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CONSIDERAÇÕES SOBRE FOTOGRAFIA, ARTE E TECNOLOGIAS DIGITAIS Silvana Boone Doutoranda em Artes Visuais pelo PPGAVI-UFRGS Professora do Centro de Artes e Arquitetura da Universidade de Caxias do Sul [email protected] A evolução do homem, desde a pré-história sempre esteve atrelada às tecnologias vigentes em cada época. A partir da invenção da fotografia, no século XIX, o homem acostumou-se a conviver com uma nova realidade de imagens intermediadas pela tecnologia dos primeiros equipamentos fotográficos. Se originalmente a fotografia estava associada à sua fixação num determinado suporte, fosse ele vidro, chapa de cobre ou papel, hoje, essa imagem se apresenta no universo da imaterialidade, a partir de dados numéricos tornados visíveis em telas de computador, telefones celulares, telas de plasma ou outras mídias armazenadoras de informação e ainda podem ser impressas sobre diversas superfícies, inclusive papel. No século XX, assistimos ao processo de democratização da fotografia, ao advento do cinema, da televisão, do vídeo e da informática. A partir dos anos 1980, imagens de diferentes naturezas passam a traduzir os conceitos e os apelos do mundo: multiplicidade, simultaneidade, citação, apropriação, repetição, efemeridade, descontinuidade, colagem, fragmentação, que entre outros, passam a ser identificados também na produção de imagens contemporâneas. Para o homem do final do século XX torna-se necessária a criação de meios que acompanhem esses conceitos e o pensamento caracterizado pela pluralidade de acontecimentos que são gerados ao seu redor. Surge a imagem eletrônica e posteriormente, as tecnologias interativas. As tecnologias atuais não mais tratam a imagem, também sendo fotografia, na ordem da materialidade, mas tornam dados numéricos em imagem visual que de uma certa forma, tornam visível a realidade. Uma imagem digital é uma imagem transformada em números, decodificada por um sistema computacional enquanto informação. O que vem a ser a informação numérica de dados ou uma imagem digital? André Parente define imagem digital como sendo “a imagem obtida através da digitalização de cada um dos pixels da imagem através da distribuição de números para cada um deles, em função de sua crominância e luminância. Muitas vezes se confunde imagem digital e imagem de síntese. (...) O conjunto dos pontos da imagem se transformará, portanto, numa matriz numérica digital” (1999, III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2652

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CONSIDERAÇÕES SOBRE FOTOGRAFIA, ARTE E TECNOLOGIAS DIGITAIS

Silvana Boone

Doutoranda em Artes Visuais pelo PPGAVI-UFRGS

Professora do Centro de Artes e Arquitetura da Universidade de Caxias do Sul

[email protected]

A evolução do homem, desde a pré-história sempre esteve atrelada às tecnologias

vigentes em cada época. A partir da invenção da fotografia, no século XIX, o homem

acostumou-se a conviver com uma nova realidade de imagens intermediadas pela tecnologia

dos primeiros equipamentos fotográficos. Se originalmente a fotografia estava associada à sua

fixação num determinado suporte, fosse ele vidro, chapa de cobre ou papel, hoje, essa imagem

se apresenta no universo da imaterialidade, a partir de dados numéricos tornados visíveis em

telas de computador, telefones celulares, telas de plasma ou outras mídias armazenadoras de

informação e ainda podem ser impressas sobre diversas superfícies, inclusive papel.

No século XX, assistimos ao processo de democratização da fotografia, ao advento do

cinema, da televisão, do vídeo e da informática. A partir dos anos 1980, imagens de diferentes

naturezas passam a traduzir os conceitos e os apelos do mundo: multiplicidade,

simultaneidade, citação, apropriação, repetição, efemeridade, descontinuidade, colagem,

fragmentação, que entre outros, passam a ser identificados também na produção de imagens

contemporâneas. Para o homem do final do século XX torna-se necessária a criação de meios

que acompanhem esses conceitos e o pensamento caracterizado pela pluralidade de

acontecimentos que são gerados ao seu redor. Surge a imagem eletrônica e posteriormente, as

tecnologias interativas.

As tecnologias atuais não mais tratam a imagem, também sendo fotografia, na ordem

da materialidade, mas tornam dados numéricos em imagem visual que de uma certa forma,

tornam visível a realidade. Uma imagem digital é uma imagem transformada em números,

decodificada por um sistema computacional enquanto informação. O que vem a ser a

informação numérica de dados ou uma imagem digital? André Parente define imagem digital

como sendo “a imagem obtida através da digitalização de cada um dos pixels da imagem

através da distribuição de números para cada um deles, em função de sua crominância e

luminância. Muitas vezes se confunde imagem digital e imagem de síntese. (...) O conjunto

dos pontos da imagem se transformará, portanto, numa matriz numérica digital” (1999,

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p.284). O conceito original da fotografia enquanto impressão da luz já não corresponde ao que

identificamos como fotografia digital, imaterial, não necessariamente impressa. Segundo

Couchot de um ponto de vista técnico, não se trata mais exatamente de imagens, mas de

informação; não mais de signos, mas de sinais codificados – os bits – tratáveis pelo

computador, no qual imagens, sons e textos pode ser convertidos ou que podem se converter

em imagens, em sons e textos” (2003, p.155).

O meio proporciona uma nova leitura de imagem e a geração de novos conceitos, bem

como a idéia de representação conferida à fotografia durante muito tempo. A invenção da

fotografia abriu um universo múltiplo para os artistas que, no século XIX, viam-se limitados a

representar o mundo ao seu redor, condição da arte até então. Ao recorrer à fotografia como

representação da realidade, fotógrafos e artistas iniciaram um processo de evolução e

utilização de recursos técnicos da imagem, concretizado nas vanguardas artísticas do início do

século XX. Ao final desse século, uma nova realidade da imagem se apresenta, quando novas

tecnologias são incorporadas à arte e à fotografia e, mais do que isso, quando ambas

caminham na mesma direção. Michael Rush diz que “com a arte tecnológica, o próprio meio

de expressão muda radicalmente quando a tecnologia muda”(2006, p.186).

Assim, o final dos últimos dois séculos é marcado por grandes transformações e

evoluções técnico/tecnológicas responsáveis pelos resultados obtidos na produção de uma

imagem fotográfica. “O uso cada vez maior do microcomputador desencadeou uma era na

qual muitos artistas podiam pegar material de uma fonte básica(uma fotografia) e manipulá-lo

usando a linguagem computadorizada”(RUSH, 2006, p.178). Os recursos digitais

oportunizaram facilidades e rapidez na manipulação da fotografia e, ainda de acordo com

Rush, “as fotografias são traduzidas para a linguagem do computador por meio de um scanner

, que realiza um processo novo e simples no qual uma imagem bidimensional é transformada

em linguagem binária matemática(ou digital) do computador. O material primário (a

fotografia) torna-se maleável porque agora consiste apenas em dígitos distintos” (2006,

p.178).

Esses novos recursos oferecidos pela tecnologia digital aumentam as possibilidades e

conferem à imagem contemporânea uma nova significação. Mas, se por um lado ela amplia o

universo da criação, por outro, ela desvirtua a noção de realidade ou da sua representação ao

qual à fotografia sempre esteve atrelada.

Crise na crença do real e manipulação de imagem

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Processos de manipulação de imagem através de softwares e equipamentos periféricos

computacionais permitem ao homem criar novas imagens, fictícias ou não, simulando ou

ressaltando novas realidades. Conforme Carlos Fadon Vicente, “esta nova situação de

inacessibilidade e volatilidade é avassaladora. Ela traz à baila a natureza perversa da

fotografia – a possibilidade de sua manipulação – que deixa de ser um dado periférico e passa

a ser uma questão nuclear prestando-se à censura, ao patrulhamento ideológico, ao política

e/ou mercadologicamente correto”(VICENTE, 1998, p.331). Historicamente, a produção

artística do homem está ligada ao contexto em que ele vive. No passado, a arte manifestou-se

de diferentes formas, associada muitas vezes ao contexto social, político e religioso de sua

época e localização, bem como era desenvolvida a partir do aparato técnico e científico do

período. Em cada época, o artista adaptou-se às técnicas ou adaptou-as aos seus processos

criativos. Desde que a fotografia começou a ser pensada de forma criativa, nela mesma ou no

campo da arte, houve inúmeras referências técnicas. Tomemos por exemplo, as

fotomontagens de John Heartfield, durante o período nazista na Alemanha. Engajado aos

conceitos dadaístas do grupo de Berlim, Heartfield usou a técnica da fotomontagem como

uma arma política para desenvolver uma crítica através da imagem impressa. Segundo

Annateresa Fabris, Heartfield interessava-se pela fotografia por considerá-la uma linguagem

internacional e de acesso rápido a todos (2002, p.4). E referindo-se a Benjamin, a autora

destaca o “autor como produtor”: “eminentemente política, a atitude de Heartfield não deixa

de apresentar pontos de contato com a figura do “autor como produtor”, postulada por Walter

Benjamin em 1934. Nessa imagem, Benjamin enfeixava uma nova concepção de arte e

cultura, que punha fim à velha divisão entre os gêneros e às antigas hierarquias, propondo

uma nova integração entre artista e público, ambos autores, ambos produtores”(2002, p.7) .

Os conceitos presentes nas fotomontagens de Heartfield vão muito além da criação

artística. Seu comprometimento social e político determinava sua criação artística, avançando

as próprias idéias de negação da arte no Dadaísmo. A utilização da técnica fotográfica, o uso

de recortes e a utilização da imagem nos meios de comunicação impressos a serviço do

proletariado industrial alemão conferiram a ele o status de Monteurdada, ou seja, um operário

dadaísta, “uma vez que, em alemão, Monteur designa o operário que trabalha na indústria

automobilística e o eletricista, entre outros” (FABRIS, 2002, p. 3).

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Figura 1: John Heartfield , Adolf, o Super-homem:traga ouro e fala disparates(1932) (1)

Figura 2: John Heartfield, Goering, o carrasco do Terceiro Reich(1933) (2)

À medida em que técnica fotográfica se desenvolve junto com as demais tecnologias,

procedimentos manuais como os de Heartfield passam a ser executados com o uso de novos

recursos, conhecidamente na atualidade como manipulação digital da imagem.

Existe uma crise na crença da imagem hoje. A imagem fotográfica não é mais prova do

real, nem tampouco de registro. Com o uso das tecnologias, questiona-se se ainda temos o

conceito de real, de verdadeiro na fotografia. A manipulação exacerbada da imagem,

veiculada nos meios de comunicação, nas peças publicitárias, nas revistas de moda e estilo de

vida põem em cheque a credibilidade do objeto “representado”. O que se vê pode até

representar uma idéia da realidade, mas, no contexto criado pelo uso exaustivo de softwares e

da computação gráfica, somos reféns de imagens ficcionais. “A computação gráfica coloca

em cena esse paradoxo do real de uma forma como nenhum outro meio havia colocado antes.

Modernamente, é o meio que mais lembra o “realismo”(enquanto todas as outras artes

caminham sistematicamente na direção contraria) e, no entanto, contraditoriamente, é o mais

abstrato de todos os sistemas expressivos, pois os seus referenciais mais imediatos são as

equações matemáticas que lhe dão vida. (MACHADO, 1996, p.129). A fotografia desde

sempre foi manipulada, fosse pelos recursos próprios da técnica ou de forma pictórica,

sobreposição e/ou manipulação de negativos ou mesmo na sua fixação no papel fotográfico. O

que está em jogo agora é que, dado o exagero provocado pelas tecnologias nos resultados de

imagens digitais, a fotografia não é mais um referente do real. Para Julio Plaza, “a era

eletrônica, de cunho digital, coloca novos desafios no campo da criação artística onde é

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preciso definir um novo estatuto para o que chamamos ‘obra de arte’, ‘criação’, ‘artista’ ou

mesmo ‘autor’ (1998, p. 25). Essa discussão sobre o estatuto da arte já se manifestava no

início do século XX, com os artistas dadaístas, mas, a evolução das tecnologias

computacionais tornaram mais incisivos os questionamentos sobre a fotografia e sua posição

no campo da arte.

Constata-se que a fotografia ganha uma nova discussão no que se refere ao caráter

documental a partir da utilização dos recursos digitais e que há uma crise na aceitação da

imagem fotográfica como representação do real. Por outro lado, André Rouillé apresenta a

fotografia digital como uma manifestação da imagem coerente com o seu tempo: “podemos

dizer que a fotografia digital é uma fotografia, uma outra fotografia dentro da fotografia, de

certa maneira. Atualmente, estamos num outro regime de verdade, regime de verdade que era

o da fotografia dos fotógrafos documentaristas. Na fotografia digital, o regime da verdade é

diferente. Não estamos mais na representação. Estamos sempre com imagens em diferentes

graus. Não é uma crise. É uma mudança de época, e isso muda tudo”(ROUILLÉ, 2008, p. 24).

Essa visão da fotografia digital cria uma nova perspectiva para a imagem,

distanciando-nos dos referenciais manifestados anteriormente, na pratica analógica da

fotografia.

Nancy Burson – na origem da fotografia digital

Passado e presente têm em comum as relações entre arte e ciência, subjetividade e

racionalidade que se entrecruzam e através do uso das tecnologias e do pensamento artístico

geralmente produzem transformações e mudanças conceituais na sociedade. Desde sempre, a

arte caminha lado a lado com os avanços tecnológicos de seu tempo, e hoje, essa prática tem

sido determinante para que se formem grupos interdisciplinares de pesquisa e espaços

criativos compartilhados em projetos coletivos. A coexistência e a convivência entre arte e

tecnologia no mundo contemporâneo tem oportunizado discussões e questionamentos acerca

de qual é o lugar comum entre arte e ciência. Nesse contexto, pensamos a fotografia de Nancy

Burson, que nos anos 1980 revolucionou a imagem fotográfica com criações que

hibridizavam diferentes faces humanas. Suas fotografias chamadas de

“Múltiplos”(Composites) só foram possíveis com a parceria de dois cientistas, Richard

Carling e David Kramlich que desenvolveram um software de manipulação de imagens, hoje

conhecido para nós como efeito “morphing” que possibilitava a mistura dos dados numéricos

das imagens digitais, provocando um novo rosto híbrido, misturado de várias fontes.

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Nancy Burson, artista americana foi pioneira na utilização de técnicas digitais na criação

de retratos fotográficos metamorfoseados por computação que, ao misturar os dados de

diferentes imagens criava uma outra imagem, trabalho desenvolvido originalmente através de

um software que havia sido empregado para caracterizar traços e identificar criminosos. Esses

recursos, posteriormente também foram utilizados na indústria cinematográfica e na produção

de video clips.

Usando as tecnologias numéricas, Burson e seus companheiros cientistas

desenvolveram um algoritmo que transforma os traços retratados, envelhecendo ou

rejuvenescendo o rosto, aplicados em astros e atrizes do cinema e em outras figuras

reconhecidas ou não. Não podemos dizer que mantém-se o caráter documental nas imagens de

Burson, já que seus referentes são híbridos e múltiplos. Na metáfora visual criada há uma

mínima referência do que seriam os referentes.

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Figura 3: Nancy Burson, »First and Second Beauty Composite«, 1982 (First Composite: Bette Davis, Audrey Hepburn, �Grace Kelley, Sophia Loren, and Marilyn Monroe. �Second Composite: Jane Fonda, Jacqueline Bisset, �Diane Keaton, Brooke Shields, and Meryl Streep) (3)

Em séries de retratos múltiplos, Nancy Burson faz crítica às políticas internacionais,

ao fundir num só rosto grandes governantes mundiais (Warhead I), de acordo com o números

de ogivas nucleares pertencentes a cada país, em 1982. No texto “Elogio del vampiro”, Joan

Fontcuberta refere-se à obra Mankind onde a artista cria um rosto formado pela fusão de três

raças diversas: oriental, caucasiano e negro, a partir das estatísticas populacionais mundiais:

“Creando un retrato como la suma de multiples personas, la identidad del yo se disuelve para

aparecer como un producto de interación social. Nancy Burson, a princípio de los 80, já había

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realizado incursiones en el mismo território basándose también en las posibilidades de la

imagen numérica”(2004, p. 49).

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Figura 4: Nancy Burson, Mankind, 1983-1985. Gelatin silver print from computer-generated negative (4)

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Figura 5: Nancy Burson , Warhead I , 1982 (55% Reagan, 45% Brezhnev, less than �1% each of Thatcher, Mitterand, and Deng), �©Nancy Burson (5)

Ao mesclar o rosto de celebridades do cinema, líderes políticos, diferentes raças,

pessoas comuns a até mesmo animais, Burson está questionando alguns paradigmas sociais

contemporâneos através das possibilidades contidas na tecnologia digital. Usa de um recurso

inovador às tecnologias da época para discutir não a imagem como referente, mas, uma nova

representação que se dá pela hibridização de informações visuais, sendo vários referentes

fundidos numa única imagem. Nessas e em outras obras, a tecnologia digital produz um novo

conceito de imagem fotográfica, dotada de sentido, além da própria anamorfose gerada. O

programa que possibilitou essas mesclas também é determinante; a fotografia só ganha

sentido quando percebida a partir dos meios e das possibilidades da tecnologia da imagem em

um dado momento da história, caso contrário, tais sobreposições e fusões teriam outro caráter

que não esse criado por Burson.

E avaliando as mudanças provocadas na imagem contemporânea, conseguimos perceber

quando a fotografia perdeu a sua aura, referindo-nos às teorias de Walter Benjamin? Não se

trata mais de apresentar o retrato de alguém, mas criar a ficção de um retrato que representa a

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multiplicidade de informações contidas numa mesma imagem. Trata-se de informações

numéricas que, traduzidas em imagem, transformam-se num outro, numa nova idéia de

fotografia coerente com o tempo atual e com os conceitos da contemporaneidade.

Antes de Burson, outros fotógrafos já haviam investigado formas de fusões

fotográficas, mesclando faces humanas de forma manual. Provavelmente, o primeiro caso

refere-se a Francis Galton, um biólogo que realizou seus primeiros múltiplos nos anos 1870,

primeiramente sobrepondo desenhos da face de criminosos em papel transparente e

posteriormente levado a utilizar a sobreposição fotográfica.(BURSON, 1986, p. 10).

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Figura 6: Francis Galton. "German group," composite portrait (6)

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Figura 7: Francis Galton. Combination of Portraits: Violent Criminals (1870s), composited images (7)

Os conceitos de anamorfose, hibridismo e simulação manifestados nas fusões de Galton,

em 1870, objetivavam buscar uma aproximação do real em si mesmo. O que acontece com as

tecnologias hoje, é a forma como elas operam sobre o mundo: “as tecnologias da simulação

operam sobre a matéria, a energia, o mundo, nossos gestos, nossa voz, nossa presença,

transformações computacionais que as mudam totalmente de natureza e as fazem oscilar

numa outra dimensão do real” (COUCHOT, 2003, 176). Não se trata de imitar nem tampouco

fingir esse real, mas, substituí-lo por um modelo lógico-matemático, já que a simulação não

produz o falso, nem o verdadeiro. (Couchot, 2003, p. 176). A fotografia criada a partir das

tecnologias digitais é “identificada no contexto da historiografia como pós-fotografia ou

fotografia expandida, este conjunto de imagens parece exibir, é o que supomos, uma condição

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especial de objeto duplamente referido, sinalizando o esgarçamento do modelo precedente e,

de modo não menos enfático, assinalando a natureza difusa, incorpórea e ainda sem contornos

bem definidos, que singulariza a prática emergente”(FATORELLI, 2006, p. 21).

André Rouillé percebe a utilização das tecnologias na fotografia como uma escolha do

fazer: “a liga arte-fotografia é manifestação do declínio da representação. Essa liga transfere a

fabricação das obras da mão para a máquina, e é uma promoção da escolha, o estatuto do

fazer” (2008, p. 18). Assim, podemos pensar a fotografia no contexto das tecnologias

digitais não mais como representação, nem tampouco arraigada aos conceitos da

modernidade. Devemos pensá-la sob a ótica do fazer no contexto da contemporaneidade e

percebê-la na condição em que ela se apresenta, como resultado da produção do homem

coerente com o seu tempo. As ligações conceituais entre arte e fotografia vão além da

tecnologia, mas, a apropriação técnica coerente com a realidade da imagem hoje torna-a

muito mais significativa. Dessa forma, percebe-se que o avanço tecnológico da imagem no

século XXI possibilita a apropriação de conceitos já discutidos e aceitos pelo homem nos

últimos dois séculos e abre perspectivas para outros cruzamentos entre a fotografia e a arte.

Referências:

BURSON, Nancy, CARLIN, Richard e KRAMLICH, David. Composites: computer-

generated portraits. New York: BTB Beech Tree Books, 1986.

CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. Tradução Ivo Barroso, São Paulo:

Cia. das Letras, 1991.

COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Tradução

Sandra Rey. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

FABRIS, Annateresa. O artista como produtor: John Heartfield e a fotomontagem. In

BRITES, Blanca e KERN, Maria Lúcia. Anais do XXII Colóquio do Comitê Brasileiro de

História da Arte – CBHA. Porto Alegre: PPGH/CPIS/PUCRS, 2002.

FATORELLI, Antonio. Entre o analógico e o digital. In Limiares da Imagem: tecnologia e

estética na cultura contemporânea. FATORELLI, Antonio e BRUNO, Fernanda(orgs.). Rio de

Janeiro: Mauad X, 2006.

FONTCUBERTA, Joan. El beso de Judas:fotografia y verdad. Barcelona: Editorial Gustavo

Gili SA, 2004.

MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. 2ª ed. São

Paulo, Editora da USP, 1996.

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PARENTE, André(org.). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. 3ªed. Rio de

Janeiro: Editora 34, 1999.

PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: Poéticas

Digitais. São Paulo: FAEP – Unicamp/FAPESP/CADCT/UNEB, Editora Hucitec Ltda, 1998.

ROUILLÉ, André. Fotografia e arte contemporânea. In FATORELLI, Antonio(org.).

Fotografia e novas mídias. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/FotoRio, 2008.

RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

VICENTE, Carlos Fadon. Fotografia: a questão eletrônica. In SAMAIN, Etienne(org.). O

fotográfico. São Paulo: Editora Hucitec/CNPq, 1998.

Notas de imagens citadas:

(1) e (2) disponíveis em <http://www.towson.edu/heartfield/artarchive.html>acesso em

21/03/2011.

(3)disponível em <http://www.mediaartnet.org/kuenstler/burson/biografie/>acesso em

21/03/2011.

(4)disponível em <http://www.artnet.com/artwork/425526499/423794977/nancy-burson-

mankind-an-oriental-a-caucasian-and-a-black-weighted-according-to-current-population-

statistics.html> acesso em 21/03/2011.

(5)disponível em <http://www.nancyburson.com/pages/onewithdna.html>acesso em

21/03/2011.

(6)disponível em http://www.eugenicsarchive.org/eugenics/image_header.pl?id=1031>acesso

em 21/03/2011.

(7)disponível em <http://www.uturn.org/Prisissue/noguchi.htm>acesso em 21/03/2011.

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