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Anais do XIV Encontro de Iniciação Científica e IV Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da PUC-Campinas Setembro de 2014 ISSN 1982-0178 Consciência e Linguagem: uma aproximação entre Vigotski e Paulo Freire Annelize Godinho Jacoby Faculdade de Psicologia Centro de Ciência da Vida [email protected] Raquel Souza Lobo Guzzo Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação Centro de Ciências da Vida [email protected] RESUMO O presente estudo se propôs a elucidar a compreen- são dos conceitos de consciência e linguagem nas obras de Paulo Freire e Vigotski, tal como a eviden- ciar possíveis aproximações entre elas no que tange aos seus fundamentos metodológicos, ontológicos e epistemológicos. Foram considerados, para análise, principalmente o texto “Pensamento e Palavra”, de Vigotski, e o livro “Pedagogia como Prática de Liber- dade”, de Paulo Freire. O eixo central de análise foi sustentado pelo materialismo histórico dialético, mé- todo de que partem ambos os autores para funda- mentar suas pesquisas e que inevitavelmente origina também suas concepções de ser humano e de co- nhecimento. Para Paulo Freire, a tomada de consci- ência é um processo que pressupõe a existência de diálogo nas relações sociais. Vigotski, por sua vez, demonstra que a formação do próprio pensamento ocorre a partir da linguagem e é o que possibilita o desenvolvimento de sujeitos históricos. Essas rela- ções assumem importância para o planejamento de intervenções em contextos comunitários e educati- vos. Por fim, foram identificados paralelos que ultra- passaram a proposta deste estudo, sendo apontadas possibilidades para aprofundamentos posteriores. Palavras-Chave: Psicologia da Educação, Consci- ência, Linguagem, Vigotski, Paulo Freire Área do Conhecimento: Ciências Humanas, Psico- logia, Psicologia e Educação JUSTIFICATIVA Estabelecer uma aproximação entre Lev Semenovitch Vigotski (1896-1934), pesquisador e psicólogo russo, e Paulo Freire (1921-1997), educa- dor e filósofo pernambucano, significa resgatar im- portantes noções para uma compreensão do ser humano enquanto sujeito histórico e, portanto, ser ativo de possibilidades, em constante e dialético de- vir. Ambas as teorias foram atravessadas – e é possível dizer que até impulsionadas - por um con- texto político de autoritarismo e repressão, sendo algumas obras censuradas ou escritas no exílio. Ain- da hoje, mesmo em outro cenário, muito do que foi denunciado pelos autores continua orientando diver- sas práticas na área da Psicologia e da Educação. Este breve estudo se propõe, portanto, a ser mais um alerta à urgência de uma práxis – ou seja, uma aliança indissociável entre teoria e prática - que aponte e elucide as possibilidades de desenvolvi- mento do potencial humano para a superação da alienação e, consequentemente, para a tomada de consciência e emancipação. INTRODUÇÃO O estudo da consciência em Psicologia No século XIX, quando a Psicologia estava ainda em vias de reconhecimento científico dentre o fervor do Positivismo na época, buscava-se, para tanto, demonstrar empiricamente de que forma era constituída a subjetividade humana. No entanto, de- vido à inviabilidade de controlar experiências que medissem os processos internos da mente, a alter- nativa foi, anos depois, estudar o que se supôs ser a sua expressão direta: o comportamento. Dessa ten- tativa, derivou a abordagem Comportamental da Psi- cologia [2]. Em oposição a essa corrente, o materialismo histórico dialético, por sua vez, nega a naturalização do comportamento humano e concebe os sujeitos não apenas de acordo com determinações naturais e racionais, mas históricas. Dessa forma, Karl Marx (1818-1883), propositor deste paradigma de pensa- mento, formula que a matéria é anterior à consciên- cia, mas que há um movimento dialético entre elas, por meio do qual a matéria modifica as ideias e vice-

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Anais do XIV Encontro de Iniciação Científica e

IV Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da PUC-Campinas

Setembro de 2014

ISSN 1982-0178

Consciência e Linguagem: uma aproximação entre Vigotski e Paulo Freire

Annelize Godinho Jacoby Faculdade de Psicologia

Centro de Ciência da Vida [email protected]

Raquel Souza Lobo Guzzo Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção,

Comunidade e Libertação Centro de Ciências da Vida

[email protected] RESUMO O presente estudo se propôs a elucidar a compreen-são dos conceitos de consciência e linguagem nas obras de Paulo Freire e Vigotski, tal como a eviden-ciar possíveis aproximações entre elas no que tange aos seus fundamentos metodológicos, ontológicos e epistemológicos. Foram considerados, para análise, principalmente o texto “Pensamento e Palavra”, de Vigotski, e o livro “Pedagogia como Prática de Liber-dade”, de Paulo Freire. O eixo central de análise foi sustentado pelo materialismo histórico dialético, mé-todo de que partem ambos os autores para funda-mentar suas pesquisas e que inevitavelmente origina também suas concepções de ser humano e de co-nhecimento. Para Paulo Freire, a tomada de consci-ência é um processo que pressupõe a existência de diálogo nas relações sociais. Vigotski, por sua vez, demonstra que a formação do próprio pensamento ocorre a partir da linguagem e é o que possibilita o desenvolvimento de sujeitos históricos. Essas rela-ções assumem importância para o planejamento de intervenções em contextos comunitários e educati-vos. Por fim, foram identificados paralelos que ultra-passaram a proposta deste estudo, sendo apontadas possibilidades para aprofundamentos posteriores. Palavras-Chave: Psicologia da Educação, Consci-ência, Linguagem, Vigotski, Paulo Freire

Área do Conhecimento: Ciências Humanas, Psico-logia, Psicologia e Educação

JUSTIFICATIVA Estabelecer uma aproximação entre Lev Semenovitch Vigotski (1896-1934), pesquisador e psicólogo russo, e Paulo Freire (1921-1997), educa-dor e filósofo pernambucano, significa resgatar im-portantes noções para uma compreensão do ser humano enquanto sujeito histórico e, portanto, ser ativo de possibilidades, em constante e dialético de-vir.

Ambas as teorias foram atravessadas – e é possível dizer que até impulsionadas - por um con-texto político de autoritarismo e repressão, sendo algumas obras censuradas ou escritas no exílio. Ain-da hoje, mesmo em outro cenário, muito do que foi denunciado pelos autores continua orientando diver-sas práticas na área da Psicologia e da Educação.

Este breve estudo se propõe, portanto, a ser mais um alerta à urgência de uma práxis – ou seja, uma aliança indissociável entre teoria e prática - que aponte e elucide as possibilidades de desenvolvi-mento do potencial humano para a superação da alienação e, consequentemente, para a tomada de consciência e emancipação.

INTRODUÇÃO O estudo da consciência em Psicologia

No século XIX, quando a Psicologia estava ainda em vias de reconhecimento científico dentre o fervor do Positivismo na época, buscava-se, para tanto, demonstrar empiricamente de que forma era constituída a subjetividade humana. No entanto, de-vido à inviabilidade de controlar experiências que medissem os processos internos da mente, a alter-nativa foi, anos depois, estudar o que se supôs ser a sua expressão direta: o comportamento. Dessa ten-tativa, derivou a abordagem Comportamental da Psi-cologia [2].

Em oposição a essa corrente, o materialismo histórico dialético, por sua vez, nega a naturalização do comportamento humano e concebe os sujeitos não apenas de acordo com determinações naturais e racionais, mas históricas. Dessa forma, Karl Marx (1818-1883), propositor deste paradigma de pensa-mento, formula que a matéria é anterior à consciên-cia, mas que há um movimento dialético entre elas, por meio do qual a matéria modifica as ideias e vice-

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versa. Essa lógica é fundamentada a partir do traba-lho humano, ou seja, da ação do homem sobre a natureza para satisfazer suas necessidades situadas histórica e culturalmente, o que é indissociável, por-tanto, do acúmulo de conhecimentos já produzidos ao longo do tempo. Para tanto, a priori, é necessário que haja natureza, ou seja, matéria, que então será conhecida, pré-idealizada e transformada pelo ho-mem [7]. L. S. Vigotski

Vigotski estabelece como objetivo, desde o início de sua carreira científica e em decorrência da insuficiência que constata nesta área na sua época, estudar o que há de especificamente humano na psique, ou seja, o que distingue, psicologicamente, o homem de outros seres vivos [1].

Em meio ao rigor científico exigido pelo con-texto Positivista em que vivia, é central a preocupa-ção do autor com o método de suas pesquisas. Nes-se sentido, Vigotski é crítico à simples observação da relação direta “estímulo-resposta” do comportamento e nega sua aplicabilidade ao estudo das funções psi-cológicas superiores, uma vez que, segundo ele, “o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie” [12]. Em outras palavras, ele não negligencia as condições naturais dos fenômenos humanos, mas pontua também que o homem age sobre essa natu-reza, modificando-a. É nesse movimento que se cria a História e que é possível, portanto, estabelecer uma relação dialética entre ela e a natureza, des-construindo também a noção de que o desenvolvi-mento cognitivo é o resultado de uma acumulação gradual de mudanças isoladas [12].

Para o autor [11], pensamento e palavra “surgem e se constituem unicamente no processo do desenvolvimento histórico da consciência humana, sendo, elas próprias, um produto e não uma premis-sa da formação do homem”. Novamente ao contrário do que se afirmava na época, Vigotski defende que o desenvolvimento do pensamento se dá a partir da linguagem, a qual, por sua vez, desenvolve-se a par-tir da história humana, não naturalmente. Paulo Freire

Paulo Freire, educador popular incomodado com as consequências do Capitalismo principalmen-te no contexto educativo brasileiro é, em decorrência

disso, exilado no Chile, onde escreve, em 1970, seu primeiro livro publicado no Brasil: Educação como prática de liberdade [5]. Um dos pressupostos que permeia toda sua obra é o de que o homem não está apenas no mundo, mas com o mundo, o que implica uma série de responsabilidades cujo ponto de partida é a tomada de consciência dessa relação inerente-mente dialética, tal como de determinações históri-cas que geram opressão, desigualdade e que, por sua vez, limitam a alguns a possibilidade de conhe-cê-lo.

Para Paulo Freire [5], o homem se constitui enquanto tal apenas quando é sujeito de si mesmo, o que depende da tomada de consciência e do proces-so de conscientização que essa implica. A distinção entre o homem e os animais, portanto, é que estes não podem “assumir” a vida.

O processo de conscientização, nesse senti-do, é o indicador da relação homem-mundo e Freire [5] propõe-no enquanto um percurso cujas extremi-dades são a consciência que denomina intransitiva e, no outro polo, a consciência transitiva. A primeira, consciência primitiva e ingênua, apresenta-se como limitada em apreensão da realidade e ausente de compromisso com o mundo, uma vez que se apro-pria de uma interpretação ainda rasa dos problemas, mascarada pela ideologia e, consequentemente, imersa em uma compreensão acrítica, que subesti-ma o homem como ser criador e transformador de sua história. A transitividade crítica – que, como su-gere gramaticalmente o próprio termo, pressupõe que há complemento e, portanto, relação – diferen-cia-se pela profundidade na compreensão dos pro-blemas, tal como de suas relações causais e, diante disso, leva o homem a assumir a responsabilidade de existir [5].

Nesse sentido, Freire, diferente de Vigotski, faz da educação ponto de partida para considerar o caráter essencial do diálogo e, portanto, da lingua-gem, à formação do ser humano. Para que isso fos-se efetivo, um dos desafios seria propiciar, na esco-la, um ambiente de exercício da democracia, ou seja, de comunicação, debate e participação.

Por isso, é compreensível a centralidade do seu trabalho com a alfabetização, que ele aponta como sendo a instrumentalização do homem para suas ações e para que assuma a posição de sujeito ativo da democracia. Dessa forma, deve-se aprender as palavras “não para colecioná-las na memória, mas para dizer e escrever seu mundo, o seu pensa-mento, para contar sua história” [2].

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Objetivos Objetivo Geral

A proposta deste trabalho é sistematizar os conceitos de consciência e linguagem nas obras de Vigotski e Paulo Freire e cotejar os dois autores so-bre os elementos que constituem as duas formula-ções, considerando suas condições sociais e históri-cas, tal como sua aplicabilidade no contexto atual. Objetivos Específicos

Analisar possíveis aproximações e distanci-amentos entre o material levantado no que se refere aos aspectos metodológicos, ontológicos e epistemo-lógicos. MÉTODO Método

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica [9] e, portanto, qualitativa, que toma o materialismo históri-co-dialético como fundamento filosófico, teórico e metodológico. Este estudo se propõe, portanto, a uma leitura crítica das obras de Vigotski, como teóri-co do desenvolvimento humano e da semântica, Paulo Freire, como educador popular, e outros teóri-cos que sejam relevantes às discussões, para servir como base de reflexão à intervenção do psicólogo, do pedagogo e do educador no contexto escolar.

Inicialmente, foi realizada uma busca biblio-gráfica para identificar a literatura já produzida acer-ca dos conceitos de consciência e linguagem na obra de cada autor com o objetivo de apreender a densi-dade das análises realizadas até então, tanto para ser mais breve em discussões já aprofundadas por outros autores, quanto para evidenciar questões que permanecem abertas à discussão. Ao longo da leitu-ra, foram identificadas as obras de Vigotski e Paulo Freire a que eram remetidas as referências sobre os conceitos em questão.

Considerando as condições de produção a que está submetido este estudo, inscrito em uma proposta de iniciação científica e que, portanto, não tem ambiciosas pretensões, foram selecionados para análise os textos de cuja discussão central fazem parte os conceitos de consciência e linguagem e que, portanto, estão neles condensados.

Não obstante, não deixamos de utilizar o apoio de contribuições de outros autores, dentre as

quais é destacável a sistematização e análise de Achilles Delari [1], que, por sua vez, faz referências a obras de Vigotski a que não nos propusemos a abor-dar neste trabalho, mas ora ou outra trouxeram com-plementos significativos, elucidando focos importan-tes de análise.

Fez-se necessário, antes de analisar os con-ceitos propriamente ditos, explicitar os pressupostos que os sustentam e que possibilitam a sua aproxi-mação. Esse percurso apontou aspectos metodoló-gicos, ontológicos e epistemológicos, dentre os quais foi didaticamente – porque indissociável – dividida a concepção de consciência e linguagem de cada au-tor. Por fim, foi realizada uma breve síntese da aná-lise conceitual e apontadas as possibilidades de aprofundamento em pesquisas posteriores, em que se destaca a aplicação ao contexto educacional. Discussão Metodológico “A vida não é determinada pela consciência, mas esta pela vida” [9].

Tanto Vigotski quanto Paulo Freire se alicer-çam no método materialista histórico dialético, fun-dado por Marx em oposição ao materialismo mecani-cista e ao idealismo, os quais negligenciavam, se não a matéria como fundante da realidade, o seu caráter inerentemente histórico e dialético. Diante dessas possibilidades, a concepção sobre a consci-ência humana era ou reflexiva - e, portanto, naturali-zada -, ou simplesmente inacessível. Para Vigotski [11] o estudo da consciência a partir de categorias que, juntas, compõe um todo (ou seja, sua divisão em elementos) é descartada e dá lugar ao todo como a priori, para, posteriormente, dividi-lo em unidades - que, por sua vez, mantêm propriedades desse todo.

Compreende-se, portanto, a centralidade da ação mediada para a Psicologia do autor, o que sig-nifica que a relação do homem com o mundo, im-prescindível para constituir os pensamentos e parte da consciência, ocorre necessariamente pela lingua-gem, por meio da qual, por sua vez, ele se relaciona-rá socialmente e estabelecerá com o mundo uma relação inerentemente dialética de constante – e, por isso, não dicotômica – internalização e externaliza-ção. Aqui, cabe a analogia feita pelo próprio autor de que, para ele, a linguagem era como o instrumento

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para Marx, mas em dimensão psíquica: “o signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no tra-balho” [12].

Paulo Freire, com pressupostos consonan-tes, posiciona-se claramente avesso à concepção unilateral de uma consciência soberana capaz de criar o mundo ou, em outro polo, à passividade do homem diante de transformações que dele, supos-tamente, independem [10]. Pelo contrário: afirma como principal a integração do homem com o mundo – ou seja, o caráter indissociável entre sujeito e obje-to -, que acontece apenas por meio do diálogo com outros homens, nas relações sociais.

É a partir desses pressupostos que Paulo Freire [11] reconhece, de forma quase idêntica a Vi-gotski, a fragmentação resultante do método que toma a parte pelo todo e a atribui à falta de conscien-tização que ele propõe superar por meio da educa-ção:

faltando aos homens uma compreensão crítica da to-talidade em que estão, cap-tando-a em pedaços nos quais não reconhecem a in-teração constituinte da mesma totalidade, não po-dem conhecê-la. E não o podem porque, para co-nhecê-la, seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em se-guida, separarem ou isola-rem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão volta-riam com mais claridade à totalidade analisada.

Complementa que a própria educação, con-sequentemente, não deve permitir que o homem se veja apartado da realidade em que se encontra, mas que seja guia para transformá-la, reconhecendo-se como parte dela. Ontológico “Não se trata de ver o humano como aquele que é apenas resultado de um processo histórico, mas co-

mo aquele que só existe enquanto o próprio proces-so histórico.” [1].

A partir do método materialista, é certo que o

ser humano só poderia ser fundado por condições materiais, ou seja, por relações sociais concretas que se dão historicamente.

Ambos autores começam por definir as es-pecificidades do ser humano (ou seja, sua ontologia) estabelecendo o que o diferencia dos outros animais. No caso de Vigotski, grande parte de seus estudos se debruçam sobre o traço distintivo essencial: a ação mediada. Segundo o autor, “no mundo animal, a evolução é por linhas puras” [8], ou seja, a ação ocorre diretamente a partir de um estímulo - ativida-de reflexa condicionada -, sem intermédios e motiva-ções afetivo-volitivas. O homem, por sua vez, capaz de planejar e projetar suas ações, não age sob for-ças somente fisiológicas: “só o ser humano pode antecipar, num projeto, a construção de suas pró-prias atividades vitais, e só o ser humano pode con-duzir e avaliar suas atividades vitais com base num projeto previamente elaborado – mesmo que o pró-prio projeto também esteja sujeito a transformar-se durante sua própria execução” [1].

Nessas condições, um dos avanços de Vigo-tski foi abordar o desenvolvimento humano enquanto um processo histórico, que se configura socialmente. É nesse sentido que esboça algumas considerações sobre a educação, dentre as quais se destaca: “o ensino só é válido quando precede o desenvolvimen-to”, pois “engendra uma série de funções que se en-contravam em fase de maturação” [8].

É a partir dessa relação inconstante e fluída, em que o homem se humaniza ao fazer um uso in-tencional da linguagem, que é formada a consciên-cia. O conceito de consciência que Paulo Freire apli-ca em consonância com essa concepção abrange distintos graus em função da capacidade do ser hu-mano de apreensão do mundo; e isso não ocorre individualmente, mas de acordo com condições his-tóricas, em seu movimento de interesses conflitivos e contradições inerentes. Segundo o próprio autor: “Na medida (...) em que a consciência dos homens está condicionada pela realidade, a conscientização é, antes de tudo, um esforço para livrar os homens dos obstáculos que os impedem de ter uma clara per-cepção da realidade” [6]. Tal capacidade é denomi-nada pelo autor como consciência transitiva, sendo apenas nesse estágio que o homem de fato se hu-

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maniza, ou seja, converte-se em sujeito de ação e transformação do mundo.

Tendo alcançado a descoberta central e principal de que “a estrada real do desenvolvimento da criança não é a socialização gradual introduzida de fora, mas a individualização gradual que surge com base na sociabilidade interior da criança” [11], ou seja, de que a linguagem interior não precede a exterior, Vigotski percebe também que tampouco coincide geneticamente a organização do pensamen-to e da linguagem. Seus estudos sobre a relação entre pensamento e palavra, portanto, fazem-no concluir que o pensamento, instância ontologicamen-te central, não é ainda o cerne:

o próprio pensamento não nasce de outro pensamen-to, mas no campo da nossa consciência que o motiva, que abrange os nossos pendores e necessidades, os nossos interesses e mo-tivações, os nossos afetos e emoções (Vigotski, 2001, p. 479).

Aqui, ele abre outras vias de acesso à “últi-ma instância”, já que o pensamento nasce de uma consciência permeada por outras contingências, que ele chama de aspectos “afetivo-volitivos”. Para o au-tor, “só ela pode dar a resposta ao último porquê na análise do pensamento”, ou seja, a consciência é constituída por significados materializados na lingua-gem, mas sobretudo por aspectos que a ultrapassam e que, por sua vez, são incomensuráveis e intraduzí-veis diretamente pela linguagem. Como ele mesmo diz, metaforicamente: “se antes comparamos o pen-samento a uma nuvem pairada que derrama uma chuva de palavras, a continuar essa comparação figurada teríamos de assemelhar a motivação do pensamento ao vento que movimenta as nuvens” [11]. Como esse foi seu último texto em vida, não pôde desenvolver ainda mais essa questão, central no estudo da consciência. Epistemológico

Se, para ambos os autores, o ser humano se constitui enquanto tal por meio de relações sociais que são, por sua vez, possíveis pelo diálogo, que é mediação da linguagem entre o mundo e as consci-ências, coloca-se a questão de como irão esses ho-

mens, em diálogo, portanto, apreender o mundo ao seu redor.

Segundo Vigotski, como já vimos, a relação do homem com o mundo é mediada pela linguagem, que, conforme constatado pelo autor “é uma unidade complexa e não homogênea” [11]. A divisão de tal unidade entre o plano semântico (interior) e fásico (exterior) para análise o permite concluir que “o as-pecto semântico transcorre em seu desenvolvimento do todo para a parte, da oração para a palavra, ao passo que o aspecto externo transcorre da parte pa-ra o todo, da palavra para a oração” [11]. Isso evi-dencia, novamente, a impossibilidade já mencionada de estudar o “significado em si” sem conhecer os aspectos afetivo-volitivos envolvidos e, no que tange à epistemologia, de imobilizar a realidade para co-nhecê-la, dado seu caráter de inerente devir.

O método de alfabetização de Paulo Freire, cuja etapa inicial consiste na busca por temas gera-dores, ou seja, por rodas de conversa em que os alfabetizandos fazem um levantamento de situações existenciais a partir das quais discutem sobre sua visão de mundo, busca exatamente esse comparti-lhamento do sentido, dos significados inscritos na consciência. Segundo Paulo Freire:

Procurar o tema gerador é procurar o pensamento do homem sobre a realidade e a sua ação sobre esta rea-lidade que está em sua práxis (...) A procura temá-tica converte-se assim nu-ma luta comum por uma consciência da realidade e uma consciência de si, que fazem desta procura o pon-to de partida do processo de educação e da ação cul-tural de tipo libertador [6].

A partir do tema gerador, são identificadas as “palavras geradoras”, “vocábulos mais carregados de sentido existencial e, por isso, de maior conteúdo emocional” [4]. Essas, por sua vez, já abordadas “semanticamente”, serão utilizadas como base para o estudo do que Vigotski denomina como elemento “fásico” da palavra, ou seja, seu som. No entanto, ainda diferente do método convencional, estas pala-vras não serão simplesmente reproduzidas, letra por letra, mas divididas em sílabas e, apenas a partir dessas sílabas, novas palavras serão levantadas.

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O que importa, aqui, é que “o pensamento e a linguagem, que constituem um todo, se referem sempre à realidade do sujeito pensante. O pensa-mento-linguagem autêntico gera-se numa relação dialética entre o sujeito e a sua realidade cultural e histórica concreta”. Consequentemente, “nos proces-sos culturais alienados, que caracterizam as socie-dades dependentes ou sociedades-objetos, o mesmo pensamento-linguagem é alienado” [6].

Se, para Vigotski, a palavra é constituída pe-lo elemento fásico e semântico, para Paulo Freire, divide-se em ação e reflexão: “Não há palavra ver-dadeira que não seja práxis. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” [4]. Nem por isso discorda Vigotski: “interpretar o mundo implica transformá-lo, e não apenas contemplá-lo passiva-mente” [1]. Considerações finais

O esforço de Vigotski em mapear modifica-ções ao longo do desenvolvimento humano deve-se, em parte, à tentativa de evidenciar as implicações psicológicas do fato de os homens serem participan-tes ativos e vigorosos da sua própria existência e de demonstrar que, a cada estágio de seu desenvolvi-mento, a criança adquire os meios para intervir de forma competente no seu mundo e em si mesma.

Paulo Freire, com a mesma convicção, dire-cionou sua práxis acreditando no homem e na sua capacidade de conscientização e luta. Sua obra con-centrou-se em uma reflexão sobre a esfera educaci-onal a que esse homem pode recorrer para apreen-der o mundo por meio da linguagem.

Por isto a Psicologia de Vigotski é humana, tal como a Pedagogia de Freire: ambos acreditam e confiam no homem, em sua capacidade de transfor-mação da história e superação, em diálogo e união, das condições que os atravessam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] Delari Jr., A. (2000) Consciência e linguagem em Vigotski: aproximações ao debate sobre a subjetivi-dade. Dissertação de mestrado, Faculdade de Edu-cação – Universidade Estadual de Campinas, Brasil. [2] Figueiredo, L. C. & Santi, (2000) Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ.

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