplaria os anseios daquela sociedade. Quando promulgado o Código Civil Brasileiro em 1916, após a alteração textual da lei, o dispositivo foi considerado o primeiro texto legal a tratar diretamente da responsabilidade civil do Estado. Não obstante, através da leitura do discurso do Deputado Gastão da Cunha, poder-se-á constatar a importância atribuída ao tema 1 Professora de Direito Civil, Responsabilidade Civil e Direito Previdenciário da Universidade Salgado de Oliveira-Universo em Recife/PE, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, Graduada em Direito Pela Universidade Católica de Pernambuco, Mediadora e Conciliadora da Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Membro do Núcleo Docente estruturante da Universo-Recife/PE, Membro da Comissão Própria de Avaliação da Universo-Recife/PE, Aluna do Curso Intensivo do Doutorado da Universidade de Buenos Aires- Argentina.

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PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA: MARCO HISTÓRICO DO

SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

MONTE, Kalyne Teixeira do.1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal compreender como a

responsabilidade civil do Estado se assentou na legislação brasileira durante a Primeira

República no Brasil, período compreendido entre 1889 a 1930, tendo como fontes de

fundamento à pesquisa as referências legais, doutrinárias e estudos sobre as ações judiciais

propostas pela sociedade contra o Estado no Rio de Janeiro e debates dos Anais da Câmara

dos Deputados do Rio de Janeiro (ocorridos no mês de março de 1902.

Palavras-chave: 1- Responsabilidade Civil do Estado; 2-Sociedade ; 3- Debates legislativos.

Abstract: The present work aims to understand how the liability of the State sat in the

Brazilian legislation during the First Republic in Brazil, the period from 1889 to 1930, having

as foundation sources to research the legal, doctrinal studies and references on judicial actions

proposed by the company against the government in Rio de Janeiro and debates of the

Proceedings of the House of Representatives of Rio de Janeiro in March 1902.

Keywords: 1 - Liability of the State; 2-Society; 3 - Legislative Debates.

Introdução

No tocante a utilização dos debates legislativos dos Anais da Câmara dos Deputados

deve-se ressaltar a discussão para a alteração do texto do artigo 15 do Projeto do Código

Civil, o qual para alguns estudiosos de época, o texto legislativo do citado artigo não

contemplaria os anseios daquela sociedade. Quando promulgado o Código Civil Brasileiro em

1916, após a alteração textual da lei, o dispositivo foi considerado o primeiro texto legal a

tratar diretamente da responsabilidade civil do Estado. Não obstante, através da leitura do

discurso do Deputado Gastão da Cunha, poder-se-á constatar a importância atribuída ao tema

1 Professora de Direito Civil, Responsabilidade Civil e Direito Previdenciário da Universidade Salgado de Oliveira-Universo

em Recife/PE, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, Graduada em Direito Pela

Universidade Católica de Pernambuco, Mediadora e Conciliadora da Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem do

Tribunal de Justiça de Pernambuco, Membro do Núcleo Docente estruturante da Universo-Recife/PE, Membro da Comissão

Própria de Avaliação da Universo-Recife/PE, Aluna do Curso Intensivo do Doutorado da Universidade de Buenos Aires-

Argentina.

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ainda na Primeira República, como também a necessidade de definir uma legislação que

pudesse dar conta das questões, relacionadas ao Estado, que se apresentaram no início da

República.

Através deste trabalho é possível compreender a sociedade no tocante à conduta e aos

limites que deveriam guiar a administração estatal, ou seja, identificar a motivação das

pessoas a processarem judicialmente o Estado, em um momento em que não havia uma

legislação que as respaldasse.

A constatação de que elementos da sociedade recorriam ao Judiciário revelam um

duplo universo que constituem novidade. Primeiramente, há de se destacar os esforços feitos

para que as fracassadas expectativas sociais fossem resgatadas por meio de mecanismos do

próprio Estado. E por outro lado, a credibilidade dada ao Poder Judiciário pela população para

este resolver os seu conflitos. Tal reconhecimento vai além do simples pedido, uma vez que

abarca também o reconhecimento do Estado e de todos os seus aparelhos. Não mais súditos, e

mesmo em condições políticas excludentes, os cidadãos estariam a explorar formas de

defender suas próprias concepções de direitos, ao mesmo tempo em que davam respaldo ao

recém constituído Estado republicano, e a seu Judiciário. Com este estudo fica claro que a

questão da responsabilidade do Estado não foi solucionada na Primeira República, tendo-se

em vista o que determinava a Constituição Federal de 18912.

Desta forma, o primeiro corpo legal que tentou regulamentar os casos de

responsabilização do Estado só foi promulgado no ano de 1916, através do Código Civil.

1 Como surgiu a Responsabilidade civil do Estado no Brasil?

Para obter uma resposta a tal questionamento torna-se imprescindível a realização de

um balanço histórico, pois só assim é possível compreender o porquê de tal sociedade carecer

deste instituto, onde e como ocorreram as suas primeiras manifestações e motivadas por

quem.

De acordo com os juristas citados no decorrer deste trabalho, tem-se de primeiro plano

como principais causas para a implantação da responsabilidade civil do Estado no Brasil o

2 “Os funcionários públicos são strictamente responsáveis pelos abusos e omissões que incorrerem no exercício dos seus

cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.”

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liberalismo e a democracia e, consequentemente, é necessário analisar o ideal liberal na

configuração da República brasileira, bem como realizar uma contextualização histórica do

pensamento político da Primeira República.

O desenvolvimento do conceito de responsabilidade civil do Estado foi uma discussão

importada do direito francês para o mundo jurídico brasileiro, em especial por alguns juristas,

entre eles Amaro Cavalcanti e Rui Barbosa. Foi, então, durante a Primeira República que este

debate se tornou mais intenso, à primeira vista por conta da instauração da República, da

ampliação do discurso acerca da democracia e, por consequência, da maior percepção da

atuação do Estado na vida social dos indivíduos.

1.1 Panorama Político da Primeira República

Ao avaliar o pensamento político às vésperas desse período é possível compreender

como foram desenvolvidas as ideias do liberalismo no Brasil e perceber que ao invés de

“liberalismo” seria mais preciso afirmar existirem “liberalismos”, o que traduz também as

disputas políticas e intelectuais pela preponderância de uma forma específica de se

compreender o conceito.

Cumpre esclarecer que os debates constituintes da Primeira República foram feitos às

pressas, para que o país entrasse logo no regime da legalidade. Dois foram os efeitos

decorrentes: primeiro, só foram debatidos os pontos mais fundamentais e mais controversos

para a elaboração da Carta Magna; segundo, este procedimento fez com que estes pontos

controversos continuassem a ser motivo de sérios conflitos durante toda a Primeira República.

Promulgada a Constituição de 1891, seus princípios estavam registrados sob a forma

escrita, o que já fora feito sob os imperativos liberais: os principais grupos políticos que

apoiaram a proclamação afirmavam defender o liberalismo (independente de como

compreendiam esse liberalismo). Com a Lei escrita, iniciava-se então a fase em que disputar-

se-iam as “justas” e “legítimas” formas de se interpretar o que estava registrado. Vejamos,

então, como era compreendido o “liberalismo”.

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1.1.1 – Liberalismo e Liberalismos

Adam Smith é considerado o pai do Liberalismo, teoria econômica e social

multiforme, que foi sujeita a interpretações e apropriações conforme os mais diversos

contextos de sociedades específicas. Quando pensada a inserção de um liberalismo em outras

sociedades distintas daquela em que produziu Adam Smith, então, a teoria não só foi

entendida e reproduzida conforme as especificidades histórico-sociais locais, como foi

adaptada direcionadamente para os setores sociais a que seria conveniente a nova teoria.

Enquanto que na Europa havia se discutido e planejado como ocorreria a passagem do Antigo

Regime para o Constitucionalismo, processo este fundamentado fortemente sobre o

Liberalismo e o Iluminismo, nas Américas esse debate apareceu obscurecido pelos processos

das independências nacionais.

Como consequência, um enfoque maior foi desviado para outros debates, entre eles a

construção do Estado e do nacionalismo em cada país. É importante, então, que se considerem

alguns traços marcantes acerca da construção do poder estatal no Brasil. De uma forma geral,

sobre esta construção dois momentos devem ser evidenciados: o primeiro seria a concentração

do poder nas mãos do chefe de Estado, com a autonomia para a implantação da ordem

advinda do acordo das aristocracias rurais; e no segundo ocorreria o exercício do poder pela

aristocracia rural, após o período monárquico.

De certa forma, é possível afirmar que a grande marca dos processos de

independências nas Américas foi o liberalismo em suas diferentes áreas de abordagem.

Acontece, porém, que esta mesma ideologia liberal por si só não constrói um Estado. O

liberalismo foi apropriado e reinterpretado por setores sociais distintos, cada qual entrando em

disputa para ver consagradas suas leituras e seus projetos de Estado. Além de tudo, no Brasil,

diferentemente da Europa, ainda não haviam se constituído grandes cidades ou mesmo uma

população esclarecida do papel que exerceria perante a sociedade. Desta forma, o liberalismo

no Brasil não foi absorvido pela burguesia, como na Europa, mas pelas aristocracias rurais3.

Estas classes dominantes brasileiras, já quando do processo de independência política, tinham

um projeto em que restringir-se-iam os poderes do Imperador, e manter-se-ia o povo sob

3 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007. 8ª

Edição, pp. 134-136.

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controle. Para Emília Viotti da Costa, foi neste contexto que o liberalismo foi adotado no

Brasil:

O liberalismo brasileiro, no entanto, só pode ser entendido com

referência à realidade brasileira. Os liberais brasileiros importaram

princípios e fórmulas políticas, mas as ajustaram às suas próprias

necessidades. Considerando que as mesmas palavras podem ter

significados diferentes em contextos distintos, devemos ir além de

uma análise formal do discurso liberal e relacionar a retórica com a

prática liberal, de modo que possamos definir a especificidade do

liberalismo brasileiro.4

No Brasil, no decorrer do século XIX, o liberalismo constituiu uma vanguarda

representada por grupos ligados à economia de importação e exportação, proprietários de

grandes extensões de terras, e de escravos. Estas elites brasileiras pretendiam instaurar o livre

comércio e a descentralização política5. Paradoxalmente, adotaram o liberalismo também para

manter seus privilégios:

As estruturas sociais e econômicas que as elites brasileiras desejavam

conservar significavam a sobrevivência de um sistema de clientela e

patronagem e de valores que representavam a verdadeira essência do que os

liberais europeus pretendiam destruir. Encontrar uma maneira de lidar com

essa contradição (entre liberalismo, de um lado, e escravidão e patronagem,

do outro) foi o maior desafio que os liberais brasileiros tiveram de enfrentar.6

A constituição do liberalismo no Brasil se fez como campo de apropriação pelas

oligarquias brasileiras. Já ao final do Império e em especial durante a Primeira República a

ideologia liberal foi adotada de forma aparentemente contraditória, mas estava em perfeita

consonância com as estruturas políticas e econômicas brasileiras, segundo Maria do Carmo

Campello de Souza:

Dentro dos limites de uma primeira abordagem, algumas considerações

sobre o Estado republicano, nessa fase, podem ser aventadas. Seu caráter

ambíguo, oligárquico, liberal, (…) pode ser explicado, em grande medida,

pelas características do Brasil como país economicamente periférico. A uma

nação dependente, para seu desenvolvimento, do mercado exterior, na

condição de exportador de bens primários, impunham-se e vinham se

impondo no seu passado histórico – o princípios liberais, econômicos e

políticos, vigentes nas relações internacionais. O capitalismo do século XIX,

invocando a filosofia do direito inalienável dos homens para determinar os

4 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., p. 134. 5 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., pp. 135-136. 6 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit., p. 136.

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limites da interferência do Estado nas relações econômicas, vinculou-se ao

laissez faire. Tal princípio, que se constituiu num amparo ideológico e

institucional das nações mais poderosas, ao ser adotado pelas mais fracas,

passou a garantir o sistema de desigualdade, desenvolvido nas relações

comerciais entre os diversos países.7

Deve-se destacar aqui uma temática dos debates políticos brasileiros: a questão da

centralização política sob o poder do Estado, que no Império seria representado pela figura do

Imperador, e na República, pelo Presidente da República. Este era um dos eixos que dividia

liberais e conservadores: os primeiros tinham apoiado o Ato Adicional de 1834, medida

politicamente descentralizadora, e os segundos não só apoiaram o Golpe da Maioridade do

Imperador D. Pedro II, como a Lei de Interpretação ao Ato Adicional de 1834, em 1840,

promovendo a centralização política.

Assim, para entender o processo que levou à proclamação da República no Brasil, se

faz necessário um retorno aos tempos do Império. Já por volta de 1870 o Império começava a

dar sinais de crise. A partir deste ano se pode afirmar que as maiores oligarquias agrárias,

como as cafeeiras, passaram a abertamente desejar uma maior autonomia política e

administrativa para as suas respectivas províncias. Desta forma, ainda que com ressalvas,

passaram a apoiar o Partido Liberal, o qual defendia um conjunto de reformas que

propunham, entre outras, eleições diretas, descentralização política, autonomia do Judiciário,

extinção da Justiça Administrativa, temporariedade do Senado e a neutralização do Poder

Moderador.8

O discurso liberal havia sido incorporado pelas oligarquias como um meio de legitimar

seus próprios interesses políticos. Cada vez mais este grupo se valia desta ideologia para

apoiar um projeto político a seu favor, para definitivamente obter a autonomia política através

do federalismo republicano. Muito longe de possuir uma vertente única, o ideário republicano

agregou variados setores (militares, aristocratas rurais e liberais urbanos), os quais se

utilizaram deste discurso para privilegiar suas reivindicações diante da insatisfação com o

Império.

Durante os últimos anos do Império ficou nítido que a figura de D. Pedro II não era

mais suficiente para manter a ordem escravocrata no país, frente às pressões internas e

externas. O Brasil passava por um momento de transformação e entre os fatores que

7 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. “O Processo Político-Partidário na Primeira República”. In: MOTA, Carlos

Guilherme (Org.) Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Difel, 1978, p. 167.

8 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. “O Constitucionalismo da Inefetividade: A

Constituição de 1891 no cativeiro do estado de sítio” In: ROCHA, Cléa Carpi da (Coord.). As Constituições Brasileiras.

Notícia, História e Análise Crítica. Brasília: Editora OAB, 2008, p. 26.

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motivaram esta mudança no país se encontram a própria dinamização do setor cafeeiro, a

entrada de investimentos estrangeiros, o aumento da importação e da exportação, a

diversificação do setor industrial ligado ao café, a modificação de regime de trabalho e a

modernização e mecanização do campo, como também a construção de ferrovias e portos.

Neste contexto, em que eram latentes as contradições presentes no Império e cada vez mais

desejada a autonomia política para algumas províncias, é que nasceram as propostas

republicanas no Brasil. Desse modo, é possível concluir que a República se concretizou muito

mais por uma insatisfação com a monarquia do que por um projeto estruturado e coeso acerca

do que viria a ser a República no Brasil.9

A República, então, poderia ser caracterizada como o último recurso da aristocracia

rural para se manter no poder, e reivindicar maior autonomia às províncias. Era notório que a

ideia de República não tinha adquirido uma grande popularidade, e seus defensores

inicialmente não possuíam destaque no campo político. Neste sentido, a República, vista

como retomada do poder político pela aristocracia rural a nível nacional, passou a figurar

dentro do horizonte de possibilidades políticas somente a partir da década de 1870, mesmo

que ainda timidamente.

Para que possamos nos situar sobre de que forma esta República foi ganhando um

corpo, é importante que remetamos à ideologia que dirigiu a elite rural do país. A visão

apresentada por este grupo era de cunho liberal conservadora, pautada em ideias difundidas na

Europa pelo conservador inglês Herbert Spencer, um darwinista social. Acreditava

cientificamente na sobrevivência dos mais aptos, e consequentemente na abstenção do Estado

da tutela sobre o indivíduo. Os indivíduos deveriam se sustentar e sobreviver através de

esforços próprios, sem que o Estado tivesse qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito,

sob risco de prejudicar o curso da evolução social. O dever do Estado seria resumido,

cabendo-lhe apenas a garantia das condições propícias a estas competições sociais. “A

pobreza era fruto da incapacidade congênita dos menos aptos na luta pela vida, que por isso

deveriam ser deixados à própria sorte.” Seria legítimo, então, evitar por todos os meios a

participação popular, daqueles inferiores, no processo de construção do Estado10.

No momento em que esta ideologia foi traduzida para o Brasil, a elite implementou,

pelo menos no discurso, um Estado com base no liberalismo. O principal tradutor do

conservadorismo inglês de Herbert Spencer aqui no Brasil foi Alberto Sales. Irmão de

9 FAORO, Raymundo. A República inacabada. Organização e prefácio Fábio Konder Comparato. São Paulo: Globo, 2007, p.

12. 10 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., p. 28.

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Campos Sales, era o ideólogo do republicanismo rural paulista. Dentre outras marcas,

defendia a não intervenção do Estado na economia, a adoção do federalismo, a separação

entre o Estado e a Igreja, a ampliação do discurso de liberdade comercial e industrial, sob a

total administração da elite rural paulista, que a rigor se utilizou destes mecanismos como

uma forma de garantir seus interesses. Contudo, para Christian Edward Cyril Lynch e Cláudio

Pereira de Souza Neto11, este discurso liberal, na prática, teria adquirido contornos mais

autoritários do que o liberalismo do Império.

Em resumo, durante o Império era patente que a elite administrativa e burocrática

deveria controlar e consolidar o Estado, para a construção de uma nação. Por outro lado, na

República os imperativos de mercado deveriam rezar as decisões acerca do Estado, o qual não

deveria ser conservador. A República apareceu como uma possibilidade, aparentemente mais

democrática, contudo potencialmente mais oligárquica. Importa também destacar que tal

diferenciação não exclui o fato de ambos os períodos poderem ser considerados elitistas.

Neste cenário, a ação do Estado na Primeira República fora marcada pela forte

presença da oligarquia cafeeira atrelada às novas necessidades do setor econômico. O foco de

poder passou a se encontrar nos estados. No discurso, o poder dos estados se apresentava

enquanto liberal, mas em seu funcionamento de fato era oligárquico. Maria do Carmo

Campello de Souza define o caráter da elite proprietária como: “Assim, a elite proprietária, ao

mesmo tempo que aspirava, do ponto de vista ideológico, a uma democracia liberal, agia de

modo que a participação política se restringisse a seus representantes.”12

Para a citada autora a adoção do liberalismo em países periféricos adquiriu contornos

mais específicos do que nos países desenvolvidos. No Brasil este modelo teria permitido que

um pequeno grupo, ao monopolizar o poder econômico, passasse a garantir o sistema de

desigualdade social. Nesta medida, o liberalismo implementado no país não deveria ser visto

somente como uma imposição externa, mas também como um importante instrumento

utilizado para a manutenção da hegemonia na política brasileira. Afinal de contas, o ideal

liberal garantia a livre iniciativa para os produtores de café no Brasil.

Por outro lado, este mesmo grupo também adotou medidas contrárias aos ideais

liberais quando fosse necessário atender seus próprios interesses. Esse aspecto pode ser

constatado através do desrespeito ao princípio liberal da não intervenção do Estado na

11 LYNCH, Christian Edward Cyril. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., p. 28. 12 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., p. 167.

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economia, já que no Brasil a política de valorização de preços do café foi algo constante na

Primeira República, o que exemplifica o conjunto de políticas de dirigismo econômico.

Novamente vem à tona a aparente contradição entre o discurso e a prática referentes ao

liberalismo. Como já apontado, não se trata de contradição, mas de apropriações discursivas

conforme a especificidade histórica e os interesses de classe, retraduzidos conforme suas

conveniências a partir das possibilidades de utilização da ideologia liberal. Intervenções e

dirigismo econômico estariam em discordância com os princípios da ideologia liberal

original, mas em plena consonância com a sua versão brasileiro-oligárquica. Um elemento a

ser somado é o fato de que no Brasil as elites econômicas tinham maior autonomia, uma vez

que não tinham estrangeiros dentre seus representantes, como ocorreu em outros casos.

Desse modo, muitos intelectuais que anteriormente estavam preocupados com a

elaboração de projetos e textos para o melhor desenvolvimento da República foram, com o

passar dos anos, se decepcionando com a forma obtida por esta. A adoção do modelo liberal

associado a sua manipulação pela elite rural gerou no país uma situação de desencanto e

fracasso político. Tal fato fez com que muitos intelectuais voltassem seus estudos para o

entendimento dos rumos que levaram a República ao fracasso. Exemplos desses intelectuais

foram Rui Barbosa, Amaro Cavalcanti, João Barbalho, dentre muitos outros nomes hoje

reconhecidos, mas que à época criticavam o regime que antes tinham apoiado. Outros, como

Agenor de Roure, foram forçados a assumir alguns fracassos do regime, mesmo que sem

assumir o tom crítico. E, no extremo oposto do campo político, estavam aqueles que tudo

tiveram a ganhar com aqueles moldes republicanos, como Alberto Sales (irmão de Campos

Sales e ideólogo de suas políticas), Alcindo Guanabara (jornalista e voz oficial do governo

Campos Sales), Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros (os três maiores

representantes do federalismo gaúcho), dentre outros. A fim de ilustração, vale citar o

desiludido e revoltado comentário de Rui Barbosa sobre a política republicana. No item

Política e Prostituição, Rui Barbosa escreveu:

Outra coisa não se pratica, hoje em dia, na política brasileira, onde as

doiraduras, as solenidades e as galas do governo constitucional apenas

mascaram desregramentos, contubérnio e orgias não menos maculosos

e desprezíveis. Por trás da fachada, com que as convenções legais

entretêm a hypocrisia de um systema liberal, reina a brutalidade e

impudência da caudilhagem na sua plenitude.13

13 BARBOSA, Rui. Ruínas de um governo: O governo Hermes; As ruínas da Constituição; A crise moral; A Justiça;

Manifesto á nação. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1931, p. 80.

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1.1.2 A Política Republicana

Sabe-se hoje que a democracia, a representação legítima, a cidadania ou a união

federalista foram elementos retoricamente reivindicados pelos homens do regime, mas que

não foram construídos na prática; ao menos não dentro dos modelos europeus. Foram

reinventados num país latifundiário, com a escravidão recém abolida, com economia

agroexportadora, e com uma elite permeada pela ânsia de se legitimar através do liberalismo.

O Decreto nº 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal, foi

assinado pelo Presidente Campos Sales, antes mesmo da própria Constituinte. Segundo

Agenor de Roure, o citado decreto foi escrito sob o imperativo da pressa. O Decreto

determinava que as obrigações que cabiam ao Supremo Tribunal Federal, entre outras, eram

as de julgar os conflitos entre os estados, atuar como um poder arbitral, efetuar o controle da

constitucionalidade das leis e por fim salvaguardar a integridade do ordenamento

constitucional para resguardar os direitos fundamentais. Contudo, esta estrutura observada e

desejada por Rui Barbosa enfrentou sérias dificuldades para se concretizar devido à forte

presença e destaque do Poder Executivo nas determinações de última instância.

É importante lembrar que neste período o Supremo Tribunal Federal se encontrava

extremamente cerceado pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo. Aquela instituição

teve o seu papel limitado na medida em que não poderia se pronunciar sobre questões que

versassem a política do país. Tal faceta somente poderia ser apreciada pelos outros poderes.

Desta forma, na maioria dos embates relevantes para os rumos do país, o Poder Executivo

atribuía ao caso a qualidade de questão política, e desse modo obtinha para si a

responsabilidade de deliberar sobre os pontos mais controversos14 da República.15

A República foi, desta maneira, uma forma de garantir um governo orientado pela e

para a oligarquia cafeeira paulista. Neste sentido, os constitucionalistas Christian Edward

Cyrill Lynch e Cláudio Pereira de Souza Neto cunharam o termo “constitucionalismo da

inefetividade” para caracterizar a Constituição Federal de 189116. A Carta Magna teria sido

esvaziada de qualquer caráter liberal progressista, sendo tomada por uma visão liberal

conservadora, principalmente a partir do governo do Presidente Campos Sales. Foi durante o

seu mandato que de fato havia se instaurado e consolidado a Política dos Governadores,

14 Como exemplos podemos citar as diferentes interpretações sobre as temáticas do estado de sítio, a intervenção federal e o

habeas corpus. 15 CAVALCANTI, Amaro. Regime Federativo e a República Brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1900,

pp. 314 e 315. 16 LYNCH, Christian Edward Cyrill. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit.

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determinando a formação do que podemos denominar de pacto federalista “ultra-liberal”, ou

seja, o qual atribuía autonomia quase total às antigas províncias, que durante a República

eram unidades da federação. Para Maria do Carmo Campello de Souza, Campos Sales

conseguira estabilizar o regime.

Durante o governo Campos Sales se instituiu toda a estrutura política de dominação e

reprodução das oligarquias rurais: a “Política do Café-com-Leite”, a “Política dos

Governadores”, o fortalecimento do “coronelismo”, e o mandonismo sobre os processos

eleitorais. Ao final do século XIX, foram estabelecidas algumas das principais bancadas

político-eleitorais, e o que importava era a equalização de forças do regime.

Ante o perigo de lutas e de um Congresso fracionado como os anteriores,

decidiu Campos Sales garantir-se o suporte das grandes bancadas de Minas,

São Paulo e Bahia e, fundado em mudança do Regimento Interno da

Câmara, impor ao Congresso uma certa linha de conduta na fase de

reconhecimento dos poderes. Definia-se ela por reconhecer somente os

diplomas dos candidatos eleitos pelas situações no poder naquele momento

dos respectivos Estados, não importando a que grupo pertencessem.17

É exagerado afirmar um pleno equilíbrio e harmonia entre os Poderes, pois consenso

não havia. Entretanto, Executivo, Legislativo e Judiciário eram corporificados por pessoas

imersas nesse meio político. Os conflitos entre Poderes ocorriam quanto a questões pontuais,

mas mantinham o funcionamento geral do regime. Por vezes eram questionados a intervenção

federal, a imigração, a responsabilidade civil do Estado, o problema fiscal, ou a jurisdição

sobre terrenos públicos, mas poucos foram os que criticaram as bases que fundamentavam

esta República oligárquica. Para um retrato geral da Primeira República, as palavras de Maria

do Carmo Campello de Souza são ilustrativas:

O panorama geral da Primeira República que vimos esboçando,

encontra correspondência num sistema político cujo foco de poder se

localiza nos Estados, sob a hegemonia dos economicamente mais

fortes, liberal na sua forma, oligárquico quanto ao funcionamento

efetivo.18

17 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., pp. 182-183. Grifos no original. 18 101 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. Cit., pp. 166-167.

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2 O surgimento da Responsabilidade civil do Estado sob outra perspectiva

Após esta discussão acerca do caráter político predominante do Estado na Primeira

República, é possível retomar o objetivo maior do trabalho, isto é, pensar o processo de

responsabilização do Estado no Direito brasileiro.

Dentre os principais argumentos apresentados pelos estudiosos do tema havia uma

convergência de que a responsabilidade civil do Estado no Brasil teria advindo na sociedade

brasileira como uma forma de civilidade e igualdade, devido principalmente à adoção do

modelo liberal. Contudo, antes de chegar a tais conclusões, acredita-se ser de vital

importância traçar uma relação entre o desenvolvimento da responsabilização do Estado com

o contexto histórico brasileiro e com as disputas de poder estabelecidas à época.

Primeiramente, é importante avaliar qual seria o grau de autonomia política permitida

ao Poder Judiciário na Primeira República. Mesmo sofrendo inúmeros cerceamentos de atos

pelo Poder Executivo, é notório que em muitos casos o Judiciário se pronunciou na tentativa

de limitar a proeminência do Estado no cenário político. Sobre este aspecto, Amaro

Cavalcanti19 ressaltou os abusos cometidos pelo Poder Executivo, quando feria a Constituição

Federal. Em seus estudos propunha meios de se diminuir os “males da República”, ou seja,

denunciava os excessos cometidos pelo Poder Executivo. Não é sem fundamento que este

jurista, também Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizou um dos trabalhos de maior

relevância quanto à responsabilidade civil do Estado. Desta forma, pensava já em um meio de

limitar a atuação livre e sem consequências do Estado em relação à sociedade.

A partir do debate sobre apropriações do discurso liberal, constata-se que pelo menos

no discurso elaborado pelo Estado prevalecia a ideia de um Brasil liberal, igualitário e livre.

Porém, pelo que foi observado até o momento, pode-se concluir que no Brasil o liberalismo,

ao contrário do que afirmado pelos atuais estudiosos do Direito já citados, não trouxe consigo

um ideal de afirmação ou ampliação de direitos, mas trouxera a consagração da desigualdade

social e de aprofundamento de regime autoritário. Obviamente, não se pode desconsiderar o

fato de que com a adoção do regime republicano promoveu-se, pelo menos em teoria, um

ambiente mais propício à reclamação por via judicial por parte do cidadão.

Desta forma, enquanto são reconhecidas as explicações para o surgimento da

responsabilidade civil do Estado no Brasil, dadas por outros estudiosos, aqui se pretende ir um

19 CAVALCANTI. Amaro. Op. Cit., pp. 294 - 311.

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pouco além. A hipótese ora sustentada defende que o debate em torno da responsabilidade

civil do Estado teria advindo na Primeira República em decorrência de fatores que

ultrapassam a adoção do liberalismo. Tal advento não se limita a este único ponto, até porque

poder-se-ia questionar que liberalismo foi esse, ou a quem ele estava favorecendo.

Deste modo, a responsabilidade civil do Estado no Brasil teria suscitado suas

primeiras discussões mais em função da atuação repressiva e autoritária do Estado do que

simplesmente pela adoção do liberalismo no Brasil ou pelo ideal republicano de igualdade.

Como os atuais estudiosos do Direito não contextualizaram política ou historicamente os

conceitos por eles abordados, os significados atribuídos aos vocábulos foram considerados

como aqueles desejados para explicar o argumento. Em geral, os conceitos foram

compreendidos como se tivessem sido retirados de sua origem, como a Europa do século

XVIII. Conforme observado anteriormente, todos os termos políticos, inclusive todo o

conjunto da teoria liberal, foram importados, apropriados, reinterpretados e resignificados

conforme demandava cada situação política específica no Brasil.

Liberalismo, República, igualdade, presidencialismo, federalismo, cidadania ou

democracia são exemplos de conceitos que extrapolam sua utilização em programas políticos.

Podem até constar em documentos, mas se for considerado seu poderio retórico,

percebe-se que estes conceitos eram dotados de um calibre muito mais simbólico e

representativo, do que prático e real. Assim, ao invés de focar a análise sobre o que os

conceitos deveriam significar a partir da realidade acadêmica europeia do século XVIII,

prefere-se aqui abordar os conceitos dentro dos seus efeitos políticos verdadeiramente

esperados por aqueles que os reformularam no Brasil.

3 Das motivações que levaram indivíduos ao Judiciário para propor ações de

indenização contra o Estado pelos danos sofridos.

A partir da pesquisa realizada no Arquivo Geral do Tribunal Regional Federal da 2ª

Região, pela historiadora Priscila Gonçalves foi possível conhecer inúmeros casos que

especificamente pretendiam responsabilizar o Estado pelos danos causados à sociedade. No

referido trabalho de investigação ficou constatado que o Estado se encontrava envolvido

como réu nos mais diversos processos que diretamente estavam ligados às novas vivências

cotidianas da capital da República – a cidade do Rio de Janeiro.

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Em sua dissertação de mestrado em Sociologia e Direito, a historiadora Priscila

Gonçalves ao fazer a leitura de cada caso, identificou doze categorias de demandas judiciais.

São elas: acidente, carregamento não entregue, censura, dano por ato administrativo,

depredação, desapropriação, falha na execução de contrato, negação de isenção de imposto,

rescisão de contrato, prejuízo devido a questão bancária, perseguição política e violência

arbitrária e, por último, funcionalismo público. E observou que havia em todos os casos uma

relação direta ou indireta às mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro e às questões

políticas advindas com a proclamação da República.

Como foi relatado anteriormente, o Estado brasileiro em muitos momentos

apresentou-se de forma autoritária e arbitrária na Primeira República. A necessidade de se

garantir o poder nas mãos da elite cafeeira paulista fez com que este grupo, utilizando-se de

um discurso com base no liberalismo, se apresentasse como poder hegemônico perante os

outros estados do Brasil.

Esta atuação política do Estado conduziu a uma enorme quantidade de atentados, atos

violentos, demissões indevidas, desapropriações ilegais, etc. Como consequência, muitos

indivíduos se sentiram lesados e optaram pelos tribunais para reclamar seus direitos violados

pelo Estado. Desta forma, conclui-se que as próprias atitudes que direcionaram a postura do

Estado na Primeira República, em última instância, também levaram à intensificação do

debate acerca da necessidade de sua responsabilização. Na mesma medida em que

gradativamente aumentava o número de processos que pleiteavam a responsabilização do

Estado, exigia-se dos juízes e dos ministros do Supremo Tribunal Federal um maior estudo e

debate acerca da temática.

Não se pode afirmar que todos estes processos foram julgados positivamente em favor

das partes lesadas pelo Estado. Segundo o referido estudo feito por Priscila Gonçalves, até

1916 a maior parte dos julgamentos indeferiu os pedidos de responsabilização do Estado,

posicionamento que começou a se inverter a partir de 1916. Por ora pode-se atestar que esta

demanda ao Supremo Tribunal Federal trouxe consigo a necessidade de se estabelecer um

entendimento legal acerca do assunto.

Cumpre ressaltar que todas estas reclamações foram feitas em um período em que

ainda não estava completamente assentada a noção de responsabilidade civil do Estado, pelo

menos em termos legais. A Constituição Federal de 1891 ainda estabelecia a responsabilidade

do funcionário perante o dano causado.

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4 Discussões a respeito da Responsabilidade Civil do Estado em razão do art. 15 do

Projeto de Lei do Código Civil de 1916

O projeto do Código Civil foi redigido por Clóvis Beviláqua durante o Governo

Campos Sales. Após a sua feitura, em 1902, Rui Barbosa foi eleito para o cargo de relator da

Comissão Especial do Senado encarregada de analisar o projeto em questão. Ao iniciar as

discussões sobre a responsabilidade civil do Estado referenciada no artigo 15 do Código Civil,

na sessão do dia 18 de março de 1902, na Câmara dos Deputados, o Deputado Gastão da

Cunha20 logo discorreu acerca da importância do tema, diante da necessidade de ocorrer a

conciliação entre a independência da administração pública e a liberdade civil.

A principal crítica apresentada pelo Deputado tinha como base a escrita do artigo 15,

que somente considerava o Estado responsável por seus atos de direito privado, não

permitindo a responsabilização do Estado enquanto entidade política, ou seja, pela

manifestação de seus atos políticos. Para ele, esta proposta feria de modo geral a todo o

Código Civil, na medida em que caberia a este garantir um sistema completo de garantias

individuais. Contudo, uma vez que o indivíduo lesado em seus direitos buscasse amparo legal

contra qualquer ato político cometido pelo Estado, este ente encontrar-se-ia irresponsável

perante estas obrigações. Caso a redação do art. 15 do referido projeto de lei fosse aprovada

na sua íntegra, o Poder Legislativo estaria admitindo a possibilidade de cerceamento de

liberdade civil dos indivíduos diante dos abusos cometidos através de atos políticos.

Preocupado com tal possibilidade, Gastão da Cunha defende a necessidade de ajustes

na redação do art. 15 pautando-se no argumento de que toda obrigação de reparar um dano

derivaria da culpa. Como o conceito de culpa apresentar-se-ia de forma idêntica tanto para o

Direito Privado como para o Direito Público, o mesmo princípio deveria regular as relações

entre os indivíduos particulares, assim como entre os indivíduos e o Estado. O que

determinaria uma obrigação quer entre indivíduos ou pessoas jurídicas não seria a qualidade

da pessoa, mas o ato por ela praticado, o seu conteúdo estabelecido. Desta forma, caberia ao

Código Civil formular as regras gerais no que diz respeito à responsabilidade civil, do mesmo

modo que ao direito administrativo seria atribuída a função de restringi-lo ou não, conforme o

20 Deputado Federal pelo estado de Minas Gerais nos períodos de 1900 – 1902 e 1903 – 1905. Foi advogado na cidade de

Belo Horizonte; Promotor Público, Juiz Municipal e Juiz de Direito das Comarcas de Ubá, Tiradentes e Rio Preto, 1885 –

1894; Diretor, Imprensa Oficial da cidade de Ouro Preto, 1895; Promotor Geral do Estado, em Belo Horizonte, 1896 – 1898;

Lente da Faculdade de Direito de Minas Gerais desde 1896; Árbitro do Tribunal Arbitral Brasileiro e Boliviano; Nomeado

para o Tribunal Arbitral Brasileiro e Peruano; Ministro do Brasil no Paraguai; Sub-Secretário de Estado do Ministério do

Exterior, 1915; Embaixador em Portugal. Integrou a delegação brasileira na III Conferência Internacional Americana, 1906;

Membro da delegação brasileira na IV Conferência Internacional Americana, 1910.

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seu entendimento. O Direito civil naturalmente apresentaria matérias comuns a ambos os

ramos do Direito por se tratar de uma legislação que regulamentaria as relações individuais.

Esta faceta permitiria que outras modalidades do direito, a partir do que foi pensado no

Código Civil, fizessem as devidas adaptações ou modificações de termos ou palavras.

Fortalecendo o seu entendimento Gastão da Cunha demonstrou a existência da

responsabilidade do Estado, na hipótese do Poder Executivo ser responsável pelos danos

provocados a um inocente condenado injustamente depois de constatada a sua revisão

criminal, conforme estabelecido no artigo 86 do Código Penal e, desta forma, concluiu que

restringir o conceito de responsabilidade do Estado no Código Civil seria no mínimo

contraditório perante o Direito. A construção deste argumento procurava enfatizar que a tese

da irresponsabilidade do Estado já há muito tempo não era aceita no mundo do Direito. Em

seu discurso, o Deputado afirmou que esta tese somente poderia ter vigorado completamente

na antiguidade, quando não era possível conceber uma distinção entre a liberdade civil e a

liberdade política, ou seja, entre o Direito Público e o Direito Privado.

Durante a sua exposição, ao retornar ao debate do artigo 15, conclamou a todos os

presentes a constatarem o retrocesso que permeava a sua escrita. Afirmou que já era notório

na doutrina que o Estado era civilmente responsável pelos danos injustamente causados a

terceiros por seus prepostos, fosse por abuso ou omissão. Consagrar este artigo no Código

Civil seria um enfraquecimento desta tese e consequentemente uma violação da liberdade

civil, declarou Gastão da Cunha.

Apesar da defesa calorosa do Deputado Gastão da Cunha a respeito de uma completa

responsabilidade do Estado, não tardaram argumentos contrários ao seu posicionamento,

como foi o caso do Deputado Luiz Antônio Domingues da Silva21 sob os argumentos de que

não haveria tesouro suficiente para o pagamento de todas as indenizações.

Outro argumento apresentado para furtar o Estado de sua responsabilidade se pautou

na sua correlação com o poder público, o qual necessariamente seria soberano, e esta

soberania o levaria à irresponsabilidade. Neste caso, a soberania estaria confundida com um

poder real. O argumento de defesa discorrido por Gastão da Cunha se baseou na ideia de que

soberania não seria o mesmo que irresponsabilidade, assim como a independência do Estado

para formular a norma jurídica não excluiria a sua submissão a este quadro.

21 Deputado Federal pelo estado do Maranhão nos períodos de 1891 – 1893, 1894 – 1896, 1897 – 1899, 1900 – 1902, 1903 –

1905, 1906 – 1909, 1909 – 1912, 1915 – 1918, 1918 – 1921 e 1921 – 1924.

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O Deputado José Manoel de Azevedo Marques22 provocou Gastão da Cunha ao

questioná-lo se o preceito por ele defendido da responsabilidade civil do Estado não estava já

consagrado no artigo 15 do projeto do Código Civil. Para respondê-lo, primeiramente,

esclareceu que o Estado somente seria responsabilizado por danos provenientes de atos

privados e não por atos de direito privado. Tal faceta permitiria a sua responsabilização

unicamente quando agisse igualmente a um ente civil, ou seja, um simples particular.

Para que melhor percebessem esta distinção, Gastão da Cunha os interrogou quanto à

possibilidade de que o Estado, dentro das suas atribuições políticas, violasse o direito

individual, por exemplo reformando ilegalmente um militar ou demitindo professores

vitalícios. Nestes casos, o Estado não estaria agindo em seu caráter privado e da mesma

forma cometeria danos aos direitos de terceiros.

Para Gastão da Cunha, o foco da questão era que a distinção ora entre pessoa privada e

ora entre pessoa pública representaria algo ilógico, pois haveria uma grande dificuldade de se

pensar esta divisão de papéis. O Estado, enquanto um ente único, cuja função seria

administrar, nunca perderia o seu lado de entidade política, pois partir-se-ia da premissa de

que ele sempre agiria em prol dos interesses da coletividade. Desta forma, em nenhum ato

praticado pelo Estado este perderia a sua qualidade política. Então, para o autor, o Estado, que

em determinados momentos somente praticava atos privados, não poderia ser classificado

como Estado.

Após as calorosas discussões, a redação do artigo 15 do Código Civil foi definida e

apresentada no ano de 1916, sabiamente, sem restringir a responsabilidade das pessoas

jurídicas de Direito Público somente sobre os atos de caráter privado praticados por seus

representantes dentro dos limites de suas atribuições, a saber:

As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis

por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a

terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever

prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do

dano.

Cumpre ressaltar que tal legislação foi considerada ambígua à época. Muitos

pensavam que o artigo trazia em seu texto a descrição da teoria da responsabilidade subjetiva,

mas por outro lado alguns defendiam que já anunciava a ideia de responsabilidade objetiva.

Pode ser aqui conjecturado que a imprecisão jurídica suscitada pelas brechas na lei foi mais

22 Deputado Federal pelo estado de São Paulo nos períodos de 1900 – 1902 e 1903 – 1905.

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que um erro legislativo. A ambiguidade da lei possibilita exatamente a ambiguidade na

interpretação, e consequentemente a aplicação discricionária, de acordo com os interesses

contextualmente convenientes às elites23.

Evidente que diversas parcelas da população recorreram a várias formas de protesto

contra tais arbitrariedades, inclusive através do Judiciário. Entretanto, este conflito, ao invés

de revelar a pluralidade de concepções políticas convivendo em respeito mútuo, como

permitem entender alguns pesquisadores, mostra justamente que as elites tentavam impor suas

vontades autoritariamente. As reações populares não estavam em igualdade de forças; pelo

contrário, constituíam a exceção que confirmava a regra, perante o poderio de um Estado que

já se consolidava.

Os argumentos defendidos não só pelos juristas, mas também pelo Deputado Gastão

da Cunha, encontravam-se inseridos em um debate maior, acerca da constituição de uma

sociedade liberal. O liberalismo no Brasil foi apropriado pela elite brasileira de forma tão

somente discursiva, transmutando-se num Poder Executivo extremamente autoritário, mesmo

que com poderes limitados. Exemplo que pode ser citado é a elaboração do artigo 82 que

tratava, na Constituição de 1891, da responsabilização civil do Estado, e que foi praticamente

copiado do artigo 179 da Constituição de 1824. Na Lei Maior de 1824 a responsabilização

cabia, a princípio, somente ao funcionário que causasse um dano. Que Estado era esse, que se

afirmava liberal na Carta de 1891, mas que relegava ao funcionário qualquer erro que o

Estado cometesse?

Os juristas atuais atribuem a instauração da responsabilidade civil do Estado à adoção

do sistema liberal. Vimos que o liberalismo nunca foi implementado em sua plenitude, e nem

mesmo figurou entre as intenções das elites (ou mesmo do povo) brasileiras. Em alguns

ambientes, entretanto, o discurso se proliferou.

Mesmo que no Brasil o liberalismo fosse adotado em discurso, mas com uma prática

oposta, havia certamente uma nova tendência intelectual aberta à produção de novas ideias.

23 192 Anteriomente foi citado o trabalho de Maria do Carmo Campello de Souza, para quem o liberalismo brasileiro era

permeado por características próprias, o que foi retraduzido para o próprio caráter do Estado republicano. Para a autora, esse

Estado ambíguo, liberal e oligárquico, foi reflexo do Brasil como país de economia periférica, dependente do mercado

exterior, exportador de bens primários. O liberalismo e as estruturas políticas foram aqui implantadas não como contestação

revolucionária, mas como contestação para manter as elites oligárquicas no poder. Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello

de. “O Processo Político-Partidário na Primeira República”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.) Brasil em Perspectiva. Rio

de Janeiro: Difel, 1978. As referências a “elites” no decorrer deste trabalho obedece não à concepção que classifica as

divisões sociais entre “elite” e “não elite”.

Consideram-se aqui como “elites” as frações sociais detentoras de poder hegemônico sobre demais camadas sociais, poder

este de caráter político e social, mas como reflexo de lugares sociais economicamente privilegiados. Assim, pessoas ou

camadas sociais não compõem “elites” porque assim o desejam, mas porque preenchem condições sociais que lhes permitem

serem reconhecidos com poderes e direitos além de outras pessoas, reconhecimento este não necessariamente consciente,

bastando a ignorância da subordinação social para que se estabeleça a dominação feita pela elite.

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Os juristas da época da Primeira República tiveram uma formação que agregou parte daquele

liberalismo de molde europeu, e as novas formulações de “justiça”, por esses juristas,

englobavam o mínimo do liberalismo europeu.

É exagerado afirmar que o liberalismo levou automaticamente à responsabilização

civil do Estado, uma vez que as elites brasileiras não implementaram o liberalismo clássico

durante a Primeira República. Em alguma medida, entretanto, quando os juristas elaboraram

suas teses, o fizeram em boa parte para responder às demandas da população, que interpelava

a produção jurídica através de seus processos judiciais. Menos pelo liberalismo discursivo das

elites, e mais pela formação dos juristas unida à ação da população, é que o Supremo Tribunal

Federal foi obrigado a refletir e a traçar uma linha jurisprudencial sobre o tema, enquanto não

houvesse uma legislação específica que definisse os limites da responsabilização civil do

Estado. Este argumento permite que seja estudado o pensamento jurídico como um elemento

primordial para o mapeamento dos rumos e projetos elaborados pela elite brasileira na busca

pela organização da nação republicana. As normas jurídicas estavam inseridas dentro de um

contexto histórico específico, devendo desta maneira ser pensadas como práticas sociais

historicamente dadas.

Por outro lado, o pensamento difundido pela doutrina foi amplamente amparado pela

sociedade que, como descreveu Amaro Cavalcanti, recorreu à instância do Supremo Tribunal

Federal para reclamar seus direitos lesados. Por conta desta situação não faltaram

regulamentos ou leis esparsas pela legislação brasileira que trataram especificamente de

responsabilidade civil de determinados órgãos estatais. O artigo 60 da Constituição Federal de

1891 foi um exemplo emblemático citado pela maioria dos juristas para legitimar a

responsabilidade do Estado. Para muitos destes juristas o princípio da responsabilidade civil

já se encontrava assentado no país, havendo somente a necessidade de definir alguns tópicos

sobre a questão para de fato afirmá-la na legislação brasileira. Em nenhum momento estes

juristas colocavam em dúvida a necessidade de que tal instituto constasse como regra no

Direito brasileiro. Durante a Primeira República era comum que ocorressem prisões ou

detenções indevidas, assim como intervenções tortuosas da polícia sanitária nos domicílios de

particulares. Muitos também foram os conflitos armados durante o período, sem contar os

transtornos decorrentes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, que provocaram danos à

sociedade. Em uma cidade em processo de expansão não foram poucas as obras e os

processos de implementação de serviços públicos que motivaram prejuízos, muitas vezes

fatais, aos indivíduos que utilizavam estes serviços. Entre elas se podem citar as companhias

férreas e as companhias de bondes na cidade do Rio de Janeiro.

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Desta forma, os inúmeros escritos dos juristas citados se tornaram uma fonte

riquíssima de argumentação para todos os advogados que desejavam propor ações contra o

Estado, quando ainda não havia na legislação brasileira nenhuma norma para tal. A forte

presença da sociedade em instâncias do Judiciário também foi um forte fator que levou a

discussão do tema a instâncias como o Supremo Tribunal Federal, que logo formulou, ainda

que precariamente, o seu entendimento sobre a matéria. Todos estes pontos contribuíram para

a configuração de um contexto em que a necessidade do debate sobre o assunto era vital e de

suma importância, já que todos se encontravam diante da possibilidade de sofrer um dano

decorrente de abusos cometidos pelos poderes públicos.

Pode-se concluir, então, que para além de um simples ideário em torno de conceitos

como puramente a igualdade ou a liberdade, havia no Brasil um movimento mais complexo e

dinâmico que motivou a entrada da responsabilidade civil do Estado no rol dos grandes temas

jurídicos discutidos na Primeira República.

Considerações Finais

Apesar da maioria dos trabalhos jurídicos explicarem o surgimento da

responsabilidade civil do Estado no Brasil a partir de conceitos universais, por exemplo o

ideal liberal e igualitário, no presente trabalho foi preferido empreender uma ótica distinta

sobre o tema em seu aspecto histórico, por constatar-se que a explicação pautada sobre o

liberalismo por si não poderia dar conta de explicar a enorme demanda de processos judiciais

que almejavam responsabilizar o Estado durante a Primeira República, bem como a

normatização da responsabilidade civil do Estado no Brasil.

Assim, foi desenvolvida uma contextualização histórica com o objetivo de

compreender as reais influências do liberalismo e iluminismo europeu na política brasileira e

os seus efeitos sociais durante a primeira república.

Como o liberalismo e o republicanismo não trouxeram uma ampliação de direitos,

então explica-se a responsabilização do Estado na primeira república brasileira com os

embates judiciais contra o Estado recém republicano, mas ainda oligárquico e autoritário, e os

intensos debates doutrinários e as ásperas defesas para o cerceamento dos poderes do Estado

no Poder Legislativo.

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O Estado na Primeira República se dizia liberal na sua forma, mas na sua essência foi

pautado pela hegemonia política dos estados economicamente mais fortes e marcado pelo

autoritarismo quanto ao seu funcionamento.

Assim, ao longo deste trabalho se demonstrou as diversas formas de intervenção e

atuação do Estado que provocaram danos à sociedade, ou melhor, que feriram concepções de

direito de determinadas parcelas da sociedade, impulsionando-as a uma mudança

comportamental de ir em busca do exercício de seus direitos individuais em face do Estado, e

como não existia legislação específica o Poder Judiciário em suas discussões ao julgar as

respectivas demandas ensejou o Poder Legislativo a estabelecer normas atinentes à

responsabilização civil do Estado.

Um marco para o reconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro quanto à

responsabilidade civil do Estado, após tantas discussões nos âmbitos políticos e sociais

aconteceu através do artigo 15 do Código Civil de 1916, o qual não fez nenhuma menção

restringindo a responsabilidade das pessoas jurídicas de Direito Público somente sobre os atos

de caráter privado praticados por seus representantes dentro dos limites de suas atribuições,

como pretendia a redação do respectivo projeto de lei. Este artigo, hoje, é considerado a

primeira norma a reconhecer a responsabilidade civil do Estado na legislação brasileira.

Nas primeiras décadas da República, então, o longo processo de construção da ideia

jurídica da responsabilidade civil do Estado foi permeado por diversos fatores, tanto em

conflito como em consonância. Certamente não se pode atribuir a apenas um elemento o

surgimento deste instituto jurídico. É importante observar toda a complexa dinâmica política e

social em que se processaram os amplos conflitos. Um Estado autoritário e arbitrário que

provocava danos, um corpo de juristas embebidos em disputas intelectuais liberais, o recurso

ao Judiciário por elementos da sociedade, e a geração de demanda por novas concepções

jurídicas, foram fatores que formaram o instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado,

que, muito além de um conceito, fornece um retrato de uma época.

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