a psicologia concreta de vigotski implicaÇÕes para a educaÇÃo

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Page 1: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

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A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI:

IMPLICAÇÕESPARA A EDUCAÇÃO

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AngelPino

Se fosse possível sintetizar em algumas poucas idéias ascontribuições de Vigotski à Psicologia e, em termos mais am-plos, à compreensão do ser humano, eu apontaria duas, quesão corno urna espécie de eixo de coordenadas de sua elabora-ção teórica. A primeira é que o desenvolvimento psicológico éum processo histórico.A segunda, na contramão do pensamen-to psicológico da sua época, é que o psiquismo é de naturezacultural. Embora diferentes, trata-se de duas idéias interdepen-dentes, urna vez que afirmar que o psiquismo é de naturezacultural equivale a dizer que ele é ~istórico e vice-versa, cornotentarei mostrar neste trabalho.

DESENVOLVIMENTOCOMO PROCESSO HISTÓRICO

o termo "história" tem para Vigotski dois significados:um geral e outro restrito.1

1 "Tireword, Irislory (llistorical'psycholo81J> for me l1Ieans two things: (1) a gene-

ral dialecticalapproaclltotllings- In t/lisSfllse, eiJeritllingliasitslIistory;thisis

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Page 2: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

34.PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES'''V''. "\l...o-C2....~

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1. Em termos gerais, história significa uma abordagemdialética geral das coisas, no sentido de que cada coisa tem suaprópria história, como quando falamos de "história natural"

para nos referirmos à ciência da natureza. É evidente que, nes-te caso, o termo história não tem o mesmo sentido que quandoaplicado aos fatos humanos, pois história não é a mera suces-são de fatos no tempo e no espaço, mas um certo ordenamento

significativo desses fatos, o que, necessariamente, implica apresença de certo nível de consciência e de intencionalidade.Com efeito, Vigotski está falando de uma certa maneira de

abordar as coisas em geral, uma abordagem dialética. Esse tipode abordagem foi emprestada de Hegel por Marx, invertendoo sentido idealista que aquele lhe dera e conferindo-lhe umsentido materialista, constituindo o chamado materialismodialético. Este funda-se em uma concepção da realidade como"totalidade concreta", a qual nada tem de comum, como diz

Kosik (1976,p. 49), com a idéia de totalidade holística - em queJ todo é concebido como algo já pronto e formalizado que de-termina as partes -, uma vez que a própria totalidade - o todo e:ada uma das suas partes - concretiza-seem um processo de~ênese e desenvolvimento. Isso significa que a gênese e o de-;envolvimento da "totalidade concreta" é "um processo nolual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado deodos os seus fatores e partes" (idem, p. 50).

A natureza pode ser entendida em dois níveis, ambos:oncretos: o ontológico e o dialético. No primeiro caso, é a rea-

what Marx meant: theon/y scienceis history (ArchivesMarx & Enge/s);natu-ra/ science= the history of nature, natural history; (2) history in the strictosense. Thefirts history is dia/eetie;the seeond is historiea/materialism[...] TheIIniquenessof theIlIImanmind lies in thefact that both types Dfhistonj (evo/uti-on + history)are united (synthesis) in it" (itálicos no texto) (Vigotski, 1989,pp. 54-55). Trata-se de versão inglesa de um manuscrito de Vigotski, de1929,feitodeano~ações,cedidope1afilha do autor, G. L. Vigotskaia, a A.A. Puzyrei, para publicação.

IIVIGOTSKI 35

lidade em si, o "dado" nos termos c;leHegel, ou seja, a realidadecomo existência independente do homem, aquilo de que fala aciência. No segundo caso, é a realidade parasi, ou seja, para ohomem e, como tal, o objeto da ciência. É neste nível que a na-tureza tem uma dimensão histórica, na medida em que adqui-

. re existência para o homem que, ao agir sobre ela e trans-formá-Ia, integra-a na sua própria história. O homem consti-tui-se em "consciência da natureza" e sua história é a história

das transformações da natureza. Tal parece ser o sentido daspalavras de Marx quando diz: "a própria história é uma partereal da história da natureza, da transformação da natureza em

homem" (1972,p. 96). Portanto, é o homem - ao mesmo temponatureza e história dessa natureza - quem confere a esta suadimensão histórica.

~iA~l.-cL./ 2. Em sentido restrito, história é a história do homem. Se

:,::\.~!l0 sentido anterior a história é a visão dialética da natureza,.,LL~ aqui ela é entendida como o próprio materialismo histórico, se-

gundo Vigotski. O autor está indicando que a sua compreen-são da história do homem tem sua referência na matriz domaterialiSmo

~histórico, o .qual implica uma concepção científi-

ca da históri. esde que existe o hO..!l1em,história da natureza

e história do ornem são inseparávei.o/pois esta confere àquelaum sentido histórico. Não é minha intenção entrar aqui nacomplexa questão teórica do materialismo histórico, mas ape-nas reunir algumas das idéias mais importantes colocadas por

. Marx e Engels, para entender o pensamento de Vigotski.

i ./ "'t cn.",-~Na perspectiva do materialismo histórico, o que carateri-I -l: "\..l..7.:.- e,za a evolução ~~espécie homoe a distingue das outras espécies

; .Ht:.0""" . é ter-se --!?rnacr~capaz de assumir o controle da sua própria. I) . evoluçãç.' Isso só foi possível quando os homens se tornaram- \ I~~pazes de criélr suas próprias condições de existênc~/livran-

do-se assim do determinismo da adaptação às condições natu-

rais do meio como condição de sobrevivência, regra geral nomundo biológico segundo a teoria da evolução. Como nos

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Page 3: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

36.PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇOES

lembra E. Bottigelli (1972), o problema do homem e da sua li-berdade dominou a filosofia clássica alemã. Se o idealismo odeslocou ao plano do pensamento, sob a forma abstrata da re- .lação sujeito-objeto, ele situa-se realmente no plano do concre-to como problema dialético da oposição homem-natureza.Hegel (1941) resolve esse problema no plano da "consciência

de si", ponto de chegada de um desenvolvimento dialético queengloba todo o devir da História e que revela a verdade do ho-mem, livre e capaz de pensar-se e de pensar o mundo. Trata-sede uma solução idealista, criticada por Feuerbach e Marx.Quanto a Feuerbach, ele substitui a "consciência de si" pelo ho-mem concreto, reconciliando homem e natureza e fazendo dohumanismo o equivalente de naturalismo. Trata-se de uma

concepção materialista, sem dúvida, mas que, ao excluir a his-tória, deixa sem resposta a questão da verdadeira natureza do

homem. Criticando o idealismo de Hegel, Feuerbach é, por suavez, objeto das críticas de Marx por não ter conseguido escapar

\ de um humanismo abstrato e meramente contemplativo. Para

\~r~ue retém de Hegel a idéia do "devir hi~tórico do ho-_c...' mem"; na perspectiva dialética e de Feuerbach a concepção-l..-:.-Pnateralista,~verdade" do homem só pode revelar-se objeti-

vamente, no plano da prQ.çluçãoou trabalho, campo da ativida-de específica do homem) Corno para Hegel - que vê no

,,-.;,Ctrabalhoo meiopeloqual óhomem, opondo-se (negação)à na-tureza se reconcilia com ela -, o trabalho também constituipara Marxomeio,não da conciliaçãodo homem e da natureza, ,

pois aquele já faz parte desta, mas do salto evolutivo que per-mite ao homem fazer da realidade natural uma realidade cul-

tural ou humana. Isso ocorre quando o homem produz osinstrumentos para agir sobre a natureza e criar suas própriascondições de existência, assumindo assim o controle da pró-

~~,~volução q~~ é sua história. y 7rP-Q.1 ,Em O CapItal(1977),Marx reiõffia a questão do trabalho,

colocada já nos Ma/1uscritosde 1844,obra de juventude marca-

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VIGOTSI<I 37

da visivelmente pela influência do idealismo de Hegel, paraafirmar que é por ele que o homem assimila as característicasda matéria e a transforma (ou seja, imprime-lhe uma formanova, tal é a idéia de "transformar") e, por esse mesmo ato,transforma-se ele mesmo, desenvolvendo capacidades latentesna sua própria natureza.2 Assimilar as característica da maté-

, ria implica a sua subjetivação. Conferir-lhe uma forma novaimplica não só alterar sua materialidade mas, sobretudo, im-primir nela uma idéia (projeto que preside e dirige o trabalho).Dessa maneira, o produto do trabalho torna-se a objetivaçãoda idéia e da própria atividade do homem, constituindo assima sí~se da relação dialética homem-natureza.

Na concepção de Marx, o trabalho é um processo único ecomp exo, envolvendo três elementos simples: a atividadepessoal do homem, o o1;>jetosobre o qual ele age e o meio (ins-

trumento) pelo qual age) Nesta formulação~ caráter de gene-ralidade dado a esses Jementos permite estender a qualquertipo de atividade humana, material ou mental, o conceito detrabalhcl Com efeito, tanto uma materialidade quanto um entemental ~odem ser objeto da atividade, mantendo a fo'rmulaçãotoda sua validade conceptual. Fica claro, entretanto, que o queconfere à atividade de trabalho sua especificidade humana é amediação de instrumentos, criados pelo homem em função dotipo de ação que pretende realizar no objeto. Diz Marx:

2 "O trabalho é antes de tudo um ato que se passa entre o homem e anatureza. Nele, o homem desempenha face à natureza a função de umaforça natural. As forças de que seu corpo é dotado, braços e pernas,cabeça e mão,' ele as põe em movimento a fim de assimilar matériasdando-Ihes uma forma útil para a sua vida. Ao mesmo tempo que poreste movimento ele age sobre a natureza exterior e a transforma, transfor-ma sua própria natureza e desenvolv~ ,as facu!ciades adormecidas nela .-

. [u.]O resultado ao qual chega o trabalho preexiste idealmente na imagi- ,.'\ nação do trabalhador" (Marx,197~Lv. I, p. 136, tradus~~ J1\inha). I

Page 4: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

38. PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONfRIBUIÇÕES

o meio de trabalho é uma coisa ou conjunto de coisas que o ho-mem interpõe entre ele e o objeto do seu trabalho como condu-tores da sua ação [...] O uso e a criação de meios de trabalho,mesmo encontrando-se em germe, em espécies de animais, ca-racterizam eminentemente o trabalho humano [...] No processode trabalho a atividade do homem efetua portanto com a ajudados meios de trabalho uma modificação intencional do seu ob-jeto. O processo conclui-se no produto, ou seja num valor deuso, uma matéria natural assimilada às necessidades humanas

por uma mudança de forma. O trabalho combinando-se comseu objeto, materializou-se e a matéria foi trabalhada. O que eraum movimento do trabalhador aparece agora no produto comouma propriedade em repouso. O operário teceu e o produto é otecido. (Idem, pp. 137-138)

Se o trabalho, assim concebido, constitui a condição dehumanização do homem e da natureza, traduzindo a "verda-de", ao mesmo tempo da natureza, pela ciência, e do homem,pela consciência da sua liberdade, é porque o homem - quepensa e realiza a atividade - e o produto que dela resulta per-manecem indissociáveis em todo o processo. Na medida, po-rém, em que, por condições históricas concretas, eles sãodissociados, produz-se a alienação do trabalhador do processode trabalho. Como diz Bottigelli (1972, p. LV e ss.), o termo"alienação", de origem jurídica e econômica, foi elevado porRegel ao estatuto de categoria filosófica, aparecendo no siste-ma hegeliano (1941)como uma etapa do retorno do Espírito asi mesmo, onde ocorre a identidade do sujeito e do objeto. Nadialética hegeliana, o conceito de alienação identifica-se com ode objetivação. Marx, porém, diferencia uma da outra. Se a ob-jetivação é o resultado natural do processo de trabalho, a mu-dança nas relações de produção, como ocorre no sistema deprodução centrado no capital, transforma-a em alienação. Em

contraposição a Hegel, que, apesar de relacionar a alienaçãocom as contradições existentes no mundo capitalista, transpor- .

J

VIGOTSKI 39

ta essas contradições ao plano especulativo, Marx as recolocano plano do concreto, fazendo da alienação uma etapa transi-tória na dialética da história das relações de produção. A su-

. pressão da alienação só será possível, segundo Marx, pelasuperação da sua fonte, a propriedade privada, expressão da

. apropriação da mais-valia, verdadeiro motor das relações deprodução do capitalismo.

Se é pelo trabalho que os homens criam suas própriascondições de existência, a maneira como eles organizam omodo de produção tem, necessariamente, a ver com a qualida-de dessas condições, como o mostra a história social dos ho-mens. É o que diz Marx:

Produzindo seus meios de existência, os homens produzem in-diretamente sua própria vida material [...]O que eles são coinci-de portanto com a sua produção, tanto com o que elesproduzem quanto com a maneira como eles o produzem. Por-tanto, o que os indivíduos são depende das condições materiaisda sua produção [..,] Esta produção não aparece senão com oaumento da população. A qual pressupõe da sua parte relaçõesdos indivíduos entre si. Por sua vez, a forma dessas relações écondicionada pela produção. (Mi:lrxe Engels, 1976, pp. 70-71)

Isso quer dizer que,~ o mododeprodução,qualquer queele seja, condiciona as relações d,os homens com a natureza edeles entre si, ele determina as condições de existência dos ho-mens não apenas materiais, mas também culturais. Estas, porsua vez,.vão condicionar o conjunto da vida social- a maneiracomo as relações sociais se estruturam - e, finalmente, o modo

deserdos ho~e,

..

Page 5: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

40PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES

Cria-se assim, a partir do trabalho, uma espécie de "cir-cuito" como mostra a Fig. 1:

TRABALHO => MODO DE PRODUÇÃO

t ~MODO DE SER <= RELAÇÓES SOCIAIS

, dos homens

Figura 1: diagrama do ciclo "modo de produção" <> "modo de ser" doshomens

onde o mododeserdos homens, cuja essência,segundo Marx,são as relaçÕessociais, depende do modode produção,que, porsua vez, depende daquele. Não é um processo cego e determi-nista, uma vez que são os próprios homens, e não a natureza,

que estabelecem as regras qtie determinam o modo de pro-dução. Mudanças em um ponto do "circuito" produzemmudanças no conjunto. A questão, então, é política. Evidente-

mente, estáse falando dos homens cornoum ente coletivo, o "gê-nero", como expressão do rumo que os próprios homensderam à sua história. Mas na medida em que cada ser humanoexiste e se constitui em e por esse coletivo, a história pessoale a história coletiva estão profundamente imbricadas, de for-ma que aquela está condicionada pelo curso que toma esta.

./ NATUREZA CULTURAL DO PSIQUISMO

More and moreeternallaws of nature are turning into laws ofhistory.Esta frase de Marx e Engels, colocada como epígrafe emum dos trabalhos mais importantes de Vigotski (1997), revelabem qual é a questão central das reflexÕesdo autor, não só nes-se trabalho, mas nos outros em geral. Como acabamos de veranteriormente, a entrada da natureza na História é obra do ho-

mem, que, para tanto, precisou transpor os limites impostos

VIGOTSKI 41

'.

pelas "eternas leis da natureza" e assumir o curso da própriaevolução que constitui a História. Transpor os limites da natu-reza sem deixar de ser natureza é o grande paradoxo da histó-

ria humana, icuja c0l!lpreensão abre as portas à "verdade do

homem". Se Vigotski\mostra-se particularmente~ríticO km re-lação ài'psicolÓgiada-sua época '(1997,vol. 3 e 4), e preci~amen-te pela 'inabilidade desta em entender que o que o homem temde específico é o que o diferencia dos outros seres da natureza

e não o qU,Gtemem comum com eles, corno aparece na visão~aturalista.~ixando de investigar a dimensão histórica do ho-~em par~ insistir no que ele tem de próprio com a natureza, apsicologia fecha-se à "verdade do homem", abrindo o caminhoàs ideologias )que, se falam do homem, fazem-no ocultando

sua verdadeifa essência.Esse é o grande equívoco das teoriaspsicológicas e a f

~te principal de impasses.

Ao fazer d~ elação entre natureza e cultura seu principal

objeto de anális~ igotski acaba recolocando no plano psicoló-gico um debate que, no plano da Filosofia Política, envolveudiversos filósofos, particularmente nos séculos XVII-XVIII.3Vigotski pensava que, levando-se em conta o que se sabia na

Isua época sobre a(evolução da espécie humaI;\a (filogêneseYe o~des

~volvimento do indivíduo (ontogênese») podia afirmar-se

'qtre estes dois processos são o resultado dJ duas linhas dife-

rente, porém interligadas, de eV9luÇão:a natural e a cultural~cada uma regida por leis próprias.~e, na filo

~Anese,a evolução

natural precede a cultural\que ela possibilita na ontogênese asduas linhas estão entrela~adas,.a ponto de nã poderem ser se-

paradas, a não ser por abstraçã~} O/desenvolvimento históricoJ \

3 Refiro-me ao debate sobre a passagem do estado de natureza para o desociedade, para fundar a racionaiidade da sociedade, do Estado e dodireito, envolvendo, entre os autores mais salientes, J. Althusius (1557-1638), T. Hobbes (1588-1679),B. Spinoza (1632-1677),S. Pufendorf (1632-1694), J. Locke (1632-1704),J.-J.Rousscau (1712-1778)e I. Kant (1724-1804).

Page 6: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

42 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES

do homem constitui, portanto, como diz Vigotski, "uma u~-

dade dialética de du-as ordens essencialmente diferentes)'(idem, p. 22).Eu arriscaria afirmar que as dificuldades que per-sistem nas análises dos filósofos sociais, com a introdução daidéia de "contrato social" para explicar a passagem do estadode natureza ao de cultura, desaparecem na análise dialéticaem que Vigotski se situa, pois natureza e cultura constituemestados ou ordens diferentes, mas uma implica a outra.

Seria cansativo e redundante apresentar as inúmeras re-ferências em que Vigotski trata da questão da relação naturezae cultura e critica o reducionismo naturalista das teorias sobre

o desenvolvimento psicológico. Além disso, é fácil perceberque o repetitivo uso que ele faz das expressões "funções ele-mentares" (naturais ou biológicas) e "funções superiores" (cul-turais ou mentais) revela, ao mesmo tempo, um desejo de rigorcientífico na análise demonstrativa daquela relação e uma cer-ta dificuldade para lidar com uma questão tão alheia à tradiçãopsicológica.

Antes de começar a ~nálise da ,história do desenvolvi-mento das funções mentais superiore~, no texto que leva essetítulo (idem, voI. 4), Vigotski lembra, ~m uma espécie de alertaao leitor, que se a infância é um momento privilegiado para aanálise dessas funções, pois é quando elas começam a consti-tuir-se em um momento de intenso desenvolvimento bioló-

gico, é apenas o começo de uma história de transformações que", duram a vida inteira. Reduzir a análise psicológica dessas fun-

ções à infância eqüivaleria a ficar na sua "pré-história".j(" "As raízes genéticas das duas formas culturais básicas do

comportamento são constituídas na idade infantil: o uso deinstrumentos e a fala humana" (idem, p. 6). Em outros termos,isso significa duas coisas: a primeira, que o comportamentohumano não é da ordem do biológico, pois suas bases são "for-mas culturais", por isso suas raízes se constituem na infância e

não antes; a segunda, que o que define esse comportamento é 'i.

IIi,

VIGOTSKI 43

ser duplamente mediado,pela técnica e pelo simbólico. O quequer dizer que, assim como a invenção de instrumentos e desistemas simbólicos possibilitou aos homens transformar a na-turezaem culturae transformar-se eles mesmos de seres natu-rais em seres culturais(ou humanos, é o mesmo), da mesmamaneira, a transformação da criança em um ser humano (ouseja, cultural) pressupõe o acesso dela aos meios que possibili-tam essa transformação. Instrumento e símbolo são os mediado-

, res entre o homem e o mundo, natural e social, que conferem àatividade seu caráter produtivo. Com efeito, pela ação técnicao homem altera a matéria e confere-lhe uma forma nova; pelaação simbólica essa forma nova se constitui em símbolodo ho-'mem trabalhador, ou seja, naquilo que representa suas capaci-dades, físicas e mentais, e suas idéias. É pela ação técnica queMichelangelo confere ao bloco de mármore umaforma escultu-ral, a qual torna-se o símbolo da personalidade de Moisés talcomo o artista imaginou.

Se o conceito de instrumento técnicoé suficientemente cla-

ro, embora envolva aspectos complexos, o de símbolo é bemmais complexo e requer ,alguma explicação. Vigotski dedicou,em 1930,um longo trabalho à análise do instrumento e do sím-bolo (Vigotski e Luria, 1994,pp. 99-173),cujo objetivo principalera "caracterizar os aspectos tipicamente humanos do compor-tamento", explicando a sua formação ao longo da história hu-mana e da história pessoal de cada indivíduo. A questãocentral era saber como a atividade, aspecto essencial do ser

vivo, adquire no homem seu poder criador (produtivo).Sua análise mostra que isso ocorre quando ela é mediada pormeios, técnicos e simbólicos, criados pelo próprio homem. Em

, relação aos meios técnicos, Vigotski pouco acrescenta ao jáafirmado por Marx e Engels na teoria do trabalho social e aosestudos comparativos dos seus contemporâneos (W. Kõhler,C. e K. Bühler) sobre I)uso de instrumentos pelo macaco e pelacriança. Sua análise centra-se nos efeitos que o aparecimento de

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44PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 45

"t

,um meio simbólico como a fala produz sobre a ação prática(que usa instrumentos) da criança. Após discutir diferentespontos de vista dos es~udiosos, Vigotski conclui:

lação entre fala e penSamento (1997,voI. 1), chegando a um mo-

der de signQtom, uma estrutura semelhante à que encontramos

no\igno de PeirCe)(1990):uma estrutura triádica do tipo:

o momento genético mais importante de todo o desenvolvi-mento intelectual, do qual emergem as formas puramente hu-manas de inteligência prática e abstrata, ocorre quando estasduas linhas de desenvolvimento, até então completamente in-dependentes, se unificam. (1994,p. 108)4

~.

A fala, diz ele, além de reorganizar o comportamento,dando-lhe um formato humano, possibilita que a criançaoriente e controle suas ações sobre o meio.

Mesmo se o autor não avança mais nesta última questão,deixa entender que o simples uso de instrumentos técnicos nãoseria suficiente para transformar a atividade do homem em ati-

vidade produtiva ou trabalho. Sem linguagem não há comopensar a realidade, mesmo se ela pode ser naturalmente co-

nhecida, nem como organizar e planejar as ações e, portanto,não há trabalho. Embora Vigotski enfatize nos seus textos a

função da fala, em razão do papel preponderante que ela ad-quiriu na história humana, não reduz a ela o mundo simbóli-

co. Junto com a fala ele refere-se aos signos em termos gerais ea alguns tipos deles em particular, como os gestos, ao discutir ocaso dos deficientes auditivos. Se o autor introduz a idéia de

signo a partir da análise do modelo da "dupla sinalização" dareflexologia pavloviana, fonte de ambigüidades conceituaisnos seus escritos, ele avança na sua elaboração ao analisar a re-

~XTY ZFigura 2: diagrama da estrutura do signo

4 "Our ressearch leads us not only of the conviction of the falJacy of thisapprÕ'!\ch,but also to the p<>sitiveconclusionthat thegreatgeneticmomentof alI intel/ectlla/developlllent,from whichgrew thepllre/yforms of practica/1111dgnoslicinlellect,is realizcdin lheIIniJicatiollof tilestlUOpreviolls/ycomp/e-te/y independe1lt /ines of deve/oplllent" (ênfase do autor).

onde ~x,''irepresenta o elementp material do Sig

~

O ou aquilo

que faz~inal (som, gesto, o~jeto~lt!';representa o objetosinali-zado (coIsa, evento ou idéia) el"~){epresenta alraz o ou princí-pio que permite rel

~.iQ~/X ~Y) Dos três c~ponentes do

signo, este último (o "z'}~~amado por Peirce de interpretante)e(p~r Vigotski de signi icad;JJé o que apresenta maior dificulda-~ de compreensão. No caso de Peirce, é o que permite ao su-jeito interpretaro signo e, como tal, não é totalmente-evidente.No caso de Vigotski, é o significadoconvencional que o signoveicula e que os sujeitos podem interpretar de maneiras dife-rentes (é o que entende por "sentido") em função da própriahistória pessoal.

Nãf é o momento de entrar em maiores detalhes sobre aquestão\5emiótica; basta dizer quJ o que caracteriza o signo éser um meioinve~tado pelos home't\s para representar-sea re .

-!idade, material ou imaterial, de maneira a poder compartilha;)entre::>iu qt:lesaôem a respeito dela. Mas, se o simbólicoé da or-dem da representação, pressüpÕe que existem realidades con-cretas que ele representa, o que descarta qualquer desvio

. idealista~ mundo simbólico é o mundo construído pelo ho-* mem, uma espéciede réplica do mundo natural, ao mesmo

tempo resultado e condição da atividade humana. É a esse

mundo que chamamos de culturit totalidade das produções

humanas portadoras de significaçãy

Page 8: A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

'46 .PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 47

,

Quando Vigotski fala de desenvolvimento cultural, refe-

re-se especificamenteao desenvolvimento pessoal(ontogêne-se), mas tendo como referência o desenvolvimento geral daespécie humana. Por isso, a questão principal dele é sabercomo o desenvolvimento cultural da espécie acontece em cadaindivíduo. Ele não explidtouo conceito de cultura, limitando-

se a uma definição sintética: "Cultura é, ao mesmo tempo, oproduto da vida social e da atividade do homem" (1997, v. 4,p. 106). Dois pontos marcam essa definição: ser produto da"atividade do homem" e, como tal, na definição de cultura estáembutida a teoria do trabalho social, e ser produto da "vida so-cial" e, como tal, a cultura constitui a dimensão humana da so-

ciabilidade, o que diferencia esta da sociabilidade puramenteanimal. Assim sendo, o desenvolvimento cultural é um proces-so cuja origem é necessariamente social, de forma alguma indi-vidual, como o entende a psicologia tradicional. Isso permite aVigotski enunciar o que ele denomina "lei genética geral dodesenvolvimento cultural" (idem), segundo a qual todas asfunções superioresou cult urais - em contraposição às funçõeselementares ou biológicas - antes de se constituírem no planopessoal já existem no plano social ou interpessoal. Isto levantavários problemas, que Vigotskiprocura explicar ao longo dasua obra. O principal deles, penso, é explicar a natureza cultu-ral das.funções e o modo como elas se constituem em cada indi-

víduo. Em síntese, é explicar a históriapessoalna e pela históriageraldos homens.

por Marx e a tese da gênese das funções superiores proposta porVigotski? Como essas teses gerais podem explicar o desenvol-vimento humano dos indivíduos singulares?

Se é relativamente fácil compreender essas teses no seu

sentido geral, não é tão fácil compreendê-Ias quando aplicadas'à história particular dos indivíduos singulares. Em primeirolugar, o conceito de trabalho, tal como aparece na tese geral,tem uma conotação específica, dada pelo contexto da análise doprocesso de produção econômica em que Marx o utiliza, e quelhe permite fazer a crítica do modo de produção capitalista.Fora desse contexto, entretanto, ele conserva toda sua força se

. entendido como definidor da especificidade da atividade hu-mana, qualquer que ela seja. Tal é o sentido em que o utilizaVigotski. Isso não qUE~rdizer que sejam concepções diferentes,mas que o conceito de trabalho se situaria dentro do conceitomais amplo de atividade humana que, para ser humana, devereunir as características atribuídas ao trabalho. Em segundo lu-gar, a tese de Marx explica o desenvolvimento histórico do ho-

. mem em geral, e do seu mundo, não o do homem singular nointerior dele, não obstante o fato de tratar-se de duas dimen-

sões de um mesmo e único processo histórico. O que significaque o caráter produtivo da atividade humana opera nos doispólos de que é a mediadora: no MUNDO,transformando-o emCULTURAe no HOMEM,transformando-o pela CULTURA:

HOMEM--. ~ MUNDO

~~ CULTURA

ATIVIDADE

FUNÇÕES SUPERIORES:NATUREZA E CONSTITUIÇÃOt técnica e semiótica

Um dos efeitos do trabalho social, tal como descrito porMarx e anteriormente apontado, é que, ao agir sobre a naturezaexterior e transformá-Ia, o homem transforma sua própria na-tureza e desenvolve as faculdades nela adormecidas. Cabe per-guntar-se: que relação existe entre a tese do trabalho enunciada

Figura 3: diagrama da atividade produtiva

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48PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBurÇÕES 49VIGOTSKI

(Pela atividadeJ o homem)indivíduo cO\lcreto, transfor-ma-s~ desenvolvendo habilidaàes orgânicas,~em função daadaptação ao tipo de atividade que realiza,

r/ usculatura, do-

mínio motor,. sensibilidade perceptiva, etc.) e mentais)<novos.

saberes, valores, sentimentos, etc.).~enhum dessas transfor-mações ocorrem naturalmente, como mero efeito da maturação

biológir" Entretanto, como o mostra a evolução de todas as es-

pécies, ~ desenvolvimento de habilidades humanas na criança

está condicionado pelas características genéticas da ;~E~cie!7~Y1Com efeito, pode-se conjeturar, de maneira razoável, qU,\a his-tória cultural do homem marcoua natureza biológicada espé-

ciej na forma de memón'a genética das transformações pelasquais ela passou ao longo do tempo. Isso responderia à ques-tão do significado da expressão "faculdades adormecidas" aque se refere Marx. É evidente que isto é condição necessária

ma~~.~.u~~~~e~ p_ara(~/eIEergência2af funções mentais supe-riores,as q~aiSrCõmo diz Vigotski, são a ,\econstituiÇãoho pla-no pessoal das funções que já existem no plano sOci~1~aí aidéia da internalização ou conversãopara explicar a passagem

de um plano ao outr~. Mas qual é a natureza dessas funções? Eem que consiste sua mternalização ou conversão?

e a fumaça",5 entre a fixidez de um ea fluidez da outra. Algoque nos faz pensar na criação ininterrupta do velho no novo,

do significado d~do na flutuação do sentido. Na função, fun-. dem-se, sem se confundirem, o ato de funcionar e o seu resul-

tado. Assim, por exemplo, as funções de pensar ou de falar sóse concretizam no ato da própria fala e do próprio pensar algu-ma coisa. Isso quer dizer que, fora do ato de pensar e de falar, afunção nada mais é do que urna simples capac~dade e um re-gistro. O termo permite ver o psiquismo corno um complexode atividades virtuais que precisam, em cada momento, serconcretizadas.

Mas, levando-se em conta o uso do termo função na litera-tura especializada, ele pode ser também entendido em um du-plo sentido: (1) o de posiçãosócial, sentido sociológico, ao qualvão associados determinados papéis, e (2) o de correspondênciaentre dois conjuntos de elementos, sentido matemático. Embo-ra diferentes, esses dois sentidos podem ser combinados se ad-mitirmos que toda posiçãosocial éfunção de uma outra posição

. que, opondo-se a ela, a constitui. É dessa forma que podemosentender a relação "mes~re-serVo" de que fala Hegel, embora ofaça referindo-se a um fenômeno diferente: a condição de"mestre" depende da existência de um "servo", sem o qual nãoseria mestre. A mesma coisa podendo-se afirmar do "servo"que, sem "mestre", niio tem serventia. Ambas as posições sãologicamente opostas, negando cada urna a outra, mas é nestanegação que ambas se constituem reciprocamente. A mudançade condição de urna delas produz mudanças equivalentes naoutra.

Neste contexto conceptual pode-se entender o termo fun-ção seja como o "ato de funcionar" seja corno a razão de uma

--:~-

NATUREZA DAS FUNSÕES

Antes de entrar nesta questão, devo dizer que Vigotskinão tratou, explicitamente, do significado do termo função,usado freqüentemente por ele, corno ocorre, aliás, com outros

termos. Todavia, o caráter aparentemente vago do termo ajudaa conceber o psiquismo corno algo dinâmico que não se crista-liza em formas .ontológicas (estruturas, faculdades, caracterís-ticas, etc.), mas que está sempre em movimento, em um

permanente infieri, ou seja, em uma constante (re)constituição.Algo que se situaria, falando metaforicamente, "entre o cristal

5 Título de uma das obras do conhecidobiólogo Henri Atlant, autor da"teoria formal da auto""\)rganização":Elltrele cristalet IafUlllée(Paris, Ed.du Seuil,1979).

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50PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 51

relação de "posições" diferentes. Os textos de Vigotski nadaindicam que nos permita determinar o sentido que atribuiao ter.mo. Mas, ao retomar a questão da natureza social dasfunções psicológicas (1997, v. 4) esboçada no "Concrete hu-man. ps.ychology" (1989), ele introduz um dado novo, quepode constituir o elemento-chave para determinar o sentidoque ele pode ter para o autor. Diz ele:

Mesmo quando nos voltamos para os processos mentais,sua na tureza permanece quase social. Na sua esfera pri-vada, os seres humanos retêm as fu11çõesda il1ternçiiosocial.(p. 106; itálico meu)

sociais transferidas à esfera interior e tornadas funções da per-sonalidade e formas da sua estrutura" (1989,p. 59). Afirmaçãorepetida em texto de 1931,em que ele acrescenta: '~Não quere-mos dizer que este seja especificamente o sentido da tese deMarx, mas vemos nesta tese a expressão mais acabada de tudoao que nossa história do desenvolvimento cultural nos con-duz" (1997,v. 4, p. 106). A assimilação das funções superioresou culturais às relações sociais aparece com bastante freqüên-cia nos últimos escritos de Vigotski, tornando-se uma idéiafundamental.

Nas duas citações acima, Vigotski está se referindo, espe-cificamente, à crítica que Marx faz da concepção de homemque Feuerbach apresenta em A essênciadocristianismo;críticasintetizada nesta famosa tese, em que Marx afirma: "Feuerbach -resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essênciahumana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular.Na sua realidade é o conjunto das relações sociais".6 Marx criti-ca a visão abstrata que Feuerbach tem do homem, consideradocomo "homem genérico". Contra essa visão, ele sustenta que ohomem é uma realidade concreta cuja essência é constituídapelas relações sociais. Em outras palavras, o que define o ho-mem como ser humano (sua essência) não é algo previamente -dado, como é a natureza biológica que herda dos seus antepas-sados, mas algo que se constitui na história social dos homens.Como comenta Milhau (1982),na sua introdução à versão frán-cesa do Ideologiaalemã,as "teses sobre Feuerbach" colocam naorigem da história humana seres vivos que, para subsistirem,produzem suas condições de existência e, dessa forma, suaprópria natureza. Se pelo trabalho os homens criam suas con-dições de existência, a divisão social do trabalho gera relações

Dado o contexto em que Vigotski utiliza a expressão"funções da interação social", não parece ser um fato mera-mente ocasional, embora não saibamos a razão que o levou autilizá-Ia (é possível até que não exista nenhuma específica).Entretanto, tal expressão tem, em minha opinião, um grandevalor heurístico, pois ajuda a entender melhor o pensamentodo autor. Com efeito, se entendermos a "interação social"como a maneira concreta pela qual duas pessoas se relacionam,poderíamos pensar que as funções da interação social podemser tanto os princípiosque regem sua relação (p. ex. os princípiosque regem as relações concretas entre o "mestre" e o "servo"),quanto afunção que a posição de cada uma delas na relação de-sempenha nas ações da outra (p. ex. a função que a posição do"mestre" desempenha nas ações do "servo" e vice-versa). As-sim, asfunções da internçãosocialnos refeririam, ao mesmo tem-

po, ao "princípio da relação" - o que faz com que o sujeito (SI)entre em relação com o sujeito (52)- e às conseqÜências da po-siçãode cada um nas açõesdo outro. .

No liConcret human psycology", obra de 1929, Vigotski

afiTma, retomandoa idéiadeMarx (aVI tesesobre Feuerbach):"a natureza psicológicado homem é a totalidade das relações

6 "Mais /'essenceItumaine'n'est pas une abstractíon inllérente à l'individu sin-gulier. Dans sa réalité,c','st l'ellsembledes rapportssociaux" (Marx e Engels,1996). .

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.52PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 53

sociais que constituem sua própria natureza ou, em outros ter-

mos, que os constituem como seres humanos. Nessa perspecti-va, o que, em última instância, impulsiona o desenvolvimento dahistória humana, a geral e a particular de cada homem, são as re-lações sociais geradas pelo processo de produção.

Ao assumir a tese marxista de que a essência do homem

são as relações sociais, Vigotski muda os rumos do pensamen-to psicológico, indicando qual é a verdadeira natureza e a ori-gem das funções psicológicas. A idéia de Marx, de que "não é aconsciência que determina a vida, mas a vida que determina aconsciência" (1976,p. 78), Vigotski a aplica a todas as outrasfunções psicológicas (pensamento, linguagem, percepção, me-mória, etc.), entendendo por vida as novas condições de exis-tência criadas pelo próprio homem. Isso quer dizer duascoisas: primeiro, que as condições naturais de existência nãopodem dar origem às funções superioresou culturais, emborasejam a condição necessária para que elas aconteçam; segundo,que estas não preexistem à história do desenvolvimento do ho-

mem, mas surgem nessa história ao mesmo tempo que a cons--tituem.

Seria ingenuidade pensar que Vigotski, ao identificar asfunções superiores às relações sociais, estaria entendendo estas

como expressão de uma sociabilidade natural e, portanto,ideologicamente neutra. Ao contrário, ele..~stáreferindo-se às

(relações sociais historicamente produzida~~ como pode ver-se'em um texto publicado em 1930,em que ele afirma:

mar o caráter de classe, a natureza de classe e as diferenças declasse que são responsáveis pela formação dos tipos humanos.As várias contradições internas que foram encontradas em dife-rentes sistemas sociais encontram sua expressão, ao mesmotempo, no tipo de personalidade e na estrutura da psicologiahumana neste periodo histórico. (1994,p. 176)

Da mesma maneira que a vida da sociedade não representa umtodo único e uniforme e a sociedade é subdividida em diferen-

tes classes, assim, durante um dado período histórico, a compo-sição das personalidades humanas não pode ser vista comorepresentando algo homogêneo e uniforme, e a psicologia develevar em conta o fato fundamental que a tese geral que foi for-mulada recentemente, só pode ter uma conclusão direta, confir-

As relações sociais constituem uma estrutura social com-plexa, feita de posições sociais e de expectativas de ação a elasassociadas. Essas relações concretizam-se em práticas sociais.Isso quer dizer que, nos termos em que fala Vigotski, as "fun-ções psicológicas" traduzem a maneira como os indivíduos sesituam uns em relação aos outros no interior dessas práticassociais que, por sua V(!Z,concretizam a estrutura de relações dasociedade. O que nos permite concluir que as funções psicoló-gicas se constituem no sujeito na medida em que este participadas práticas sociais do seu grupo cultural.

Sem pretender dar uma definição do que sejam as práti-cas sociais, pode-se dizer que elas traduzem, de maneira con-

. ereta, as relações sociais em que as pessoas estão envolvidas.Elas são formas, socialmente instituídas, de pensar, de falar ede agir das pessoas em função das posições que ocupam natrama de relações sociais de uma determinada formação social.

. Dois aspectos parecem caracterizar as práticas sociais em rela-ção a outras ações: terem uma certa configuração (o que as tor-na identificáveis), perpetuarem-se em um certo tempo e emum certo espaço e veicularem uma significaçãocompartilhadapelos integrantes de um grupo cultural espeáfico. Por exem-plo, as práticas religiosas, familiares, políticas, jurídicas, edu-cacionais, etc., próprias das pessoas que integram o mundo,respectivamente, das confissões religiosas, da famma, dos par-tidos políticos, da magistratura ou da educação. Mundos esses

aos quais, via de regra, são associadas determinadas "práticasdiscursivas".que os d€!finemcomo "formações discursivas" es-pecíficas (Foucault, ]986) e determinadas formas sociais de

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. 54 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES

agir. As práticas sociais Iransformam o agir, o pensar e o falarem formas ritualizadas significativas. Dessa forma, o cotidianoconstitui um grande complexo de ritualizações.

I?e tudo o que acaba de ser dito, conclui-se que asfunçõespsicológicassuperiores(ou culturais) são uma transposição noplano pessoal das funções inerentes às relaçõessociaisnas quaiscada ser humano está envolvido. Relações sociais determina-das pelo modo de produção de uma dada formação social emum dado momento histórico. A questão agora é explicar como

. é possível essa transposição, qual o processo pelo qual as fun-ções superiores ou culturais se constituem.

CONSTITUIÇÃO DAS FUNÇÕES

Segundo Vigotski, o desenvolvimento cultural passa portrês estágios: "desenvolvimento em si, para os outros, e para simesmo" (1989,p. 56).7Trata-se de uma referência à análise dia-lética de Hegel (d. 1997, voL4, p. 104), em que, como já vimosantes, o "em si" é o "dado", aquilo cuja existência não dependeda ação do homem, e o "para si" é o "em si" como objeto daconsciência do homem, uma réplica do "dado" no plano sim-bólico. Mas Vigotski introduz aí um elemento novo, o "para osoutros", equivalente do "para si", mas como consciência do -outro, exterior à do eu e mediadora entre este e o "dado" ou

:'em si". ~.Ina.m05-llÓs mesmos através dos outros.jEm sua fórmula puramente lógica, a essência do processode desenvolvimento cultural consiste precisamente nisso"(Vigotski, 1989,p. 56).8Com essas formulações, um tanto enig-máticas para o leitor, Vigotski parece querer indicar que, de

7 "We know the generallaw: first a means of acting on others, then on oneself. In

this sense, all cultural develpment has tree stages: development in itself, for olhers,and for oneself' (Vigotski, 1989, p. 56).

& "WebecomeollrselvesIhrollgh olJwrs. [/I its pureJy JogiC/1[foml, the essence af tlle

processof cultural developmentconsistspreciselyill tllis" (Vigotski,1989,p. 56):

I) II

iVIGOTSKI 55

um lado, o desenvolvimento cultural passa, necessariamente,através do "outro" e que, por isso mesmo, seu fator dinâmico

não está na natu~~a biológica do,indivídu9, masE.:!E-~lgoex-'ternoa erà:'~;-~~_?ut~,l~~o, ,g~e_<:>.~ec:l!.~d<!!.~~~~~.9ingjyjg};!O'e o "'Outro"é a si:<nijIcaçãoque este atribui às ações naturais.daquele. -'-----

E isso que Vigotski quer dizer com o exemplo do "ato de

,apontar", considerado or ele o protótipo ~~!!lofl~ como ocor----=--- '-'-". '.. .- ----re o prõCeSso e mternalizaçiiodas funções superiores (1997,v. 4,pp. 104-105). O que inicialIDente é um ato natural (movimentoda mão em direção a um objeto), torna-se um ato significativopara o "outro" ao ser interpretado por este como "sinal" dealgo que a criançaquer. A significaçãodo movimento da criançatraduz-se no ato do "outro" de atender à sua demanda (obter o

objeto apontado). Desta forma, a criança descobre a significação+< do seu ato, em razão do qual este torna-se para ela o signo com

o qual se comunicará depois com o outro cada vez que desejaro objeto. Como diz Vigotski, "a função do próprio movimentomuda: de um movimento dirigido a um objeto, torna-se ummovimento dirigido a outra pessoa". O movimento só se tornagesto "para si" porque antes foi gesto "para o outro". A signifi-cação atribuída ao movimento, fato natural, torna-o gesto ousigno, fato simbólicoou cultural. Portanto, o que é internalizadonão é o gesto, como materialidade de movimento, mas a suasignificação.É a significação qu~ tem o poder de converter ofato natural em fato cultural e, dessa maneira, permite a passa-

gem do plano social para o pessoal.A própria natureza da significação faz dela algo que, ao

mesmo tempo que pode ser compartilhado por todos - é detodos e não é de ninguém em particular -, conserva a singu-laridade de "cada um dos que a compartilham; ao mesmotempo que não está sujeita às condições da espacialidade eda temporalidade, concretiza-se em seres reais e no temporeal desses seres.

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"56 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES

.,.

A capacidade de Significar - no duplo sentido de fazer si-nal ao outro e de interpretar o sinal do outro - constitui a es-sência do ser humano. O o si ificar é o poder de cri~

as coisas, uma vez que estas só têm existência para o hom~mquallilõ. éste aS-Í1oin-ei~~~1ISejã~-afr}D~~~I \}~'9-sIgruJicação.As coisase o próprio homem são, no sentido de existir, na me-dida que significam algo para o homem. Talvez seja essa a realfunção das funções superiores: significar. Isso autoriza dizerque o homem é um sersemiótico,não só porque ele pode confe-rir significação às coisas, mas também porque ele é o que elesignifica para os outros. Significar para os outros pode ser oequivalente ao reconhecimentode que fala Hegel, condição daconsciência de si.

IMPLICAÇÕESEDUCACIONAIS DAS IDÉIAS DE VIGOTS~I

Como lembra Elkonin (1998,pp. 297-317),Vigotski foi an-tes de tudo um especialis ta na área da psicologia geral e da me-

. todologia. Seu interesse principal era construir um sistemacientífico de psicologia, na perspectiva do materialismo histó-rico e dialético. Por isso, ()centro da sua pesquisa, teórica e me-todológica, é a históriado desenvolvimento e sua conexão coma história social dos homens. Entretanto, duas fortes razões o

levaram a estudar as questões relativas à psicologia infantil:uma, o fato de ser a infância o período em que essas funçõescomeçam a constituir-se, momento privilegiado para analisartanto a emergência delas (as neoformações),quanto a desinte-gração de algumas delas (trabalhos sobre "defectologia"); aoutra, a demanda da sua própria prática de professor, que o le-vara a interessar-se pelos problemas de psicologia pedagógicaantes de dedicar-se às grandes questões de psicologia geral.Foi seu passado de professor que o levou não só a acompanharatentamente as mudanças que ocorriam no curso da constru-ção de um novo sistema educativo na União Soviética, como a

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VIGOTSKI 57

tomar parte ativa nessa construção como membro do Gusa(Conselho Científico do Estado - Centro Metodológico do Co-missariado de Educação do Povo). A solução dos problemas doensino e do desenvolvimento desempenhou, segundo Elkonin,um papel importante na formação da sua concepção da psico-logia e foi a forma mais direta de atuar na"reforma do sistema

educativo, da escola primária e da escola secundária, queocorreu na URSS a partir do decreto do Comitê Central doPartido Bolchevique de 1931.Em resumo, para Vigotski, desen-volvimentohumano e educaçãoconstituem dois aspectos de umamesma coisa. Se o primeiro diz o que é o ser humano e comoele se constitui, a segunda é a concretização dessa constituição.O que nos permite dizer que, nessa perspectiva, a educaçãonão é um mero "valo)' agregado" à pessoa em formação. Ela éconstitutiva da pessoa. É o processo pelo qual, através da me-diação social, o indivíduo internaliza a cultura e se constituiem ser humano.

Muito se poderia dizer a respeito das múltiplas implica-ções que as idéias de Vigotski têm para a educação, sob a con-dição, entretanto, de não buscar nelas receitas ou propostas

.pedagógicas"F)reviamente elaboradas, uma vez que a principalimplicação da perspectiva histórico-cultural do autor é a idéia

. de praxis como articulação dialética entre razão (teoria) e expe-riência (prática). Uma não existe sem a outra porque elas sãomutuamente constitutivas. Nesse contexto e dentro das limita-

ções deste texto, apontarei algumas das idéias que, parece-me,podem ter maiores implicações para a educação formal, da qualestamos falando.

.A educação formal, parte integrante da educação emsentido pleno, con..c;tituiuma via de acesso - não a única, mas asocialmente instituída - da criança ao conhecimento científico,ou seja, ao saber que os homens têm do mundo natural como

resultado e condição da sua transformação pelo trabalho. O co-nhecimento científico .faz parte do mundo cultural, mundo es-

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, 58 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONfRlBUlÇ6ES

pecífico do homem, onde ele construiu sua existência. Assimsendo, a educação formal é algo necessário, não apenas desejá-vel, para o desenvolvimentocultural da criança, o que a transfor-ma em um direito fundamental.

. Se, como diz Vigotsk.i,as funções superiores(pensar, falar,agir, ter consciência das coisas, etc.), antes de se tornarem fun- .

ções da pessoa foram relações entre pessoas, a constituição dosaber humano em saber da criança, objetivo da educação for-mal,é um evento de natureza eminentemente soCial:primeiroporque o saber científico é uma produção social, resultado dahistória das relações de produção dos homens; segundo por-que a sua constitu,ição na criança passa, necessariamente, pelamediação dos outros, aqueles que já possuem a significaçãodascoisas (definidora do saber).Segue-se daí que o professor é ape-nas uma referência e um guia para a criança na aventura do sa-ber, colocando-se em questão todo sistema educativo baseadono conceito estreito e unidirecional de uma "relação pedagógi-ca" centrada, exclusivamente, na dupla "professor = aluno".

. Se saber é descobrir a significaçãoque as coisas têm paraos homens, o que não impede que existam diferenças semânti-cas e conceituais entre eles, a constituição do saber na criançanão ocorre pelo simples registro de informações a respeito domundo, mas pela descobertadasignificaçãodessas informações.E isso é obra dela, produção dela, na qual pode ser ajudada,mas nunca substituída. .

.Se o saber é uma produção social, 'oque implica a cir~u-lação das idéias na trama das relações sociais de produção, eleé um fenômeno de linguagem que extrapola o campo da sim-ples observação ou percepção. É pela palavra (oral, escrita ousubstitutivo dela) que ele se constitui e circula entre as pessoas.Cabe à palavra significaro que são as coisas e as idéias que te-IDOSa respeito delas. Isso coloca um duplo desafio à educação

formal:levar a criança a penetrar no mundo da linguagem e fa-zer da prática pedagógica um lugar da palavra, lugar onde as

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VIGOTSKI 59

crianças falam, pois é pela circulação da palavra (o diálogo de

múltiplas vozes, de que fala Bakthin) que a significação seconstitui.

.Se as funções superiores constituem um todo interliga-do, como diz Vigotski,o saberestá ligado aofazer (agir sobre o

, mundo) e à consciêncitl,tanto do saber e do que se sabe, quantodo fazer e do que se faz. Nada mais estranho a essa concepçãodo homem, por conseguinte, do que um saberque se esgota emsi mesmo, um "saber por saber". O saber é PALAVRAe AÇÃO..Finalmente, a educação, geral e formal, como compo-nente do desenvolvimento cultural, é um processo de transfor-mação de um ser concreto que ocorre dentro das condiçõesconcretasdeexistênciapróprias do seu meiosocial-cultural.Nes-se sentido, a história do indivíduo faz parte da história desse

.. meio.A menosque ocorram mudanças 110meio ou mudança demeio, total ou parcial, a história do indivíduo está fortementecondicionada pela história do seu meio. Urna primeira conse-qüência disso é que as crianças são todas diferentes, cada umadelas sendourna história, não simplesmente tendourna históriaou um passado. Histór~a essa que só por esquecimento ou porrazões ideológicas o educador pode deixar de levar em conta.Urna das grandes idéias da perspectiva histórico-cultural emque se situa Vigotski é que as várias funções são funções deurna mesma e únicapessoa, constituindo urna "unidade múlti-pia". E um dos grandes equívocos das instituições educativas,sob a influência de uma certa tradição psicológica e sociológi-ca, é pensar que a chamada inteligênciaconstitui um compar-timento isolado do indivíduo sem história. Dessa forma, pen-sa-se que o desenvolvimento mental é um setor independentee, portanto, imune àscondições concretas de existência,deve-dor unicamente de uma obscura herança genética. A naturezahistórica do desenvolvimento cultural, de um lado, e as desi-

gualdades sociais inerentes às sociedades marcadas pela divi-são de classes, do outro, colocam o educador em situações

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.60 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONfRIBUIÇÕES

aparentemente sem saída quando se trata de crianças prove-nientes de meios populares marcados pela pobreza e pela mi-séria. Se ignorar a história do meio pode levar a ver a criançacomo uma "abstração genérica", ou a implantar nela a ilusãode um "futuro impossível"; levar em conta a história do meiopode conduzir a implaIltar nela a consciência do próprio fra-casso e à desistência de toda educação. O desafio, enquanto es-sas condições não forem transformadas, é levar em conta ahistória do meio e conseguir implantar na criança a consciênciada sua realidade e da possibilidade real de superação das limi-tações que ela lhe impõe. Como? Este é o desafio.

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Allgel Pillo

FE/UnicampJosé Cantúsio,302 -Cidade Universitária13084-520- Campinas - [email protected] ou [email protected]

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