consciência em vygotsky aproximações teóricas

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CONSCIÊNCIA EM VYGOTSKY: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS Rafael Fonseca de Castro UFPel Clarice Vaz Peres Alves - UFPel Resumo: O presente artigo - fruto de uma tese de doutorado - consiste em uma pesquisa teórica sobre o conceito de consciência no pensamento de Lev Vygotsky, motivada por discussões estabelecidas em um grupo de pesquisa de uma universidade do sul do Brasil e fundamentada em produções relacionadas à temática central e vinculadas à Psicologia Histórico-Cultural. Sua realização se justifica pela crença na necessidade de um maior aprofundamento dos estudos da obra de Vygotsky, tendo em vista sua riqueza conceitual, contundência científico-metodológica e potencial de aplicação na Educação, em seus diversos níveis. A partir das relações estabelecidas entre os estudos pesquisados, neste esforço teórico, abre-se a possibilidade de se estabelecer duas formas de interpretar o conceito de consciência no pensamento vygotskiano: 1. como sinônimo de psiquismo humano, matriz do pensamento (Soznanie, consciência) e; 2. como tomada de consciência - função psíquica superior, consciência e controle (Osoznanie, discernimento e controle consciente do ato de pensar). Fica fortemente evidenciado, também, que, para Vygotsky, é por meio da palavra, na sociabilidade humana, que desenvolvemos nossa consciência, com base em dois tipos de experiências humanas: a histórica e a social. Palavras-chave: Consciência, Vygotsky, Educação, Psicologia Histórico-Cultural. A consciência é o humano vivo e real consciente(DELARI JR., 2000, p. 78). Introdução Este trabalho consiste em um estudo teórico (GIL, 1999) sobre o conceito de consciência no pensamento do pesquisador russo Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934). Fundamenta-se em produções direta ou indiretamente relacionadas a este conceito, vinculadas à Psicologia Histórico-Cultural - essencialmente nos estudos realizados por Lordelo (2007), Toassa (2006) e Delari Jr. (2000). O presente estudo é fruto de intensas discussões estabelecidas em um grupo de pesquisa, de uma universidade do sul do Brasil, composta por pesquisadores de mestrado e doutorado e professores universitários. Sua idealização e realização se justificam pela crença

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Psicologia, Comportamentalismo, Consciência.

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  • CONSCINCIA EM VYGOTSKY: APROXIMAES TERICAS

    Rafael Fonseca de Castro UFPel

    Clarice Vaz Peres Alves - UFPel

    Resumo:

    O presente artigo - fruto de uma tese de doutorado - consiste em uma pesquisa terica sobre o conceito de

    conscincia no pensamento de Lev Vygotsky, motivada por discusses estabelecidas em um grupo de pesquisa

    de uma universidade do sul do Brasil e fundamentada em produes relacionadas temtica central e vinculadas

    Psicologia Histrico-Cultural. Sua realizao se justifica pela crena na necessidade de um maior

    aprofundamento dos estudos da obra de Vygotsky, tendo em vista sua riqueza conceitual, contundncia

    cientfico-metodolgica e potencial de aplicao na Educao, em seus diversos nveis. A partir das relaes

    estabelecidas entre os estudos pesquisados, neste esforo terico, abre-se a possibilidade de se estabelecer duas

    formas de interpretar o conceito de conscincia no pensamento vygotskiano: 1. como sinnimo de psiquismo

    humano, matriz do pensamento (Soznanie, conscincia) e; 2. como tomada de conscincia - funo psquica

    superior, conscincia e controle (Osoznanie, discernimento e controle consciente do ato de pensar). Fica

    fortemente evidenciado, tambm, que, para Vygotsky, por meio da palavra, na sociabilidade humana, que

    desenvolvemos nossa conscincia, com base em dois tipos de experincias humanas: a histrica e a social.

    Palavras-chave: Conscincia, Vygotsky, Educao, Psicologia Histrico-Cultural.

    A conscincia o humano vivo e real consciente

    (DELARI JR., 2000, p. 78).

    Introduo

    Este trabalho consiste em um estudo terico (GIL, 1999) sobre o conceito de

    conscincia no pensamento do pesquisador russo Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934).

    Fundamenta-se em produes direta ou indiretamente relacionadas a este conceito, vinculadas

    Psicologia Histrico-Cultural - essencialmente nos estudos realizados por Lordelo (2007),

    Toassa (2006) e Delari Jr. (2000).

    O presente estudo fruto de intensas discusses estabelecidas em um grupo de

    pesquisa, de uma universidade do sul do Brasil, composta por pesquisadores de mestrado e

    doutorado e professores universitrios. Sua idealizao e realizao se justificam pela crena

  • 2

    na necessidade de aprofundamento dos estudos da obra de Vygotsky, tendo em vista sua

    riqueza conceitual, contundncia cientfico-metodolgica e potencial de aplicabilidade com

    resultados prticos positivos em diversos nveis educacionais.

    O legado de Vygotsky mais difundido no ocidente , sem dvida, sua abordagem

    psicolgica histrico-cultural e seus conceitos aplicveis, sobretudo, ao desenvolvimento e

    educao infantis - como os de zona de desenvolvimento proximal e mediao. Entretanto,

    alguns dos autores do ocidente que se dedicam a um estudo de carter terico da obra

    vygotskiana, como David Bakhurst, Dorothy Robbins, Angel Rivire e James Wertsch, bem

    como os pesquisadores brasileiros destacados nesta escrita, destacam como praticamente

    indiscutvel a centralidade do conceito de conscincia na obra de Vygotsky. Para Lordelo

    (2007), esta afirmao importante sobretudo quando oriunda tambm de autores formados

    na tradio sovitica e que desenvolveram seus programas de pesquisa em uma espcie de

    desdobramento do sistema de pensamento vygotskiano, como Vasili Davydov, L.A.

    Radzikhovskii, M. G. Iarochevski, G. S. Gurguenidze e V. P. Zinchenko.

    As biografias cientficas de Vygotsky, Alexei Leontiev e Alexander Luria, por seu

    turno, pertencem a uma das mais importantes pginas da histria da construo dos

    fundamentos psicolgicos e metodolgicos soviticos divulgados nos campos da psicologia e

    da pedagogia. A teoria Histrico-Cultural, nos anos 20, deu incio pesquisa sobre a condio

    social da gnese da conscincia do indivduo. Suas pesquisas tericas e experimentais levaram

    a psicologia a um novo entendimento sobre a origem e a estrutura das funes psquicas

    superiores, diferenciando-se radicalmente da psicologia idealista dominante a Reflexologia

    (PRESTES, 2010) da poca.

    Ao longo do artigo, objetiva-se, com base em escritos categricos de Vygotsky sobre o

    conceito de conscincia, tecer aproximaes entre estudos ps-vygotskianos relacionadas a

    esse conceito, visando compreender sua importncia dentro do constructo terico de

    Vygotsky.

    A Psicologia Histrico-Cultural

    Foi sob a orientao de pressupostos do materialismo histrico e dialtico que se

    desenvolveu uma psicologia que, durante todo o sculo XX, produziu e continua produzindo

    contribuies de interesse para os campos da psicologia e da educao. Trata-se da

    perspectiva Histrico-Cultural, que tem como representantes mais importantes Vygotsky,

    Luria e Leontiev - que formavam a intitulada troika (SACRISTN e GMEZ, 1998). Entre

  • 3

    os autores considerados como os mais influentes desta corrente, Vygotsky1 foi o que mais se

    destacou, devido a sua riqussima produo, desenvolveu ao longo dos 37 anos - de sua curta

    vida -, que resultou na produo de importantes ideias e conceitos, aplicados mundialmente,

    fundamentalmente nos campos da Psicologia e da Pedagogia.

    As ideias filosficas de Marx e Engels exerceram considervel influncia sobre toda

    a gerao de jovens soviticos da poca em que Vygotsky viveu - em meio revoluo russa

    (SACRISTN e GMEZ, 1998). Moyss (1997) entende que a teoria marxista foi utilizada

    por Vygotsky no sentido de buscar respostas concretas aos problemas colocados pela

    Psicologia, de forma a constituir uma nica teoria psicolgica que se opusesse ao conjunto de

    ideias justapostas dominantes no incio do sculo XX.

    Seguindo a linha do materialismo histrico e do materialismo dialtico, Vygotsky

    definia o ser humano como um indivduo social, real e concreto, cuja singularidade se

    constitui enquanto membro de um grupo social, histrico e cultural especfico (PINO, 2000).

    O desenvolvimento do psiquismo humano, desde o ponto de vista da perspectiva Histrico-

    Cultural, realiza-se no processo de apropriao da cultura, mediante a comunicao entre

    pessoas (PINO, 2000).

    Desde as ltimas dcadas do sculo XX, e do incio do sculo XXI, a utilizao de

    referenciais baseados na perspectiva Histrico-Cultural tambm vem crescendo de forma

    considervel em investigaes relativas s diferentes reas da Educao, principalmente a

    partir dos experimentos desenvolvidos por Vygotsky. Wells (2001) entende que as ideias

    fundamentais desenvolvidas pela troika esto tendo grande impacto em todos os nveis

    educacionais, desde a pr-escola at o ensino superior e em programas de ps-graduao.

    Segundo Freitas (2004), a chegada da Psicologia Histrico-Cultural em nosso pas ocorreu no

    final da dcada de 1970, o incio da difuso de seus pressupostos ocorreu nos anos 1980 e o

    esforo de apropriao de seus conceitos iniciou nos anos 1990.

    Como explica Freitas (2004), a teoria psicolgica de Vygotsky tambm considerada

    como uma teoria educacional, pois a educao, segundo esse constructo, muito mais do que

    o desenvolvimento de potencialidades individuais biolgicas, implicando essencialmente na

    expresso histrica e no crescimento da cultura humana da qual o homem procede. A escola,

    neste contexto, configura-se como importante espao social de explorao e desenvolvimento

    1 A formao intelectual de Lev Semyonovitch Vygotsky bastante variada. Graduou-se em Direito pela

    Universidade de Moscou, em 1917. Enquanto fazia seu curso superior, freqentou cursos de Psicologia e

    Literatura na Universidade Popular de Shanyavskii. Poucos anos depois, estudou Medicina em Moscou e em

    Karkov. Conseguiu, em um curto espao de tempo, acumular um vasto conhecimento sobre as mais variadas

    reas do saber e no limitado aos autores soviticos. Na poca em que fez sua formao, a ex-Unio Sovitica

    mantinha intercmbio intelectual com pases da Europa Ocidental e com os Estados Unidos (MOYSS, 1997).

  • 4

    da cultura e de registro e manuteno do conhecimento historicamente acumulado pela

    sociedade.

    Para a abordagem Histrico-Cultural, desta forma, o desenvolvimento histrico de

    cada pessoa tem elevado grau de relevncia nos processos de ensino e de aprendizagem,

    embasando diversos projetos educacionais, em diversos nveis. Desde o ponto de vista dessa

    abordagem, o processo de escolha vinculado vontade originado pela conscincia que, por

    sua vez, decorre das interaes entre as pessoas como ser discutido, na sequncia...

    Situando o conceito de conscincia na obra de Vygotsky

    Leontiev2 (1983) afirmava que Vygotsky foi o primeiro a compreender a necessidade

    de estudar a conscincia no sistema da perspectiva histrica e social marxista, pois ele era um

    dos mais bem formados psiclogos marxistas de sua poca. Segundo Lordelo (2007), algumas

    das chaves para a compreenso do conceito de conscincia em Vygotsky se referem ao tipo de

    substncia de que ela seria feita (em uma referncia ao materialismo dialtico) e ideia de

    que o desenvolvimento dessa conscincia seria constantemente mediado e transformado pelas

    relaes entre a criana e o ambiente social.

    De acordo com Leontiev (1983), o desafio de Vygotsky era penetrar nos estudos sobre

    a conscincia como uma realidade prpria da psicologia, desvendar a conscincia como uma

    forma especificamente humana da psique e apresentar sua caracterstica substancial. Todavia,

    explica Lordelo (2007, p. 67), Vygotsky declarava que o objeto da psicologia - a psiqu, a

    conscincia - era o mais difcil no mundo e o que menos se deixava estudar.

    Em 1925, Vygotski (1991) defendia que a literatura cientfica da poca escondia

    insistente e intencionalmente o problema da natureza psicolgica da conscincia. E, ao

    perceber esse problema, alertava que a psicologia:

    1. Fechava para si mesma os caminhos da investigao sobre o comportamento

    humano, vendo-se limitada a explicar os nexos mais elementares dos seres vivos, no

    mundo.

    2. Construa um sistema psicolgico que, sem este conceito, constitua-se em uma

    psicologia sem conscincia (BLONSKI, 1921, p. 9, Apud VYGOTSKI, 1991, p.

    40).

    2 Todas as citaes referentes a esta obra de Leontiev foram traduzidas por Prestes (2010).

  • 5

    3. Privava os mtodos de investigao dos meios fundamentais para a compreenso do

    psiquismo humano no aparentes visualmente -, tais como os movimentos

    internos, a fala, as reaes somticas etc..

    Segundo Lordelo (2007, p. 1), inspirado principalmente pelo materialismo marxista,

    Vygotsky sugeriu como via alternativa cincia psicolgica da poca uma psicologia baseada

    em metodologias de orientao dialtica que, sem prescindir do fenmeno psquico, tivesse

    critrios metodolgicos adequados feitura de um conhecimento verdadeiramente cientfico.

    Para Vygotsky (1991), o comportamento do homem e suas relaes so determinados

    no somente por reaes condicionadas, manifestas e totalmente explcitas, mas tambm por

    aquelas no reveladas externamente, as quais no se pode ver simplesmente. E os reflexos no

    manifestos, internos, inacessveis percepo direta do observador (como a fala silenciosa),

    podem ser metodologicamente investigados, indiretamente ou de forma mediatizada, atravs

    de reflexos acessveis observao, como a palavra [dita ou escrita].

    Diante deste contexto, com o intuito de construir uma psicologia que levasse em

    considerao esses movimentos internos e que ultrapassasse os limites dos modestos

    experimentos clssicos de formao do reflexo condicionado, Vygotsky buscava superar o

    dualismo reflexolgico e enxergar, na sociabilidade pela linguagem, a origem das interaes

    que compe a conscincia humana (TOASSA, 2006; RATNER, 1995).

    Delari Jr. (2000) problematiza que no texto intitulado O Problema da Conscincia,

    composto fundamentalmente de anotaes feitas por Leontiev e outros colaboradores do

    Instituto de Psicologia de Moscou, a partir de conferncias internas proferidas por Vygotsky,

    encontramos, no incio, a afirmao de que embora a psicologia tivesse definido a si mesma

    como a cincia da conscincia, seu conhecimento a respeito desta quase nulo (VYGOTSKI,

    1991).

    Vygotsky tinha a inteno de compreender a problemtica que envolvia a conscincia

    humana e no captulo do Tomo I de suas obras completas, dedicado Conscincia como

    problema da psicologia no comportamento, por exemplo, pode-se apreender trs definies

    incipientes para o conceito de conscincia, em Vygotski (1991):

    1) A capacidade que tem nosso corpo de se constituir em excitante (atravs de seus atos)

    de si mesmo (e frente a novos atos) constitui a base da conscincia (p. 49).

  • 6

    2) A conscincia das prprias sensaes no significa nada mais do que sua posse em

    qualidade de objeto (excitante) para outras sensaes. A conscincia a vivncia das

    vivncias (p. 50).

    3) Estamos dispostos a interpretar suas palavras [palavras de Pavlov] no sentido literal e

    exato e afirmar que a conscincia a refrao mltipla dos reflexos (p. 51).

    Segundo Toassa (2006), inicialmente, Vygotsky atribua ao conceito de conscincia a

    interao entre sistemas de reflexo3, como pode ser observado nas definies acima e na

    citao, abaixo:

    A prpria conscincia ou a tomada de conscincia dos nossos atos e estados deve ser

    interpretada como sistema de transmissores de uns reflexos a outros que funcionam

    corretamente em cada momento consciente. Quanto maior seja o ajuste com que

    qualquer reflexo interno provoque uma nova srie em outros sistemas, mais capazes

    seremos de prestar-nos contas de nossas sensaes, comunic-las aos demais e viv-

    las (senti-las, fix-las nas palavras etc.) (VYGOTSKI, 1991, p. 3).

    Nesta ltima citao, Vygotsky distingue conscincia de tomada de conscincia e j

    estabelece relao entre palavra e conscincia - como ser aprofundado, a seguir.

    Dos sistemas reflexolgicos conscincia como psiqu e como tomada de conscincia

    Como costumava proceder em suas crticas, Vygotsky procurava apontar os pontos

    fracos e fortes dos pensamentos sobre os quais fundamentava suas teses. Sobre a

    Reflexologia, por exemplo, Vygotsky (1991) salientava a importncia do conceito de reflexo,

    enfatizando que este possua grande valor metodolgico, mas, ao mesmo tempo, enfatizava a

    importncia de super-lo, visto que o mesmo no poderia se constituir no principal conceito

    da psicologia como cincia do comportamento do homem.

    Com relao utilizao do termo conscincia, na obra de Vygotsky, Prestes (2010) se

    utiliza de uma nota dos organizadores do The Collected Works of L.S. Vygotsky para destacar

    a diferena entre as palavras russas soznanie e osoznanie. Nesta nota, os organizadores da

    publicao observam que traduzir ambos os termos como conscincia introduzir uma

    confuso que no existe no texto original russo. Soznanie, no russo clssico, significa

    conscincia e, osoznanie, o despertar da conscincia reflexiva. Tunes (2000) se referiu a

    esse ltimo como discernimento e controle consciente do ato de pensar. Partindo desta

    3 Vygotski se apropriou/utilizou do/o conceito de reflexo essencialmente em suas primeiras obras, pois tratava-se

    do conceito dominante da psicologia de sua poca. Aos poucos, como j se percebe a partir dos escritos

    publicados nos Tomos II e III de sua obra completa, Vygotsky institui seus prprios conceitos para se referir aos

    processos mentais humanos e suas relaes.

  • 7

    importante informao e sem perder de vista os escritos originais de Vygotsky, abre-se a

    possibilidade de se estabelecer duas formas de ler o conceito de conscincia em sua obra:

    - Como o prprio psiquismo humano;

    - Como processo de tomada de conscincia.

    Particularmente, este estudo soma-se a esse posicionamento e vislumbra-os,

    efetivamente, como processos distintos, mas intimamente interligados, no excludentes e no

    concorrentes. O processo mental tomada de conscincia, nesta perspectiva, faria parte do

    sistema psquico superior humano, a conscincia. Sendo, a conscincia, como psiqu humana,

    obviamente, mais abrangente do que o processo mental tomada de conscincia.

    A ideia de tomada de conscincia empregada, conforme Toassa (2006), nos mais

    variados contextos da obra de Vygotsky (1985; 1991; 1996), dos nveis mais simples aos mais

    complexos da ontognese. Trata-se de uma acepo relacionada ao processo de perceber algo

    que no se percebia antes. Nas palavras do prprio Vygotsky (1991, p. 50), dar-se conta de

    algo.

    No tomo III de suas obras completas (VYGOTSKI, 1995), e em outras passagens ao

    longo de seus escritos (como em VYGOTSKY, 1982), principalmente na parte em que aborda

    mais especificamente as funes psquicas superiores, Vygotsky vincula tomada de

    conscincia funo psquica superior, conscincia e controle (osoznanie) razoavelmente

    conhecida por seus estudiosos. Segundo Vygotski (1995), ao nos darmos conta ao tomarmos

    conscincia - de algo, como um erro ou uma dificuldade cognitiva, passamos a ter mais

    chances de poder controlar (encontrar uma resoluo para) este erro, dificuldade ou

    determinada situao cognitiva.

    Mas o conceito de conscincia, como ncleo do pensamento humano, vai alm do dar-

    se conta de algo e torna-se central na teoria de vygotskiana, visto por Vygotsky como o

    prprio psiquismo humano. Soma-se a esse pensamento, Delari Jr. (2000), que assim

    sentencia: Vygotsky no poderia abrir mo do conceito de conscincia como principal objeto

    de estudo para sua psicologia.

    Sobre os processos de desenvolvimento da conscincia, Toassa (2006) explica que

    Vygotski (1996) prope momentos distintos e no lineares. Para ele, aps o nascimento, o

    psiquismo vai conhecendo os estmulos que influem sobre o pensamento, diferenciando coisas

    e pessoas, separando o subjetivo e o objetivo. No beb pequeno, por exemplo, existem,

    inicialmente, manifestaes bastante primitivas de estados conscientes, segundo Vygotski

  • 8

    (1996). Nos adultos, por meio da utilizao dos signos, a conscincia segue em

    desenvolvimento, em maior ou menor intensidade, de acordo com o grau de sociabilidade4 de

    cada indivduo (VYGOTSKI, 1985).

    No incio de seus escritos sobre a conscincia, mesmo ainda bastante atrelado ao

    conceito de reflexo (e aos excitantes desencadeadores desses reflexos) e perspectiva

    pavloviana, em suas primeiras discusses sobre este conceito, ainda no Tomo I de sua obra,

    Vygotsky j prope um estudo do problema da conscincia baseado nas experincias histrica

    e social do ser humano, como problematizado no prximo item.

    Experincia histrica e experincia social: a conscincia pela sociabilidade humana

    mediada pela palavra

    Ainda no Tomo I das obras de Vygotsky possvel perceber a importncia da palavra

    para a conscincia humana como unidade bsica dos sistemas de reflexos da conscincia.

    Segundo Toassa (2006), Vygotsky prope uma cincia dos reflexos tambm aplicada

    linguagem. Nesses termos, para a autora, a conscincia resultaria das relaes de alteridade da

    pessoa consigo mesma e das relaes, possibilitadas pela palavra, desta pessoa com os outros.

    Para Vygotski (1991), a utilizao da palavra a porta para o desenvolvimento da

    conscincia.

    Segundo Shotter (2006), ao invs de explicar as coisas em termos abstratos, podemos

    ensinar aos outros nossa maneira de nos relacionarmos com o ambiente por meio de palavras

    proferidas em momentos cruciais de suas atividades, de forma a torn-los conscientes dos

    seus modos de ao espontnea. Como observa esse autor (idem, p.16), a partir do ponto de

    vista Histrico-Cultural, por meio de palavras, de enunciaes dos outros, que agimos de

    maneira voluntria, consciente, passando a sermos responsveis a responder por nossa prpria

    conduta. Vygotsky (1982) explica essa ideia por meio do exemplo das relaes entre mes e

    seus filhos pequenos. Segundo Vygotsky, as mes dirigem a ateno dos filhos para

    determinados objetos ou situaes. Os filhos, por sua vez, seguem as orientaes das mes,

    assumindo, mais tarde, a direo da prpria ateno e passando a desempenhar, em relao a

    si, o papel que antes havia sido desempenhado pelas mes. desta forma que, para Vygotsky,

    libertamo-nos de nossas respostas impulsivas, imediatas e imediadas, e passamos a ser

    conscientes e capazes de controlar nosso comportamento.

    4 Cabe informar que a conscincia social da psicologia vygotskiana no coincide com a ideia de conscincia

    poltica ou moral (TOASSA, 2006), tampouco est relacionada aos preceitos de Emile Durkheim.

  • 9

    Por meio da palavra, na sociabilidade humana, desenvolvemos nossa conscincia,

    nossa psiqu, a matriz de nosso pensamento. E este desenvolvimento, a partir dos

    pressupostos vygotskianos, tem base em dois tipos de experincias humanas: a experincia

    histrica e a experincia social (VYGOTSKI, 1991; 1985).

    Para Vygotsky (1991), o homem no se serve unicamente da experincia herdada

    fisicamente. Segundo ele, toda a nossa vida, o trabalho e o comportamento, baseiam-se na

    ampla utilizao da experincia das geraes anteriores, isto , de uma experincia que no se

    transmite de pais para filhos, apenas pelo nascimento. A esta experincia Vygotsky denomina

    experincia histrica.

    Segundo Delari Jr. (2000), neste sentido, o lugar da teoria de Vygotsky bastante

    relevante, pois a produo deste autor situa-se num contexto histrico em que j se colocam

    algumas importantes contradies quanto s possibilidades para a liberdade humana e para a

    capacidade de reflexo e interveno do ser humano em sua histria. Leva-se em

    considerao, nessa perspectiva, para Delari Jr. (2000, p. 51) a possibilidade de cada ser

    humano ir se tornando mais consciente com relao s suas prprias determinaes histricas,

    de modo a poder intervir melhor sobre sua prpria vida.

    A busca de uma explicao para a questo da conscincia na obra de Vigotski pode

    estar permeada por um confronto constitutivo com a questo das possibilidades

    para o papel do humano na construo de sua prpria histria (DELARI JR., 2000, p. 52-53).

    Ao mesmo tempo, no se trata de ver o ser humano como aquele que apenas

    resultado de um processo histrico, mas tambm como um ser que s existe enquanto prprio

    processo histrico. Desta forma, enfatiza Delari Jr.:

    O devir humano, s pode ser encarado como movimento dialtico, como gnese

    histrica, como processo e acontecimento. [...] No h essncia anterior ou superior

    ao humano que o defina enquanto tal, porque ele s se define como tal quando vai

    se tornando historicamente aquilo que . Mas aquilo que o homem no o que se

    define num ponto de chegada, e sim o prprio movimento pelo qual torna-se

    humano constantemente (idem, 2000, p. 58).

    Mas essa histria s possvel se estiver aberta possibilidade de refazer-se. Ao

    mesmo tempo, e de vital importncia em Vygotsky, a fuso entre aquilo que o homem

    com aquilo que ele pode ser ocorre mediante relaes sociais. A linguagem verbal, por

    exemplo, enquanto signo, realiza uma modalidade de relao social e nesta relao que

  • 10

    reside a possibilidade do humano tornar-se humano, tanto quanto de avanar para alm de

    seus prprios limites (DELARI JR., 2000).

    Como explicava Vygotsky (1991, p. 45), concomitante experincia histrica, deve

    situar-se a experincia social, constituindo um importante componente do comportamento do

    homem e dispondo

    no s das conexes que encerradas em minha experincia particular entre os

    reflexos condicionados e elementos ilhados do meio, mas tambm das numerosas

    conexes que so estabelecidas na experincia com outras pessoas. Se conheo o

    Saara e Marte, apesar de no ter sado uma nica vez de meu pas e de no ter

    observado nenhuma vez por um telescpio, isso se deve evidentemente ao fato de

    que essa experincia tem sua origem nas de outras pessoas que tenham ido ao Saara

    ou que tenham visto Marte pelo telescpio (idem, p. 45).

    A relevncia das relaes sociais para o desenvolvimento da conscincia, na

    perspectiva vygotskiana, latente. Pois, para ele, a conscincia no um movimento que

    surge individualmente, mas que s pode se realizar no indivduo na medida em que este passa

    a se relacionar consigo prprio do mesmo modo como se relaciona com os outros, no contexto

    de uma determinada cultura. Sendo assim, segundo esta concepo, a conscincia no pode

    surgir para os seres humanos, seno mediante uma relao social historicamente constituda e

    culturalmente determinada.

    Sobre esta prerrogativa, Delari Jr. (2000) complementa:

    A relao social, no humano, histrica e cultural, pois os seres humanos no se

    unem em grupos apenas por instintos gregrios, nem por leis instintivas tais como

    aquelas presentes em outras espcies animais que vivem em grupos e/ou se

    organizam coletivamente. A relao social humana constituda historicamente

    mediante lutas sociais e relaes de poder e, de modo indissocivel,

    culturalmente. [...] As relaes sociais propriamente humanas so mediadas pela

    linguagem. Portanto, a conscincia enquanto processo que no pode se dar fora de

    um ser humano individual particular, no possvel seno como funo de relaes

    sociais, as quais, por sua vez, tambm no so possveis seno enquanto prticas

    coletivas mediadas pela linguagem (p. 62).

    Para Fontana (2000, p. 221), somente por meio das relaes sociais que nos

    tornamos capazes de perceber nossas caractersticas, de delinear nossas peculiaridades

    pessoais, de diferenciar nossos interesses das metas alheias e de formular julgamentos sobre

    ns prprios e sobre o nosso fazer. Conforme explica essa mesma autora,

    em um mesmo indivduo articulam-se dialeticamente dois lugares sociais distintos e

    complementares o mesmo e o outro que se afinam e se contrapem,

    harmonizam-se e rejeitam-se, configurando, na tenso constitutiva da subjetividade,

  • 11

    composies singulares, que se do a ver na dinmica interativa (FONTANA,

    2000, p. 221).

    Seguindo esta linha pensamento, a perspectiva de conscincia histrica defendida

    por Vygotsky s possvel mediante as relaes sociais. E essas relaes sociais, que se

    constituem historicamente, so possveis essencialmente pela linguagem [verbal], pela

    utilizao social da palavra. No plano psicolgico-diferencial, as pessoas se distinguem umas

    das outras porque suas estruturas caracterolgicas se desenvolveram, na ontognese, a partir

    de um sistema especfico e singular de conexes (VYGOTSKI, 1991), mediados pela palavra.

    As estruturas das funes psquicas superiores so semelhantes s estruturas das

    relaes coletivas entre os seres humanos. Nestas relaes, os traos sociais e de classe se

    formam a partir de sistemas interiorizados que no so outros seno os sistemas de interaes

    entre pessoas trasladados personalidade e conscincia de cada indivduo, pela linguagem.

    Consideraes finais

    Na presente escrita, objetivou-se estabelecer um dilogo entre pesquisadores que

    investigaram o conceito de conscincia na obra vygotskiana, fundamentalmente a partir dos

    estudos de Lordelo (2007), Toassa (2006) e Delari Jr. (2000), e partindo dos principais

    escritos de Vygotsky nos quais este conceito e suas implicaes so por ele abordados com

    maior ateno.

    Deste esforo terico, com vistas compreenso e discusso do conceito de

    conscincia na obra deste importante autor russo, percebe-se evidncias que apontam para

    uma aproximao mais precisa do termo conscincia como sinnimo de psiquismo humano,

    matriz do pensamento do homem - Soznanie, no termo original russo (PRESTES, 2010).

    Ao mesmo tempo, dentro do escopo de conscincia como o prprio psiquismo,

    tambm possvel reconhecer o conceito tomada de conscincia, em Vygotsky atrelado

    funo psquica superior, conscincia e controle (VYGOTSKI, 1985). Neste caso, Vygotsky

    (1995) salienta que quando passamos a ter conscincia de determinado processo (psicolgico)

    ou situao podemos control-lo(a) - no russo, osoznanie (PRESTES, 2010).

    Na perspectiva da Psicologia Histrico-cultural, a conscincia, sendo movimento do

    humano no mundo, passa a ser mediadora da relao do humano com o mundo e consigo

    mesmo, por meio da palavra e a partir de suas experincias histrica e social, enfim, na

    sociabilidade dos indivduos (RATNER, 1995).

    A palavra, enquanto signo desenvolvido social e historicamente, mediadora quando

    se inscreve em um movimento de produo social de significados e, consequentemente,

  • 12

    promotora no desenvolvimento da conscincia humana, segundo a supracitada concepo

    terica. A conscincia em Vygotsky (1996, e tambm em LEONTIEV, 1983) ser sempre

    conscincia mediada pela palavra: a prpria relao da criana com o meio e depois consigo

    mesma. No um sistema mecanicista, tampouco esttico, pois se relaciona ao

    desenvolvimento da conduta voluntria do indivduo.

    Mas trata-se de uma conscincia que tambm parcial porque atravessada por

    motivos e necessidades decorrentes das vivncias singulares de cada ser humano

    (intrapsicolgicos). As coisas no mudam simplesmente porque algum nos aponta a

    necessidade de mud-las ou porque pensamos nelas. Para Delari Jr. (2000), o pensamento,

    sozinho, no capaz de comandar as funes psicolgicas superiores, pois estas esto tambm

    estreitamente ligadas s emoes afeces do corpo por objetos, pessoas ou imagens.

    A conscincia no coisa, no instncia, nem tem vida prpria, no existe aparte da

    materialidade do ser: a conscincia o ser humano consciente (DELARI JR., 2000, p. 62).

    Referncias bibliogrficas

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